Teoria Crítica Da Empresa Ivanildo Figueiredo

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Ivanildo Figueiredo

Doutor e Mestre em Direito (UFPE)


Professor de Direito Comercial
da Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

Teoria crtica da
empresa

2015

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Figueiredo, Ivanildo
Teoria crtica da empresa / Ivanildo de Figueiredo Andrade de Oliveira Filho
Recife, 2015.
Bibliografia
1. Direito Civil Legislao Brasil; 2. Direito Comercial - Brasil
3. Empresas Leis e legislao Brasil; I. Ttulo

ndice para catlogo sistemtico:


1. Direito: Direito de Empresa, Cdigo Civil.

2015

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Esta obra dedicada a


Waldirio Bulgarelli,
Fbio Konder Comparato e
Fbio Ulhoa Coelho,
pela contribuio ao direito comercial brasileiro.

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Teoria crtica da empresa

Ivanildo Figueiredo

Prefcio

Talvez no exista outro ramo jurdico to permanentemente envolto em


questionamentos acerca de sua identidade e autonomia que o direito comercial. J a
profuso de nomes com os quais se apresenta (mercantil, empresarial, de empresa,
dos negcios, etc) denota certa dificuldade de se encontrar no universo jurdico,
diferenciando-se dos demais ramos. Por outro lado, a disciplina assumidamente
considera ter o objeto mudado ao longo dos sculos: comeou, na Idade Mdia, como
o direito dos comerciantes reunidos em corporaes; elegeu como foco a imprecisa
noo de atos de comrcio, no incio da Idade Contempornea; e, hoje, aponta a
empresa como seu ncleo estruturador. Alm disso, vez por outras, o direito comercial
v-se a defender sua prpria sobrevivncia enquanto ramo especfico. Diferencia-se
do direito civil, por meio de instrumentos menos formais e mais geis; v o direito civil
incorporar tais caractersticas para, em seguida, reivindicar absorv-lo; diferencia-se,
ento, mais ainda, reforando seus princpios e regras num incessante e enfadonho
movimento de gato e rato.
Confesso no saber exatamente o que motivaria esta constante e perturbadora
insegurana do direito comercial. A importncia de interpretao adequada das
normas de direito comercial para o regular funcionamento da economia capitalista e
para o atendimento das necessidades e querncias de todos inquestionvel. O
questionamento, no meio acadmico, de suas especificidades apenas revela
ignorncia da realidade econmica e empresarial. No plano da atuao profissional,
ningum vacila: sucesso no trabalhar com questes de direito comercial pressupe
um mnimo de familiaridade com os negcios, instrumentos financeiros, contabilidade,
economia etc. Quer dizer, no h razes para as hesitaes e desconfianas no
esprito dos comercialistas.
Mas se no tenho clareza acerca das causas motivadoras destas dificuldades
a cercarem a identidade e autonomia do direito comercial, no titubeio em apontar a
soluo para elas: estudo, aprofundamento, ampliao e difuso da disciplina. Quanto

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

mais os comercialistas se fizerem entender, mais confiantes estaro quanto


pertinncia de seus conhecimentos. E se, em tais empenhos (estudo, aprofundamento
etc), direcionarem a ateno para os fundamentos da disciplina, sua contribuio para
a identidade e autonomia desta ser ainda mais bem vinda e valiosa.
O livro que o leitor tem s mos, de autoria do Prof. Dr. Ivanildo Figueiredo,
Professor da Universidade Federal de Pernambuco, foca diretamente a essncia do
direito comercial, do modo como hoje ele se compreende no Brasil e em alguns outros
pases de filiao jurdica romano-germnica: a teoria da empresa. Critica-a, num
interessante esforo de aproximao das elucubraes tericas s dobras da prtica
profissional. Critica-a, tambm, revelando as incongruncias por assim dizer
internas.
Integrante, desde a constituio em 2012, da Comisso de Juristas nomeada
pela Cmara dos Deputados para o aperfeioamento do Projeto de Lei de Cdigo
Comercial, Ivanildo Figueiredo deu importantssimas contribuies para este
desiderato. Diversas disposies, assim como vrios aclaramentos e melhorias de
redao, incorporados ao longo do processo legislativo, nos campos do direito
societrio, cambirio, recuperacional e falimentar, so fruto de seu valioso empenho
e envolvimento nos trabalhos. E, estando acompanhando de muito perto todo o evoluir
do projeto, pode enriquecer como ningum a reflexo crtica sobre a empresa, num
contexto de antecipao de mudanas do direito comercial brasileiro que se
avizinham.
Fundado em ampla e atualizada pesquisa e expresso com uma rara elegncia
no portugus, o Teoria Crtica da Empresa rene todos os atributos para tornar-se
referncia no estudo da matria, na literatura jurdica brasileira. Ainda que no se
concorde com os resultados a que chega o autor, certamente no se poder deixar
de refletir sobre as muitas e percucientes questes que suscita.

Fbio Ulhoa Coelho


Professor Titular de Direito Comercial da PUC-SP

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Sumrio

Apresentao ............................................................................................

Introduo As antinomias do direito de empresa no Cdigo Civil .........

11

1. A empresa como objeto do direito comercial ....................................

23

1.1. A economia e o processo civilizatrio .................................................


1.2. A gnese do direito comercial nas corporaes de mercadores .......
1.3. Importncia dos costumes na formao do direito comercial ............
1.4. A fase publicista das relaes da empresa .........................................
1.5. Anlise econmica da empresa na teoria de Max Weber ...................
1.6. Ideologia e tica no capitalismo moderno ...........................................
1.7. A empresa na era da globalizao ......................................................

23
27
32
38
43
49
56

2. Codificao e descodificao do direito privado ..............................

66

2.1. Introduo ao problema da codificao ...............................................


2.2. Codificao e descodificao do direito privado no Brasil ..................
2.3. A unificao restrita do direito privado no Cdigo Civil de 2002 .........
2.4. Problemas metodolgicos da codificao do direito privado ..............
2.5. O retorno ao problema da autonomia e a constitucionalizao do
direito comercial ..................................................................................

66
72
79
85

3. O regime jurdico da empresa no Cdigo Civil de 2002 ...................

100

3.1. Contedo e conexo histrica do regime do direito de empresa ........


3.2. A desmercantilizao da empresa no Cdigo de 2002 .......................
3.3. Concesses do legislador ao carter comercial dos atos das
empresas ............................................................................................
3.4. Principais contradies do regime do direito de empresa ...................
3.5. A tentativa de compilao e consolidao de normas defasadas no
direito de empresa ..............................................................................
3.5.1. A fonte da regulao do nome empresarial no Decreto
916/1890 ...................................................................................
3.5.2. Restaurao da obrigatoriedade do registro de empresas e o
conflito de sistemas normativos ................................................
3.5.3. A disciplina da sociedade dependente de autorizao
derivada do Decreto-Lei 2.627/1940 .........................................
3.5.4. Crticas s normas da contabilidade empresarial ......................

100
108

88

121
126
132
133
137
141
146

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

4. Conceitos fundamentais do direito de empresa ..........................

150

4.1. A empresa como categoria central do sistema ...................................


4.2. Do comerciante ao empresrio ...........................................................
4.3. Conceito de empresrio ......................................................................
4.4. A sociedade empresria como modo de exerccio da empresa
coletiva ................................................................................................
4.5. Tipologia da empresa ..........................................................................
4.6. Transformao da empresa ................................................................
4.7. A empresa individual de responsabilidade limitada .............................
4.8. O regime da microempresa e da empresa de pequeno porte .............
4.9. O estabelecimento comercial e sua positivao no Cdigo Civil ........

150
163
184

5. A unificao do direito das obrigaes .............................................

287

5.1. Pressupostos da unificao do direito das obrigaes .......................


5.2. Princpios e modalidades contratuais no Cdigo de 2002 ..................
5.3. Aspectos diferenciadores da compra e venda mercantil .....................
5.4. Contratos mercantis regulados pela legislao especial .....................
5.5. A nova classificao dos contratos empresariais ................................

287
297
305
313
320

6. A tentativa de unificao do direito societrio ..................................

329

6.1. O regime societrio no Cdigo Civil de 2002 ......................................


6.2. A sociedade simples como tipo societrio genrico ............................
6.3. Caractersticas e o modelo burocrtico da sociedade limitada ...........
6.4. Principais entraves na regulao da sociedade limitada .....................
6.5. Aplicao supletiva da lei das sociedades annimas ..........................
6.6. A reviso necessria da sociedade limitada .......................................

329
339
345
361
367
373

7. A renovao do direito comercial .......................................................

377

7.1. Os problemas de adaptao do regime do direito de empresa


realidade econmica brasileira ...........................................................
7.2. Dificuldades no mbito do registro de empresas ................................
7.3. Restries cientficas e didticas no direito empresarial .....................
7.4. O projeto de novo Cdigo Comercial e sua justificao ......................
7.5. O retorno metodolgico aos princpios do direito comercial ................
7.6. Redefinio das fronteiras do direito comercial, do direito civil e do
direito do consumidor ..........................................................................

203
212
239
246
267
273

377
387
390
393
395
399

8. Do direito comercial ao novo direito empresarial .............................

402

Apndice - O processo legislativo do Cdigo Civil de 2002 ......................

409

Referncias ...............................................................................................

415

Teoria crtica da empresa

Ivanildo Figueiredo

Apresentao

O direito comercial brasileiro passou por uma significativa transformao a


partir da vigncia do Cdigo Civil de 2002. Essa transformao somente comparvel
com a introduo do prprio regime jurdico do comerciante pelo Cdigo de Comrcio
do Imprio, em 1850. Durante mais de 150 anos, a atividade comercial foi disciplinada
sob a concepo subjetivista do comerciante, pessoa fsica, como centro da regulao
normativa. Todavia, a concepo objetivista dos atos de comrcio tambm detinha
posio auxiliar na definio da matria comercial, especialmente na legislao
complementar ao Cdigo Comercial, nas dispisies do clebre Regulamento 737.
Devido prpria obsolescncia natural do Cdigo de 1850, diante das enormes
transformaes culturais, sociais e particularmente econmicas do final do sculo XIX
e por todo o sculo seguinte, a atividade comercial passou a ser regulada muito mais
pela legislao supletiva do que pelo Cdigo Comercial. Surgiram, assim, normas que
foram modernizando a disciplina da atividade dos comerciantes e das sociedades
mercantis, a exemplo da regulao das sociedades por quotas de responsabilidade
limitada,1 das sociedades por aes,2 da antiga lei de falncias e concordatas,3 das
leis de reforma bancria e do mercado de capitais,4 do registro pblico de empresas
mercantis,5 das micros e pequenas empresas,6 da propriedade industrial,7 da proteo
do consumidor8 e da defesa da concorrncia.9
No mbito da discusso da regulao da atividade econmica, os interesses
que se manifestaram com maior predominncia foram aqueles ancorados no

Decreto 3.708/1919.
Decreto-Lei 2.627/1940, depois substitudo pela Lei 6.404/1976.
3 Decreto-Lei 7.661/1945, substitudo pela Lei 11.101/2005.
4 Lei 4.595/1964, Lei 4.728/1965 e Lei 6.385/1976.
5 Lei 4.726/1965, reformulada pela Lei 8.934/1994.
6 Lei Complementar 123/2006, atualizada pela Leis Complementares 128/2008 e 147/2014.
7 Lei 5.772/1971, atualizada pela Lei 9.279/1996.
8 Lei 8.078/1990.
9 Lei 8.884/1994, revista pela Lei 12.529/2011.
2

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

liberalismo econmico. Afinal, o sistema capitalista, de livre mercado, sempre foi


adotado no Brasil, desde a Constituio de 1824. Nesse contexto, no evoluram os
debates para a reviso do Cdigo Comercial e da sua legislao complementar, e os
microssistemas normativos continuaram a predominar na regulao da atividade
econmica, em franco processo de descodificao.
A empresa, conceito desenvolvido pela teoria econmica, no representava
uma instituio do direito comercial, como objeto de regime prprio. Na legislao
trabalhista, a empresa sempre foi definida e reconhecida como elemento relacional,
sujeito de direitos e obrigaes, a partir do artigo 2 da Consolidao das Leis do
Trabalho: Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que,
assumindo os riscos da atividade econmica, admite, assalaria e dirige a prestao
pessoal de servio. Assim tambm era referida e definida pelas normas tributrias.
Somente a partir do Cdigo Civil de 2002, que revogou a primeira parte do Cdigo
Comercial de 1850, que a empresa passa a ser objeto central da regulao da
atividade econmica, agora pelo direito de empresa, ou direito empresarial, adotado,
por parte da doutrina, como nova denominao cientfica do antigo direito comercial.
Contudo, o regime do direito de empresa, apesar da aparente modernidade dos
conceitos e do novo sistema normativo, foi introduzido no Brasil de modo artificial, por
mera reproduo e importao do Cdigo Civil italiano de 1942, sem respeitar a
construo da nossa rica experincia mercantil nos ltimos anos. Essa a concluso
que resultar deste trabalho, que desenvolve uma abordagem crtica ao investigar as
antinomias e contradies desse aparentemente novo regime do direito de empresa.
Grande parte dessas contradies pode ser debitada excessiva demora na
tramitao do Cdigo Civil de 2002 no Congresso Nacional, por quase trs dcadas.
E tal defasagem temporal, em uma rea de regulao normativa altamente dinmica
e competitiva, como a atividade comercial, ainda mais influenciada pelas
transformaes aceleradas da globalizao econmica do final do Sculo XX, est a
exigir a reviso de conceitos, princpios e normas do direito de empresa. Na anlise
crtica dessa defasagem legislativa, reside o objeto central do presente trabalho. Da
o seu ttulo: teoria crtica da empresa.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

Introduo
As antinomias do direito de empresa no Cdigo Civil

O estudo do fenmeno econmico e dos seus agentes produtivos representa


tema da mais alta relevncia para a cincia do direito. A regulao da atividade
econmica pelo direito sempre esteve na pauta dos estudos e das pesquisas que
buscaram, sob diversas concepes e abordagens, explicar o modo como o sistema
de direito positivo apreende esse fenmeno e passa a elaborar regras destinadas a
disciplinar, direta e indiretamente, as atividades produtivas das empresas e dos entes
econmicos no mercado.
Para o direito, as relaes econmicas situam-se em esfera conceitual de
efetiva concreo. Sem embargo, a economia, no contnuo processo de produo e
circulao de riquezas, no depende, apenas, da atuao da mo invisvel do
mercado, como em certo momento da histria assim foi defendido pela doutrina do
liberalismo econmico, mas de complexos fatores sociais, polticos, culturais e
ideolgicos que interferem nesse processo.
No mbito da normatividade da empresa, como agente econmico essencial
da sociedade moderna, este trabalho situa o seu objeto. Nessa perspectiva de
investigao cientfica, a empresa ser analisada como instituio jurdica desde
mltiplos ngulos, com diversos modos de apreenso dessa organizao destinada
explorao de atividade econmica. Da que o conceito de empresa deve ser
estudado tanto na perspectiva da teoria econmica, como das cincias da
administrao, da sociologia, da histria, e claro, como neste estudo, do prprio
direito.10

10

Um dos mais famosos estudos analticos da empresa no direito comercial, sob a perspectiva dos
seus mltiplos ngulos, encontra-se no clebre ensaio intitulado Perfis da Empresa, de Alberto
Asquini. Nesse estudo, Asquini analisa a empresa como um fenmeno jurdico-econmico polidrico,

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

A ideia da empresa para o direito, sem embargo, ultrapassa o mbito da


dogmtica jurdica. O conceito de empresa no foi elaborado pelo direito, e sim pela
teoria econmica, mas a cincia do direito apropriou-se de uma construo histricoeconmica para moldar a forma e a disciplina de regulao da empresa, em cada
sistema jurdico.
Atravs das empresas, importante de plano reconhecer, as pessoas satisfazem
todas as suas necessidades de consumo, das mais elementares, como o teto que
habitam, o alimento, o vesturio, o mobilirio, os medicamentos, at as necessidades
mais complexas da vida moderna, como os automveis, telefones celulares,
computadores, os equipamentos eletrnicos, os perfumes, as joias, os objetos de
adorno da nossa residncia. Esta relao de dependncia das empresas para a
satisfao das nossas necessidades de consumo existe desde as mais remotas eras,
quando o comrcio era exercido pelos feirantes e mercadores.
As empresas realizam o pagamento dos salrios e a subsistncia da grande
massa de trabalhadores, transferindo rendimentos que retornam ao mercado sob a
forma de relaes de consumo. So as empresas que contribuem, de modo direto e
indireto, para a prpria manuteno financeira do Estado, porque respondem pelo
recolhimento dos tributos sobre os seus resultados e pela produo de riquezas que
tambm sero apropriadas, em um momento subsequente, pela atividade fiscalista
estatal.11

que somente pode ser compreendida se estudada sob quatro perfis: perfil subjetivo, a empresa na
perspectiva do empresrio; perfil funcional, a empresa como atividade empresarial; perfil patrimonial
ou objetivo, a empresa como patrimnio aziendal e como estabelecimento; e perfil corporativo, a
empresa como instituio humana hierarquicamente estruturada, como adiante ser explorado neste
trabalho. (Alberto Asquini, Perfis da Empresa, traduo de Fbio Konder Comparato, Revista de
Direito Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro RDM, So Paulo, RT, n 104, outubro/dezembro
1996, p. 109/126).
11 Em passagem clssica, Fbio Konder Comparato assim destacou a grande importncia da empresa
na sociedade contempornea: Se se quiser indicar uma instituio social que, pela sua influncia,
dinamismo e poder de transformao, sirva como exemplo explicativo e definidor da civilizao
contempornea, a escolha indubitvel: essa instituio a empresa. dela que depende,
diretamente, a subsistncia da maior parte da populao ativa deste pas, pela organizao do trabalho
assalariado. das empresas que provm a grande maioria dos bens e servios consumidos pelo povo,
e delas que o Estado retira a parcela maior de suas receitas fiscais. em torno da empresa, ademais,
que gravitam vrios agentes econmicos no assalariados, como os investidores de capital, os
fornecedores, os prestadores de servios. (A Reforma da Empresa, Revista de Direito Mercantil,
Industrial, Econmico e Financeiro RDM, So Paulo, Revista dos Tribunais, n 50, abril/junho 1983,
p. 55).

Teoria crtica da empresa

13

Ivanildo Figueiredo

O desenvolvimento tecnolgico, com efeito, sempre esteve intimamente


vinculado e dependente das atividades mercantis, porque so as empresas que,
atuando no ambiente competitivo, aplicam vultosos recursos em novos inventos,
novas frmulas e sistemas produtivos, e assim buscam, cada vez mais, superar a
concorrncia, visando conservar e ampliar a sua clientela, e atingir ndices crescentes
de produtividade e lucratividade.
A empresa, a rigor, no produto do sistema econmico de mercado, mas a
prpria essncia e razo de ser desse sistema, sua principal instituio. O processo
de reproduo capitalista a forma particular de manifestao da atividade
econmica, que somente possvel e se viabiliza a partir da atuao das empresas e
dos empresrios no ambiente de mercado.
A organizao econmica, estruturada a partir da diviso do trabalho e da
mobilizao de capitais, possibilita que as pessoas satisfaam as suas demandas por
bens e servios, trocando riquezas excedentes disponveis pelas parcelas da
produo alheia de que tiver necessidade.12 Em virtude dessa constatao, Adam
Smith considerava que todo homem subsiste por meio da troca, tornando-se de certo
modo comerciante; e assim que a prpria sociedade se transforma naquilo que
adequadamente se denomina sociedade comercial.13 A sociedade comercial a que
Adam Smith se refere a prpria dependncia da sociedade civil dessas relaes de
troca, na medida em que as pessoas somente podem satisfazer suas necessidades
de consumo atravs de transaes mercantis.
Doutro ngulo mais restrito e especfico, a assim denominada sociedade
comercial representava e ainda hoje representa, na perspectiva formal, o principal
modo de exerccio da empresa, ao reunir, em uma configurao jurdicoorganizacional, pessoas e capitais para a explorao de determinada atividade
econmica, com carter profissional e finalidade lucrativa. A sociedade comercial se
expressa como medida da prpria organizao da sociedade em um amplo sistema
de trocas, denominado mercado, bem como, na sua especfica reduo formal, como

12
13

Adam Smith, A Riqueza das Naes, So Paulo, Abril Cultural, 1983, vol. I, p. 57.
Adam Smith, A Riqueza das Naes, cit. p. 57.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

tipo caracterstico e apto para o exerccio da atividade empresarial, atravs, por


exemplo, das sociedades annimas.
Portanto, alm de servir como instrumento que viabiliza a produo e a troca
de bens, mercadorias e servios, a empresa tambm um dos principais meios de
acumulao e de distribuio de riquezas, dependendo o seu xito, destarte, da
iniciativa e da habilidade mercantil dos capitalistas que a constituram e que
assumiram o risco do negcio.
As empresas existem, precisamente, para viabilizar o sistema de trocas na
sociedade, de intercmbio de aes e relaes econmicas direcionadas
reproduo do capital. No decorrer dos sculos, a atividade empresarial foi se
especializando, tornando cada vez mais complexas as suas operaes, gerando
segmentos altamente desenvolvidos, como nas reas das finanas, do mercado de
capitais e da tecnologia, importando e introduzindo conceitos, mtodos e
procedimentos somente acessveis, em certos casos, aos nveis superiores de
conhecimento tcnico especializado.14
Sob a perspectiva histrica, considerava Karl Marx, na sua anlise crtica do
capitalismo, que o conjunto das relaes de produo e de troca, que ocorrem
necessariamente no mbito das empresas, representava a estrutura econmica da
sociedade, a base real sobre a qual se elevam as superestruturas jurdica e poltica e
s quais correspondem determinadas formas de conscincia social.15 Partindo dessa
concepo, a doutrina marxista entendia que o direito, que neste aspecto manifestavase sob a forma das relaes de propriedade, era determinado pelo fator econmico,
ou seja, o direito seria apenas um instrumento de proteo dos interesses das

14

Sobre a importncia da empresa no mbito do seu desenvolvimento histrico, observa Arnoldo Wald:
A evoluo da empresa constitui, na realidade, um elemento bsico para a compreenso do mundo
contemporneo. Do mesmo modo que, no passado, tivemos a famlia patriarcal, a parquia, o Municpio
e as corporaes profissionais, que caracterizaram um determinado tipo de sociedade, a empresa ,
hoje, a clula fundamental da economia de mercado. J se disse, alis, que a criao da empresa
moderna representa, na histria da humanidade, uma mudana de civilizao to importante quanto o
fim do estado paleoltico, ou seja o momento em que o homem deixou de viver exclusivamente da caa
para se dedicar agricultura, abandonando o nomadismo para se fixar na terra. Arnoldo Wald,
Comentrios ao novo Cdigo Civil - Livro II Do Direito de Empresa, Vol. XIV, Slvio de Figueiredo
Teixeira, Coordenador, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p.9/10.
15 Karl Marx, Para a crtica da economia poltica, So Paulo, Abril Cultural, 1982, p. 70.

Teoria crtica da empresa

15

Ivanildo Figueiredo

empresas e dos empresrios capitalistas como classe dominante, na condio de


proprietrios do capital e dos meios de produo.
Nessa ordem de ideias, a empresa representa objeto essencial ou fundamental
tutelado pelo direito, considerando que a estrutura econmica da sociedade civil
diretamente dependente da atividade empresarial para a prpria afirmao e
justificao existencial do sistema capitalista, em virtude de sua funo primordial de
promover a produo e a circulao de bens e riquezas. Em suma, a teoria marxista
considera que, historicamente, a economia e a prpria civilizao sempre
dependeram, para a sua prpria existncia como organizao humana, da atividade
produtiva das empresas.16
Estando o sistema econmico determinado pelas concepes e institutos de
ndole ou natureza mercantil, o capitalismo deve ser considerado como o modo de
produo dominante e quase exclusivo dos atuais sistemas poltico-estatais,
particularmente a partir da derrocada do regime comunista da Rssia sovitica e dos
pases do leste europeu, simbolizada, de modo emblemtico, pela queda do muro de
Berlim, em 1989. A partir desse marco histrico, representado pela supresso do
regime comunista de produo estatal, que possibilitou a consolidao do processo
de globalizao e de internacionalizao da economia, ressalta dessa realidade o fato
de que as empresas comerciais, entidades capitalistas por natureza, permanecem
como as unidades matrizes ou nucleares das transaes efetuadas atravs dos
negcios mercantis e dos processos resultantes, direcionados para a circulao e
acumulao de riquezas.
At mesmo na China, ainda politicamente submetida, neste sculo XXI, ao
regime comunista de partido nico, o modo de produo ocidental e do livre comrcio
vem sendo adotado em reas territoriais restritas, com nfase na manufatura de
produtos para exportao. Este fato propiciou o surgimento de uma nova classe de

16 Ao destacar a importncia histrica da empresa como base fundamental do direito comercial e das
transformaes progressivamente introduzidas na sociedade contempornea, em razo da evoluo
da economia, at alcanar o estgio atual, Waldirio Bulgarelli observava que o fulcro bsico gerador
de todas as transformaes ocorridas e em devir a empresa, tipo de instituio econmica que,
gerada embrionariamente no bojo da Revoluo Industrial, ampliou-se desmensuradamente at
dominar o panorama da economia atual (A Teoria Jurdica da Empresa, So Paulo, Revista dos
Tribunais, 1985, p. 2-3).

Teoria crtica da empresa

16

Ivanildo Figueiredo

proprietrios capitalistas, situao inimaginvel poucas dcadas atrs, sob a doutrina


do livro vermelho de Mao Ts Tung.
Seria tambm igualmente improvvel pensar, ao final do sculo XX, em uma
Rssia capitalista, dominada por grandes corporaes empresariais, sendo a Rssia
o bero da revoluo socialista de 1917, repositrio experimental da ideologia
marxista, implementada a partir da liderana de Vladimir Ilitch Lenin, terico de
reconhecido valor, em perodo de grande turbulncia social, marcado pela revoluo
comunista do proletariado e por duas grandes guerras mundiais.17
Com a abertura propiciada pela glasnost e pela poltica da perestroika de Mikail
Gorbachev, no curto perodo de 1986 a 1990, o regime sovitico de economia estatal
entrou em colapso, esgotado pelos imensurveis investimentos blicos na era da
guerra fria entre o ocidente e os pases socialistas do leste europeu. A partir de ento,
o sistema da economia de mercado passa a dominar, progressivamente, no mundo
globalizado. Atravs de processo acelerado e mesmo improvisado de privatizao, as
empresas antes controladas pelo Estado sovitico foram transferidas para a iniciativa
privada, com todos os percalos e dificuldades inerentes a uma economia que passou,
no incio do sculo XX, diretamente do regime feudal do czarismo para o regime
socialista, muito pouco havendo convivido com o sistema capitalista. Mesmo assim,
procurando reproduzir os modelos empresariais em voga na Europa, a Rssia vem se
adaptando ao sistema capitalista moderno, passando a reconhecer a empresa privada
como agente fundamental para a reorganizao da sua economia.
A figura da empresa, elemento motriz do desenvolvimento econmico,
assumiu, assim, progressivamente, posio das mais relevantes e estratgicas na
sociedade contempornea. E tal realidade passou a exigir que a cincia do direito
viesse a conferir aos agentes econmicos a mesma importncia que, em outros

17

Entre os anos de 1914, com a ecloso da primeira guerra mundial (1914-1918), passando pelo ano
de 1917, com a revoluo dos sovietes na Rssia, at o ano de 1945, quando terminou a Segunda
Grande Guerra (1939-1945), o mundo esteve submetido a um intervalo de mais de trinta anos de
instabilidade poltica e social, que interferiu, fortemente, na atividade econmica. Subordinada ao
conflito das ideologias, a atividade econmica mundial estava influenciada e direcionada, de modo
dominante, por todo esse perodo histrico, para atender s necessidades da indstria de material
blico e dos fornecedores de matrias-primas e materiais estratgicos. As guerras da Coria (19501953) e do Vietn (1955-1975) mantiveram, at a queda do Muro de Berlim (1989), o antagonismo
ideolgico entre capitalismo e socialismo, entre liberdade de empresa e dirigismo estatal.

Teoria crtica da empresa

17

Ivanildo Figueiredo

momentos histricos, reconheceu aos institutos jurdicos herdados do direito romano,


do direito cannico e dos sistemas civilistas da Frana e da Alemanha, como
observado, por exemplo, nos institutos clssicos da propriedade privada e na teoria
das obrigaes.
Como marca caracterstica, cabe observar que o modo capitalista de produo
assenta-se no princpio do livre mercado e na ideia de autorregulao ou
autocomposio de interesses, atravs de uma teia contratual em que as empresas
so os principais agentes e, ao mesmo tempo, representam o objeto fundamental da
tutela estatal. Esse regime de autorregulao exige, logicamente, a atuao de
profissionais e operadores do direito, como advogados, consultores jurdicos, notrios
e rbitros privados, na elaborao e mediao de contratos mercantis, aplicando
conhecimentos com graus variveis de complexidade tcnica. A autorregulao ou
autocomposio de interesses mercantis compreende conceitos, elementos e
instrumentos jurdicos que so desenvolvidos de modo emprico, a partir das
demandas das empresas e do mercado, preferentemente com mnimo grau de
interveno estatal. A experincia, a prtica, os usos e costumes mercantis, tal como
sempre ocorreu no direito comercial, desde sua origem, situada nas corporaes de
mercadores do sculo XIV, continuam a influenciar e a determinar o contedo dos
contratos, negcios e das relaes comerciais.
A doutrina do liberalismo econmico sempre adotou como um dos seus pilares
fundamentais a tese de que o Estado deve intervir o mnimo possvel na atividade
econmica. Uma das modalidades mais representativas de interveno do Estado na
economia revela-se atravs da funo legislativa. Desde o mercantilismo consolidado
no decorrer do sculo XVI, o Estado sempre editou normas positivas destinadas a
regular as atividades e as relaes empresariais. Nesse contexto, os dogmas liberais
propugnam um mnimo de legislao, para que possa existir um maior grau de
liberdade contratual nas atividades das empresas privadas entre si e dentro do
mercado.
Contudo, a atividade econmica, por ser de relevante interesse pblico e pilar
de sustentao da sociedade, principalmente nos pases perifricos, de economia
subdesenvolvida ou em fase de desenvolvimento, como no Brasil, deve ser

Teoria crtica da empresa

18

Ivanildo Figueiredo

condicionada e estar orientada a partir de legislao estruturada e compatvel com os


interesses sociais das polticas pblicas. Assim, se por um lado, uma corrente terica
entende que o Estado deve intervir de modo mais efetivo, direto e concreto na
regulao da atividade econmica, visando o bem comum e o interesse pblico, por
outro lado, a doutrina do liberalismo econmico refratria a qualquer modo ou
modelo de ingerncia do Estado na economia, ao considerar que o mercado deve se
regular por si prprio.
A atuao das empresas e suas relaes no mercado, para a doutrina liberal,
deveriam depender, apenas, da lei da oferta e da procura, dos princpios da livre
iniciativa e da livre concorrncia, da competio entre as empresas, na busca
incessante da maximizao dos seus lucros, como resultante de outro princpio
fundamental presente no direito positivo, o da garantia e proteo da propriedade
privada econmica (Constituio Federal, art. 170, inciso II).
Posicionando seu campo de estudo a partir desse amplo contexto econmico,
o presente trabalho persegue como objeto de investigao, como diretriz de avaliao
da normatividade e do grau de interveno legislativa do direito de empresa em nosso
Pas, a anlise dos possveis entraves e dificuldades que o Cdigo Civil de 2002 vem
causando na organizao jurdica e na dinmica das atividades empresariais no
Brasil. Em razo da importncia da atividade da empresa, do regime a ela deferido
pelas normas constitucionais de ordenao do sistema econmico, e da introduo
do regime do direito de empresa pelo Cdigo Civil de 2002, a matria sob enfoque,
por si e em si, revela a importncia do estudo cientfico a ela dedicado.
Sob o ponto de vista da funo econmica e social da empresa, resta justificada
a importncia do tema explorado, que tem por finalidade, como visto, investigar, sob
a perspectiva dogmtica, a partir das normas da Constituio da Repblica de 1988,
do Cdigo Civil de 2002 e da legislao comercial supletiva, o modo como o
ordenamento de direito positivo brasileiro define a empresa, como ele passou a
disciplinar as relaes negociais econmicas e como, especialmente, as normas do
Cdigo Civil podero dificultar ou entravar, sob o aspecto burocrtico, o normal
desempenho das atividades empresariais no regime da economia de mercado.

19

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Partindo

dessa

orientao,

pesquisa

ora

desenvolvida

explora,

objetivamente, o conceito de empresa na perspectiva da sua evoluo no direito


contemporneo, a forma de organizao da atividade empresarial e as relaes
dinmicas de contratao mercantil no ordenamento jurdico brasileiro. Em virtude da
tentativa de unificao do direito privado, tal como proposto e tentado pelo legislador
do Cdigo de 2002, especialmente nas reas do direito das obrigaes e do direito
societrio, procura-se, aqui, destacar e explorar os problemas e dificuldades que,
inevitavelmente, podero prejudicar a normalidade das atividades negociais, em
virtude de uma interveno legislativa defasada dos conceitos doutrinrios e
jurisprudenciais. E essa interveno legislativa foi promovida, sem embargo, de modo
inteiramente artificial, sem considerar as peculiaridades, a prtica, os costumes, os
usos mercantis e a evoluo histrica do direito comercial em nosso pas.
Diante da revogao, pelo Cdigo Civil de 2002, de toda a parte primeira do
Cdigo Comercial de 1850, que permaneceu em vigor por mais de sculo e meio,
influenciado pelo Cdigo Comercial francs de 1807, as normas que at ento
disciplinavam as atividades relativas aos comerciantes, s sociedades comerciais, aos
atos de comrcio e s obrigaes mercantis, foram substitudas por esse novo regime
jurdico de ordenao da atividade econmica das empresas. E esse novel regime
provocou, e continuar provocando, profundas modificaes na conscincia jurdica
empresarial e nos padres doutrinrios e conceituais at ento adotados no Brasil.
O Cdigo Civil de 2002, no campo do direito de empresa, adotou regime
normativo anlogo ou quase idntico ao disciplinado pelo Cdigo Civil italiano de
1942, o qual constitui a sua base referencial dogmtica.18 Assim, ao transportar,
praticamente sem modificaes de maior relevncia, as regras do direito de empresa
aplicveis realidade da Itlia, em meados do sculo XX, para o nosso sistema de
direito positivo em pleno sculo XXI, com um atraso de 60 anos, tais alteraes esto
a comprometer a prpria lgica interna do ordenamento nacional de direito positivo,
18 Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, o Cdigo Civil italiano de 1942 disciplinava tanto a matria civil
como a comercial, e a sua entrada em vigor inaugura a ltima etapa evolutiva do direito comercial nos
pases de tradio romanstica. fato que a uniformizao legislativa do direito privado j existia em
parte na Sua, desde 1881, com a edio do cdigo nico sobre obrigaes, mas ser o texto italiano
que servir de referncia doutrinria porque, embora posterior, acompanhado de uma teoria
substitutiva dos atos de comrcio. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, Saraiva, So Paulo, 15
edio, 2011, p. 39).

Teoria crtica da empresa

20

Ivanildo Figueiredo

diante da constatao da evidente incompatibilidade conceitual ou antinomia entre o


regime do direito de empresa e o regime jurdico mercantilista at ento adotado no
Brasil, regime este que ainda permanece forte e vigente na legislao comercial no
codificada, especialmente nos campos das sociedades por aes, dos contratos
mercantis e da recuperao de empresas e falncia.
Sob o aspecto hermenutico, o objeto do presente estudo tem como proposta
realizar uma anlise comparativa e prospectiva das normas constantes dos artigos
966 a 1.195 do Cdigo Civil de 2002, e da prpria concepo resultante do instituto
da empresa, visando discorrer sobre os principais efeitos prticos que tais
modificaes esto provocando no direito positivo brasileiro. E assim ser buscado,
aqui, demonstrar que, em face das antinomias normativas apontadas, tais
modificaes esto gerando uma situao de concreta dificuldade de interpretao e
de conciliao dessas regras do direito de empresa, diante das demais normas
destinadas regulao da atividade comercial, que no foram tocadas nem alteradas
pelo Cdigo Civil de 2002.
O objeto explorado neste estudo encontra-se, pois, circunscrito ao mbito
dogmtico-normativo e anlise das regras jurdicas e textos legais que passaram a
regular a atividade das empresas no nosso pas a partir do Cdigo Civil de 2002, isto
no que concerne aos seguintes institutos bsicos do direito comercial:
a)
b)
c)
d)

conceito de empresrio;
estabelecimento comercial ou empresarial;
obrigaes e contratos empresariais;
direito societrio: princpios gerais; sociedade empresria; a nova
sociedade limitada.

Com efeito, em relao ao seu objeto, este trabalho pode parecer, primeira
vista, bastante amplo e ambguo quanto ao seu contedo e extenso da proposta
investigativa, por abranger praticamente todas as normas do Cdigo Civil de 2002 que
tratam do direito de empresa. Todavia, tal amplitude inicialmente necessria, diante
da viso dominante da empresa como fenmeno econmico-social, regulado pelo

21

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

direito sob diversos enfoques de contedo, do modo como exposto por Alberto Asquini
no seu histrico ensaio intitulado Os perfis da empresa.19
Em termos metodolgicos, a empresa pode e deve ser investigada em razo
da matria comercial afeta execuo do seu objeto, assim como da forma jurdica
que ela adota, atravs da sua organizao como empresa individual ou sociedade
empresria. A empresa compreende, ao mesmo tempo, como objeto de investigao
cientfica, tanto forma como matria, que se encontram indissoluvelmente
relacionadas entre si. A forma o modo pelo qual a empresa organizada para a
consecuo dos seus fins econmicos. A forma da empresa varivel, podendo ser
definida a partir da figura do empresrio individual, ou adotar a espcie de sociedade
limitada, at atingir o pice estrutural da organizao da empresa, representada pela
sociedade annima, construo mxima da cincia do direito e da dogmtica jurdica
no campo do direito comercial. Atravs da sua forma juridicamente definida, que a
empresa viabiliza e realiza o seu objeto, como instrumento do exerccio da sua funo
econmica. A matria o contedo da atividade empresarial, da experincia emprica
mercantil, que se manifesta no modo como a empresa desempenha sua funo
produtiva, determinada a partir dos princpios e normas constitucionais que regulam a
organizao econmica, tal como contido, especificamente, nos artigos 170 a 174 da
Constituio de 1988.
Reconhecendo que a disciplina jurdica da atividade empresarial tem o seu
fundamento superior de validade nas normas da Constituio positiva, este estudo,
alm de adotar uma postura crtica diante do novo direito de empresa, dever tambm
interpretar as disposies desse regime a partir das normas e princpios
constitucionais.

E,

assim,

trabalho

deve

seguir

viso

terica

do

neoconstitucionalismo, de construo interpretativa das novas regras jurdicas, de


modo a, como prope Gustavo Tepedino, retirar do elemento normativo todas as suas
potencialidades, compatibilizando-o, a todo custo, Constituio da Repblica.20 A
partir dessa viso, o estudo do contedo material da empresa, em face das normas
do Cdigo Civil de 2002 e da Constituio de 1988, ir revelar a primeira antinomia

19

Alberto Asquini, Os perfis da empresa, cit., p. 109


Gustavo Tepedino, Crise de fontes normativas e tcnica legislativa na parte geral do Cdigo
Civil de 2002, in Temas de Direito Civil, Tomo II, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 3.

20

Teoria crtica da empresa

22

Ivanildo Figueiredo

que se pode objetivamente constatar nesse novo regime jurdico, diante da tentativa
do legislador de suprimir o carter mercantil da empresa, o qual sempre foi corolrio
ou pressuposto natural, determinante da atividade empresarial e do comrcio.
O estudo aqui delineado, portanto, destina-se a atingir objetivos especficos
situados no mbito da hermenutica e da anlise das normas jurdicas que regulam a
atividade empresarial, constantes do Cdigo Civil de 2002 e da legislao comercial
extravagante. Nesse contexto, este trabalho ir tomar, como pressuposto inicial, a
anlise do processo de transio do regime do comerciante e dos atos de comrcio,
sob a tica da dogmtica mercantil tradicional, para o regime do empresrio e do
direito de empresa.
Considerando o mbito da pesquisa cientfica, esta investigao deve ir mais
alm, na medida em que pretende demonstrar a evidente incompatibilidade e as
contradies presentes entre o regime normativo do direito comercial, consolidado em
nossa dogmtica jurdica, na doutrina e na jurisprudncia do nosso pas, em
comparao com as disposies constantes do regime do direito de empresa
introduzido, de modo artificial, pelo Cdigo Civil de 2002.
Adotando tal concepo, este livro no tem, por bvio, a pretenso de comentar
e analisar cada uma das disposies do Cdigo Civil que regulam o direito de empresa
(artigos 966 a 1.195). A proposta de pesquisa e investigao dogmtica destina-se,
precisamente, a apontar as incongruncias, distores e incompatibilidades
intrassistemticas do atual e vigente regime normativo, frente s demais normas do
direito comercial ou empresarial que, em muito maior profuso e quantidade,
continuaro a regular a atividade econmica no mbito do nosso ordenamento de
direito positivo.

Teoria crtica da empresa

23

Ivanildo Figueiredo

Captulo 1
A empresa como objeto do direito comercial

1.1. A economia e o processo civilizatrio; 1.2. A formao


do direito comercial nas corporaes de mercadores; 1.3.
Importncia dos costumes mercantis na regulao do
direito comercial; 1.4. A fase publicista das relaes da
empresa; 1.5. Anlise econmica da empresa na teoria de
Max Weber; 1.6. Ideologia e tica no capitalismo moderno;
1.7. A empresa na era da globalizao.

1.1. A economia e o processo civilizatrio

Desde a origem da civilizao, podemos observar uma realidade pendular, na


qual o regime econmico apresenta-se com variaes ou tendncias oscilantes, ora
pendente entre o intervencionismo estatal em um extremo, ora, pendendo no extremo
oposto, em que prevalece liberdade econmica como doutrina dominante e
determinante do processo de produo.
Enquanto no Egito antigo a atividade econmica estava submetida a rgido
controle do Estado, sob a figura onipresente e divina do fara, na Grcia as ideias e
concepes da racionalidade do pensamento humano e da origem da democracia,
aplicadas aos negcios, facilitavam uma maior liberdade na explorao do comrcio
martimo no Mar Mediterrneo.21 Essa realidade pendular reproduziu-se ao longo da
histria, na Idade Mdia, do corporativismo privado na fase feudalista, que se
contraps ao mercantilismo dos Estados absolutistas do sculo XVI, at alcanar, no
incio do sculo XX, o pice da crise entre os modelos econmicos antpodas e

21

Walter Alvares, Curso de Direito Comercial, Belo Horizonte, Sugestes Literrias, 6 edio, 1982,
p. 64.

Teoria crtica da empresa

24

Ivanildo Figueiredo

aparentemente incompatveis entre si, do comunismo socialista e do capitalismo


liberal.
A sociedade, em todo o decorrer do processo civilizatrio, sempre esteve
relacionada e dependente da sua base de sustentao econmica. Desde que o
homem passou a aprovisionar as sobras da colheita ou da caa, a fabricar utenslios,
armas e roupas, com o couro e as peles dos animais, e utilizou, em primeiro momento,
o mecanismo de escambo e, em segundo momento, a troca desses bens por uma
medida de valor, desde esse tempo, segundo Friedrich Engels, passou a existir a
propriedade privada e o comrcio.22
A prpria expresso comrcio deriva da fuso ou juno das palavras comutatio
e mercium,23 ou seja, decorre da comutao ou troca de mercadorias entre duas
pessoas, sendo uma a que detm a coisa de que a outra necessita, diante de outra
pessoa que procura adquirir a propriedade da coisa mediante o pagamento de uma
medida de valor aceita por ambas as partes. A lei da oferta e da procura representa,
nessa perspectiva, uma das mais antigas normas costumeiras da sociedade humana.
Aristteles afirmava que o comrcio a arte de ficar rico, ganhando dos
outros, e que, por isso, essa forma de ganhar dinheiro de todas a mais contrria
natureza.24 Todavia, a sociedade humana, desde os primrdios da civilizao, jamais
prescindiu da presena de pessoas que, assumindo a iniciativa e desempenhando
atividades relacionadas agricultura, criao animal, pesca, extrao mineral,
artesanato, construo, fabricao, transporte e comrcio de bens, exerceu uma
participao que, historicamente, revelou-se fundamental para a prpria subsistncia
social.
Neste ponto inicial, impende reconhecer que a sociedade sempre se
demonstrou dependente da atividade mercantil, situao em que a figura do mercador,

22

Friedrich Engels, A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado, Rio de Janeiro,


Civilizao Brasileira, 3 edio, 1977, p. 179.
23 A expresso comrcio originria do latim commercium, derivado de cum (preposio), que significa
troca, ou abreviatura de comutatio, e merx (mercadoria), sendo definido originariamente por
Sigismondo Scaccia no brocardo commercium est quasi commutatio mercium. Joo Eunpio Borges,
Curso de Direito Comercial Terrestre, Rio de Janeiro, Forense, 5 edio, 1976, p. 7.
24 Aristteles, Poltica, Livro I, Captulo III, Braslia, Editora UNB, 1997, p. 28.

Teoria crtica da empresa

25

Ivanildo Figueiredo

do feirante, do comerciante, da empresa e do empresrio, este nos tempos modernos,


representa uma funo scio-econmica das mais essenciais e que compreende, na
sua dinmica, o modo de sustentao da civilizao contempornea, como antevisto
e diagnosticado por Karl Marx.25
A sociedade, nas suas mltiplas relaes interpessoais, compreende um
sistema aberto no qual a atividade econmica a prpria estrutura vital que influencia
o comportamento dos indivduos, em que o dinheiro, como elemento fundamental do
regime capitalista, assumiu papel determinante na qualidade de vida, na formao do
patrimnio mnimo necessrio sobrevivncia humana e na diferenciao das classes
sociais. E o dinheiro foi criado como mercadoria de troca desde que o homem iniciou
o processo civilizatrio, atravs do uso das medidas de valor.
Primitivamente, anotava Adam Smith, a medida de troca mais utilizada era o
boi, e a histria registra que, na Odissia, Homero comparava que a couraa de
Diomedes custou somente 9 bois, ao passo que a de Glauco custou 100 bois,26 de
onde se origina a expresso monetria pecnia, que vem de pecus, denominao
de gado, em latim.
Era tambm comum, em outros povos da antiguidade, a utilizao, como
moeda, de mercadorias como o sal, o acar, conchas raras e at bacalhau seco. Os
registros histricos atribuem ao povo da Ldia, por volta do sculo VI a.C., o incio da
utilizao da moeda de metal cunhada como medida de troca. E logo esse meio da
moeda metlica, muito mais fcil para ser transportada, passou a ser universalmente
empregado, sendo o ferro o instrumento comum de comrcio entre os espartanos;
entre os antigos romanos era o cobre; o ouro e a prata eram os instrumentos de
comrcio de todas as naes ricas e comerciantes.27 O dinheiro, depois da diviso
natural do trabalho, a expresso mais significativa da patrimonializao da
sociedade, e coube ao comrcio promover a circulao e a acumulao de riquezas

25 Marx, na sua anlise crtica do capitalismo, observou que a economia representa a superestrutura
sobre a qual repousam todas as demais estruturas sociais, sejam estas de natureza religiosa, poltica,
jurdica ou cultural. A economia, na verdade, dita e influencia o comportamento humano, isto desde o
momento em que qualquer pessoa necessita de um mnimo de patrimnio, de bens e de rendimentos
para viver. (Para a crtica da economia poltica, cit., p. 70).
26 Adam Smith, A Riqueza das Naes, cit., p. 58.
27 Adam Smith, A Riqueza das Naes, cit., p. 58.

Teoria crtica da empresa

26

Ivanildo Figueiredo

atravs das pessoas que desempenhavam essa atividade, no apenas como modo
de exerccio de uma profisso, mas com a finalidade de entesouramento e
enriquecimento.
E assim, a humanidade seguiu o seu caminho, por sculos e sculos, fazendo
com que o dinheiro assumisse, cada vez mais, um papel determinante na formao
das classes sociais, engendrando a diviso entre ricos e pobres, entre possudos e
despossudos, entre naes poderosas e povos marginalizados.
Mesmo quando uma sociedade pretensamente mais evoluda alcanou o
estgio ideolgico da coletivizao dos meios de produo, no regime comunista dos
sovietes, a partir da Revoluo Russa de 1917, o dinheiro (rublo) permaneceu sendo
o nico meio de troca e medida de valor utilizado para as relaes comerciais e de
subsistncia na economia socialista. Ou seja, o comrcio no desapareceu na Rssia
comunista, apenas a figura do proprietrio da riqueza privada ou capitalista, foi
substitudo pelo Estado como detentor dos meios de produo.
No regime econmico capitalista, dominado pela economia monetria,
podemos constatar que esse fenmeno influenciou e moldou o modo de organizao
da sociedade atravs de todos os tempos, e a justificao ontolgica para a existncia
do dinheiro sempre esteve historicamente vinculada ao comrcio, s relaes de troca
de bens e mercadorias demandadas pelas pessoas, independentemente do grau de
evoluo do processo civilizatrio.
O fenmeno econmico, determinante na formao das estruturas sociais,
sempre se vinculou, primeiramente, ao mercador, depois ao comerciante, at chegar
empresa, como agente e principal ente responsvel pela atividade comercial. Aps
a revoluo comercial burguesa de fins do sculo XVI, os banqueiros e mercadores,
do final da Idade Mdia, assumiram posio dominante na sociedade, na condio de
membros representativos das principais operaes e negcios mercantis destinados
satisfao das necessidades de consumo das pessoas e acumulao de capitais
por parte daqueles que a exploravam.
Sob a perspectiva analtica, a concepo da empresa existe desde a origem do
ciclo econmico nas civilizaes mais antigas. Assim, por exemplo, a regra ancestral

Teoria crtica da empresa

27

Ivanildo Figueiredo

contida no Cdigo de Manu, da ndia, que se refere idia de empresa como


organizao do esforo comum das pessoas para atingir determinado objetivo e
repartir entre si os resultados da explorao.28
A empresa compreende, portanto, o modo de exerccio da atividade comercial
ao longo da histria, realizada pelo feirante, pelo mercador, pelo comerciante, pelo
armador de navios, pelo banqueiro, mais adiante pela grande sociedade annima, isto
, por todas as pessoas que, isolada ou conjuntamente, exercem atividades de
produo e circulao de bens e riquezas, praticando atos de mercancia em carter
profissional, com a inteno de obter lucros.

1.2. A gnese do direito comercial nas corporaes de mercadores

Os mercadores, reunidos em corporaes,29 desde o sculo XII, ainda na alta


Idade Mdia, passaram a estruturar as suas prprias normas, consolidando os usos e
prticas necessrios ao ordenamento e disciplina das relaes comerciais, assim
como para tambm resolver, entre eles, os conflitos decorrentes do exerccio da
mercancia.
As corporaes de mercadores, s quais estavam vinculados os proprietrios
e armadores de navios, no s consolidavam em normas os usos e costumes
mercantis,30 como estabeleciam uma jurisdio comercial supraestatal, decidindo,
28 O Cdigo de Manu (ndia, 1500 a.C.), ao tratar do modo de diviso dos resultados em uma
sociedade, faz meno empresa como atividade produtiva, conforme consta da traduo literal do
seu art. 204: Quando vrios homens se renem para cooperar, cada um com seu trabalho, em uma
mesma empresa, tal a maneira por que deve ser feita a distribuio das partes. (Amador Paes de
Almeida, Manual das Sociedades Comerciais, So Paulo, Saraiva, 5 edio, 1987, p. 4).
29 As corporaes de ofcio ou guildas, eram formas de associao que reuniam as atividades
profissionais, e surgem, explica Paula Forgioni, a partir do sculo XII no contexto do florescimento do
comrcio e artesanato das cidades, como associaes daqueles que tinham interesses comuns e
tencionavam protege-los. Nesse contexto histrico, as corporaes no nascem de imposio das
autoridades, mas sim da espontnea associao dos agentes econmicos. (Os fundamentos do
antitruste, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 39).
30 No renascimento da atividade comercial, aps o eclipse econmico da Idade Mdia e da era feudal,
vrias consolidaes de normas mercantis surgiram nas principais cidades europias, moldadas pelos
usos e costumes dos mercadores. So exemplos as consolidaes medievais como o Consulato Del
Mare, de Barcelona (sculo XI), Rles DOleron, da Frana, (sculo XII), Tbuas Amalfitanas, de Amalfi,

Teoria crtica da empresa

28

Ivanildo Figueiredo

como justia privada, os conflitos entre seus membros, independente da


nacionalidade e da origem dos comerciantes envolvidos.31 Compreendia, portanto,
uma jurisdio internacional, que vinculava os mercadores e seus navios ao porto
martimo em que se encontrassem.
Na Europa pr-renascentista e ainda antes da formao dos Estados nacionais,
a economia derivada do comrcio era orientada pela ampla liberdade de contratao,
e as limitaes ao trfico mercantil resultavam, na maioria dos casos, de conflitos
blicos temporrios e de situaes de guerra ou de paz entre reinos e principados,
assim como pela expanso do Imprio Otomano. Alis, os mercadores rabes,
vinculados religio muulmana, exerciam com muito maior prodigalidade e
despreendimento as atividades prprias do comrcio, ocupando o vcuo deixado no
Ocidente devido s restries impostas atividade mercantil pela Igreja Catlica
durante toda a Idade Mdia.
Os mercadores, influenciados pela dominncia do trfico mercantil no Mar
Mediterrneo pela Repblica de Veneza, tinham na liberdade de comrcio e na
persecuo constante do lucro os fundamentos pragmticos da explorao comercial,
pressupostos que se encontravam fundados na assim denominada lex mercatoria, a
lei particular dos comerciantes.32 A lex mercatoria, nessa poca, representava no
apenas a vinculao dos mercadores a uma instncia corporativa de regulao das
relaes econmicas entre comerciantes de uma mesma cidade ou de diferentes
nacionalidades, mas possua um significado poltico-filosfico bem mais amplo, como
expresso concreta, real, da prpria liberdade de comrcio.33
A atividade mercantil, entre os sculos XIV e XVII, era essencialmente
subjetivista e corporativa, regulada por regras costumeiras e consolidaes
normativas originrias da prpria classe comercial. O exerccio do comrcio, nesse
tempo, dependia da vinculao do comerciante a uma determinada corporao de
na Itlia (sculo XIII), Leis de Wisby, das ilhas inglesas (sculo XV) e do Guidon de la Mer, da
Normandia, Frana (sculo XVI), apresentando essas normas a finalidade comum de regulao do
comrcio martimo e dos contratos de seguro no transporte naval. (Walter lvares, Curso de Direito
Comercial, cit., p. 71).
31 Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, Madrid, Editorial Revista de Derecho
Privado, 1941, p. 146.
32 Francesco Galgano, Lex Mercatoria, Bologna, Il Mulino, 4 edio, 2001, p. 45.
33 Francesco Galgano, Lex Mercatoria, cit., p. 56.

Teoria crtica da empresa

29

Ivanildo Figueiredo

mercadores ou guilda comercial.34 A atividade mercantil somente era acessvel aos


que demonstrassem aptido profissional e capacidade econmica para o exerccio do
comrcio, situao que era aferida pela corporao, com jurisdio sobre determinada
cidade, porto ou regio.
As corporaes de mercadores e as guildas eram constitudas e organizadas a
partir de estatutos,35 que estabeleciam as condies de matrcula dos comerciantes,
os direitos e obrigaes dos associados, a submisso jurisdio consular corporativa
e definia, ainda, as normas contratuais e negociais a que ficavam submetidos os
mercadores a ela vinculados.36
A jurisdio das corporaes de mercadores, presidida pelos princpios da lex
mercatoria, possua carter supranacional, no estando vinculada a nenhuma esfera
de poder estatal.37 Mas, ao contrrio, diante do crescente poderio econmico e poltico
da burguesia mercantil, o jus mercati ou jus mercatorum derivado dos estatutos das
corporaes, legislao que dominava, sem contraste, em todos os portos, feiras ou
mercados,38 que passou a influenciar o contedo dos estatutos das cidades que
eram entrepostos comerciais, a tal ponto de os estatutos de suas corporaes se
confundirem com os estatutos da prpria cidade.39

34

Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, op. cit., p. 128.
Segundo Paula Forgioni, dois eram os tipos de normas que disciplinavam a atividade das
corporaes de ofcio, em um bvio contexto de pluralidade de ordenamentos jurdicos: as primeiras,
os estatutos das corporaes, ordenamentos jurdicos completos, como se ver, e que eram colocados
pelos comerciantes ou artesos para disciplinar sua prpria atividade. O outro sistema era aquele da
Comuna medieval, que procurava regular a atividade das corporaes, fazendo-a, na maioria das
vezes, pelo controle dos estatutos e imposio de algumas normas de conduta obrigatrias para seus
membros. (Os fundamentos do antitruste, cit., p. 40/41).
36 Ensina Tullio Ascarelli que objetivamente, a competncia da magistratura comercial era limitada aos
negcios mercantis e queles conexos, isto , compra para revenda e s sucessivas revendas, os
negcios bancrios e de cmbio, mas tambm aqueles que com os precedentes fossem conexos.
(Corso di Diritto Commerciale Introduzione e Teoria dellImpresa, Milano, Giufr, 3 edizione,
1962, p.7-8).
37 Descrevendo as funes e atividades estatutariamente determinadas, de um modo geral, para as
corporaes de mercadores no perodo do Renascimento europeu, Alfredo Rocco afirma: Vrias eram
as funes das corporaes: elas organizavam e presidiam as feiras e os mercados; mandavam
cnsules para o estrangeiro para proteger os scios, assistiam-lhe quando fossem atingidos por
infortnios ou doenas, tutelavam a segurana das comunicaes e, por fim, funo importantssima,
dirimiam as questes que pudessem surgir entre os scios. (Princpios de Direito Comercial,
Campinas, LZN, 2003, p. 16).
38 Joo Eunpio Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre, cit., p. 27.
39 Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, So Paulo, Saraiva, 25 ed., 2003, vol. 1, p. 10.
35

Teoria crtica da empresa

30

Ivanildo Figueiredo

Esse perodo de expanso do comrcio, mais evidenciado a partir do sculo


XIV, com o florescimento das cidades, com o incio da ascenso da burguesia citadina
e do processo de acumulao de riquezas em mos de uma nova classe, foi
denominado de Revoluo Comercial, caracterizado por uma atividade mercantil
intensa e que no conhecia fronteiras, dotada de ndole essencialmente internacional
e cosmopolita.
A Revoluo Comercial (Sculos XIV a XIX) esteve, assim, representada e
caracterizada pelo auge da lex mercatria, como instrumento de organizao da
classe burguesa dos mercadores e de afirmao dos novos mtodos de explorao
econmica fundados no princpio da liberdade de contratar. A liberdade de
contratao era decorrente do corolrio do princpio da autonomia da vontade como
fonte fundamental do direito das obrigaes mercantis.
E, desse modo, as relaes jurdicas, desde essa fase histrica, tinham na
autonomia da vontade o fator determinante para a deciso de contratar e para
vinculao de cada comerciante a uma determinada corporao, com a conseqente
eleio do critrio para composio de litgios entre seus membros, tudo com base
nos princpios das leis de mercado, ou seja, na lex mercatoria. Essa realidade tanto
era reconhecida que, no ano de 1475, o Lord Chanceler da Inglaterra, Thomas
Rotherham, afirmava, categoricamente: Los mercaderes no estn obligados por
nuestras leyes, sino que deben ser juzgados de acuerdo con la ley natural, a la cual
algunos llaman Lex Mercatoria, que es universal en el mundo.40
Alm de consagrar o princpio da liberdade comercial, a lex mercatoria
estabelecia as regras bsicas para o exerccio do comrcio fundado nos costumes
mercantis e nas decises dos magistrados consulares, isto , na jurisprudncia
formulada e consolidada pelos tribunais das corporaes de mercadores,
estabelecendo, na sua evoluo histrica, normas de regulao dos contratos de
compra e venda mercantil, do depsito, do seguro, do emprstimo, dos ttulos de

40

Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, cit., p. 119; no mesmo sentido, Marcelo
Castrogiovanni, Lex Mercatoria, in Revista Electronica de Derecho Comercial, www.derechocomercial.com, 14/09/2013.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

crdito e do trfego martimo, em especial.41 O princpio da liberdade de comrcio


predominava, ento, como frmula ideal da atividade mercantil, com a mnima
ingerncia do Estado sobre as relaes jurdicas de produo, circulao e consumo
de bens e mercadorias.
Sem embargo, em face da omisso do Estado em disciplinar, nessa poca
histrica, as relaes comerciais, os prprios mercadores criavam, atravs dos usos
e costumes e da jurisprudncia consular das corporaes mercantis, as normas
reguladoras das suas atividades. Como caracterstica dominante dessa legislao
privada mercantil, encontramos na sua formulao bsica elementos novos,
dissociados do direito romano clssico, na medida em que as construes civilistas
sempre se demonstraram insuficientes para reger a dinmica do trfico comercial.42
O Estado, aps o fim do medievo e no perodo de surgimento das naes e
reinos unificados na Europa, por volta do sculo XV, em razo da necessidade de
afirmao da nacionalidade e de fixao das suas fronteiras, tinha como preocupao
maior o controle interno policial e a defesa territorial. Da que o reconhecimento e
aplicao da lex mercatoria na fase de ascenso da burguesia mercantil no se
deparava com limites estatais, e a autonomia da vontade, conseqentemente,
prevalecia como fator determinante das relaes comerciais e dos seus efeitos
obrigacionais. E essas relaes comerciais no estavam limitadas ao mbito dos
territrios recm definidos ou ainda em fase de fixao de fronteiras, mas
ultrapassavam as feiras, vilas, cidades, burgos e reinos, sendo a atividade comercial
regulada por normas costumeiras e dotadas de carter supraestatal, de natureza
41 O desenvolvimento do direito comercial no perodo final da Idade Mdia foi fruto de uma construo
secular, resultante da necessidade de criao de uma base normativa apropriada s demandas
comerciais, como destacado por Ana Mercedes Lopes Rodriguez: This law resulted from the effort of
the medieval trade community to overcome the fragmentary and obsolete rules of feudal and Roman
law which could not respond to the needs of the new interlocal and international commerce. Merchants
created at superior law, which constituted a solid legal basis for the great expansion of commerce in the
Middle Ages. For almost eight hundred years uniform rules of law, those of the law merchant were
applied throughout Western Europe among traders. Em traduo livre: "Este direito resultou do esforo
da comunidade dos mercadores medievais para superar as regras fragmentrias e obsoletas do direito
feudal e romano, que no respondia mais s necessidades do novo comrcio regional e internacional.
Mercadores formados em um direito superior estabeleceram uma base jurdica slida para a grande
expanso do comrcio na Idade Mdia. Por quase 800 anos, as regras uniformes dessa lei mercatria
foram aplicadas em toda a Europa Ocidental entre os comerciantes. (Lex Mercatoria, University of
Aarhus, Denmark, Department of Private Law Review, in www.rettid.dk/artikler/20020046.pdf,
11/01/2009).
42 Francesco Galgano, Lex Mercatoria, cit., p. 74.

Teoria crtica da empresa

32

Ivanildo Figueiredo

essencialmente privada e cosmopolita, sem se vincular, portanto, a nenhum sistema


nacional.
O direito do comrcio, nesse perodo de consolidao da Revoluo Comercial
e da ascenso da burguesia mercantil como nova classe social, encontrava-se
estruturado a partir da lex mercatoria, que tinha por objeto a regulao dos contratos
comerciais e a soluo de litgios entre comerciantes, atravs de uma justia
corporativa fundada nos precedentes dos usos mercantis.

1.3. Importncia dos costumes na formao do Direito Comercial

O direito comercial foi produto, durante o decorrer dos sculos, de peculiar


formao consuetudinria. Mais do que observado em qualquer outro ramo do direito,
a influncia dos costumes ainda permanece contribuindo para a evoluo e para a
alta especializao dos negcios mercantis, diante das caractersticas decorrentes do
modo utilitarista de pensar que domina o sistema mercantil.
Com efeito, a atividade comercial da empresa somente se submete lei, isto
, norma positiva, naquilo que estiver normativamente previsto, como regra que
esteja obrigada a cumprir. No tocante s condutas facultativas, que possam ser
observadas a partir da opo pela realizao de determinado ato, negcio ou contrato,
o comerciante ou empresrio vai adotar o comportamento ou a ao que lhe seja
pragmaticamente mais lucrativa ou conveniente, do ponto de vista negocial. Em
relao aos demais atos e negcios que no estejam regulados em lei, ser a conduta,
os usos e costumes dos comerciantes, as suas relaes concretas no mercado e na
dinmica empresarial, que iro construir e desenvolver novos negcios jurdicos e
novas formas de exercer a atividade mercantil.
O exerccio da atividade mercantil pela empresa parte de um princpio maior, o
da liberdade de comrcio, que decorre de outro princpio instrumental, o da livre
concorrncia. Da juno desses dois princpios resulta um fundamento deontolgico

Teoria crtica da empresa

33

Ivanildo Figueiredo

do sistema capitalista, o da livre empresa, segundo o qual as pessoas podem


desempenhar atividade mercantil com ampla liberdade de escolha do seu exerccio
como profisso, ainda que limitado o objeto da empresa a negcios que no violem
determinadas normas de ordem pblica.
A liberdade de empresa e de comrcio so preceitos fundamentais que se
originam na antiguidade, que por sculos sofreram algumas limitaes decorrentes de
conflitos blicos entre os pases e pelas disputas do mercantilismo e do imperialismo
econmico, mas que jamais deixou de ser observado como condio fundamental
para a evoluo da economia. Ainda que a anlise da importncia dos usos e
costumes possa ser considerada como uma etapa primitiva do direito sob o prisma da
historicidade,43 no campo da liberdade de comrcio o costume mercantil continuar
criando novas figuras e novos tipos de negcios na explorao dos mercados, no
sentido da contnua ampliao da lucratividade e acumulao do capital.
Analisando a origem do direito comercial por volta do sculo XVI, como
disciplina autnoma de regulao das atividades mercantis, Rocco observara que a
desagregao social e poltica na Idade Mdia produziu os dois fenmenos, que
tornaram possvel e facilitaram a formao de um direito especial ao comrcio: a
prevalncia do costume sobre o direito estatal e as corporaes de mercadores.44 E,
nessa primeira etapa de formao do direito comercial, definida como sendo a fase
corporativa, as atividades das corporaes de mercadores destacavam-se como de
fundamental importncia, no apenas na consolidao das normas costumeiras
desenvolvidas por sculos na experincia mercantil, mas na soluo dos conflitos
negociais entre mercadores de diversas nacionalidades, atravs de um sistema
privado de justia consular, tal como registrado por Rocco.45
O marco inicial do direito comercial como disciplina jurdica autnoma foi
estabelecido pela doutrina como estando localizado na obra de Benvenuto Stracca
(1509-1578), intitulada Tractatus de mercatura seu mercatore, de Veneza (1553),46

43

Nelson Saldanha, Sociologia do Direito, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2 edio, 1980, p. 164165.
44 Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit., p. 14.
45 Alfredo Rocco, cit., p. 16.
46 Alfredo Rocco, cit., p. 28.

Teoria crtica da empresa

34

Ivanildo Figueiredo

que teve o mrito, exatamente, de realizar uma compilao e consolidao das


principais normas consuetudinrias at ento conhecidas no comrcio ocidental.
Rocco conclui, em sntese, que as primeiras normas destinadas especialmente a
regular o trfego mercantil foram, portanto, normas consuetudinrias (consuetudo
mercatorum, stylous mercatorum).47
Devido liberdade de comrcio e desvinculao dos mercadores de sistemas
nacionais de filiao ou de autorizao estatal para o exerccio da atividade mercantil,
as relaes e negcios comerciais realizavam-se a partir das necessidades prprias
dessas operaes. E assim se verificava na seleo de produtos e fontes produtoras,
da abertura de novos mercados, da criao de novos tipos contratuais, de invenes
que surgiam para facilitar a produo e o trfico mercantil. E isto sem que o Estado
exercesse um controle limitativo da explorao comercial, seno para fiscalizar a
atividade mercantil no sentido de impor tributos e assegurar o seu domnio territorial.
Em decorrncia dessa liberdade de comrcio e das exigncias de constante
evoluo do trfico comercial, Rocco afirma que os mercadores exatamente no
costume puderam encontrar satisfao s particulares exigncias do Direito
Comercial.48 Na viso de Tullio Ascarelli, so essas normas que, elaboradas nas
corporaes mercantis e aplicadas pelos respectivos tribunais da justia consular, e
desenvolvidas nas feiras, combinam-se com a evoluo dos costumes para a
formao de um corpus juris substancial e internacionalmente uniforme no mbito
mercantil e que encontra no internacionalismo nova razo de vida e de autonomia.49
Ascarelli considera, ainda, que, no perodo de especializao do direito comercial, ao
final do sculo XVI, com a formao dos Estados absolutistas e com o perodo do
mercantilismo, as fontes do direito comercial no mais sero encontradas na
autonomia das corporaes, pois o direito comercial passar a fazer parte do direito
comum.50

47

Alfredo Rocco, cit. p. 15.


Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit. p. 15.
49 Tullio Ascarelli, O desenvolvimento histrico do Direito Comercial e o significado da unificao
do Direito Privado, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro RDM, So Paulo,
Malheiros, n 114, abril-junho 1999, p. 238.
50 Tullio Ascarelli, O desenvolvimento histrico do Direito Comercial e o significado da unificao
do Direito Privado, cit., p. 239.
48

Teoria crtica da empresa

35

Ivanildo Figueiredo

Todavia, mesmo quando o processo de unificao dos reinos europeus


possibilitou o surgimento das monarquias absolutistas e dos Estados Nacionais,
principalmente na Frana, Holanda, Inglaterra, Espanha e Portugal, entre os sculos
XV e XVI, com a descoberta das novas rotas comerciais para as ndias e para as
Amricas, nem assim os usos mercantis deixaram de contribuir para a regulao do
direito comercial. E tal fenmeno estava representado pela contnua positivao
desses usos e costumes pelo direito especial do comrcio.
Os usos e costumes mercantis passaram a ser, ento, enquadrados como
fontes do direito comercial, tanto no sentido material, de contribuir para a construo
do direito positivo adaptado e atualizado s novas formas de negcios mercantis,
como no sentido de fonte formal secundria, que deveria ser aplicada na soluo de
problemas mercantis que no estivessem previstos em uma norma positiva. 51
No direito positivo brasileiro, a legitimao dos usos e costumes como fonte do
direito comercial resultou de normas expressas constantes do Cdigo Comercial de
1850, o qual foi inspirado no Cdigo Comercial Francs de 1807, que igualmente
considerava os usos e costumes mercantis como fonte de integrao na interpretao
dos negcios e contratos comerciais. O art. 131 do Cdigo Comercial de 1850 previa
que, na interpretao das clusulas contratuais,
O uso e prtica geralmente observada no comrcio nos casos da mesma
natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execuo,
prevalecer a qualquer inteligncia em contrrio que se pretenda dar s palavras.

Como fonte aplicvel s sociedades comerciais, o art. 291 prescrevia:


As leis particulares do comrcio, a conveno das partes sempre que lhes no
for contrria, e os usos comerciais, regulam toda a sorte de associao mercantil;
no podendo recorrer-se ao Direito Civil para deciso de qualquer dvida que se
oferea, seno na falta de lei ou uso comercial.

51

Colocando em discusso o problema da legitimao dos usos e costumes como fonte do Direito
Comercial, Requio opina: Os comercialistas, em conseqncia do reconhecimento dos usos e
costumes como fontes do Direito Comercial, formularam teoria para estabelecer os princpios que
asseguram legitimidade sua aplicao. Na linguagem corrente, como observa o Prof. Lagarde, no
se faz distino, inclusive na jurisprudncia francesa, entre as expresses usos e costumes. Alguns
autores, todavia, procuram distingu-las, vendo nos costumes uma regra mais imperativa do que os
usos, os quais seriam simplesmente convencionais. (Curso de Direito Comercial, cit., vol. 1, p. 29).

Teoria crtica da empresa

36

Ivanildo Figueiredo

Apesar do Cdigo Civil de 1916, de clara inspirao positivista, no conter


dispositivo indicativo do uso das fontes formais na soluo das lacunas da norma, a
Lei de Introduo ao Cdigo Civil (Decreto-Lei 4.657/1942) atualmente denominada
Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro,52 estabelece, em seu art. 4, a
ordem de aplicao dessas fontes, nela constando o recurso aos costumes:
Quando a lei for omissa, o juiz decidir de acordo com a analogia, os costumes e
os princpios gerais do direito.

A questo da influncia dos usos e costumes mercantis na regulao da


atividade empresarial no est circunscrita discusso do problema das fontes. O
que se pretende demonstrar, neste ponto, que os usos e as prticas mercantis
continuaro exercendo significativa influncia na formao do direito empresarial e na
regulao da empresa.
Especialmente no mbito dos negcios e contratos empresariais, novas formas
e modalidades de relaes mercantis vo surgindo no cotidiano do comrcio, por
imposio das demandas do mercado, do desenvolvimento tecnolgico e da
concorrncia entre as empresas.
A atividade comercial est sempre em contnua mutao, e essa realidade
dinmica no pode ser prejudicada pela ausncia de normas autorizativas ou
permissivas para a explorao de um novo negcio. As empresas atuam de acordo
com as suas prprias necessidades, sob a lgica capitalista da maximizao dos
lucros e resultados.
Os usos e prticas comerciais resultam e so criados a partir das necessidades
do mercado e das empresas, e podero ser, em certo momento, positivados, para
garantir a segurana dos contratantes e para gerar uma disciplina regulatria mnima,
como medida de poltica legislativa tendente a evitar, principalmente, o abuso do
poder econmico.

52

Lei n 12.376/2010.

Teoria crtica da empresa

37

Ivanildo Figueiredo

Em determinado momento histrico, as corporaes de mercadores exerceram


essa funo de positivar as normas costumeiras, com forte carter de subjetivismo,53
exercendo, tambm, a jurisdio comercial, para assim resolver e julgar os litgios
entre mercadores. Nessa realidade, os juristas e os legisladores situam-se em posio
secundria, passiva, somente atuando quando as exigncias sociais de positivao
de certos usos e prticas mercantis, de relevante interesse pblico, se fizessem
presentes. 54
A atividade prtica mercantil sempre esteve e continuar frente do processo
de positivao do direito. Os fatos sociais evidenciados pela atuao dinmica das
empresas no mercado podem ser estudados juridicamente sob essa dupla
perspectiva, o da positivao de negcios e contratos mercantis, e o do
reconhecimento objetivo da existncia de operaes comerciais moldadas nos usos e
prticas das empresas, ou seja, em um direito costumeiro que integra um sistema
mais amplo de relaes jurdicas no positivadas.55
A empresa, atravs do empresrio, dos scios, acionistas, executivos e
prepostos, diante das necessidades e opes de negcios, realiza operaes e
transaes de acordo com a lgica do sistema, que tem na obteno contnua do lucro
seu objetivo essencial, que faz parte da prpria natureza mercantil, e assim sempre
prevaleceu em razo das exigncias do sistema de economia de mercado.
Em todo o seu percurso histrico, a empresa vai abrindo seu prprio caminho,
formando e ampliando as bases para a sua existncia, independentemente de
condicionantes e molduras legais.56

53

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 27.


Pontes de Miranda considerava que o conceito de direito comercial ou direito mercantil, como o de
mercadoria e o de mercancia, correspondeu a momento histrico, que passou, sem que os juristas
estivessem altura de adaptar o sistema jurdico s novas circunstncias da vida. Por vezes, foi o
prprio sistema jurdico que a elas se ajustou, a despeito dos juristas e dos legisladores. (Tratado de
Direito Privado, So Paulo, Revista dos Tribunais, 4 edio, 1983, Tomo XV, p. 381).
55 Na sua formao, segundo Rubens Requio, os usos comerciais surgem espontaneamente. Um
comerciante, em seus hbitos, fixa determinada norma, que vai sendo adotada por outros. De individual
o uso torna-se geral. A princpio, em determinada praa, que so os usos locais, expandindo-se depois
para outras, formando os usos regionais ou nacionais. No comrcio exterior, so os usos
internacionais. (Curso de Direito Comercial, cit., p. 29).
56 Ao analisar as fases da evoluo histrica do Direito Comercial, Ascarelli considera: O direito
comercial apresenta-se como o direito do capitalismo, afirmando-se justamente quando este se
54

38

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Essa evoluo do regime capitalista foi proporcionada muito mais pelas


exigncias do mercado, sob a inspirao da doutrina do liberalismo econmico, do
que em razo da interveno do Estado frente s atividades das empresas.
A empresa, portanto, revela-se como construo histrica e como fato social,
que sempre se antecipou ao direito, e que foi alcanando patamares cada vez mais
elevados de especializao e de complexidade na sua estrutura e nas suas operaes
no mercado.

1.4. A fase publicista das relaes da empresa

A partir do momento em que o Estado passou a ver no crescente poderio


econmico da burguesia comercial um problema que deveria ser enfrentado e mesmo
controlado como condio de manuteno do seu domnio poltico, tratou o Poder
Pblico de trazer para si a responsabilidade de normatizar as relaes comerciais at
ento disciplinadas pelas corporaes de mercadores. Essa modificao de postura
coincidiu com o perodo dos descobrimentos e com o incio da explorao colonial nas
ndias e nas Amricas, a partir do final do sculo XV.
Por

isso

mesmo,

esse

perodo

foi

historicamente

denominado

de

mercantilismo, significando, precisamente, a fase em que os pases europeus, ento


estruturados como Estados absolutistas, passam a explorar mercantilmente as terras
recm descobertas no Novo Mundo e os seus recursos naturais, assim como os
produtos e especiarias do Oriente com a abertura das rotas martimas para as ndias.
A expresso mercantilismo representa, de modo apropriado, o exerccio da atividade

estabelece originalmente, nas cidades comunais italianas; desenvolve-se com o desenvolvimento da


economia de crdito, que acaba por contradistinguir o capitalismo; passando de direito autnomo de
classe a direito estatal com a formao das monarquias centralizadas e com o mercantilismo;
estendendo-se do comrcio, onde primeiro se afirma o capitalismo, indstria, que pelo contrrio
permaneceu artesanal por sculos; apresentando hoje aqueles problemas que so justamente os de
uma estrutura econmica capitalista. (O desenvolvimento histrico do Direito Comercial e o
significado da unificao do Direito Privado, cit., p. 242-243).

Teoria crtica da empresa

39

Ivanildo Figueiredo

econmica pelo Estado, em estreita colaborao com a burguesia comercial,


detentora da expertise ou experincia tcnica necessria explorao mercantil.
justamente nesse perodo inicial do mercantilismo, principalmente a partir do
sculo XVI, que o Estado passa a assumir responsabilidades na formulao de
polticas e na regulao da atividade comercial. Essa preocupao do Estado com a
atividade comercial no resultava, apenas, do aspecto legislativo em si, nem do
controle tributrio da funo comercial, mas decorria tambm, movido pela
pragmtica, da prpria necessidade de obteno de lucros que remunerassem os
investimentos feitos com a armao e equipagem das frotas destinadas explorao
mercantil das colnias e dos entrepostos comerciais do Oriente e das Amricas.
Nesse perodo, com efeito, nenhuma explorao colonial era realizada sem que a
Coroa responsvel pelo porto de sada da expedio tivesse a garantia de diviso dos
resultados com os ganhos obtidos pelos capites de navios e frotas, banqueiros
financiadores e exploradores das novas terras.57
na fase do mercantilismo, por exemplo, que surge a sociedade por aes,
quando a Inglaterra e a Holanda, no sculo XVII, criam companhias de explorao
colonial, estruturadas para oferecer ttulos de investimentos (aes) ao pblico,
garantindo, em contrapartida, a responsabilidade limitada dos acionistas e a
perspectiva de pagamento de dividendos em razo dos lucros obtidos com a atividade
econmica. O conceito de ao, como ttulo societrio, tem sua origem na palavra
holandesa aktio, que significa, justamente, a titularidade de um direito de ao contra
a companhia, como contrapartida do investidor pelo capital aplicado no negcio aberto
ao pblico.
Na medida em que o Estado avanava na explorao da atividade econmica
colonial, determinando as regras para a criao de novas companhias de comrcio
mediante a atribuio de outorgas reais (oktroi),58 e concedendo o direito de monoplio
57

Sobre as caractersticas da aliana entre o Estado e a burguesia mercantil ascendente nessa fase
inicial do mercantilismo, comenta Carmen Alborch Bataller: No obstante, el Estado (la monarqua) no
se limitar simplemente a concederles el monopolio de explotacin, sino que tambin interviene en la
financiacin de las empresas. Podramos decir que se lleva a cabo una alianza entre la monarqua y la
burguesa, alianza perfectamente explicable dado que con el feudalismo la monarqua se debilita
enormemente. (El derecho de voto del acionista, Madrid, Editorial Tecnos, 1977, p. 38).
58 Alfredo Lamy Filho e Jos Luiz Bulhes Pedreira, A Lei das S.A., Rio de Janeiro, Renovar, 1992, p.
41.

Teoria crtica da empresa

40

Ivanildo Figueiredo

para a explorao de determinados produtos nas possesses ultramarinas, o espao


de autoregulao da atividade comercial pelas corporaes de mercadores foi sendo,
progressivamente, reduzido. E tal reduo da autonomia normativa privada resultava,
em conseqncia, perda do prestgio e da aplicabilidade dos preceitos histricos da
lex mercatoria, ficando os comerciantes sujeitos legislao publicista e jurisdio
estatal para a soluo de conflitos.
A poltica mercantilista estatal estava assim orientada, de modo predominante,
para a expanso do comrcio colonial e, para alcanar esse objetivo, os investimentos
na indstria naval eram considerados prioritrios. Alm da Inglaterra e da Holanda,
tambm Portugal, Frana e Espanha vieram a construir frotas navais em larga escala,
soluo imprescindvel para a explorao do continente americano, previamente
dividido, desde 1494, pelo Tratado de Tordesilhas. Esse alto investimento na
explorao mercantilista representava uma preocupao permanente dos Estados
absolutistas com a fixao de regras estveis para as relaes e contratos comerciais,
tanto nos territrios de origem, nas suas colnias, como tambm perante outras
naes.
A afirmao dessa regulao publicista da atividade mercantil pelos Estados
absolutistas consolida-se na Frana, atravs das Ordenaes de 1673, conhecida por
Code Savary, regulando o comrcio terrestre, e das Ordenaes de 1681, tendo por
objeto o comrcio martimo, editadas sob a iniciativa de Jean-Baptiste Colbert (16191683), Ministro das Finanas de Luis XIV, o Rei Sol (1638-1715).59
O direito corporativo e estatutrio no qual o direito comercial medieval se
alicerava, foi sendo paulatinamente eclipsado e substitudo pelo direito estatal,
consubstanciado na ordenao pblica da atividade econmica privada.

59

A propsito do contedo publicista das normas estatais disciplinadoras do comrcio e do marco


histrico fixado pelas Ordenaes Francesas, Tullio Ascarelli observa: Lo Stato regola pi stretamente
le corporazioni (onde poi la naturale considerazione, nellOrdinanza Francesa del Commercio del 1673,
anche del artigiani) e com lo sviluppo del mercantilismo verr dettata uma minuta disciplina pubblicista
del commercio, che occuper invero la massima parte degli articoli dellOrdenanza de Luigi XIV che tra
poco ricorderemo, venendo minutamente disciplinato (in ordine alla sua localizzazioni, alle sua modalit
e via dicendo) lexercizio dellativit econmica. La fonte del Diritto Commerciale si trova ormai, accanto
alla consuetudine, nelle ordinanze dellautorit. (Corso di Diritto Commerciale Introduzione e
Teoria dellImpresa, op. cit., p. 29-30).

Teoria crtica da empresa

41

Ivanildo Figueiredo

Mesmo constituindo o comrcio internacional e a contratao mercantil um


sistema de intercmbio dominado pelos agentes privados, a interveno legislativa do
Estado passou a condicionar o pleno exerccio dessa atividade quando realizada em
larga escala, especialmente no comrcio de importao e exportao. E essa situao
afastou, do quadrante jurdico, a incidncia dos preceitos do direito originrio das
corporaes de mercadores, que se tornou, a partir desse marco, um mero referencial
do processo histrico de ascenso do comrcio, entre o perodo feudal e a era
mercantilista.
Desse momento em diante, como pice do perodo publicista no sculo XIX, foi
inaugurada a fase de codificao do direito comercial, a partir do Cdigo Comercial
francs de 1807,60 considerado por Napoleo Bonaparte (1769-1821) como um dos
pilares fundamentais da legislao do imprio na sua fase urea de conquista da
Europa. Outros diplomas estatutrios se seguiram desde ento, tendo o movimento
codificador por inspirao, como os cdigos de comrcio da Espanha (1829), de
Portugal (1833) e da Itlia (1865).61
No Brasil, o Cdigo de Comrcio do Imprio, de 1850, adotando as premissas
e estruturas bsicas do cdigo francs, contemplava as regras definidoras da
atividade dos comerciantes, das sociedades comerciais, dos contratos mercantis e
bancrios e do direito martimo. Esse movimento de codificao do direito comercial
no mbito internacional seguia, destarte, o processo de codificao do Direito Civil, de
tal modo que, como observado por Irineu Strenger, a primeira metade do sculo XIX
traduz-se por essa preocupao de elaborar os cdigos, levando em conta sobretudo,
o direito interpretado, o direito jurisprudencial, o direito das escolas estatutrias.62
No campo das relaes mercantis, todavia, a ausncia de organismos
supraestatais de regulao do comrcio e de positivao das normas destinadas

60

Analisando a concepo doutrinria dominante no regime do Cdigo Comercial brasileiro de 1850,


Fbio Ulhoa Coelho assim considera: A elaborao doutrinria fundamental do sistema francs a
teoria dos atos de comrcio, visto como instrumento de objetivao do tratamento jurdico da atividade
mercantil. Isto , com ela, o direito comercial deixou de ser apenas o direito de uma certa categoria de
profissionais, organizados em corporaes prprias, para se tornar a disciplina de um conjunto de atos
que, em princpio, poderiam ser praticados por qualquer cidado. (Curso de Direito Comercial, vol.
1, cit., p. 66.
61 Fran Martins, Curso de Direito Comercial, Rio de Janeiro, Forense, 24 ed., 1999, p. 8.
62 Irineu Strenger, Direito Internacional Privado, So Paulo, LTR, 6 edio, 2005, p. 231.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

disciplina e uniformizao de modelos jurdicos para o trfico mercantil entre pases,


jamais representou obstculo para as operaes de importao e exportao de bens
e mercadorias.
Sem embargo, a atividade comercial jamais quedou limitada ou contida pela
falta de um sistema normativo mercantil prprio. Afinal, o comrcio sempre foi
influenciado e dominado, desde a sua mais remota origem, por uma ndole
cosmopolita, que no encontrava restries de maior envergadura para o trfico
mercantil, salvo quando diante de situaes de guerra ou da presena de monoplios
estatais. O comrcio internacional, mesmo se submetendo a modos e formas
diversificadas de intervencionismo estatal, no se despiu das suas principais
caractersticas negociais, fundado esse trfico mercantil, especialmente, na
autonomia da vontade e na liberdade de contratar.
O direito comercial, no obstante o aumento do grau de interveno legislativa
estatal, prosseguiu formulando as suas prprias normas e construindo os seus
modelos negociais. E essa praxis mercantil, que em nenhum momento abandonou os
costumes sedimentados ao longo dos sculos, reconhecia, de modo invarivel, os
interesses das empresas comerciais e do trfico mercantil acima das limitaes
impostas pelas leis nacionais. O exerccio do livre comrcio sempre foi considerado,
ademais, corolrio fundamental decorrente do secular princpio da autonomia da
vontade.63

63

Ana Paula Martins do Amaral assim comenta a respeito dessa transio entre o direito corporativo e
o direito estatal na regulao da atividade mercantil: No entanto, mesmo com a prevalncia do Estado
nacional, que sujeitava os contraentes ao direito interno, o comrcio internacional no perderia suas
caractersticas. Segundo as regras elaboradas pela Escola Estatutria, a vontade continuaria a ser
elemento fundamental dos contratos mercantis. Se se tornou defeso s partes a aplicao de uma lex
mercatoria, a autonomia da vontade prevalecia, permitindo s partes a escolha de um estatuto que
regulasse os atos entre comerciantes nos contratos internacionais. (Lex Mercatoria e Autonomia da
Vontade, Revista Eletrnica Jus Navigandi, http://jus.com.br/artigos/6262/lex-mercatoria-e-autonomiada-vontade, p.4, 28/04/2012).

Teoria crtica da empresa

43

Ivanildo Figueiredo

1.5. Anlise econmica da empresa na teoria de Max Weber

Max Weber (1864-1920) foi o formulador de uma das mais completas anlises
cientficas da atividade econmica na perspectiva sociolgica. Na advertncia inicial
ao captulo da sua principal obra, Economia e Sociedade, intitulada As categorias
sociolgicas fundamentais da vida econmica, ele observava que esse captulo no
tem por finalidade tratar de uma teoria econmica, mas de definir alguns conceitos
frequentemente usados nestes ltimos tempos e de fixar certas relaes sociolgicas
elementares dentro da vida econmica.64
Dentre os conceitos abordados por Weber nesse captulo, encontra-se a
caracterizao da empresa como atividade organizada destinada ao desempenho de
um fim econmico. O estudo sociolgico da empresa situa-se, assim, em um contexto
restrito, em que a principal preocupao de Weber foi o de apresentar categorias
fundamentais bem mais amplas, como a gesto pelas classes de associaes
econmicas, a organizao do mercado, os meios de cmbio e pagamento, o clculo
do capital, a produo e a distribuio econmica dos servios, o modo de apropriao
dos meios de produo e o conceito e forma do comrcio.
A empresa considerada como um dos elementos instrumentais da atividade
econmica, e essa atividade econmica no tem que ser vista, em si mesma, como
necessariamente uma ao social, mas como um modo de exerccio do que Weber
define inicialmente como poder de disposio.65
A partir da ideia de poder de disposio, que tem referibilidade a bens e a
tudo que possa ser valorado qualitativa e quantitativamente, Weber diferencia a
economia, no sentido macro, como sendo um processo de gesto econmica, que
geralmente cabe ao Estado, do que ele denomina explorao econmica, que se

64

Max Weber, Economia y Sociedad, Mxico, Editora Fondo de Cultura Economica, 2 ed., 2004, p.
46.
65 Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 46.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

representa como uma atividade econmica permanente e organizada, explorada por


pessoas privadas. A empresa concebe-se, desse modo, como atividade destinada
explorao econmica, no obstante Weber admita a existncia de empresa para o
desempenho de atividade no econmica, ainda que em carter excepcional.
Inicialmente, Weber separa o conceito de empresa do conceito de associao
de empresa. Considera ele a empresa como simplesmente uma atividade, enquanto
a expresso associao de empresa compreende a forma da organizao
econmica, como sociedade comercial ou mercantil.66
O estudo analtico da empresa em Weber toma por base instrumental a forma
da empresa como associao econmica, e nessa categoria ele enquadra as
companhias mercantis. As companhias mercantis so formas de associao
econmica, em que a sua atividade, regulada pelo seu prprio contrato ou estatuto,
representa, primariamente, uma economia autnoma de determinada espcie.67 Essa
ideia revela que a empresa um ente dotado de autonomia, como prprio das
pessoas jurdicas constitudas sob a forma de sociedades comerciais, e que
determinam os seus objetivos e o modo de desempenho da sua atividade mercantil a
partir do seu regramento interno, decorrente da vontade do empresrio e dos scios
e acionistas.
A atividade econmica movida pelo dinheiro, unidade de valor que determina
a prpria razo de ser do sistema de acumulao de riquezas. A empresa existe para,
partindo do seu poder de disposio, obter nas suas transaes e negcios o lucro
necessrio remunerao do seu capital. Sendo o lucro medido pelo valor do dinheiro,
Weber considera que desde o ponto de vista puramente tcnico, o dinheiro o meio
de clculo econmico mais perfeito, ou seja, o meio formal mais racional de orientao
da ao econmica.

68

O dinheiro, obtido atravs de diversas operaes de venda,

de locao de bens, de cmbio, de prestao de servios ou de retorno de


investimentos, deve ser assim considerado como a medida de racionalizao da
66

Por empresa (Betrieb) debe entenderse una accin que persigue fines de una determinada clase de
un modo continuo. Y por asociacin de empresa (Betriebverband) una sociedad con un cuadro
administrativo continuamente activo en la prosecucin de determinados fines. Max Weber, Economia
y Sociedad, cit. p. 42.
67 Max Weber, cit. p. 55.
68 Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 65.

Teoria crtica da empresa

45

Ivanildo Figueiredo

atividade econmica, em que a busca pelo acmulo de riquezas confere esse carter
instrumental e utilitrio ao exerccio da empresa.
Todavia, nem todo processo de acumulao de capital est diretamente
relacionado com a atividade empresarial. Weber tambm diferencia a aplicao do
dinheiro em inverses especulativas, que seriam prprias da explorao econmica,
dos recursos poupados pelo Estado e pelas pessoas, que ele denomina de
hacienda. Em traduo literal, hacienda significaria fazenda, no sentido financeiro,
no no agrrio ou de mercadoria (tecido). O contedo mais prximo que podemos
adotar para hacienda o conceito de acervo patrimonial, uma vez que Weber
compreende na sua definio de hacienda tanto os bens obtidos para uso prprio,
como a renda e o patrimnio de uma entidade, de pessoa ou de uma associao. 69
Em certo momento, Weber considera que o conceito de empresa
corresponderia ao entendimento corrente somente quando se destaca expressamente
a orientao para o clculo do capital, na maioria das vezes suposto como evidente,
para indicar com isso que nem toda inteno de lucro como tal inerente idia de
empresa, mas apenas quando essa inteno lucrativa orientada pelo clculo do
capital.70 Ele quer com isso explicar que o clculo do capital necessrio para a
determinao dos benefcios (lucros) e das perdas (prejuzos) segundo a linguagem
racionalista empresarial, e que o mesmo entendimento no se aplica no caso dos
ganhos e rendimentos de um escritor, de um advogado, de um professor ou de um
empregado assalariado, que no esto orientados por esse clculo determinista da
lucratividade.
Diante da realidade social, em que existem pessoas e grupos buscando a
satisfao de suas necessidades de consumo e de bens, e assim ampliar o seu acervo
patrimonial, as empresas se viabilizam no desempenho da atividade econmica
apenas enquanto forem eficientes e lucrativas. E assim, Weber define como
explorao lucrativa mercantil a essa classe de atividades desempenhadas pelas

69
70

Max Weber, cit. p. 67-68.


Max Weber, cit. p. 73.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

empresas, sempre orientadas de um modo continuado pelas probabilidades de


mercado, utilizando capital e bens como meio de viabilizar seus objetivos lucrativos.71
A concepo de Weber apresenta-se, dessa maneira, salientemente fulcrada na
figura da empresa como instrumento de explorao lucrativa, da obteno de ganhos
para a remunerao do capital do empresrio, como na prtica ocorre na realidade do
sistema capitalista.
Apesar de reconhecer a empresa como uma modalidade de ao social,
economicamente orientada e de processo associativo,72 Weber no pode deixar de
enquadrar a sua anlise da realidade a partir da prpria orientao lgica do sistema
capitalista, que ele denomina de explorao lucrativa. E a empresa, como meio de
explorao econmica, tambm no se confunde com o conceito de hacienda ou
acervo patrimonial, assim como no existe identidade absoluta entre a idia de
explorao econmica e o conceito de empresa, na medida em que Weber considera
que uma unidade de empresa poder estar relacionada a vrias exploraes
lucrativas.73
Um plano de explorao pode abranger diversas atividades econmicas
realizadas por uma mesma unidade de empresa, que poder atuar, simultaneamente,
no setor extrativo, industrial e comercial. Conforme for aumentando o seu nvel de
complexidade e o modo como utiliza os fatores de produo, especialmente pelo
emprego do trabalho assalariado, das suas relaes no mercado e a utilizao dos
servios e bens de seus fornecedores.
Neste ponto, Weber separa, sob a abordagem da crtica sociolgica, a idea de
explorao do conceito de empresa, para com isso afirmar que pode haver
explorao lucrativa sem empresa, e cita o exemplo entre a fbrica e a indstria a
71

Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 75.


Max Weber, cit. p. 87.
73 Lo que nos importa aqu es acentuar la separacin de hacienda y explotacin. Puede admitirse
por ser, como ahora se establecer, inequvoco el empleo del trmino explotacin lucrativa en lugar
de la expresin empresa lucrativa duradera slo en el caso ms simple de coincidencia de la unidad
tcnica de explotacin con la unidad de empresa. Sin embargo, en la economa de cambio varias
explotaciones tcnicamente separadas pueden ligarse en una unidad de empresa. Esta no se realiza
naturalmente solo por unin personal en el empresario, sino que se constituye por la unidad en la
ejecucin de un plan de explotacin que con fines lucrativos se formula homogneamente de alguna
manera. (Max Weber, cit. p. 90).
72

Teoria crtica da empresa

47

Ivanildo Figueiredo

domiclio. Este exemplo somente pode ser suficientemente compreendido com a


leitura da explicao que ele confere a essa diferena, em sua outra clebre obra A
tica protestante e o esprito do capitalismo.
Nesse exemplo, Weber explica que, at meados do Sculo XIX, 74 a vida de um
empresrio de produo em domiclio, em muitos ramos da indstria txtil, era
bastante cmoda e tranqila. Esse empresrio comprava dos camponeses os tecidos
por estes produzidos em seus domiclios, e ento aguardava que seus clientes e
outros intermedirios fossem sua casa comercial para comprar os cortes de tecidos.
Ele no visitava a sua clientela e trabalhava pouco mais de cinco horas por dia,
recolhendo-se, ao final da tarde, taberna de costume para beber com os amigos.
Apesar dessa atividade representar uma forma capitalista de organizao, ela era do
tipo tradicional, em que o empresrio se acomodava com o seu lucro habitual, com a
quantidade regular de trabalho, no relacionamento com os mesmos clientes.
Em determinado momento, todavia, um jovem oriundo de famlia de
empresrios da produo em domiclio, resolve inovar, e ento ele seleciona a dedo
teceles de que necessita, aumenta ainda mais a sua dependncia e o controle sobre
eles, fazendo, dos camponeses, operrios; por outro lado, assume totalmente as
rdeas do processo de venda por meio de um contato mais direto possvel com os
consumidores finais: comrcio a varejo, granjeia pessoalmente os clientes, visita-os
regularmente a cada ano, mas, sobretudo, passa a adaptar a qualidade dos produtos
exclusivamente s necessidades e desejos deles para agrad-los e a pautar-se ao
mesmo tempo pelo princpio do menor preo, maior giro.75
Entra em cena, assim, o que Weber chama de esprito do capitalismo
moderno, e esse novo tipo ele denominou de modelo da fbrica, em que a produo
artesanal e domiciliar foi substituda pela indstria racionalmente organizada para
realizar a explorao lucrativa. E, seja no capitalismo tradicional, seja no capitalismo
moderno, Weber entende que parece ento conveniente em princpio empregar os
termos fbrica e indstria a domiclio como duas rigorosas categorias econmicas

74

Max Weber, A tica protestante e o esprito do capitalismo, So Paulo, Companhia das Letras,
2004, p. 58-60.
75 Max Weber, A tica protestante e o esprito do capitalismo, cit. p. 60.

Teoria crtica da empresa

48

Ivanildo Figueiredo

da empresa com clculo do capital.76 Ambas as categorias, apesar da diferena de


modelos e da defasagem organizacional, possuem uma racionalidade contbil de
calcular o seu desempenho econmico e de determinar a sua lucratividade, como
da finalidade intrnseca da empresa na lgica do sistema capitalista.
Em sntese final, Weber procede anlise da empresa como organizao
econmica guiada por um racionalismo que tem na idia de explorao lucrativa o seu
elemento central, quando a empresa se exterioriza como unidade tcnica e como
unidade produtiva, e que atravs do clculo do dinheiro ir determinar a natureza
mercantil da sua atividade. A empresa pode ainda ser vista tanto como ao ou
atividade econmica, como apreendida empiricamente na qualidade de associao,
quando toma a forma de uma sociedade comercial ou companhia mercantil.
A teoria de Max Weber, portanto, orienta o contedo da concepo econmica
da empresa, na medida em que ele estuda a empresa a partir das categorias
fundamentais da economia, de modo denso e profundo, inserindo novos elementos
sociolgicos de discusso na anlise dessa entidade fundamental de sustentao e
representao da sociedade.

76

Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 90.

Teoria crtica da empresa

49

Ivanildo Figueiredo

1.6. Ideologia e tica empresarial no capitalismo moderno

O capitalismo representa um modo de acumulao de riquezas que tem no


dinheiro o seu elemento motriz, unidade de valor que, inclusive, serve de critrio
objetivo de diferenciao das classes sociais, da diviso entre ricos e pobres. O
sistema capitalista revela-se extremamente racional e pragmtico, e sua lgica
intrnseca encontra-se voltada para a maximizao dos lucros e dos resultados
econmicos atravs do seu principal agente produtivo, a empresa.
Na consolidao do esprito capitalista, a partir da Revoluo Industrial do final
do sculo XVIII e da expanso da manufatura, cabe reconhecer que o processo
econmico ampliou os abismos sociais com a explorao intensiva das classes
trabalhadoras. As doutrinas socialistas emergiram a partir desse momento como uma
reao explorao capitalista, observa Fbio Konder Comparato.77
Em termos ideolgicos e de conduta moral, podemos considerar que existe
uma tica da empresa, que no distinta da tica em sentido geral. A tica da
empresa uma parte da tica aplicada, como assim ocorre, segundo Adela Cortina,
em toda tica das organizaes e das profisses, devendo ser referenciada, todavia,
aos princpios relacionados atividade empresarial.78 No mbito macroeconmico,
podemos tambm considerar a existncia de uma tica econmica, que se refere ao
campo geral das relaes sobre economia e tica, ou mais especificamente,
reflexo tica sobre os sistemas econmicos, com especial interesse nas reflexes

77

Fbio Konder Comparato assim se refere, ao transcrever as razes do Manifesto Comunista escrito
por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848: vertiginosa transformao das tcnicas de produo e
distribuio, o capitalismo acrescentou uma profunda alterao na vida tica dos povos (...) e nesse
contexto a burguesia exerceu uma funo eminentemente revolucionria, ao destruir todas as relaes
sociais de carter feudal ou patriarcal, s deixando subsistir entre os indivduos o vnculo do puro e
simples interesse, o frio pagamento vista. Em suma, ela dissolveu a dignidade da pessoa humana
no valor de troca, e em lugar das inmeras franquias, garantidas e bem adquiridas, introduziu uma
liberdade nica e sem escrpulos: o livre comrcio. (tica Direito, moral e religio no mundo
moderno, So Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 417).
78 Adela Cortina, tica de la empresa, Madrid, Editorial Trotta, 5 edio, 2000, p. 33.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

sobre a tica do capitalismo.79 O sistema capitalista, que ento se afirmava, no sculo


XIX, como ideologia dominante, foi moldado nas teorias do livre mercado por Adam
Smith (1723-1790) e por David Ricardo (1772-1823). A partir das concepes do
liberalismo econmico, ao Estado no caberia seno o papel auxiliar de assegurar a
liberdade de comrcio, alm de garantir, como funo essencial, a defesa territorial, a
aplicao da justia e a realizao de certas obras pblicas.80
Todavia, da segunda metade do sculo XIX em diante, com o desenvolvimento
dos meios de comunicao e de transporte, o Estado voltou-se, tambm, para ampliar
e garantir os novos mercados nos pases colonizados e nas naes em fase de
independrcia, com suas fontes de matrias-primas que deveriam ser exploradas
pelas corporaes privadas. Uma nova onda de colonialismo imperialista ento se
seguiu expanso do comrcio na sia, nas Amricas, Central e do Sul, como
tambm na frica.
A Inglaterra aproveitou-se do seu poderio naval e dos conflitos blicos
decorrentes da guerra civil nos Estados Unidos (1861-1865), da guerra entre a Frana
e a Prssia (1870-1871) e do movimento pela unificao da Itlia (1860-1870), para
consolidar a sua influncia militar e comercial nos principais entrepostos mercantis,
no Mediterrneo, na Amrica do Sul, Caribe, frica, na ndia e na sia. Essa poca
histrica ficou conhecida como a era Vitoriana, o perodo mais longevo de um monarca
no Reino Unido, na figura da Rainha Vitria.81
A expanso do capitalismo na abertura de novos entrepostos comerciais e
territrios era acompanhada, quase sempre, de conflitos blicos, e a guerra, como
observa Comparato, no sentido prprio e brutal da palavra, o empreendimento de

79

Sob o aspecto tico, explica Adela Cortina, El capitalismo supuso tambin um cambio em la forma
de relacionar-se los hombres entre s, porque la expansin del mercado destroz la sociedad
tradicional. Em este nuevo tipo de sociedad ya no bastava la regulacin tica de las relaciones
personales para ordenar la vida, y era la primera formacin econmica y social que no necesitaba como
soporte uma uma regulacin directamente fundamentada en el Dis de las religiones, sino que podia
defender su dinmica autnoma como si se tratara de la racionalidad econmico-social moderna.
(tica de la empresa, cit., p. 52).
80 Adam Smith, A Riqueza das Naes, vol. II, cit., p. 147.
81 A Rainha Vitria (1819-1901), aps a morte prematura do seu esposo, o Prncipe Alberto de SaxeCoburgo Gotha (1819-1861), abdicou de qualquer interferncia na poltica externa do Reino Unido, que
passou a ser conduzida, nos anos do pice do imperialismo ingls, por Primeiros Ministros do partido
conservador, como Benjamim Disraeli (1804-1881) e William Gladstone (1809-1898).

Teoria crtica da empresa

51

Ivanildo Figueiredo

destruio em massa de vidas e bens, planejado e executado com os mais


aperfeioados recursos da tecnologia, tem sido, desde o incio, um dos principais
estmulos ao desenvolvimento do capitalismo.82 Em nome da expanso do comrcio
e da manuteno das fontes de matrias primas, as naes desenvolvidas no
hesitavam em usar a fora para submeter os povos dominados na fase do
imperialismo ps Revoluo Industrial.
Quando no utilizava o seu poderio blico, a Inglaterra, atravs da persuaso
diplomtica e financeira, sendo ela a principal credora por emprstimos concedidos
s naes recm sadas do colonialismo e que se tornaram independentes, como no
caso do Brasil, se valia dessa condio para realizar investimentos na infra-estrutura.
E assim, sob a proteo da coroa britnica, as suas empresas dedicavam-se a
investimentos nas reas de transporte, com a construo de portos e ferrovias, de
comunicaes, atravs das companhias de telgrafos, de energia e iluminao
pblica. A ndole que orientava esses investimentos no decorria da inteno de
ajudar ou subsidiar o desenvolvimento das naes perifricas subdesenvolvidas, mas
sim para estabelecer uma relao de dominao e dependncia comercial e desse
modo favorecer as suas corporaes industriais e mercantis.
A economia mundial passou por dois perodos histricos de modernizao, na
opinio de Fbio Konder Comparato. A primeira onda reformadora ocorreu no perodo
entre as duas grandes guerras mundiais do sculo XX. Com o fim da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), desenhou-se uma nova geopoltica, com a ascenso dos
Estados Unidos a potncia econmica. Desse momento em diante, as naes
imperialistas deixaram de manter sob jugo militar vrios pases da frica, sia, Oriente
Mdio, da Amrica Central e Caribe, e transferiram esse encargo para as companhias
privadas, as quais assumiram o controle do trfico mercantil e da explorao das
matrias primas.
Assim ocorreu com grande intensidade no Oriente Mdio, quando a explorao
do petrleo ficou a cargo do maior cartel conhecido na histria da economia mundial,
formado pelas chamadas sete irms, sendo cinco empresas norte-americanas

82

Fbio Konder Comparato, tica Direito, moral e religio no mundo moderno, cit. p. 419.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

(Standard Oil, Chevron, Gulf, Mobil e Texaco), uma inglesa (British Petroleum-BP) e
uma anglo-holandesa (Shell).83 Essas empresas dominaram o mercado mundial de
extrao, refino, transporte e distribuio de petrleo e derivados de 1920 a 1973,
quando ocorreu o primeiro choque do petrleo. Com o primeiro choque do petrleo,
os pases produtores e exportadores, atravs da sua organizao, a Organizao dos
Pases Exportadores de Petrleo - OPEP, dominada pelos pases rabes nos quais
estavam localizadas as maiores jazidas, retomaram o controle da explorao das suas
reservas, da oferta e da fixao do preo do barril de petrleo.
At o final da dcada de 1970, os Estados ainda exerciam certo controle e
dirigismo sobre a atividade econmica, resultante do processo intervencionista que se
repetiu ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ocorreu, a partir da
necessidade de reconstruo da Europa, o ressurgimento do welfare state, ou Estado
de bem estar social, que teve incio na Inglaterra, ao final da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). No welfare state, o Estado assumia funes sociais consideradas, pela
legislao, como relevantes, a nvel de educao, sade, seguro social, transportes e
habitao. Alm de atuar com polticas sociais de servio pblico e outras
compensatrias da misria, o Estado, ele prprio, desempenhava, atravs de
empresas estatais, atividades econmicas, principalmente nos setores considerados
estratgicos.84
O Estado de bem-estar social (welfare state) pode ser considerado como a face
generosa do capitalismo, merecedor de certo contedo de eticidade. Ao mesmo tempo
em que realiza a produo de bens, gera empregos, distribui (bem ou mal), a renda,
e o trabalhador tem assegurado seus direitos sociais essenciais, a escola dos seus

83

Anthony Sampson, The Seven Sisters: The Great Oil Companies and the World They Shaped,
New York, Viking Press, 1975, passim.
84 Essa situao jurdico-poltica de interveno do Estado na economia, veio a ser descrita e explicada
por Vital Moreira nos seguintes termos, sob a tica da doutrina socialista: Reconhecida definitivamente
a incapacidade da economia para se regular a si mesma, em absorver ou neutralizar os conflitos que a
dilaceram, em corresponder s exigncias que lhe so feitas por uma sociedade que reclama o
aproveitamento integral das suas potencialidades, reconhecida essa situao, sobre o Estado que
vem impender a execuo de papis que at a lhe estavam defesos. o Estado que vem reclamar-se
de principal responsvel pelo curso da economia, instituindo todo um quadro institucional em que ele
se move, controlando-o, dirigindo-o ou dedicando-se diretamente produo econmica. (A ordem
jurdica do capitalismo, Coimbra, Editorial Centelha, 1978, p. 55-56).

Teoria crtica da empresa

53

Ivanildo Figueiredo

filhos, hospital de qualidade para atender sua famlia, transporte subsidiado e uma
velhice amparada na seguridade.
Esse ciclo do welfare state comeou a desaparecer graas a uma aliana
conservadora entre os Estados Unidos, no governo Ronald Reagan (1911-2004), e a
Inglaterra, com Margareth Thatcher (1925-2013) como Primeira Ministra, a partir de
1980, quando as exigncias do mercado estavam conflitando com o excesso de
ingerncia do Estado na economia, como defendido pelo novo liberalismo econmico
da Escola de Chicago, com base nas teorias de Friedrich Hayek (1899-1992) e Milton
Friedman (1912-2006).
A segunda grande onda da reforma do sistema econmico mundial,
denominada globalizao, inicia-se, precisamente, com o primeiro choque do petrleo,
em 1973, em que as matrizes energticas comeam a ser modificadas, e os avanos
das telecomunicaes e da informtica reduzem as distncias comerciais. O
capitalismo torna-se ainda mais racional, diante do aumento da competio e do
ingresso de novas empresas no mercado vindas do Oriente, em especial do Japo,
China, Coria, Indonsia e Singapura, desenvolvendo produtos com alto grau de
tecnologia e a um custo menor do que aqueles disponveis nos Estados Unidos e
Europa.
Encerra-se a era do capitalismo clssico, ainda que denominado por muitos de
capitalismo selvagem, em que os grandes empresrios e financistas faziam questo
de demonstrar seu poderio econmico, exercendo grande influncia perante o
governo dos seus pases e, principalmente, sobre o governo dos pases perifricos e
subdesenvolvidos.85
A doutrina neoliberal que orientou ideologicamente o atual processo de
globalizao tinha e ainda tem na diminuio das atividades do Estado um dos seus

85 Considera tambm Fbio Konder Comparato, que na poca do capitalismo clssico, os grandes
capites de indstria conheciam perfeitamente a tcnica de fabricao que empregavam, e
orgulhavam-se dos produtos de suas fbricas. Hoje, os controladores de uma macro-empresa industrial
s conhecem os nmeros do balano e da conta de resultado. Eles ignoram tudo da tcnica da
produo, e so incapazes de dizer, com preciso, quais os produtos de sua empresa. (tica Direito,
moral e religio no mundo moderno, cit. p. 416).

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

principais focos, no sentido de enfraquecer o poder de interveno dos governos dos


pases perifricos ou em desenvolvimento sobre a economia.86
Esses programas de ajuste compreendiam, invariavelmente, o controle fiscal
para a reduo do dficit pblico, o corte de investimentos pblicos, a
desregulamentao da economia, a privatizao de empresas estatais, a reforma do
sistema bancrio para permitir o ingresso de bancos estrangeiros, o livre comrcio de
produtos importados e a total liberdade de circulao de capitais.87 A globalizao
econmica desse novo perodo, ao impor esse modelo produtivo redivivo do
liberalismo do sculo XVIII, tem por finalidade ltima perpetuar a diviso do mundo
entre pases ricos e pases dependentes, e o papel que cabe aos pases perifricos
o de dar sustentao aos pases ricos, como um depsito para suas reservas de
matrias primas e de mo de obra. 88
Alm da proteo das naes desenvolvidas s suas corporaes
transnacionais, os organismos internacionais por esses pases controlados, tambm
esto exercendo uma funo de garantir abertas todas as estradas fsicas e virtuais
para o livre comrcio e para o fluxo de capitais de interesse do sistema capitalista.
Segundo Comparato, medida que encolhia o poder dos Estados pobres de intervir

86

Segundo Comparato, uma das principais medidas aplicadas progressivamente no mundo todo, com
grande reforo de argumentao ideolgica, desde o incio da segunda vaga de globalizao, foi o
enfraquecimento dos poderes de direo econmica nos Estados mais pobres, com a adoo de
polticas denominadas, no jargo financeiro internacional, de programas de ajuste (tica Direito,
moral e religio no mundo moderno, cit. p. 424).
87 Na viso de Celso Furtado, o processo atual de globalizao a que assistimos desarticula a ao
sincrnica dessas foras que garantiram no passado o dinamismo dos sistemas econmicos nacionais.
Quanto mais as empresas se globalizam, quando mais escapam da ao reguladora do Estado, mais
tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer. Ao mesmo tempo, as iniciativas dos
empresrios tendem a fugir do controle das instncias polticas. Voltamos, assim, ao modelo do
capitalismo original, cuja dinmica se baseava nas exportaes e nos investimentos no estrangeiro.
(O capitalismo global, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2 edio, 1998, p. 29).
88 O jusfilsofo Joo Maurcio Adeodato, ao analisar as teorias da dependncia econmica no mundo
contemporneo, esclarece: A questo de se os pases perifricos, uma vez que se abstraiam suas
caractersticas histricas e especficas, podem ver nos pases do primeiro mundo as linhas gerais de
seu desenvolvimento futuro no dispe de qualquer dado emprico para ser respondida
afirmativamente. Ao contrrio, parece corresponder a uma forma de organizao social muito complexa
e sem similar na Histria. O subdesenvolvimento no consiste em simples estgio nesta ou naquela
direo. Em que pesem suas ambigidades e divergncias, as chamadas teorias da dependncia
tiveram o mrito de retirar a nfase da tricotomia pases subdesenvolvidos, em desenvolvimento e
desenvolvidos, invertendo as teorias da modernizao e argumentando que a existncia do
subdesenvolvimento consiste em uma conseqncia e uma condio para a manuteno do centro
desenvolvido. (tica e Retrica Para uma Teoria da Dogmtica Jurdica, So Paulo, Saraiva, 2
edio, 2006, p. 78).

Teoria crtica da empresa

55

Ivanildo Figueiredo

nos seus mercados internos, assistiu-se ao esforo considervel do poder de


regulao econmica dos organismos internacionais, sob o controle das grandes
potncias.89 E, a partir desse marco histrico, com a passagem do capitalismo
industrial ao capitalismo financeiro, trao caracterstico da segunda vaga da
globalizao, esse conflito mundial de interesses aprofundou mais ainda os
desequilbrios econmicos e sociais prexistentes.90
Revela-se contraditrio que, em uma situao tal como a presente, se possa
avaliar positivamente a perpetuao de uma relao de domnio dos pases ricos
sobre os pases dependentes do centro desenvolvido. Apesar da existncia, ao longo
da histria, de pases ou blocos econmicos dominantes, da presena de estruturas
imperialistas, o atual estgio de desenvolvimento tecnolgico e a atuao dos
organismos internacionais poderia representar uma situao de reequilbrio nas
relaes econmicas mundiais. Todavia, no isso que se verifica, mas pelo
contrrio, as distores e as desigualdades tornam-se mais profundas.
Em termos concretos, observamos que o sistema capitalista tem como escopo
maior de existncia a obteno de lucros e a acumulao cada vez maior de capitais
nos pases ricos. importante destacar que, desde o final da Segunda Grande Guerra
(1945), os Estados adotaram, em seus ordenamentos jurdicos, polticas de
desenvolvimento econmico e social baseadas em planos e metas de amplo contedo
intervencionista no domnio privado, caractersticas do Estado de bem estar social
(welfare state), nico modo de atuao possvel em um mundo devastado pelo maior
conflito blico da histria da humanidade.
As relaes de comrcio internacional, no obstante as tendncias
liberalizantes da economia de mercado, foram moldadas a partir de interesses
estratgicos ditados pela geopoltica, que ento separava o mundo de acordo com os
sistemas ideolgicos capitalista e comunista. E essa realidade foi radicalmente
modificada com a nova era da globalizao, como ser abordado no captulo seguinte,
enquanto o sistema do direito de empresa, do modo como regulado pelo Cdigo Civil

89
90

Fbio Konder Comparato, tica Direito, moral e religio no mundo moderno, cit., p. 425.
Fbio Konder Comparato, tica Direito, moral e religio no mundo moderno, cit., p. 427.

Teoria crtica da empresa

56

Ivanildo Figueiredo

de 2002, no acompanhou essa evoluo, permanecendo atado a concepes


ultrapassadas do incio do sculo XX, caractersticas do Estado liberal.
De modo lapidar, Comparato assim conclui a respeito do esprito do capitalismo
na atual era da globalizao, expressando que, de acordo com um lugar-comum
sempre repetido, o capitalismo seria o melhor sistema econmico de produo de
bens e o pior em matria de distribuio de renda. No mais: agora ele o pior nos
dois campos. 91

1.7. A empresa na era da globalizao

A globalizao, no sculo XXI, no pode ser considerada, simplesmente, como


doutrina ou ideologia de liberalizao econmica, porquanto representa, antes de
tudo, um sistema de reestruturao da economia e do direito comercial, tanto a nvel
interno das naes, mas, principalmente, a nvel internacional.
Ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial, com os acordos de Bretton
Woods,92 os pases vencedores do conflito (Estados Unidos, Rssia, Inglaterra e
Frana) adotaram, em seus ordenamentos jurdicos, polticas de desenvolvimento
econmico e social baseadas em planos e metas de amplo contedo intervencionista
no domnio privado. As relaes de comrcio internacional, no obstante as
tendncias liberalizantes da economia de mercado, foram moldadas a partir de
interesses estratgicos ditados pela geopoltica, que separava o mundo em dois
grandes sistemas econmicos, o capitalista e o comunista.

91

Fbio Konder Comparato, tica Direito, moral e religio no mundo moderno, cit., p. 427.
As conferncias de Bretton Woods (New Hampshire, Estados Unidos) estabeleceram, no ms de
julho de 1944, as regras para as relaes comerciais e financeiras entre os pases mais industrializados
do mundo diante da proximidade do fim da Segunda Grande Guerra. O sistema Bretton Woods foi o
primeiro exemplo, na histria mundial, de uma ordem monetria totalmente negociada, tendo como
objetivo governar as relaes monetrias entre Naes-Estado independentes, dando origem ao Banco
Mundial e ao Fundo Monetrio Internacional FMI.
92

Teoria crtica da empresa

57

Ivanildo Figueiredo

Com a derrocada do regime sovitico em 1989, e assim demonstrada, na


prtica, a incapacidade do sistema comunista de gerir, satisfatoriamente, o processo
econmico em tempos de paz, abriu-se o caminho para a unificao do mercado
mundial, agora sob o domnio do sistema remanescente, o capitalista, tendo no
comando do processo as grandes corporaes privadas transnacionais.
A tendncia natural dessa mudana histrica passou a ser representada por
uma rejuvenescida e revigorada doutrina liberal, denominada de neoliberalismo. Esse
neoliberalismo compreende a idia de uma quase absoluta liberdade de mercado,
tendo como instrumentos principais a desregulamentao, a privatizao e a reduo
da tributao nas operaes internacionais, tudo de modo a permitir s empresas
transnacionais subtrair ao Estado o papel de principal agente regulador da economia.
Em nenhum outro momento da histria mundial a atividade econmica esteve
ancorada em um nico sistema de comrcio internacional. Jamais se verificou, em
poca alguma da civilizao, a formao de um mercado global, de norte a sul, do
ocidente ao oriente, desde os tempos imemoriais dos fencios, babilnios, romanos,
ibricos e, em poca mais prxima, do imperialismo ingls do sculo XIX.
Como resultante da revoluo tecnolgica das telecomunicaes e da
informtica, os negcios comerciais passaram a ser realizados em tempo real, as
distncias globais foram reduzidas de milhas e milhares de quilmetros, a poucos
segundos, a uma frao mnima de tempo.93

93

Ao final do sculo XX, o fenmeno da globalizao, ainda desconhecido da maioria das pessoas,
assim revelava-se exteriormente e era explicado pelos cientistas econmicos: A globalizao constitui
ao mesmo tempo uma tendncia dominante neste fim de sculo, e uma dinmica diferenciada. Um
excelente exemplo nos dado pela dimenso da especulao financeira. A circulao financeira
internacional ultrapassa, em 1995, o trilho de dlares por dia, para uma base de trocas efetivas de
bens e servios da ordem de 20 a 25 bilhes, o que significa trocas 40 vezes maiores do que as que
seriam necessrias para cobrir atividades econmicas reais. Esta ampliao dramtica da especulao
financeira literalmente carregada pelas novas tecnologias: a integrao dos espaos mundiais de
comunicao, via satlites e fibras ticas, e a capacidade de tratamento instantneo de informao em
gigantescas quantidades com a informtica, levou a uma grande dianteira, na globalizao, de um setor
cuja matria prima - a informao - particularmente fluida, e que dispe de amplos recursos para
financiar os equipamentos mais modernos. (Ladislau Dowbor, Da Globalizao ao Poder Local: a
Nova Hierarquia dos Espaos. Pesquisa e Debate, PUC-SP, vol. 7, nmero 1 (8), 1996, in
http://dowbor.org/5espaco.asp, 15/05/2011).

Teoria crtica da empresa

58

Ivanildo Figueiredo

Na viso de George Soros, considerado como um dos maiores especuladores


do mercado mundial nesta poca de globalizao, o capital financeiro desempenha
papel dominante no mundo de hoje, determinando o contnuo aumento da influncia
dos mercados financeiros no sistema capitalista global.94 Essa afirmao encontra
inteiro respaldo nos dados reais de circulao de investimentos no mundo, como
destacado acima, na anlise de Ladislau Dowbor, em que o capital especulativo
realiza, diariamente, transaes superiores em quarenta vezes o volume das
operaes comerciais com bens, mercadorias e servios produtivos, no financeiros.
Esse capital especulativo movimenta-se com velocidade impressionante, procurando
os mercados financeiros que ofeream maior rentabilidade para operaes de curto
prazo, realizadas, geralmente, com a compra de ttulos pblicos e investimentos nas
bolsas de valores.
Assim, por exemplo, se a tendncia da bolsa de valores de So Paulo, no Brasil,
sinaliza para uma provvel queda futura no movimento das principais aes, o capital
especulativo, que investiu dinheiro nessas aes, vende os ttulos da sua carteira em
uma tarde, contabiliza o resultado, e envia os recursos apurados, no mesmo dia, para
aplicao desse capital na compra de ttulos emitidos por companhias asiticas em
um banco ou na bolsa de valores na Malsia, Indonsia ou Coria do Sul.
A diferena de fuso horrio, entre os pases do ocidente e os mercados do
oriente, permite o constante trnsito e reaplicao de capitais, em tempo real, de um
banco na costa leste dos Estados Unidos para a bolsa de Tquio, no Japo.
Dependendo do resultado das bolsas nos mercados do Oriente, as aplicaes podem
ser transferidas, eletronicamente, de volta para a conta do investidor norte-americano,
no mesmo dia, e os ganhos apurados aplicados, no dia seguinte ou no mesmo dia,
em outra bolsa de valores no mercado de qualquer pas desenvolvido ou emergente.
O capital circula quase velocidade da luz, comandado por sistemas informatizados
programados para maximizar os lucros dos investidores.
A circulao de capitais especulativos em busca da maximizao de resultados
no curto prazo, sem qualquer correlao com investimentos produtivos, representa

94

George Soros, A crise do capitalismo, Rio de Janeiro, Campus, 2 edio, 1999, p. 155.

Teoria crtica da empresa

59

Ivanildo Figueiredo

uma das principais causas para o aumento da concentrao de riquezas nos pases
desenvolvidos. As empresas transnacionais no financeiras tambm se aproveitam
desse movimento, e aplicam suas reservas em investimentos especulativos nos
mercados e bolsas dos pases perifricos.
Para a reduo dos seus custos de produo, a principal estratgia que passou
a ser adotada por vrias empresas transnacionais, especialmente nos setores
automotivo, eletroeletrnico e de confeces, consistiu em transferir as suas plantas
industriais para pases da sia e da Amrica do Sul, onde encontrava mo de obra
barata e condies favorecidas para a exportao de seus produtos. Esse processo
de terceirizao e transferncia do processo de industrializao para pases
perifricos vem a ser definido como estratgia de outsourcing.
O caso da companhia norte-americana de material esportivo Nike dos mais
emblemticos. Essa empresa explorava, no ano de 2005, apenas trs fbricas
instaladas nos Estados Unidos (nos estados do Oregon, Tennessee e North Carolina),
gerando 26 mil empregos. Ao mesmo tempo, ela controlava mais de vinte fbricas
localizadas em pases do terceiro mundo, como na China, Tailndia, Malsia, Vietnam
e at no Paquisto, que empregam, aproximadamente, 650 mil trabalhadores.95 Desse
modo, verifica-se que os postos de trabalho explorados em pases perifricos e
subdesenvolvidos so vinte e cinco vezes superiores, em grau absoluto,
comparativamente ao pas sede dessa empresa transnacional.
Seja no campo financeiro, como no campo da produo industrial, a economia
globalizada segue a lgica das oportunidades de mercado, em que as regras do
comrcio internacional so ditadas pelas estratgias de negcios das empresas
transnacionais, que agem atravs de seus estabelecimentos e filiais localizados nos
pases em desenvolvimento como verdadeiras zonas francas para a realizao de
operaes em escala mundial.
Ainda no incio do perodo de globalizao da economia, o historiador ingls
Eric Hobsbawn afirmava que estamos vivendo no presente uma curiosa combinao
de tecnologia do final do sculo XX com o livre comrcio do sculo XIX e com o
95

Fonte: Nike, in www.nike.com/nikebiz/nikebiz.jhtml?page=3&item=facts, 22/09/2012.

Teoria crtica da empresa

60

Ivanildo Figueiredo

renascimento de centros intersticiais caractersticos do comrcio mundial no perodo


da Idade Mdia.96 A globalizao, assim, apesar do significativo impacto que vem
provocando na economia mundial e nas regras do comrcio internacional, produz,
paralelamente, profundas mudanas na economia interna dos pases perifricos,
como, por exemplo, pela inibio do papel regulatrio que os Estados exerceram no
decorrer da segunda metade do sculo XX.
Esse novo sistema econmico dominado pelos interesses das grandes
corporaes, vem tambm gerando mudanas culturais, por fora da utilizao
massia dos meios de comunicao que afetam e influenciam, indistintamente,
sociedades formadas por padres histricos diferenciados no tempo e no espao.
A interligao, em tempo real, das pessoas, das instituies sociais, das
universidades, dos agentes governamentais e das empresas, atravs da rede mundial
de computadores (World Wide Web) operada pela Internet, em que dados e
informaes circulam a uma impressionante velocidade, geram um novo ambiente
multicultural, de miscigenao de costumes e de padronizao nas relaes de
consumo. Esse ambiente encontra-se inteiramente adaptado viso da globalizao
como um sistema bem mais amplo, e no apenas de contedo econmico, mas
tambm sociolgico e cultural.97
O intensivo desenvolvimento tecnolgico verificado nas ltimas dcadas, a
revoluo da telemtica e dos meios de comunicao, podem ser apontados como
fatores determinantes de todo esse processo. As relaes no mbito do direito
comercial e das empresas no se desenvolvem mais, apenas, no ambiente fsico, mas
a partir e em torno de um sistema virtual de formao de vontades e de representao

96

Eric Hobsbawn, Naes e Nacionalismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, p. 17.
Dentro dessa perspectiva, Olea e Flores definem a globalizao do seguinte modo: Por globalizacin
entendemos el proceso en que se generaliza la intercomunicacin entre economas, sociedades y
culturas, donde se desarrollan y aplican las tecnologas de la comunicacin y la informtica, junto con
los acuerdos entre los Estados para facilitar todo tipo de intercambios, especialmente de orden
econmico: desregulaciones, eliminacin de barreras arancelarias y otros impedimentos a una mayor
interrelacin econmica entre pueblos y Estados. (Victor Flores Olea e Abelardo Maria Flores, Crtica
de la Globalidad Dominacin y Liberacin en Nuestro Tiempo, Mxico, Fondo de Cultura, 2000,
p. 11.

97

Teoria crtica da empresa

61

Ivanildo Figueiredo

de interesses econmicos e no-econmicos, mas cuja resultante prtica serve,


perfeitamente, s necessidades de expanso do comrcio internacional.
As empresas transnacionais so as maiores beneficirias desse sistema de
comrcio global, na medida em que podem ofertar seus bens e servios em escala
mundial, tanto atravs dos meios proporcionados pelo comrcio eletrnico, como
mediante a explorao direta dos mercados internos, atravs de estabelecimentos
fsicos operados dentro dos pases perifricos. E essas bases produtivas instaladas
nos pases em desenvolvimento servem a dois objetivos principais: primeiro, para a
explorao do prprio mercado interno, em grande parte das vezes com alto grau de
concentrao econmica e de monopolizao de certos segmentos; e segundo, para
se valer dos reduzidos custos de produo presentes nesses pases utilizados como
base para a exportao de bens manufaturados, notadamente na remunerao do
trabalho assalariado e na aquisio de matrias-primas.
As relaes comerciais prevalentes na economia globalizada caracterizam-se,
pois, por essa quase absoluta desconsiderao dos sistemas e fronteiras nacionais,
em que os aspectos jurdico-formais, que sempre condicionaram essas relaes,
como o regime legal decorrente do pas de sede da empresa, o local de constituio
ou de execuo das obrigaes, a aplicao dos elementos de conexo para a fixao
da lei aplicvel soluo de controvrsias, foram substitudos por um direito
anacional, de natureza supraestatal, apartado de regras definidoras da competncia
territorial.
Esse sistema econmico global segue, assim, uma lgica prpria, de ndole
cosmopolita e transnacional. Dentro dessa lgica, no importa o regime de
determinao da jurisdio para a resoluo de possveis conflitos, que ficaro
margem do processo decisrio, considerando que a lgica empresarial determinada
pelo grau de probabilidade de sucesso e concluso dos negcios, e no da
possibilidade de conflito de interesses.
Nas operaes comerciais, a normal execuo dos acordos e contratos a
regra, enquanto que a exceo consiste na remota hiptese de inexecuo. Ademais,
com a amplitude e disseminao das informaes referentes s partes contratantes

Teoria crtica da empresa

62

Ivanildo Figueiredo

envolvidas em negcios internacionais, disponveis na rede mundial de computadores


e nos cadastros informatizados alimentados, principalmente, pelos bancos e
instituies financeiras, os contratos somente so formalizados quando os
contratantes possuem amplo conhecimento da capacidade econmica e patrimonial
recproca. A confiana e fiabilidade contratual decorrente, no apenas, do princpio
universal da boa-f, mas, principalmente, das informaes cadastrais previamente
coletadas, organizadas sob a forma de dossis que contm um histrico completo das
relaes comerciais de cada parte contratante.
O risco comercial passa a ser um elemento previsvel e controlvel no mbito
de cada relao contratual no mercado internacional. E o aumento do grau de
segurana na celebrao desses negcios, no ambiente globalizado e altamente
informatizado, coloca, em segundo plano, a probabilidade de inexecuo dos
contratos e do surgimento de conflitos de interesse. E ainda assim, mesmo diante da
hiptese de conflito, a eleio consensual de instncias privadas de jurisdio arbitral
torna dispensvel, na grande maioria dos casos, o recurso s esferas estatais de
soluo de controvrsias.
O mercado vem a observar e seguir, como exemplo marcante de uma volta ao
sistema da jurisdio consular das corporaes de mercadores da poca anterior ao
mercantilismo, um procedimento privado de arbitragem, em que o contrato constitui
autntica lei entre as partes, cabendo a um rbitro privado dirimir os possveis conflitos
decorrentes da interpretao e aplicao das normas contratuais.
Os princpios da autonomia da vontade e da liberdade de contratar passam a
ser considerados, nesse espao das relaes internacionais de comrcio, os vetores
fundamentais da economia mundial, sob a capa de uma nova lex mercatoria. Essa
nova lex mercatoria, de acordo com a definio de Irineu Strenger, representa "um
conjunto de procedimentos que possibilita adequadas solues para as expectativas
do comrcio internacional, sem conexes necessrias com os sistemas nacionais e
de forma juridicamente eficaz".98

98

Irineu Strenger, Direito do comrcio internacional e lex mercatoria, So Paulo: LTR Editora, 1996,
p. 78.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

A lex mercatoria desta fase de globalizao se expressa, portanto, como um


direito supranacional, desvinculado dos sistemas estatais, constituindo um conjunto
de normas pragmaticamente moldadas e desenvolvidas para permitir s empresas
transnacionais um amplo grau de liberdade de explorao mercantil, no dependendo
o processo decisrio dessas corporaes da interferncia indesejada das ordens
jurdicas estatais.99
O capitalismo global passou a se afirmar, portanto, como o sistema econmico
dominante e hegemnico no incio do sculo XXI. Seguindo os seus prprios dogmas,
leis e diretrizes de carter essencialmente privatista, fundado em uma nova lex
mercatoria, as empresas transnacionais financeiras transitam livremente de pas para
pas, transferem recursos, capitais e investimentos pelo vasto corredor eletrnico,
auferem ganhos e lucros no mercado virtual, sem quase nenhum esforo produtivo. E
as empresas industriais, quando necessitam mobilizar recursos fsicos, sempre no
sentido de reduzir, ao mximo, os seus custos de produo, aproveitam a
infraestrutura dos pases perifricos e a mo-de-obra barata para instalar plantas
industriais descartveis, destinadas exportao de produtos manufaturados para o
mercado internacional, pouco ou quase nada se preocupando com as funes sociais
que as empresas deveriam desempenhar nos pases utilizados como base para a sua
explorao.
No mbito do direito comercial, as questes juridicamente relevantes so
colocadas em segundo plano pelas empresas transnacionais e de grande porte, no
importando os efeitos dessas relaes jurdicas no que concerne ao direito aplicvel,
aos aspectos derivados dos elementos de estraneidade e da jurisdio competente
para a soluo de conflitos de interesse mercantil. Acima de qualquer preocupao
com as conseqncias jurdicas da explorao comercial, prevalece o escopo da

99

A expanso e liberalizao das relaes internacionais de comrcio foram viabilizadas, desse modo,
graas revoluo tecnolgica da informtica e das telecomunicaes, sem a qual essa poltica
expansionista no seria concretamente possvel, no entender de Octvio Ianni: Esta pode ser
considerada uma das caractersticas mais notveis da globalizao do capitalismo: as tcnicas
eletrnicas, compreendendo a microeletrnica, a automao, a robtica e a informtica, em suas redes
e vias de alcance global, intensificam e generalizam as capacidades dos processos de trabalho e
produo. No mesmo curso da disperso geogrfica das fbricas, usinas, montadoras e zonas francas,
simultaneamente nova diviso internacional do trabalho e produo, intensificam-se e generalizamse as tecnologias destinadas a potenciar a capacidade produtiva de todas as formas sociais de
trabalho. (Teoria da Globalizao, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2004, p. 195).

Teoria crtica da empresa

64

Ivanildo Figueiredo

busca incessante do lucro e de resultados que remunerem, satisfatoriamente, o capital


investido, e que gerem bnus para seus executivos e dirigentes.
O comportamento adotado pelas empresas transnacionais e pelas grandes
corporaes despreza, invariavelmente, partindo da posio egostica e da viso
pragmtica dos seus acionistas controladores, os elementos dos quais possam advir
questionamentos jurdicos sobre a efetividade mercantil versus o atendimento s
demandas sociais, o que seria normalmente previsvel sob a perspectiva dos pases
perifricos ou dependentes, submetidos explorao econmica. A empresa, na atual
era da globalizao, uma instituio ou entidade econmica que extrapola os limites
nacionais e fica submetida aos ordenamentos estatais exclusivamente para atender
aos requisitos da sua existncia formal.
Sob essa concepo capitalista pura, a empresa existe como um fim em si
mesma, como organizao destinada a satisfazer os interesses dos seus scios ou
acionistas controladores, deslocando para segundo plano o compromisso com a sua
funo social, ainda que algumas empresas venham a inserir nas suas polticas e
estratgias aes voltadas proteo ambiental, a investimentos em educao e
qualificao profissional, no mbito de medidas da denominada governana
corporativa.
De um modo geral, a empresa vem desempenhando as suas funes
econmicas, na atual era da globalizao, com ampla variabilidade no grau de
especializao e de organizao patrimonial. Destarte, desde as micros e pequenas
empresas, at as grandes corporaes transnacionais, todas elas esto submetidas
a um sistema econmico superior, que pode ser representado por uma ampla teia de
interesses que tem suas regras ditadas pelo centro desenvolvido e que determina o
modo de organizao da produo e das relaes de troca nos pases perifricos.
No obstante a lgica econmica do sistema, as empresas exercem uma
funo social de grande e estratgica relevncia, razo pela qual a organizao
empresarial no pode ser considerada, exclusivamente, como um objeto de interesse
do empresrio capitalista, cuja principal utilidade gerar lucros para os seus
acionistas.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

Desde o surgimento das grandes corporaes multinacionais e da pulverizao


do capital das companhias em bolsas de valores, passou a ocorrer um ntido processo
de separao da propriedade do capital do controle das empresas, como demonstrado
pelos estudos de Adolf Berle e Gardiner Means.100 A partir desse novo referencial
terico, a pessoa do empresrio diferenciada da empresa, cabendo assim a ela
cumprir sua funo social, como sujeito de proteo jurdica.101
Dentro dessa nova perspectiva dominante no processo de globalizao da
economia neste sculo XXI que deve a regulao da empresa ser estruturada, a
partir de novos conceitos, de novas formas adaptadas velocidade dos negcios de
massa, de concepo da organizao empresarial como instituio social, concepo
esta ausente no regime do direito de empresa do Cdigo Civil de 2002.
Na contramo da histria e da evoluo do processo econmico, o Cdigo de
2002 continuou regulando a empresa como uma entidade formalista e burocrtica,
apegado a frmulas ultrapassadas, fato este que poder resultar em dificuldades de
adaptao das empresas brasileiras ao dinmico mercado globalizado.
O modelo de empresa reproduzido pelo Cdigo Civil de 2002, foi aquele
constante do Cdigo italiano de 1942, construdo na ideologia fascista e influenciado
pela liberdade econmica do grande capital, em oposio ao Estado social. Esse
modelo, apesar de avanado para o seu tempo, ainda na primeira metade do sculo
XX, outorgado durante a Segunda Guerra Mundial, em ambiente totalmente
conturbado e conflituoso, no atende, na realidade brasileira do sculo XXI, aos
parmetros e exigncias das empresas nacionais e transnacionais no atual cenrio
de economia globalizada e altamente competitiva.

100

Adolf A. Berle Jr. e Gardiner C. Means, Societ per azioni e propriet privata, Torino, Giulio
Einaudi Editore, 1966, p. 8-9. Edio em ingls The Modern Corporation and Private Property, New
Brunswick and London, Transaction Publishers, edio original 1932, Tenth printing, 2009.
101 Para Arnoldo Wald, A viso realista do mundo contemporneo considera que no h mais como
distinguir o econmico do social, pois ambos os interesses se encontram e se compatibilizam na
empresa, ncleo central da produo e da criao da riqueza, que deve beneficiar tanto o empresrio
como os empregados e a prpria sociedade de consumo. No h mais dvida que so os lucros de
hoje que, desde logo, asseguram a sobrevivncia da empresa e a melhoria dos salrios e que ensejam
a criao dos empregos de amanh. (Comentrios ao Novo Cdigo Civil - Livro II Direito de
Empresa, cit., p. 2).

Teoria crtica da empresa

66

Ivanildo Figueiredo

Captulo 2
Codificao e descodificao do direito privado

2.1. Introduo ao problema da codificao; 2.2.


Codificao e descodificao do direito privado no Brasil;
2.3. A unificao restrita do direito privado no Cdigo Civil
de 2002; 2.4. Problemas metodolgicos da codificao do
direito privado; 2.5. O retorno ao problema da autonomia e
a constitucionalizao do direito comercial.

2.1. Introduo ao problema da codificao

O Cdigo Civil de 2002 representou uma deciso de poltica legislativa que


alterou, de modo profundo, o direito privado brasileiro. A mudana do sistema
codificado, com a revogao do Cdigo Civil de 1916, manteve a opo do legislador
de promover, simplesmente, a substituio do diploma bsico de regncia do direito
privado no Brasil por outro considerado mais atualizado e adaptado s exigncias da
modernidade e das concesses ao Estado social. Essa opo vem a colocar em
discusso as tendncias legislativas do direito privado na era contempornea, que
oscila entre o regime clssico-romanista da codificao, e o movimento mais recente
da descodificao.
O direito civil sempre foi considerado, desde a poca de Justiniano, mas
principalmente a partir da sua configurao moderna posta pelo Cdigo Civil francs
de 1804, como sendo o conjunto de normas destinadas a regular as relaes privadas
das pessoas. As normas do Cdigo Civil so denominadas como de direito comum
exatamente porque fazem parte da esfera de interesses prprios das pessoas em sua
vida cotidiana e visam estabelecer uma certa estabilidade nas instituies por ele
disciplinadas, especialmente as de natureza patrimonial, obrigacional e dos vnculos
de famlia e sucesses.

67

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

A codificao, com efeito, encontra-se no centro das crticas modernas que


indagam a respeito da melhor maneira de definir os conceitos e institutos de direito,
bem como normatizar as relaes derivadas dos atos e negcios jurdicos na
realidade contempornea. A poltica legislativa adotada por cada Estado ou Nao
demonstra essa preocupao com a definio do modelo de regulao das relaes
jurdicas, que pode ser atravs de um sistema codificado, quando se pretender maior
grau de perenidade ou estabilidade das regras e institutos jurdicos, ou por meio de
sistema no codificado, em que leis esparsas e mais flexveis devem disciplinar as
relaes de direito, eis que se revelam mais facilmente adaptveis s mudanas
tecnolgicas, evoluo e transformaes scio-culturais.
A origem do processo de codificao remonta ao iluminismo e ao
jusracionalismo que influenciaram a conscincia dos Estados absolutistas da Europa
a partir do sculo XVIII. O despotismo esclarecido guarda a sua justificao ontolgica
no racionalismo, na crena absoluta na razo humana e na organizao da sociedade
a partir de modelos ideais.102 A base histrica do processo de codificao assenta-se
no direito natural, ou seja, na construo racional de princpios derivados do direito
que so considerados inerentes razo humana e que representariam uma
passagem do estado da natureza para o estado civil, como assim considerou
Rousseau (1712-1778), ao mencionar a substituio, na conduta humana, do instinto
pela justia, e dando s suas aes a moralidade de que no dispunha
anteriormente.103 Tambm na teoria poltica de Montesquieu (1689-1775)

104

e no

racionalismo de Voltaire (1694-1778),105 podemos encontrar referncias aos princpios


do direito natural como fio condutor do processo de elaborao das leis. O prprio
Voltaire integrou a corte do Kaiser Frederico Guilherme II (1744-1797), Imperador da
102 assim que, a partir desse jusracionalismo, Franz Wieacker compreende a noo de um cdigo de
leis: O Cdigo , quer do ponto de vista do contedo, quer do ponto de vista estilstico, a expresso
de uma cultura evoluda e isto no apenas segundo o padro dos critrios da poca. Nesse ponto
quase nico da legislao europia, ele apresenta um plano global da construo do Estado a partir
dos fundamentos de base da sociedade humana. (Histria do Direito Privado Moderno, Lisboa,
Fundao Calouste Gulbenkian, 2 edio, 1980, p. 378).
103 Jean Jacques Rousseau, Do contrato social, So Paulo, Hemus, 1981, p. 31.
104 No seu discurso sobre as leis positivas, afirma Montesquieu: A lei, em geral, a razo humana, na
medida em que governa todos os povos da terra, e as leis polticas e civis de cada nao devem ser
apenas os casos particulares em que se aplica essa razo humana; (Charles Louis de Secondat, Baron
de la Montesquieu, Do esprito das Leis, Livro Primeiro, So Paulo, Abril Cultural, 2 edio, 1979, p.
28.
105 Franois Marie Arouet de Voltaire, Dicionrio Filosfico, So Paulo, Abril Cultural, 2 edio, 1978,
p. 153-154.

Teoria crtica da empresa

68

Ivanildo Figueiredo

Prssia, havendo contribudo, com seu humanismo racionalista, na elaborao do


primeiro Cdigo de Terras prussiano, o Allgemeines Landrecht, que entrou em vigor
em 1794, o qual introduziu grandes inovaes no regime da posse e na discriminao
da propriedade privada.106
O processo de codificao prossegue na Europa como produto do
jusracionalismo e da expresso de um direito natural dos homens contra a opresso
da monarquia, que se sustentava na concentrao da propriedade desde o perodo
feudal, alcanando expresso maior no Cdigo Civil da Frana de 1804, obra de
Napoleo Bonaparte (1769-1821) como Primeiro Cnsul e depois Imperador, cuja
promulgao representa um dos principais pilares de afirmao do regime
revolucionrio institudo em 1789. A revoluo francesa, com efeito, consolidou-se no
incio do Sculo XIX graas ao restabelecimento de um Estado forte, baseado em leis
ditadas pelo interesse geral, superando a era de terror e de insegurana das
instituies, que dominou o cenrio poltico at a queda de Maximilien Robespierre
(1758-1794) e no perodo de transio do Governo do Diretrio de Paul Barras (17551829), at a ascenso de Napoleo Bonaparte como Primeiro Cnsul em 1799.
O Cdigo Civil francs de 1804, denominado de Cdigo dos Franceses ou
Cdigo de Napoleo, inaugurou a chamada poca oitocentista das codificaes,
servindo como modelo para que outros pases europeus passassem a adotar a sua
estrutura sistemtica na regulao do Direito Privado.107 O Cdigo francs de 1804,
que possibilitou o surgimento da Escola da Exegese, dedicada sua interpretao
literal, era fruto dos princpios emanados do direito natural e da crena iluminista na
capacidade do homem de estipular regras gerais e comuns destinadas a regular, em
um nico diploma normativo, toda sorte de relaes sociais.
O carter jusnaturalista do processo de codificao do direito resulta dessa
abordagem racional, em que cada indivduo deve reconhecer no Estado uma instncia
superior, conduzida pela razo, e que tem como preocupao e finalidade estabelecer

106

Franz Wieacker, Histria do Direito Privado Moderno, cit., p. 372-375.


Na viso de Fbio Konder Comparato, as ideias-mestras do Cdigo Civil Francs, de 1804, foram:
a) a preservao da certeza e da segurana jurdicas; b) a uniformizao e o universalismo legislativos;
c) o racionalismo. (Projeto de Cdigo Civil, Ensaios e pareceres de Direito Empresarial, Rio de
Janeiro, Forense, 1968, p. 541).
107

Teoria crtica da empresa

69

Ivanildo Figueiredo

as regras de ordenao da sociedade. Assim, em primeiro plano, os interesses do


Estado, que representaria a razo natural, deveriam estar sobrepostos aos interesses
individuais, e somente o Estado, atravs das leis emanadas dos seus rgos
legislativos, possuiria capacidade racional para ordenar as relaes jurdicas no plano
individual. Em nome dessa necessidade de organizao da sociedade, as pessoas
devem abrir mo de determinados direitos e prerrogativas que normalmente poderiam
exercer frente a seus semelhantes e ao prprio Estado, quando estejam esses direitos
contrapostos ao interesse coletivo.108
Na Metafsica dos Costumes, Kant (1724-1804) classifica o direito, como
cincia sistemtica, em direito natural, que se funda em princpios puramente a priori,
e em direito positivo (regulamentar), que tem por princpio a vontade do legislador.109
Separando a moral do direito, Kant reconhece que o direito privado seria equivalente
ao direito natural, a certos pressupostos emanados da razo humana, ao passo que
o direito civil, como direito positivo, teria carter de direito pblico, como modo de
ordenamento da sociedade civil.110 Nessa passagem da sua metafsica, Kant d a
entender que o racionalismo jusnaturalista pode tambm influenciar e determinar o
contedo das leis positivas, na medida em que a funo maior do legislador ser
sempre a de tentar ordenar, do modo mais racional possvel, as relaes sociais.
No podemos deixar de considerar que esse raciocnio jusnaturalista tambm
seria aplicvel na esfera poltica, atravs da delegao que os cidados conferem aos
representantes do Estado para a elaborao das normas constitucionais e das leis.

108

Em seus fundamentos de justificao, na sua reduo filosfica, a doutrina, segundo Mario Viora,
assim procura explicar as premissas que orientaram o processo de codificao, luz dos princpios do
direito natural: Sono note le premesse da cui partiva la Scuola del Diritto naturale. In rapida sintesi si
possono riepilogare cos: luomo, originariamente, nello stato di natura, fu subietto di um numero
determinato di diritti. A un certo punto luomo stesso, per superare gli incovenienti e i danni propri dello
stato di natura si era fatto uomo cilvile e poltico, aveva creato cio lo Stato, e per ottenere ci aveva
dovuto abdicare ad alcuni dei suoi diritti innati in favore di esso. Ma in seguito era accaduto che lo Stato
invadesse la sfera dei diritti individuali, violando cos il patto originale di costituzione della societ, in
virt del quale avevano consentito a sacrificare soltanto quei diritti proprii che erano incompatibili con la
sussistenza dello Stato. Era tuttavia desiderabile che la sfera dei diritti dello Stato fosse ricondotta all
primitiva estensione. Ad ottenere ci era necessrio, secondo gli insignamenti della Scuola, una dplice
opera, e cio la proclamzione di nuovi statuti e la codificazione civile: nei primi si sarebbero precisati i
diritti dello Stato, nella seconda i diritti degli individui. (Consolidazioni e Codificazioni Contributo
alla storia della codificazione, Torino, G. Giappichelli, 3 edio, 1967, p. 32-33).
109 Emmanuel Kant, Metafsica dos Costumes, Doutrina do Direito, So Paulo, cone Editora, 2004, p.
55.
110 Kant, Metafsica dos Costumes, Doutrina do Direito, cit., p. 60.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

Todavia, aqui, o raciocnio diverso, diferente, porque tratam-se de normas de ordem


pblica, da organizao em si do Estado e da determinao da esfera de liberdade
com que cada pessoa pode atuar diante do interesse geral e coletivo.
O movimento de codificao do direito, tanto privado quanto pblico, atravs
dos Cdigos Civil, Comercial, Penal e de Processo, alcanou o seu pice no Sculo
XIX, como expresso desse racionalismo positivista, seguindo a tendncia da
sistematizao do direito. O que se discute no presente se a codificao ainda
permanece sendo a forma mais adequada de organizao normativa do direito, dado
que a codificao se fez necessria e importante em determinado momento histrico,
de afirmao ideolgica da burguesia que ascendeu ao poder na Revoluo Francesa
e que necessitava de normas perenes e estveis para contrapor-se ao deposto regime
monrquico.
Assumindo posio contrria codificao, Friedrich Karl Von Savigny (17791861), em clebre ensaio publicado em 1814, A vocao do nosso sculo pela
legislao e pela jurisprudncia, lembrava que o direito codificado, em certo
momento, deixa de corresponder realidade do direito vigente, porque a evoluo
do sistema no pode parar, no obstante a promulgao do cdigo, porque este
apenas a representao de um momento histrico determinado.111 Para Savigny, os
cdigos so fossilizaes do direito, constituem algo de morto, que impede o
desenvolvimento ulterior.112 Com efeito, a codificao tem uma pretenso
estabilidade das suas normas, a partir de modelos e institutos gerais, sendo essa
tendncia conservadora uma das suas principais marcas caractersticas.
Nessa perspectiva inicial, cabe analisar o recente processo de codificao do
direito privado brasileiro, a partir do Cdigo Civil de 2002, tomando como referencial
de discusso a nova tendncia da descodificao e da legislao estruturada a partir
de microssistemas normativos, o que, na viso de Gustavo Tepedino, representou um
retrocesso poltico, social e jurdico.113 Todavia, a crtica que constitui o foco principal
111

Mario E. Viora, Consolidazioni e Codificazioni Contributo alla storia della codificazione, cit.,
p. 47.
112 Friedrich Karl Von Savigny, apud Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, Parte
Geral, vol. 1, So Paulo, Saraiva, 39 edio, 2003, p. 47.
113 O fato que o projeto foi redigido h quase 30 anos (a comisso foi constituda em maio de 1969)
e a sua aprovao representar impressionante retrocesso poltico, social e jurdico. Do ponto de vista

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

deste trabalho tem por finalidade principal questionar as razes e justificativas que
levaram o legislador a inserir no novo Cdigo Civil um ttulo relativo ao direito de
empresa, campo de regulao das atividades econmicas que, em virtude da
dinamicidade do mercado e das operaes mercantis, jamais deveria ter sido objeto
de codificao pela legislao civilista. Essa tentativa de unificao do direito das
obrigaes e, parcialmente, do direito societrio, revela-se contraditria com a
experincia acumulada no sistema de direito positivo brasileiro, que desde muito
tempo lanou o vetusto Cdigo Comercial de 1850 s prateleiras poeirentas do
desuso, e a legislao mercantil supletiva, paralela e no codificada, estava
demonstrando-se satisfatria e mais compatvel com as necessidades de regulao
da atividade econmica.
O principal erro do legislador brasileiro foi o de tentar reproduzir, no nosso pas,
no sculo XXI, a experincia do Cdigo Civil Italiano de 1942, de inspirao totalitria,
sancionado pelo ditador Benito Mussolini (1880-1945), aliado da Alemanha nazista de
Adolf Hitler (1889-1945). Esse diploma fascista inseriu o regime do direito de empresa
na estrutura do Cdigo Civil com a nica finalidade de ampliar o controle estatal sobre
as atividades produtivas,114 considerando, inclusive, que a atividade da empresa e do
empresrio estava inserida como modo de exerccio do trabalho.115
A partir da colocao do tema e da anlise da questo da codificao versus
descodificao, incluindo a investigao do longo processo legislativo que gerou a Lei
10.406/2002, o presente captulo tem como objetivo contribuir para as discusses em
voga sobre as conseqncias da reforma do direito privado brasileiro, e dos
problemas que resultaram da imposio artificial do regime do direito de empresa pelo
Cdigo Civil de 2002.

poltico, a redao do projeto precede a consolidao de processo histrico identificado, nos anos 70,
justamente com a era da descodificao. Vale dizer, uma codificao no surge por acaso. Expressa
momento de unificao poltica e ideolgica de um povo, fazendo prevalecer o conjunto de regras que
a sintetiza. Assim foi no sculo XIX, aps a Revoluo Francesa, assim se deu na Europa do psguerra, com a derrubada dos governos totalitrios. (O velho projeto de um revelho Cdigo Civil, in
Temas de Direito Civil, Renovar, Rio de Janeiro, 3 edio, 2004, p. 499-500).
114 Analisando exatamente este aspecto, Paula Forgioni afirma que a noo da empresa que acaba
positivada no Codice Civile brota em contexto fascista, sendo concebida como um dos principais
instrumentos do intervencionismo estatal. (A evoluo do direito comercial brasileiro: Da
mercancia ao mercado, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2 edio, 2012, p. 49).
115 Cdigo Civil Italiano de 1942 - Livro V Del Lavoro, artigos 2.060 a 2.246.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

2.2. Codificao e descodificao do direito privado no Brasil

Durante muitos anos questionou-se, no Brasil, a respeito da real necessidade


de substituio do Cdigo Civil de 1916 por um novo diploma codificado, mais
adaptado s profundas mudanas sociais, polticas, culturais, econmicas e
tecnolgicas que a sociedade viveu e experimentou ao longo do ltimo milnio. Com
efeito, o Cdigo de 1916, desgastado por uma vigncia de mais de oitenta anos, no
poderia mais refletir e normatizar a realidade social modificada por duas grandes
guerras mundiais, com a expanso do processo de industrializao e do imperialismo
econmico, do desenvolvimento tecnolgico e das telecomunicaes, e dos avanos
da nova cincia da informtica nos anos seguintes, que gerou a revoluo ciberntica
ao final do sculo XX.
Em razo das radicais transformaes econmicas e sociais e do
desenvolvimento tecnolgico, que passaram a influenciar a sociedade contempornea
a partir da segunda metade do sculo XX, o Cdigo de 1916 apresentava-se defasado
e superado em diversos institutos e conceitos relacionados, principalmente, aos
direitos da personalidade, das novas modalidades contratuais, das relaes de
propriedade e da evoluo dos costumes sociais nas reas do direito de famlia e das
sucesses.
Mesmo reconhecendo a defasagem do Cdigo de 1916, Orlando Gomes, um
dos mais consagrados civilistas ptrios, voltou-se contra o processo de elaborao do
novo cdigo, defendendo posio contrria a essa recodificao, diante das
tendncias recentes da descodificao.116

116 Apesar de ter sido autor de um dos anteprojetos do Cdigo Civil, Orlando Gomes, tal como na
clebre retratao de Vivante, modificou a sua opinio, e assim externou sua posio: A substituio
global de um novo Cdigo Civil atualmente um anacronismo tanto mais gritante quanto se limite,
mantendo a orientao filosfica e ideolgica do cdigo a ser abrogado, a enunciar praticamente os
mesmos comandos jurdicos com leves alteraes, quase sempre para pior, e com intencional excluso
de institutos e solues normativas que j integram a legislao especial e abundante que as mutaes
sociais determinaram e continuam a motivar. (O problema da codificao, Revista da Academia
Brasileira de Letras Jurdicas, Rio de Janeiro, ano I, n 1, 1984. p.12-13).

Teoria crtica da empresa

73

Ivanildo Figueiredo

Essa no era, obviamente, a opinio de Miguel Reale, coordenador do projeto


do novo Cdigo, que defendia a codificao como uma obra de grande importncia
histrica e cultural, como um exemplo de evoluo do direito positivo exigido pela
nossa poca.117
Em um nico ponto especfico, a posio dos defensores do novo cdigo era
justificvel: a defasagem social, tecnolgica e cultural do Cdigo de 1916. Concebido
ainda no sculo XIX, para outra realidade, apesar da construo terica coerente dos
seus principais institutos, principalmente no campo do direito das obrigaes, o
Cdigo de Clvis Bevilaqua no se demonstrava mais satisfatrio para reger as
relaes sociais na atual era da revoluo ciberntica e de globalizao econmica.118
No decorrer da vigncia do Cdigo Civil de 1916, com efeito, vrias foram as
mudanas introduzidas nos seus institutos moldados desde o secular direito romano
e compilados nas ordenaes e cdigos europeus elaborados entre os sculos XVIII
e XIX. E essas modificaes do regime codificado civilista, ou eram realizadas atravs
de atualizaes ao prprio cdigo, ou passaram a ser reguladas por leis especiais e
microssistemas normativos, derrogatrias de grande parte das disposies do Cdigo
de 1916. Com o passar dos anos, a legislao civil extravagante, a exemplo do que
ocorria com o Cdigo Comercial de 1850, passou a formar um regime descodificado
de direito privado, composto por vrios diplomas legais extravagantes.

117

Sobre o projeto do cdigo, Miguel Reale afirmou: No se diga que nossa poca pouco propcia
obra codificadora, tantas e tamanhas so as foras que atuam neste mundo em contnua
transformao, pois, a prevalecer tal entendimento, s restaria ao jurista o papel melanclico de
acompanhar passivamente o processo histrico, limitando-se a interferir, intermitentemente, com leis
esparsas e extravagantes. Ao contrrio do que se assoalha, a codificao, como uma das expresses
mximas da cultura de um povo, no constitui balano ou arremate de batalhas vencidas, mas pode e
deve ser instrumento de afirmao de valores nas pocas de crise. (Exposio de Motivos do
Projeto do Cdigo Civil, Dirio do Congresso Nacional, Seo I, Suplemento B, 13.06.1975, p. 108).
118 Discorrendo sobre a questo temporal das normas codificadas, Joseli Lima Magalhes pondera: As
normas jurdicas, e aqui se incluem as normas codificadas, especificamente, tendem a refletir ideias de
fatos consumados no passado, que, por um motivo ou por outro, ganharam valorao por parte dos
legisladores. Estes, no desiderato de elaborar leis, no so capazes de acompanhar o desenvolvimento
temporal dos fatos sociais, os quais normalmente continuam a se desenrolar, no s porque as relaes
jurdicas mudam de enfoque, mas tambm por ser da natureza humana o caminho para o
aperfeioamento, ainda que causem considerveis prejuzo vida presente nas tomadas de
posicionamentos. Isto explica a moderna tcnica legislativa de imprimir atualizao das normas
jurdicas procedimentos mais geis, como que amenizando a conexo presente entre a realidade social
e a lei, o que poder, contudo, causar embarao e instabilidade na sociedade. (Da Recodificao do
Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 97-98).

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

Dentre as principais alteraes legislativas que foram introduzidas e


positivadas, desde o Cdigo de 1916, no direito civil brasileiro, como leis especiais e
supletivas, cabe destacar os seguintes diplomas legais, fontes normativas
reformadoras e atualizadoras da concepo tradicionalista do Cdigo Civil de 1916,
conforme exposto no quadro abaixo:
Legislao
Decreto 24.643/1934
Decreto-Lei 58/1937
Decreto-Lei 3.365/1941
Decreto-Lei 9.760/1946
Lei 4.121/1962
Lei 4.132/1962
Lei 4.380/1964
Lei 4.504/1964
Lei 4.591/1964
Decreto-Lei 73/1966
Lei 5.478/1968
Decreto-Lei 911/1969
Lei 5.764/1971
Lei 6.015/1973
Lei 6.515/1977
Lei 6.766/1979
Lei 6.969/1981
Lei 7.433/1985
Lei 8.069/1990
Lei 8.078/1990
Lei 8.245/1991
Lei 9.514/1997
Lei 9.610/1998
Lei 9.656/1998
Lei 10.257/2001

Matria
Cdigo de guas
Loteamento de terrenos e promessa de compra e venda
Desapropriao de imveis por utilidade pblica
Regime especial dos bens pblicos
Estatuto da mulher casada
Desapropriao de imveis por interesse social
Sistema Financeiro da Habitao
Estatuto da Terra
Condomnio e incorporaes imobilirias
Contratos de seguro
Ao de alimentos
Alienao fiduciria em garantia
Sociedades cooperativas
Lei de registros pblicos
Lei do divrcio
Parcelamento do solo urbano
Usucapio especial
Requisitos das escrituras pblicas
Estatuto da criana e do adolescente
Cdigo de defesa do consumidor
Locao de imveis urbanos
Alienao fiduciria de imveis
Direitos autorais
Planos e seguros privados de sade
Estatuto da Cidade

As normas e diplomas legais acima listados representam um exemplo concreto


que demonstra as principais modificaes introduzidas no regime do Cdigo de 1916,
tendo essas leis especiais por objeto diversas matrias, em quase todos os campos
do direito privado. E vrios desses diplomas legais consistem em normas que
regulam, de modo completo e quase integral, determinadas relaes e matrias
jurdicas, a exemplo do regime de condomnios e incorporaes imobilirias (Lei
4.591/1964), da Lei de Registros Pblicos (Lei 6.015/1973) e da Lei do Divrcio (Lei
6.515/1977).

Teoria crtica da empresa

75

Ivanildo Figueiredo

Essas leis especiais, que disciplinam determinado instituto jurdico de modo


integral, foram denominadas, pela doutrina, como microssistemas normativos,119 cuja
aplicabilidade, em primeiro plano, prescinde de consulta s regras do Cdigo Civil, por
esgotar, no seu mbito, praticamente, todas as possibilidades e hipteses incidentes
nos casos concretos nelas previstos.
Os microssistemas normativos compreendem, assim, as leis que regem, na sua
integralidade, determinados fenmenos sociais e econmicos,120 estando plenamente
adaptadas s exigncias e demandas verificadas em certa poca, passando ao largo
da legislao codificada, cuja desatualizao tecnolgica e cultural no acompanhou
a evoluo dos institutos jurdicos contemporneos.
O movimento da descodificao, que considera suficientes para a regulao de
certos fenmenos sociais os microssistemas normativos, teve incio na Europa no ano
de 1978, tendo como seu principal terico e elaborador o jurista italiano Natalino Irti.
A essa tendncia descodificadora Irti atribui, em um primeiro momento, s mudanas
legislativas que foram sendo introduzidas no mbito da Comunidade Europia,
quando os primeiros tratados destinados unificao do direito europeu celebrados
entre os pases, passaram a enunciar princpios de concorrncia, de livre mercado e
de espaos econmicos, tratados esses que vieram a gerar leis especiais,
principalmente no campo mercantil.121
A idia de descodificao do direito civil parte, portanto, da constatao da
existncia de leis especiais que foram sendo progressivamente criadas nos pases de
tradio latina ao largo da legislao codificada, contendo normas relacionadas a
determinadas situaes ou grupos de interesses, demonstrando uma tendncia para
disciplinar as relaes interprivadas como estatuto de grupos, tendo como

119

Natalino Irti, Let della decodificazione, Milano, Giuffr, 4 ed., 1999, p. 72.
Orlando Gomes considera, com base nas lies de Natalino Irti, os microssistemas jurdicos como
pequenos universos legislativos, uma legislao setorial dotada de lgica prpria e ditada para
institutos isolados ou para uma classe de relaes, formando uma cadeia florescente margem do
cdigo a multiplicar derrogaes implcitas (O problema da codificao, cit. p.17).
121 Natalino Irti, Let della decodificazione, cit., p. 10.
120

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

destinatrios, no o indivduo, neutro e indiferenciado, mas a categoria ou o crculo a


que pertence, no quadro do indisfarvel neocorporativismo em asceno.122
A constante regulao de institutos jurdicos atravs de leis especiais provocou,
segundo Irti, uma reduo de funo do Cdigo Civil, que passou a representar no
mais um direito geral, e sim um direito residual, na medida em que as normas
codificadas ficaram limitadas a disciplinar hipteses (fattispecie) esvaziadas, privadas
dos elementos de fato, das notas individualizadoras, que se destacam dos novos
princpios nas leis especiais.123 E assim, Irti conclui que a relao entre cdigo e lei,
descrito em termos de geral e especial, se converte em uma disciplina geral e uma
disciplina residual, onde geral a lei externa e residual o cdigo.124
Outro fator importante contribuiu tambm para o movimento da descodificao,
e Irti localiza-o no processo de constitucionalizao do direito civil. Se antes, o Cdigo
Civil era o texto bsico de garantia dos direitos fundamentais do indivduo com relao
aos direitos da personalidade, da propriedade, das relaes de famlia e sucesso, as
modernas constituies passaram a conter, num grau hierrquico superior, princpios
e normas de garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido,
Irti observa que o Cdigo Civil perdeu o carter de centralismo no sistema das fontes:
no mais sede de garantia do indivduo, agora tarefa que se voltou para a
Constituio.125
No mbito do direito comercial brasileiro, ainda sob a vigncia do Cdigo
Comercial do Imprio de 1850, por conta da obtusidade e absoluta defasagem das
suas normas e institutos, diante do avano acelerado da atividade econmica,
podemos observar que, desde o incio da Repblica, mais precisamente a partir do
Decreto 916/1890, o Cdigo Comercial passou a ser suplantado pelas normas
especiais. Esse Decreto 916/1890 teve por objeto regular o registro de firmas e
sociedades mercantis perante as Juntas Comerciais, estabelecendo certas regras

122

Orlando Gomes, O problema da codificao, cit., p. 17.


Natalino Irti, Let della decodificazione, cit., p. 40.
124 Natalino Irti, cit., p. 46.
125 Natalino Irti, cit., p. 45.
123

Teoria crtica da empresa

77

Ivanildo Figueiredo

bsicas para o exerccio do comrcio, e somente foi revogado pelo Cdigo Civil de
2002.
Principalmente a partir do final da Segunda Grande Guerra (1939-1945),
perodo que Irti considera o incio da era da descodificao, o Cdigo Comercial de
1850 foi sendo derrogado por diversas leis especiais, que tambm se caracterizam
como microssistemas mercantis.
No direito positivo brasileiro, ao longo dos anos que se seguiram ao Cdigo
Comercial de 1850, cabe destacar como mais relevantes as seguintes leis supletivas
e microssistemas normativos que foram introduzidos no nosso ordenamento jurdico
a partir do sculo XX, destinados atualizao da legislao comercial diante das
novas formas e modalidades de execuo das atividades econmicas privadas:
Legislao
Decreto 916/1890
Decreto 1.102/1903
Decreto 2.044/1908
Decreto 3.708/1919
Decreto 22.626/1933
Lei 4.594/1964
Lei 4.595/1964
Lei 4.728/1965
Lei 4.886/1965
Lei 5.474/1968
Lei 6.024/1974
Lei 6.099/1974
Lei 6.385/1976
Lei 6.404/1976
Lei 6.729/1979
Lei 6.840/1980
Lei 7.357/1985
Lei 8.884/1994
Lei 8.934/1994
Lei 8.955/1994
Lei 9.279/1996
Lei 9.492/1967
Lei 9.841/1999
Lei 10.076/2004
Lei 11.101/2005

126

Matria
Registro de firmas ou razes comerciais
Empresas de armazns gerais
Letra de cmbio e nota promissria
Sociedades por quotas de responsabilidade limitada
Lei da usura
Corretor de seguros
Reforma bancria
Mercado de capitais e bolsas de valores
Representao comercial autnoma
Duplicatas
Interveno e liquidao extrajudicial
Arrendamento mercantil (leasing)
Mercado de valores mobilirios
Sociedades por aes
Concesso comercial
Ttulos de crdito comercial
Cheque
Defesa da concorrncia 126
Registro pblico de empresas mercantis
Franquia empresarial
Propriedade industrial
Protesto cambial
Estatuto da microempresa 127
Ttulos de crdito agropecurios
Recuperao de empresas e falncias

A Lei 8.884/1994, de defesa da concorrncia, foi revogada pela Lei 12.529/2011.


A Lei 9.841/1999, que regulava a microempresa e a empresa de pequeno porte foi revogada e
substituda pelas Leis Complementares 123/2006, 128/2008 e 147/2014.
127

Teoria crtica da empresa

78

Ivanildo Figueiredo

A legislao comercial brasileira, desde a segunda metade do Sculo XX,


encontra-se quase integralmente estruturada em leis especiais, ficando o Cdigo
Comercial de 1850 efetivamente relegado a plano residual, restrito a algumas poucas
normas de direito comercial martimo que no foram derrogadas ou caram mesmo no
desuso em razo da revoluo nos meios de transporte. Cabe observar que a
legislao martima do Cdigo de 1850 ainda regulava os navios e buques movidos a
vela, fazendo meno, como equipamento obrigatrio do navio, os velames e a
mastreao (art. 506). O Cdigo no conhecia o navio a vapor, apesar deles j
existirem na Inglaterra desde 1830, mas que ainda no se aventuravam nas viagens
transocenicas.
Como visto, a legislao comercial aplicvel s relaes mercantis de
regulao das atividades das empresas, encontrava-se estruturada em leis especiais
e nos microssistemas normativos, o que demonstra que a revogao da parte primeira
do Cdigo Comercial de 1850 pelo Cdigo Civil de 2002 em quase nada alterou a
disciplina legal do direito mercantil. O direito comercial brasileiro j estava quase que
inteiramente descodificado, e o velho Cdigo de Comrcio do Imprio resumia-se,
sem embargo, a pea de museu.
Os principais institutos jurdicos do direito comercial e de regulao das
empresas no mercado, hoje vigentes, so obra da legislao complementar especial,
com destaque para a Lei das Sociedades por Aes (Lei 6.404/1976), a Lei de Defesa
do Consumidor (Lei 8.078/1990), a Lei do Registro Pblico de Empresas Mercantis
(Lei 8.934/1994), a Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), a Lei de
Recuperao de Empresas e Falncias (Lei 11.101/2005), a Lei Antitruste ou de
Defesa da Concorrncia (Lei 12.529/2011), toda a legislao bancria e de mercado
de capitais, o conjunto da legislao relativa aos ttulos de crdito e ao direito cambial,
assim como a disciplina especfica extravagante ao Cdigo Comercial, referente s
vrias espcies de contratos mercantis.
O sistema de direito comercial encontra-se, portanto, quase todo estruturado
em leis especiais e em microssistemas normativos, que pouco ou quase nada tem em

Teoria crtica da empresa

79

Ivanildo Figueiredo

comum com o direito civil, cuja aplicao s relaes comerciais sempre foi
analogicamente residual. Os microssistemas ou micrordenamentos que passaram a
ser disciplinados em leis especiais, retiram seu fundamento de validade diretamente
da Constituio, e se sobrepem legislao codificada, no em razo dessa relao
de supra ordenao normativa, mas porque regulam hipteses particulares que no
so tratadas com tal especificidade pela norma codificada. Entre a norma geral e a
norma especial, prevalecer, sempre, a norma especial, porque esta foi criada para
disciplinar relaes jurdicas determinadas e detalhadamente regradas.
As relaes comerciais sempre foram reguladas, ao logo dos sculos, a partir
de suas prprias normas. E antes de recorrer ao direito civil para completar, por
analogia, as suas lacunas, valeram-se mais da integrao hermenutica, com recurso
aos usos e costumes mercantis, estes moldados pela secular experincia mercantil.

2.3. A unificao restrita do direito privado no Cdigo de 2002

O Cdigo Civil de 2002, alm de procurar atualizar determinados princpios e


institutos jurdicos que estariam socialmente defasados,128 teve como finalidade
promover a unificao do direito das obrigaes. Essa unificao diz respeito,
basicamente, s obrigaes civis e s obrigaes comerciais, com a pretenso de
conferir tratamento normativo igualitrio a ambos os tipos obrigacionais.
Para justificar a unificao, o Coordenador do Projeto do Cdigo, Miguel Reale,
afirmava que esta proposta de unificao seria imperfeita ou claudicante se no a
integrassem preceitos que disciplinam, de maneira geral, os ttulos de crdito e as
atividades negociais.129
Como fundamento para a unificao do direito das obrigaes, argumentou-se
que, desde sua origem no direito romano, as obrigaes sempre foram comuns na

128
129

Miguel Reale, Exposio de Motivos do Projeto do Cdigo Civil, cit., p. 107.


Miguel Reale, cit. p. 112.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

sua estrutura deontolgica, e no haveria distino entre o contedo da relao


obrigacional civil daquela outra que rege os negcios mercantis. Nesse sentido, para
Miguel Reale, a unidade do direito obrigacional j uma realidade no Brasil, no plano
prtico, pois o Cdigo Comercial de 1850 preceitua, em seu art. 121, que, salvo as
restries estabelecidas, as regras e disposies do Direito Civil para os contratos em
geral so aplicveis aos contratos mercantis.130
Esta justificativa tanto contestvel quanto incongruente, porque a regra do
art. 121 do Cdigo Comercial de 1850 admitia a aplicao das normas gerais das
obrigaes e contratos civis apenas quando ausente norma especfica de regulao
de um determinado tipo de contrato mercantil. A prpria norma citada contm o
comando de exceo (salvo as restries estabelecidas neste Cdigo) que faz com
que a aplicao da lei civil aos contratos comerciais somente ocorra por analogia legis,
e no como fonte formal primria.131 Ademais, na medida em que o Cdigo Comercial
disciplinava, de modo bastante especfico, a compra e venda mercantil, a
normatividade especial era suficiente para regular esse tipo principal de contrato
comercial, sem necessidade de aplicao ou recurso lei civil.
O contrato de compra e venda mercantil sempre se apresentou, na lei e nos
usos comerciais, como uma modalidade totalmente diferenciada da compra e venda
civil. Nesse sentido, Waldirio Bulgarelli destacava:
A especialidade do comrcio, as suas tcnicas, as suas caractersticas levam, em
muitos casos, tambm especializao das obrigaes, o que perfeitamente
compreensvel considerando-se que a obrigao comercial decorre da promoo da
circulao econmica, no se ajustando assim s frmulas da vida civil.132

Como adverte Carvalho de Mendona, a obrigao una, e a comercialidade


contedo do ato, no da obrigao, de modo que no se deve confundir obrigao
com o contrato, isto , do efeito com a causa.133 Para melhor distinguir o contrato
mercantil do contrato civil, esclarece Bulgarelli que

130

Miguel Reale, cit., p. 112.


Walter Alvares, Curso de Direito Comercial, cit., p. 428.
132 Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, So Paulo, Atlas, 10 edio, 1998, p. 36.
133 Jos Xavier Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. VI, parte I, Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 4 edio, 1947, p. 228.
131

Teoria crtica da empresa

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Concorrem tambm para essa diferenciao certas caractersticas do Direito


Comercial, como a simplicidade das suas frmulas, a rapidez de sua aplicao, a
elasticidade dos seus princpios, que o tornaram um direito vivo, solerte, gil, em
contraposio lentido e complexidade do Direito Civil.134

Os contratos mercantis so contratos de massa, que se realizam e se


reproduzem na mesma velocidade das transaes comerciais do mercado, que
independem da formalidade e da solenidade, que a tnica dominante nos contratos
civis ou do direito comum, no profissional.
Ainda que se admita a unificao do direito das obrigaes, em razo do carter
comum e nico da estrutura obrigacional, das relaes entre credor e devedor, entre
vendedor e comprador, assim como do modo de constituio, execuo e extino
das obrigaes em geral, os contratos derivados de sede obrigacional mercantil no
se confundem e jamais podem merecer o mesmo tratamento normativo do contrato
civil.
A atividade comercial caracteriza-se pela realizao de contratos em massa,
pela oferta pblica de negcios atravs de uma publicidade institucional que qualifica
a sociedade de consumo, na incessante competio entre as empresas no mercado.
Todos esses fatores evidenciam uma prtica social que no compatvel com a
solenidade e o rigorismo formal que so caractersticas do contrato civil. O contrato
civil segue uma lgica dedutiva, dos institutos amplos e conceitos gerais para as
relaes individuais, enquando o contrato comercial de livre forma e criao,
determinado pelo mtodo indutivo.135
Na lio de Waldemar Ferreira, so imensas e profundas as diferenas entre
o direito comercial e o direito civil, partindo da idia de que o direito comercial direito
mobilirio por excelncia, focaliza os bens, no apenas quanto sua natureza, mas,

134

Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, cit., p. 36.


A lgica empresarial inversa, tem carter indutivo, percorrendo da prtica comercial para a
modulao de institutos gerais, como observa Bulgarelli: Apresenta-se o Direito Comercial com um
mtodo prprio e caracterstico, ou seja, o mtodo indutivo, que parte da observao da realidade (fatos
econmicos), chegando por via dela aos princpios gerais. Portanto, acompanha a vida econmica,
surpreendendo-lhe a dinmica, e da configurando as categorias jurdicas correspondentes. (...)
Diferentemente, portanto, do mtodo do Direito Civil, que essencialmente dedutivo, em que se parte
do geral para o particular, baseado que est em princpios gerais que orientam a sua conformao,
consubstanciado em institutos tradicionais e quase imutveis, como a famlia, a propriedade, a
herana. (Direito Comercial, So Paulo, Atlas, 16 edio, 2001, p. 2).
135

Teoria crtica da empresa

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principalmente, sob o ponto de vista econmico, (...) resultando da as notveis


particularidades que do civil o extremam.136
A doutrina comercialista brasileira, em peso, sempre reconheceu a alta
especializao do direito comercial comparado ao direito civil. Alm do aspecto
legislativo, a prtica judiciria e forense demonstra que um advogado, para exercer o
seu mister na rea comercial, necessita de slidos conhecimentos de administrao
de empresas, de teoria econmica, de contabilidade, para atuar com segurana na
defesa do interesse de seus clientes, empresas e empresrios.
Em determinados Estados brasileiros, como em So Paulo e no Rio de Janeiro,
as questes e causas relativas matria comercial so de competncia privativa de
varas especializadas em direito empresarial, especialmente para os processos de
falncia e recuperao de empresas.137 Considerando que, no final do Sculo XIX, foi
promovida a reunificao da jurisdio cvel originalmente prevista no Cdigo
Comercial de 1850, a alta especializao da matria comercial est exigindo, no
presente, a diviso da competncia jurisdicional e a formao dirigida de magistrados
para o domnio dos institutos e frmulas do direito de empresa.
Apesar da unificao do direito das obrigaes promovida pelo Cdigo Civil de
2002, no ocorreu a propalada unificao do direito privado, com o desaparecimento
e supresso do direito comercial pela sua incorporao ao direito civil. Sem embargo,
a unificao promovida restringe-se ao direito das obrigaes e ainda assim de modo
incompleto, porque permanecem regulados por normas especiais diversos tipos de
contratos mercantis, que no so previstos no novo Cdigo Civil, a exemplo dos
contratos de arrendamento mercantil ou leasing (Lei 6.099/1974), de franquia

136

Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Freitas Bastos,
2 edio, 1948, p. 123.
137 Nos ltimos anos, est sendo observado um crescente processo de especializao da jurisdio
comercial. Essa especializao hoje se faz presente nos Estados do Rio de Janeiro, So Paulo e Minas
Gerais, onde foram criadas varas especializadas, que passaram a deter competncia privativa em
matria empresarial e de recuperao de empresas e falncias. Pesquisa recentemente aplicada pelo
editor-chefe da Review of Economic Development, Public Policy and Law, Ivan Csar Ribeiro (FEAUSP), constatou que apenas 21 % das decises judiciais originrias de processos em varas
empresariais do Rio de Janeiro, entre os anos de 2004 e 2006, foram modificadas pelo Tribunal de
Justia, contra um percentual de 37,5 % das decises proferidas por juzes sem especializao, que
foram reformadas pelo rgo superior. Varas empresariais reduzem chances de decises serem
reformadas, http://www.bovespa.com.br/Investidor/Juridico, 20/02/2010.

Teoria crtica da empresa

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empresarial (Lei 8.955/1994), de concesso comercial de veculos automotores (Lei


6.729/1979), de alienao fiduciria em garantia (Decreto-Lei 911/1969), todas as
espcies de contratos bancrios (Lei 4.595/1964), alm das modalidades de contratos
atpicos, no regulados em lei, como os contratos de faturizao (factoring), de carto
de crdito e da compra e venda eletrnica. Vale destacar, ainda, que nas relaes
internacionais de comrcio, devem ser aplicadas as normas da compra e venda
internacional, especialmente aquelas determinadas pela Cmara de Comrcio
Internacional CCI, atravs dos INCOTERMS (Termos Internacionais do Comrcio)
e da Conveno de Viena de 1980, relativa aos contratos internacionais de compra e
venda de mercadorias.138 Tais normas so, em sua essncia, de natureza mercantil.
E assim, totalmente insusceptveis de regulao pela legislao civil.
As normas contratuais constantes do Cdigo Civil de 2012, desse modo,
permanecero como direito residual diante de uma srie de contratos mercantis, o que
importa reconhecer que o direito comercial no deixou de possuir um regime
contratual prprio, a despeito da tentativa de unificao do direito das obrigaes. O
prprio coordenador da comisso revisora do Cdigo de 2002, Miguel Reale,
confessou que a idia inicial era a de unificar todo o direito privado, com a
incorporao do direito comercial ao direito civil.139 Todavia, como visto, por mera
concesso do jurista-legislador brasileiro, o direito comercial no terminou varrido do
nosso cenrio jurdico.
Mas, essa discusso quanto unificao, total ou parcial, com efeito, sempre
foi decorrente da reao dos civilistas comercializao do direito privado.140 Devido
ao grande desenvolvimento da atividade econmica a partir do sculo XIX, a partir da
Revoluo Industrial, do crescimento da indstria e do uso da energia a vapor nas
fbricas e nos transportes, da criao do telgrafo, o direito comercial foi se
expandindo, criando novas frmulas negociais, novos tipos contratuais e modelos de
138

Decreto Legislativo 538/2012 do Congresso Nacional - Aprovou o texto da Conveno das Naes
Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, estabelecida em Viena, em
11 de abril de 1980, no mbito da Comisso das Naes Unidas para o Direito Mercantil Internacional.
139 A respeito dessa questo, Miguel Reale reconheceu: Embora tentado pela idia da unificao do
Direito Privado, compreendi que era necessrio manter a autonomia do Direito Comercial, mas
injetando-lhe a idia-fora da livre empresa, visto no ser mais o comrcio a atividade econmica
dominante, em concorrncia com as poderosas criaes das indstrias e dos servios de toda ordem.
(Estudos preliminares do Cdigo Civil, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 55).
140 Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, cit., vol. 1, p. 21.

Teoria crtica da empresa

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sociedades comerciais, aperfeioando os ttulos de crdito.141 Com efeito, o direito


comercial foi alcanando importncia tal na vida das pessoas e da sociedade, com os
contratos de consumo e relaes de massa, que o monumento romanista do direito
civil foi sendo corrodo nas suas bases at ento dominantes.
Considerando tal ordem de idias, os redatores do Cdigo Civil de 2002 foram
movidos por essa ndole, por esse pensamento, de recuperar o prestgio do direito
civil como sistema normativo privado superior, dirigente da sociedade. Mas essa
posio de centralidade j havia sido perdida, como observado anteriormente, desde
que a Constituio passou, ela prpria, a estabelecer os princpios e garantias dos
indivduos, da propriedade, da famlia e mesmo da atividade econmica.
Resta evidente, indiscutvel, que o direito civil permanecer como o sistema
geral de direito privado, no que tange s suas definies fundamentais, s regras de
capacidade e da personalidade, dos fatos e das relaes jurdicas, das obrigaes
gerais, dos contratos civis, das relaes de famlia e de sucesses, e dos seus
institutos seculares construdos pela obra civilizadora no campo do direito de
propriedade. O carter modelar do direito civil define esse vasto universo de relaes
jurdicas na sociedade. Todavia, o conservadorismo e a estaticidade das suas normas
no se coadunam com a dinmica mercantil, com as exigncias da atividade
econmica, cujas relaes encontram-se em constante mutao.
A insero do livro do direito de empresa no Cdigo Civil de 2002, praticamente
reproduzindo, sessenta anos depois e sob condies ideolgicas e culturais
totalmente diversas, a estrutura do Cdigo Italiano de 1942, de inspirao fascista,
representou indubitvel, patente, retrocesso legislativo no direito privado brasileiro. A
pretexto de promover a unificao de uma parte restrita do direito privado, no tocante
ao direito das obrigaes, o Cdigo de 2002 invadiu, de modo contrasistemtico, a
estrutura especializada, consistente e harmnica do direito comercial. E esse sistema
de direito comercial, graas ao seu carter adaptativo s mudanas continuamente
inseridas pela natureza concorrencial da atividade econmica, sempre se revelou,

141

Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, cit., p. 189.

Teoria crtica da empresa

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atravs de leis especiais e dos microssistemas normativos, o regime mais adequado


para a regulao das empresas no ambiente competitivo da economia de mercado.

2.4. Problemas metodolgicos da codificao do direito privado

Alguns comentaristas do Cdigo Civil de 2002 consideram que, no campo do


direito comercial, uma das principais inovaes desse regime consistiu na positivao
do direito de empresa no nosso ordenamento jurdico. Ao definir o regime econmico
privado como sendo prprio da atividade do empresrio e da sociedade empresria,
tal concepo estaria mais de acordo com a evoluo da moderna economia de
mercado.
Com efeito, o conceito de empresa, como principal agente da atividade
econmica, j era conhecido em diversas normas no direito positivo brasileiro, tanto
no mbito do prprio direito comercial como em outros sistemas jurdicos, a exemplo
do direito do trabalho e do direito tributrio, ramos que tambm interferem diretamente
nas relaes empresariais.
Ainda no regime do Cdigo Comercial de 1850, o art. 19 do Regulamento
737/1850 estabelecia que, para efeito de se determinar a competncia dos Tribunais
de Comrcio relativamente aos comerciantes a atividade de mercancia era tambm
exercida pelas empresas de fbricas, de comisses, de depsito, de expedio,
consignao e transporte de mercadorias.142 Apesar do Cdigo Comercial de 1850
haver se filiado concepo subjetivista do comerciante, no negava ou recusava,
como visto, a idia de empresa como organizao econmica.
Se o Cdigo Comercial do Imprio j se apresentava inteiramente defasado e
arcaico diante da contnua evoluo da atividade comercial, a sua mera substituio
por um cdigo mais atual no mais se justificaria, seja porque foi de encontro
tendncia moderna da descodificao, seja porque os microssistemas de direito
142

Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 41.

Teoria crtica da empresa

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comercial demonstravam-se suficientes para regular, com muito mais propriedade, as


relaes empresariais.
Independentemente de certo conjunto de relaes jurdicas estarem, ou no,
reguladas em um cdigo, esta situao por certo no interfere no processo de
interpretao e aplicao do direito, como observa Ren David, ao considerar que
Posto de parte o caso em que o legislador se teria pronunciado de modo expresso em
sentido contrrio, os cdigos no gozam, em relao s leis que neles no esto
incorporadas, de qualquer espcie de proeminncia. Cdigos e leis esto para os
juristas, relativamente sua interpretao, exatamente no mesmo plano. 143

Apesar desse raciocnio, o legislador do Cdigo de 2002, partindo da


concepo de que as normas codificadas possuem um sobrevalor normativo, teve ele
a pretenso de enclausurar nesse cdigo preceitos e normas que somente podem ser
mais objetivamente tratadas em leis especiais, e que j existem como fonte de
regulao dos principais institutos comerciais. Ao promover a unificao, ainda que
parcial, do direito das obrigaes, o Cdigo Civil de 2002 cometeu a suprema heresia
de tentar desmercantilizar as operaes e negcios empresariais, negando a prpria
finalidade lucrativa das atividades comerciais. Omitindo a adjetivao de mercantil
para qualificar as empresas, que jamais deixaro de exercer atividade mercantilista, o
Cdigo de 2002 buscou, ao contrrio do afirmado pelo Professor Miguel Reale,
preparar o cenrio conceitual para submeter, em um segundo momento, toda a
atividade econmica ao regime civilista.
A ttulo de exemplo cabal, objetivo, basta analisar o caso da sociedade por
quotas de responsabilidade limitada, principal forma modal de exerccio da empresa
coletiva em nosso Pas desde o Decreto 3.708/1919.
O Cdigo Civil de 2002 passou a disciplinar, em sua integralidade, esse tipo de
sociedade, vindo a denomin-la, equivocadamente, como sociedade limitada, pois
limitada e sempre ser a responsabilidade dos scios, e no a da prpria sociedade,
que ilimitada pelas obrigaes contradas perante terceiros. A regncia normativa
da sociedade por quotas pelo Cdigo Civil de 2002 representa uma tendncia
143

Ren David, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporneo, So Paulo, Martins Fontes, 2002,
p. 126.

Teoria crtica da empresa

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prpria unificao do nosso direito societrio, e no apenas do direito das obrigaes,


principalmente pelo fato do art. 1.053 do Cdigo de 2002 estipular a aplicao
supletiva, s sociedades por quotas, das normas de regncia da sociedade simples,
modalidade societria prpria do regime civilista e no do sistema mercantil.
Todavia, essa tentativa de unificao do direito societrio sob a orientao
ideolgica da desmercantilizao, esbarra nos preceitos evidentes que encontramos
nas normas que regem a sociedade annima, principal tipo societrio comercial, e que
est estruturada em um microssistema normativo fora da legislao codificada, tal
como contraditado pelo art. 2 da Lei 6.404/1976, que define a companhia, qualquer
que seja seu objeto, como de fim lucrativo e natureza mercantil.144
Esta parte deste captulo teve, assim, como finalidade, apresentar e
demonstrar as contradies presentes no Cdigo Civil de 2002 no tratamento do
regime jurdico da empresa mercantil, em especial para questionar o processo de
codificao do direito civil diante das novas tendncias descodificadoras ou
segregacionistas da matria comercial especializada. Neste ponto, foi trazido
discusso esse relevante problema metodolgico, de avaliao da atecnia e da
superficialidade cientfica do processo legislativo em nosso Pas, que no demonstra
a mnima preocupao em manter a coerncia e harmonia intranormativa que deveria
prevalecer no seio do sistema de direito positivo.

144

Para Calixto Salomo Filho, a sociedade annima a organizao societria capitalista mais
sofisticada, razo pela qual demonstra-se vlido e coerente considerar que o prprio sistema
econmico capitalista sempre estar caracterizado por sua natureza mercantil, assim como a empresa.
(Teoria crtico-estruturalista do Direito Comercial, So Paulo, Marcial Pons, 2015, p. 125).

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

2.5. O retorno ao problema da autonomia e a constitucionalizao do direito


comercial

A partir da vigncia do Cdigo Civil de 2002, dvidas foram mais uma vez
levantadas pela doutrina acerca da possvel extino do direito comercial como
disciplina jurdica de regulao da atividade empresarial. Desde o Cdigo Civil italiano
de 1942, discute-se a respeito do problema da autonomia do direito comercial, como
questo metodolgica determinante na fixao das linhas dominantes de investigao
cientfica nesse campo.145
Contudo, partindo da prpria disciplina constitucional na esfera da competncia
legislativa, cabe considerar que o art. 22, inciso I, da Constituio de 1988, vem a
reconhecer, dogmaticamente, o direito comercial como disciplina jurdica autnoma,
dotada de contedo normativo especfico.
Para a determinao preliminar do objeto dominantemente mercantil, que
continua a ser regulado pela legislao comercial supletiva especial, cabe destacar,
alm de todos os tipos de contratos mercantis no disciplinados no Cdigo Civil de
2002, as matrias referentes s sociedades annimas (Lei 6.404/1976), propriedade
industrial (Lei 9.279/1996), e tambm legislao falimentar (Lei 11.101/2005).
De modo bastante elucidativo, Rubens Requio considerava que ser ilusria
a unificao do direito obrigacional se permanecer a falncia como instituto
especificamente mercantil.146 Esta simples observao, agora mais ainda reforada
com a vigncia da lei de recuperao de empresas e falncias (Lei 11.101/2005), que
manteve a natureza estritamente mercantil do procedimento falimentar, evidencia que
o direito comercial no perdeu a sua autonomia cientfica e normativa em decorrncia
do Cdigo de 2002.

145
146

Fran Martins, Curso de Direito Comercial, cit., p. 25.


Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 23.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

No deixa de revelar-se oportuna, neste ponto, a opinio de Joaqun Garrigues,


para quem a construo da teoria da empresa mercantil constitui atualmente a nova
misso do direito comercial.147 preciso, pois, e esta uma das perspectivas deste
trabalho, (re)elaborar uma nova base conceitual e dogmtica para o direito comercial
brasileiro, visando no s evidenciar o objeto prprio que diferencia o seu contedo
das demais normas de direito comum, mas tambm repensar a sua estrutura didtica
para efeitos do ensino, nas universidades, do direito de empresa como disciplina
autnoma.
Carvalho de Mendona, embasado nas lies de Alberto Asquini, j observara
que a diviso do direito privado em direito civil e direito comercial mais histrica do
que cientfica.148 Essa realidade sempre resultou, segundo ele, da inrcia do
legislador, que foi incapaz de acompanhar o contnuo desenvolvimento das relaes
jurdicas econmicas, e da se formou lentamente um grande depsito de usos,
costumes e doutrina, que passaram a ser leis de exceo, e que de leis passaram a
ser cdigos.149 De outra parte, o direito comercial no tem o seu contedo limitado
disciplina da empresa e de suas operaes, na medida em que abrange outras reas
especficas de normatividade, como a sociedade mercantil, o estabelecimento
comercial, o regime da propriedade industrial, dos ttulos de crdito e da falncia,
como destacado por Ferrara e Corsi.150
O direito comercial, no curso histrico da sua evoluo, veio a separar-se do
direito civil exatamente em razo da especialidade da sua matria, da dinamicidade
da atividade empresarial, da presena de contratos em massa, diante do carter
esttico, individualista e conservador do sistema civilista.151

147

Joaqun Garrigues, Tratado de Derecho Mercantil, Madrid, Revista de Derecho Mercantil, 1947,
tomo I, p. 25.
148 J. X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, cit., p. 23.
149 J. X. Carvalho de Mendona, cit., p. 23.
150 Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi, Gli Imprenditori e Le Societ, Milano, Giuffr, 13
edizione, 2006, p. 19.
151 Manifestando opinio contrria unificao do direito privado na Itlia, Alfredo Rocco assim
considerava: Acreditamos, portanto, na existncia de princpios gerais do direito comercial, ou seja, de
normas gerais aplicveis a todo o campo do direito comercial e s a ele, e acreditamos, outrossim, em
que o direito comercial, apesar de sua inegvel fragmentao, se preste a um estudo orgnico e
sistemtico e, em conseqncia, possa o seu conhecimento dar lugar a uma cincia autnoma a
cincia do direito comercial. Somos, portanto, pela conexo e no pela confuso, entre a cincia do
direito civil e a do direito comercial. (Princpios de Direito Comercial, cit., p. 91).

Teoria crtica da empresa

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Alm dessa caracterstica diferencial, Waldrio Bulgarelli distingue a atividade


comercial, em comparao com a atividade civil, a partir dos meios utilizados para a
obteno do lucro, finalidade inerente a toda empresa mercantil, obervando Bulgarelli
que a disciplina normativa da produo ou circulao das riquezas, como fenmeno
jurdico, pertence ao campo do direito comercial, que sob esse aspecto um corpo de
princpios e normas destinado a regular juridicamente as relaes oriundas de tais
fatos econmicos, e, portanto, autnomo, j que no se confunde com as normas
elaboradas no mbito do direito civil.152
Segundo Bulgarelli, so trs os princpios especficos que caracterizam o direito
comercial como disciplina autnoma, com objeto e mtodo bastante distintos do direito
civil:153
a) princpio da propriedade dinmica, derivado do modo de aquisio dos
instrumentos de produo e comercializao;
b) princpio da aparncia, que resulta da necessidade de segurana da atividade
mercantil e da prevalncia da boa-f nos negcios de massa;
c) princpio da uniformizao normativa, exigvel para a realizao das operaes
comerciais a nvel interno mas principalmente a nvel internacional, visando facilitar
as operaes mercantis.

Partindo desses princpios, cabe considerar que a regulao da atividade


comercial sempre esteve a exigir uma estrutura normativa adaptvel s constantes
mutaes do mercado concorrencial, ao aperfeioamento contnuo dos sistemas de
gerenciamento das empresas em busca da lucratividade e ao desenvolvimento
tecnolgico na produo dos bens de consumo e bens de capital. A concorrncia entre
as empresas representa o elemento motriz principal que impulsiona essa constante
evoluo, tanto que o sistema de direito positivo, desde o final do sculo XIX,
estabeleceu regimes de proteo da liberdade de mercado e de disputa saudvel da
clientela atravs de mecanismos antitruste e de represso concorrncia desleal,
situao que, salvo rarssimas excees, no se verifica nas relaes de natureza
civil.

152
153

Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 57-58.


Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 58-59.

Teoria crtica da empresa

91

Ivanildo Figueiredo

O direito comercial, segundo Paulo Roberto Arnoldi, apoiado nas lies de Fran
Martins, caracteriza-se pela simplicidade das suas frmulas, pela internacionalidade
de suas regras e institutos, pela rapidez de sua aplicao, pela elasticidade dos seus
princpios e pela necessria onerosidade de suas operaes,154 de modo que tais
caractersticas so inteiramente diferentes daquelas que observamos no direito civil
solene, formal, de regras e princpios estticos, em que suas relaes nem sempre
so onerosas.
Para Rubens Requio, o direito comercial se diferencia do direito civil em razo
de seus traos peculiares, relacionados ao cosmopolitismo, individualismo,
onerosidade, informalismo, fragmentarismo e solidariedade presumida.155
As operaes das empresas caracterizam-se como negcios em massa,
principalmente sob a modalidade da compra e venda mercantil, e se realizam de modo
repetitivo, despidas de maior rigorismo formal.156 Qualquer compra e venda comercial
vista realiza-se de modo quase instantneo, pela entrega da mercadoria contra o
pagamento do preo. A prova do contrato resume-se a uma nota fiscal, recibo ou
extrato de carto de dbito ou crdito, atestando a quitao.
A diferenciao entre o modo de execuo das atividades comerciais e dos
negcios civis flagrante e bvia a partir de qualquer critrio de observao,
exatamente por conta dos elementos dominantes da profissionalidade, da
especialidade, da onerosidade e da competitividade econmica nas relaes
mercantis.157

154 Paulo Roberto Colombo Arnoldi, Teoria Geral do Direito Comercial, So Paulo, Saraiva, 1998, p.
17.
155 Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 31.
156 No tocante ao modo de execuo dos negcios mercantis, Waldemar Ferreira considera que a
simplicidade na forma e rapidez nas operaes constituem, em suma, predicado do comrcio; e esse
o esprito animador do direito mercantil, de tal modo que estaria fora do comrcio o negociante que
imprimisse aos seus atos e contratos formalismo de tabelio e no sentisse a intensidade da vida
mercantil contempornea. (Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. I, A histria e a doutrina
do direito mercantil, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2 edio, 1948, p. 125).
157 Toda e qualquer organizao empresarial deve estar dotada, como requisito essencial de
funcionamento e sobrevivncia no regime concorrencial, de estruturas organizacionais aptas
implementao de estratgias comerciais ou industriais compatveis com as demandas do mercado.
Sensvel a essa realidade, Oscar Barreto Filho esclarece: No so apenas as diferenas de estrutura,
de critrios de pesquisa e de mtodo que devem ser consideradas, em relao ao tema da autonomia
do Direito Comercial. Pode at acontecer que, formalmente, no haja uma diferena estrutural entre

Teoria crtica da empresa

92

Ivanildo Figueiredo

O reconhecimento da autonomia do direito comercial no se resume, pois, a


mera anlise dos aspectos distintivos entre o contedo da matria comercial em
contraposio com a matria civil. Alm das diferenas at aqui ressaltadas, cumpre
considerar os elementos cientificamente destacados como inerentes a cada um
desses campos de regulao normativa. Nesse contexto, alm da anlise da matria
ou do objeto normativamente disciplinado pelo direito comercial, o carter
especializado desse ramo do direito privado assume contornos exclusivos,
desdobrados em trs nveis de autonomia:
a) Autonomia formal ou legislativa, que tem como fundamento dogmtico a
especialidade do direito comercial, inserta no art. 22, inciso I, da Constituio
Federal, cujo comando separa ou diferencia as normas comerciais das normas
de direito civil;
b) Autonomia didtica, concernente ao ensino do direito comercial como disciplina
prpria, constante dos currculos acadmicos, separada das cadeiras de direito
civil;158
c) Autonomia cientfica ou substancial, a qual determina, cientificamente, a

matria de um ramo do direito em comparao com os demais, isolando o seu


contedo em razo de seu carter prprio e original, ainda que esteja submetido
a uma legislao codificada unificadora.159

Estando presentes esses trs aspectos caracterizadores da autonomia em


determinado ramo do direito, no h como negar a existncia de disciplina prpria,
especializada e diferenciada do tronco geral. Seja, pois, em razo da sua
historicidade, seja em virtude das peculiaridades inerentes ao seu objeto normativo, o
direito comercial continuar a manter natureza distinta e inteiramente separada ou
diferenciada do direito civil. Logo, o direito civil destina-se a regular a matria civilista,
das pessoas e de suas relaes obrigacionais com bens, e as relaes de famlia e
um negcio jurdico celebrado para obter o gozo de um bem, e outro negcio jurdico visando
obteno de bens para o mercado, mas, substancialmente, h uma diferena fundamental de posies.
A satisfao das necessidades do mercado exige no s uma organizao especializada e diferenada,
como reclama uma instrumentao tcnica e, ainda mais, uma atividade criadora que no existe na
vida civil comum. Na atividade mercantil, as relaes econmicas apresentam-se e so reguladas tendo
em vista sua atuao dinmica, no sua posio esttica. (Teoria do estabelecimento comercial,
So Paulo, Saraiva, 2 edio, 1988, p. 17-18).
158 Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, A demonstrao irrespondvel, porm, de que a autonomia do
direito comercial no comprometida nem pela unificao legislativa do direito privado, nem pela teoria
da empresa, encontra-se nos currculos dos cursos jurdicos das faculdades italianas. J se passaram
60 anos da unificao legislativa e da adoo da teoria da empresa na Itlia, e o direito comercial
continua sendo tratado l como disciplina autnoma, com professores e literatura especializados.
(Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 42).
159 Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 55.

Teoria crtica da empresa

93

Ivanildo Figueiredo

sucesses, ao passo que o direito comercial destina-se a regular as atividades das


empresas, obrigaes e processos do trfico mercantil, das relaes de produo e
de comercializao no ambiente da economia de mercado.
Ressaltando as principais caractersticas distintivas entre o direito comercial e
o direito civil, Paulo Roberto Arnoldi apresenta o seguinte quadro-resumo que destaca,
de modo elucidativo, as diferenas marcantes entre os dois ramos principais do direito
privado:160
Direito civil
Mtodo dedutivo
Normas estticas
ndole conservadora
Carter formal
Prtica de atos isolados
Onerosidade no presumida
Regulao nacional ou interna

Direito comercial
Mtodo indutivo
Normas dinmicas
ndole inovadora
Carter informal
Prtica de atos em massa
Onerosidade inerente
Regulao interna e internacional

A primeira e principal diferena, como evidenciado no quadro acima, decorre


do prprio mtodo do direito civil frente ao direito comercial. As normas de direito civil,
em especial aquelas constantes do regime codificado, foram elaboradas, e assim
devem ser interpretadas, segundo o mtodo dedutivo, isto , do geral para o particular.
O direito civil, historicamente considerado, sempre foi formulado a partir de institutos
fundamentais e categorias superiores do direito. Assim se pode observar nos
conceitos de pessoa, de capacidade jurdica, de fato jurdico, de negcio jurdico, nas
relaes de propriedade, de famlia e de sucesses. A partir desses institutos e
categorias fundamentais, todos os demais elementos das relaes jurdicas de ordem
civil devem ser apreendidos e interpretados.
O mtodo do direito comercial, ao reverso, o mtodo indutivo, produzido pelas
categorias cientficas, mas resultantes dos fatos particulares ou individuais para as
categorias gerais. O mtodo indutivo desenvolve-se a partir dos referenciais
particulares, dos usos, costumes e prticas mercantis, para em seguida serem
definidos e transformados em categorias jurdicas gerais, ou seja, nas hipteses

160

Paulo Roberto Colombo Arnoldi, Teoria Geral do Direito Comercial, cit., p. 41.

94

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

concretas que passaro a constituir regras especiais.161 A induo representa no


apenas o modelo emprico normal de positivao de condutas verificadas na prtica,
mas o modo de apreenso e interpretao das atividades empresariais, fundadas nos
princpios constitucionais da livre iniciativa, da funo social da empresa, da
autonomia da vontade e da liberdade de contratar.
Outro aspecto distintivo destacado no quadro acima a natural dinamicidade
das normas de direito comercial, que vo sendo modificadas, atualizadas e adaptadas
para assim regular novos tipos de negcios e contratos empresariais conforme assim
seja do interesse ou da livre criao da empresa. Apesar das crticas que sempre
foram dirigidas ao Cdigo Comercial de 1850, na verdade inapropriado para a
regulao da atividade comercial no sculo XX, e mais ainda no presente sculo XXI,
a legislao comercial passou a se concentrar em leis especiais que, com o decorrer
dos anos, superaram em quantidade a disciplina do vetusto Cdigo do Imprio, de tal
modo que o direito comercial passou a ser quase que totalmente regulado na
legislao especial e nos microssistemas normativos, a exemplo dos institutos do
registro de empresas, da sociedade por aes, da propriedade industrial e da
recuperao de empresas e falncia.
Postas

essas

distines

apontadas

pela

doutrina

dominante

como

caracterizadoras da autonomia do direito comercial, por este possuir um objeto prprio


(a matria mercantil), um mtodo diferenciado do direito civil, e ser formalmente
reconhecido como ramo especfico do direito positivo pela Constituio, dvidas no
deveriam mais remanescer no que se refere a essa questo da autonomia.162
Partindo de uma anlise mais singela e objetiva, Srgio Campinho entende que
a disciplina do Cdigo de 2002 no ir alterar a autonomia do direito comercial, sob
a nova veste do direito de empresa, embora tenha ocorrido a sua unificao legislativa

161 O direito comercial o nico ramo do direito que dispe, ainda que de escassa aplicao, de
procedimento prprio de positivao de prticas mercantis na esfera da jurisdio administrativa das
Juntas Comerciais, denominado de assentamento de usos e prticas mercantis (Lei n 8.934/1994, art.
8, inciso VI; Decreto 1.800/1996, art. 87), procedimento este que confirma a predominncia do mtodo
indutivo na formao das normas comerciais.
162 A Primeira Jornada de Direito Civil do Conselho da Justia Federal, realizada em 2012, aprovou o
enunciado 75, esclarecendo que A disciplina de matria mercantil no novo Cdigo Civil no afeta a
autonomia do Direito Comercial.

95

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

com o direito civil.163 O prprio jurista coordenador do projeto do Cdigo de 2002,


Miguel Reale, no seu discurso proferido por ocasio da sano presidencial do atual
Cdigo Civil, reconheceu que o novo sistema do direito de empresa no implicaria na
supresso do direito comercial como disciplina jurdica autnoma.164
Sob o aspecto estritamente dogmtico-formal, todavia, necessrio considerar
que a autonomia do direito comercial tem seu superior fundamento de validade na
ordem constitucional. Da mesma maneira que a moderna doutrina do direito civil
evoluiu para uma viso sistmica dos institutos e relaes de direito privado a partir
da disciplina constitucional, demonstra-se plenamente cabvel desenvolver uma teoria
sobre a constitucionalizao do direito comercial. Afinal, o direito comercial, tal como
o direito civil, tambm possui sua sede de validade na Constituio, na mesma regra
constante do art. 22, inciso I, da Lei Maior.
A

propsito,

cabe

observar

que,

assim

denominada

teoria

da

constitucionalizao do direito civil, desenvolvida pelo doutrinador italiano Pietro


Perlingieri, considera que o papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos
mais tradicionalmente civilsticos quanto naqueles de relevncia publicista,
desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto constitucional.165 A partir
do momento em que a Constituio regula situaes e relaes jurdicas que antes
eram matria prpria do Cdigo Civil, a norma geral deixa de ser a lei civil codificada,

163 Sergio Campinho justifica a autonomia do Direito Comercial assim considerando: A uma, porque a
Constituio Federal de 1988, ao dispor sobre as matrias de competncia privativa da Unio, ainda
se refere autonomamente ao Direito Comercial (art. 22, I). A duas, porque a autonomia didtica e
cientfica no vem afetada pelo tratamento em um nico diploma legal. A trs, porque a adoo da
teoria da empresa no compromete essa autonomia, na medida em que ao empresrio o exerccio
empresarial da atividade econmica se aplica toda legislao relativa atividade mercantil no
revogada (Cdigo Civil, art. 2.037). (O Direito de Empresa luz do novo Cdigo Civil, Rio de
Janeiro, Renovar, 4 ed., 2004, p. 6).
164 Miguel Reale manifestou-se expressamente sobre a autonomia do direito comercial com as
seguintes palavras: indispensvel ponderar que o novo Cdigo Civil no abrange todo o Direito
Privado, mas to somente as questes que emergem da unidade do direito das obrigaes, como o
caso das normas relativas atividade empresarial, permanecendo, pois, intocvel o direito comercial
com a respectiva legislao especial. (Discurso na cerimnia de sano do novo Cdigo Civil no
Palcio do Planalto, em 10/01/2002, http://www.miguelreale.com.br, 25/02/2007).
165 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil Introduo ao Direito Civil Constitucional, Rio de
Janeiro, Renovar, 2 edio, 2002, p. 6.

Teoria crtica da empresa

96

Ivanildo Figueiredo

e essas relaes passam a ter como fonte formal a prpria norma constitucional,
fundamento superior de validade do sistema de direito positivo.166
Desse aspecto decorre o sentido da perda da centralidade do Cdigo Civil, que
deixou de ser o estatuto dos direitos individuais personalssimos e da propriedade,
para se posicionar como norma de segundo grau, que deve manter estreita
compatibilidade com a lei fundamental do sistema, subordinado matria
constitucional.
A Constituio, na teoria positivista de Hans Kelsen, representa um princpio
supremo determinando a ordem estatal inteira e a essncia da comunidade
constituda por essa ordem, e como quer que seja ela definida, a Constituio
sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurdica que se quer apreender.167
Partindo, ainda, da idia de Kelsen da estrutura hierarquizada do ordenamento jurdico
como uma pirmide, em cujo pice localiza-se a Constituio positiva, todos os ramos
do direito possuem um nico e superior fundamento de validade, e a vigncia e
aplicabilidade de suas normas deriva dessa relao de suprainfra ordenao, da
norma superior para a norma inferior, na abordagem categorial do jusfilsofo Lourival
Vilanova, da Escola de Direito do Recife.168
No direito positivo brasileiro, a Constituio da Repblica de 1988 elevou
categoria de norma constitucional diversos princpios e institutos de garantia dos
direitos da personalidade, da dignidade da pessoa humana, da funo social da
propriedade e dos contratos e de proteo da famlia, que so tpicas relaes e
situaes jurdicas de direito privado. Nesse sentido, considera Gustavo Tepedino
que, diante do novo texto constitucional, foroso parece ser para o intrprete
166

Na viso de Gustavo Tepedino, O ocaso das codificaes, visualizado entre ns j pelo saudoso
Professor Orlando Gomes, coincide com a absoro, pelo texto constitucional, do papel de reunificao
do sistema, temperando, com seus princpios e normas hierarquicamente superiores, as presses
setoriais manifestadas nas diversas leis infraconstitucionais. (O velho Projeto de um Revelho Cdigo
Civil, in Temas de Direito Civil, cit., p. 500).
167 Hans Kelsen, Jurisdio Constitucional, So Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 130.
168 Lourival Vilanova aprofunda, partindo das lies de Kelsen, o significado do princpio da continuidade
normativa no interior do sistema jurdico, esclarecendo que uma proposio normativa s pertence ao
sistema se podemos reconduzi-la proposio fundamental do sistema, e de tal modo que cada
norma provm de outra norma e cada norma d lugar, ao se aplicar realidade, a outra norma, para
assim situar a homogeneidade do sistema de direito positivo no processo de produo de normas
jurdicas a partir de um nico fundamento de validade. (As estruturas lgicas e o sistema do direito
positivo, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, p. 108-109).

Teoria crtica da empresa

97

Ivanildo Figueiredo

redesenhar o tecido do Direito Civil luz da nova Constituio, deslocando para a


tbua axiolgica da Constituio da Repblica o ponto de referncia antes localizado
no Cdigo Civil.169
O princpio da livre iniciativa ou livre empresa, justificador da natureza
capitalista do sistema da economia de mercado, encontra-se consagrado como
fundamento da prpria Repblica no inciso IV do art. 1 da Constituio Federal, bem
como vem repetido no caput do art. 170, como fundamento da prpria ordem
econmica.170 O art. 5, inciso XXIX, da Constituio, assegura aos autores de
inventos industriais privilgio temporrio para sua utilizao, bem como proteo s
criaes industriais, propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros
signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnolgico
e econmico do Pas.
O regime da propriedade industrial, matria tpica do direito comercial para a
proteo das marcas e patentes, regulada pela Lei n 9.279/1996, igualmente possui,
como referido acima, fundamento superior de validade no sistema constitucional.
De modo correlato, a Constituio Federal estabelece, no Ttulo VII, da Ordem
Econmica e Financeira, nos artigos 170 a 174, princpios aplicveis atividade
empresarial privada, ao ressaltar que a ordem econmica fundada na valorizao do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna,
conforme os ditames da justia social (art. 170). Nos incisos desse dispositivo
constitucional, encontram-se elencados os denominados princpios instrumentais da
ordem econmica e, dentre os mais importantes, podemos destacar os princpios da
propriedade privada, da funo social da propriedade ou da empresa, da livre

169

Gustavo Tepedino, Premissas metodolgicas para a constitucionalizao do Direito Civil, in


Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 3 edio, 2004, p. 13.
170 A conexo do princpio da livre iniciativa com outros princpios constitucionais inerentes aos direitos
fundamentais assim explicada por Lafayete Josu Petter: A livre iniciativa, ainda, bem compreendida,
no s substancia alicerce e fundamento da ordem econmica, como tambm deita razes nos direitos
fundamentais, aos quais se faz nsita uma especial e dedicada proteo. Se o caput do art. 5 se
encarregou de garantir o direito liberdade, no vis econmico ela ganha contornos mais precisos
justamente na livre iniciativa. Pois se livre o exerccio de qualquer trabalho, ofcio ou profisso (CF,
art. 5, XIII), esta liberdade compreende tambm a liberdade de se lanar na atividade econmica,
sendo ento assegurados a todos o livre exerccio de qualquer atividade econmica (CF, art. 170,
pargrafo nico). (Princpios constitucionais da ordem econmica, So Paulo, Revista dos
Tribunais, 2005, p. 163).

Teoria crtica da empresa

98

Ivanildo Figueiredo

concorrncia, da defesa do consumidor e do tratamento favorecido s empresas de


pequeno porte.
No campo da proteo da livre concorrncia, o art. 173, 4, da Constituio
enuncia que A lei reprimir o abuso do poder econmico que vise dominao dos
mercados, eliminao da concorrncia e ao aumento arbitrrio dos lucros. Esta
disposio normativa evidencia, partindo de conceitos gerais, as prticas
anticoncorrenciais que devem ser legalmente vedadas e reprimidas nas atividades
empresariais, como hoje encontra-se regulamentado na Lei n 12.529/2011.171
A partir desses referenciais principiolgicos e categoriais essenciais presentes
nas normas constitucionais que estabelecem os fundamentos da ordem econmica e
da atividade empresarial, afigura-se lgico retirar diretamente da Constituio positiva
o pressuposto de validade de todo o ordenamento de direito comercial e da legislao
infraconstitucional de regulao da empresa privada. Em qualquer rea do direito
privado, seja no direito civil, seja no direito comercial, sempre resultaro das
disposies superiores da Constituio as diretrizes dirigidas ao legislador
infraconstitucional e ao intrprete da norma aplicvel a determinada relao ou
negcio jurdico.172 A mesma lgica adotada para o deslocamento do centro normativo
irradiador de princpios e pressupostos para a esfera constitucional, que vlida para
o direito civil, tambm se revela apropriada e consetnea para o direito comercial, a
partir das normas acima citadas, que se dirigem fixao superior de uma disciplina
da atividade empresarial no regime da economia de mercado.

171 A Lei n 12.529/2011 define a atual estrutura do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrncia SBDC, tendo como rgo superior o Conselho Administrativo de Defesa Econmica CADE,
estabelecendo as normas de direito regulatrio relativas preveno e represso s infraes contra
a ordem econmica (CF, art. 173, 4).
172 No caso do direito civil e das normas civis codificadas, Gustavo Tepedino assim considera a respeito
da necessidade de se recorrer, em carter preliminar, disciplina constitucional, para fins de
interpretao e aplicao das normas inferiores na regulao das relaes privadas: Da a
imprescindibilidade da utilizao direta e imediata das normas constitucionais nas relaes jurdicas
privadas, sobretudo quando proliferam clusulas gerais e conceitos indeterminados, prprios da atual
tcnica legislativa. Do ponto de vista subjetivo, a norma constitucional fixa os limites de atuao
valorativa do intrprete. Do ponto de vista objetivo, reformula os modelos normativos
infraconstitucionais utilizados pelo intrprete, construindo-os segundo a axiolgica constitucional. (O
novo e o velho Direito Civil, in Temas de Direito Civil, Tomo II, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p.
401).

99

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Partindo da concepo da constitucionalizao do direito comercial, o problema


da autonomia desaparece como questo a ser enfrentada e discutida. Essa questo,
assim,

fica

superada,

considerando

predominncia

da

fundamentao

constitucional, a partir da qual so estabelecidos os princpios e as funes


estruturantes do regime econmico. A Constituio Federal (art. 22, inciso I)
reconhece, em definitivo, o direito comercial como disciplina prpria, autnoma e
especial de regulao das atividades das empresas no regime da economia de
mercado.

Teoria crtica da empresa

100

Ivanildo Figueiredo

Captulo 3
A concepo da empresa no Cdigo Civil de 2002

3.1. Contedo e conexo histrica do regime do direito de


empresa; 3.2. A desmercantilizao da empresa no
Cdigo de 2002; 3.3. Concesses ao carter comercial dos
atos das empresas; 3.4. Principais contradies no regime
do direito de empresa; 3.5. A tentativa de compilao e
consolidao de normas defasadas no regime do direito de
empresa.

3.1. Contedo e conexo histrica do regime do direito de empresa

O Cdigo Civil de 2002, como aqui exposto, introduziu uma nova e diferente
concepo na normatizao da atividade empresarial no Brasil, atravs do sistema do
direito de empresa, em substituio ao antigo regime do comerciante e dos atos de
comrcio, que eram disciplinados pelo vetusto e ultrapassado Cdigo de Comrcio do
Imprio, de 1850.
A partir da anlise da disposio e do contedo das normas do Cdigo Civil de
2002, em comparao com o Cdigo Civil de 1916, constatamos que a principal
inovao do Cdigo, a mais radical das mudanas, refere-se introduo desse novo
livro, o Livro II, intitulado Do Direito de Empresa. Isto porque todos os demais livros
e ttulos do Cdigo de 2002 reproduzem, fielmente, o contedo e os institutos
tradicionais do sistema civil codificado e do diploma revogado (Parte Geral, Direito das
Obrigaes, Direito das Coisas, Direito de Famlia e Direito das Sucesses), da forma
como foi moldado desde as Institutas de Justiniano, em 533 DC.173

173

Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, Institutas do Imperador Justiniano, Bauru, Edipro, 2001.

Teoria crtica da empresa

101

Ivanildo Figueiredo

Dentre as principais mudanas promovidas na regulao da empresa pelo


Cdigo Civil de 2002, revela-se essencial destacar as seguintes:
a)

A revogao de toda a parte primeira do Cdigo Comercial de 1850 (arts. 1 a 456),


cuja matria passou a ser regida, parcialmente, pelo Cdigo Civil;

b) A unificao parcial de institutos e conceitos tradicionais e histricos do direito


comercial, como as matrias relativas s sociedades mercantis, aos ttulos de
crdito e aos contratos e obrigaes, com sua incorporao, tambm parcial, ao
novo Cdigo;
c)

A supresso da dicotomia ou distino entre atividade comercial ou mercantil e


atividade civil, com a finalidade de submeter todas as atividades econmicas
privadas regulao pelas normas gerais do direito civil, da resultando a
conseqente tentativa de supresso da autonomia didtica e cientfica do direito
comercial.

Sob o ponto de vista metodolgico, na opinio de Gustavo Tepedino,174 so


duas as principais caractersticas que podemos extrair do Cdigo Civil de 2002, em
comparao com a legislao anterior revogada:
1. Unificao do direito das obrigaes; e
2. A adoo da tcnica das clusulas gerais, ao lado da tcnica regulamentar, como
resultado de um processo de socializao das relaes patrimoniais,
introduzindo-se no direito codificado a funo social da propriedade privada e da
atividade contratual.

Apesar da referncia a esse processo de socializao das relaes


patrimoniais,175 em todo o livro do direito de empresa no existe nenhuma meno,
direta ou indireta, funo social da atividade empresarial, apesar desse princpio
constar da Constituio de 1988 (art. 170, III), como um dos princpios basilares da
ordem econmica.
Em termos materiais, ou seja, de contedo, as normas reguladoras da empresa
contidas no Cdigo de 2002 modificaram, significativamente, os conceitos e institutos

174 Gustavo Tepedino, Crise de fontes normativas e tcnica legislativa na parte geral do Cdigo
Civil de 2002, cit., p. 6.
175 A referncia socializao das relaes patrimoniais consta, por exemplo, no art. 421 do Cdigo,
ao se referir funo social do contrato, assim como no pargrafo nico do art. 1.228, que trata da
funo social da propriedade.

Teoria crtica da empresa

102

Ivanildo Figueiredo

aplicveis s atividades empresariais, que antes eram disciplinadas pelo Cdigo


Comercial de 1850 e pela legislao comercial supletiva.
Todavia, grande e significativa parte das disposies relativas ao direito de
empresa constantes do Cdigo Civil de 2002, representa, como ser adiante
observado, mera reproduo ou adaptao de normas anteriores, que se
encontravam dispersas em vrias leis, umas positivas, outras revogadas. Sem
embargo, sob o aspecto material, o Cdigo Civil de 2002 tambm promoveu a
consolidao, em um s diploma legal, de vrios institutos, conceitos e regras de
direito comercial de h muito conhecidos e tratados pela lei, doutrina e jurisprudncia
do nosso pas. Nessa perspectiva de contedo, portanto, foram poucas e superficiais
as inovaes inseridas pelo regime codificado.
Do ponto de vista formal, todavia, o Cdigo de 2002 introduziu alteraes
profundas na concepo jurdica em voga, ou seja, no mtodo de abordagem do
fenmeno empresarial no mbito do direito positivo brasileiro. A questo formal diz
respeito ao modo como a empresa deve ser concebida, reconhecida e regulada pelo
sistema jurdico.
Essas inovaes no se limitaram, apenas, figura da empresa, mas de toda
a atividade empresarial e do modo como essa atividade at ento era regulada pelo
direito comercial, ao introduzir, no Brasil, um sistema voltado unificao de institutos
e conceitos de direito privado. Essa nova disciplina reproduz, ainda que de modo
parcial ou incompleto, a concepo subjetivista do direito de empresa do Cdigo Civil
Italiano de 1942.
Alm do mais, como afirmado acima, esse aparentemente inovador regime
jurdico do direito de empresa foi positivado pela nossa legislao de modo artificial,
sem respeitar as bases histricas, culturais e a longa formao consuetudinria do
direito comercial brasileiro, ao reproduzir, de modo quase literal, conceitos, regras e
princpios importados, sem nenhuma adaptao terica, do sistema fascista italiano.176

176

Analisando os problemas metodolgicos decorrentes do novo regime da empresa resultante do


Cdigo Civil de 2002, Fbio Ulhoa Coelho observa: Ignorando as especificidades do direito comercial,
e seus princpios prprios, a unificao legislativa acabou no somente contribuindo enormemente para

Teoria crtica da empresa

103

Ivanildo Figueiredo

Com efeito, o Cdigo de 1942 da Itlia foi moldado sob distinta base
deontolgica, formado noutra realidade histrica, ideolgica e scioeconmica, e que
se revela, como adiante demonstrar-se-, totalmente inapropriado para reger as
atividades empresariais no ordenamento jurdico brasileiro, especialmente no sculo
XXI, em plena era tecnolgica, da globalizao e da internacionalizao dos
mercados. A transposio do Cdigo italiano de 1942 para o Cdigo Civil de 2002 no
observou, como concluso bvia, elementar, a evoluo histrica do direito comercial
brasileiro e as caractersticas da atividade econmica no Brasil e no mundo
globalizado e interconectado em tempo real, totalmente diverso da realidade de outra
poca e de outra cultura, em franca oposio aos princpios factuais que deveriam ser
respeitados, como assim ensinava Ascarelli.177
Esse Cdigo Civil italiano de 1942 foi promulgado em um perodo marcado pelo
maior conflito blico da histria da civilizao humana em todos os tempos, a Segunda
Guerra Mundial, iniciada pela poltica expansionista da Alemanha nazista, e apoiada
pelos dois outros pases do Eixo, a Itlia e o Japo. Na Itlia dominada pelo regime
do ditador Benito Mussolini desde 1923, o Cdigo Civil de 1942 teve como objetivo
principal reunir e unificar, em um nico diploma legislativo, todas as atividades
econmicas desempenhadas pelas pessoas, sociedades e entes privados. A ideia
dominante era que, a partir dessa unificao normativa totalitria, todas as pessoas

acentuar o esgarar dos valores da disciplina, como tambm privou a ordem jurdica nacional do
regramento adequado para o atual estgio de evoluo da nossa economia, fortemente integrada ao
processo de globalizao. A unificao legislativa foi um erro. preciso corrig-lo, o quanto antes. (O
futuro do direito comercial, So Paulo, Saraiva, 2011, p. 8).
177 Comentando a respeito do desenvolvimento histrico do direito comercial, Tullio Ascarelli assim
considerava: Fica claro que a especialidade do direito comercial no deriva da especialidade da
matria regulada, mas da emerso em determinados setores, de exigncias e valores de carter geral
e, como tal, suscetveis, no desenvolvimento histrico, de uma aplicao geral. No so as exigncias
tcnicas inerentes ao comrcio, indstria, produo, e por a afora, que necessariamente
determinam normas especiais, porque, se assim fosse, o direito estaria fora da histria, ou inserido
numa histria separada. O direito, e portanto tambm o direito comercial, no pode ser compreendido
fora da histria e a sua especialidade no pode ser posta em relao com exigncias tcnicas
imutveis, mas com o desenvolvimento histrico da nossa experincia jurdica, que vem
gradativamente afirmando por isso primeiramente em campos determinados novos princpios,
depois suscetveis de aplicaes mais gerais, justamente porque o direito no obedece no seu
desenvolvimento a preordenadas simetrias sistemticas, mas necessidade e conscincia dos
homens, cujas relaes regula, no ordenamento da convivncia social. (O desenvolvimento histrico
do Direito Comercial e o significado da unificao do Direito Privado, cit., p. 242).

Teoria crtica da empresa

104

Ivanildo Figueiredo

privadas, empresrios e trabalhadores, poderiam ser mais facilmente reguladas e


controladas pelo Estado fascista.178
Sendo produto dessa concepo totalitria, o Cdigo Civil de 1942 teve como
finalidade principal submeter tutela estatal todas as atividades de natureza civil,
comercial e tambm trabalhista, manifestadas na esfera econmica.
A atividade trabalhista, inclusive, estava contida no mesmo cdigo em parte
especfica, denominada Libro del Lavoro.179 O Libro ou Codigo del Lavoro abrangia,
inclusive, na sua esfera de regulao, as atividades empresariais, colocando o
empresrio na condio de empregado ou servidor do Estado, antes de reconhecer a
sua independncia e autonomia como detentor do capital especulativo e de risco.
Na verdade, a doutrina comercialista da Itlia, aps a clebre retratao de
Cesare Vivante,180 posicionou-se a favor da manuteno do sistema codificado
comercialista para regular a atividade empresarial, rejeitando a unificao do direito
privado, por no reconhecer no sistema unificado a devida resposta s demandas
178

Observa Renan Lotufo, quanto inspirao do Cdigo Italiano de 1942: O Cdigo Italiano de 1942
foi elaborado no perodo do fascismo de Mussolini, portanto, um Cdigo voltado para a produtividade,
para a produo em larga medida, mas sem qualquer referncia ao valor fundamental do ser humano.
O centro de toda aquela necessidade social, de toda aquela doutrina elaborada se deu no Projeto de
Cdigo Italiano, transformando tudo quanto possvel em regras produtividade. Tudo girava em torno
da produtividade em benefcio do Estado. (Da oportunidade da Codificao Civil e a Constituio,
em O Novo Cdigo Civil e a Constituio, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 17).
179 Cdigo Civil Italiano de 1942 - Libro Quinto (V), arts. 2.060 a 2.642.
180 As posies mutantes de Vivante sobre a dicotomia entre direito civil e direito comercial so assim
explanadas, com inigualvel didtica, por Paula Forgioni: No final do sculo XIX, acentua-se a crena
em que no mais se justificaria a existncia de um direito especial para os comerciantes. Na Itlia,
como sabido por todos, Vivante causa furor ao defender a tese da unificao do direito privado, em
aula inaugural da Faculdade de Direito de Bolonha, no ano de 1892. No haveria diferenas; no
haveria dicotomia. Vivante assim alinhavava a controvrsia: (I) a autonomia do direito comercial manterse-ia mais pela tradio do que pelas boas razes; (II) a dicotomia causaria danos de ndole social e
jurdica - pessoas que no so comerciantes ficam sujeitas s suas regras, feitas para os comerciantes
- e (III) prejuzos para o progresso cientfico, pois os comercialistas no estudariam as regras gerais.
Os "improvisados jurisconsultos" falariam, a toda hora, em contratos sui generis. No entanto, na 5
edio de seu Trattato di Diritto Commerciale, Vivante chega concluso de que a unificao do direito
privado no seria aconselhvel porque: (I) direito civil e direito comercial guardam profundas diferenas
de mtodos. Enquanto o direito comercial vale-se do mtodo indutivo (i.e., conclui-se a regra com base
nos fatos - a concluso mais geral do que a premissa), o direito civil lana mo daquele dedutivo
(partindo da premissa geral e chegando concluso individual); (II) o direito comercial de ndole
cosmopolita, que decorre do prprio comrcio; ao mesmo tempo em que (III) regula os negcios de
massa, que dariam origem a institutos tpicos do direito comercial (ttulos de crdito, circulao, portador
de boa-f etc.). Neste mesmo escrito, resta clara a principal diferena entre o direito civil e o direito
comercial: esprito diverso, "spirito di speculazione. (A interpretao dos negcios empresariais no
novo Cdigo Civil Brasileiro, Revista de Direito Mercantil Industrial, Econmico e Financeiro, So
Paulo, RT, v. 42, 2003, p. 26).

Teoria crtica da empresa

105

Ivanildo Figueiredo

emergentes e sempre dinmicas, bem como s exigncias negociais das empresas


mercantis.181
Os principais juristas italianos passaram a discutir a reforma do Cdigo
Comercial de 1882 com a finalidade de modernizar seus institutos em face da contnua
evoluo das relaes mercantis e das atividades das empresas. Foram criadas,
ento, duas comisses revisoras do Cdigo de 1882, a primeira tendo frente o
prprio Cesare Vivante, instituda no ano de 1922, e a segunda presidida pelo Senador
Mariano DAmelio, nomeada por Decreto Real de 1925.
Ambas as comisses revisoras partiram da mesma concepo dualista,
reconhecendo a plena autonomia cientfica e metodolgica do direito comercial. A
concepo objetivista dos atos de comrcio foi mantida, sendo atribuda empresa,
todavia, como organizao, importncia destacada. Essa posio seguia a tendncia
doutrinria italiana do incio do sculo XX, especialmente aquela resultante das lies
de Lorenzo Mossa.182 Na opinio de Mossa, a atividade comercial assume maior
relevo quando estruturada e organizada a partir da idia de empresa, constituindo as
organizaes empresariais centros econmicos dotados de individualidade, de tal
modo que tais entes produtivos passaram a exigir regulamentao mais especfica,
inclusive por representar atividade de relevante interesse social, distinta do interesse
particular.183
A empresa passou, assim, a ser reconhecida pela doutrina italiana como uma
organizao, a partir da qual se processam os atos mercantis, dotada de
especialidade e de caractersticas prprias, diferenciada da antiga figura do mercador
ou comerciante, que prevalecia na fase de codificao do sculo XIX. Como elemento
da empresa, a doutrina comea a definir os contornos de um novo conceito, o de
estabelecimento comercial (azienda ou patrimonio aziendale), que exprime o modo

181

Na opinio de Francesco Ferrara Junior, a empresa significa, essencialmente, o ente comercial por
excelncia, que deve ser regulada por regime prprio, como organizao mercantil: Commercio non
soltanto lo scambio, bens lorganizzazione per lo scambio. Non si ha vero commercio ladove manchi
limpresa o, rispettivamente, lazienda. (Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 13).
182 Lorenzo Mossa, I problemi fondamentali del diritto commerciale, 1926, apud Francesco Ferrara
Junior, Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 12.
183 Francesco Ferrara Junior, Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 13.

Teoria crtica da empresa

106

Ivanildo Figueiredo

como o empresrio organiza seus fatores de produo voltados para o alcance de


resultados econmicos.
O Cdigo Italiano de 1942 no refletia, portanto, a tendncia doutrinria da
poca, que considerava passvel de unificao, apenas, o direito das obrigaes, mas
no os institutos, conceitos e processos especializados do direito mercantil. A
elaborao do Cdigo de 1942 no seguiu os projetos elaborados pelas comisses
presididas por Cesare Vivante e Mariano DAmelio, mas foi concebido por uma
comisso ministerial nomeada, em 1940, pelo ditador Benito Mussolini, com a clara
inteno de impor, por sobre as atividades econmicas privadas, as necessidades
intervencionistas do Estado fascista em poca de esforo de guerra.184
A antinomia preliminar que se revela latente no regime do direito de empresa,
tal como adotado pelo Cdigo Civil brasileiro de 2002, alm de seguir um modelo
influenciado pelo regime totalitrio fascista, que esse Cdigo entrou em vigor j
superado, inclusive, pela prpria e natural evoluo legislativa subseqente,
considerando que seu projeto, enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional
em 1975, somente foi aprovado aps decorridos longos 27 anos de tramitao.
Sob este aspecto, outro problema que se destaca que, durante a tramitao
do projeto do Cdigo Civil no Congresso Nacional, por quase trs dcadas, poucas
foram as emendas de atualizao apresentadas ao livro do direito de empresa,
necessrias para adequar, poca, as suas normas aos novos princpios
reformadores da Constituio de 1988 e da nova disciplina da ordem econmica (CF,
artigos 170 a 174).
Alm da prpria defasagem histrica e cultural de sessenta anos entre o Cdigo
Civil italiano de 1942 e o Cdigo Civil brasileiro de 2002, observa-se que o nosso
cdigo j nasceu desconectado, por exemplo, dos modernos meios e procedimentos
de contratao no comrcio eletrnico, dos ttulos de crdito digitais, os quais
dominam significativa parte dos negcios do mercado empresarial na atualidade.
Essas crticas acerca da desatualizao legislativa, a maioria delas pertinentes, foram

184

Francesco Ferrara Junior, Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 13.

Teoria crtica da empresa

107

Ivanildo Figueiredo

objeto de percucientes contestaes e comentrios de juristas em seguida sano


do Cdigo de 2002.185
Com efeito, nesse longo perodo de tramitao do Cdigo no Congresso
Nacional, entre os anos de 1975 e 2002, vale mais uma vez lembrar, vrias reas de
conhecimento especializado do direito comercial evoluram, de modo autnomo, a
exemplo da prpria legislao das sociedades por aes (Lei 6.404/1976, com as
alteraes e atualizaes da Lei 8.021/1990, da Lei 9.457/1997 e da Lei 10.303/2001),
de defesa da concorrncia (Lei 8.884/1994, modificada pela Lei 12.529/2011), do
registro de empresas mercantis (Lei 8.934/1994), do regime da propriedade industrial
(Lei 9.279/1996), assim como de diversos tipos de contratos empresariais, como os
contratos de arrendamento mercantil (Lei 6.099/1974), de concesso comercial de
veculos automotores (Lei 6.279/1979), de franquia empresarial (Lei 8.955/1994), hoje
considerados entre os principais tipos contratuais utilizados para a regulao das
relaes mercantis de colaborao entre as empresas produtoras e distribuidoras de
bens e de servios.
Assim, toda essa normatividade anterior vigncia do Cdigo de 2002 revelase at bem mais atual, moderna e adaptvel s necessidades contemporneas das
empresas privadas, frente lei codificadora posterior. Nesse sentido temporal relativo
legislao superveniente, o direito de empresa tal como regulado no Cdigo Civil de
2002 representa, portanto, na esfera empresarial, legislao defasada ou
tecnicamente superada, principalmente quando confrontada com a evoluo do direito
comercial e do direito econmico nas ltimas dcadas do sculo XX e ao incio do
presente sculo XXI.186

185

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, Direito de Empresa, cit., p. 37; Gustavo
Tepedino, O novo e o velho Direito Civil, in Temas de Direito Civil, Tomo II, Rio de Janeiro, Renovar,
2006, p. 401; Rachel Sztajn, Teoria Jurdica da Empresa, So Paulo, Atlas, 2004, p. 9.
186 A propsito dos problemas que resultaram e esto resultando da insero do direito de empresa
pelo Cdigo Civil de 2002, Wilges Bruscato registra: As particularidades que envolvem a atividade
empresarial demonstram os inconvenientes da regulao do direito de empresa pelo Cdigo Civil, ainda
que seja uma tcnica possvel, devido unificao do sistema das obrigaes, j que muitas vezes no
atenta para as caractersticas que revestem as obrigaes mercantis e pode, com isso, trazer
desvantagens econmicas que tero reflexos negativos para a sociedade. O direito empresarial vem
sendo construdo ao longo do tempo de acordo com os ditames dos fatos que se prope a regular,
como qualquer outro ramo do Direito. Embora do Direito seja uno, acaba se subdividindo em vrios
ramos autnomos, como ressaltado, em especial, pelas especificidades de cada campo da vida
humana e social. Da a importncia do critrio cientfico de autonomia de uma rea do Direito. (Os

Teoria crtica da empresa

108

Ivanildo Figueiredo

3.2. A desmercantilizao da empresa no Cdigo de 2002

A adoo do regime do direito de empresa no Brasil, a partir do Cdigo Civil de


2002, decorreu, como visto, de pura elaborao legislativa, e no resultou de
nenhuma construo histrica, cultural ou consuetudinria resultante da nossa vasta
experincia jurdica. Sob a perspectiva evolutiva a partir da era atual, a tendncia
natural da poltica legislativa deveria resultar na revogao do Cdigo Comercial de
1850, diploma que se apresentava defasado diante da radical evoluo da economia
verificada desde o final do sculo XIX, e sua substituio por microssistemas
legislativos de direito empresarial.
Com efeito, o projeto do Cdigo de 2002 teve por objetivo declarado unificar o
direito das obrigaes no nosso sistema de direito positivo, a partir dos precedentes
do Cdigo das Obrigaes da Sua de 1881 e do Cdigo Civil italiano de 1942. O
prprio modo de concepo do projeto do Cdigo Civil brasileiro, orientado para a
idia de unificao do direito das obrigaes, representava construo estritamente
racionalista do direito, extrada de outros sistemas dogmticos europeus.
Esse processo de construo normativa, a partir de conceitos amplos e
institutos gerais, de formulaes tericas que guardam razes no iluminismo
racionalista, representa a marca caracterstica da elaborao dogmtica do direito
civil. Todavia, de modo oposto a essa concepo, o direito comercial sempre se
apresentou, ao longo dos sculos, como um ramo especializado do direito privado
formulado e construdo a partir dos usos e costumes mercantis que, desde o sculo
XVI, na fase do mercantilismo, passaram a ser positivados no direito estatal.
Sem embargo, a praxis mercantii e a ars mercatorum sempre formaram a base
consuetudinria sobre a qual as leis comerciais foram sendo moldadas ao longo dos

princpios do Cdigo Civil e o Direito de Empresa, Revista de Direito Mercantil, Industrial,


Econmico e Financeiro RDM, So Paulo, Malheiros, n 139, julho-setembro 2005, p. 60).

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

sculos. Raras so as instituies do direito comercial com origem na criao da pura


elaborao legislativa. A sociedade por quotas de responsabilidade limitada um dos
poucos exemplos dessa idealizao dos juristas no processo legislativo de base
racionalista.187
A experincia jurdica brasileira na esfera mercantil foi praticamente toda ela
moldada a partir do Cdigo Comercial da Frana de 1807, do Cdigo Comercial de
Portugal de 1833 e do nosso Cdigo Comercial de 1850, tomando por base a
concepo subjetivista do comerciante, compatibilizada com a concepo objetivista
dos atos de comrcio, mas respeitando a origem marcantemente consuetudinria
decorrente dos usos e prticas do comrcio.
A especializao da matria mercantil, no como atividade exclusiva dos
comerciantes, mas dos negcios comerciais, sempre representou a base dogmtica
do nosso direito comercial, sendo a empresa mera expresso moderna designativa
do exerccio dessa atividade. A transmutao dessa base dogmtica para o direito de
empresa, inserida no nosso direito positivo pelo Cdigo Civil de 2002, no decorreu
de nenhuma formao consuetudinria, nem tampouco foi fruto de qualquer
experincia acumulada, mas resultou de simples insero artificial de uma base
normativa tomada emprestada do direito italiano.
A concepo do direito de empresa adotada pelo Cdigo Civil de 2002 foi
elaborada e desenvolvida pela doutrina jurdica a partir de um movimento terico que
defendia a unificao do direito das obrigaes. O principal trabalho doutrinrio que
formulou as bases conceituais para a unificao do direito das obrigaes no campo
mercantil foi, sem dvida, obra do jurista italiano Cesare Vivante.188 Segundo Vivante,
o direto comercial alargou-se de tal modo, abrangendo as mais variadas relaes
econmicas, que converteu-se em direito comum. Desse modo, o direito comercial
no mais estaria apto a representar direito exclusivo da classe comercial, ou seja, dos
comerciantes, como assim era caracterstico na sua origem corporativa medieval.

187

Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, So Paulo, Atlas, 10 edio, 2001, p. 117.


Cesare Vivante, Per un codice unico delle obligazioni, Archive Giuridici, XXXIX, 1888, apud
Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit., p. 74-75.
188

Teoria crtica da empresa

110

Ivanildo Figueiredo

Diante do crescimento exponencial da atividade comercial na vida econmica


e no meio social ao final do sculo XIX, entendeu Vivante que tal situao estava
provocando uma excessiva e incmoda autonomia do direito comercial diante do
direito civil, quando, na sua concepo, o direito civil, por ser o repositrio dos
fundamentos e princpios gerais do direito privado, deveria, sempre, ser considerado
como a base conceitual do direito comercial. E a existncia de dois cdigos, um civil
e outro comercial, representaria, de fato, para Vivante, uma dificuldade adicional para
a regulao das atividades econmicas, que ficavam vinculadas, nesse contexto, a
duas ordens normativas distintas.
O que estava ocorrendo, de fato, com a expanso e profissionalizao do
comrcio, desde o sculo XIX, era uma antecipao ou viso prvia do fenmeno
consumerista que somente viria a transparecer no sculo seguinte. O direito comum
que ento se manifestava era o que atualmente conhecemos como direito do
consumidor. Enquanto o direito comercial era considerado como direito corporativo,
exclusivo dos comerciantes, as relaes de consumo, que ainda no mereciam tutela
especfica, continuavam margem da regulao protecionista do Estado. As relaes
e negcios entre comerciantes e consumidores eram aquelas que, efetivamente,
estavam a interferir sobre o denominado direito comum.
O movimento que defendia a unificao do direito privado significava, na
verdade, uma reao dos civilistas contra o processo denominado comercializao
do direito civil,189 tendncia histrica que se observou nos pases europeus ao final
do sculo XIX.190 Nessa poca, o direito comercial, em virtude da prpria dinamicidade,

189 A expresso comercializao do direito civil, como observado por Oscar Barreto Filho, foi pela
primeira vez empregada pelo jurista alemo Gabriel Riesser, e divulgada - e assim passou a ser mais
intensamente referida - a partir da obra de Georges Ripert, Trait Elementaire de Droit Commercial.
(Teoria do Estabelecimento Comercial, cit., p. 8). Na viso de Tullio Ascarelli, o direito das
obrigaes comercializa-se, segundo a frase de um grande comercialista, e isto a tal ponto que, quando
(como tambm aconteceu em alguns pases, por exemplo o Brasil) o Cdigo Civil posterior ao
Comercial, no Civil e no no Comercial que encontramos aqueles princpios que determinam os atos
propriamente comerciais. (O desenvolvimento histrico do Direito Comercial e o significado da
unificao do Direito Privado, cit., p. 241).
190 Considera Cssio Cavalli, a partir das lies de Hernani Estrela, que enquanto o direito civil
comercializava-se, o direito comercial transmudava-se internamente em sua estrutura e funo, se
esse fenmeno tinha como consequncia, de to profunda transformao, cada vez mais se tornam
fundidos no quadro amplo do direito privado os dois ramos, civil e comercial, e tambm mais confusas
se tornam as fronteiras de um e outro. (Direito Comercial: passado, presente e futuro, Rio de
Janeiro, Elsevier, FGV, 2012, p. 92).

Teoria crtica da empresa

111

Ivanildo Figueiredo

multiplicidade e complexidade das atividades mercantis, estava abarcando tipos


negociais que at ento e tradicionalmente, eram disciplinados com exclusividade
pelo direito civil, a comear pelo modelo contratual da compra e venda mercantil.191
Essa reao, movida no pelo instinto de sobrevivncia terica, mas pela
necessidade de afirmao do direito civil como um direito histrico e cientificamente
superior, que, na verdade, fomentou o movimento antimercantilista, o qual culminou
com as experincias dogmticas de subordinao, ainda que parcial, da atividade
comercial disciplina civilista no sistema normativo italiano.
No obstante, o Cdigo Civil italiano de 1942, mesmo promovendo a unificao
do direito das obrigaes em um nico diploma legal, manteve e continuou
reconhecendo a natureza mercantil das atividades econmicas desempenhadas pelos
comerciantes e pelas sociedades comerciais.
A unificao da parte obrigacional do direito privado no Cdigo da Itlia de 1942
foi efetivada dogmaticamente, destarte, respeitando a natureza mercantil das
atividades desempenhadas pelas empresas comerciais e industriais dedicadas a esse
especfico objeto. Nesse sentido, constata-se que o art. 2.195 do Cdigo Civil italiano,
de modo expresso, classifica os diversos tipos de empresas de acordo com seu
respectivo objeto, relacionando e fazendo meno, assim, s empresas industriais,
empresas de intermediao para a circulao de bens, empresas de transporte,
empresas bancrias e empresas de seguros, exemplos caractersticos de explorao
de atividades que, historicamente, sempre foram classificadas como comerciais.
O Cdigo italiano de 1942, no art. 2.220, distingue os tipos de sociedades que
podem ser constitudas para desempenhar atividade comercial, a partir da natureza
ou do tipo do objeto da empresa. Esse dispositivo contm meno ao exerccio de
atividade comercial, como assim expresso:

191 No mbito do direito das obrigaes, na viso de Ren David, o direito civil comercializou-se em
todos os pases economicamente desenvolvidos, a tal ponto que poucas regras ainda existem em que
as obrigaes comerciais sejam tratadas diferentemente das obrigaes civis, sendo que esse
fenmeno, em parte, decorreu das codificaes nacionais, que fizeram perder, por um lado, ao direito
comercial, o carter internacional que outrora o distinguia profundamente do direito civil. (Os Grandes
Sistemas do Direito Contemporneo, cit., p. 97/98).

Teoria crtica da empresa

112

Ivanildo Figueiredo

Art. 2.200 Societ - Sono soggette all'obbligo dell'iscrizione nel registro delle
imprese le societ costituite secondo uno dei tipi regolati nei Capitolo III e seguenti
del Titolo V e le societ cooperative (2511 e seguenti), anche se non esercitano
un'attivit commerciale.192

O Cdigo Civil brasileiro de 2002, ao contrrio do italiano, no definiu nenhuma


atividade econmica privada como sendo de natureza comercial ou mercantil. A
princpio, toda adjetivao funcional designativa da atividade mercantil ou comercial
foi banida pelo novo Cdigo, que adotou uma posio muito mais radical e
estereotipada do que aquela empregada pela sua fonte material de origem, o Cdigo
italiano de 1942.
Essa injustificvel esterilizao conceitual representa mais um motivo que vem
provocando dificuldades quase intransponveis para a compatibilizao terica do
regime de empresa com o sistema mercantilista, que, no obstante, continua
subsistindo na legislao extravagante ao Cdigo Civil e nos microssistemas de direito
comercial.
No regime do Cdigo Comercial de 1850, o comerciante e a sociedade
comercial dedicavam-se ao exerccio da mercancia (C.Com., art. 4), como atividade
econmica preponderante. A idia de mercancia deriva do objeto prprio da
comercializao, da mercadoria em si, considerada essencialmente como bem mvel,
tpico do contrato de compra e venda mercantil (C.Com., art. 191),193 celebrado
massivamente no mercado empresarial e de consumo.
No processo evolutivo do direito comercial, a definio do seu objeto material
sempre esteve relacionada com a finalidade mercantil da atividade econmica. Em
um primeiro momento histrico, essa concepo era de natureza subjetivista, porque

192

Sociedade - Esto sujeitas obrigao de inscrio no registro de empresas as sociedades


constitudas segundo um dos tipos regulados nos Captulos III e seguintes do Ttulo V e as sociedades
cooperativas (2.511 em diante), ainda que no exeram uma atividade comercial.
193 Cdigo Comercial de 1850, Art. 191 - O contrato de compra e venda mercantil perfeito e acabado
logo que o comprador e o vendedor se acordam na coisa, no preo e nas condies; e desde esse
momento nenhuma das partes pode arrepender-se sem consentimento da outra, ainda que a coisa se
no ache entregue nem o preo pago. Fica entendido que nas vendas condicionais no se reputa o
contrato perfeito seno depois de verificada a condio.

Teoria crtica da empresa

113

Ivanildo Figueiredo

centrada na figura do comerciante, pessoa fsica, tal como originrio dos estatutos das
corporaes de mercadores, sendo o direito comercial um direito de classe, formado
no seio da prtica mercantil.194
Com a codificao do direito mercantil, positivada no Cdigo Comercial da
Frana de 1807, a teoria subjetivista do mercador foi substituda pela concepo
objetivista fundada na teoria dos atos de comrcio. Para essa concepo objetivista,
o direito comercial tem por objeto regular a matria comercial, e esta determinada
por aquilo que a legislao define como sendo de natureza mercantil. Nesse sentido,
Rubens Requio afirma que a lei comercial que determina o que seja matria
comercial,195 definio esta que resultaria da simples aplicao de conceitos
dogmticos pela cincia do direito.
Na tentativa de explicar o fenmeno do comrcio na sua complexidade
imanente, vrias foram as teorias elaboradas para definir a matria comercial. Para
Alfredo Rocco, por exemplo, a atividade comercial compreenderia, como elemento
unitrio, a idia de interposio na troca,196 ou seja, deve ser considerada comercial
toda atividade econmica em que exista relao jurdica de intermediao econmica,
tendo como objeto uma mercadoria.
Contudo, somente essa concepo objetivista da comercialidade no se
demonstrava suficiente o bastante para explicar o fenmeno mercantil. A necessidade
de complementao recproca e conceitual entre a concepo subjetivista do
comerciante e a concepo objetivista dos atos de comrcio levou o comercialista
francs Jean Escarra a afirmar que o direito comercial , ao mesmo tempo, o direito
dos comerciantes e dos atos comrcio.197
Desconsiderando toda essa construo histrica sobre os elementos materiais
que definem o contedo do direito mercantil, o Cdigo Civil de 2002 ignorou qualquer
vestgio de comercialidade no momento de definir os conceitos de empresrio (art.
966), de sociedade empresria (art. 982) e de estabelecimento (art. 1.142), abstendo-

194

Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 31.


Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, cit., vol. 1, p. 25.
196 Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit., p. 201.
197 Jean Escarra, Manuel de Droit Commercial, Paris, Sirey, 1947, p. 66.
195

Teoria crtica da empresa

114

Ivanildo Figueiredo

se de conceituar e considerar, portanto, a empresa como ente mercantil, como


instituio do mercado.
Independentemente do seu objeto, seja civil ou mercantil, a empresa, segundo
o Cdigo de 2002, aquela que adota forma empresarial. Em princpio, o Cdigo Civil
considera empresrio quem exerce profissionalmente atividade econmica
organizada para a produo ou a circulao de bens ou de servios (art. 966). A idia
de empresa corresponde, exatamente, atividade organizada para o exerccio de
funo econmica, tanto de natureza mercantil como de natureza no mercantil.
No regime do Cdigo Civil de 1916, toda atividade no mercantil restava
enquadrada como atividade civil, at por excluso natural. O Cdigo de 2002 (art.
967), ao vincular a forma da empresa organizao que arquiva seus atos
constitutivos e societrios no registro de empresas mercantis,198 ele abre, literal e
metaforicamente, a porteira ontolgica para que, assim considerada, qualquer ente
econmico seja caracterizado, juridicamente, como empresarial, ainda que seu objeto
no seja materialmente mercantil.
No sistema do Cdigo Civil italiano de 1942, a empresa diferenciada em razo
do seu objeto preponderante, que pode ser comercial, industrial, bancrio, de servios
ou mesmo rural. A ideia de empresa no mercantil representa, historicamente,
contraditio in terminis. Salvo abstraindo-se esses critrios histricos e materiais que
serviram de base para o desenvolvimento cientfico do direito comercial, a empresa
sempre se caracterizou, por suposto, como organizao econmica com finalidade
lucrativa.
Um dos maiores problemas prticos existentes no nosso sistema de direito
comercial positivo, relativamente organizao institucional da empresa, diz respeito
total e absoluta liberdade prevalente para a definio da forma ou modelo da
empresa, por opo dos scios ou acionistas fundadores. Com efeito, a legislao
brasileira no estabelece nenhum critrio objetivo, seja de ordem lgica, metodolgica

198

O Registro Pblico de Empresas Mercantis compreende a funo desempenhada pelas Juntas


Comerciais dos Estados, vinculadas tecnicamente ao Departamento Nacional do Registro do Comrcio
DNRC, atual Departamento de Registro de Empresas e Integrao - DREI (Cdigo Civil, arts. 1.150
a 1.154; Lei 8.934/1994; Decreto 1.800/1996; Decreto 8.001/2013).

Teoria crtica da empresa

115

Ivanildo Figueiredo

ou dogmtica, no sentido de definir a forma de organizao da empresa em nosso


ordenamento jurdico.199 Em outras palavras, quase absolutamente livre a forma da
empresa no direito brasileiro. Essa liberdade de forma representa, contudo, obstculo
ao enquadramento da empresa em razo do objeto que lhe prprio.
O Cdigo de 2002 considera que a empresa deve ser juridicamente qualificada
em razo da sua forma, no do objeto da atividade exercida. O fato da empresa
realizar, ou no, uma atividade mercantil, irrelevante. Essa concepo, alm de
entronizar, artificialmente, uma idia at ento desconhecida pela doutrina e muito
mais ainda pela praxis comercial, provoca uma dificuldade de definio que conspira
contra a lgica dos conceitos. Para esse novo regime jurdico, a empresa tem como
nico elemento comum o exerccio de atividade econmica, seja esta mercantil ou no
mercantil, produtiva ou no produtiva, lucrativa ou no lucrativa.
No regime tradicional dos atos de comrcio, somente se qualificava como
comercial o elenco das atividades reputadas, intrinsecamente, como mercantis, tendo
por exemplo maior a compra para revenda. A compra e venda mercantil sempre foi
considerada uma modalidade contratual especfica, dotada de caractersticas prprias
e informais, como mera atividade de troca, efetuada sem maiores solenidades, como
tpico dos atos em massa. Bastante diferente a compra e venda civil, realizada
entre particulares no afeitos s peculiaridades dos negcios, em que as partes no
visam o lucro, mas sim a obteno de resultados econmicos ou patrimoniais
compensatrios, e que no dependem dessas operaes espordicas para a sua
sobrevivncia, isto , so despidas dos aspectos da profissionalidade e da finalidade
lucrativa.
O Cdigo Comercial de 1850, por no haver relacionado as atividades de
mercancia que representavam o que deveria ser definido como matria comercial,
filiou-se concepo subjetivista do comerciante como destinatrio final das normas

199 No Decreto-Lei 2.627/1940, a constituio da sociedade annima exigia um mnimo de sete


acionistas (art. 38), requisito que foi reduzido para apenas dois acionistas a partir da Lei 6.404/1976.
Alm dessa exigncia mnima de composio de acionistas ou scios, a legislao brasileira no
determina qualquer outro critrio para a escolha da forma especfica da empresa ou de sociedade
comercial, seja em razo do nmero de scios ou do montante do capital social, com exceo da
recente fixao de capital de 100 (cem) salrios mnimos para a constituio de Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada EIRELI (CC, art. 980-A, com a redao da Lei 12.441/2011).

Teoria crtica da empresa

116

Ivanildo Figueiredo

comerciais. O direito comercial era, pois, o direito dos comerciantes, um direito de


classe, tal como na sua origem corporativa.
Considera, entretanto, Rubens Requio, que o sistema do Cdigo de Comrcio
do Imprio de 1850 subjetivo, pois assenta na figura do comerciante, no evitando,
porm, o tempero objetivo, enumerao legal dos atos de comrcio, para esclarecer
o que seja mercancia, elemento radical na conceituao do comerciante.200
Para Vivante, a enumerao legal dos atos de comrcio demonstra-se
necessria e imprescindvel para o adequado enquadramento dos fatos econmicos
nas normas comerciais aplicveis, principalmente:201
a) para que se saiba qual a matria a que se devem aplicar as leis e os usos comerciais
de preferncia ao direito civil;
b) para que se possa determinar quem comerciante; no se pode sab-lo se
anteriormente se no sabe quais so os atos objetivos do comrcio;
c) para que estes atos s possam ser praticados por quem tenha capacidade para
dispor das suas coisas.

A teoria dos atos de comrcio foi suprimida no nosso sistema de direito


comercial pela adeso do Cdigo Civil de 2002 concepo subjetivista da empresa
como centro da atividade econmica. Todavia, contraditoriamente, o Cdigo brasileiro
no seguiu ou observou a sua matriz italiana, que diferencia a empresa em razo do
seu objeto.202 No Cdigo Civil italiano de 1942, as empresas foram diferenciadas de
acordo com a natureza mercantil do seu objeto, de modo semelhante ao sistema
enumerativo dos atos de comrcio do Regulamento 737, tal como constante do artigo
2.195 do Libro Quinto, que se refere empresa industrial, a empresa comercial,
empresa de transporte, empresa bancria e de seguros.203
200

Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 42.


Cesare Vivante, Instituies de Direito Comercial, So Paulo, Minelli, 2 edio, 2007, p. 38/39.
202 No projeto do Cdigo das Obrigaes de 1965, tambm elaborado, na parte da atividade negocial,
por Sylvio Marcodes Machado, idntica enumerao dos atos de comrcio constante do art. 2.195 do
Cdigo italiano foi reproduzida no art. 1.108, 1, como observado por Fran Martins (Curso de Direito
Comercial, cit., p. 85).
203 Art. 2.195 - Imprenditori soggetti a registrazione - Sono soggetti all'obbligo dell'iscrizione nel
registro delle imprese gli imprenditori che esercitano: 1) un'attivit industriale diretta alla produzione di
beni o di servizi; 2) un'attivit intermediaria nella circolazione dei beni; 3) un'attivit di trasporto per terra,
o per acqua o per aria; 4) un'attivit bancaria o assicurativa; 5) altre attivit ausiliarie delle precedenti.
Art. 2.195 Empresrio sujeito a registro - Esto sujeitos obrigao de inscrio no registro de
empresa os empresrios que exeram: 1) uma atividade industrial direta de produo de bens ou
201

Teoria crtica da empresa

117

Ivanildo Figueiredo

Apesar de alguns doutrinadores, como Teixeira de Freitas, considerarem, ao


longo dos tempos, a classificao dos atos de comrcio como incompleta e mesmo
arbitrria, por ser resultante da vontade do legislador de assim enumerar os atos de
mercancia, a posio dominante dos comercialistas sempre reconheceu a importncia
da teoria dos atos de comrcio para a determinao da matria comercial. Carvalho
de Mendona afirmava, por exemplo, que os atos de comrcio constituem o ponto
central e a base por excelncia da matria comercial.204
No tocante finalidade lucrativa inerente atividade comercial, Waldemar
Ferreira destaca: Todos os juristas num ponto se entenderam. O nimo de alcanar
o lucro substancial para formar-se o ato de comrcio. Essa a finalidade do
comrcio intervindo na circulao econmica.205 A atividade comercial est
caracterizada pela insero insero necessria do componente lucrativo no mbito
das operaes e negcios realizados pelos comerciantes e pelas sociedades
comerciais. Ensina Carvalho de Mendona, de modo conclusivo, elucidativo: o lucro
o fim de toda atividade econmica.206
Confirmando essa linha de entendimento, a Lei 6.404/1976 assim define o
objeto da sociedade annima, dando nfase ao seu aspecto ou carter lucrativo:
Art. 2. Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, no
contrrio lei, ordem pblica e aos bons costumes.
1. Qualquer que seja o objeto, a companhia mercantil e se rege pelas leis e
usos do comrcio.

Com efeito, a sociedade annima caracteriza-se como sendo qualquer


empresa de fim lucrativo e qualquer que seja o seu objeto, a companhia mercantil
e se rege pelas leis e usos do comrcio. De acordo com a lei brasileira, pois, a
sociedade annima deve, obrigatoriamente, ser empresa de fim lucrativo, sendo o
lucro componente intrnseco e objeto mediato a ser buscado pela atividade
econmica. A sua regulao jurdica compreende, necessariamente, a aplicao das
servios; 2) uma atividade intermediria de circulao de bens; 3) uma atividade de transporte por terra,
gua ou ar; 4) atividade bancria ou de seguros; 5) outras atividades auxiliares das anteriores.
204 J. X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit., p. 427.
205 Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, Teoria dos Atos de Comrcio, Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 2 edio, 1948, vol. II, p. 32.
206 J. X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit., p. 435.

118

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

leis e usos do comrcio, e no a disciplina comum do direito civil, como assim


expresso na norma positiva.
Na Exposio de Motivos do Projeto do Cdigo Civil de 2002, Miguel Reale
explica que, segundo a concepo adotada pelo projeto, na empresa, no sentido
jurdico

deste

termo,

reunem-se

compe-se

trs

fatores,

em

unidade

indecomponvel: a habitualidade no exerccio de negcios, que visem produo ou


circulao de bens ou de servios; o escopo de lucro ou resultado econmico, a
organizao ou estrutura estvel dessa atividade.207
O carter lucrativo da atividade econmica, contudo, no seria exclusivo da
empresa ou da sociedade empresria, tendo em vista que o art. 997, inciso III, do
Cdigo Civil, ao dispor sobre as clusulas essenciais do contrato da sociedade
simples, faz meno participao dos scios nos lucros. Diversos outros dispositivos
do Cdigo referentes sociedade simples (artigos 1.006 a 1.009; 1.017; 1.026 e
1.027) tambm fazem meno ao direito dos scios percepo dos lucros apurados
e distribudos.
Assim, ao contrrio da antiga figura da sociedade civil, em que o Cdigo de
1916 (artigos 1.363 a 1.409), apesar de admitir a percepo do lucro pelos scios, no
caracterizava essa sociedade como de escopo ou fim, lucrativo,208 a sociedade
simples, no empresria, possui ntido escopo lucrativo e dever distribuir o lucro
entre os scios sempre que forem positivos os seus resultados econmicos, apurados
anualmente. Enquanto o Cdigo de 2002 contempla, em vrias normas, a finalidade
lucrativa da sociedade simples, observa-se que, na disciplina da sociedade limitada,
que empresria e intrinsecamente mercantil por natureza, apenas uma disposio
(art. 1.059)209 faz aluso ao lucro, ainda assim como norma de sano, ao obrigar o
scio a repor os lucros auferidos com prejuzo do capital.

207 Miguel Reale, Exposio de Motivos do Projeto do Cdigo Civil, Dirio do Congresso Nacional,
op. cit., p. 119.
208 Cdigo Civil de 1916, Art. 1.363. Celebram contrato de sociedade as pessoas, que mutuamente se
obrigam a combinar seus esforos ou recursos, para lograr fins comuns.
209 Cdigo Civil de 2002, Art. 1.059. Os scios sero obrigados reposio dos lucros e das quantias
retiradas, a qualquer ttulo, ainda que autorizados pelo contrato, quando tais lucros ou quantia se
distriburem com prejuzo do capital.

Teoria crtica da empresa

119

Ivanildo Figueiredo

A contradio aqui apontada demonstra que o Cdigo Civil de 2002 no se


preocupou em realar o carter lucrativo da atividade do empresrio. Pelo contrrio:
afasta o objetivo de lucro como escopo da finalidade social. O art. 966 do Cdigo de
2002 no faz qualquer meno a esse desiderato natural de toda empresa comercial,
que a finalidade lucrativa. De igual modo, o Cdigo italiano de 1942 tambm no
reconheceu, no art. 2.082, o lucro como elemento definidor da atividade empresarial,
apesar de referir-se, em diversos outros dispositivos, apurao dos lucros (utili)
como resultante da explorao econmica.
Ainda que o Cdigo de 2002 tenha omitido o carter lucrativo da atividade
empresarial, o lucro ser sempre imanente, natural, a qualquer modalidade de
explorao econmica no regime da economia de mercado, ou seja, no sistema
capitalista. No caso especfico da sociedade annima, o art. 2 da Lei 6.404/1976,
como visto, estatui que ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo.
O elemento do lucro estar sempre presente e imanente ao prprio objeto da
companhia, dessa sociedade mercantil pura, por excelncia.
Com efeito, para a constituio da empresa, alm do requisito da pessoalidade,
da presena de uma pessoa que, por sua iniciativa, resolve explorar determinada
atividade econmica, o segundo requisito o da disponibilidade e aplicao do capital
necessrio aquisio dos elementos materiais mnimos, como compra ou locao
de imvel, gastos com instalaes, equipamentos, mquinas, formao de estoques
de matrias-primas ou mercadorias para revenda, contratao de empregados, enfim,
de uma srie de despesas que sero financiadas com o capital inicial alocado na
atividade.
A inverso do capital pressupe, logicamente, a recuperao dos investimentos
e a remunerao do dinheiro aplicado na explorao mercantil, e o prprio conceito
de lucro, como remunerao do capital, como o ganho que dever ter o capitalista
para a viabilizao do empreendimento, compreende um elemento imprescindvel
prpria existncia e sobrevivncia da empresa no mercado. Afinal, a empresa que no
gerar lucros com a explorao econmica estar fadada ao insucesso: a falncia ser
seu destino inexorvel. A inteno ou finalidade da remunerao pelo lucro insere-se,
pois, entre os elementos imprescindveis definio de empresrio.

120

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

O Cdigo Civil de 2002, todavia, ao contrrio do regime anterior dos atos de


comrcio, adotou posio na qual procura esterilizar das suas disposies, do seu
contedo normativo, qualquer meno natureza comercial ou mercantil e ao escopo
lucrativo das atividades empresariais.
Para o regime do Cdigo de 2002, a atividade da empresa no comercial nem
mercantil: simplesmente empresarial. Isto porque visa abranger em sua concepo
tanto as atividades normalmente exercidas pelas empresas comerciais, como por toda
e qualquer outra entidade de fins econmicos, desde que esta compreenda uma
atividade de produo ou circulao de bens ou de servios, que constitua elemento
de empresa (art. 966). Essa aparentemente sutil distino possui uma implicao
formal significativa.
De acordo com o entendimento adotado pelo Cdigo Civil de 2002, as
empresas no possuem, necessariamente, natureza mercantil, e por isso podem
assumir caractersticas decorrentes, basicamente, da sua forma. Mas isto no resulta
em razo do contedo do seu objeto comercial, porque pode ser considerado como
empresrio qualquer pessoa que, independentemente do seu ramo de atividade
profissional, venha a constituir empresa sob a forma empresria individual ou coletiva,
como sociedade empresria. Assim pode ocorrer, por exemplo, nas atividades dos
profissionais

liberais,

como

mdicos,

engenheiros,

arquitetos,

contadores,

publicitrios e corretores de imveis, ou no mbito de atividades rurais, como no caso


de fazendeiros e pecuaristas.
Com a ampliao do conceito de agentes econmicos empreendedores, ou
seja, daqueles que desempenham tanto atividade mercantil como atividade civil, o
Cdigo de 2002 buscou, assim, aumentar o campo de incidncia das suas normas,
suprimindo qualquer remisso atividade comercial como prpria ou especfica das
empresas. E essa ampla generalizao do conceito de empresa e a ausncia de
delimitao objetiva da atividade empresarial, foi promovida pelo legislador sem
considerar a existncia de todo um sistema comercial que continua presente na
legislao especial extravagante ao Cdigo Civil.

Teoria crtica da empresa

121

Ivanildo Figueiredo

O sistema da comercialidade permanecer, especialmente, na legislao da


sociedade annima e no regime falimentar, que no foram absorvidos pela tentativa
unificadora do Cdigo de 2002.
Portanto, a tentativa de desmercantilizao da atividade da empresa no
prosperou nem deve prosperar, no futuro, em nosso sistema de direito positivo, isto
devido a diversos outros institutos comercialistas autnomos, tendo a sociedade
annima como exemplo maior. Em razo dessa situao, devemos continuar
submetidos, teoricamente, a dois sistemas distintos e aparentemente inconciliveis, o
sistema dos atos de comrcio e o sistema da teoria da empresa.

3.3. Concesses do legislador ao carter comercial dos atos das empresas

A supresso da comercialidade dos atos das empresas, tal como objetivado


pelo legislador do Cdigo Civil de 2002, no foi promovida de modo absoluto nem
integral, na medida em que vrias outras normas do Cdigo ainda fazem referncia
natureza comercial de determinados atos e negcios da vida civil na sua relao com
as atividades econmicas. Com efeito, simplesmente pela via da mera elaborao
legislativa, no seria admissvel pretender eliminar toda a experincia histrica
acumulada nos atos e negcios que, indubitavelmente, continuaro a manter a sua
natural e necessria ndole ou natureza mercantil.
A partir da prpria especificao dos requisitos legais para a aquisio de
capacidade jurdica pelas pessoas naturais, o art. 5, inciso V, do Cdigo de 2002,
prev que o menor de 16 anos, que disponha de economia prpria, poder ser
emancipado pelo estabelecimento civil ou comercial. Essa diferenciao entre
atividade econmica civil e atividade econmica comercial, por parte do menor, est
a evidenciar clara antinomia diante da supresso da natureza mercantil da empresa
como constante do novo Cdigo Civil.
O Cdigo de 2002 omite, tambm, no art. 1.142, a caracterizao do
estabelecimento, no definindo sua natureza como comercial ou mercantil, em

Teoria crtica da empresa

122

Ivanildo Figueiredo

flagrante e inexplicvel contradio diante de toda a doutrina especializada, que


sempre considerou o estabelecimento como sendo essencialmente comercial, por
representar a reunio de bens e direitos corpreos e incorpreos organizados pelo
empresrio para o exerccio de atividade mercantil. O estabelecimento, na acepo
estrita do termo, sempre foi necessariamente comercial, seja no direito italiano
(azienda), no direito francs (fonds de commerce), como tambm no direito ingls
(goodwill of trade).
Para Oscar Barreto Filho, um dos principais estudiosos do estabelecimento
comercial na doutrina brasileira, tomando como base as lies de Umberto Navarrini,
o estabelecimento ou azienda comercial o conjunto dos elementos patrimoniais,
ativos e passivos, materiais ou imateriais, com que o comerciante exercita o seu
comrcio; ou, em outras palavras, o complexo de vrias foras econmicas e dos
meios de trabalho que o comerciante dirige para o exerccio do comrcio, impondolhes uma unidade formal, em relao com a unidade do escopo.210
Em respeito a essa construo doutrinria, o art. 5, inciso V, do Cdigo de
2002 reconhece, assim, a hiptese de emancipao do menor pelo estabelecimento
comercial com economia prpria, preceito que contradiz a figura do estabelecimento
no mercantil, referida no art. 1.142 do Cdigo, na parte do direito de empresa.
Ao tratar dos direitos da personalidade, o Cdigo Civil de 2002 faz meno, no
art. 18, ao uso indevido do nome de pessoa em propaganda comercial. Por
propaganda comercial deve-se entender a publicidade com finalidade mercantil,
dirigida a clientes interessados na realizao de negcios comerciais. Tambm, aqui,
o Cdigo reconhece que a propaganda promovida publicamente possui fundo
comercial, visto ser uma atividade prpria das empresas com fins lucrativos.
O art. 164 do Cdigo Civil, ao se referir a determinados atos que possam ser
praticados em fraude a credores, dispe: Presumem-se, porm, de boa-f e valem
os negcios ordinrios indispensveis manuteno de estabelecimento mercantil,
rural, ou industrial, ou subsistncia do devedor e de sua famlia. A meno ao
estabelecimento mercantil ou industrial representa outra deferncia particular do

210

Oscar Barreto Filho, Teoria do Estabelecimento Comercial, cit., p. 71.

Teoria crtica da empresa

123

Ivanildo Figueiredo

legislador s atividades econmicas prprias e especficas, enquadrveis como atos


de comrcio.211 Desse modo, se o devedor agiu de maneira a preservar e proteger o
seu estabelecimento mercantil ou industrial, tal conduta no representaria fraude a
credores.
Na previso legal quanto ao carter lucrativo do exerccio de mandato ou
procurao, o art. 658 do Cdigo Civil dispe que o procurador pode exigir do
mandante a devida retribuio pelos atos praticados, quando estes vierem a se referir
a atos que o mandatrio trata por ofcio ou profisso lucrativa. Por profisso lucrativa
entenda-se o exerccio de atividade empresarial, tal como concebida pela teoria dos
atos de comrcio.
No mesmo livro que regula o direito de empresa, na parte referente
escriturao e registros contbeis, o art. 1.187 dispe que a avaliao do patrimnio
empresarial, para fins de inventrio, dever considerar, pelo custo de aquisio ou
fabricao, os valores mobilirios, matria-prima, bens destinados alienao, ou
que constituem produtos ou artigos da indstria ou comrcio da empresa. A expressa
referncia ao objeto de comrcio da empresa induz o intrprete a concluir que o
Cdigo Civil considera como comercial o patrimnio empresarial constitudo a partir
da explorao de atividade mercantil.
Quando o Cdigo regula os efeitos e conseqncias da tradio de bens por
parte de quem no proprietrio da coisa, o art. 1.268 faz meno expressa
alienao de estabelecimento comercial, considerando vlida, juridicamente, a
transferncia do estabelecimento comercial se este for transferido em circunstncias
tais que, ao adquirente de boa-f, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar
dono.

211 Ao analisar esta disposio do Cdigo, Waldirio Bulgarelli observa: Estas referncias, a mercantil
e industrial, tambm encontradas na parte do penhor (art. 1.462), e a civil e comercial, esto a
demonstrar que o Projeto no se livrou de todo da orientao do autor da parte sobre a Atividade
Negocial, de expungir as expresses civis e mercantis, substituindo-as por empresarial ou negocial. A
falta de coerncia, neste aspecto, que parece encontrar explicao no fato de terem sido outros os
autores dessas partes do Projeto, demonstrativo tambm de quanto continua viva a tradicional diviso
entre civil e comercial e como sero necessrios muitos esforos e tempo para a absoro da nova
realidade (A Teoria Jurdica da Empresa, cit., p. 402).

Teoria crtica da empresa

124

Ivanildo Figueiredo

O Cdigo Civil tambm veio dispor, de modo expresso, no captulo dos direitos
reais de garantia, sobre as modalidades do penhor industrial e penhor mercantil, que
so prprios da atividade comercial (art. 1.447). Essa norma estabelece modalidade
especfica de garantia pignoratcia com base em modelos ou figuras totalmente
ultrapassadas.212 A referncia, nessa norma, indstria do sal como susceptvel de
penhor mercantil demonstra, sem dvida, evidente descompasso tecnolgico na
redao da norma. O legislador continuou apegado a frmulas histricas ainda
prevalentes no sculo XIX. Independente das hipteses superadas previstas no art.
1.447 do Cdigo Civil quanto ao objeto da garantia real, o penhor mercantil j era
regulado no Cdigo Comercial de 1850 (arts. 271 a 279). O Cdigo de 2002 limitouse a reproduzir tais disposies histricas, em evidente descompasso com a realidade
presente.
Na parte do direito das sucesses, o Cdigo Civil admite a lavratura de
testamentos especiais, no seu art. 1.889, ao fazer meno possibilidade de
declaraes de ltima vontade do testador que se encontrar a bordo de aeronave
comercial, ou seja, sob o domnio especial de um representante de empresa area
comercial. Nessa situao excepcional, o comandante da aeronave poder delegar,
em situao de perigo, a outro tripulante, a responsabilidade de, eventualmente,
promover a lavratura de testamento de pessoa a bordo, estando esta pessoa
vinculada a uma relao comercial de transporte.
As remisses normativas anotadas e referenciadas neste ponto demonstram
que o legislador do Cdigo de 2002, seja por falta de consistncia lgica, seja por
equvoco na devida compatibilizao e harmonizao das normas que compem os
diversos livros, ttulos e captulos da nova legislao codificada, reconhece a
existncia de atividades mercantis especializadas, nos diversos campos do direito, em
contradio com a tentativa de supresso da natureza comercial das atividades
desempenhadas pelas empresas. O cdigo contm, como visto, um aglomerado de
disposies assistemticas e incoerentes, formando uma verdadeira colcha de

212

Cdigo Civil de 2002 - Art. 1.447. Podem ser objeto de penhor mquinas, aparelhos, materiais,
instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessrios ou sem eles; animais, utilizados na
indstria; sal e bens destinados explorao das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados
industrializao de carnes e derivados; matrias-primas e produtos industrializados.

Teoria crtica da empresa

125

Ivanildo Figueiredo

retalhos, ora excluindo a natureza comercial da atividade das empresas, ora


empregando a adjetivao de comercial para definir determinados fenmenos ou
relaes econmicas.
Todavia, a concesso ou contradio principal verificada no Cdigo de 2002
para reconhecer, fora da lgica e da concepo inicial do sistema, a natureza mercantil
das empresas, resultou de 18 referncias ao Registro Pblico de Empresas
Mercantis como rgo de arquivamento dos atos das empresas.213 Resultante de
emendas de adaptao apresentadas na fase final de aprovao do projeto pela
Comisso Especial na Cmara dos Deputados, essas modificaes foram justificadas
como sendo uma necessidade de compatibilizao do novo cdigo com o regime
vigente do Registro Pblico de Empresas Mercantis, regulado pela Lei n
8.934/1994.214 No projeto original, essas normas modificadas faziam referncia,
simplesmente, ao Registro de Empresas, como jurisdio administrativa de
assentamento dos atos empresariais.
A partir do momento em que a referncia normativa do Cdigo Civil passa a
fazer meno ao Registro Pblico de Empresas Mercantis, essa alterao inseriu
uma cunha deontolgica contra a tentativa de esterilizao da natureza comercial das
empresas, precisamente para deixar claro, aos intrpretes e aplicadores da nova
legislao, que as normas codificadas no podem ser consideradas isoladamente, na
medida em que exigem uma interpretao sistemtica, diante de todo um
ordenamento de direito comercial regulado pela legislao extravagante e pelos
microssistemas normativos que permaneceram em vigor.
Cabe considerar que tais alteraes introduzidas na redao final do Cdigo,
atributivas da natureza mercantil ao registro de empresas, no possuem o condo de
abalar a lgica do sistema proposto pelo legislador, mas sinalizam, todavia, para
revelar essa inconsistncia do sistema, situao que exigir, no futuro, uma
redefinio normativa sobre o objeto natural da empresa, que possa compatibilizar a

213

A referncia ao carter mercantil do registro pblico de empresas passou a constar do texto em


razo das emendas do Relator aos artigos 967 e seu 1; art. 969 e pargrafo nico; art. 971; art. 979;
art. 980; art. 984; art. 1.075, 2; art. 1.083; art. 1.084, 3; art. 1.144; art. 1.150; art. 1.174 e pargrafo
nico; e art. 1.181 do Cdigo de 2002.
214 Ricardo Fiza, Novo Cdigo Civil Comentado, So Paulo, Saraiva, 2002, p. 870-871.

Teoria crtica da empresa

126

Ivanildo Figueiredo

concepo subjetiva, da empresa como atividade, com a concepo objetiva, de que


a atividade preponderante da empresa deve ser qualificada como mercantil, e no
apenas e formalmente como empresarial.

3.4. Principais contradies no regime do direito de empresa

De todas as contradies conceituais resultantes do regime institudo pelo


Cdigo Civil de 2002, trs institutos jurdicos devem ser destacados como os mais
afetados por essa reforma legislativa: em primeiro lugar, o conceito de empresrio;
em segundo lugar, a disciplina do direito societrio; e, em terceiro lugar, as
modalidades especiais dos contratos mercantis.
O conceito de empresrio adotado pelo Cdigo Civil de 2002 (art. 966) no
passa de figura decalcada, mera importao e reproduo literal do mesmo conceito
constante do Cdigo italiano de 1942 (art. 2.082), como a seguir transcrito:
Cdigo Civil brasileiro de 2002
Art. 966. Considera-se empresrio quem exerce profissionalmente atividade
econmica organizada para a produo ou a circulao de bens ou de servios.
Cdigo Civil italiano de 1942
Art. 2082 - Imprenditore - E' imprenditore chi esercita professionalmente
un'attivit economica organizzata al fine della produzione o dello scambio di beni o di
servizi.

O elemento bsico definidor de ambos e idnticos conceitos diz respeito ao


exerccio de atividade econmica organizada, independentemente da natureza ou do
objeto dessa atividade.
Assim, se uma atividade econmica tem por objeto a revenda de produtos
industrializados, atividade tipicamente comercial, essa empresa deve estar submetida
ao regime do direito empresarial. Todavia, essa atividade merecer o mesmo

Teoria crtica da empresa

127

Ivanildo Figueiredo

tratamento legalmente conferido, por exemplo, a uma organizao dedicada ao


ensino, que presta um servio que, em princpio, no seria mercantil, e sim de carter
pblico ou social.
Com efeito, certas atividades de prestao de servios que deveriam ser
consideradas, em razo da natureza do objeto, como despidas de carter mercantil,
passaram a ser consideradas como atividades empresariais, e isso apenas em razo
da forma empresarial adotada, independentemente de qualquer contedo, parmetro
ou critrio lgico.215
A partir de referenciais histricos consagrados na prtica comercial, a lei
sempre considerou como mercantis as atividades naturalmente predispostas
obteno do lucro, corolrio imanente remunerao do capital investido. Quando
parcela desse capital fosse decorrente de servio ou de fator de trabalho, a atividade
no poderia ser considerada como comercial. A antiga e agora extinta sociedade de
capital e indstria era a nica modalidade de empresa em que se admitia a
participao e contribuio do scio de servio apenas com o seu trabalho, sem
necessidade de integralizao do capital.216
Certas atividades de natureza econmica, ou seja, de carter oneroso, voltadas
prestao de servios, como as atividades nas reas da educao, medicina,
pesquisa cientfica, advocacia, contabilidade e segurana privada, no deveriam ser
estruturadas sob a forma de empresas com finalidade lucrativa, dada a ndole social
e complementar das funes do Estado de que essas atividades so revestidas.
No projeto original elaborado por Sylvio Marcondes Machado,217 o ttulo
dedicado empresa era denominado Da atividade negocial, e tinha como escopo o
215

Originariamente, as atividades de prestao de servios sempre foram enquadradas como


atividades civis, e no comerciais, especialmente quando desempenhadas nos campos dos servios
tcnicos de engenharia, arquitetura, contabilidade, ou como atividade social nas reas de educao e
sade, por exemplo.
216 A sociedade de capital e indstria, extinta pelo Cdigo Civil de 2002, era prevista e regulada pelos
artigos 317 a 324 do Cdigo Comercial de 1850, sendo sociedade contratada entre pessoas, que
entram por uma parte com os fundos necessrios para uma negociao comercial em geral, ou para
alguma operao mercantil em particular, e por outra parte com a sua indstria somente (art. 317).
217 A biografia do Professor Sylvio Marcondes Machado, Titular de Direito Comercial da Universidade
de So Paulo USP, restrita aos crculos acadmicos e advocatcios paulistas. Ele autor de poucas
obras doutrinrias (Limitao da responsabilidade de comerciante individual, Max Limonad, 1956), de
algumas coletneas de pareceres (Problemas de Direito Mercantil, Max Limonad, 1970) e trabalhos

Teoria crtica da empresa

128

Ivanildo Figueiredo

pressuposto de que toda pessoa, da mesma maneira que, sendo dotada de


capacidade, como proprietria de bens, contrai obrigaes, constitui famlia e que ao
morrer sucedida, tambm realizaria, na sua vida normal, negcios de carter
empresarial. Nessa concepo, a atividade empresarial seria comum vida civil das
pessoas, fazendo parte de um direito comum ou geral, como da essncia estrutural
do contedo de um cdigo civil.
Sem embargo, a profissionalidade no campo da empresa exclusiva daquelas
pessoas que exercem atividade de empresrio, que so investidores capitalistas, que
tambm administram e dirigem suas organizaes. Somente cabe considerar titulares
de empresas, e assim destinatrios desse regime legal do direito de empresa no
Cdigo Civil, as pessoas que exercem essa atividade em carter profissional, como
consta do prprio conceito do art. 966 do novo Cdigo.
De acordo com as estatsticas oficiais, no ano de 2010 existiam, no Brasil, cerca
de 5,2 milhes de empresas, comerciais, industriais e de servios.218 Considerando
uma populao economicamente ativa de 95,3 milhes,219 segundo o censo do mesmo
ano, e um nmero de pessoas ocupadas em empregos formais de 45 milhes,220 para
uma populao total de 190 milhes,221 podemos concluir que o percentual de
empresrios regulares existentes no pas corresponde, apenas, a 5,4% da populao
economicamente ativa e a 11,5% das pessoas ocupadas. Considerando, portanto, a
populao total, os empresrios teriam uma participao de 2,7 % na populao
acadmicos esparsos (Questes de Direito Mercantil, Saraiva, 1977). A participao de Sylvio
Marcondes Machado como relator da parte do Direito de Empresa deve-se mais sua contribuio na
elaborao do ttulo sobre a Atividade Negocial no Projeto do Cdigo das Obrigaes de 1965, e por
ser um dos poucos tericos da rea do direito comercial que defendia a unificao do nosso direito
privado, contra a posio majoritria dos comercialistas brasileiros. Sempre se posicionaram contra a
unificao, defendendo a autonomia do direito comercial, os principais juristas brasileiros nesse campo,
como Jos Xavier Carvalho de Mendona, Waldemar Ferreira, Trajano de Miranda Valverde, Joo
Eunpio Borges, Rubens Requio, Fbio Konder Comparato, Modesto Carvalhosa, Egberto Lacerda
Teixeira, Fran Martins, Waldirio Bulgarelli e Walter lvares, com entendimento doutrinrio contrrio, em
reconhecimento ao alto grau de especializao que a atividade mercantil havia alcanado no direito
positivo brasileiro.
218 BRASIL, IBGE Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - Estatstica do Cadastro
Central
de
Empresas

Cempre,
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/
cadastroempresa/2011/ default_xls_ empresa.shtm, 24/04/2014.
219
BRASIL, IBGE - Estatstica do Cadastro Central de Empresas Cempre,
ftp://ftp.ibge.gov.br/Economia_ Cadastro_de_Empresas/2011/cempre2011.pdf, 24/04/2014.
220
BRASIL, IBGE Estatstica do Cadastro Central de Empresas Cempre,
ftp://ftp.ibge.gov.br/Economia_ Cadastro_de_Empresas/2011/cempre2011.pdf, 24/04/2014.
221
BRASIL, IBGE Estatstica do Cadastro Central de Empresas Cempre,
ftp://ftp.ibge.gov.br/Economia_ Cadastro_de_Empresas/2011/cempre2011.pdf, 24/04/2014.

Teoria crtica da empresa

129

Ivanildo Figueiredo

brasileira, isto partindo do pressuposto de que a cada empresa corresponda um


empresrio, tal como se verifica nas firmas individuais, que representam metade das
empresas formais. Ao analisar o resultado desses nmeros absolutos e levando em
considerao, principalmente, a grande informalidade presente na nossa economia,
vlido reconhecer que o nmero de empresrios representa, de fato, uma parcela
pequena, nfima, de cerca de 5 %, da populao economicamente ativa, efetivamente
minoritria, ainda que detentora de grande parte das riquezas.
Em concluso, se o exerccio da atividade empresarial corresponde ocupao
profissional de um segmento populacional muito pouco representativo, essa atividade
jamais poderia ser generalizada e normatizada como direito comum. Da que a
regulao da atividade empresarial pelo Cdigo Civil apresenta essa relevante e
absurda incongruncia, por ser a excepcionalidade tratada, indevidamente, como
generalidade.
A atividade empresarial, em suma, no representa um direito comum ou geral,
porquanto prpria de um segmento profissional especializado, no estando presente
no cotidiano da vida das pessoas, seno na condio de consumidores, ainda que
eventuais negcios praticados por particulares possam ter intuito lucrativo.222
importante reforar, como visto anteriormente neste captulo, que o regime
do Direito de Empresa no Cdigo Civil italiano de 1942 estava embutido dentro do
Libro del Lavoro, sendo regulado como uma atividade laboral equiparada s demais
profisses, autnomas e no autnomas. No Cdigo Civil de 2002, o livro do Direito
de Empresa constitui um regime prprio, evidenciando a idia do legislador de tratar
a empresa como uma instituio social de interesse geral, situao que no
corresponde realidade das pessoas nas suas relaes de vida em comum.
Como segunda grande contradio, verificada na disciplina das empresas no
Cdigo de 2002, nos deparamos com a reconfigurao normativa do direito societrio,

222 Waldemar Ferreira considerava que alm do ofcio medianeiro e profissional, mister se torna o seu
exerccio habitual com o intuito do lucro, por parte do intermedirio. Sendo o comrcio funo social,
constitui-se por srie contnua e renovada de negcios. Quem pratica ato medianeiro espordico,
mesmo com intuito de lucro, sem firme propsito de repeti-lo habitualmente, organicamente, no faz o
comrcio, nem no sentido geral, nem no particular. (Tratado de Direito Mercantil Brasileiro - Teoria
dos Atos de Comrcio, cit., p. 32).

Teoria crtica da empresa

130

Ivanildo Figueiredo

uma vez que o Cdigo Civil pretendeu estabelecer, em carter dogmtico e impositivo,
regras e disposies gerais para regulao das sociedades de fins econmicos, mas
isto sem considerar as peculiaridades e caractersticas das empresas na atual
realidade de mercado.
No campo das sociedades empresrias, o Cdigo Civil de 2002, ao revogar o
Decreto 3.708/1919, que regulava as sociedades por quotas de responsabilidade
limitada, instituiu um regime complexo e burocrtico que passou a disciplinar esse tipo
societrio, que representa a quase totalidade das empresas organizadas sob a forma
de sociedade, a partir do Cdigo de 2002 simplesmente denominada sociedade
limitada.223
Com efeito, a antiga sociedade por quotas de responsabilidade limitada sempre
foi considerada modelo adequado, satisfatrio, de organizao societria em razo de
sua simplicidade e pelo fato de assegurar aos scios a garantia da limitao da
responsabilidade em razo do passivo e das dvidas da sociedade e ampla liberdade
de dispor sobre o contedo do contrato social. Essas eram e sempre foram as
principais vantagens da sociedade por quotas.
O Decreto 3.708/1919, por ser uma lei que apenas estabelecia normas bsicas
para a regulao desse tipo societrio, deixava para a esfera volitiva e de autonomia
da vontade dos scios a determinao das regras pelas quais a sociedade deveria se
reger, como lei interna prpria e peculiar aos interesses particulares das pessoas que
a integravam.
Mas o Cdigo Civil de 2002, contrariando todas as experincias de regulao
da sociedade por quotas no direito comparado, passou a estabelecer um regime de
223

De acordo com os ltimos dados disponveis do extinto Departamento Nacional do Registro do


Comrcio DNRC (Estatsticas das Juntas Comerciais), no perodo de 1985 a 2001 foram constitudas,
no Brasil, um total de 3.872.498 sociedades comerciais, sendo que destas, 3.832.178 adotaram o
regime da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, representando, portanto, 98,9 % das
sociedades constitudas. Atualmente, as estatsticas de registro de empresas constantes nos relatrios
do
Departamento
de
Registro
e
Integrao

DREI
(http://drei.smpe.gov.br//
assuntos/estatisticas/ranking-das-juntas-comerciais-constituicao-alteracao-e-extincao-de-empresas,
22/04/2014), que sucedeu o DNRC, no contm dados sobre o tipo de sociedades constitudas
segundo os dados das Juntas Comerciais, no obstante o art. 1, inciso II, da Lei 8.934/1994 estabelea
que uma das finalidades do Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis SINREM seja o de
cadastrar as empresas nacionais e estrangeiras em funcionamento no Pas e manter atualizadas as
informaes pertinentes.

131

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

maior complexidade para a disciplina desse tipo societrio, criando uma srie de
novas exigncias e limitando, de modo acentuado, a esfera da liberdade de
contratao entre os scios.
A terceira grande contradio decorre do problema de que o Cdigo de 2002,
na tentativa de unificar o direito das obrigaes, procurou abarcar, em sua ampla
generalizao civilista, uma srie de contratos comerciais que somente aplicam-se,
usualmente, s atividades mercantis, ao passo em que deixou de tratar de vrias
outras espcies de contratos, tpicos e atpicos, que so amplamente utilizados na
prtica das atividades comerciais exercidas pelas empresas.
Nessa esfera dos contratos mercantis, pretendeu inicialmente o Cdigo Civil de
2002 promover a unificao dos principais tipos de contratos em espcie, aplicveis
s relaes de contedo econmico (artigos 481 a 853). Todavia, a dualidade de
regime jurdico na esfera contratual permanecer patente e evidente diante da imensa
gama de contratos mercantis, tpicos e atpicos, que continuaro a fazer parte da
dinmica negocial das empresas, regulados por leis especficas, a exemplo dos
contratos financeiros e bancrios, dos contratos de bolsa de valores e mercadorias,
representao comercial autnoma, concesso comercial de veculos automotores,
arrendamento mercantil, franquia empresarial, bem como de outros tipos contratuais
no mbito das atividades de transporte e de seguros.
Em face da normatividade essencialmente mercantil desses contratos
regulados pela legislao extravagante ao Cdigo Civil, a tentativa, mesmo que
limitada,

de

unificao

do

direito

contratual,

apresenta-se

incompleta

comprometedora da lgica interna do sistema de direito positivo, que dever conviver


com obstculos tericos que, antes de constituir elemento de aperfeioamento e
modernizao da nossa legislao, est representando um entrave maior que
conspira contra a consistncia normativa e a harmonia da ordem jurdica empresarial.
Como ponto de contato e de uniformidade terica acerca da concepo
unificadora do direito das obrigaes, no existem dvidas de que o cerne conceitual
e os principais elementos definidores dessas relaes so comuns no mbito do
direito privado. A obrigao juridicamente considerada una, qualquer que seja o

Teoria crtica da empresa

132

Ivanildo Figueiredo

contedo da prestao, de natureza civil ou comercial. Assim, a unificao do direito


das obrigaes no pode implicar na correspondente unificao de tipos contratuais
diversos, que so diferentes em razo tanto do sujeito empresarial como do objeto
mercantil do contrato.
O Cdigo Civil de 2002, na perspectiva de unificao do direito das obrigaes,
passou a conceituar e regular tipos contratuais no previstos pelo Cdigo de 1916,
como os contratos de agncia ou distribuio (arts. 710 a 721) e de transporte (arts.
730 a 756). Todavia, inmeros outros modelos e tipos contratuais, de natureza
dominantemente mercantil, alm dos citados acima, no foram regulados pelo Cdigo
Civil, a exemplo dos contratos de software e programas de computador com aplicao
comercial (Lei 9.608/1998), ou dos contratos de locao em shopping centers, nos
dias atuais um dos principais modos de exerccio de atividade comercial em espaos
concentrados, contratos esses sujeitos s determinaes e condies fixadas pela
empresa proprietria do empreendimento. Esses novos tipos contratuais e vrios
outros passaram despercebidos pelo legislador do Cdigo, mas devero ser
analisados e discutidos a partir de uma experincia jurdica fundada na legislao
comercial supletiva e na construo jurisprudencial, como forma de superao dessa
defasagem e destatualizao normativa.

3.5. A tentativa de compilao e consolidao de normas defasadas no regime


do Direito de Empresa

No mbito da perspectiva de unificao do direito das obrigaes e da


regulao ampliada da empresa como instituto de direito civil, o Cdigo de 2002
procurou incorporar, nas suas normas, diversas disposies inerentes s atividades
empresariais, apesar de tais regras serem estranhas e mesmo incompatveis diante
das especificidades prprias da matria comercial. A proposta objetiva do legislador
foi, como visto, tentar abarcar no Cdigo Civil institutos prprios e caractersticos do
direito comercial e que, historicamente, sempre foram regulados pela legislao
mercantil especializada.

133

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Na verdade, o resultado concreto da interveno do legislador no se


demonstrou capaz, ao menos, de revisar e atualizar alguns dos institutos mais usuais
da prtica comercial, de modo a adaptar determinados conceitos instrumentais ao
novo regime codificado. O que se denota das mudanas introduzidas na legislao
pelo Cdigo de 2002, que o legislador se deteve em figuras e institutos
ultrapassados

assim

procurou,

por

limitao

metodolgica

ou

mesmo

desatualizao tcnica, trazer para dentro do atual sistema normativo da empresa


concepes defasadas e superadas no tempo, que em quase nada se coadunam com
a normatividade da empresa desenvolvida nos ltimos anos do sculo XX e no inicio
do presente sculo.
Cabe, neste ponto, observar que determinados conceitos e procedimentos
especficos historicamente regulados pelo direito comercial, passaram a constar de
modo inapropriado e desatualizado no Cdigo Civil de 2002, como revela-se na
disforme disciplina dos institutos mercantis do nome empresarial, do registro do
comrcio, da definio de sociedades nacionais e estrangeiras e da escriturao
mercantil, tal como exposto a seguir.

3.5.1. A fonte da regulao do nome empresarial no Decreto 916/1890

No tocante ao nome empresarial, o Cdigo Civil de 2002 basicamente limitouse a atualizar algumas normas constantes do Decreto 916, de 24/10/1890, que criou
o registro de firmas ou razes comerciais. Esse decreto, do incio da Repblica, foi
parcialmente revogado pela Lei 4.726/1965, que por sua vez foi revogada pela Lei
8.934/1994, ambas regulando o Registro do Comrcio. O Decreto 916/1890 ainda
vigorava em disposies residuais que no foram revogadas, restando praticamente
quase sem aplicabilidade. Apesar do Decreto 916/1890, no plano do direito positivo,
no mais vigorar, o Cdigo de 2002 tratou de repristinar algumas de suas normas com
a finalidade de disciplinar o nome das empresas, mas baseado em critrios superados
e divorciados da realidade comercial contempornea.

Teoria crtica da empresa

134

Ivanildo Figueiredo

No quadro a seguir, esto apresentadas as correlaes, diretas e indiretas,


entre as normas do Decreto 916/1890 e as do Cdigo de 2002 que tratam do nome
empresarial, demonstrando a mera reproduo, com algumas adaptaes, de regras
concebidas para a realidade comercial do sculo XIX:
Decreto 916/1890
Art. 2. Firma ou razo comercial o nome
sob o qual o comerciante ou sociedade
exerce o comrcio e assina-se nos atos a
ele referentes.
Art. 3. O comerciante que no tiver scio
ou o tiver no ostensivo ou sem contrato
devidamente arquivado no poder tomar
para firma se no o seu nome, completo ou
abreviado, aditando, se quiser, designao
mais precisa de sua pessoa ou gnero de
negcio.
Art. 3. 1. A firma de sociedade em
nome coletivo deve, se no individualizar
todos os scios, conter pelo menos o nome
ou firma de um com o aditamento por
extenso ou abreviado e companhia, no
podendo dela fazer parte pessoa no
comerciante.
Art. 5. Quem exercer o comrcio ter
direito de fazer registrar ou inscrever a
firma ou razo comercial no registro da
sede do estabelecimento principal,
podendo fazer inscrev-la tambm na sede
dos estabelecimentos filiais, uma vez que a
do estabelecimento principal, quando
situado na Repblica, estiver inscrita.
Art. 5. 1. Se o comerciante tiver nome
idntico ao de outro j inscrito, dever
acrescentar designao que o distinga.
Art. 6. Toda firma nova dever se
distinguir de qualquer outra que exista
inscrita no registro do lugar.
Art. 7. proibida a aquisio de firma sem
a do estabelecimento a que estiver ligada.
Art. 7. Pargrafo nico. O adquirente por
ato inter vivos ou mortis causa poder
continuar a usar da firma antecedendo-a da
que usar com a declarao - "sucessor de
...".
Art. 8. Modificada uma sociedade pela
retirada ou morte de scio, a firma no
poder conservar o nome do scio que se
retirou ou faleceu.

Cdigo Civil 2002


Art. 1.155. Considera-se nome empresarial
a firma ou a denominao adotada, de
conformidade com este Captulo, para o
exerccio de empresa.
Art. 1.156. O empresrio opera sob firma
constituda por seu nome, completo ou
abreviado,
aditando-lhe,
se
quiser,
designao mais precisa da sua pessoa ou
do gnero de atividade.
Art. 1.157. A sociedade em que houver
scios de responsabilidade ilimitada operar
sob firma, na qual somente os nomes
daqueles podero figurar, bastando para
form-la aditar ao nome de um deles a
expresso
e
companhia
ou
sua
abreviatura.
Art. 1.166. A inscrio do empresrio, ou
dos atos constitutivos das pessoas jurdicas,
ou as respectivas averbaes, no registro
prprio, asseguram o uso exclusivo do nome
nos limites do respectivo Estado.

Art. 1.163. Pargrafo nico. Se o


empresrio tiver nome idntico ao de outros
j inscritos, dever acrescentar designao
que o distinga.
Art. 1.163. O nome de empresrio deve
distinguir-se de qualquer outro j inscrito no
mesmo registro.
Art. 1.164. O nome empresarial no pode
ser objeto de alienao.
Art. 1.164. Pargrafo nico. O adquirente
de estabelecimento, por ato entre vivos,
pode, se o contrato o permitir, usar o nome
do alienante, precedido do seu prprio, com
a qualificao de sucessor.
Art. 1.165. O nome de scio que vier a
falecer, for excludo ou se retirar, no pode
ser conservado na firma social.

Teoria crtica da empresa

135

Ivanildo Figueiredo

Decreto 916/1890
Cdigo Civil 2002
Art. 9. Cessando o exerccio do comrcio, Art. 1.168. A inscrio do nome empresarial
dissolvida e liquidada uma sociedade, a ser cancelada, a requerimento de qualquer
inscrio da firma ser cancelada.
interessado, quando cessar o exerccio da
atividade para que foi adotado, ou quando
ultimar-se a liquidao da sociedade que o
inscreveu.
Art. 10. O emprego ou uso ilegal de firma Art. 1.167. Cabe ao prejudicado, a qualquer
registrada ou inscrita dar direito ao dono tempo, ao para anular a inscrio do nome
de exigir a proibio desse uso e a empresarial feita com violao da lei ou do
indenizao por perdas e danos, alm da contrato.
ao criminal que no caso couber.

Como pode ser observado, na comparao das normas do Decreto 916/1890


frente ao Cdigo de 2002, existem vrios aspectos comuns nos dispositivos relativos
ao nome empresarial. No que tange a outras questes inerentes formao e
proteo do nome das empresas, o Cdigo Civil tratou, apenas, de atualizar a redao
das normas, sem inserir nenhum componente caracterstico das formas modernas de
identificao da empresa, como o ttulo do estabelecimento, marcas, logomarcas,
logotipos, nome de domnio na Internet, nome de fantasia, desconsiderando ou
omitindo a relao entre nome da empresa e as marcas de produtos ou servios.
Na disciplina do nome empresarial, o Cdigo de 2002 bem poderia ter
aproveitado fontes normativas mais recentes, como a Lei 8.934/1994, que regula o
regime de proteo do nome das empresas. Ou, ainda, as normas j revogadas do
antigo Cdigo da Propriedade Industrial (Decreto 254/1967), que protegiam o nome
de empresa como uma espcie de marca,224 sistema no adotado pela vigente Lei da
Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996). Todavia, preferiu o legislador do Cdigo de
2002 buscar e repristinar, em normas concebidas para o comrcio e indstria no
sculo XIX, a base de regulao do nome empresarial no sculo XXI.
Nesse contexto, apegado a frmulas ultrapassadas, deixou o legislador do
cdigo de preencher uma grande lacuna presente na disciplina jurdica da empresa
no Brasil, representada, exatamente, entre a proteo diferenciada do nome
empresarial e das marcas das empresas. A proteo do nome empresarial, regulada
pela Lei do Registro Pblico de Empresas Mercantis (Lei 8.934/1994) permanece sob
224

Arnoldo Wald, Comentrios ao novo Cdigo Civil, vol. XIV, cit., p. 783.

Teoria crtica da empresa

136

Ivanildo Figueiredo

regime de jurisdio estadual das juntas comerciais, enquanto a proteo das marcas
submete-se ao sistema nacional tutelado sob a regncia da Lei da Propriedade
Industrial (Lei 9.279/1996). Diante dessa jurisdio diferenciada, conflitos entre nomes
empresariais registrados nas Juntas Comerciais, com competncia limitada ao
respectivo Estado da Federao, e marcas registradas perante o Instituto Nacional da
Propriedade Industrial INPI, continuaro sendo objeto de repetidas demandas
judiciais, nas quais, invariavelmente, discute-se a prevalncia da marca sobre o nome
empresarial.225
Outro problema que o Cdigo de 2002 reintroduziu no direito positivo brasileiro,
e que j estava pacificado na doutrina e na jurisprudncia, diz respeito possibilidade
de alienao do nome empresarial. Pelo art. 1.164 do Cdigo Civil, o nome
empresarial no pode ser objeto de alienao, no distinguindo o legislador, para esse
efeito, entre a firma e a denominao. Ora, a doutrina j havia resolvido esse
problema, reconhecendo a possibilidade de alienao do nome empresarial,
especialmente quando formado como denominao ou nome de fantasia, com base
na teoria do direito patrimonial de Clvis Bevilacqua, em contraposio teoria do
direito pessoal defendida por Pontes de Miranda.

225

Recurso especial. Propriedade industrial. Nome comercial. Marcas mistas. Princpios da


territorialidade e especificidade/especialidade. Conveno da Unio de Paris - CUP. (...) 3. A
tutela ao nome comercial se circunscreve unidade federativa decompetncia da junta comercial em
que registrados os atos constitutivos da empresa, podendo ser estendida a todo o territrio nacional
desde que seja feito pedido complementar de arquivamento nas demais juntas comerciais. Por sua vez,
a proteo marca obedece ao sistema atributivo, sendo adquirida pelo registro validamente expedido
pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, que assegura ao titular seu uso exclusivo em
todo o territrio nacional, nos termos do art. 129, caput, e 1 da Lei n. 9.279/1996. (REsp 1190341/RJ,
Rel. Ministro Luis Felipe Salomo, Quarta Turma, julgado em 05/12/2013, DJe 28/02/2014 e REsp
899.839/RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 17/08/2010, DJe 01/10/2010).
4. O entendimento desta Corte no sentido de que eventual colidncia entre nome empresarial e marca
no resolvido to somente sob a tica do princpio da anterioridade do registro, devendo ser levado
em conta ainda os princpios da territorialidade, no que concerne ao mbito geogrfico de proteo,
bem como o da especificidade, quanto ao tipo de produto e servio. (REsp 1359666/RJ, Rel. Ministra
Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28/05/2013, DJe 10/06/2013). 5. No caso concreto,
equivoca-se o Tribunal de origem ao afirmar que deve ser dada prioridade ao nome empresarial em
detrimento da marca, se o arquivamento na junta comercial ocorreu antes do depsito desta no INPI.
Para que a reproduo ou imitao de nome empresarial de terceiro constitua bice a registro de marca,
luz do princpio da territorialidade, faz-se necessrio que a proteo ao nome empresarial no goze
de tutela restrita a um Estado, mas detenha a exclusividade sobre o uso em todo o territrio nacional.
Porm, incontroverso da moldura ftica que o registro dos atos constitutivos da autora foi feito apenas
na Junta Comercial de Blumenau/SC. (...). (STJ, 4 Turma, REsp 1.184.867/SC, Relator Ministro Luis
Felipe Salomo, DJe 06/06/2014).

Teoria crtica da empresa

137

Ivanildo Figueiredo

A soluo ao final adotada, e encampada pela jurisprudncia, foi aquela que


conciliava as duas concepes, proposta por Gama Cerqueira, que reconhecia que,
alm do atributo da personalidade do comerciante (feio subjetiva), o nome , ao
mesmo tempo, elemento de identificao da atividade (feio objetiva).226 O Cdigo
de 2002, ao restaurar a antiga vedao alienao da firma comercial, com base na
tese superada do direito pessoal, cometeu a heresia maior de incluir a denominao
nessa restrio. A denominao, porquanto representa direito patrimonial, pode, sim,
ser objeto de alienao, porque fruto de criao intelectual na empresa, como o
ttulo do estabelecimento e as marcas de produtos e servios.

3.5.2. Restaurao da obrigatoriedade do registro de empresas e o conflito de


sistemas normativos

O regime do registro de empresas perante as juntas comerciais tambm foi


bastante descaracterizado pelo Cdigo Civil de 2002, que efetivamente provocou um
retrocesso de quase meio sculo na sua disciplina normativa, do mesmo modo como
observado nos critrios de formao do nome empresarial.
O Decreto 916/1890, no incio da Repblica, inovou em relao ao Cdigo
Comercial do Imprio de 1850, tornando facultativa a inscrio do comerciante no
Registro do Comrcio. Esse carter facultativo decorria dos princpios da liberdade de
profisso e da livre empresa, como reao natureza exclusivista das seculares
corporaes de mercadores, que somente permitiam o exerccio do comrcio queles
regularmente matriculados nas suas instncias de registro. Enquanto o Cdigo
Comercial de 1850 (art. 4) reputava comerciante, apenas, quem estivesse
devidamente matriculado no Tribunal de Comrcio do Imprio, o Decreto 916/1890
tornou esse registro facultativo (art. 11). Esse mesmo decreto extinguiu os Tribunais
de Comrcio, descentralizou suas atividades administrativas e atribuiu competncia
s Provncias para o exerccio das funes do registro comercial.

226

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 196.

Teoria crtica da empresa

138

Ivanildo Figueiredo

O art. 967 do Cdigo de 2002, em injustificvel e patente retrocesso, tornou


novamente obrigatria a inscrio do empresrio no Registro de Empresas Mercantis,
por mera reproduo da obrigatoriedade tal como constante do Cdigo Civil italiano
de 1942 (art. 2.195). Na Itlia sob regime fascista, todo comerciante ou empresrio
somente poderia exercer atividade econmica aps registrado e autorizado pelo
Estado. Idntico regime foi reestabelecido mais de cem anos aps, no Brasil, sem
base consuetudinria a justificar essa involuo.
Ao somente reconhecer como empresa aquela organizao econmica
devidamente registrada, o Cdigo de 2002 excluiu, em princpio, da sua disciplina,
todas as atividades econmicas informais ou realizadas margem do sistema legal,
inclusive certos tipos de contratos que podem ser celebrados com previso na
legislao codificada, como no caso da sociedade em conta de participao, que
uma sociedade que, por sua prpria natureza, no tem nome empresarial e no se
submete ao sistema de registro.
A facultatividade do registro da empresa sempre esteve restrita ao mbito do
regime de direito comercial, na medida em que a exigncia de regularidade possui
implicaes em outros aspectos decorrentes do exerccio da atividade empresarial,
como nos campos tributrio, previdencirio e trabalhista, por exemplo. Contudo,
margem do comrcio formal, sempre existiro atividades desempenhadas em carter
irregular, como a dos feirantes, pescadores, ambulantes, autnomos e pequenos
comerciantes, no se podendo recusar a essas pessoas a proteo, ainda que
restrita, da disciplina mercantil. Mesmo que esses comerciantes irregulares sofram
restries legais para o exerccio do seu pequeno comrcio, como a impossibilidade
de contrair financiamentos bancrios ou emitir duplicatas,227 no se pode deixar de
reconhecer a natureza mercantil da sua atividade.
Sob o aspecto procedimental, o Cdigo Civil de 2002 apresenta outra evidente
antinomia diante da evoluo do regime do Registro de Empresas. Isto porque o
Cdigo veio a restaurar o procedimento da inscrio do empresrio e da sociedade

227

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 66.

Teoria crtica da empresa

139

Ivanildo Figueiredo

empresria na Junta Comercial, quando a sistemtica atualmente adotada, desde a


Lei 4.726/1965, a do arquivamento dos atos das empresas, e no o da inscrio.
Na sua origem, no Cdigo Comercial de 1850, o comerciante era obrigado a
matricular-se nos Tribunais e nas Juntas de Comrcio do Imprio, em carter
obrigatrio, assumindo a matrcula aspecto vinculativo a essa profisso. A matrcula,
com efeito, possua carter de incluso em determinada classe ou instituio, como
membro permanente e sujeito ao estatuto da categoria.
Com o Decreto 916/1890, o regime de matrcula foi abolido e passou a ser
adotado o procedimento da inscrio do comerciante no registro de firmas, exercido
pela Junta Comercial. O procedimento da inscrio, alm de ser facultativo, tinha por
finalidade, no a de vincular o comerciante sua classe profissional econmica, mas
a de reunir, em um cadastro, as informaes inerentes a cada pessoa que estava a
requerer inscrio formal. Os comerciantes e as sociedades inscritas na Junta
Comercial passavam, desse modo, a usufruir os direitos assegurados pela legislao
mercantil para o exerccio da atividade, ao contrrio dos comerciantes no inscritos,
que no eram titulares de direitos e somente assumiam obrigaes na ordem jurdica,
como assim prescrevia o artigo 4 do Cdigo Comercial de 1850.
O comerciante irregular, com efeito, no tinha direito proteo do seu nome
comercial, no possua capacidade jurdica nem processual para postular em nome
do seu negcio, no podia registrar suas marcas de comrcio, no exercia direito
sobre o ponto comercial, estava impedido de requerer concordata, enfim, somente
respondia pelos nus e obrigaes incidentes sobre suas relaes mercantis.
A Lei 4.726/1965, alm de reorganizar o sistema do registro do comrcio,
procurou simplificar os procedimentos de formalizao dos atos das empresas. E
dentre as modificaes introduzidas, essa lei veio a abolir o regime da inscrio do
comerciante, instituindo o procedimento simplificado do arquivamento dos atos das
empresas, no exigindo mais a inscrio como ato formal de cadastramento. A partir
dessa lei, o procedimento principal de competncia das Juntas Comerciais passou a
ser o arquivamento dos atos dos comerciantes e das sociedades comerciais,

Teoria crtica da empresa

140

Ivanildo Figueiredo

referentes constituio, alterao, dissoluo e extino das firmas mercantis


individuais e das sociedades comerciais.228
O procedimento de arquivamento dos atos das empresas foi mantido pela atual
Lei 8.934/1994 (art. 32), com a finalidade principal de simplificar o processamento
desses atos, ao passo em que dispensava a formalidade da inscrio do comerciante
e da sociedade comercial nos seus registros. A importncia atribuda aos atos das
empresas estava circunscrita, apenas, ao aspecto da regularidade formal, restando a
configurao cadastral, prpria da inscrio, em segundo plano.229
Contraditoriamente, desconhecendo toda a evoluo do sistema do registro de
empresas nos ltimos 40 anos, o Cdigo Civil de 2002 restaurou o procedimento da
inscrio (art. 967), conferindo carter vinculativo das empresas ao respectivo
registro. E o regime da inscrio, como visto, era aquele adotado pelo Decreto
916/1890, que tambm, nesse aspecto, foi repristinado pelo Cdigo de 2002.
Em suma, instaurou-se no nosso ordenamento jurdico uma situao anmala,
na qual existiro dois procedimentos de regularizao da empresa sob o aspecto
registral: o regime da inscrio restaurado pelo Cdigo Civil, e o regime do
arquivamento disciplinado na Lei 8.934/1994.230 Enquanto no solucionada, por nova
legislao, essa contradio, dever continuar prevalecendo a lei especial, ou seja, a
Lei 8.934/1994,231 que disciplina o regime de arquivamento como o procedimento
prprio de registro das empresas e de reconhecimento da sua regularidade jurdica.

228

Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 120.


Observa Alfredo de Assis Gonalves Neto: No sistema da Lei 8.934/1994, o empresrio individual
no promovia nenhuma inscrio; elaborava a declarao de sua firma individual, segundo os
parmetros legais mnimos estabelecidos, os quais, uma vez preenchidos (art. 35 da referida Lei),
conduziam ao seu arquivamento no Registro Pblico de Empresas Mercantis. (Direito de empresa
Comentrios aos artigos 966 a 1.195 do Cdigo Civil, So Paulo, Revista dos Tribunais, 4 edio,
2012, p. 79).
230 A confuso no sistema de registro de empresas no Brasil aumentou mais ainda pela revogao da
Lei 8.934/1994 pelo Decreto 8.001/2013, que criou o Departamento de Registro Empresarial e
Integrao DREI, em substituio ao Departamento Nacional do Registro do Comrcio DNRC, como
referido anteriormente.
231 Atualmente, encontra-se em aparente vigor a Instruo Normativa DREI n 10/2013, que Aprova os
Manuais de Registro de Empresrio Individual, Sociedade Limitada, Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada EIRELI, Cooperativa e Sociedade Annima, a qual revogou as anteriores
Instrues Normativas do Departamento Nacional do Registro do Comrcio DNRC.
229

Teoria crtica da empresa

141

Ivanildo Figueiredo

3.5.3. A disciplina da sociedade dependente de autorizao derivada do DecretoLei 2.627/1940.

Em captulo especfico do Direito de Empresa (Captulo XI), o Cdigo Civil de


2002 contm normas destinadas a regular as sociedades que dependem, para
funcionar, de autorizao governamental (arts. 1.123 a 1.141).
Na realidade, as normas desse captulo nada mais so do que mera e literal
reproduo de artigos da antiga Lei das Sociedades por Aes (Decreto-Lei
2.627/1940). Com efeito, a anterior Lei das Sociedades por Aes, revogada quase
que integralmente pela Lei 6.404/1976, continuava ainda em vigor, apenas, nessa
parte residual que tratava das sociedades dependentes de autorizao, em especial
no que tange s sociedades estrangeiras.
Cabe ressaltar que o Decreto-Lei 2.627/1940, foi editado e outorgado em plena
convulso resultante dos radicais embates e problemas ideolgicos, sociais e
econmicos vivenciados durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).232 No
poderia essa lei ser considerada fruto de qualquer discusso ou debate de natureza
jurdica, porque estava influenciada pela necessidade de delimitar as fronteiras
ideolgicas das naes durante o maior conflito blico da histria mundial. Assim, com
certeza, as normas que tratavam do funcionamento de empresas estrangeiras no
Brasil foram elaboradas tendo em vista essa situao real de oposio entre naes
aliadas e naes inimigas.
Outorgado pelo ento Presidente e ditador do Estado Novo Getlio Vargas, o
Decreto-Lei 2.627/1940 apresentava ntida preocupao com o funcionamento das
empresas estrangeiras instaladas no Brasil, atribuindo ao Governo Federal efetivo

232

No ms de setembro de 1940, quase toda a Europa ocidental encontrava-se subjugada pelo exrcito
alemo, governado pela ideologia nazista, que ocupava a Frana, Holanda, Blgica, Dinamarca e
Noruega, ao mesmo tempo em que se travava nos cus a Batalha da Inglaterra. A Itlia, a Espanha e
Portugal eram dominados por governos fascistas. Esse era o conturbado ambiente em que foi
outorgado, por decreto, o diploma regulatrio das sociedades annimas no Brasil.

Teoria crtica da empresa

142

Ivanildo Figueiredo

controle sobre suas atividades em territrio nacional.233 Mesmo que superada, quase
meio sculo depois, essa situao de crise blica e ideolgica entre as naes, e que
exigia, naquele momento, um controle governamental sobre as empresas
estrangeiras, caracterizado, mesmo, por componentes de xenofobia, o Cdigo Civil
de 2002 passou a reproduzir, de modo quase literal, as mesmas normas elaboradas
para aquela realidade pretrita totalmente convulsionada.
No quadro comparativo abaixo, essa concluso pode ser verificada com base
na confrontao de algumas das normas correspondentes entre si, para caracterizar
a quase absoluta identidade na redao dos dispositivos legais:
Decreto-Lei 2.627/1940
Art. 59. A sociedade annima ou
companhia que dependa de autorizao do
Governo para funcionar, reger-se- por
esta lei, sem prejuzo do que estabelecer a
lei especial.
Art. 59. Pargrafo nico. A competncia
para a autorizao sempre do Governo
Federal.
Art. 60. So nacionais as sociedades
organizadas na conformidade da lei
brasileira e que tm no pas a sede de sua
administrao
Art. 60. Pargrafo nico. Quando a lei
exigir que todos os acionistas ou certo
nmero deles sejam brasileiros, as aes
da companhia ou sociedade annima
revestiro a forma nominativa. Na sede da
sociedade ficar arquivada uma cpia
autntica do documento comprobatrio da
nacionalidade.
Art. 63. As sociedades annimas ou
companhias nacionais, que dependem de
autorizao do Governo para funcionar,
no podero constituir-se sem prvia
autorizao, quando seus fundadores
pretenderem recorrer a subscrio pblica
para a formao do capital.

233

Cdigo Civil 2002


Art. 1.123. A sociedade que dependa de
autorizao do Poder Executivo para
funcionar reger-se- por este ttulo, sem
prejuzo do disposto em lei especial.
Art. 1.123. Pargrafo nico. A competncia
para a autorizao ser sempre do Poder
Executivo federal.
Art. 1.126. nacional a sociedade
organizada de conformidade com a lei
brasileira e que tenha no Pas a sede de sua
administrao.
Art. 1.126. Pargrafo nico. Quando a lei
exigir que todos ou alguns scios sejam
brasileiros, as aes da sociedade annima
revestiro, no silncio da lei, a forma
nominativa. Qualquer que seja o tipo da
sociedade, na sua sede ficar arquivada
cpia
autntica
do
documento
comprobatrio da nacionalidade dos scios.
Art. 1.132. As sociedades annimas
nacionais, que dependam de autorizao do
Poder Executivo para funcionar, no se
constituiro sem obt-la, quando seus
fundadores
pretenderem
recorrer
a
subscrio pblica para a formao do
capital.

Sobre a presena de empresas alems no Brasil durante o conflito da Segunda Guerra Mundial, as
acusaes de espionagem e a atuao do Governo Federal, Stanley E. Hilton, Sustica sobre o Brasil
A Histria da Espionagem Alem no Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1977, passim.

Teoria crtica da empresa

143

Ivanildo Figueiredo

Decreto-Lei 2.627/1940
Art. 64. As sociedades annimas ou
companhias estrangeiras, qualquer que
seja o seu objeto, no podem, sem
autorizao do Governo Federal, funcionar
no pas, por si mesmas, ou por filiais,
sucursais, agncias, ou estabelecimentos
que as representem, podendo, todavia,
ressalvados os casos expressos em lei, ser
acionistas de sociedade annima brasileira
(art. 60).
Art. 66. As sociedades annimas
estrangeiras funcionaro no territrio
nacional com a mesma denominao que
tiverem no seu pas de origem, podendo,
entretanto, acrescentar as palavras do
Brasil ou para o Brasil.
Art. 67. As sociedades annimas
estrangeiras, autorizadas a funcionar, so
obrigadas a ter, permanentemente,
representante no Brasil, com plenos
poderes para tratar de quaisquer questes
e resolv-las definitivamente, podendo ser
demandado e receber citao inicial pela
sociedade.
Art. 68. As sociedades annimas
estrangeiras autorizadas a funcionar
ficaro sujeitas s leis e aos tribunais
brasileiros quanto aos atos ou operaes
que praticarem no Brasil.

Cdigo Civil 2002


Art. 1.134. A sociedade estrangeira,
qualquer que seja o seu objeto, no pode,
sem autorizao do Poder Executivo,
funcionar no Pas, ainda que por
estabelecimentos subordinados, podendo,
todavia, ressalvados os casos expressos em
lei, ser acionista de sociedade annima
brasileira.
Art. 1.137. Pargrafo nico. A sociedade
estrangeira funcionar no territrio nacional
com o nome que tiver em seu pas de
origem, podendo acrescentar as palavras
do Brasil ou para o Brasil.
Art. 1.138. A sociedade estrangeira
autorizada a funcionar obrigada a ter,
permanentemente, representante no Brasil,
com poderes para resolver quaisquer
questes e receber citao judicial pela
sociedade.
Art. 1.137. A sociedade estrangeira
autorizada a funcionar ficar sujeita s leis e
aos tribunais brasileiros, quanto aos atos ou
operaes praticados no Brasil.

No se justifica, de modo algum, seja sob a perspectiva histrica, seja


considerando a prpria lgica presente nas relaes internacionais ou multilaterais,
em plena era da globalizao, a situao mundial durante a Segunda Grande Guerra,
na dcada de 1940, poderia ser transposta, quase literalmente, para o nosso
ordenamento em poca, totalmente distinta, mais de sessenta anos depois.
Essa transposio poderia ser justificada, se e apenas se, caso porventura
fossem levadas em considerao a preocupao e o instinto defensivo da ideologia
da segurana nacional, decorrente do alinhamento do Brasil aos pases ocidentais,
no perodo da assim denominada guerra fria, entre as naes vinculadas
Organizao do Tratado do Atlntico Norte OTAN, e os pases o bloco sovitico do
Pacto de Varsvia (1945-1989).

Teoria crtica da empresa

144

Ivanildo Figueiredo

Ainda que o Cdigo Civil de 2002 tenha sido concebido sob ntida orientao
conservadora, como aquela prevalente durante o regime militar vigente no nosso Pas
(1964-1985), e conduzido por um jurista tambm conservador, como era assim
considerado o Professor Miguel Reale, no justificvel que normas concebidas sob
uma situao totalmente diversa, continuem a prevalecer, ainda que sob nova capa
de aparente legitimidade, incorporadas a um Cdigo em pleno sculo XXI.
As normas que disciplinam a situao das sociedades nacionais e estrangeiras
dependentes de autorizao, como constantes do Cdigo de 2002 evidenciam, de
modo evidente, conclusivo, a total defasagem histrica e ideolgica do Cdigo Civil,
cabendo, neste ponto, reconhecer que o legislador comportou-se displicentemente,
comodamente, alinhado a uma concepo ultrapassada, sem nenhuma preocupao
com os fatores histricos que modificaram a situao das atividades das empresas
estrangeiras na atual era de globalizao dos mercados.
A Constituio Federal de 1988 estabeleceu um conceito prprio para a
empresa brasileira, diferenciado do conceito de empresa brasileira de capital nacional,
distino essa constante do atual art. 1.126 do Cdigo Civil. A empresa brasileira,
segundo o art. 171, inciso I, da Constituio de 1988, era considerada como sendo
aquela constituda sob as leis brasileiras, com sede e administrao no Pas. Dentro
dessa definio enquadravam-se tanto as empresas controladas por brasileiros, como
as empresas constitudas sob nossas leis, mas controladas por acionistas
domiciliados no exterior, como o caso das empresas transnacionais. O inciso II
desse mesmo art. 171 da Constituio considerava como empresa brasileira de
capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em carter permanente sob a
titularidade direta ou indireta de pessoas fsicas domiciliadas e residentes no Pas.
Seguindo a tendncia neoliberal da economia, resultante do processo de
globalizao econmica, o art. 171 da Carta de 1988 foi revogado, integralmente, pela
Emenda Constitucional n 6, de 1995. Desse modo, a Constituio eliminou do nosso
ordenamento jurdico, a partir dessa emenda, qualquer distino entre empresa
nacional e empresa brasileira de capital nacional, em razo dos controladores
estarem, ou no, domiciliados no Brasil.

145

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

No obstante a supresso dessa distino conceitual, o Cdigo Civil de 2002


manteve o conceito de sociedade nacional (art. 1.126), como sendo aquela
organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no Pas a sede de sua
administrao. Esse conceito, todavia, no possui mais qualquer fundamento ou
justificativa constitucional, demonstrando, tambm por esse modo, a desatualizao
e o descompasso normativo na sua reproduo pelo Cdigo Civil, diante das
disposies constitucionais vigentes.
Se a Constituio no mais distingue a empresa nacional, segundo o local de
domiclio dos seus acionistas ou scios controladores, as normas do Cdigo Civil que
diferenciam as empresas nacionais e estrangeiras, demonstram-se, agora,
prejudicadas em face das disposies constitucionais vigentes que regulam o ttulo
da ordem econmica (CF, arts. 170 a 174).
Para alguns doutrinadores, todavia, analisando a questo sob o aspecto
estritamente literal e dogmtico, o Cdigo Civil, mesmo aps a Emenda 06/1995, pode
estabelecer

tratamento

diferenciado

entre

empresa

brasileira

empresa

estrangeira.234 O que deve ser diferenciado, contudo, o domiclio da empresa, no


de seus scios ou acionistas. Se a empresa, integrada por scios residentes no
exterior, constituda sob as leis brasileiras, ela empresa nacional, para todos os
efeitos legais. A empresa estrangeira, no sentido de ser exigida autorizao para
funcionar no pas, aquela que, constituda no pas de origem, vem instalar filial ou
agncia no Brasil.235

234

Apesar de a Constituio Federal no acolher uma nacionalidade da pessoa jurdica,


plenamente possvel ao legislador infraconstitucional estabelecer critrios e restries para o exerccio
da atividade econmica, nos termos do permissivo contido no art. 170, pargrafo nico, da nossa Carta
Poltica, que proclama o livre exerccio de qualquer atividade econmica, independentemente de
autorizao dos rgos pblicos, salvo nos casos previstos em lei. (Alfredo de Assis Gonalves Neto,
Direito de empresa Comentrios aos artigos 966 a 1.195 do Cdigo Civil, cit., p. 578).
235 Nesse segundo caso de pedido de autorizao para funcionamento, segundo Fbio Ulhoa Coelho
observa que no se constitui nenhuma pessoa jurdica nova, apenas se confere licena para a
extenso ao Brasil das operaes negociais exploradas pelo estrangeiro. (Curso de Direito
Comercial, vol. 2 Sociedades, So Paulo, Saraiva, 15 edio, 2011, p. 51).

Teoria crtica da empresa

146

Ivanildo Figueiredo

3.5.4. Crticas s normas de contabilidade empresarial

Uma das partes do livro do Direito de Empresa que foi objeto de crticas pela
doutrina especializada, tanto da rea jurdica como tambm entre os profissionais das
cincias contbeis, aquela que regula a escriturao e a contabilidade da empresa,
constante no Captulo IV, do Ttulo IV, relativo aos institutos complementares (artigos
1.179 a 1.195).
A doutrina considerou que no caberia a um cdigo dispor sobre matria
contbil a nvel to detalhado, assunto inerente legislao supletiva, prpria de
normas inferiores ou regulamentares de natureza empresarial e contbil.236 Outras
crticas foram feitas vista da desatualizao do Cdigo de 2002, que no incorporou
as modificaes introduzidas na legislao contbil desde a Lei 6.404/1976 (arts. 175
a 188).237
Como regulado no antigo Cdigo Comercial de 1850, este determinava, logo
aps definir comerciante e suas caractersticas, as obrigaes comuns a todos os que
exerciam o comrcio (artigos 10 a 20). Tais prescries limitavam-se a estabelecer as
obrigaes que todo comerciante deveria atender para a regularidade da sua situao
jurdica: manter uma contabilidade regular, levantar balano anual do ativo e passivo
e conservar os livros contbeis. Essas normas descreviam, ainda, os requisitos
intrnsecos e extrnsecos que deveriam ser observados na escriturao dos livros
contbeis.
O Cdigo Civil de 2002, ao normatizar os procedimentos da escriturao
contbil das empresas, realizou mera compilao das normas e dos procedimentos
contbeis constantes do Decreto-Lei 305/1967 e do Decreto-Lei 486/1969, os quais,

236

Mario Cozza, Novo Cdigo Civil: Do Direito de Empresa, Porto Alegre, Sntese, 2002.
Ludio Camargo Fabretti, Direito de Empresa no novo Cdigo Civil, So Paulo, Atlas, 2003, p.
77.
237

Teoria crtica da empresa

147

Ivanildo Figueiredo

por sua vez, no passam de simples atualizao dos artigos do Cdigo Comercial de
1850. Nada ou quase nada inovou, portanto, sobre a matria.
Em termos gerais, a disciplina do Cdigo de 2002 estabelece a obrigatoriedade
de todo empresrio ou sociedade empresria adotar sistema uniforme de
contabilidade, com base na escriturao do livro dirio, e de levantar, a cada ano, um
balano patrimonial representativo da posio do ativo e do passivo da empresa.
A contabilidade compreende o sistema de lanamento e registro dos fatos
econmicos capazes de modificar a situao patrimonial da empresa. De modo
resumido, a contabilidade o sistema de informao que controla o patrimnio de
uma entidade.238 A contabilidade representa, portanto, o sistema de registro dos fatos
patrimoniais, enquanto a escriturao o mtodo de lanamento desses registros nos
livros prprios.
Ao final de cada exerccio social, a empresa obrigada a elaborar as suas
demonstraes financeiras, as quais devero exprimir com clareza a situao do
patrimnio da companhia na data do trmino do exerccio social (posio esttica) e
as mutaes patrimoniais ocorridas no exerccio ento findo (posio dinmica).239
Apesar da Lei 6.404/1976 referir-se s sociedades por aes, disciplinando seu
regime jurdico prprio, as normas relativas contabilidade e demonstraes
financeiras das companhias (artigos 175 a 188), so aplicveis aos demais tipos
societrios, a partir dos princpios de contabilidade geralmente aceitos (Lei
6.404/1976, art. 177).240
Cabe ressaltar que a denominao escriturao revela-se defasada e
inapropriada para disciplinar os conceitos e procedimentos contbeis das empresas
na atualidade. Desde a Lei 6.404/1976, os resultados da contabilidade passaram a
ser denominados demonstraes financeiras, conceito mais largo, abrangente e
adequado para definir o sistema de clculo e expresso do desempenho financeiro,
econmico e patrimonial das empresas.241 Outra crtica que deve ser posta neste ponto
238

Clvis Luis Padoveze, Manual de Contabilidade Bsica, So Paulo, Atlas, 5 edio, 2004, p. 29.
Modesto Carvalhosa e Nilton Latorraca, Comentrios Lei de Sociedades Annimas, vol. 3, So
Paulo, Saraiva, 1997, p. 554.
240 Jos Edwaldo Tavares Borba, Direito Societrio, Rio de Janeiro, Renovar, 5 edio, 1999, p. 404.
241 A expresso escriturao revela-se imprpria e defasada porque, dentro desse captulo, esto no
s a escriturao mas tambm as demonstraes contbeis, sendo que o mais correto o que faz a
239

Teoria crtica da empresa

148

Ivanildo Figueiredo

que um Cdigo Civil, diploma que contm normas gerais, no deveria descer s
mincias dos procedimentos da contabilidade e da escriturao mercantil. Assim, se
o Cdigo de 2002 teve como objetivo importar conceitos e procedimentos detalhados
de contabilidade empresarial, os quais somente caberiam na legislao especial, de
outro lado incorreu em grave atecnia, ao confundir o procedimento da escriturao
com o conceito mais amplo de contabilidade.242
De modo abrangente, o sistema contbil deve ser adotado por qualquer tipo de
entidade que possua patrimnio prprio, no sendo exclusivo das sociedades
empresrias. Uma fundao ou associao de fins no econmicos dever, da
mesma maneira que as sociedades empresrias, manter uma estrutura contbil e um
regime de escriturao apto a registrar as suas variaes patrimoniais. Contudo, o
Cdigo de 2002 apenas se refere, vagamente, sem qualquer detalhamento,
competncia da assemblia geral das associaes no econmicas para a aprovao
das contas dos seus administradores (art. 59, inciso III). Nenhum sistema contbil
especfico regulou o Cdigo no que tange s associaes e fundaes, quando, por
uma questo de coerncia, deveria ter assim disciplinado, ainda que fosse para
mandar aplicar, por analogia, no que coubesse, as normas contbeis das sociedades
empresrias.
Ao especificar um regime contbil necessrio e obrigatrio, apenas, ao
empresrio e s sociedades empresrias, o Cdigo de 2002 revela a sua preocupao
de abarcar, nas suas normas, institutos especficos da legislao mercantil, ao passo
que deixou de estabelecer os procedimentos contbeis que devem ser, igualmente,
observados pelas demais formas associativas corporativas, assim como nas
fundaes de direito privado (art. 62).
Na disciplina da contabilidade da empresa, o Cdigo de 2002 no apresenta,
como visto, nada de novo. Pelo contrrio. Ele reproduz, com outras palavras, textos
do Cdigo Comercial de 1850 e do Decreto-Lei 486/1969. A base referencial desse
captulo, tambm, remonta ao Cdigo Civil italiano de 1942, que nos seus artigos
Lei das S/A ao cham-lo de Exerccio Social e Demonstraes Financeiras (Eliseu Martins,
Atrocidades Contbeis no Novo Cdigo Civil, Boletim SIA Sistema de Informaes da Associao
Brasileira de Companhias Abertas - ABRASCA, Rio de Janeiro, n 612, 23/09/2002, p. 5).
242 Amador Paes de Almeida, Direito de Empresa no Cdigo Civil, So Paulo, Saraiva, 2004, p. 236.

149

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

2.214 a 2.221 trata da escriturao contbil (Delle scritture contabili), e nos artigos
2.423 a 2.435 dispe sobre a obrigao e critrios de elaborao do balano
patrimonial (Del bilancio).243
Alm da inadequao na regulao desses procedimentos contbeis de
natureza estritamente mercantil, o Cdigo Civil desce a um nvel de detalhamento
absolutamente desnecessrio. Por exemplo, assim verifica-se no art. 1.187, que trata
dos critrios de avaliao dos bens da empresa na

elaborao do inventrio

patrimonial. Nesse dispositivo, o Cdigo Civil chega ao cmulo de especificar critrios


que somente regulamentos contbeis infralegais deveriam definir.244
Como observado, a lei especial das companhias apresenta-se bem mais
objetiva e sucinta em comparao com a redao do Cdigo Civil. E o resultado
prtico da aplicao de ambas as normas, sob o ponto de vista contbil, exatamente
o mesmo.

243 Mrio Srgio Milani, Da escriturao no novo Cdigo Civil, So Paulo, Juarez de Oliveira, 2004,
p. 8.
244 Cdigo Civil de 2002 - Art. 1.187. Na coleta dos elementos para o inventrio sero observados os
critrios de avaliao a seguir determinados: (...) II - os valores mobilirios, matria-prima, bens
destinados alienao, ou que constituem produtos ou artigos da indstria ou comrcio da empresa,
podem ser estimados pelo custo de aquisio ou de fabricao, ou pelo preo corrente, sempre que
este for inferior ao preo de custo, e quando o preo corrente ou venal estiver acima do valor do custo
de aquisio, ou fabricao, e os bens forem avaliados pelo preo corrente, a diferena entre este e o
preo de custo no ser levada em conta para a distribuio de lucros, nem para as percentagens
referentes a fundos de reserva. O art. 183 da Lei 6.404/1976, ao dispor sobre situao contbil
equivalente prevista nesse art. 1.187, prescreve: Art. 183. No balano, os elementos do ativo sero
avaliados segundo os seguintes critrios: (...) II - os direitos que tiverem por objeto mercadorias e
produtos do comrcio da companhia, assim como matrias-primas, produtos em fabricao e bens em
almoxarifado, pelo custo de aquisio ou produo, deduzido de proviso para ajust-lo ao valor de
mercado, quando este for inferior.

Teoria crtica da empresa

150

Ivanildo Figueiredo

Captulo 4
Conceitos fundamentais do direito de empresa

4.1. A empresa como categoria central do sistema; 4.2. Do


comerciante ao empresrio; 4.3. Conceito de empresrio;
4.4. A sociedade empresria como modo de exerccio
coletivo da empresa; 4.5. Tipologia da empresa; 4.6.
Transformao e converso da forma da empresa; 4.7. A
empresa individual de responsabilidade limitada EIRELI;
4.8. O regime da microempresa e da empresa de pequeno
porte; 4.9. O estabelecimento empresarial e sua
positivao no Cdigo Civil.

4.1. A empresa como categoria central do sistema

O Cdigo Civil de 2002 no define a empresa. Por isso, segundo a doutrina, a


definio de empresa deve ser extrada do prprio conceito de empresrio (CC, art.
966).245 A empresa considerada, em princpio, como atividade econmica em si,
como exerccio da funo de produo ou circulao de mercadorias ou de servios.
Na acepo clssica de Pontes de Miranda, ao tratar da empresa como propriedade
mobiliria, como universalidade, chama-se empresa ou estabelecimento ao exerccio
profissional de atividade econmica, que se organize para a produo ou distribuio
de bens ou servios. E assim, quem cria a empresa precisa de complexo de bens,
de que possa dispor, ou usar, para atingir os fins do empreendimento.246
Na lio de Pontes de Miranda, como adotaremos adiante, a empresa
representa tanto a atividade, como exerccio profissional de atos necessrios
produo e circulao de bens ou servios, como o modo de organizao do complexo
245

Srgio Campinho, O direito de empresa luz do novo Cdigo Civil, op. cit., p. 13.
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, So Paulo, Revista dos
Tribunais, 4 edio, 1983, Tomo XV, p. 355.
246

Teoria crtica da empresa

151

Ivanildo Figueiredo

de bens que integra o estabelecimento, a que Pontes denomina fundo de empresa, e


que a doutrina tradicional trata por fundo de comrcio. A empresa, sem embargo, no
pode ser compreendida fora dessa relao simbitica e siamesa frente ao
estabelecimento, com a organizao dos fatores de produo do qual resulta o
aviamento e a capacidade da empresa gerar lucros, fim ltimo e desiderato da sua
funo econmica. A prpria teoria da empresa, para ser explicada e compreendida,
exige o recurso definio de estabelecimento empresarial ou comercial como
elemento intrnseco ao seu exerccio, desde seu conceito legal originrio do Cdigo
italiano de 1942: L'azienda il complesso dei beni organizzati dall'imprenditore (2082)
per l'esercizio dell'impresa (2555). 247
Entende Rubens Requio que o jurista trabalha sobre o conceito econmico
para formular a noo jurdica de empresa.248 Essa dependncia da construo
conceitual da empresa pela teoria econmica sempre representou resistncia por
parte dos juristas em adotar definio importada de outra rea de conhecimento, no
elaborada pela doutrina do direito. Na contextualizao da empresa, cabe considerar
que ela existe para desempenhar, no mercado, as seguintes atividades:
a) a produo, industrializao, tranformao e manufatura de bens;
b) a circulao de bens, originrios de produo industrial ou de compra para revenda
ou aluguel do uso;
c) a prestao de servios, de carter prprio ou realizados como atividades
complementares ou conexas produo e circulao de bens;
d) as atividades financeiras, creditcias, cambiais, de seguros e negociao de ttulos
e valores mobilirios;
e) as atividades extrativas minerais, vegetais, agrcolas e animais, quando
estruturadas para beneficiamento desses produtos e oferta no mercado.

247

Observa Giampaolo de Ferra que a identificao do centro de gravidade da disciplina do direito


comercial depende, exclusivamente, de uma escolha legislativa. Isto significa que no se podem
individualizar os parmetros absolutos nem para a definio dos limites da matria nem para a
descrio das suas linhas importantes fora do exame do texto legislativo. (Lezioni di diritto
commerciale, Padova, Cedam, 2001, p. 1). Assim, se o texto legal reza que o estabelecimento, o
patrimnio aziendale, do modo como organizado, absolutamente necessrio e imprescindvel ao
exerccio da empresa, o conceito ou ideia de empresa no pode estar limitado pela noo de atividade,
da funo de produo e circulao de bens para o mercado.
248 Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 51.

Teoria crtica da empresa

152

Ivanildo Figueiredo

A partir da especificao das atividades desempenhadas pela empresa,


decorrente de sua noo econmica, a doutrina desenvolveu sua definio jurdica.
Nesse sentido, como conceito corrente dominante, na lio de Fbio Ulhoa Coelho,
empresa a atividade, cuja marca essencial a obteno de lucros com o
oferecimento ao mercado de bens ou servios, gerados estes mediante a organizao
dos fatores de produo (fora de trabalho, matria-prima, capital e tecnologia).249
Conforme tal entendimento, a atividade, em si, no gera lucros, na medida em que a
eficincia econmica da empresa depende do modo como os fatores de produo so
organizados. A aptido da empresa produzir lucros resulta do aviamento exteriorizado
a partir do estabelecimento, como posto por Ascarelli,250 no da atividade em si.
A empresa, categoria central do direito empresarial, no significa o mesmo que
estabelecimento, com este no se confunde, como assim esclarece Fbio Ulhoa
Coelho.251 Todavia, a empresa no se restringe atividade. O conceito de empresa
no pode ser extrado diretamente ou apenas decalcado do conceito de empresrio
(CC, art. 966). O empresrio, sim, exerce atividade profissional de produo ou
circulao de bens ou de servios. Cabe ao empresrio, juntamente com seus
colaboradores, organizar, a partir do capital investido, os fatores de produo, para
que a empresa possa executar seu objeto mercantil.
O exerccio da atividade empresarial pressupe um mnimo de organizao dos
fatores de produo, uma base de disposio para inverso do capital, integrada por
bens corpreos e incorpreos, a partir da definio do seu objeto, da delimitao da
rea territorial de atuao, do nome empresarial, da contratao de colaboradores, da
escolha de fornecedores, enfim, dos componentes necessrios composio do
estabelecimento. A empresa, conforme o prprio art. 966 enuncia ao tratar do conceito
de empresrio, definida como a atividade econmica organizada que o empresrio
exercita. O conceito de empresa, aqui, aproxima-se ainda mais da ideia de
organizao, na medida em que no poderia definir-se como empresa uma atividade

249 Empresa a atividade econmica organizada para a produo ou circulao de bens ou servios.
Sendo uma atividade, a empresa no tem a natureza jurdica de sujeito de direito nem de coisa. Em
outros termos, no se confunde com o empresrio (sujeito) nem com o estabelecimento empresarial
(coisa). (Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 32/33).
250 Tullio Ascarelli, Iniciao ao Estudo do Direito Mercantil, Sorocaba, Minelli, 2007, p. 365.
251 Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 32/33.

Teoria crtica da empresa

153

Ivanildo Figueiredo

econmica desorganizada, destituda de lgica operacional. Na atividade entrpica,


prpria da desorganizao, os fatores de produo no esto dispostos de modo a
possibilitar o exerccio normal da funo empresarial.
Alm da contribuio da teoria dos perfis de Alberto Asquini,252 a doutrina
moderna apoia-se nos estudos de Giuseppe Ferri para desenvolver a noo jurdica
de empresa a partir do modo como ela atua no mbito da economia de mercado.
Segundo Ferri, a empresa deve ser estudada com base nos seus aspectos mais
caractersticos, do seguinte modo:253
a) a empresa como expresso da atividade do empresrio, e desse modo sujeita
a normas de regulao, a partir da fixao de requisitos para o exerccio da
atividade empresarial, que devem ser comprovados perante o registro do comrcio;
b) a empresa como idia criativa, a qual ser objeto de proteo pelo direito a partir
da legislao da propriedade industrial, da tutela dos direitos imateriais e das
normas de represso concorrncia desleal;
c) a empresa como complexo de bens, confundindo-se com a noo de
estabelecimento comercial, compreendendo a reunio de direitos materiais e
imateriais organizados pelo empresrio para o seu exerccio;
d) a empresa sob a perspectiva das relaes com os seus colaboradores,
considerada a partir dos princpios hierrquicos e das relaes de emprego, matria
que passou para uma rea de regulao mais especializada no campo do direito do
trabalho.

A atividade, elemento de definio da empresa, observa Vincenzo Buonocore,


no sinnimo de ato, mas est a indicar um complexo de atos relacionados a um
escopo comum: o exerccio do objetivo econmico.254 Esse complexo de atos
compreende aqueles de natureza tcnica, mercantil, organizacional, operacional,
252

O conceito de empresa o conceito de um fenmeno econmico polidrico, o qual tem sob o


aspecto jurdico, no um, mas diversos perfis em relao aos diversos elementos que o integram. As
definies jurdicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o
fenmeno econmico encarado. (Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 109/110).
253 Giuseppe Ferri, Manuale di Diritto Commerciale, Turim, Unione Tipografica, 1956, apud Rubens
Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 51.
254 Atividade no sinnimo de ato, mas est a indicar um complexo de atos relacionados a um escopo
comum, no sentido que todo ato que o empresrio executa serve ao exerccio da empresa, e, mais em
particular, a realizar a produo ou a troca de um ou mais bens, de um ou mais servios determinados:
em concreto, ao menos segundo a opinio de parte da doutrina, o carter econmico da atividade,
est aparentemente reiterado com a locuo para a produo ou a circulao de bens ou de servios.
(Vincenzo Buonocore, LImpresa - Trattato di Diritto Commerciale, Torino, G. Giappichelli Editore,
2002, p. 62).

Teoria crtica da empresa

154

Ivanildo Figueiredo

industrial, contbil, que, subsumidos na norma, produzem efeitos jurdicos na


realidade econmica e nas relaes patrimoniais intersubjetivas.
O complexo de atos comuns a toda empresa est compreendido na execuo
do objeto comercial, da atividade principal, que a produo ou circulao de bens
ou de servios. Para exercer essa atividade, a empresa realiza atos perante sua
clientela, fornecedores, credores, que se consubstanciam em contratos, obrigaes
mercantis, referenciados a partir do que pode ser considerado o negcio jurdico
empresarial por excelncia e aspecto nuclear dominante: a compra e venda mercantil.
A concepo jurdica de empresa como organismo voltado ao exerccio de atividade
econmica existe desde a enumerao dos atos de comrcio pelo Cdigo Comercial
francs de 1807, que menciona as empresas de manufatura e outros tipos de negcios
mercantis realizados atravs de estabelecimentos comerciais.255
Na opinio de Waldemar Ferreira, o legislador do Cdigo francs de 1807, por
inadvertncia ou no, no rol dos atos de comrcio se incluram certas empresas e,
at, estabelecimentos, quando nele no deviam figurar, seno e exclusivamente,
atos.256 Assim, a partir do momento em que o regime do cdigo francs passou a se
referir s empresas, presente nos diversos tipos de atividades mercantis, em especial
no tocante s empresas de manufatura ou industriais, desse momento em diante a
figura da empresa foi positivada, apesar da lei no contemplar, ainda, no sculo XIX,
um conceito prprio para melhor caracteriz-la como instituto jurdico.
Configurada a empresa como instituto de direito comercial, mesmo sob o
regime da teoria dos atos de comrcio, a doutrina procurou explicar a natureza e as
caractersticas da empresa, assim como compatibilizar essa figura com a pessoa do
comerciante, at ento considerado como elemento central e principal sujeito no
exerccio da atividade mercantil. Tendo por base o Cdigo Comercial francs de
1807, Lyon-Caen & Renault afirmam que a expresso empresa no se referia a um
fato isolado, mas ao exerccio de uma profisso ou, ao menos, de uma srie de atos

255

O Cdigo Comercial francs de 1807 (art. 632) considerava como ato de comrcio toute entreprise
de manufactures, de commission, de transport par terre ou par eau, e tambm toute entreprise de
fornitures, dagence, bureau daffaires, tablissements de ventes lencan, de spetacles publics.
256 Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. II, Teoria dos Atos de Comrcio,
cit., 191.

Teoria crtica da empresa

155

Ivanildo Figueiredo

de uma certa importncia que implicam em uma organizao pr-estabelecida para


um objetivo de negcios.257 A empresa, nessa perspectiva, no incio do sculo XX, j
era concebida pela doutrina como reproduo seqenciada de atos de comrcio, a
partir de estrutura organizada e predisposta celebrao de negcios mercantis.
No Brasil, o Regulamento 737, complemento do Cdigo Comercial de 1850, a
pretexto de estabelecer a competncia da jurisdio do Tribunal de Comrcio do
Imprio no julgamento das causas mercantis, reproduziu, quase literalmente, o
enunciado do Cdigo francs, ao fazer meno, dentre os atos de comrcio, s
empresas de fbricas, de comisses, de depsito, de expedio, consignao e
transporte de mercadorias e espetculos pblicos (Decreto 737/1850, art. 19, 3).
O Cdigo Comercial italiano de 1882, do mesmo modo que o Cdigo Comercial
brasileiro de 1850, igualmente se filiou ao sistema francs dos atos de comrcio, ao
referir-se a vrias espcies de empresas, relacionando, entre outras, as empresas de
fornecimento, de construo, de manufatura, de espetculos pblicos, as empresas
editoras, tipogrficas ou de livraria, de transporte de pessoas ou coisas, por terra ou
por mar, e as empresas de comisso, de agncia ou de negcios. Na opinio de
Vincenzo Buonocore, analisando a questo entre os comercialistas contemporneos,
a incluso da empresa como ato de comrcio no Cdigo italiano de 1882 j antecipava
o perfil da atividade da empresa, como viria a ser adotado em seguida.258
Procurando formular um conceito unitrio de empresa a partir dessa disposio
exemplificativa do Cdigo Comercial italiano de 1882, Alfredo Rocco observara que
alguns doutrinadores consideram que no haveria outro caminho a seguir que no
fosse o de considerar a empresa um complexo de negcios, tendo por base uma
organizao nica, e agrupando-se estes negcios em torno de um nico organismo

257

Charles Lyon-Caen, & Louis Renault, Manuel de Droit Commercial, Paris, Librairie Gnrale de
Droit et de Jurisprudence, 11 editin, 1913, p. 35.
258 Somente para compreender a funo unificadora dos institutos comercialistas que a empresa e
inversamente, tambm o empresrio que exercita a atividade executa, bastar por um momento
repensar a circunstncia de que, no Cdigo de Comrcio abrogado, a empresa era somente um ato de
comrcio ao lado dos outros atos elencados no artigo 3 e vinha, por isso, concebida no sob um perfil
da atividade, mas sob aquele da modalidade de exerccio do ato, enquanto hoje a empresa identificase com a atividade desenvolvida pelo empresrio com certas caractersticas, e, por isso, s so
discutidos os problemas de qualificao dessa atividade. (Vincenzo Buonocore, LImpresa - Trattato
di Diritto Commerciale, cit., p. 50).

Teoria crtica da empresa

156

Ivanildo Figueiredo

econmico.259 De acordo com essa concepo, aduz Rocco, o trao caracterstico


da empresa seria o exerccio de uma atividade complexa e, portanto, uma repetio
de certos atos singulares que se refletiria subjetivamente na inteno de algum se
dedicar com estabilidade e continuamente prtica de uma srie de negcios do
mesmo gnero.260 Rocco no admite como aceitveis tais definies, vez que
nenhum desses conceitos econmicos coincide com o conceito de empresa resultante
das disposies do Cdigo de 1882 da Itlia. Por isso, ele entende que, de um modo
geral, a simples compra para revenda e as sucessivas revendas, o comrcio enfim,
so uma empresa no s no sentido mais lato, como no mais restrito.261
E assim, na busca por extrair um elemento comum para a caracterizao da
empresa na legislao codificada italiana, Rocco entendia que o elemento especfico
constitutivo da empresa, no sentido do cdigo, a organizao do trabalho de outrem,
e conclui afirmando que somente temos empresa e, consequentemente, ato
comercial, quando a produo obtida mediante trabalho de outros, ou, por outras
palavras, quando o empresrio recruta trabalho, organiza-o, fiscaliza-o, retribui-o e
dirige-o para os fins de produo.262
A noo moderna de empresa, com base no Cdigo italiano de 1942, foi
sistematizada por Lorenzo Mossa, a partir da base conceitual proposta pelo
comercialista alemo Karl Wieland. Afirmava Mossa que a empresa o centro da
realidade econmica submetida ao direito mercantil, sendo ela o prprio pressuposto
jurdico da comercialidade.263 Nessa viso legalista e estatizante, a caracterstica
comercial era inerente no somente empresa em si, mas a todas as relaes
econmicas por ela mantidas no exerccio da sua atividade. A doutrina passou, desde
ento, a referir-se empresa como uma realidade visvel no mundo comercial, como
instituto prprio do direito mercantil, ainda que conceitualmente no determinado,
apesar de ficar vagando entre a concepo objetivista dos atos de comrcio e a
subjetividade da figura do comerciante. No obstante, o conceito de empresa

259

Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit. p. 207.


Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit. p. 207-208.
261 Alfredo Rocco, cit. p. 208.
262 Alfredo Rocco, cit. p. 222-223.
263 Lorenzo Mossa, Trattato del nuovo diritto commerciale, Milo, 1942, apud Oscar Barreto Filho,
Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 23.
260

Teoria crtica da empresa

157

Ivanildo Figueiredo

permaneceu derivado da teoria econmica, ou como afirmado por Carvalho de


Mendona, o conceito econmico o mesmo jurdico, considerada a empresa como
organizao tcnico-econmica destinada a exercitar atividade produtiva, na
esperana de realizar lucros.264
De um modo conjugado, a doutrina francesa formulou a concepo da empresa
a partir de duas idias: a primeira, da empresa como organizao, e a segunda,
considera essa organizao pr-concebida para o exerccio de atividade
econmica.265 Desenvolvendo essa percepo da empresa como organizao
econmica, Michel Despax observou que a doutrina desenvolveu duas abordagens
diferenciadas para a empresa, uma restritiva e outra extensiva. De acordo com a
concepo restritiva, a empresa seria a organizao dos fatores de produo,
mediante o emprego de trabalho alheio com fim lucrativo, o que estaria de acordo com
a viso capitalista. Sob a concepo extensiva ou funcional, um dos prismas
analisados por Asquini,266 empresa significa a organizao cujo objeto compreende a
produo, a comercializao ou a circulao de bens ou de servios.267
Ambas as abordagens propostas por Michel Despax consideram a empresa
como entidade personificada, dissociada da noo de empresrio, e que possui um
elemento comum, qual seja, a organizao dos fatores de produo.268 A ideia de
empresa, apesar de bastante prxima do conceito de empresrio adotada pelo Cdigo
Civil italiano de 1942, com este no se confunde, considerando que a noo de
empresa resulta da idia de atividade organizada, ao passo que o conceito de

264

Na lio de Carvalho de Mendona, reproduzindo seu conceito econmico, empresa a


organizao tcnico-econmica que se prope a produzir, mediante a combinao dos diversos
elementos, natureza, trabalho e capital, bens ou servios destinados troca (venda), com esperana
de realizar lucros, correndo os riscos por conta do empresrio, isto , daquele que rene, coordena e
dirige esses elementos sob a sua responsabilidade. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I,
cit., p. 492).
265 Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 53.
266 Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 109.
267 Michel Despax, LEntreprise et le droit, Paris, Librairie Gnrale de Droit et de Jurisprudence,
1957, p. 6-7.
268 Ao comentar a teoria de Despax, constata Waldirio Bulgarelli que no difcil perceber que a idia
de organizao dos fatores de produo est presente em todas elas, valendo acentuar que a primeira
corrente pe acento tambm no lucro, enquanto a segunda dispensa-o; todas elas, contudo, do relevo
ao aspecto do efetivo funcionamento da unidade produtiva, portanto, da atividade. (Tratado de Direito
Empresarial, So Paulo, Atlas, 4 edio, 2000, p. 51).

Teoria crtica da empresa

158

Ivanildo Figueiredo

empresrio compreende o exerccio profissional dessa mesma atividade, com carter


subjetivo, e no funcional.
O Cdigo italiano de 1942, reconhecendo a unicidade e importncia do conceito
de empresa, elevou esse instituto a categoria fundamental do direito, concepo agora
adotada e reproduzida pelo Cdigo Civil de 2002. Sob essa nova concepo, a
empresa deixa de ser apenas mais um objeto definidor da mercancia, como atividade
econmica funcional, e passa a ser considerada como fattispecie di effetti giuridici,269
isto , como tipo jurdico prprio ou especfico, no obstante sua definio tenha
permanecido a mesma quando comparada com as teses elaboradas pela doutrina
tradicional.
A empresa, nessa perspectiva, define-se tanto como atividade, mas antes como
organizao, do modo como estruturada para executar sua funo econmica.270
Para Buonocore, a organizao a constante da norma mais importante para definir
a empresa.271 Assim considerado, na viso de Raquel Sztajn, partindo da teoria de
Buonocore, a organizao parece ser o elemento central, essencial, necessrio e
suficiente, para determinar a existncia da empresa.272 A organizao o elemento
principal na medida em que gera o aparato produtivo estvel, estruturado por
pessoas, bens e recursos, coordena os meios para atingir o resultado visado. 273
Em razo desses aspectos referentes organizao dos fatores de produo,
que se revela a dificuldade maior para o jurista abordar e explicar a empresa. Para
tanto, ele deve, ao menos, conhecer e dominar os conceitos econmicos e
tecnolgicos, porque sobre esses conceitos o jurista no tem domnio exclusivo, pelo
que, do ponto de vista tcnico-jurdico, esse elemento a organizao tem valor
relativo, dada a necessidade de recorrer a outros ramos do conhecimento para

269

Giorgio Oppo, Impresa e impreditore, in Vincenzo Buonocore, LImpresa - Trattato di Diritto


Commerciale, cit., p. 58.
270 Adverte Giorgio Oppo, ainda, em outra obra coletiva, que a qualificao da atividade no pode ser
confundida com a qualificao da organizao, e sob esse perfil ou caracterstica projetam-se outras
distines. (Princpi, Trattato di Diritto Commerciale, diretto da Vincenzo Buonocore, Torino, G.
Giappichelli Editore, 2001, p. 55).
271 Vincenzo Buonocore, LImpresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 109.
272 Rachel Sztajn, Teoria Jurdica da Empresa, cit., p. 129.
273 Rachel Sztajn, Teoria Jurdica da Empresa, cit., p. 129.

Teoria crtica da empresa

159

Ivanildo Figueiredo

entend-lo, como esclarece Raquel Sztajn,274 com suporte nas lies de


Buonocore.275
Portanto, cabe aqui concluir que a empresa j era referida e assim se
apresentava como instituto jurdico inerente ao direito comercial, positivada desde o
Cdigo Comercial francs de 1807, e reproduzida em diversos outros cdigos ainda
filiados ao sistema dos atos de comrcio, como o Cdigo Comercial da Itlia de 1882.
Esclarece Fbio Ulhoa Coelho que, ainda antes da vigncia do Cdigo Civil
brasileiro de 2002, pode-se afirmar que o direito brasileiro j vinha adotando
fundamentalmente a teoria da empresa.276 Todavia, gradualmente, a teoria da
empresa passa a representar o centro de gravidade do direito comercial. O direito
comercial, inclusive, vem a ser, nesse processo de mudana, redenominado para
direito empresarial, resultante da prpria fixao do novo objeto legislativo
fundamental: o direito de empresa.
Retornando s lies de Pontes de Miranda abordadas ao princpio deste
captulo, ele afirma que ocorre, na realidade, uma ciso conceptual entre a ideia de
empresa, como atividade, e fundo de empresa, como organizao.277 Na verdade,
segundo Pontes, a realidade a mesma ou uma s, em que o conceito de empresa
ora pode ser abordado como atividade (aspecto dinmico), ora como conjunto de bens
corpreos e incorpreos (fundo de empresa, estabelecimento, organizao),
instrumento ou meio para a atividade.278 uma abordagem semelhante de Asquini,
mas sem inserir os perfis subjetivo e corporativo, na medida em que o perfil subjetivo
274

Rachel Sztajn, Teoria Jurdica da Empresa, cit., p. 128.


Generalizando o discurso, parece mais do que plausvel escrever que o elemento organizativo, para
alm do objeto da organizao, que continua a ser sempre aquele relativo aos fatores de produo,
talvez o nico, entre todos os elementos constitutivos da empresa, em relao ao qual o jurista no
senhor absoluto do argumento - ou, se preferir, no totalmente livre para argumentar - e que, do ponto
de vista estritamente tcnico-jurdico, possui um valor relativo, porque indefectivelmente dependente
da evoluo de outros compartimentos disciplinares - bastar pensar no progresso tecnolgico no
domnio dos mtodos e sistemas de produo de bens e servios - ou seja, no surgimento de novos
setores de mercado. (Vincenzo Buonocore, LImpresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 112).
276 Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 39.
277 Pontes de Miranda adota a expresso fundo de empresa para designar o estabelecimento, por ser
conceito mais amplo e que abrange as demais atividades econmicas: A noo de fundo de empresa,
originariamente fundo de comrcio, porque no se haviam caracterizado as situaes idnticas na
indstria e na agricultura, entrou no mundo jurdico quando se teve de prestar ateno ao que se
passava no mundo fctico, ao ter o comerciante de ceder os elementos que lhe haviam servido a
grangear a clientela. (Tratado de Direito Privado, Tomo XV, cit., p. 357/358).
278 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, cit., p. 356.
275

Teoria crtica da empresa

160

Ivanildo Figueiredo

refere-se ao conceito e s caractersticas do empresrio em si e o perfil corporativo


ou institucional estaria compreendido na ideia de como o empresrio contrata,
remunera, motiva e organiza os recursos humanos do estabelecimento.
possvel afirmar que a evoluo terica do fenmeno da empresa encontrou
na doutrina italiana o seu ponto principal de convergncia, sendo hoje prevalente a
abordagem tridimensional de Vincenzo Buonocore,279 que considera a realidade
global da empresa como resultante da unio dos aspectos subjetivo, funcional e
objetivo. O aspecto subjetivo, do mesmo modo que na teoria de Asquini, est
representado na figura do empresrio como sujeito ou titular da empresa. O aspecto
funcional retrata a empresa como atividade econmica de produo e circulao de
bens e servios. O aspecto objetivo, por ltimo, abrange o estabelecimento, a
organizao dos elementos corpreos e incorpreos para o exerccio da empresa.
Apesar dos aspectos tridimensionais enfocados e da aparente fragmentao
conceitual, a empresa deve ser mentalizada e explicada na sua unitariedade, como
fenmeno econmico, sujeito de direito na forma, objeto de direito no contedo
material da atividade, dotada de regime jurdico especfico.280 A unidade conceitual da
empresa pode ser abreviada, na concepo de Buonocore, a uma fattispecie
produtiva di effetti giuridici,281 traduzida como tipo ou espcie econmica reconhecida
como elemento fundamental pela ordem jurdica. A fattispecie representa a empresa
na sua conformao real, como fato de relevncia jurdica, recaindo sobre ela uma
279

Vincenzo Buonocore, Istituzioni di Diritto Commerciale, Torino, G. Giappichelli, 6 edizione, 2006,


p. 26.
280 Para alm do conceito de empresa, o fundamental, na lio de Waldiro Bulgarelli, captar a
essncia da empresa, para a partir desse ponto definir seu regime jurdico especfico no mbito do
direito comercial: Reconhecida, hoje, como um fenmeno vital importantssimo da realidade, como
ponto de convergncia de inmeros interesses, no mais se pe em causa, nem se duvida, da
necessidade de se regul-la juridicamente. O que se colhe como substrato das discusses, verificadas
quanto recepo da empresa pelo Direito, decorre de uma dicotomia bsica, ou seja: 1) a posio
dos que pregam a transposio pura e simples da noo econmica da empresa referida como
organizao da atividade econmica, pelo empresrio que a anima e dirige e corre o risco e por isso
se apropria dos lucros; 2) e a daqueles que pretendem a traduo em termos jurdicos das
caractersticas do fenmeno (mesmo atravs da noo econmica ou ao menos a atribuda pelos
juristas aos economistas). A tarefa, pois, que cabe ao estudioso perante a teoria jurdica da empresa
(como, alis, se imps naturalmente a partir da enunciao da empresa no Cdigo Comercial
napolenico e dos que o seguiram, e mais propriamente a partir do momento em que a empresa tomou
a extraordinria importncia que hoje desfruta na vida real) a de reconhecendo essa importncia do
fenmeno econmico-social, captar a sua essencialidade, transpondo-o para o plano jurdico, para o
fim de estatuir um regime jurdico voltado para a fixao dos seus direitos e deveres. (Teoria Jurdica
da Empresa, cit., p. 75).
281 Vincenzo Buonocore, Istituzioni di Diritto Commerciale, cit., p. 26.

Teoria crtica da empresa

161

Ivanildo Figueiredo

normatividade prpria, especfica, dotada de complexidade proporcional evoluo


tecnolgica do mercado.
A empresa, desse modo, um conceito plurissignificativo,282 que mesmo para
o direito deve ser interpretado conforme cada situao referencial real, de fato.283 Em
sentido amplo, empresa significa a firma comercial, a indstria, a loja, como assim
expresso no cotidiano ou na linguagem do povo, sem vinculao ao sujeito ou
forma.284 Essa locuo em sentido amplo no tecnicamente errada ou imprpria, ao
contrrio da opinio de Fbio Ulhoa Coelho,285 sendo amide utilizada, por exemplo,
pela jurisprudncia.286 Em sentido estrito, no seu conceito jurdico prprio e especfico,
sim, empresa significa organizao tcnico-econmica destinada ao exerccio de
atividade de produo ou de circulao de bens ou de servios.

282

Empresa. Do italiano impresa. 1. Aquilo que empreende; empreendimento; 2. Economia.


Organizao econmica destinada a produo ou venda de mercadorias ou servio, tendo em geral
como objetivo o lucro; (...) 4. Empresa: como organizao jurdica; firma; sociedade. Aurlio Buarque
de Holanda Ferreira, Novo Aurlio Sculo XXI, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 3 edio, 1999.
Empresa. 1. Empreendimento para a realizao de um objetivo (as navegaes portuguesas
constituem empresas notveis); 2. Organizao econmica, civil ou comercial, constituda para
explorar determinado ramo de negcio e oferecer ao mercado bens e/ou servios (empresa de
telecomunicaes, empresa industrial); 3. Empresa como entidade jurdica; firma (a empresa no
pagou todos os impostos). Antonio Houaiss, Grande Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa,
Edio Beta, www.uol.com.br, 27/10/2014.
283 Sob o aspecto jurdico, o termo empresa contm multiplicidade de significados. Quando a empresa
mencionada no Cdigo Civil italiano com sentidos jurdicos diversos, seja por vcio de linguagem, seja
por pobreza de vocabulrio, compete ao seu operador explicitar-lhe o contedo correto. (Marcelo
Andrade Fres, Estabelecimento empresarial: trespasse e efeitos obrigacionais, So Paulo,
Saraiva, 2007).
284 A respeito da ambiguidade da expresso, Pontes de Miranda adverte: Algumas vezes, a palavra
empresa aparece como a indicar a pessoa fsica ou jurdica, que empreende a realizao do fim. Por
isso mesmo, se, por um lado, a expresso til, por outro se presta a ambiguidades. O que mais
importa que, no interpret-la, s se apanhe aluso organizao para se obter a realizao de fim
econmico, abstraindo-se de ter, ou no, personalidade. (Tratado de Direito Privado, vol. XV, cit., p.
356).
285 Afirma Fbio Ulhoa Coelho, com seu apurado preciosismo terminolgico: Na linguagem cotidiana,
mesmo nos meios jurdicos, usa-se a expresso empresa com diferentes e imprprios significados.
Se algum diz a empresa faliu ou a empresa importou essas mercadorias, o termo utilizado de
forma errada, no tcnica. A empresa, enquanto atividade, no se confunde com o sujeito de direito
que a explora, o empresrio. ele que fale ou importa mercadorias. Similarmente, se uma pessoa
exclama a empresa est pegando fogo! ou constata a empresa foi reformada, ficou mais bonita, est
empregando o conceito equivocadamente. No se pode confundir a empresa com o local em que a
atividade desenvolvida. O conceito correto nessas frases o de estabelecimento empresarial; este
sim pode incendiar-se ou ser embelezado, nunca a atividade. (Manual de Direito Comercial, cit., p.
31).
286 Enunciados da jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia - Smula 130 - A empresa responde,
perante o cliente, pela reparao de dano ou furto de veiculo ocorridos em seu estacionamento.
Smula 361 - A notificao do protesto, para requerimento de falncia da empresa devedora, exige a
identificao da pessoa que a recebeu. Smula 480 - O juzo da recuperao judicial no competente
para decidir sobre a constrio de bens no abrangidos pelo plano de recuperao da empresa.

Teoria crtica da empresa

162

Ivanildo Figueiredo

A empresa representa, concluindo, o objeto central do direito comercial, como


estrutura dotada de funcionalidades, apta para exercer a atividade econmica que
assim foi determinada pelo empresrio ou grupo de pessoas, reunidas em sociedade,
que tomaram a iniciativa para sua criao. A empresa resultante dessa ao
humana, da livre vontade de criao, direcionada a potencializar uma atividade
econmica no mercado, com o sentido profissional e determinista que emerge de toda
funo produtiva. Ausentes essas caractersticas orgnicas e objetivistas, a empresa
pode at mesmo existir, mas sua sobrevivncia e xito no mercado estar sempre
dependente da capacidade, eficincia e profissionalidade do seu protagonista
principal: o empresrio.
A teoria da empresa veio, portanto, restaurar a concepo subjetiva como
definidora do objeto do direito empresarial: o direito empresarial o direito da
empresa, quando antes caracterizava-se como o direito dos comerciantes e dos atos
de comrcio. Desse modo, como centro de gravidade do direito comercial, podemos
afirmar que a empresa no se resume, apenas, ideia funcional de atividade, porque
tem na organizao, segundo Buonocore,287 o elemento mais importante para sua
definio.

287

Vincenzo Buonocore, LImpresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 112.

Teoria crtica da empresa

163

Ivanildo Figueiredo

4.2. Do comerciante ao empresrio

De acordo com a definio legal do artigo 4 do Cdigo Comercial de 1850,


comerciante era a pessoa que fazia da mercancia profisso habitual e estava
matriculado no rgo do registro do comrcio. O artigo 9 do Cdigo, por sua vez,
reputava presumida a condio de comerciante, a partir da matrcula.288 A
caracterizao do comerciante regular resultava, pois, da presena desses dois
requisitos: o formal, decorrente da matrcula no registro do comrcio,289 e o material,
relativo ao exerccio de atos de comrcio, com carter profissional.
O Decreto 737/1850, regulamento do Cdigo Comercial, distinguia o
comerciante regular daquele irregular, que exercia o comrcio sem registro.290
Contudo, leis posteriores, como anotado por Carvalho de Mendona, tiraram o
prestgio da matrcula, acabando com a distino acentuada entre comerciantes de
direito e comerciantes de fato. Desde ento, nem a matrcula nem a inscrio da

288

Cdigo Comercial de 1850 - Art. 4 - Ningum reputado comerciante para efeito de gozar da
proteo que este Cdigo liberaliza em favor do comrcio, sem que se tenha matriculado em algum
dos Tribunais do Comrcio do Imprio, e faa da mercancia profisso habitual. (...) Art. 9. O exerccio
efetivo do comrcio para todos os efeitos legais presume-se comear desde a data da publicao da
matrcula.
289 No regime inicial do Cdigo de 1850, a matrcula dos comerciantes era formalizada perante os
Tribunais de Comrcio do Imprio, localizados no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranho, e
nas Conservatrias do Comrcio em algumas das cidades nas Provncias, como Rio Grande, Santos e
Parnaba. Com a extino desses Tribunais e sua unificao com a justia comum, em 1875, o registro
dos comerciantes passou a ser realizado pelas Juntas Comerciais. Posteriormente, face o Decreto 916,
de 1890, o regime de matrcula foi abolido e substitudo pelo registro facultativo da firma nas Juntas
Comerciais. Com a proclamao da Repblica, e a partir da organizao dos Estados da Federao,
cada um dos Estados passou a deter competncia para organizar as juntas e inspetorias comerciais,
reservando a Constituio de 1934, desde ento, a competncia privativa da Unio para legislar sobre
matria de registro do comrcio. (Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. III,
cit., p. 36/37).
290 Regulamento 737/1850 - Art. 17. Suscitando-se questo no Juzo Comercial sobre a profisso
habitual do comerciante matriculado (art. 4 Codigo), ser a contestao decidida vista de atestados
do Tribunal do Comrcio sob informao da Praa, e contra esse atestado inadmissvel qualquer
prova ou contestao. Art. 18. Contestando-se a qualidade do comerciante no matriculado, ser a
contestao decidida conforme as regras gerais de prova.

Teoria crtica da empresa

164

Ivanildo Figueiredo

firma caracterizam a qualidade jurdica do comerciante; quando muito autorizam uma


simples presuno.291
Dentre os principais sistemas jurdicos de direito comercial, dominantes no
sculo XIX, na Europa, destacavam-se os seguintes, para efeito de determinao da
qualificao jurdica do comerciante:292
a) sistema francs, do Cdigo Comercial de 1807, no qual o exerccio habitual da
profisso que caracteriza o comerciante, independentemente de matrcula no
registro do comrcio; as sociedades comerciais devem, todavia, arquivar seus atos
constitutivos no registro do comrcio; adotam esse sistema os cdigos de comrcio
da Blgica (arts. 1 e 10), da Holanda (art. 2), da Itlia, de 1882 (art. 8) e de
Portugal, de 1888 (art. 13);
b) sistema espanhol, do Cdigo Comercial de 1829, segundo o qual a qualificao
jurdica de comerciante depende da satisfao de dois requisitos simultneos: a
matrcula no rgo de registro e o exerccio profissional de atos de comrcio; esse
sistema foi adotado no Cdigo de Comrcio de Portugal de 1833 e depois
substitudo no Cdigo de 1888;
c) sistema suo, do Cdigo Comercial de 1864, e depois no Cdigo de Obrigaes
de 1881, em que a inscrio de quem exerce o comrcio obrigatria, enquanto
que para outras atividades econmicas, como no caso dos artesos e pequenos
varejistas, a inscrio facultativa; todavia, a inscrio, por si s, atesta a
qualificao de comerciante: Antes de tudo, reputado comerciante quem se acha
inscrito, como tal no registro do comrcio;
d) sistema alemo, do Cdigo Comercial de 1897, o mais complexo, segundo o qual
considera-se comerciante a pessoa praticante ou no exerccio de atividade
mercantil tpica, sendo, neste caso, obrigatrio o registro; todavia, o registro, em
si, no conferia a qualificao de comerciante, por ter natureza meramente
declaratria.293

291

J. X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. II, cit., p. 23.
J. X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. II, cit., p. 16/22.
293 No sistema alemo o exerccio do comrcio classificado em seis grupos de atividades, conforme
as caractersticas da explorao: 1) Musskaufleute neste grupo principal se enquadram aqueles que
exercem atividade tpica mercantil, de comrcio, indstria, bancos e de transportes, sempre obrigados
ao registro; 2) Sollkaufleute diz respeito queles que no desempenham uma atividade comercial,
mas que adotam uma estrutura organizacional prpria do comerciante; 3) Kannkaufleute refere-se ao
exerccio de atividade rural, e assim no mercantil, mas que em virtude das caractersticas comerciais
das suas operaes podem ser qualificados como comerciantes; 4) Vollkaufleute categoria reservada
aos que exercem atividade mercantil de modo amplo; 5) Minderkaufleute compreende os pequenos
comerciantes e artesos que adotam um modo simples de organizao mercantil; 6) Formkaufleute
so os comerciantes assim qualificados apenas em razo de adotar uma forma mercantil para
explorao de atividade no considerada materialmente como de natureza comercial. (Walter Alvares,
Curso de Direito Comercial, cit., p. 100/101).
292

Teoria crtica da empresa

165

Ivanildo Figueiredo

No sculo XX, como ressaltado por Fbio Ulhoa Coelho, destacam-se e


passam a prevalecer dois sistemas principais no direito de origem latina, que no
apenas determinam a qualificao jurdica do comerciante, mas a prpria disciplina
privada da atividade econmica: o sistema francs, da teoria dos atos de comrcio,
ancorado no Cdigo Comercial de 1807, e o sistema italiano da teoria da empresa,
introduzido pelo Cdigo Civil de 1942.294
Mas, anos e sculos antes, as atividades de comrcio e transporte de bens
eram realizadas pelos mercadores, em maior e mais larga escala, integrantes das
corporaes de ofcio. De modo geral, a legislao, a partir do perodo do
mercantilismo, no sculo XVI, no mais estabelecia tratamento diferenciado entre o
comerciante e o mercador, considerando que ambos exerciam a mesma atividade
mercantil, apenas separados por momentos histricos distintos.295 Por essa poca,
inicia-se, de acordo com o quadro evolutivo traado por Ascarelli, o segundo perodo
da histria do direito comercial, quando as suas fontes normativas no mais sero
encontradas na autonomia das corporaes, pois o direito comercial passar a fazer
parte do direito comum.296
O Cdigo Comercial francs de 1807 seguiu a elaborao do Cdigo Civil de
1804, denominado por Cdigo de Napoleo ou Cdigo dos Franceses, os quais
representaram os dois maiores pilares legislativos dessa fase inicial da Repblica,
aps a Revoluo de 1789 e da queda da monarquia em 1792. A afirmao dos
direitos fundamentais de igualdade e liberdade da Revoluo Francesa tambm
provocou mudanas radicais na atividade econmica, com a afirmao dos princpios
294

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 26.


Mercador era o termo genrico empregado em nosso direito antigo para designar o comerciante.
Homem de negcio ou negociante era o mercador que gozava dos privilgios conferidos profisso
mercantil. (...) O Cdigo Comercial portugus de 1833, que serviu de modelo ao nosso, distinguia,
sutilmente, comerciante, negociante e mercador; comerciante, palavra genrica, compreendia o
negociante e o mercador (art. 35); negociante significava restritamente o que professava o comrcio
externo (art. 36); mercador o que limitava o seu trato e mercncia ao Reino (art. 93). O nosso Cdigo
isso evitou, empregando sempre a palavra genrica comerciante, para designar os que exercem a
profisso comercial. Quando se serviu, alis raramente, do vocbulo negociante foi como sinnima de
comerciante (artigos 7 e 909). (J. X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro,
vol. II, cit., p. 24/25).
296 A partir desse momento histrico, a evoluo consuetudinria suceder um desenvolvimento
fundado nas ordenaes emandas da autoridade rgia, preocupada com a formao de um mercado
nacional e enciumada com a autonomia das vrias ordens profissionais. (Tullio Ascarelli, O
desenvolvimento histrico do Direito Comercial e o significado da unificao do Direito Privado,
cit., p. 239).
295

Teoria crtica da empresa

166

Ivanildo Figueiredo

da autonomia da vontade e do livre comrcio. O exerccio do comrcio passou a ser


acessvel a qualquer cidado, ante a perda dos privilgios e das reservas de mercado
que at ento beneficiavam os grandes mercadores, os banqueiros e as companhias
monopolistas de comrcio. A ascenso da burguesia mercantil, representada pelos
pequenos e mdios comerciantes, recebe, ento, forte incentivo na legislao
comercial, renovada no auge da era napolenica.297
A Frana atravessava uma fase bastante difcil, ainda de consolidao poltica
interna da Revoluo de 1789, do embate entre republicanos (patriotes) e
monarquistas (migrs), das guerras de defesa do territrio e de expanso imperial,
contra Inglaterra, Prssia, ustria e Rssia. O ambiente comercial no era muito
favorvel, especialmente o externo, com o bloqueio continental dos portos aos navios
ingleses. Na fase de elaborao do Cdigo Comercial, Napoleo Bonaparte estava
mais preocupado com grandes batalhas e com a administrao dos territrios
conquistados.298 Mesmo assim, a legislao, representada pelo Cdigo Civil de 1804
e pelo Cdigo Comercial de 1807, consistia em prioridade de Estado porque tinha por
finalidade servir como instrumento de dominao jurdica e de exportao do iderio
da Revoluo Francesa.
O Cdigo Comercial francs teve como objetivo maior fortalecer o comrcio e
criar condies para a expanso econmica do Imprio, procurando unir os cidados
297 O Cdigo Comercial francs comeou a ser discutido em 1801, quando uma comisso integrada por
magistrados, juristas e comerciantes foi nomeada pelo ento Primeiro Cnsul Napoleo Bonaparte,
para elaborar o projeto de cdigo, adotando por base as Ordenaes de 1673 do comrcio terrestre, e
de 1681 do comrcio martimo. A comisso que elaborou o projeto do cdigo era integrada por Philippe
Joseph Gorneau (Juiz do Tribunal de Apelao de Paris), Pierre Vignon (Presidente do Tribunal de
Comrcio); Philippe Legras (Jurista); Vital Roux (Jurista e banqueiro em Lyon); Boursier (Juiz Consular
e Comerciante); Coulomb (Juiz aposentado) e Mourgues (Industrial). (Gorneau, Legras et Vital Roux,
membres de la Commission du code de commerce; Re vision du projet de code du commerce
pre ce de e de l'analyse raisonne e des Observations du Tribunal de cassation, des Tribunaux
d'appel et des Tribunaux et Conseils de commerce, Paris, L'Imprimerie de la Re publique, an XI
1803). O projeto veio a ser concludo e entregue pela comisso no final do ano de 1802, e durante cinco
anos, at setembro de 1807, quando aprovado e promulgado, foi debatido no mbito do Conselho de
Estado, conduzido em vrias sesses, pessoalmente, pelo Imperador Napoleo Bonaparte.
Participaram ativamente das discusses os conselheiros Jean-Jacques Rgis de Cambacrs, jurista
e Presidente do Senado, Michel Regnaud de Saint-Jean dAngly, Franois Jaubert, Pierre-Franois
Ral, Jean-Franois Begoun, Louis Philippe, comte de Sgur, Emmanuel Cretet e Jean-Baptiste
Treilhard. O Cdigo Comercial entrou em vigor em 1 de janeiro de 1808, mas seu marco temporal o
da sua promulgao, no ano de 1807. (John Rodman, The Commercial Code of France with The
Motives or Discourses of the Counsellors of State, Delivered before the Legislative Body,
Illustrative of the Principles and Provisions of the Code, New York, C. Wiley Printer, 1814, Stanford
University Libraries, electronic edition, 2014, p. 5).
298 Austerlitz (dezembro de 1805); Iena (outubro de 1806), Friedland (junho de 1807).

Teoria crtica da empresa

167

Ivanildo Figueiredo

com capacidade financeira em um esforo comum, a partir de regras e princpios


jurdicos uniformes e bem definidos.299
O Cdigo ficou estruturado em quatro partes: Livro primeiro Regulao do
comrcio em geral; Livro segundo Comrcio martimo; Livro terceiro Falncias;
Livro quarto Processo judicial e tribunais e cortes comerciais. Essa mesma
estrutura serviu de base para todos os demais cdigos comerciais originrios do
sistema latino que se seguiram: Espanha (1829), Portugal (1833), Brasil (1850) e Itlia
(1882), este aps a unificao italiana ou Risorgimento.
O artigo inicial do Cdigo francs de 1807 assim definia comerciante: Sont
commerants ceux qui exercent des actes de commerce, et en font leur profession
habituelle.300 Essa definio permanece idntica at hoje no Cdigo de Comrcio da
Frana, na sua ltima consolidao de 2007, dois sculos depois. O livro primeiro do
Cdigo, contudo, conceituava o comerciante, mas no definia o que era ato de
comrcio. Em princpio, ato de comrcio era o ato do comerciante. Tinha como
pressuposto ftico a arte de comerciar, a ars mercatorum, o comrcio a grosso e a
retalho (en gros ou en dtail), como assim estava referido na primeira parte da
Ordenao de 1673, de regulao do comrcio terrestre. Essa ordenao fazia
meno atividade comercial e bancria como prpria dos negociantes, mas no
definia o comerciante em si.

299

As ordenaes de Luis XIV, na exposio de Regnaud, Jaubert e Ral, membros do Conselho de


Estado, no foram suficientes para desdobrar os princpios gerais do comrcio; para possibilitar a
criao de grandes companhias, para que os indivduos tivessem exemplos a seguir; para ter dirigido
as indstrias nacionais no sentido das transformaes qumicas de matrias-primas, sejam locais ou
exticas; finalmente, no foi o suficiente para ter pressionado a nao com um forte impulso; foi
necessrio estabelecer regras para as aes dos indivduos; para trazer ao alcance de todos os
comerciantes os princpios fundamentais da profisso que era desejvel florescer. Era necessrio
deduzir desses princpios sua conseqncia mais importante, e aplic-los nas transaes dirias; era,
em suma, necessrio para dar ao comrcio externo e interno a legislao civil adaptada para cada
ocasio. (...) No cdigo, tal como ser apresentado a vocs, senhores, cada comerciante, agente
comercial, ou corretor, vai encontrar todo o corpo de legislao que diz respeito sua profisso. Ele
vai encontrar as regras de suas obrigaes pessoais, dos contratos de mtuo, as regras para os casos
em que as obrigaes pessoais e recprocas no so cumpridas; isto , quando a falncia venha a
ocorrer; finalmente, as regras de jurisdio, de competncia e da prtica dos atos nos tribunais. (John
Rodman, The Commercial Code of France with The Motives or Discourses of the Counsellors of
State, Delivered before the Legislative Body, Illustrative of the Principles and Provisions of the
Code, New York, C. Wiley Printer, 1814, cit., p. 3-7).
300 Cdigo Comercial da Frana de 1807 Art. 1. So comerciantes aqueles que exercem atos de
comrcio, e que deles fazem sua profisso habitual.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

No Livro Quarto do Cdigo Comercial de 1807, ao tratar do processo e


jurisdio comercial, o artigo 632 enumerou os atos de comrcio, como sendo o ato
que, praticado por comerciante ou no, determinava a competncia dos tribunais de
comrcio para julgamento dos litgios decorrentes dessas relaes.301
Como resultante dessa lista enumerativa dos atos de comrcio, a pessoa que
tivesse como profisso habitual a prtica desses atos, em srie, repetidos, relativos a
mercadorias, bens mveis e operaes com moeda, era considerada como
comerciante, fosse ele de porte pequeno, mdio, um grande mercador ou banqueiro.
E sendo comerciante ou envolvendo questo comercial relativa letra de cmbio e
ttulos de crdito, as causas e processos ficavam sujeitos ao juzo comercial, justia
especializada do mercado, e no ao juzo civil do direito comum das pessoas.
No sentido oposto ao negcio comercial, situavam-se os atos civis,
especialmente os atos de produo econmica relacionados com a atividade rural,
agrcola ou pecuria, ou seja, propriedade ou explorao da terra. O agricultor que
levasse o excedente da sua safra de aveia para a feira da cidade, ou o pequeno
criador de porcos que vendesse seus animais para o dono do abatedouro, no
explorava atividade de comrcio, ainda que dependesse da venda dos seus produtos
para comprar outras mercadorias necessrias sua subsistncia ou alimentao do
seu rebanho. A atividade rural, apesar de seu substrato econmico, estava vinculada
safra, ao regime de engorda dos animais, ou seja, sazonalidade. Mas, alm desse
aspecto temporal, atividade econmica no campo faltava uma caracterstica
essencial imanente mercancia: a finalidade lucrativa prpria do carter especulativo

301

Cdigo Comercial da Frana de 1807 Art. 632. La loi rpute actes de commerce tout achat de
denres et marchandise pour les revendre soit en nature, soit aprs les avoir travailles et mises en
oeuvres, ou mme pour en louer simplement lusage; - toute entreprise de manufactures, de comission,
de transport par terre ou par eau; - toute entreprise de fournitures, dagences, bureaux daffaires,
tablissements de ventes a lencan, de spectacles publics; - toute les operations de banques publiques;
- toutes obligations entre ngocians, marchands et banquiers; - entre toutes personnes, les lettres de
change, ou remises dargent faites de place en place.; Traduo livre: A lei considera atos de comrcio
Todas as compras de gneros e mercadorias para revenda ou em espcie, ou aps ter sido
processada, ou mesmo apenas para alugar o uso; - Toda empresa de fbrica, de comisso, de
transporte por terra ou por gua; - Toda empresa de fornecimento, agncias, escritrios comerciais,
vendas por leilo e de espetculos pblicos; - Todas as operaes de bancos pblicos; - Todas as
obrigaes entre os comerciantes, mercadores e banqueiros; - Entre todas as pessoas, as letras de
cmbio, ou o dinheiro para remessa de um lugar para outro.

Teoria crtica da empresa

169

Ivanildo Figueiredo

do comrcio e de seus negcios em massa, da constante compra e venda, da compra


para revenda, da produo da manufatura para oferta no mercado.
A partir dessas caractersticas gerais ou elementos comuns, a doutrina definiu
ato de comrcio como todo ato de interposio econmica determinada pela
especulao, segundo a clssica expresso de Leone Bolaffio.302 A interposio
econmica representa a relao jurdica que envolve uma operao onerosa, como
natural da compra e venda mercantil, por exemplo, sendo que essa relao jurdica
especulativa: finis mercatorum est lucrum. Ou seja, o comerciante que detm a
propriedade da mercadoria busca obter uma vantagem financeira com a venda, que
medida pela taxa de lucro.
Para Alfredo Rocco, o elemento preponderante consiste na atividade de troca
propiciada pelo ato em si: ato de comrcio todo ato que realiza ou facilita uma
interposio na troca.303 Ato de comrcio, assim, ato e negcio jurdico de troca, de
intermediao entre produtor e atacadista, entre atacadista e varejista, at a
mercadoria chegar ao mercado de consumo, assim como os atos acessrios e
conexos ao ato principal de interposio.304
O Cdigo Comercial brasileiro de 1850 no conceituou nem relacionou os atos
de comrcio, como assim fizeram os cdigos europeus. Todavia, logo em seguida
promulgao do Cdigo, o Regulamento 737/1850 (art. 19), ao definir a competncia
dos processos de interesse dos comerciantes no Tribunal de Comrcio do Imprio,
enumerou os atos de comrcio, prprios das atividades de mercancia:305

302

Leone Bolaffio, Diritto Commerciale, vol. I, Torino, Torinese, 1921, p. 7.


Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit., p. 259.
304 Rocco apresenta a seguinte classificao para os atos de comrcio: a) atos de comrcio pela sua
natureza intrnseca ou ato de comrcio constitutivos: a1) atos de interposio na troca das
mercadorias, dos ttulos, e dos prdios urbanos ou rsticos; a2) atos de interposio na troca de
dinheiro contra dinheiro a crdito (operaes bancrias); a3) atos de interposio na troca do trabalho
(empresas); a4) atos de interposio na troca do risco (seguros); b) atos de comrcio por conexo
ou acessrios: b1) atos diretamente declarados comerciais pela lei, em virtude de sua conexo normal
com o negcio comercial (operaes de reporte em bolsas de valores; operaes cambirias; atos
inerentes navegao; depsitos em armazns gerais); b2) atos cuja conexo com uma atividade
comercial se presume; b3) atos cuja conexo com o negcio comercial carece de ser demonstrada
(compra e venda de aes; conta corrente e cheques bancrios; mandato e comisso mercantil).
Princpios de Direito Comercial, cit., p. 257/258.
305 Com base nessa tipificao dos atos de comrcio, Carvalho de Mendona props a seguinte
classificao: a) atos de comrcio por natureza ou profissionais, so os negcios jurdicos
303

Teoria crtica da empresa

170

Ivanildo Figueiredo

a) a compra e venda ou troca de efeitos mveis ou semoventes, para os vender por


grosso ou a retalho, na mesma espcie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso;
b) as operaes de cmbio, banco e corretagem; c) as empresas de fbricas, de
comisses, de depsito, de expedio, consignao e transporte de mercadorias e
espetculos pblicos; d) os seguros, fretamentos, riscos, e quaisquer outros contratos
relativos ao comrcio martimo; e) a armao e expedio de navios.

A relao dos atos de comrcio compreende, sem embargo, o denominado


sistema exemplificativo, na medida em que outras atividades podem ser consideradas
mercantis, por analogia, como assim foi esclarecido por Alfredo Rocco, ao analisar a
enumerao dos atos de comrcio no Cdigo Comercial italiano de 1882.306 Por isso,
Rocco afirmava que o problema do contedo do direito comercial , portanto, um
problema de direito positivo, pois que pertence precisamente lei especial ou singular
determinar quais as relaes que ela pretende regular de um modo especial.307
Tanto no sistema do Cdigo francs de 1807, como no diploma brasileiro do
Imprio de 1850, o comerciante, que podia ser varejista, atacadista, industrial,
banqueiro, intermedirio de negcios, era aquele que exercia atos de comrcio, e
assim tal matria era definida como comercial ou mercantil. Logo, sendo matria
mercantil, submetia-se, como objeto de regulao, ao direito comercial. O direito
comercial, nesse modelo, era o direito dos comerciantes e dos atos de comrcio. A
qualidade jurdica de comerciante era determinada pelo exerccio dos atos de
comrcio, ficando a matrcula no registro do comrcio relegada a plano secundrio
para efeitos de qualificao jurdica.
A figura do comerciante sempre esteve relacionada ao exerccio de atividade
mercantil, voltada, intrinsecamente, para a prtica de atos de comrcio, definidos pelo
exerccio da mercancia. O comerciante, na maioria dos sistemas jurdicos, era
qualificado apenas em razo do aspecto material da atividade, do exerccio dos atos

referentes diretamente ao exerccio normal da indstria mercantil, como tpicos atos de mercancia,
como a compra e venda mercantil, operaes bancrias, as manufaturas e empresas de fbrica, de
expedio, consignao e transporte de mercadorias; b) atos de comrcio por dependncia ou
conexo, so aqueles praticados por comerciantes, derivados de atos ilcitos por efeito ou por
dependncia do exerccio do comrcio, como as aes de responsabilidade civil; c) atos de comrcio
por fora ou autoridade de lei, so assim considerados comerciais porque a lei assim quis, assim
determinou, independente de ser praticado por comerciante ou no, como as operaes com ttulos
de crdito. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit., p. 455; 460; 514; 521).
306 Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit., p. 193.
307 Alfredo Rocco, Princpios de Direito Comercial, cit., p. 190.

171

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

de comrcio de modo habitual e profissional, com o escopo lucrativo a compor o


elemento finalstico da atividade. O comerciante, do mesmo modo que o antigo
mercador, atuava e ainda atua dentro do ambiente fsico de mercado, tendo como
objeto de suas operaes ou transaes as mercadorias, atividade que denominada
de natureza mercantil. O transporte, que propicia a circulao desses bens e
mercadorias, designado, por isso mesmo, de mercante.
A fixao, em um s elemento principal ou denominador comum, a idia de
mercadoria (merx), cuja divindade grega protetora do comrcio era o deus Mercrio,
evidencia que a atividade do mercador, desde sua origem, sempre esteve vinculada
produo e troca de mercadorias, prtica da mercancia, no ambiente de
mercado. Essa relao conceitual no mercado pode ser assim configurada: 308

Mercado
Mercadoria
Mercancia
Mercante
Mercantil
Mercador

A mercadoria, mvel de troca, sempre representou elemento fundamental para


a definio da atividade do comerciante, objeto prprio da mercancia. A mercancia,
em sentido estrito, corresponde a todo esse processo de produo e circulao de
308

O mercado, ideia que hoje representa a reunio das empresas no espao mundial, fsico, virtual ou
internacional, era antigamente caracterizado como um local especfico, onde os mercadores reuniamse, luz do dia, na praa principal da cidade, para, ali, oferecer seus produtos e comercializar suas
mercadorias, para o pblico em geral e para outros mercadores varejistas ou retalhistas. O objeto
central dessas relaes econmicas concentrava-se na mercadoria, bem mvel por excelncia, como
produto ou bem passvel de troca no ambiente de mercado. O exerccio dessa atividade de oferta e
venda de mercadorias, no mercado, compreende a mercancia, funo de troca com carter profissional,
e cujo conjunto de operaes possui carter ou natureza mercantil. Os auxiliares dos mercadores no
exerccio da funo mercantil, eram designados como agentes auxiliares mercantes, como
denominao caracterstica, por exemplo, da marinha mercante.

Teoria crtica da empresa

172

Ivanildo Figueiredo

coisas, bens e riquezas, em todos os nveis e tipos de especializao de coisas


suscetveis de serem ofertadas e negociadas no mercado.309 E essa idia-fora
representada pela mercancia no poderia ser desconsiderada ou abandonada na
qualificao jurdica dos profissionais do comrcio. Em suma, jamais existir comrcio
se esta atividade no tiver como centro de sua definio a produo e a circulao de
mercadorias, ou seja, a mercancia, que representa a funo mercantil no regime da
economia de mercado.
No obstante toda essa milenar construo histrica, a partir da concepo
unitarista do Cdigo italiano de 1942, a mercadoria vem a ser substituda pelo conceito
mais amplo e genrico de bem, de coisa, mvel ou imvel, que pode ser objeto de
transao econmica em carter profissional, prpria dos comerciantes, como
tambm entre pessoas que realizam tais negcios de modo espordico e no habitual.
A idia de mercadoria sempre constituiu elemento caracterstico e definidor do
objeto das operaes econmicas dos comerciantes. Cabe, portanto, considerar e
constatar que os atos de comrcio, praticados pelos comerciantes, representam
transaes indissociadas da natureza mercantil dessas atividades. Em sentido estrito,
o comrcio compreende o setor tercirio da economia, relativo s operaes de
aquisio de mercadorias para revenda ou para aluguel do uso. Comerciante tpico
seria aquele que adquire uma mercadoria com o objetivo de revend-la no mercado.
Todavia, em sentido amplo, o comerciante pode atuar em todos os campos e
esferas de comercializao, inclusive a partir do setor primrio, da extrao animal,
vegetal ou mineral, quando o produto da explorao destinar-se ao mercado e o
proprietrio desses bens ou insumos tem como inteno primordial a venda dos
produtos com a finalidade de obteno de lucro. Assim, o pecuarista criador de gado
que tem interesse em vender os seus animais para um abatedouro ou frigorfico,
apesar de no ser juridicamente qualificado como comerciante, est praticando um
ato de comrcio a partir do momento em que explora essa atividade habitualmente e
com intuito lucrativo.

309

Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 117.

Teoria crtica da empresa

173

Ivanildo Figueiredo

Ao recusar a natureza comercial da atividade do empresrio, em substituio


antiga figura do comerciante, o Cdigo Civil de 2002, caracterizando o empresrio em
razo, apenas, da forma da empresa, provocou grave problema terminolgico,
levando a doutrina a enfrentar srias dificuldades para redefinir os conceitos
fundamentais da matria comercial.310 E essa foi a crtica principal de Rubens
Requio, ao contestar a concepo artificial do direito de empresa, que no reconhece
a natureza mercantil das atividades empresariais.311
A figura do empresrio no representa, assim, mera substituio do
comerciante como agente titular da empresa. Empresrio ou empreendedor, em
sentido amplo, o capitalista que investe recursos com a finalidade de obter lucros
atravs da explorao direta da empresa. A empresa reflete a atividade econmica
em si, que depende da pessoa do empresrio para o seu exerccio. O comerciante,
por sua vez, desempenha a mesma atividade, mas o elemento dominante do seu
conceito reside no objeto da atividade, na mercancia, e no no instrumento desse
exerccio, a empresa.
Sob o regime dogmtico e exclusivista do Cdigo de 2002, a antiga figura do
comerciante foi banida do nosso direito positivo: simples e formalmente, no existe
mais. A partir desse marco, o exerccio de atividade econmica, de natureza comercial
ou no, passa a ser desempenhada pelo empresrio, titular de firma individual (art.
966), de EIRELI (art. 980-A), ou por sociedade empresria (art. 982).312

310

A distino entre empresa mercantil e no mercantil, se existir, depender de se manterem os


pilares, agora bastante fragilizados, em que se apoiava a distino entre mercantil e no mercantil,
basicamente a intermediao na circulao da riqueza feita profissionalmente, a transformao de bens
para p-los em circulao; em resumo, exercer atividades tipicamente reconhecidas como mercantis e
em mercados, alm das auxiliares e necessrias para o fluxo da riqueza mobiliria (Rachel Sztajn,
Teoria Jurdica da Empresa, cit., p. 135).
311 Segundo Rubens Requio, no diz o Projeto que a empresa, ou melhor o empresrio, pode ser civil
ou comercial. Para os seus autores a expresso comercial tabu diante da preocupao unificadora,
como j tivemos oportunidade de registrar. O fato, porm, que teremos na linguagem comum do
mercado o empresrio comercial e o empresrio civil. Empresrio civil precisamente aquele
definido no art. 1.001 (art. 966 do Cdigo de 2002, n.a.), pargrafo nico: No se considera empresrio
quem exerce profisso intelectual, de natureza cientfica, literria ou artstica, ainda com o concurso de
auxiliares ou colaboradores, salvo se o exerccio da profisso constituir elemento de empresa. (Projeto
de Cdigo Civil - Apreciao Crtica sobre a Parte Geral e Livro I - Das Obrigaes, So Paulo,
Revista dos Tribunais, n 477, 1985, p. 12).
312 Cdigo Civil de 2002 - Art. 982. Salvo as excees expressas, considera-se empresria a sociedade
que tem por objeto o exerccio de atividade prpria de empresrio sujeito a registro (art. 967); e, simples,

Teoria crtica da empresa

174

Ivanildo Figueiredo

O comerciante, ainda assim, permanecer, na prtica e nos usos mercantis,


sendo merecedor de tal definio e qualificao. Todavia, juridicamente, a figura do
comerciante desapareceu na concepo do sistema civilista do regime do direito de
empresa.313
De acordo com a redao do art. 966 do Cdigo Civil, a definio tcnica de
empresrio est circunscrita ao titular da firma ou empresa individual. Ele exerce sua
atividade profissional, sem a participao de outras pessoas na formao do capital e
na diviso dos resultados ou das perdas. A partir do surgimento da empresa individual
de responsabilidade limitada EIRELI (CC, art. 980-A inserido pela Lei 12.441/2011),
o titular dessa forma de organizao tambm pode ser chamado de empresrio, como
empresrio de responsabilidade limitada. A doutrina, ao analisar essa nova figura da
EIRELI, denomina seu titular como empreendedor individual, criando, assim, nova
terminologia, separada da figura do empresrio.314
O exerccio de atividade econmica de modo coletivo, atravs de duas ou mais
pessoas como prestadoras de capital, preenchendo o requisito da pluripessoalidade,
seria caracterstico da assim denominada sociedade empresria. Nesse contexto
coletivo, o empresrio ou titular da empresa seria a prpria sociedade, e no as
pessoas fsicas que a integram na condio de scios ou acionistas. Os scios que
controlam o capital e exercem os poderes de administrao, representao e gesto
da sociedade so referidos, pelo Cdigo Civil, simplesmente, como administradores
(CC, artigos 47, 50, 1.011 a 1.020, 1.022, 1.036, 1.061 a 1.064).
Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, os scios majoritrios ou acionistas
controladores, responsveis pela administrao e conduo dos negcios da
empresa, no devem ser qualificados juridicamente como empresrios, vez que a
as demais. Pargrafo nico. Independentemente de seu objeto, considera-se empresria a sociedade
por aes; e, simples, a cooperativa.
313 Para Haroldo Malheiros Duclerc Verosa, em face do desaparecimento da figura do comerciante,
no atual Direito Brasileiro, empresrio e empresrio comercial passaram a ser termos sinnimos,
exceto no que diz respeito ao empresrio rural, que originariamente exerce sua atividade no campo do
Direito Civil. (Curso de Direito Comercial, So Paulo, Malheiros, vol. 1, 2004, p. 164).
314 Apesar do ttulo da sua obra, Paulo Leonardo Vilela Cardoso refere-se ao titular da EIRELI como
empreendedor, no como empresrio. (O empresrio de responsabilidade limitada, So Paulo,
Saraiva, 2012, p. 65, 83, 84). Carlos Henrique Abro utiliza ambas as expresses para designar o titular
da EIRELI, ora como empreendedor individual, ora como empresrio individual (Empresa individual EIRELI, So Paulo, Atlas, 2012, p. 48,49,53, 57, 59).

Teoria crtica da empresa

175

Ivanildo Figueiredo

explorao da atividade da empresa realizada pela pessoa jurdica da qual os scios


fazem parte, de tal modo que a expresso empresa designar a atividade, e nunca a
sociedade.315 Os scios ou acionistas administradores da sociedade empresria,
nesse contexto, devem ser designados empreendedores.316
Consequentemente, a expresso empresrio deve ser entendida de modo
especfico, abrangendo tanto o empresrio individual, pessoa fsica ou natural, como
o empresrio pessoa jurdica, representado como sendo a sociedade empresria,
designao estranha e diferente introduzida pelo Cdigo Civil de 2002 (art. 982).317
Essa colocao decorre, sem embargo, de preciosismo tecnicista, ao no considerar
a sociedade empresria como empresa, nem seus administradores como
empresrios.318 Na designao genrica de empresa, todavia, esta deve abranger no
apenas o empresrio titular da firma individual, mas tambm a forma da empresa
coletiva, isto , a sociedade.319

315

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., pg. 64.
Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., pg. 24.
317 Observa Fbio Ulhoa Coelho que a pessoa jurdica empresria cotidianamente denominada
empresa, e os seus scios so chamados empresrios. Em termos tcnicos, contudo, empresa a
atividade, e no a pessoa que a explora; e empresrio no o scio da sociedade empresarial, mas a
prpria sociedade. necessrio, assim, acentuar, de modo enftico, que o integrante de uma
sociedade empresria (o scio) no empresrio; no est, por conseguinte, sujeito s normas que
definem os direitos e deveres do empresrio. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 78/79).
318 Sob a concepo estritamente tecnicista, no seria ento correto afirmar: Antonio Ermrio de
Moraes foi um grande empresrio brasileiro. Mas o empresrio, nesse conceito restritivo, seria a
sociedade (S.A. Indstrias Votorantim) que ele controlava e representava. No seria tambm correto
dizer: Steve Jobs foi um empresrio visionrio, mas sim a Apple Corporation uma empresria
visionria. No mnimo, tal interpretao soa contraditria e carente de lgica para a compreenso leiga
daquelas pessoas, scios controladores ou dirigentes, que fazem a empresa: o prprio empresrio.
Bastante apropriada era a opinio do jurista suo Walther Munzinger, que elaborou o projeto de Cdigo
Comercial da Sua de 1864, quando este afirmava que as disposies da lei comercial no devem
ser para o comerciante hierglifos somente decifrveis sob o dedo do jurisconsulto. (Motifs du project
de code de commerce suisse, apud Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial
Brasileiro, vol. I, cit. p. 429).
319 Apenas em sentido estrito, a empresa, como atividade, no se confunde com a sociedade, que
representa a forma da empresa. Esses conceitos so tecnicamente diferentes, na medida em que a
empresa somente existe quando estiver, de fato, desempenhando o seu objeto mercantil a partir do
capital aplicado. Como adverte Srgio Campinho, poder existir sociedade sem empresa, ainda que
seu objeto compreenda atividade prpria de empresrio, bastando, para isso, que seus atos
constitutivos sejam inscritos na Junta Comercial sem, de fato, entrar em atividade, deixando de exercer
a explorao do objeto. (O Direito de Empresa luz do novo Cdigo Civil, cit., p. 14). No mesmo
sentido, Rubens Requio, ao considerar que, apesar de formalmente constituda, enquanto a sociedade
estiver inativa, a empresa no surge. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 61).
316

Teoria crtica da empresa

176

Ivanildo Figueiredo

No Cdigo Comercial de Portugal de 1888, at hoje em vigor, este prescreve,


de modo direto e objetivo, que so comerciantes (art. 13):
1. As pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comrcio, fazem deste
profisso;
2. As sociedades comerciais.

O comerciante, para o direito portugus, desde essa poca, portanto, pode ser
tanto a pessoa natural como a pessoa jurdica. De acordo com os comentrios de
Antonio Menezes Cordeiro a esse dispositivo, as sociedades que tenham por objeto
a prtica de atos comerciais assumem uma das formas tipificadas no Cdigo de
Sociedades Comerciais (CSC) e so comerciantes.320
No seu sempre citado ensaio Perfis da Empresa, Alberto Asquini entendia que,
a partir da anlise do art. 2.082 do Cdigo Civil italiano, empresrio quem exerce,
isto , o sujeito de direito (pessoa fsica ou jurdica, pessoa jurdica privada ou pblica)
que exerce em nome prprio atividade econmica organizada.321 Assim, a pessoa
jurdica seria, ela mesma, a empresria, como sujeito de direito, representada por
seus rgos sociais dirigentes, integrados por pessoas fsicas. E so essas pessoas
fsicas, naturais, de carne e osso, aquelas que decidem, coordenam e respondem,
de fato e concretamente, pela sociedade comercial.
Da anlise desse dispositivo constante do art. 2.082 do Cdigo de 1942, bem
como de outros que o seguem, no possvel extrair, diretamente, a afirmao de
que o empresrio, alm de ser caracterizado como pessoa fsica ou natural, tambm
definido como pessoa jurdica. Contudo, em sentido diverso, o art. 2.086 do Cdigo
Civil italiano enuncia, ao tratar da direo e da hierarquia na empresa, que
L'imprenditore il capo dell'impresa e da lui dipendono gerarchicamente i suoi
collaboratori.322 Bem, cada empresa, sob tal orientao, somente pode ter uma
cabea, um nico chefe dirigente (capo). Dessa norma expressa, decorre a concluso
de que no pode ser cabea ou chefe da empresa, no sentido exato da expresso, a

320

Antonio Menezes Cordeiro, Direito Comercial, Coimbra, Almedina, 3 edio, 2012, p. 276.
Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 114.
322 Cdigo Civil da Itlia de 1942 Art. 2.086. O empresrio o cabea da empresa, e dele dependem
hierarquicamente os seus colaboradores.
321

Teoria crtica da empresa

177

Ivanildo Figueiredo

pessoa jurdica, criao artificial do direito, ainda que considerada, para determinados
efeitos, ente equiparado pessoa natural.
A pessoa jurdica, como assim exposta na teoria clssica de Savigny, era
considerada como fico do direito, criao artificial do Estado, ele mesmo uma
pessoa jurdica por excelncia.323 A pessoa jurdica consiste em uma fico jurdica
porque somente existe por determinao da lei e dentro dos limites por ela fixados.324
Como fico do direito, a pessoa jurdica no tem existncia concreta, como o
ser humano, por isso uma pessoa moral, incorprea, no dizer de Bevilaqua.325 No
direito romano, apenas a pessoa podia ser sujeito de direito, aplicando-se,
especialmente no direito penal, o brocardo societas delinquere non potest.326
A doutrina sempre considerou, todavia, a partir da lei, em alguns casos, e da
interpretao extensiva, em outros, que comerciante ou empresrio tanto pode ser a
pessoa fsica (firma individual) como a pessoa jurdica (sociedade comercial ou
empresria). Em sentido geral, como afirma Fbio Ulhoa Coelho, o empresrio uma
pessoa, e essa pessoa pode ser tanto a fsica, que emprega seu dinheiro e organiza
a empresa individualmente, como a jurdica, nascida da unio de esforos de seus
integrantes.327

323

Clvis Bevilaqua, Teoria Geral do Direito Civil, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 7 edio, 1955,
p. 172.
324 Friederich Karl Von Savigny, Droit Romain, 85, apud Clvis Bevilaqua, Teoria Geral do Direito
Civil, cit., p. 154.
325 Sobre a ideia de pessoa jurdica, pontifica Clvis: Assim, naturalmente, se constituem dois gneros
de pessoas: as corpreas ou fsicas e as morais ou jurdicas. Umas e outras so igualmente reais; a
distino est em que umas so dotadas, naturalmente, de razo, ao passo que, s outras, a
racionalidade parcialmente adquirida, mediante um arranjo especial do homem; umas recebem o seu
organismo da prpria natureza, ao passo que as outras conseguem a forma orgnica, porque as
penetra a natureza humana. (...) A pessoa jurdica no um homem fictcio mas pessoa real criada
pela ordem jurdica. A noo de pessoa mais extensa do que a de homem. (Teoria Geral do Direito
Civil, cit., p. 170).
326 A sociedade, no direito romano clssico, no era pessoa de direito porque existia apenas em razo
e vinculada vontade de seus scios. Institutas de Justiniano: Livro Terceiro - Ttulo XXV, Da
Sociedade: A sociedade dura enquanto os scios permanecerem de acordo; no momento em que um
deles a renunciar, a sociedade se dissolve ( 4); A sociedade se dissolve tambm no caso de morte
do scio, pois aquele que celebra uma sociedade escolhe para si uma determinada pessoa. ( 5).
(Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, Institutas do Imperador Justiniano, cit., p. 174).
327 Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 78.

Teoria crtica da empresa

178

Ivanildo Figueiredo

Adotam o mesmo entendimento Ricardo Negro,328 Haroldo Malheiros Duclerq


Verosa,329 Srgio Campinho330 e Luiz Antonio Soares Hentz.331
Alguns doutrinadores italianos consideram imprpria a expresso empresrio
coletivo, ou pessoa jurdica como empresria, a exemplo de Francesco Ferrara Junior
e Francesco Corsi.332 Outros comercialistas, como Francesco Galgano e Walter
Bigiavi,333 apontaram a incongruncia terminolgica de designar como empresrio a
pessoa jurdica, porque a sociedade no tem a atividade econmica como profisso,
como exerccio profissional, o que seria prprio e exclusivo, apenas, da pessoa
natural.
Segundo Tullio Ascarelli, o que qualifica o empresrio, elevado a conceito
central na sistemtica do Cdigo Civil italiano de 1942, uma atividade econmica,
assim como uma atividade econmica tambm qualificava o comerciante. Desse
modo, a natureza (e o exerccio) da atividade que qualifica o empresrio (e no, ao
contrrio, a qualificao do sujeito que determina a atividade).334 O que importa, para
Ascarelli, o conceito de atividade, considerando que a doutrina tradicional, na
refinada elaborao dos conceitos de ato e negcio jurdico, tem negligenciado a

328

Relativamente forma que reveste o exerccio da atividade empresarial, os empresrios podem


ser classificados em individuais e coletivos, sendo os primeiros os que exercem sua atividade debaixo
de uma firma individual e os coletivos os que a praticam por meio de uma sociedade empresria.
(Ricardo Negro, Manual de Direito Comercial e de Empresa Teoria Geral da Empresa e Direito
Societrio, So Paulo, Saraiva, vol. 1, 8 edio, 2011, p. 71).
329 O empresrio o titular da empresa, pessoa natural ou jurdica. quem assume o risco da atividade
para o bem (proveito dos lucros) ou mal (prejuzos causados a terceiros). (Haroldo Malheiros Duclerc
Verosa, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 155).
330 Podemos conceituar empresrio, genericamente falando, como a pessoa fsica ou jurdica que
exerce profissionalmente (com habitualidade e escopo de lucro) atividade econmica organizada para
a produo ou a circulao de bens ou de servios no mercado. (Srgio Campinho, O Direito de
Empresa luz do Novo Cdigo Civil, cit., p. 14).
331 Empresrio gnero do qual empresrio individual e sociedade empresria so espcies. (Luiz
Antonio Soares Hentz, Direito de Empresa no Cdigo Civil de 2002 Teoria Geral do Novo Direito
Comercial, So Paulo, Juarez de Oliveira, 3 edio, 2005, p. 72).
332 A qualidade de empresrio comercial deriva do exerccio de uma empresa comercial, sendo que
qualquer um que exercita uma empresa comercial empresrio comercial, podendo tratar-se de uma
pesoa fsica e ento tem o empresrio individual, ou tratar-se de um ente e ento se fala
(impropriamente) de empresrio coletivo. (Francesco Ferrara Junior, atualizado por Francesco Corsi,
Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 57/58).
333 Francesco Galgano, Delle associazioni non riconosciute e dei comitati, Art. 36-42, Collana
Commentario del Codice Civile, Commentario del Codice Civile a cura di Antonio Scialoja e Giuseppe
Branca, Bologna, Zanichelli Editore, Prima edizione, 1967, p. 113; Walter Bigiavi, La professionalit
dellimprenditore, Padova, Cedam, 1948, p. 86.
334 Tullio Ascarelli, O empresrio, traduo de Fbio Konder Comparato, in Revista de Direito Mercantil,
Industrial, Econmico e Financeiro RDM, So Paulo, Malheiros, n 109, janeiro-maro 1998, p. 183.

Teoria crtica da empresa

179

Ivanildo Figueiredo

elaborao do conceito de atividade, principalmente porque o conceito de atividade


bem mais relevante na avaliao jurdica dos fenmenos prprios de uma economia
caracterizada pela produo industrial de massa.335
Na concepo de Ascarelli, atividade no significa ato, mas srie de atos
coordenveis entre si, em funo de uma finalidade comum.336 O sujeito da atividade
, para Ascarelli, o sujeito dos atos singulares que constituem ou representam essa
atividade. Em princpio, esse sujeito sempre a pessoa fsica, porque a pessoa
humana que coordena os fatores de produo, ou seja, aquele que correndo o
risco e tendo o poder, organiza a atividade econmica e dela tira lucro.337
Somente demonstra-se correto denominar de empresrio a pessoa jurdica
quando for para efeito de falar de uma responsabilidade jurdica e de uma imputao
jurdica, mas no de uma incidncia econmica de risco, porque essa caracterstica
essencial ou ser dos scios, sobre os quais recaem os efeitos econmicos, ou do
empresrio pessoa fsica que tem a iniciativa de criar, aviar e fomentar a empresa, ato
de vontade que efetivamente, ser sempre dos homens e no das pessoas
jurdicas.338
Toda a teoria da empresa est assentada na existncia de uma organizao
representada pelo estabelecimento empresarial. Ainda que o artigo 1.142 do Cdigo
Civil de 2002 faa meno de que o estabelecimento o complexo de bens
organizado por empresrio ou sociedade empresria, a responsabilidade por essa
organizao recai, exclusivamente, sobre a pessoa fsica do empresrio, scio ou
acionista que teve a iniciativa volitiva de criao da empresa. o que a doutrina,
frente Mario Rotondi, denominou de aviamento subjetivo ou pessoal, atributo
personalssimo, que deriva da pessoa e do prestgio do titular como qualidades do
sujeito (o trabalho, a lhaneza, a correo, a capacidade), em indissolvel unio.339

335

Tullio Ascarelli, O empresrio, cit., p. 183.


Tullio Ascarelli, O empresrio, cit., p. 185.
337 Tullio Ascarelli, cit., p. 185.
338 Tullio Ascarelli, O empresrio, cit., p. 185.
339 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 174.
336

Teoria crtica da empresa

180

Ivanildo Figueiredo

No se revela cientificamente correto, muito menos lgico, classificar o


empresrio em pessoa fsica e pessoa jurdica, como se fossem espcies do mesmo
gnero. A pessoa jurdica, como empresrio, tambm uma fico jurdica, com
caractersticas bem diferenciadas do empresrio pessoa fsica.340 Essa classificao
somente pode ser adotada com relao, estritamente, ao sujeito da atividade
empresarial, na subdiviso entre empresrio individual e empresrio coletivo.
Podemos extrair dos ensinamentos de Ascarelli que o sujeito da atividade
empresarial pode ser tanto a pessoa fsica como a pessoa jurdica, centro de
imputao de direitos e obrigaes,341 mas a iniciativa e o risco econmico so,
necessariamente, to-s das pessoas fsicas.342 Assim, enquanto nas pessoas
jurdicas a qualificao do sujeito decorre do seu escopo, ou seja, do objeto econmico
da atividade,343 no caso das pessoas fsicas o elemento de qualificao
personalssimo e inerente pessoa fsica do empresrio e scios, relacionado aos
pressupostos da iniciativa e do risco, bem como do elemento organizacional.
Portanto, empresrio pessoa fsica e empresrio pessoa jurdica somente
podem ser considerados como espcies do mesmo gnero empresrio, isto como
classificao restritiva, stricto sensu.
No regime do direito de empresa, ordenado a partir das normas gerais do
Cdigo Civil de 2002, bem como da legislao comercial supletiva e complementar,
em especial no campo societrio, o empresrio deve ser classificado, em primeiro
grau, segundo seus aspectos material e formal. O elemento material aquele
determinado pela atividade e pelo sujeito que a exercita, como entendido com base

340 Destacando que somente a pessoa natural exerce a sua vontade, e no a pessoa jurdica atravs
da qual a vontade da pessoa fsica se manifesta, Jos de Oliveira Ascenso esclarece: No tem
interesse a teoria orgnica de Gierke, para quem a pessoa colectiva seria um organismo real, com
vontade e outros atributos. Unidade orgnica so s os seres vivos. A pessoa colectiva uma unidade
de ordem ou de relao, s apreensvel no plano intelectual. Direito Civil Teoria Geral, vol. 1,
Coimbra, Coimbra Editora, 2 edio, 2000, p. 229.
341 Eis porque me parece impossvel referir a subjetividade da atividade a quem no seja sujeito dos
atos dos quais resulta a mesma atividade, e sujeito (juridicamente) dos atos (dos quais resulta a
atividade) aquele que, com base nesses, adquire direitos e assume obrigaes, independentemente
da iniciativa (que, por exemplo, poder vir do representante e no do representado, embora sendo o
representado quem adquire direitos e assume obrigaes), ou tambm do risco econmico (que, no
caso concreto, poder ser de outrem). (Tullio Ascarelli, O empresrio, cit., p. 185).
342 Tullio Ascarelli, O empresrio, cit., p. 185.
343 Tullio Ascarelli, O empresrio, cit., p. 186.

181

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

nas lies de Ascarelli. O elemento formal refere-se designao legal do titular da


empresa conforme o tipo ou espcie de organizao empresarial. Podemos adotar,
ento, a classificao como proposta no esquema abaixo:
Sentido estrito
Aspecto material sujeito da atividade
Empresrio

Sentido lato
Aspecto formal denominao legal

Sob o aspecto material, empresrio, em sentido estrito, pode ser subdividido,


quanto ao sujeito, em empresrio pessoa fsica (titular de firma individual ou EIRELI),
e empresrio pessoa jurdica (sociedade empresria):
Firma individual
Pessoa fsica
EIRELI
Empresrio como sujeito
(Sentido estrito)
Pessoa jurdica

Sociedade empresria

Em sentido lato, pode designar-se empresrio toda pessoa fsica ou natural


responsvel pela organizao e pela assuno do risco econmico: empresrio
aquele que tem a iniciativa de constituir a empresa e organizar os fatores de produo,
individual ou coletivamente, assumindo os riscos da explorao. Empresrio
genericamente considerado o detentor do aviamento subjetivo do estabelecimento,
de carter personalssimo, que transfere seus atributos pessoais, sua capacidade,
conhecimento, habilidades, vocao, tino comercial, para os elementos objetivos do
mesmo estabelecimento,344 caractersticas que somente se revelam na pessoa
jurdica de modo indireto ou reflexo.
Sob o aspecto formal, o empresrio pode ser classificado e assim designado
de acordo com a tipologia da empresa, como no vigente direito brasileiro:
a)

Empresrio individual (CC, art. 966);

b) Empresrio titular de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada EIRELI


(CC, art. 980-A);

344

Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 174.

Teoria crtica da empresa

182

Ivanildo Figueiredo

c)

Microempreendedor Individual MEI (Lei Complementar 123/2006, art. 18-A);

d) Scio Administrador de sociedade limitada (CC, art. 1.060);


e)

Acionista Controlador (Lei 6.404/1976, art. 116) e Acionista Administrador ou


Diretor Acionista (Lei 6.404/1976, art. 138) de sociedade annima;

f)

Scio Comanditado de sociedade em comandita simples (CC, art. 1.045) ou em


comandita por aes (Lei 6.404/1976, art. 282).

Outros critrios de classificao so tambm adotados pela doutrina para


melhor definir e caracterizar o empresrio, como em relao situao de
regularidade jurdica (empresrio regular e empresrio irregular),345 quanto natureza
da atividade (empresrio comercial e empresrio rural), ou quanto ao porte da
empresa (pequeno, mdio e grande empresrio),346 aspectos que sero abordados
mais adiante neste estudo.
O empresrio pode ser definido, portanto, em sentido amplo, como toda pessoa
fsica que, aplicando capital prprio em uma explorao econmica, organiza e dirige
a empresa, seja esta empresa individual, EIRELI ou sociedade empresria.
Apesar do Cdigo Civil de 2002, por inferncia do art. 968, definir como
empresrio a pessoa fsica, revela-se contraditrio negar aos controladores e
administradores de sociedades empresrias o qualificativo de empresrio lato sensu.
Essa tendncia de ampliar o conceito de empresrio resulta de uma perspectiva
histrica, segundo Fbio Konder Comparato, ao considerar que o Direito Comercial
fixado nas codificaes do sc. XIX no distinguia o capitalista do empresrio, e
assim geralmente se confundiam na mesma pessoa a noo a respeito do
comerciante individual e a dos scios nas sociedades mercantis.347
Na perspectiva econmica ou na linguagem de mercado, sempre se considerou
como empresrio o scio ou acionista capitalista,348 a pessoa que investe capital na
atividade produtiva, como cabea da empresa. Condio essencial para o exerccio
dessa atividade eminentemente tcnica a organizao dos fatores de produo, dos

345

Srgio Campinho, O direito de empresa luz do novo Cdigo Civil, cit., p. 15.
Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 90/91.
347 Fbio Konder Comparato, Direito Empresarial, So Paulo, Saraiva, 1995, p. 17.
348 Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 76.
346

Teoria crtica da empresa

183

Ivanildo Figueiredo

bens materiais e imateriais reunidos em um todo dotado de logicidade e adaptado


explorao de determinado ramo de negcio.
O grau de organizao e especializao da empresa ser sempre proporcional
complexidade do objeto do negcio, podendo variar desde uma pequena mercearia
de bairro, explorada sob a forma individual de uma microempresa, at uma grande
companhia siderrgica de capital aberto, com milhares de acionistas, como assim
diferenciava Fbio Konder Comparato.349 Em ambas as situaes, podemos
considerar que ser empresrio tanto aquele que explora um pequeno negcio, como
tambm o acionista controlador da grande empresa com poderes de administrao da
companhia. O que importa, para essa concepo, o exerccio da atividade
econmica de explorao mercantil, no a forma estrita ou o porte da empresa, como
assim tambm entende a jurisprudncia dominante, que considera empresrio, em
sentido lato, qualquer pessoa responsvel por atividade empresarial.350

349

Fbio Konder Comparato, A Reforma da Empresa, cit., p. 60.


possvel a desconsiderao inversa da personalidade jurdica sempre que o cnjuge ou
companheiro empresrio valer-se de pessoa jurdica por ele controlada, ou de interposta pessoa fsica,
a fim de subtrair do outro cnjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva. (STJ, 3
Turma, REsp 1.236.916/RS, Relatora Nancy Andrighi, DJe 28/10/2013). Proibir o registro e a utilizao
da marca "classificadas amarelas", segundo a pretenso da recorrente, prejudicaria a livre
concorrncia, pois a recorrida e, de maneira reflexa, todos os demais empresrios que comercializam
anncios em folhas de cor amarela teriam grandes dificuldades para inserirem seus produtos no
mercado, uma vez que a expresso "amarelas" designa caracterstica essencial do objeto
comercializado. (STJ, 4 Turma, REsp 1.107.558/RJ, Relator Marco Buzzi, DJe 06/11/2013). Na
relao mercantil existente entre o hospital e as operadoras de planos sade, os contratantes so
empresrios - que exercem atividade econmica profissionalmente -, no cabendo ao consumidor
arcar com os nus/consequncias de eventual equvoco quanto gesto empresarial. (STJ, 4 Turma,
REsp 1.324.712/MG, Relator Luis Felipe Salomo, DJe 13/11/2013).
350

Teoria crtica da empresa

184

Ivanildo Figueiredo

4.3. Conceito de empresrio

O artigo 966 do Cdigo Civil de 2002, ao abrir o Livro II da Parte Especial, do


Direito de Empresa, define como empresrio quem exerce profissionalmente
atividade econmica organizada para a produo ou a circulao de bens ou de
servios, conceito nuclear, bsico, do direito empresarial.
Como elemento essencial e caracterizador do empresrio, Rubens Requio
considera que o empresrio a pessoa que cria, ou seja, que tem a iniciativa para a
constituio da empresa e assume o risco da explorao comercial.351 A iniciativa e o
risco, assim, constituem dois elementos integrantes do ncleo comum determinante,
em primeiro plano, da configurao do empresrio. O terceiro elemento que se
destaca na caracterizao do empresrio refere-se organizao dos fatores de
produo, a partir do capital destinado explorao econmica. Cabe ao empresrio,
e somente a ele, decidir sobre o modo de destinao do capital e da organizao dos
fatores de produo, a escolha do tipo, ramo ou objeto da empresa, da seleo dos
bens materiais, das criaes intelectuais que passaro a ser as caractersticas do
estabelecimento, reunidas em torno do seu aviamento.
Na decomposio do conceito de empresrio constante do art. 966 do Cdigo
Civil, possvel distinguir cinco aspectos que evidenciam a ideia de empresrio: o
modo do exerccio, a funo, a natureza, a disposio e o objeto da atividade
empresarial. A anlise isolada, mas aprofundada, de cada um desses aspectos,
permite-nos compreender melhor a figura do empresrio.
O modo do exerccio o profissional. Aquele que desempenha atividade
empresarial faz dela sua profisso: exerce-a com profissionalismo. O carter
profissional significa que o empresrio tem na atividade sua principal ocupao e
351

O poder de iniciativa pertence-lhe exclusivamente: cabe-lhe, com efeito, determinar o destino da


empresa e o ritmo de sua atividade. (...) Compensando o poder de iniciativa, os riscos so todos do
empresrio: goza ele das vantagens do xito e amarga as desventuras do insucesso e da runa.
(Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 77).

Teoria crtica da empresa

185

Ivanildo Figueiredo

tambm a fonte primria para o seu sustento e da sua famlia. A profisso importa na
dedicao exclusiva ou quase exclusiva a uma atividade, com carter de habitualidade
e permanncia.352
Para o exerccio do comrcio, faz-se necessrio um grau elementar de
conhecimentos e habilidades especficas. Com efeito, a lei no exige do empresrio
um grau de instruo mnimo, por no se tratar de profisso tcnica ou cientfica
regulamentada. No sendo profisso regulamentada, seu exerccio livre e acessvel
a qualquer pessoa. O enquadramento do empresrio como profissional resulta,
todavia, do exerccio regular e formal da atividade empresarial, conforme assim venha
a ser reconhecido e conferido pela Junta Comercial, rgo tambm responsvel pela
expedio da carteira de exerccio profissional.353
A funo refere-se atividade em si, realizao de atos prprios e concretos
dirigidos a determinado fim, executados pelo empresrio, por si e por seus prepostos
e colaboradores escolhidos, orientados e remunerados por ele, como titular da
empresa.
A atividade compreende a execuo constante, repetida e especializada de
uma srie de atos e negcios de contedo e efeitos jurdicos, dentro da esfera
profissional do empresrio que a realiza. Enquanto o empresrio dispuser de recursos
produtivos e utilizar seu capital na execuo do seu objeto, podemos afirmar que
existe empresa, como ente dinmico. Esgotadas as fontes de recursos e cessada a
atividade de aplicao e reproduo do capital, a empresa tende, inevitavelmente, a
desaparecer.
A natureza da atividade do empresrio econmica, ou seja, rene de modo
simultneo a produtividade, a onerosidade e a lucratividade como elementos prprios,
352

Ensinava Waldemar Ferreira sobre o carter profissional do comerciante: O exerccio habitual do


comrcio, a profisso mercantil, entretanto, como tem sido esclarecido em mais de um passo, no se
constitue por um ou mais atos, praticados isolada e acidentalmente; preciso sejam eles
suficientemente ligados, frequentes e repetidos. Enquanto isso no acontece, elabora-se, mas no se
caracteriza, a qualidade do comerciante: ela no inata, resulta da prtica habitual e profissional de
atos mercantis. (Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. I, O comerciante, Rio de Janeiro,
Freitas Bastos, 2 edio, 1948, p. 44).
353 Lei 8.934/1994 Art. 8. s Juntas Comerciais incumbe: (...) V - expedir carteiras de exerccio
profissional de pessoas legalmente inscritas no Registro Pblico de Empresas Mercantis e Atividades
Afins;

186

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

especficos. Toda atividade econmica tem funo produtiva e reprodutiva, ao agregar


produtos,

bens

servios,

necessrios

ao

ciclo

desenvolvimentista,

de

sustentabilidade ou para responder s demandas de consumo da populao.354


A produo, como medida ou poltica de desenvolvimento, equilbrio e paz
social, realizada pelas empresas privadas no regime da economia de mercado, no
pelo Estado. Quem produz so as empresas, organizadas, representadas e dirigidas
por empresrios. A produo onerosa, representa um custo, que ser determinante
para o clculo do preo dos produtos que sero colocados no mercado. O dinheiro
o meio da atividade econmica, que sempre ser onerosa, e a resultante da relao
custo e preo ser determinada pelo lucro do empresrio na explorao da
empresa.355
O empresrio , tambm, o responsvel pela disposio dos fatores de
produo na empresa, ou seja, pela organizao desses elementos essenciais para a
existncia da empresa, representados pelo capital, recursos humanos, recursos
materiais e tecnologia.
O aviamento ou a capacidade da empresa gerar lucros depende,
essencialmente, do modo como o empresrio vai dispor e organizar esses fatores de
produo, decorrente de suas aptides, conhecimento tcnico, habilidades, ou de
outros fatores subjetivos e culturais, como a vocao empresarial ou tino comercial
para o exerccio da profisso de titular de empresa.

354

Segundo Ascarelli, a atividade que caracteriza o empresrio, diversamente do antigo conceito de


comerciante, ao afirmar que pois, a natureza (e o exerccio) da atividade a que qualifica ao
empresrio (e no, pelo contrrio, a condio de sujeito a que depois qualifica a atividade) e nesta
prioridade da atividade exercida aos fins da qualificao do sujeito pode ficar de relevo a persistncia
de um elemento objetivo, como critrio de aplicabilidade da disciplina especial ditada precisamente
para a atividade e para quem a exerce. (Iniciao ao Estudo do Direito Mercantil, cit., p. 178).
355 Fbio Ulhoa Coelho define o direito comercial como direito-custo, ou seja, o seu estudo cientfico
exige a anlise dos componentes econmicos que diretamente interferem no exerccio da empresa,
como assim preleciona: Para definir o preo dos produtos e servios que fornece ao mercado, o
empresrio realiza um clculo cada vez mais complexo, que compreende o preo dos seus insumos, a
mo de obra, os tributos, a margem de lucro esperada e tambm as contingncias. Em razo desse
racionalismo econmico, o direito comercial representa um direito-custo, expresso pelas normas
jurdicas cuja aplicao interfere com os custos da atividade empresarial, e que, desse modo,
estabelecem obrigaes que o empresrio deve internalizar em sua empresa, isto , levar em conta
no momento de calcular e fixar os preos de seus produtos ou servios. (Curso de Direito Comercial,
vol. 1, cit., p. 51-54).

Teoria crtica da empresa

187

Ivanildo Figueiredo

O objeto ou finalidade dessa organizao, na lio de Buonocore, consiste na


criao de um aparato produtivo estvel formado por pessoas e por bens
instrumentais para atingir um objetivo econmico relacionado a uma dada atividade
produtiva.356 A organizao integra o prprio conceito de empresrio porque somente
pode existir empresa como atividade organizada se os fatores de produo forem
dispostos de modo lgico, funcional, com cada elemento, material ou imaterial,
cumprindo o seu papel estruturante. Essa organizao refere-se ao modo como os
recursos humanos, materiais, tecnolgicos e operacionais sero dispostos para que a
empresa cumpra o seu objetivo de produzir ou comercializar bens ou servios no
mercado, visando o lucro como meta final e pressuposto de continuidade.
Cabe ao empresrio, pois, diretamente ou com o concurso de terceiros, scios,
colaboradores, prepostos, trabalhadores, assessores, consultores, etc., estruturar e
organizar os fatores de produo para a operao do negcio, a partir do capital
investido e com base nas estratgias e metas por ele definidas, de acordo com o porte
da empresa, do ramo de atividade e das particularidades levantadas no mercado e
dos concorrentes em potencial.
Por ltimo, o objeto da misso profissional do empresrio, atravs da sua
empresa, a produo ou circulao de bens ou de servios, a funo econmica por
natureza prpria. O empresrio pode ser produtor de bens, ou industrial, cuja empresa
tenha por objeto a transformao de matrias primas em produtos acabados, dirigidos
ao mercado manufatureiro, como insumos ou bens de capital, ou para atender s
demandas difusas do mercado de consumo.
O objeto da atividade do empresrio pode ser a circulao ou comercializao
de bens, a aquisio de bens para revenda, no atacado ou no varejo. O objeto pode
ser tambm a prestao de servios, que no podem ser produzidos nem tampouco
circulam, ao contrrio do que induz a definio do art. 966 do Cdigo Civil. A atividade
de servio objeto de prestao, de execuo, de obrigao de fazer, no da
obrigao de dar coisa certa, como a de comrcio. Todavia, a prestao de servios
pode ser conjugada com a venda de bens, como na assistncia tcnica ou nos

356

Vincenzo Buonocore, LImpresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 119.

Teoria crtica da empresa

188

Ivanildo Figueiredo

servios de manuteno. Tambm pode ser resultante de produo realizada


concomitante com servios, caracterstica da indstria da construo civil. De todo
modo, seja como objeto de indstria, de comrcio ou de prestao de servios, o
empresrio tem numa dessas atividades o escopo da sua atuao profissional,
atravs da empresa. 357
Os principais aspectos que devem ser destacados na relao entre a empresa
e seu empresrio, assim detalhados por Auletta e Salanitro, a partir da anlise do art.
2.082 do Cdigo Civil italiano, norma matriz, so os seguintes: 358
a) empresa significa o exerccio de atividade, e atividade um conjunto de atos que
so desempenhados e sujeitos a disciplina particular;
b) a atividade da empresa deve ser econmica, destinada produo e circulao de
bens ou prestao de servios;
c) a atividade econmica deve ser exercitada profissionalmente, isto , de modo
habitual;
d) a atividade econmica deve ser organizada, de tal modo que possam ser
destacados elementos mnimos representativos dessa organizao, como a
presena de colaboradores na empresa;
e) o fim da atividade de produo e circulao de bens e de prestao de servios
deve ter como destinao o mercado de empresas e de consumo;
f) a atividade da empresa tem necessariamente escopo lucrativo; e

357

Na decomposio dos elementos extrados do art. 2.082 do Cdigo italiano de 1942, Francesco
Ferrara Junior e Francesco Corsi destacam como caractersticas essenciais na definio de
empresrio: a) o exerccio de atividade econmica com a finalidade de produo ou circulao (troca)
de bens ou de servios; b) que essa atividade seja organizada; e c) desempenhada de modo
profissional. (Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 28). Do mesmo modo que Ferrara Junior e Corsi
comentaram com base no Cdigo italiano de 1942 (art. 2.082), Sylvio Marcondes Machado, relator do
livro do direito de empresa do Cdigo Civil de 2002, repetia que, no conceito do art. 966 do Cdigo
Civil, conjugam-se esses trs elementos para formar a noo de empresrio: Em primeiro lugar, tratase de atividade econmica, isto , atividade referente criao de riquezas, bens ou servios. A
economicidade da atividade est na criao de riquezas; de modo que aquele que profissionalmente
exerce qualquer atividade, que no seja econmica ou no seja atividade de produo de riquezas,
no empresrio. Em segundo lugar, esta atividade deve ser organizada, isto , atividade em que se
coordenam e se organizam os fatores da produo: trabalho, natureza, capital. a conjugao desses
fatores, para produo de bens ou de servios, que constitui a atividade considerada organizada.
Finalmente, ela uma atividade profissional: Considera-se empresrio quem exerce
profissionalmente..., isto , a habitualidade da prtica da atividade, a sistemtica dessa atividade e
que, por ser profissional, tem implcito que exercida em nome prprio e com nimo de lucro. Essas
duas ideias esto implcitas na profissionalidade do empresrio. (Questes de direito mercantil, So
Paulo, Saraiva, 1977, p. 10/11).
358 Giuseppe Auletta e Niccol Salanitro, Diritto Commerciale, Milano, Giuffr, 14 ed., 2003, p. 4-7.

Teoria crtica da empresa

189

Ivanildo Figueiredo

g) o objeto da empresa deve ser lcito.

Alm do aspecto material que caracteriza o empresrio, o art. 967 do Cdigo


Civil tornou obrigatria a inscrio do empresrio no registro de empresas mercantis,
ou seja, o registro na Junta Comercial. Sendo o registro obrigatrio, somente deveria
ser considerado empresrio, para efeitos jurdicos, o empresrio registrado, que
atenda a esse requisito formal.
O entendimento dominante de que o ato de inscrio ou arquivamento do
registro da firma individual na Junta Comercial tem efeito estritamente declaratrio ou
de publicidade, e no define a qualidade de empresrio. Nesse sentido, as opinies
de Fbio Ulhoa Coelho,359 Alfredo de Assis Gonalves Neto,360 Srgio Campinho,361
Luiz Antonio Soares Hentz,362 Vera Helena de Mello Franco 363 e Mnica Gusmo.364

359

O registro no rgo prprio no da essncia do conceito de empresrio. Ser empresrio o


exercente profissional de atividade econmica organizada para a produo ou circulao de bens ou
servios, esteja ou no inscrito no registro de empresas. (Fbio Ulhoa Coelho, Manual de Direito
Comercial, cit., p. 62).
360 A inscrio do empresrio individual , em princpio, um ato declaratrio, visto que tem por fim dar
publicidade condio jurdica de quem exerce atividade econmica reputada passvel de registro
perante o Registro Pblico de Empresas Mercantis. Incidem em erro palmar aqueles que acham ser a
inscrio constitutiva da qualidade de pessoa jurdica do empresrio. Essa inscrio no cria nenhuma
figura jurdica distinta da pessoa natural do empresrio. (Alfredo de Assis Gonalves Neto, Direito de
empresa, cit., p. 80).
361 Temos, assim, o registro como declaratrio e no constitutivo da qualidade de empresrio. O
arquivamento dos atos constitutivos das firmas individuais e das sociedades comerciais na Junta
Comercial no assegura, pelo s efeito do registro, a condio de empresrio que se verifica pelo
exerccio profissional da atividade que lhe prpria, tal qual definida no artigo 966. (Srgio Campinho,
O direito de empresa luz do novo Cdigo Civil, cit., p. 28).
362 O registro, s por si, no prova a qualidade de comerciante, podendo ser provado ao contrrio, o
encerramento das atividades mercantis sem o respectivo cancelamento do registro; o contrrio tambm
possvel, ou seja, o desempenho de atividade sem o registro, o que transporta o problema para a
empresa de fato. (Luiz Antonio Soares Hentz, Direito de Empresa no Cdigo Civil de 2002 Teoria
Geral do Novo Direito Comercial, So Paulo, Juarez de Oliveira, 3 edio, 2005, p. 74).
363 O no arquivamento dos constitutivos (de firma individual ou de sociedades empresrias) no
impede seja reconhecida a qualidade de empresrio quele que pratica a empresa em carter
profissional (relevo ao carter objetivo). Impede, isto sim, que se lhe atribua a qualidade de empresrio
comercial regular. (Vera Helena de Mello Franco, Manual de direito comercial, O empresrio e seus
auxiliares, o estabelecimento empresarial, as sociedades, volume 1, So Paulo, Revista dos
Tribunais, 2 edio, 2004, p. 67/68).
364 O art. 967 do CC/02 determina o registro da firma individual ou atos constitutivos do empresrio no
rgo competente (RPEM), antes do incio de sua atividade. Este registro no tem o condo de conferir
ao empresrio esta condio, e sim, a de lhe conferir regularidade. O conceito de empresrio firmado
a partir de critrio real ao invs de formal, ou seja, da efetiva prova do exerccio de atividade econmica
organizada (empresa), independentemente de seu registro. O registro, por sua natureza declaratria,
apenas declara a condio do empresrio, e no a constitui. (Mnica Gusmo, Curso de Direito
Empresarial, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 5 edio, 2007, p. 23).

Teoria crtica da empresa

190

Ivanildo Figueiredo

Sob a perspectiva da qualificao, portanto, no bastaria o registro da firma


individual na Junta Comercial para caracterizar a condio de empresrio. De acordo
com o enunciado pelo art. 966 do Cdigo Civil, considera-se empresrio quem exerce,
profissionalmente, atividade econmica. Ainda que diante da obrigatoriedade do
registro previsto no art. 967 do Cdigo, o elemento material representaria aquele que,
em tese, deve prevalecer. Tambm seguem essa orientao as concluses
doutrinrias das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justia Federal, apreciando
a matria de direito de empresa.365
Apesar de aparentemente pacificada, a questo do registro do empresrio, no
regime do Cdigo Civil de 2002, ainda passvel de questionamento. Para tanto, de
incio, torna-se necessrio abandonar o referencial pretrito ao registro do
comerciante, como constante do Cdigo Comercial de 1850, ao qual a doutrina
sempre esteve apegada.
O artigo 4 do Cdigo de 1850, exigia, de modo literal, o registro do comerciante
apenas para efeito de gozar da proteo que este Cdigo liberaliza em favor do
comrcio. O comerciante que no estivesse registrado, no era destinatrio da
proteo legal. Poderia, sim, exercer o comrcio, mas sem a proteo do nome
comercial, desprovido de domiclio e foro comercial, sem direito de requerer sua
concordata ou a falncia de seu devedor, sem poder contratar com bancos ou emitir
ttulos de crdito em nome da casa mercantil.
O comerciante irregular, pelo fato de praticar a mercancia, era reconhecido
como pessoa que atuava licitamente no mercado, em nome prprio, e essa atuao
era decorrente dos princpios da liberdade de empresa e da autonomia da vontade. O
registro na Junta Comercial tinha, portanto, carter meramente declaratrio.
Comerciante era aquele que simplesmente exercia a atividade de mercancia, como
comerciante regular, com registro na Junta Comercial, ou comerciante irregular,

365

Enunciados das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justia Federal - Enunciado 198 - Art.
967: A inscrio do empresrio na Junta Comercial no requisito para a sua caracterizao,
admitindo-se o exerccio da empresa sem tal providncia. O empresrio irregular rene os requisitos
do art. 966, sujeitando-se s normas do Cdigo Civil e da legislao comercial, salvo naquilo em que
forem incompatveis com a sua condio ou diante de expressa disposio em contrrio. Enunciado
199 Art. 967: A inscrio do empresrio ou sociedade empresria requisito delineador de sua
regularidade, e no de sua caracterizao.

Teoria crtica da empresa

191

Ivanildo Figueiredo

desprovido de registro. O comerciante irregular atuava informalmente, exercendo a


atividade em seu prprio nome, assumindo, com carter personalssimo, as
obrigaes resultantes do exerccio do comrcio perante clientes, fornecedores e
credores. Mas no era proibido de exercer o comrcio, de praticar atos jurdicos
vlidos.
De modo semelhante, foram desenvolvidos pela doutrina os conceitos de
sociedade irregular e sociedade de fato,366 quando, na atividade comercial, fosse ela
exercida por duas ou mais pessoas, sem registro do contrato social na Junta
Comercial,367 no primeiro caso, e sem a existncia de contrato escrito, na segunda
hiptese.
Comerciante e empresrio, todavia, so conceitos distintos, definidos e
regulados por sistemas jurdicos igualmente diferentes. O comerciante podia ser, de
acordo com o Cdigo Comercial de 1850, regular ou irregular, conforme estivesse
registrado, ou no, na Junta Comercial (art. 4), sendo o exerccio do comrcio
presumido a partir do momento do registro (art. 9).
O conceito de empresrio, constante do Cdigo de 2002, mais elaborado e,
por isso mesmo, mais complexo. Ele envolve dois elementos que se complementam:
o elemento material, do exerccio da atividade econmica de produo e circulao
de bens ou de servios (art. 966), e o elemento formal, do reconhecimento e registro
da condio profissional de empresrio na Junta Comercial (art. 967).
Com efeito, na anlise do conceito de empresrio, so dois os problemas que
merecem tratamento diferenciado: o primeiro problema aquele relativo natureza
constitutiva ou declaratria do registro na Junta Comercial. O segundo problema
366

Segundo Jos Ignacio Romero, sociedade irregular aquela que pertencendo a um dos tipos
previstos em lei, tem um vcio de forma, e sociedade de fato aquela que simplesmente existe como
tal, mas carece absolutamente de instrumentalizao: de fato. (Sociedades irregulares y de hecho,
Buenos Aires, Depalma, 1982, p. 77/78).
367 No que tange sociedade comercial ou empresria, a natureza do registro de empresa diferente
do comerciante ou empresrio individual, porque aquele tem natureza constitutiva para a criao da
pessoa jurdica societria (CC, art. 45), e no carter estritamente declaratrio. A sociedade empresria
que no registrar seu contrato social na Junta Comercial fica caracterizada e regulada como sociedade
em comum, modelo transitrio, de acordo com o artigo 986 do Cdigo Civil: Enquanto no inscritos os
atos constitutivos, reger-se- a sociedade, exceto por aes em organizao, pelo disposto neste
Captulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatveis, as normas da sociedade
simples.

Teoria crtica da empresa

192

Ivanildo Figueiredo

resulta no da natureza, mas do efeito jurdico do registro, aps formalizado, se este,


mesmo tendo carter declaratrio, atribui a qualificao jurdica de empresrio a quem
adquire regularidade na sua situao legal. Em decorrncia desse efeito, empresrio,
stricto sensu, como conceito jurdico, somente seria aquele com registro regular na
Junta Comercial, excluindo-se, por consequncia, desse conceito, o comerciante
irregular.
No antigo regime do comerciante, analisando o artigo 4 do Cdigo Comercial
de 1850, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a matrcula, por si s, no efetiva
a qualidade de comerciante. Nessa deciso, o Ministro Relator Cndido Motta Filho
observou que o registro a maneira pela qual uma pessoa ingressa no comrcio para
exercit-lo. Mas o exerccio continuado que o faz comerciante.368 A consequncia
desse registro, todavia, para Maria Helena Diniz, produz presuno juris tantum, de
que o comerciante exerce a atividade em carter regular.369
Esse registro teria natureza declaratria porque publiciza a existncia da
atividade comercial regular. Na lio de Giuseppe Auletta e Niccol Salanitro, a
eficcia do registro pode ser positiva, quando produz efeitos perante terceiros e
previne a responsabilidade do empresrio, como, ao reverso, poder ser negativa,
quando a ausncia do registro impede a defesa de direitos que no eram do
conhecimento de terceiros.370 Desse modo, o carter da publicidade aquele que se
destaca com maior intensidade a partir do registro do empresrio na Junta Comercial.
A finalidade do registro, segundo a lei brasileira em vigor, dar garantia, publicidade,

368

Supremo Tribunal Federal - STF, 1 Turma, RE 37.099/SP, Relator Ministro Cndido Motta Filho,
julgado em 27/01/1958, RTJ n 5, p. 222/223.
369 O registro tem efeito declaratrio e no constitutivo, visto que apenas declara a condio de
empresrio individual, tornando-a regular, pois a qualidade de empresrio requer a prtica efetiva da
atividade empresarial, que a caracterstica primordial de sua profisso. O registro declara a qualidade
de empresrio (RTJ, 5:222) por gerar presuno juris tantum de que o empresrio exerce,
regularmente, a atividade empresarial. (Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro
Direito de Empresa, So Paulo, Saraiva, 2008, p. 85).
370 A inscrio dos empresrios comerciais no registro de empresa tem uma funo de publicidade
declaratria, no sentido de que a inscrio tem uma eficcia positiva e uma eficcia negativa. A primeira
opera em vantagem dos empresrios, porquanto a ignorncia dos fatos, dos quais a lei prescreve a
inscrio, no pode ser oposta pelos terceiros a partir do momento em que a inscrio ocorrer. A
eficcia negativa opera ao contrrio, em prejuzo dos empresrios, porquanto se no esto inscritos os
fatos dos quais a lei exige a inscrio, esses no podem ser opostos a terceiros, a menos que os
empresrios provem que aqueles tenham tido igualmente conhecimento. (Giuseppe Auletta e Niccol
Salanitro, Diritto Commerciale, cit. p. 24).

Teoria crtica da empresa

193

Ivanildo Figueiredo

autenticidade, segurana e eficcia aos atos jurdicos das empresas mercantis,371


com efeito erga omnes, no sentido de que a informao registrada na Junta Comercial
pressupe ser do conhecimento pblico, plenamente oponvel a terceiros, do mesmo
modo como regulado na matriz italiana pelo Cdigo de 1942.372
Apesar do registro do empresrio possuir o efeito de publicizar o exerccio da
atividade empresarial ou comercial, esse no seu nico efeito, isto porque, tambm
em decorrncia do registro, fica formalizada a regularidade do empresrio como titular
de empresa criada de acordo com os requisitos legais (CC, art. 978). O comerciante,
antes, ou empresrio, agora, matriculado ou inscrito no registro do comrcio presumese, pois, comerciante ou empresrio regular, mas apenas sob o aspecto formal.
De acordo com Ascarelli, o sistema italiano desconhece a figura do empresrio
comercial aparente, aquele considerado como tal pelo nico fato da publicidade.373
Desse modo, alm da regularidade jurdica decorrente da formalizao do empresrio
no registro de empresas, entende Ascarelli que a qualidade de empresrio comercial
dever sempre ser valorada na realidade dos fatos, sem que o exame possa ser
impedido por nenhuma publicidade.374 Ele afirma que a publicidade decorrente do
registro no deve impedir ou obstar o exame da realidade dos fatos. Mas o registro,
ainda que tenha menor importncia,375 representa elemento formal relevante para
caracterizar o exerccio da empresa, no podendo ser, de todo, desprezado.

371

Lei 8.934/1994 Dispe sobre o Registro Pblico de Empresas Mercantis e Atividades Afins - art.
1, inciso I; art. 32, inciso II.
372 Para os atos jurdicos serem oponveis a terceiros, a lei dispe de instrumentos idneos de
publicidade como a transcrio e a maior razo para a satisfao desta exigncia surge para a
empresa, cuja atividade, sendo institucionalmente destinada ao mercado, , por esse motivo, fonte de
uma densa rede de relaes com terceiros. Para a empresa, de fato, essa exigncia dupla: para a
empresa comunicar as suas atividades a todos aqueles que entram em contato com ela, os terceiros fornecedores, clientes, credores para que estes fiquem protegidos por meio da informao sobre os
acontecimentos mais importante desde o nascimento da empresa. Para atingir estes objetivos, o
legislador de 42 intituiu o registro das empresas, em que, em nome da concepo ento vigente,
ordenou que se inscrevessem dentro de trinta dias da aquisio da categoria de empresrio, todos os
empresrios comerciais, pessoas fsicas e sujeitos diversos das pessoas fsicas, e outros, de acordo
com as regras que regem a matria (artigos 2.196, 1, 2.200 e 2.201), e que nesse registro tambm
fossem anotados os acontecimentos da vida da empresa, como a localizao, o objeto, seus auxiliares
ou prepostos, e todas as modificaes desses elementos, at a cessao da empresa (Art 2.196., 1,
2.197, 2.198, 2.206). Vincenzo Buonocore, Istituzioni di Diritto Commerciale, cit., p. 58.
373 Tullio Ascarelli, Iniciao ao Estudo do Direito Mercantil, cit., p. 312/313.
374 Tullio Ascarelli, cit., p. 313.
375 Tullio Ascarelli, cit., p. 313.

Teoria crtica da empresa

194

Ivanildo Figueiredo

Retornando comparao entre os regimes do Cdigo Comercial de 1850 e do


Cdigo Civil de 2002, analisados a partir da rica construo doutrinria italiana sobre
o Cdigo de 1942, cabe concluir que a qualificao jurdica do empresrio distinta
da qualificao do comerciante, porque esta pode resultar, to s, do exerccio do
comrcio (CCom 1850, art. 4). A caracterizao da qualidade de empresrio, no
Cdigo Civil de 2002, depende da conjugao de dois elementos, o material, relativo
ao exerccio profissional de atividade econmica (art. 966), e o formal, resultante da
obrigatoriedade do registro do empresrio para a aquisio de regularidade jurdica
(art. 967), ainda que inexista sano pelo exerccio irregular da atividade
empresarial.376
A respeito dos efeitos legais do registro, esclarece Calixto Salomo Filho que,
no caso do empresrio e tambm da prpria empresa, no h reconhecimento
externo sem registro.377 O registro tem carter declaratrio da condio jurdica do
empresrio, para efeito de publicizao, mas ter tambm carter constitutivo no caso
da criao da pessoa jurdica. Desse modo, na opinio de Calixto Salomo Filho, o
registro deve ser considerado elemento central para a conformao da fattispecie
empresrio,378 para a definio de empresrio, de tal maneira que o registro que
complementa a qualificao jurdica para a pessoa que a exerce.
A fattispecie empresrio, seu conceito jurdico especfico, um conceito
agregador, compsito, compreende contedo dplice, porque deve atender a esses
dois elementos, simultaneamente: o exerccio profissional de atividade econmica

376

Apesar da obrigatoriedade prevista no art. 967, Arnoldo Wald entende que a sano para a
irregularidade do exerccio da atividade empresarial, assim como ocorria no comerciante regular, deve
ser buscada na rea comercial, isto , retirando do empresrio irregular o direito a alguns privilgios
oriundos da sua condio de empresrio, como aqueles relativos falncia ou responsabilidade
patrimonial, por exemplo. (Comentrios ao novo Cdigo Civil - Livro II Do Direito de Empresa,
Vol. XIV, cit., p. 9/10). Para Fbio Ulhoa Coelho, A falta de registro na Junta Comercial importa,
tambm, a aplicao de sanes de natureza fiscal e administrativa, como, por exemplo, a
impossibilidade de inscrio no Cadastro Nacional de Pessoas Jurdicas (CNPJ), nos cadastros das
Fazendas Pblicas Estaduais e Municipais, no Instituto Nacional do Seguro Social INSS, alm de
dar ensejo incidncia de multa pela inobservncia de obrigao tributria instrumental, ficando a
atividade do empresrio sem registro restrita ao universo da economia informal. (Curso de Direito
Comercial, vol. 1, cit., p. 98-90).
377 Calixto Salomo Filho, A fattispecie empresrio no novo Cdigo Civil, em Princpios do Novo
Cdigo Civil Brasileiro e outros temas Homenagem a Tullio Ascarelli, Antonio Junqueira de
Azevedo, Heleno Taveira Torres e Paulo Carbone, Coordenadores, So Paulo, Quartier Latin, 2008, p.
121.
378 Calixto Salomo Filho, A fattispecie empresrio no novo Cdigo Civil, cit., p. 121.

Teoria crtica da empresa

195

Ivanildo Figueiredo

(elemento material) e o registro na Junta Comercial (elemento formal), inclusive como


condio de publicizao da qualidade de empresrio. Essa deve ser a exata
compreenso do empresrio no regime do Cdigo Civil de 2002, diferente da disciplina
pretrita do Cdigo Comercial de 1850,379 em que apenas o exerccio da mercancia
bastava para caracterizar o comerciante.
Como afirmado anteriormente, a doutrina permaneceu acomodada ideia de
comerciante consagrada no cdigo revogado, em que a publicidade do registro tinha
como finalidade principal diferenciar o comerciante regular daquele irregular. Para
efeito da publicidade, observava Ascarelli, a mais importante das consequncias da
explorao de uma empresa mercantil, e precisamente frente a terceiros, a
submisso quebra, diante da impossibilidade de submeter quebra quem no
empresrio mercantil.380 Esse aspecto, todavia, fica preservado e no alterado pelo
conceito de empresrio aqui adotado, porque o exerccio irregular da atividade
empresarial no afasta a sujeio falncia, como sano resultante da insolvncia.
Ao revs, a falta de registro impede a empresa de requerer recuperao judicial ou
extrajudicial,381 direito emergente da situao de regularidade formal. Com isso,
pretende-se, aqui, afirmar e reforar a importncia do registro da empresa, cujo efeito
extrapola o carter meramente declaratrio, como assim continua preferindo realar a
doutrina dominante.382
No que se refere diferena de efeitos perante terceiros, entre o registro do
empresrio individual e o registro da sociedade, existe, como assim anotam
Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi, uma disfuno ou desarmonia no
379 Na percepo de Paula Forgioni, destacando as profundas mudanas que ocorreram no direito
comercial, afirma ela que hoje, esse direito comercial no mais aquele do sculo XIX ou incio do
sculo XX, mas um sistema que incorpora correes de rota, que, por vezes, mostrou-se
excessivamente liberal (e, portanto, jurdica e socialmente inadequada), o que pode ser revelado na
clara modificao de paradigmas provocada pela substituio do comerciante do Cdigo Comercial de
1850 pelo empresrio no Cdigo Civil de 2002. (A interpretao dos negcios empresariais no novo
Cdigo Civil Brasileiro, cit., p. 8).
380 Tullio Ascarelli, Iniciao ao Estudo do Direito Mercantil, cit., p. 314.
381 Lei 11.101/2005 Art. 48. Poder requerer recuperao judicial o devedor que, no momento do
pedido, exera regularmente suas atividades h mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes
requisitos, cumulativamente: (...).
382 Fran Martins, na sua obra revisada por Carlos Henrique Abro, diverge da doutrina dominante,
entendendo que, em razo da revogao do art. 4 do Cdigo Comercial de 1850, o Cdigo Civil de
2002 adota nova orientao, a dar o carter de comercialidade s atividades dos comerciantes ou
empresrios por sua inscrio no Registro de Empresas. (Curso de Direito Comercial, revisto e
atualizado por Carlos Henrique Abro, Rio de Janeiro, Forense, 35 edio, 2012, p. 69/70).

Teoria crtica da empresa

196

Ivanildo Figueiredo

sistema.383 No caso da sociedade, o registro tem carter tanto constitutivo, fazendo


surgir a pessoa jurdica,384 como serve tambm para publicizar a existncia de um
novo sujeito de direito. Na constituio da sociedade annima o registro tem por
funo examinar se as prescries legais foram observadas na constituio da
companhia (Lei 6.404/1976, art. 97). Contudo, a companhia adquire personalidade
jurdica com o registro dos atos constitutivos, e s pode entrar em funcionamento aps
a publicao desses atos.385
No existe sociedade comercial ou empresria sem registro. Na falta de
registro, a sociedade de fato, irregular ou em comum (CC, art. 986). O ente social
existe no mundo real, porm despersonificado. O mesmo tratamento da aquisio de
personalidade jurdica pelo registro (CC, art. 44, VI) atribudo empresa individual
de responsabilidade limitada EIRELI (CC, art. 980-A), que tem um s titular, do
mesmo modo que a firma individual. Aqui revela-se, ainda mais profunda, a
desarmonia no sistema: para um tipo de empresa individual (CC, art. 966), o registro
meramente declaratrio; j para outro tipo de empresa unipessoal, a EIRELI (CC,
art. 980-A), o registro tem carter constitutivo.
Os efeitos declaratrio e constitutivo so distintos, claro, como assim ressaltado
por Ascarelli.386 Na sociedade, estamos diante da criao de uma pessoa jurdica, com
personalidade e patrimnio distinto dos scios, o que no ocorre em relao ao
empresrio individual, em que a confuso patrimonial marca caracterstica da
inexistncia de personalidade jurdica prpria.387

383

Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi, Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 92.
Cdigo Civil 2002 - Art. 45. Comea a existncia legal das pessoas jurdicas de direito privado com
a inscrio do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessrio, de autorizao ou
aprovao do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alteraes por que passar o ato
constitutivo.
385 Nelson Eizirik, A Lei das S/A comentada, vol. 1, So Paulo, Quartier Latin, 2011, p. 547.
386 Precisamente por isso o problema diverso para as sociedades e as cooperativas nas que a
realizao ou no da publicidade tem uma importncia particular. A publicidade tem s vezes (v. arts.
2.332 e 2.519) carter constitutivo, outras vezes (arts. 2.297, 2.300, 2.436) declarativo; esta se aplica
a todas as cooperativas assim como a todas as sociedades que adotem um dos tipos de sociedade
mercantil, mesmo que (como vimos, tambm possvel: art. 2.249) cooperativas ou sociedades tenham
por objeto uma atividade civil (v. arts. 2.136 e 2.200). Tullio Ascarelli, Iniciao ao Estudo do Direito
Mercantil, cit., p. 316).
387 Ao de Execuo. Pessoa natural executada. Possibilidade de os atos executrios recarem sobre
o patrimnio do empresrio individual. Mesma pessoa. Patrimnio comum. A pessoa natural, que
tambm empresrio individual, registra sua firma individual para fins de regularizao do exerccio
profissional da atividade econmica organizada. O registro do empresrio individual no lhe confere
384

Teoria crtica da empresa

197

Ivanildo Figueiredo

O registro da firma individual, diante da importncia atribuda formalizao da


empresa pelo art. 967 do Cdigo de 2002, com seu carter obrigatrio, cogente,
possui constitutividade declaratria, ou declaratividade constitutiva, parafraseando
Pontes de Miranda, a partir da sua clebre explicao quanto natureza da sentena
declaratria falimentar.388 Com efeito, a firma individual, ao ser criada pela vontade do
empresrio, instaura um estado jurdico que antes do registro no existia,
especialmente para determinar os elementos necessrios ao exerccio da empresa,
como o nome empresarial, a sede, o foro, o capital e o objeto da atividade econmica
(CC, art. 968).
Mas, tambm no sentido inverso, da desconstituio formal da empresa, o
registro, ou seu cancelamento, imprescindvel e legalmente exigvel. Na alienao
ou trespasse do estabelecimento empresarial, por exemplo, o empresrio individual
pode deixar de exercer atividade econmica a partir da cesso dos direitos sobre seu
fundo de comrcio, e essa situao ficar averbada na Junta Comercial.389
Quando o empresrio aliena o estabelecimento, ele transfere os direitos sobre
seus bens corpreos e incorpreos, o aviamento objetivo, no a empresa individual,
que ele permanece sendo titular. Todavia, a eficcia da transferncia do
estabelecimento perante terceiros depende da averbao no registro do comrcio.390
Essa averbao no possui contedo estritamente declaratrio, mas eficacial.

personalidade jurdica distinta da pessoa natural e autonomia patrimonial. Os atos constritivos da ao


executiva podem recair sobre o patrimnio comum. Agravo no provido. (Tribunal de Justia do Estado
de So Paulo - TJSP, 12 Cmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento n 007848393.2013.8.26.0000, Comarca de So Paulo, Relatora Desembargadora Sandra Galhardo Esteves, Dje
28/06/2013).
388 Segundo Pontes de Miranda, A constitutividade da sentena de declarao de abertura de falncia
preponderante. Aps ela, h estado jurdico que no existia (...). A sentena, que decreta a abertura
da falncia, abre fase nova na vida do falido. A sua constitutividade ressalta. (...) A sentena de
decretao da abertura da falncia constitutiva, com eficcia erga omnes, que lhe atribui a publicidade
exigida por lei. No se raciocine, e esse foi o erro maior, com a premissa de ser declaratria a sentena
de decretao de abertura da falncia. Tem ela eficcia declarativa, mas a fora, a eficcia
preponderante, constitutiva. (Tratado de Direito Privado, So Paulo, Revista dos Tribunais, 4
edio, 1983, Tomo XXVIII, p. 10;132;134).
389 Cdigo Civil 2002 - Art. 1.144. O contrato que tenha por objeto a alienao, o usufruto ou
arrendamento do estabelecimento, s produzir efeitos quanto a terceiros depois de averbado
margem da inscrio do empresrio, ou da sociedade empresria, no Registro Pblico de Empresas
Mercantis, e de publicado na imprensa oficial.
390 No caso do art. 1.144 a publicidade (Registro do Comrcio) e a publicao oficial (Imprensa Oficial)
tm como efeito precpuo dar validade e eficcia perante terceiros aos negcios jurdicos que elenca.
Ademais, a exigncia legal de registro e de publicao na Imprensa Oficial do contrato de transferncia

Teoria crtica da empresa

198

Ivanildo Figueiredo

Analogamente, por coerncia lgica, se os atos relativos ao estabelecimento


ou fundo de comrcio somente so considerados eficazes aps o registro na Junta
Comercial, do mesmo modo, para a caracterizao da fattispecie empresrio,
demonstra-se plenamente aceitvel a opinio de Calixto Salomo Filho de que no
h reconhecimento externo sem registro.391
O entendimento ainda dominante na doutrina de que o registro no tem
importncia para a caracterizao do empresrio, termina por confundir a prpria
jurisprudncia, quando esta manifesta-se, em decises flagrantemente contra legem,
ao atribuir, inclusive para atendimento ao requisito de regularidade formal da empresa
no pedido de recuperao judicial (Lei 11.101/2005, art. 48), maior importncia
constatao da manuteno e continuidade de seu exerccio, do que prova da
existncia de registro do empresrio, que deve ser confirmada, como exigido pela lei,
por certido de regularidade do devedor no Registro Pblico de Empresas (Lei
11.101/2005, art. 51, inciso V).392

do estabelecimento, ou dos direitos de uso ou de gozo a ele inerentes, tem como objetivo estabelecer
a presuno do conhecimento por terceiros e o incio da aquisio e da prescrio dos direitos, inclusive
no que respeita aos arts. 1.146, 1.148 e 1.149. Modesto Carvalhosa, Comentrios ao Cdigo Civil
Parte Especial Do Direito de Empresa, vol. 13, Antonio Junqueira de Azevedo, coord., So Paulo,
Saraiva, 2003, p. 639.
391 Calixto Salomo Filho, A fattispecie empresrio no novo Cdigo Civil, cit., p. 121.
392 Recuperao judicial. Requerimento por produtores rurais em atividade por prazo superior quele
de 2 (dois) anos exigido pelo artigo 48, caput, da Lei n 11.101/2005, integrantes de grupo econmico
na condio de empresrios individuais respaldados pelos artigos 966 e 971 do Cdigo Civil e/ou de
scios das sociedades coautoras. Legitimidade reconhecida. Irrelevncia da alegada proximidade entre
as datas de ajuizamento do feito e das prvias inscries dos produtores rurais como empresrios
individuais na Junta Comercial do Estado de So Paulo. Firme entendimento jurisprudencial no sentido
de que a regularidade da atividade empresarial pelo binio mnimo estabelecido no supramencionado
dispositivo legal deve ser aferida pela constatao da manuteno e continuidade de seu exerccio, e
no a partir da prova da existncia de registro do empresrio ou ente empresarial por aquele lapso
temporal. Manuteno do deferimento do processamento da demanda. Agravo de instrumento
desprovido. (Tribunal de Justia do Estado de So Paulo TJSP, 2 Cmara Reservada de Direito
Empresarial, Agravo de Instrumento n 2037064-59.2013.8.26.0000 - Cafelndia, Relator
Desembargador Jos Reynaldo, DJe 23/09/2014). Em sentido diametralmente oposto, o entendimento
do Superior Tribunal de Justia: Recuperao judicial. Comprovao da condio de empresrio por
mais de 2 anos. Necessidade de juntada de documento comprobatrio de registro comercial.
Documento substancial. Insuficincia da invocao de exerccio profissional. Insuficincia de registro
realizado 55 dias aps o ajuizamento. Possibilidade ou no de recuperao de empresrio rural no
enfrentada no julgamento. 1. O deferimento da recuperao judicial pressupe a comprovao
documental da qualidade de empresrio, mediante a juntada com a petio inicial, ou em prazo
concedido nos termos do CPC 284, de certido de inscrio na Junta Comercial, realizada antes do
ingresso do pedido em Juzo, comprovando o exerccio das atividades por mais de dois anos,
inadmissvel a inscrio posterior ao ajuizamento. No enfrentada, no julgamento, questo relativa s
condies de admissibilidade ou no de pedido de recuperao judicial rural. 2. Recurso Especial

199

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

O conceito de empresrio do Cdigo de 2002, no regime do direito de empresa,


no mais exige, apenas, a prtica habitual e profissional do ato de comrcio como
definidor da sua qualificao jurdica. Empresrio, em sentido estrito, a pessoa que
exerce atividade de produo ou circulao de bens ou de servios, com registro na
Junta Comercial.
Consequentemente, no se considera empresrio, na acepo jurdica do
termo, em sentido estrito, quem exerce atividade empresarial ou comercial sem
registro, em carter informal, ainda que, materialmente, pratique atividade econmica
organizada para a produo ou circulao de bens ou de servios. Na ausncia do
registro, a pessoa que desempenha atividade mercantil irregularmente pode ser
chamada de comerciante informal, negociante, mascate, feirante, intermedirio, scio
de sociedade de fato, mas no pode ser qualificado, juridicamente, como empresrio.
Na concepo aqui desenvolvida, ousando discordar da doutrina dominante,
partindo da incidncia simultnea e harmnica dos artigos 966 e 967 do Cdigo Civil,
define-se

como

empresrio

concomitantemente,

ambos

somente
os

requisitos

empresrio

regular,

caracterizadores

que

dessa

satisfaz,
condio

profissional: o material (exerccio de atividade econmica), e o formal (regularidade


jurdica pelo registro).
O pargrafo nico do art. 966 Cdigo Civil de 2002 retira da condio de
empresrio as pessoas e atividades nele referidas: No se considera empresrio
quem exerce profisso intelectual, de natureza cientfica, literria ou artstica, ainda
com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exerccio da profisso
constituir elemento de empresa.393 A norma exclui do conceito de empresrio, como
regra geral, quem no desempenha atividade econmica de produo ou de
circulao de bens ou de servios. Em resumo: no empresrio quem no exerce
atividade econmica tpica. Assim, as profisses intelectuais de natureza cientfica,
improvido quanto ao pleito de recuperao. (STJ, 3 Turma, REsp 1.193.115-MT, Relator para o
Acrdo Ministro Sidnei Benetti, DJe 07/10/2013).
393 Esse dispositivo alcana, grosso modo, o chamado profissional liberal (advogado, dentista, mdico,
engenheiro, etc.), que apenas se submete ao regime geral da atividade econmica se inserir a sua
atividade especfica numa organizao empresarial (na linguagem normativa, se for elemento de
empresa). Caso contrrio, mesmo que empregue terceiros, permanecer sujeito somente ao regime
prprio de sua categoria profissional. Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p.
38.

Teoria crtica da empresa

200

Ivanildo Figueiredo

como as desempenhadas por mdicos, psiclogos, advogados, engenheiros,


arquitetos, contabilistas e outros profissionais liberais, no caracterizam-se, em
princpio, como empresariais.
Tambm no so qualificados como empresrios aqueles que exercem
atividades literrias e artsticas, como os escritores, pintores, atores, compositores,
cantores, msicos, inclusive os esportistas. Cabe observar que as atividades de
diverses e espetculos pblicos, como de teatro, circo, shows e eventos musicais,
sempre foram elencadas como atos de comrcio, e assim constavam no Regulamento
737/1850 (art. 19, 3). Todavia, o carter empresarial inerente ao produtor do
evento, do comerciante ou empresrio musical, artstico ou circense. Por exemplo, o
dono do circo qualifica-se como empresrio, mas no a trupe de palhaos ou o
domador de lees.
Essa norma do pargrafo nico do art. 966 do Cdigo de 2002 encontra
paralelo no artigo 2.238 do Cdigo italiano de 1942, o qual faz meno atividade que
constitui elemento de empresa.394 Na anlise desse dispositivo, com relao ao
conceito de empresrio do artigo 2.086 do mesmo cdigo, Giuseppe Ferri e Luisa
Riva-Sanseverino observam que a diferena reside no modo de organizao da
atividade econmica, conceito fluido e de difcil interpretao, fronteirio entre a noo
de empresa e o de trabalho autnomo.395
Em que consiste, afinal, uma atividade econmica organizada sob a forma de
empresa? A referncia do pargrafo nico do art. 966 do Cdigo Civil de 2002 e do
seu correspectivo dispositivo no art. 2.238 do Cdigo italiano, versa sobre a
organizao do trabalho de terceiros, auxiliares e colaboradores dependentes.
Contudo, a norma prescreve que no basta a existncia da relao de trabalho de

394

Art. 2238 Rinvio - Se l'esercizio della professione costituisce elemento di un'attivit organizzata in
forma d'impresa, si applicano anche le disposizioni del Titolo II (2082 e seguenti). In ogni caso, se
l'esercente una professione intellettuale impiega sostituti o ausiliari, si applicano le disposizioni delle
Sezioni II, III e IV del Capo I del Titolo II (2094 e seguenti).
395 A empresa tem por conta uma atividade profissional de carter organizativo, diretamente dirigido a
um escopo econmico e implicando sucessivas relaes com intermedirios e consumidores; no
trabalho autnomo, se tem, ao invs, uma atividade sobretudo executiva, desenvolvida pessoalmente
pelo prestador da obra e cujo resultado estado previamente objeto de um contrato estipulado com o
comitente. (Giuseppe Ferri e Luisa Riva-Sanseverino, Comentario del Codice Civile Del Lavoro,
Art. 2188-2246, a cura di Antonio Scialoja e Giuseppe Branca, Bologna, Zanichelli Editore, 1972, p.
247).

Teoria crtica da empresa

201

Ivanildo Figueiredo

auxiliares e colaboradores, mas que esse modo de organizao constitua elemento


de empresa.
A dificuldade para extrair o exato alcance desse dispositivo reside, na opinio
de Waldirio Bulgarelli, precisamente, no problema de que o Cdigo Civil no define o
que seja empresa.396 Se no existe definio de empresa, o conceito de elemento de
empresa menos ainda. Da que deve ser ele elaborado e integrado pelas demais
fontes hermenuticas, na doutrina e jurisprudncia.397
A interpretao adotada pela doutrina para a compreenso do sentido e
alcance dessa norma do pargrafo nico do art. 966 do Cdigo de 2002 segue,
invariavelmente, a explicao apresentada pelo relator do projeto, Sylvio
Marcondes,398 ao explicar as diferenas entre trabalho intelectual e organizao dos
fatores de produo,399 valendo-se do exemplo de um hospital. Enquanto o mdico,
profissional liberal, isoladamente identificado, exercer a medicina, no ser ele
considerado empresrio. Contudo, se o mdico dispor de capital para adquirir um
imvel, construir o prdio que ser utilizado como centro mdico ou hospital, e contrata
outros mdicos e profissionais de sade, ele est organizando os fatores de produo,
podendo, a partir dessa caracterizao, ser enquadrado ou qualificado juridicamente
como empresrio.400

396

Waldirio Bulgarelli, A Teoria Jurdica da Empresa, cit., p. 408.


As concluses das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justia Federal assim enfrentaram os
problemas conceituais derivados do pargrafo nico do art. 966 do Cdigo Civil: Enunciado 193 Art.
966: O exerccio das atividades de natureza exclusivamente intelectual est excludo do conceito de
empresa. Enunciado 194 Art. 966: Os profissionais liberais no so considerados empresrios, salvo
se a organizao dos fatores de produo for mais importante que a atividade pessoal desenvolvida.
Enunciado 195 Art. 966: A expresso elemento de empresa demanda interpretao econmica,
devendo ser analisada sob a gide da absoro da atividade intelectual, de natureza cientfica, literria
ou artstica, como um dos fatores da organizao empresarial.
398 Alfredo de Assis Gonalves Neto, Direito de empresa, cit., p. 78.
399 H, porm, pessoas que exercem profissionalmente uma atividade criadora de bens ou de servios,
mas no devem e no podem ser consideradas empresrios referimo-nos s pessoas que exercem
profisso intelectual pela simples razo de que o profissional intelectual pode produzir bens, como o
fazem os artistas; podem produzir servios, como o fazem os chamados profissionais liberais; mas
nessa atividade profissional, exercida por essas pessoas, falta aquele elemento de organizao dos
fatores da produo; porque na prestao desse servio ou na criao desse bem, os fatores de
produo, ou a coordenao de fatores, meramente acidental: o esforo criador se implanta na prpria
mente do autor, que cria o bem ou o servio. Portanto, no podem embora sejam profissionais e
produzam bem ou servios ser considerados empresrios. (Sylvio Marcondes Machado, Questes
de Direito Mercantil, cit., p. 11).
400 A no ser que, organizando-se em empresa, assumam a veste de empresrios. Parece um exemplo
bem claro a posio do mdico, o qual, quando opera, ou faz diagnstico, ou d a teraputica, est
397

Teoria crtica da empresa

202

Ivanildo Figueiredo

Sem embargo, tal exemplo, apesar de bastante objetivo, demonstra-se


radical, no sentido de que a sade no poderia ser considerada servio mercantil, em
sentido estrito. No regime da Constituio Federal de 1988, sendo servio essencial
de relevncia pblica,401 a empresa hospitalar deve merecer tratamento ou regime
jurdico diferenciado, para impedir que o direito sade e vida seja tratado como
mercadoria ou objeto de relao de mercancia. Esse exemplo serve, exatamente, para
demonstrar que, mesmo uma atividade de servio pblico, como a sade, pode adotar
a forma de empresa, e que elemento de empresa compreende o modo como a
atividade organizada visando a obteno de resultados econmicos, seguindo
mesma lgica e semelhante estratgia aplicvel aos negcios comerciais ou
mercantis.402
Assim, qualquer atividade profissional liberal, autnoma, cientfica ou artstica,
de prestao de servios, poder ser exercida sob a forma de empresa, desde que a
pessoa organize os recursos necessrios explorao econmica. A jurisprudncia
vem considerando, ao diferenciar o profissional autnomo daquele que se organiza
como empresa, para fins de recolhimento do Imposto sobre Servios (ISS) na
condio de pessoa fsica, que somente quando os servios so realizados sem
estrutura ou intuito empresarial, ou seja, ausente o elemento de empresa, resta
configurado o trabalho autnomo.403

prestando um servio resultante da sua atividade intelectual, e por isso no empresrio. Entretanto,
se ele organiza fatores de produo, isto , une capital, trabalho de outros mdicos, enfermeiros,
ajudantes, etc., e se utiliza de imvel e equipamentos para a instalao de um hospital, ento o hospital
empresa e o dono ou titular desse hospital, seja pessoa fsica, seja pessoa jurdica, ser considerado
empresrio, porque est, realmente, organizando os fatores de produo, para produzir servios.
(Sylvio Marcondes Machado, Questes de Direito Mercantil, cit., p. 11).
401 Constituio Federal Art. 197. So de relevncia pblica as aes e servios de sade, cabendo
ao Poder Pblico dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentao, fiscalizao e controle, devendo
sua execuo ser feita diretamente ou atravs de terceiros e, tambm, por pessoa fsica ou jurdica de
direito privado.
402 Segundo Giuseppe Ferri e Luisa Riva-Sanseverino, a nfase vem recair no sobre o trabalho do
profissional liberal, mas sim sobre a organizao de uma verdadeira e prpria empresa, e como tal
organizao no deve ser considerada meramente instrumental diante da atividade pessoal do
profissional. Neste sentido se verifica a hiptese do professor que dirige uma escola privada, do
farmacutico que se encontra ao mesmo tempo como cabea de uma empresa comercial, do mdico
que desenvolve a sua prpria atividade em uma casa de sade por ele gerida. (Comentario del Codice
Civile Del Lavoro, cit., p. 248).
403 Processual civil e tributrio. Imposto sobre servios de qualquer natureza - ISS. Base de clculo.
Tratamento diferenciado conferido aos profissionais liberais e s sociedades uniprofissionais. Artigo 9,
1 e 3, do Decreto-Lei 406/68. Norma no revogada pela Lei Complementar 116/2003. Precedentes.
Empresrio individual ou sociedade empresria. Inaplicabilidade. Precedentes da primeira seo.
Exerccio de profisso intelectual como elemento de empresa. Configurao. 1. A Primeira Seo

Teoria crtica da empresa

203

Ivanildo Figueiredo

O conceito de empresrio, em sntese final, conceito mais complexo e


evoludo do que o do antigo comerciante, porque a organizao passou a ser o
elemento chave, e no mais a mercancia objetivada nos atos de comrcio. A
qualificao legal do empresrio determina-se, assim, pela conjugao da atividade
econmica organizada, com a vinculao ao registro de empresas, das categorias
material e formal, que se completam e afastam as dvidas empricas que, ainda hoje,
afetam a segurana jurdica na identificao do empresrio.

4.4. A sociedade empresria como modo de exerccio da empresa coletiva

A empresa, na perspectiva formal, pode ser exercida de modo individual ou


coletivo, esta ltima como sociedade empresria. Segundo Rubens Requio, a
principal distino, e mais didtica, entre empresa e sociedade empresria a que v
na sociedade o sujeito de direito, e na empresa, mesmo como exerccio da atividade,
o objeto de direito.404 Empresa e sociedade empresria so conceitos distintos, que
devem ser compreendidos e aplicados diferentemente na teoria e diante de cada caso
concreto.
O carter individual da empresa no resulta da quantidade ou do nmero de
colaboradores dependentes envolvidos na organizao econmica, mas sim do fato
de que apenas um indivduo, o empresrio, responde pela alocao do capital
necessrio e assume, isoladamente, todos os direitos, obrigaes e riscos resultantes
da explorao. A empresa individual, tambm denominada firma individual e que pode

consolidou o entendimento de que "as sociedades uniprofissionais somente tm direito ao clculo


diferenciado do ISS, previsto no artigo 9, pargrafo 3, do Decreto-Lei n 406/68, quando os servios
so prestados em carter personalssimo e, assim, prestados no prprio nome dos profissionais
habilitados ou scios, sob sua total e exclusiva responsabilidade pessoal e sem estrutura ou intuito
empresarial" (EREsp 866.286/ES, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJe 20/10/2010). 2. Segundo
o artigo 966 do Cdigo Civil, considera-se empresrio aquele que exerce atividade econmica (com
finalidade lucrativa) e organizada (com o concurso de mo-de-obra, matria-prima, capital e tecnologia)
para a produo ou circulao de bens ou de servios, no configurando atividade empresarial o
exerccio de profisso intelectual de natureza cientfica, literria ou artstica, ainda que com o concurso
de auxiliares ou colaboradores, que no constitua elemento de empresa. (STJ, 1 Turma, REsp
1.028.086/RO, Relator Ministro Teori Zavascki, DJe 25/10/2011).
404 Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 60.

204

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

adotar o modelo de responsabilidade limitada (EIRELI, CC, art. 980-A), o tipo mais
apropriado para a constituio de pequenas organizaes, especialmente quando o
empresrio no pretenda dividir com outras pessoas o lucro ou resultado da atividade
econmica.
A sociedade empresria, anteriormente denominada sociedade comercial ou
mercantil, representa a forma de exerccio coletivo da atividade empresarial, quando
duas ou mais pessoas renem capital, visando determinada explorao econmica.405
A sociedade uma espcie de contrato colaborativo entre scios, dotada do requisito
da pluripessoalidade, e que pode adotar tipos diferenciados, de acordo com a vontade
e o interesse das pessoas que a constituem. No direito positivo brasileiro, qualquer
tipo societrio pode ser criado a partir da reunio de duas ou mais pessoas, fsicas ou
jurdicas, no importando seja ela sociedade limitada, annima ou qualquer outro tipo
societrio. Basta satisfazer o requisito da pluripessoalidade, sendo integrada por dois
ou mais scios (CC, art. 1.033, IV).
A sociedade empresria no possui vontade prpria, vez que se manifesta
organicamente, pelos seus rgos de representao, atravs de pessoas naturais,
dirigentes ou prepostos das pessoas jurdicas que dela fazem parte. No detendo
vontade prpria, mas derivada, inconcebvel admitir que uma entidade ideal possa
ser capaz de organizar, sem a participao dos membros que a integram, os
elementos necessrios ao exerccio da empresa. Neste ponto, revela-se insupervel
contradio

terminolgica,

pela

impossibilidade

de

tornar

racionalmente

compreensvel a norma que atribui a um ente representado a sociedade empresria


- a hipottica capacidade de ter a iniciativa da empresa e de responder pela
organizao dos elementos materiais e imateriais do estabelecimento empresarial
(CC, art. 1.142).

405

Conforme o conceito legal constante do art. 981 do Cdigo Civil de 2002, Celebram contrato de
sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou servios, para o
exerccio de atividade econmica e a partilha, entre si, dos resultados. Esse conceito difere do conceito
doutrinrio, tal como formulado por Fran Martins, apenas no que se refere questo do lucro,
considerando que, na concepo doutrinria, a sociedade comercial a entidade resultante de um
acordo de duas ou mais pessoas, que se comprometem a reunir capital e trabalho para a realizao de
operaes com fim lucrativo. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 207).

Teoria crtica da empresa

205

Ivanildo Figueiredo

Diz a doutrina de Fbio Ulhoa Coelho que a sociedade empresria, e no as


pessoas que a integram: a prpria pessoa jurdica a empresria e no os seus
scios.406 Como anteriormente esclarecido, a locuo empresria, aqui, enquadrase como adjetivo, relacionado com a empresarialidade, no como sujeito. O sujeito
o empresrio em sentido estrito, titular da firma individual ou da EIRELI, ou a prpria
sociedade, que foi denominada empresria por fora de um neologismo artificial, que
no possui qualquer referibilidade com a prtica e com o costume mercantil,407 os
quais sempre moldaram os conceitos do direito comercial.408
Alm de no ter capacidade prpria e direta de representao, a sociedade
empresria no pensa por si, no idealiza, no elabora, no cria, nada gera em termos
do desenvolvimento intelectual de projetos para a explorao da atividade econmica.
Quem pensa, idealiza, elabora, cria e gera a pessoa natural do scio ou acionista
controlador, titular do aviamento subjetivo, que o Cdigo de 2002 no considera como
empresrio, mas apenas como administrador de sociedade, por mero capricho
terminolgico.
De acordo com as estatsticas do Departamento Nacional do Registro do
Comrcio DNRC, entre os anos de 1985 e 2005 foram criadas, no Brasil, cerca de
nove milhes de empresas. O modelo da firma individual est presente em
aproximadamente 4,5 milhes dessas empresas, o que corresponde a, exatamente,
metade das pessoas econmicas constitudas nesse perodo. As sociedades
comerciais ou empresrias, e as sociedades cooperativas, representam, assim, a

406

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 79.


Criticava Rubens Requio, de modo contundente, que, s sociedades milenarmente conhecidas
por sociedades comerciais se passa a inexpressivamente apelidar de sociedades empresrias.
(Projeto de Cdigo Civil, Revista de Direito Mercantil Industrial, Econmico e Financeiro, So Paulo,
RT, v. 17, 1975, p. 135.
408 Coerente com o entendimento de que a denominao sociedade empresria no passa de
neologismo artificial e contraditrio, apesar de assim estar definida no Cdigo de 2002, tambm iremos
empregar, em outras passagens deste trabalho, os conceitos de sociedade comercial ou sociedade
mercantil para designar o modo de explorao coletivo da empresa, tal como adotado por outras
normas de direito positivo (Lei 6.404/1976; Lei 8.934/1994; Lei 12.529/2011), como tambm assim
continua sendo utilizado pela jurisprudncia: Empresarial e Processual Civil. Agravo no recurso
especial. Ao de reconhecimento e dissoluo de sociedade comercial. Estabelecimento empresarial.
Composio do patrimnio - O estabelecimento empresarial (fundo de comrcio) deve ser considerado
para fins de apurao dos direitos do scio retirante. Agravo no recurso especial no provido. (STJ, 3
Turma, AgRg no REsp 1.147.733/BA, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 21/09/2012).
407

206

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

outra metade desses entes, o que revela peculiar equilbrio entre as formas
empresariais adotadas no Brasil.409
A partir desses nmeros, constata-se que metade das empresas brasileiras so
organizadas como sociedades comerciais ou empresrias, dedicadas ao exerccio
coletivo de atividade mercantil, assim caracterizadas a partir do seu registro na Junta
Comercial.

organizao

empresarial

sob

forma

societria

assume,

consequentemente, posio de destacada relevncia na nossa realidade econmica


e na prtica do comrcio. Este fato, por si s, sempre justificou, historicamente, a
necessidade de disciplina normativa prpria e especfica para a regulao das
sociedades mercantis.
A

sociedade

comercial,

agora

denominada

empresria,

constitui-se,

geralmente, atravs de contrato, razo pela qual a sua disciplina jurdica foi inserida
no Cdigo Civil de 2002, como modalidade derivada do direito obrigacional unificado.
A forma contratual do ato constitutivo, apesar de referida genericamente no art. 981
do Cdigo, prpria das sociedades de pessoas, em que o vnculo personalssimo
decorrente da affectio societatis o preponderante na relao entre os scios. Esse
contrato definido na doutrina de Ascarelli como um contrato plurilateral, em que
todas as partes esto vinculadas a um escopo ou objetivo comum, sem a presena
de interesses contrastantes.410 Assim ocorre, em princpio, nas sociedades limitadas
e nos tipos societrios antigos e em desuso, como a sociedade em nome coletivo e a
sociedade em comandita simples.

409

BRASIL, Departamento Nacional do Registro do Comrcio (DNRC) Constituio de empresas por


tipo jurdico Brasil 1985-2005, in http://www.dnrc.gov.br, 23/10/2012; Essa a ltima estatstica de
criao de tipos de empresas disponvel no Brasil, inclusive porque o DNRC foi extinto pelo Decreto
8.001/2013 e substitudo pelo Departamento de Registro Empresarial e Integrao DREI, vinculado
Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidncia da Repblica. Esse novo rgo no vem
divulgando nenhuma srie estatstica especfica por tipo de empresa a partir dos registros existentes
nas Juntas Comerciais dos Estados da Federao.
410 A pluralidade corresponde a circunstncia de que os interesses contrastantes das vrias partes
devem ser unificados por meio de uma finalidade comum; os contratos plurilaterais aparecem como
contratos com comunho de fim. Cada uma das partes obriga-se, de fato, para com todas as outras, e
para com todas as outras adquire direitos; natural, portanto, coorden-los, todos, em torno de um fim,
de um escopo comum. (Tullio Ascarelli, Problemas das sociedades annimas e Direito
Comparado, So Paulo, Saraiva, 1945, p. 290).

Teoria crtica da empresa

207

Ivanildo Figueiredo

Para Waldirio Bulgarelli, constituem elementos especficos do contrato de


sociedade, moldados desde o regime do Cdigo Comercial de 1850:411
a) a contribuio de cada um dos scios para a formao do capital social;
b) a participao de cada scio nos resultados positivos ou negativos, nos lucros ou
prejuzos;
c) a presena da affectio societatis, ou seja, a inteno dos scios para a realizao
do fim comum.

Alm de representar a forma de exerccio de atividade econmica atravs da


reunio de capitais por duas ou mais pessoas, a sociedade comercial expandiu-se ao
longo da histria, principalmente porque assegurava aos seus scios a limitao da
responsabilidade no exerccio de atividade especulativa e de risco. Com efeito, o
desenvolvimento do comrcio experimentou contnua e acelerada evoluo a partir do
surgimento das sociedades por aes, no sculo XVI, sendo que esse tipo societrio,
alm de ter como funo mobilizar capitais e investimentos de grande nmero de
pessoas, assegurava aos seus acionistas a limitao da responsabilidade, de modo
que os bens particulares dos scios permanecem incomunicveis, e assim no
poderiam ser alcanados em virtude da insolvncia da empresa, caracterizada pela
insuficincia do seu patrimnio para a cobertura do passivo perante seus credores. O
mximo que o acionista iria perder no caso de prejuzos excessivos ou de quebra da
companhia seria o seu investimento representado pelas aes adquiridas.
A alavancagem proporcionada s sociedades annimas pela possibilidade de
oferta e venda das suas aes no mercado, para aquisio pelo pblico, tornou esse
tipo societrio o mais evoludo e o mais aperfeioado instituto do direito comercial. A
sociedade annima a espcie de sociedade mercantil mais apropriada para a
estruturao das grandes corporaes, que renem no apenas um alto volume de
capital, mas que empregam milhares de pessoas e cuja propriedade acionria est
pulverizada no mercado. Por isso, so consideradas instituies de interesse pblico
ou entidades privadas publicizadas, na medida em que exercem uma funo social,

411

Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 24.

Teoria crtica da empresa

208

Ivanildo Figueiredo

tal como assim reconhecido na prpria Lei das Sociedades por Aes (Lei
6.404/1976).412
Mas, seja por meio da sociedade annima, seja atravs da sociedade limitada,
o exerccio da empresa desempenhado coletivamente, pelos acionistas e scios que
a integram e controlam. De acordo com a concepo do Cdigo Civil de 2002, a
empresariedade seria exercida e titularizada pela prpria sociedade, que assim
passou a ser denominada como sociedade empresria, e no pelos seus scios ou
acionistas. Essa idia tanto contraditria entre os elementos do conceito, porque o
qualificativo correto deveria ser sociedade empresarial, assim como quando atribui
prpria sociedade existncia independente de seus membros, como se a sociedade
empresria existisse por si mesma, com iniciativa e vontade prprias.
O Cdigo de 2002 no apresenta uma definio para sociedade empresria.
Todavia, o seu art. 982 remete o intrprete para a atividade dessa sociedade como
prpria daquela desempenhada pelo empresrio, ou seja, de produo ou circulao
de bens ou de servios.413 A sociedade empresria, na concepo do juristalegislador, confunde-se com a prpria empresa.414

412

A Lei 6.404/1976, ao definir as responsabilidades do acionista controlador e dos administradores da


sociedade annima, prescreve, no pargrafo nico do art. 116: O acionista controlador deve usar o
seu poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua funo social, e tem
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para
com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender; o art.
154 no mesmo sentido dispe: O administrador deve exercer as atribuies que a lei e o estatuto lhe
conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigncias do bem pblico e
da funo social da empresa.
413 Na interpretao de Maria Cristina Zucchi, o parmetro de distino entre a sociedade empresria
e a sociedade simples no o propsito lucrativo, mas sim a explorao do objeto social de forma
profissional, estruturada em uma organizao, visando produo ou circulao de bens ou
servios, e o enquadramento no regime de sociedade empresria ou no de sociedade simples (...)
depender apenas de tratar-se do exerccio de atividade empresria ou no. (Direito de Empresa,
So Paulo, Harbra, 2004, p. 51-52).
414 No define a nova Lei Civil o que seja sociedade empresria, mas seu conceito resulta da
definio dada figura do empresrio (art. 966). (...) H, a bem ver, dois significados da palavra
empresa: um corresponde atividade econmica como tal, tanto assim que, inicialmente, o Livro II se
denominava Atividades Negociais e no Direito de Empresa; a segunda acepo do termo concerne
pessoa jurdica que organiza essa atividade. Miguel Reale, A sociedade simples e a sociedade
empresria no Cdigo Civil, in Histria do Cdigo Civil, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p.
251.

Teoria crtica da empresa

209

Ivanildo Figueiredo

A doutrina recente passou a classificar a sociedade empresria em dois tipos:


sociedade empresria por natureza e sociedade empresria por equiparao.415 A
sociedade empresria por natureza seria aquela que tem por objeto o desempenho
de atividade tipicamente mercantil, que seria prpria da sociedade comercial. Nesse
tipo, ficariam enquadradas todas as socidades que exercem atividades de
comercializao de produtos e mercadorias para revenda, empresas industriais, de
locao comercial de bens mveis, de representao comercial, de servios
financeiros, de seguro e transporte. A sociedade empresria por equiparao, por sua
vez, assim considerada no em razo do objeto, e sim em virtude da forma legal,
por adotar um modelo societrio sujeito a registro na Junta Comercial, como as
sociedades com objeto nas reas de educao e sade, de servios no mercantis e
do setor agropecurio, por exemplo.
Essa distino das sociedades empresrias em razo do objeto polmica na
doutrina, considerando que o regime do direito de empresa procurou neutralizar a
comercialidade da empresa e somente admite o seu enquadramento em virtude da
forma empresarial. Na opinio de Jorge Lobo, por exemplo, a sociedade empresria
somente pode ser definida em razo da sua forma, no sendo admitida qualquer
concesso quanto discusso do seu objeto.416 Essa posio demonstra a plena
adeso desse autor concepo estril e neutral do regime do direito de empresa,
segundo o qual a sociedade empresria desempenha atividade econmica de
qualquer natureza e assim se qualifica juridicamente, desde que vinculada ao registro
pblico de empresas, independente da mercantilidade do objeto ou da finalidade
lucrativa.
Divergindo dessa posio asctica, de neutralidade da empresa em relao ao
seu objeto, Srgio Campinho considera que tanto em funo da sua forma, como em
razo do seu objeto, a sociedade empresria pode ser assim caracterizada e se
diferenciar da sociedade simples, que no empresria.417 Esse entendimento
415 Ricardo Negro, Manual de Direito Comercial e de Empresa, So Paulo, Saraiva, vol. 1, 3 edio,
2003, p. 238.
416 Jorge Lobo, Sociedades Limitadas, Rio de Janeiro, Forense, vol. 1, 2004, p. 20.
417 De acordo com Srgio Campinho, na caracterizao dos tipos societrios, a distino em funo
do objeto reside no tipo, na modalidade da atividade econmica desenvolvida pela pessoa jurdica, vez
que, como temos sustentado desde a primeira edio desta obra, a explorao da atividade econmica
e a partilha de lucros so a essncia do conceito de sociedade trazido pela nova ordem, devendo ter-

Teoria crtica da empresa

210

Ivanildo Figueiredo

reconhece a permanncia dos dois sistemas de regulao da empresa, o regime


neutro do direito de empresa, constante do Cdigo Civil, e o sistema da
comercialidade da legislao no codificada, que se observa especialmente nas
empresas constitudas para desempenhar atividades de natureza eminentemente
mercantil, assim definidas por lei, como, por exemplo, o da representao comercial
autnoma (Lei 4.886/1965) e o da concesso mercantil de veculos automotores (Lei
6.729/1979).
O problema terminolgico introduzido pelo Cdigo Civil de 2002 resulta,
principalmente, do fato do legislador haver transposto, de modo artificial e equivocado,
o regime da sociedade comercial do direito italiano sem respeitar a natureza
diferenciada do objeto da empresa. Com efeito, no Cdigo italiano de 1942, inexiste a
figura da sociedade empresria, como instituio unificadora do exerccio coletivo de
atividade econmica. No existe, no Cdigo italiano, do qual o Cdigo de 2002 foi
decalcado, nem essa figura esdrxula da sociedade empresria nem qualquer
conceito semelhante. Mas, no sentido oposto, o Cdigo italiano estabelece um tipo
especfico para a sociedade que exerce atividade comercial.418
Segundo Auletta, os critrios em que se funda a distino entre os tipos
societrios so trs:419
a) a situao da responsabilidade dos scios pelas dvidas sociais;
b) a natureza da atividade social; e
c) a diviso do capital em quotas ou aes.

O sistema italiano, portanto, alm de desconhecer essa figura extica


denominada sociedade empresria, reconhece a diferenciao da sociedade em
razo do seu objeto, e tanto assim que, explica Auletta, se uma sociedade tem por
objeto atividade comercial, no pode adotar a forma de sociedade simples, mas deve
ser organizada como uma sociedade de responsabilidade limitada ou sociedade
se em conta que a atividade econmica um gnero que comporta vrias espcies, diversas
ramificaes, as quais, estas sim, so a fonte de diferenciao do objeto das sociedades empresria e
simples (O direito de empresa luz do novo Cdigo Civil, cit., p. 36-37).
418 Codice Civile dItlia Art. 2249 Tipi di societ - Le societ che hanno per oggetto l'esercizio di
un'attivit commerciale (2195) devono costituirsi secondo uno dei tipi regolati nei Capi III e seguenti di
questo Titolo.
419 Giuseppe Auletta e Niccol Salanitro, Diritto Commerciale, cit., p. 99.

Teoria crtica da empresa

211

Ivanildo Figueiredo

annima.420 Nessa passagem, Auletta, simplesmente, tece comentrios ao disposto


no art. 2.249 do Cdigo Civil italiano de 1942, que, ao se referir aos tipos societrios,
prev que a sociedade que tiver por objeto o exerccio de uma atividade comercial,
deve se constituir segundo um dos tipos societrios apropriados natureza mercantil.
A sociedade empresria, pois, mais um exemplo da desconexo entre a
realidade das relaes econmicas e a linguagem esteriotipada do Cdigo de 2002,
que revela a pretenso do legislador de impor um modelo sem qualquer antecedente
legislativo, doutrinrio ou jurisprudencial que o justifique na experincia comercial
brasileira. Essas inovaes sem sentido foram radicalmente criticadas pela doutrina,
como encontramos nas palavras de Requio, para quem o Cdigo inventou uma
linguagem arbitrria aos nossos costumes, nossa tradio para ajustar a uma
codificao irreal e artificiosa,421 situao que vem a provocar no apenas
dificuldades de compreenso cientfica do que seja sociedade empresria, mas
tambm confuses terminolgicas na doutrina, vez que alguns doutrinadores, mesmo
no regime vigente do Cdigo de 2002, chegam a se referir a essas sociedades como
empresariais, e no como empresrias, sua denominao tcnica ou legal.422
A mesma impreciso terminolgica igualmente vem atormentando, at hoje, a
jurisprudncia, quando refere-se a sociedades empresariais, divergindo do conceito
legal, positivista, sem deixar de ser anacrnico, de sociedade empresria.423

420

Giuseppe Auletta e Niccol Salanitro, Diritto Commerciale, cit., p. 99.


Rubens Requio, Projeto de Cdigo Civil, Revista de Direito Mercantil Industrial, Econmico e
Financeiro, v. 17, cit., p. 135.
422 Amrico Luis Martins da Silva, Sociedades Empresariais, Rio de Janeiro, Forense, vol. 1, 2006.
423 Apelao cvel. Ao cominatria. Pretenso de regularizao de imveis que lhe foram transferidos
em acordo homologado judicialmente em razo de disoluo de sociedade empresarial. Sentena que
julgou procedente o pedido para condenar o ru a indenizar a autora no valor equivalente aos imveis.
(TJSP, 8 Cmara de Direito Privado, Apelao Cvel 0044935-65.2009.8.26.0405/50000 Osasco,
Relator Desembargador Silvrio da Silva, julgado em 12/11/2014). Impugnao execuo.
Legitimidade Ad causam Rejeio. Sociedade empresarial integrante do mesmo grupo econmico
da executada. Indcios de confuso patrimonial e desvio de funo. Legitimidade passiva da agravante
para responder a execuo Possibilidade. Ausncia de fundamentao. Deciso concisa.
Possibilidade. Recurso desprovido. Deciso mantida. (TJSP, 21 Cmara de Direito Privado, Agravo
2131977-96.2014.8.26.0000 So Paulo, Relator Desembargador Ademir Benedito, julgado em
12/11/2014).
421

Teoria crtica da empresa

212

Ivanildo Figueiredo

Na opinio, definitiva, de Fbio Konder Comparato, a atribuio do carter de


empresrio prpria sociedade, pessoa jurdica, no passa de evidente abuso de
retrica.424
Assim, prefervel e mais coerente com a nossa realidade, que continuemos a
utilizar a expresso sociedade comercial ou sociedade mercantil para designar a
forma da empresa coletiva, definio mais especfica e que compreende no apenas
a organizao societria em si, mas tambm a natureza particular da atividade
econmica, como atividade comercial, com natural escopo lucrativo, como assim
encontra-se bem definido pela experincia advinda da aplicao da Lei das
Sociedades Annimas (Lei 6.404/1976, art. 2), empresa mercantil por excelncia.

4.5. Tipologia da empresa

Toda empresa organizada, existe e representa-se atravs de diversos tipos e


modalidades, seja sob o aspecto formal, seja no que tange ao seu objeto ou porte
econmico. Essa tipologia da empresa implica na anlise do fenmeno empresarial a
partir de uma viso da realidade, da verificao emprica dos fatos econmicos,
mercadolgicos e patrimoniais, em efetiva concreo.
As empresas, tipos particulares e individualizados, so todas elas diferentes,
no apenas em razo de sua espcie jurdica, mas de diversos outros critrios, como
reflexo da prpria diversidade presente na sociedade humana e nas pessoas. Como
produto nato, objetivo e imediato da criao humana, cada empresa reflete, na

424

O Cdigo Civil Italiano, embora fundando toda a organizao jurdica da empresa sobre a figura do
imprenditore, ainda manteve absolutamente intocado esse esquema, em completo divrcio com a
realidade econmica. Reconheceu como empresrio o que exerce, profissionalmente, uma atividade
econmica organizada, com o fito de produzir ou trocar bens ou servios (art. 2.082). Atribuiu-lhe a
posio de chefe da empresa, comandando hierarquicamente seus colaboradores (art. 2.086). Tais
atributos, escusa lembr-lo, s podem existir no homem, no na pessoa jurdica. Tratando-se de
sociedades no personalizadas, ainda possvel dizer que todos os scios so empresrios. Mas, no
caso das companhias, mesmo os no-kelsenianos percebem que a ideia de um sociedade empresria
constitui evidente abuso de retrica. (A reforma da empresa, cit., p. 68).

Teoria crtica da empresa

213

Ivanildo Figueiredo

realidade, a situao social, econmica e cultural do empresrio que tomou a iniciativa


para a sua constituio.
Da mesma maneira que a sociedade civil encontra-se estratificada em classes
e estamentos, dividida entre miserveis, pobres, classe mdia, ricos e milionrios, a
realidade empresarial segue idntica estratificao, podendo variar desde uma
microempresa, com um mnimo de patrimnio, passando por uma mdia empresa, at
a grande corporao transnacional. Esse um reflexo direto e imediato da diversidade
patrimonial histrica, secularmente existente na sociedade desigual. A desigualdade
determinada pela fonte ou origem das riquezas, que se localiza, geralmente, na
atividade empresarial. Os ricos e milionrios, invariavelmente, so os herdeiros de
grandes fortunas, donos de grandes propriedades rurais, ou capitalistas controladores
de grandes empresas e grupos econmicos.425
As disparidades econmicas existentes na realidade empresarial deveriam ser,
natural e objetivamente, sempre consideradas pelo legislador. No logicamente
sustentvel, como observou Fbio Konder Comparato, ter como iguais perante a lei
a sociedade multinacional e a quitanda da esquina; a empresa energtica e a fbrica
de confeitos; o conglomerado financeiro e o conjunto de diverses circenses.426 O
direito deve, pois, considerar a ampla diversidade de situaes presentes na atividade
das empresas sob a perspectiva econmica. Contraditoriamente, essa no foi a
orientao adotada pelo regime do direito de empresa no Cdigo Civil de 2002.
Alm da estratificao das empresas em razo do seu porte econmico e objeto
mercantil, diversos outros aspectos diferenciadores devem ser considerados para
uma apreenso integral, holstica, do objeto do nosso estudo. A empresa compreende
um organismo jurdico, uma realidade social, e assim a sua investigao exigir,
sempre, que certos aspectos distintivos sejam devidamente segregados, para efeito
de compreenso do seu regime jurdico prprio, ou da incidncia de normas
especficas de regulao.

425

Sobre a evoluo da desigualdade econmica resultante da explorao capitalista, passim, Thomas


Piketty, O capital no sculo XXI, traduo de Mnica Baumgarten, Rio de Janeiro, Intrnseca, 2014.
426 Fbio Konder Comparato, A Reforma da Empresa, cit., p. 60.

Teoria crtica da empresa

214

Ivanildo Figueiredo

Nesse sentido, convm adotar os seguintes critrios para fins de classificao


e de diferenciao das empresas no ambiente de mercado:
a) Forma da empresa;
b) Tipo societrio;
c) Regularidade jurdica;
d) Responsabilidade do titular ou scio;
e) Porte econmico;
f)

Objeto da atividade;

g) Regime de constituio;
h) Vnculo pessoal;
i)

Durao;

j)

Nacionalidade;

k) Territorialidade;
l)

Emisso de valores mobilirios;

m) Relao de participao;
n) Relao de concorrncia;
o) Origem do capital;
p) Objeto ou forma especial.
Dos critrios diferenciadores referidos acima, quase nenhum deles tratado ou
regulado no Cdigo Civil de 2002. E nele tampouco caberiam. A maior parte dos
aspectos tipolgicos ou de taxonomia das empresas encontra-se prevista na
legislao comercial extravagante, no codificada. Apesar da preocupao do
legislador do Cdigo em abranger, do modo mais amplo possvel, o instituto da
empresa, essa regulao restrita no leva em considerao suas particularidades
concretas, assim como essa gama de caractersticas variadas, que faz com que a
empresa se apresente atravs de mltiplos tipos, modelos e formas diferentes na
realidade econmica.
De acordo com os critrios de classificao aqui propostos, a tipologia da
empresa pode ser desenvolvida a partir do seguinte desdobramento, contendo, cada
uma, o respectivo embasamento normativo, doutrinrio ou jurisprudencial:

Teoria crtica da empresa

215

Ivanildo Figueiredo

a) Forma da empresa - O critrio inicial de classificao aquele legal, relativo


forma, em que a empresa deve ser classificada de acordo com seu carter pessoal
ou pluripessoal, determinante do seu regime jurdico especfico:
1) empresrio ou firma individual (CC, art. 966);
2) empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI (CC, art. 980-A);
3) sociedade empresria, comercial ou mercantil (CC, art. 982).

b) Tipo societrio - Sendo a empresa constituda e organizada como


sociedade empresria ou comercial, ela adota uma das seguintes espcies ou tipos,
que definem o respectivo regime jurdico:
1) sociedade annima (Lei 6.404/1976);
2) sociedade limitada (CC, arts. 1.052 a 1.087);
3) sociedade em nome coletivo (CC, arts. 1.039 a 1.044);
4) sociedade em comandita simples (CC, arts. 1.045 a 1.051);
5) sociedade em comandita por aes (Lei 6.404/1976, arts. 280 a 284);
6) subsidiria integral (Lei 6.404/1976, art. 251);427

427

A subsidiria integral uma companhia unipessoal que somente pode ser constituda por sociedade
annima brasileira. De acordo com a Exposio de Motivos do Projeto que resultou na Lei 6.404/1976,
conforme anotado por Modesto Carvalhosa, a possibilidade de ser constituda uma subsidiria integral
d juridicidade ao fato dirio, a que se vem constrangidas as companhias, de usar homens de palha
para subscreverem algumas aes, em cumprimento ao requisito formal de nmero mnimo de
acionistas. Todavia, para Carvalhosa, o motivo da larga adoo do instituto no est baseada no falso
quadro acionrio, mas na suplantao, a partir dos anos 30, da viso da companhia como contrato,
para erig-lo como instituto. (...) A pluralidade de scios , pois, fruto do superado contratualismo como
expreso da reunio de capitais. J o acionista nico fruto do institucionalismo, que se funda na
empresa e no mais no contrato. (Comentrios Lei de Sociedades Annimas, vol. 4, tomo 2, So
Paulo, Saraiva, 4 edio, 2002, p. 116-117). A figura da sociedade unipessoal foi duramente criticada
e assim contestada por Trajano de Miranda Valverde: Com absoluta falta de senso, sugeriu-se a
possibilidade de se constituir sociedade annima com um nico subscritor ou acionista. Gente que ouve
cantar o galo, mas no sabe onde. Nenhuma lei consagra, ou poder consagrar, essa monstruosidade
jurdica indivduo-sociedade. Nem mesmo a lei alem de 1937, a mais revolucionria de todas, dada
a orientao poltica da Alemanha nacional-socialista ousou admitir essa anomalia (vide Quassowsky,
Aktiengesetz, 1937, p. 225). Aqui, porm, sob o calor dos trpicos, tudo se funde, at o bom senso.
(Sociedades por aes, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 3 edio, 1959, p. 261).

Teoria crtica da empresa

216

Ivanildo Figueiredo

7) sociedade em conta de participao (CC, arts. 991 a 996);428


8) sociedade cooperativa (CC, arts. 1.093 a 1.096; Lei 5.764/1971).

c) Regularidade jurdica - O critrio de regularidade jurdica resultante do


registro da empresa na Junta Comercial, com o arquivamento dos respectivos atos
constitutivos. Segundo esse critrio, a empresa pode ser:
1) empresa regular: aquela que promoveu o arquivamento dos seus atos constitutivos
na Junta Comercial (CC, art. 967; Lei 8.934/1994, art. 32), e torna-se apta para
exercer todos os direitos e obrigaes na ordem jurdica;
2) empresa em regularizao: quando a empresa ainda est em fase de constituio,
adotando as providncias preliminares para o atendimento aos requisitos legais,
como ocorre na sociedade em comum (CC, art. 986) e na sociedade annima, at
a realizao da assembleia de constituio (Lei 6.404/1976, art. 87);
3) empresa irregular ou informal: quando o exerccio da atividade econmica
realizado por pessoa fsica, isoladamente, ou por duas ou mais pessoas (sociedade
de fato), sem registro na Junta Comercial, somente assumindo obrigaes e
deveres na ordem jurdica.

d) Responsabilidade do titular ou scio A responsabilidade determinada


em razo do fato do empresrio ou scio de sociedade poder assumir, ou no, em
carter pessoal, com risco do seu prprio patrimnio, as dvidas e obrigaes da
empresa de que ele faz parte, sendo que as empresas podem adotar as seguintes
modalidades:
1) empresa de responsabilidade limitada: quando a constituio regular da empresa
tem como efeito a aquisio de personalidade jurdica pelo ente criado, como
EIRELI ou sociedade empresria, que passa a dispor de patrimnio prprio,

428

Fbio Ulhoa Coelho, divergindo da doutrina dominante e da prpria classificao legal, no


considera a conta em participao uma sociedade, pelas seguintes razes: A conta em participao,
a rigor, no passa de um contrato de investimento comum, que o legislador, impropriamente,
denominou sociedade. Suas marcas caractersticas, que a afastam da sociedade empresria tpica,
so a despersonalizao (ela no pessoa jurdica) e a natureza secreta (seu ato constitutivo no
precisa ser levado a registro na Junta Comercial). Outros de seus aspectos tambm justificam no
consider-la uma sociedade: a conta de participao no tem necessariamente capital social, liquidase pela medida judicial de prestao de contas e no por ao de dissoluo de sociedade, e no
possui nome empresarial. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 510).

Teoria crtica da empresa

217

Ivanildo Figueiredo

constitudo a partir do capital integralizado, e o titular ou scio no responde pelas


dvidas da empresa (CC, arts. 980-A; 1.052; Lei 6.404/1976, art. 1);
2) empresa de responsabilidade ilimitada: no caso de empresrio de firma
individual, de scio de sociedade em nome coletivo ou comanditado, ou de
sociedade irregular, quando no existe separao patrimonial e o scio ou titular da
empresa responde, subsidiariamente, com seus bens pessoais, pelas dvidas
perante credores (CC, arts. 990; 1.024; 1.039; 1.046, pargrafo nico; 1.158; CPC,
art. 596);429
3) empresa de responsabilidade mista: quando, em determinado tipo societrio,
existem scios de responsabilidade limitada, geralmente os investidores, e scios
de responsabilidade ilimitada, que exercem funes de direo, administrao e
representao da sociedade (CC, art. 1.045; Lei 6.404/1976, art. 280).

e) Porte econmico Para efeitos da diferenciao de regime jurdico, bem


como para definir a incidncia de normas contratuais voltadas tutela jurdica das
pequenas empresas,430 economicamente mais vulnerveis ou que cumpram relevante

429

A sociedade regularmente constituda pode tornar-se irregular, seja por continuar a sua atividade
aps iniciada a dissoluo (Cdigo Civil, art. 1.036), seja pela aplicao da desconsiderao da pessoa
jurdica, como assim entende a jurisprudncia: Sociedade limitada. Pleito de desconsiderao da
personalidade jurdica. Notcia de dissoluo irregular. Responsabilidade dos scios. Agravo provido.
A constatao de que a sociedade executada foi dissolvida irregularmente autoriza o reconhecimento
da responsabilidade ilimitada dos seus scios, a permitir a incidncia da penhora sobre seus bens
pessoais. (TJSP, 31 Cmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento n 204514-12.2013.8.26.00 So Paulo, Relator Desembargador Antonio Rigolin, julgado em 17/12/2013).
430 O regime especial das micro e pequenas empresas est fundamentado, em primeiro plano, no
princpio instrumental do inciso IX do art. 170 da Constituio Federal, segundo o qual a ordem
econmica deve assegurar tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constitudas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administrao no Pas. Esse princpio novamente
referido e detalhado no art. 179 da Lei Maior: A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios
dispensaro s microempresas e s empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento
jurdico diferenciado, visando a incentiv-las pela simplificao de suas obrigaes administrativas,
tributrias, previdencirias e creditcias, ou pela eliminao ou reduo destas por meio de lei.
Segundo Eros Roberto Grau, o princpio do art. 170, inciso IX, est parcialmente reproduzido no
preceito inscrito no art. 179, razo pela qual um complementa o outro no sentido de definir um regime
prprio, diferenciado, para as pequenas empresas. (A ordem econmica na Constituio de 1988,
So Paulo, Malheiros, 16 edio, 2012, p. 254). O Cdigo Civil de 2002 reproduz essa norma
programtica da Constituio, mas restrita ao procedimento de registro na Junta Comercial, ao dispor
no art. 970: A lei assegurar tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresrio rural e
ao pequeno empresrio, quanto inscrio e aos efeitos da decorrentes. O regime especial da
microempresa e da empresa de pequeno porte est regulado, hoje, pelas Leis Complementares
123/2006, 128/2008, 139/2011 e 147/2014, normas de contedo dominantemente de direito tributrio,
e no comercial.

Teoria crtica da empresa

218

Ivanildo Figueiredo

funo social,431 estas podem ser classificadas do modo seguinte, inclusive por fora
de lei:
1) microempreendedor individual (MEI): o menor tipo de empresrio regular assim
definido por lei, adotando, sempre, a forma de empresrio individual (CC, artigos
966 e 970), enquadrado nessa condio caso tenha auferido receita bruta anual no
valor de at R$ 60.000,00, e seja optante do Regime Especial Unificado de
Arrecadao de Tributos e Contribuies devidos pelas Microempresas e Empresas
de Pequeno Porte - Simples Nacional (Lei Complementar 123/2006, art. 18-A, com
a redao das Leis Complementares 128/2008; 139/2011 e 147/2014);
2) microempresa (ME): constituda sob qualquer forma de empresa, como empresrio
individual, EIRELI ou sociedade empresria ou comercial, que tenha auferido
receita bruta anual igual ou inferior a R$ 360.000,00 (Lei Complementar 123/2006,
art. 3, inciso I);
3) empresa de pequeno porte (EPP): empresa que pode ser constituda como firma
individual, EIRELI ou sociedade empresria, com receita bruta anual superior a R$
360.000,00 e igual ou inferior a R$ 3.600.000,00 (Lei Complementar 123/2006, art.
3, inciso II);
4) empresa de mdio porte: no possui enquadramento legal, sendo considerada,
apenas para fins estatsticos e para avaliao de capacidade financeira pelos
bancos432 e institutos de pesquisa,433 como aquela que, no sendo microempresa
ou empresa de pequeno porte, conta com mais de 50 e menos de 250 empregados;

431

A classificao das empresas de acordo com seu porte ou tamanho, medido pela sua receita bruta
ou nmero de empregados, pode resultar em tratamento jurdico diferenciado, seja da forma
expressamente determinada em lei, como no caso do regime das micro e pequenas empresas, seja
considerando o desequilbrio ou desigualdade entre agentes econmicos, e as relaes de
dependncia ou subordinao entre empresas. Para Vincenzo Buonocore, a distino entre pequena
empresa e grande empresa resulta, em primeiro aspecto, de um carter que ele define como
empresarialidade, em que a diferena entre as empresas decorre do fator organizacional ou gerencial:
Na realidade, o primeiro e talvez determinante dado que necessitamos ter em conta o ensinamento
que vem de outra disciplinas, no mbito das quais a distino das empresas com base no critrio
dimensional responde, antes de tudo, s exigncias que podemos definir, de modo amplo, como
empresarialidade (aziendalistiche), que parte da contabilidade para terminar na gesto compreendida
por um todo, ou mais precisamente, das diferenas existentes entre uma pequena e uma grande
empresa no que se refere ao modo de assegurar os recursos e de administrar a empresa. (LImpresa
- Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 576).
432 Para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social BNDES, instituio financeira
pblica federal, mdias empresas so aquelas com receita operacional bruta anual superior a R$
16.000.000,00 e inferior ou igual a R$ 300.000.000,00; grandes empresas so aquelas com receita
operacional bruta anual superior a R$ 300.000.000,00. (Circular BNDES n 11/2010, de 05/03/2010).
433 De acordo com a Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE, a anlise de porte
das empresas do CEMPRE adota como referncia as faixas de pessoal ocupado total definidas pela
Oficina Estatstica da Comunidade Europeia - Eurostat (Statistical Office of the European Communities)
e pela Organizao das Naes Unidas ONU, na Recomendao 2003/361/CE, de 20 de maio de
2003, da Comisso das Comunidades Europeias. De acordo com esta definio, microempresas so
as empresas com at 9 pessoas ocupadas; empresas pequenas so as que possuem de 10 a 49
pessoas ocupadas; empresas mdias, de 50 a 249 pessoas; e empresas grandes possuem 250 ou

Teoria crtica da empresa

219

Ivanildo Figueiredo

5) empresa de grande porte: aquela definida, para fins estatsticos, como tendo
mais de 250 empregados; todavia, para efeito de auditoria externa e publicao das
demonstraes financeiras (Lei 11.638/2007, art. 3) considerada de grande porte
a sociedade ou conjunto de sociedades, sob controle comum, que tiver, no exerccio
social, ativo total superior a R$ 240.000.000,00 ou receita bruta anual superior a R$
300.000.000,00.

f) Objeto da atividade O critrio do objeto diferencia as empresas em razo


do ramo de atividade, sendo um dos mais importantes para a caracterizao da
natureza mercantil e para a definio da incidncia de normas especiais que regulam
determinados tipos de atividades econmicas, assim subdivididas:434
1) empresa comercial: exerce tpica atividade comercial de compra de mercadorias
para revenda ou locao de uso, atividade que era caracterstica do antigo
comerciante, e que pode ter por objeto tanto bens mveis como bens imveis; o
comrcio faz parte do setor tercirio da economia, responsvel pela circulao das
mercadorias e por sua colocao no mercado; as empresas comerciais subdividemse em empresas atacadistas (a grosso), que tm como clientes exclusivos outras
empresas, e empresas varejistas (a retalho), que atuam no mercado de consumo,
ficando assim submetidas s normas especiais de proteo do consumidor;435 as
empresas comerciais atuam tanto atravs de estabelecimentos fsicos, como em
vendas distncia, realizadas via estabelecimentos virtuais na Internet.436
2) empresa industrial: compreende as atividades da indstria manufatureira e de
transformao em larga escala,437 de produo de matrias primas, bens de capital,
mais pessoas ocupadas (Schmiemann, 2008). Estatsticas do Cadastro Central de Empresas 2009,
Rio de Janeiro, IBGE, 2011, p. 27).
434 O Cdigo Civil de 2002 no contm norma semelhante, porque somente classifica a empresa em
razo da forma, e no segundo a atividade econmica. No Cdigo italiano de 1942, a empresa
classificada, para efeito de registro, de acordo com a atividade ou ramo de negcio: Art. 2195
Imprenditori soggetti a registrazione - Sono soggetti all'obbligo dell'iscrizione nel registro delle
imprese gli imprenditori che esercitano: 1) un'attivit industriale diretta alla produzione di beni o di
servizi; 2) un'attivit intermediaria nella circolazione dei beni; 3) un'attivit di trasporto per terra, o per
acqua o per aria; 4) un'attivit bancaria o assicurativa; 5) altre attivit ausiliarie delle precedenti (1754).
Le disposizioni della legge che fanno riferimento alle attivit e alle imprese commerciali si applicano, se
non risulta diversamente, a tutte le attivit indicate in questo articolo e alle imprese che le esercitano
(att 100, 200).
435 Existem regimes prprios e especficos para empresas estritamente comerciais, como, por exemplo,
da representao comercial autnoma (Lei 4.886/1965), em que o representante sempre ter por objeto
a intermediao da negcios mercantis, e da concesso comercial de veculos automotores (Lei
6.729/1979), em que a atividade da rede distribuidora ou concessionrias de automveis enquadra-se
como essencialmente comercial. A representao comercial autnoma corresponderia ao contrato de
agncia regulado no Cdigo Civil de 2002 (arts. 710 a 721), enquanto a concesso comercial um tipo
especfico de contrato de distribuio, tambm regulado junto com o contrato de agncia.
436 Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 49.
437 Carvalho de Mendona refere-se atividade industrial como atos das empresas de fbricas,
esclarecendo que, ao invs de oferecer a definio do que seja fbrica, seria melhor dizer que se trata

Teoria crtica da empresa

220

Ivanildo Figueiredo

produtos e mercadorias, mquinas, implementos e insumos, integrante do setor


secundrio da economia,438 constituda, geralmente, por mdias e grandes
empresas, sendo matria de regulao e estudo, no exclusivo, pelo direito
industrial ou da propriedade industrial (Lei 9.279/1996)439 e pelo direito
concorrencial ou antitruste (Lei 12.529/2011).
3) empresa financeira e bancria: so as empresas sob a forma de sociedade
annima que atuam no setor de financiamento da produo e do consumo, das
operaes cambiais e de crdito, sujeitas a forte regulamentao estatal e
fiscalizao pelo Banco Central, no mbito do mercado financeiro (Lei 4.595/1964),
e pela Comisso de Valores Mobilirios, no tocante ao mercado de capitais e bolsas
de valores, mercadorias e futuros (Lei 4.728/1965; Lei 6.385/1976);440 so
legalmente equiparadas s instituies financeiras, para efeitos de regime jurdico
e fiscalizao pelo Banco Central, as empresas de arrendamento mercantil ou
leasing (Lei 6.099/1974), consrcio de bens durveis (Lei 11.795/2008), e todas as
demais sociedades comerciais ou empresrias que exeram atividade de
intermediao financeira ou de concesso de crdito.441
4) empresa seguradora: as companhias seguradoras, que adotam tambm a forma
de sociedade annima e, podem estar, ou no, vinculadas a conglomerados

de atos de empresas industriais que elaboram a matria prima para conseguir, mediante reunies,
separaes ou transformaes, cousas de valor (manufatura). Assim, essas empresas, em virtude dos
atos que as formam e de acordo com as exigncias do mercado, constituem a verdadeira indstria de
produo, no obstante se achar de ordinrio aliada operao fundamental do comrcio, compra e
venda; pode-se classifica-la ao lado da indstria comercial propriamente dita, destinada distribuio
das mercadorias. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit. p. 495-496).
438 No Brasil, as cinco principais atividades industriais, segundo o IBGE, com maior participao nas
receitas brutas das empresas fabris responderam por, aproximadamente, 56,1% do total das receitas
brutas no ano de 2009 da indstria nacional. Os maiores setores so de fabricao de produtos
alimentcios, fabricao de veculos automotores, indstria petrolfera, fabricao de produtos qumicos
e de metalurgia. (IBGE Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, Pesquisa Industrial,
Rio de Janeiro, v. 28, n 1, 2009, p. 29).
439 O direito industrial, na definio de Fbio Ulhoa Coelho, a diviso do direito comercial que protege
os interesses dos inventores, designers e empresrios em relao s invenes, modelo de utilidade,
desenho industrial e marcas. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 153).
440 As atividades bancrias e financeiras so reguladas e estudadas no ramo especial do direito
comercial, denominado direito bancrio, o qual, na opinio de Waldrio Bulgarelli, trata-se de uma rea
de especializao do direito das obrigaes mercantis, na qual tambm est inserido o direito bolsstico
(ou burstil), relativo s operaes das bolsas de valores. (Direito Comercial, cit., p. 21-22).
441 Lei 4.595/1964 - Art. 17. Consideram-se instituies financeiras, para os efeitos da legislao em
vigor, as pessoas jurdicas pblicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessria a
coleta, intermediao ou aplicao de recursos financeiros prprios ou de terceiros, em moeda nacional
ou estrangeira, e a custdia de valor de propriedade de terceiros. Art. 18 (...) 1 Alm dos
estabelecimentos bancrios oficiais ou privados, das sociedades de crdito, financiamento e
investimentos, das caixas econmicas e das cooperativas de crdito ou a seo de crdito das
cooperativas que a tenham, tambm se subordinam s disposies e disciplina desta lei no que for
aplicvel, as bolsas de valores, companhias de seguros e de capitalizao, as sociedades que efetuam
distribuio de prmios em imveis, mercadorias ou dinheiro, mediante sorteio de ttulos de sua
emisso ou por qualquer forma, e as pessoas fsicas ou jurdicas que exeram, por conta prpria ou de
terceiros, atividade relacionada com a compra e venda de aes e outros quaisquer ttulos, realizando
nos mercados financeiros e de capitais operaes ou servios de natureza dos executados pelas
instituies financeiras.

Teoria crtica da empresa

221

Ivanildo Figueiredo

bancrios, tm como atividade a oferta de seguros de vida, acidentes, danos,


infortnios, responsabilidade e riscos de modo geral e a cobertura de sinistros,
autorizadas e fiscalizadas pela Superintendncia de Seguros Privados SUSEP
(Decreto-Lei 73/1966), ou de planos de sade e assistncia mdica, sujeitas
autorizao e fiscalizao da Agncia Nacional de Sade Suplementar ANS (Lei
9.656/1998); o regramento e estudo das atividades de seguro faz parte do direito
securitrio, que integra a disciplina do direito das obrigaes mercantis.442
5) empresa de transporte: as empresas transportadoras respondem pelas funes
essenciais de realizar a circulao das mercadorias e produtos, integrando, na
economia, o elo logstico entre o processo industrial e o comercial; subdividem-se
de acordo com o modal ou meio de transporte em martimo, rodovirio, areo ou
ferrovirio;443 as empresas de transporte submetem-se a duplo regime jurdico,
abrangendo os contratos de transporte, de passageiros e de carga, e os
regulamentos de trfego editados pelo poder pblico; o direito dos transportes
compreende diversas normas de regulao e seus rgos de fiscalizao,
destacando-se o ramo especializado e secular do direito comercial martimo;444 as
normas gerais dos contratos de transportes constam atualmente do Cdigo Civil de
2002 (artigos 730 a 756).
6) empresa de depsito e armazm geral: enquadram-se como tais as empresas
que realizam a guarda e depsito de mercadorias, situadas em portos, trapiches e
entrepostos de transporte, sendo autorizadas a emitir ttulos representativos das
mercadorias armazenadas;445 as empresas de armazens gerais so reguladas por
normas obsoletas, mas ainda em vigor (Decreto 1.102/1903), estando sujeitas a
regime de matrcula na Junta Comercial (Lei 8.934/1994, art. 32), integrante da
categoria dos agentes auxiliares do comrcio, regulada na parte revogada do
Cdigo Comercial de 1850 (artigos 87 a 98).
7) empresa de servios: as atividades de prestao de servios, no anterior regime
do Cdigo Comercial de 1850 e do Cdigo Civil de 1916, eram consideradas,
geralmente, atividades civis, exercida por profissionais autnomos; somente as
atividades diretamente relacionadas com o comrcio e a indstria, atos de comrcio
por natureza, a exemplo dos servios financeiros e de transporte, eram submetidos
lei mercantil; a partir do Cdigo Civil de 2002, consolidando tendncia evolutiva
da atividade econmica e do processo de terceirizao, as atividades de prestao
de servios, inclusive nas reas de sade e educao, passaram a ser
classificadas como de natureza empresarial, sendo agora natural a adoo da
442

Waldrio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 22.


A Lei 9.611/1998 (art. 2) disciplina, tambm, o transporte multimodal ou intermodal de cargas,
definido este como aquele que, regido por um nico contrato, utiliza duas ou mais modalidades de
transporte, desde a origem at o destino.
444 A Parte Segunda do Cdigo Comercial de 1850, regulando o comrcio martimo (artigos 457 a 796),
ainda permanece em vigor, no havendo sido revogada pelo Cdigo Civil de 2002.
445 Os ttulos representativos das mercadorias sob guarda de armazm geral so o conhecimento de
depsito e o warrant (Decreto 1.102/1903, art. 15); para os ttulos do agronegcio, vinculados a
mercadorias e commodities depositados, a legislao mais recente (Lei 11.076/2004) autoriza a
emisso de Certificados de Depsito Agropecurio - CDA e de Warrant Agropecurio WA.
443

Teoria crtica da empresa

222

Ivanildo Figueiredo

forma de empresrio (CC, art. 966) ou sociedade empresria (CC, art. 982) em
todas as modalidades de servios.
8) empresa de tecnologia: graas revoluo da tecnologia e da informtica, ocorrida
no quarto final do sculo XX, novos tipos de atividades econmicas vem sendo
constantemente desenvolvidas, em especial na indstria dos computadores, de
sistemas e equipamentos de conectividade, nas redes de dados e de
telecomunicaes; assim, as empresas de tecnologia, desenvolvedoras de
equipamentos, programas de computador, aplicativos ou softwares (Lei
9.609/1998), passaram a constituir categoria especializada, inovadora, diante dos
critrios tradicionais de classificao das atividades empresariais referidos na lei.446
9) empresa de construo civil: a construo civil, como do prprio sobrenome
infere-se, no consistia em atividade comercial, sendo regulada pelas normas do
contrato de empreitada do Cdigo Civil de 1916, at ser assim comercializada por
fora de lei: So comerciais as empresas de construo (Lei 4.068/1962, art. 1);
especialmente a partir da Lei 4.591/1964, que disciplina o condomnio, a construo
e incorporao imobiliria, as empresas desse setor passaram a ser classificadas
como indstria da construo civil, e os imveis edificados, especialmente em obras
privadas, dirigidas ao mercado imobilirio, so enquadrados como bens comerciais,
ou seja, como mercadorias.447
10) empresa de comrcio exterior: nesse segmento situam-se as empresas
especializadas em realizar ou facilitar as operaes entre empresas nacionais e
estrangeiras; em geral, a empresa de comrcio exterior dedica-se exportao de
produtos fabricados no pas por empresas industriais, devendo adotar a forma de
sociedade annima (Decreto-Lei 1.248/1972, art. 2) para usufruir os benefcios
446 So exemplos de empresas de tecnologia as desenvolvedoras de programas de computador e
softwares, como Microsoft, Google, Mozilla, Adobe e Symantec. Essas empresas transnacionais
desenvolvem e colocam disposio dos usurios, via programas com download pago ou gratuito,
sistemas e aplicativos profissionais, educacionais, de entretenimento, gerados para realizar uma srie
de tarefas e funes. As empresas de tecnologia tambm respondem pelo desenvolvimento de
produtos e equipamentos de hardware, a exemplo da Apple, IBM, Intel e Hewlett-Packard (HP), como
segmento especial da indstria com caractersticas diferenciadas, inclusive porque exploram
intensivamente os recursos da Internet e da rede World Wide Web (www).
447 Tributrio. Cofins. Venda de imveis. LC n 70/91. Alterao do texto constitucional pela EC n
20/98. No incidncia. Redefinio da matria pela Primeira Seo. 1. Em vrios julgamentos emiti
pronunciamento no sentido de que a COFINS incide sobre o faturamento de empresas que,
habitualmente, negociam com imveis, em face de: a) o imvel ser um bem suscetvel de transao
comercial, pelo que se insere no conceito de mercadoria; b) as empresas construtoras de imveis
efetuam negcios jurdicos com tais bens, de modo habitual, os quais constituem mercadorias que so
oferecidas aos clientes compradores; c) a Lei n 4.068, de 09.06.62, determina que as empresas de
construo de imveis possuem natureza comercial, sendo-lhes facultada a emisso de duplicatas; d)
a Lei n 4.591, de 16.12.64, define como comerciais as atividades negociais praticadas pelo
"incorporador, pessoa fsica ou jurdica, proprietrio ou no, promotor ou no da construo, que aliene
total ou parcialmente imvel ainda em construo, e do vendedor, proprietrio ou no, que
habitualmente aliene o prdio, decorrente de obra j concluda, ou terreno fora do regime condominial,
sendo que o que caracteriza esses atos como mercantis, em ambos os casos, e o que diferencia dos
atos de natureza simplesmente civil, a atividade empresarial com o intuito de lucro" (Oswaldo Othon
de Pontes Saraiva Filho, ob. j citada). (STJ, 1 Turma, REsp 439.417-SC, Relator Ministro Jos
Delgado, DJ 23/09/2002).

Teoria crtica da empresa

223

Ivanildo Figueiredo

fiscais concedidos pela legislao; a empresa de comrcio exterior pode estruturarse como trading company, para realizar operaes de importao e exportao de
mercadorias de outras empresas.448
11) empresa de diverses pblicas: as atividades de espetculos pblicos sempre
foram consideradas de natureza comercial, pelo seu modo de explorao de
eventos oferecidos para o pblico, como o teatro, cinema, o circo, os parques de
diverses; nesse segmento enquadram-se as empresas de espetculos artsticos,
musicais, cinematogrficos, circenses e esportivos; desde que a atividade de
diverso seja aberta ao pblico, que tem acesso mediante pagamento de ingresso,
ela caracteriza-se como comercial ou empresarial.449
12) empresa extrativista: aquela que est organizada para a explorao dos
recursos naturais e produo extrativa animal, vegetal e mineral; em determinados
casos, ela pode at ser considerada como empresa rural,450 mas se ela no for
constituda como tal, particularmente nas reas da pesca e da minerao, integra
segmento especial, do setor primrio da economia.
13) empresa rural: a atividade rural, em princpio, determinante da estrita separao
entre os campos do direito civil e do direito comercial, no qualificada como
mercantil; a legislao admite, todavia, a adoo da forma comercial na explorao
das atividades rurais, agrcolas ou pecurias, inclusive conforme a redao do art.
971 do Cdigo Civil.451 O prprio conceito de empresa rural, constante da Lei
4.504/1964 (Estatuto da Terra), qualificava a explorao econmica da propriedade
rural, agrcola ou pecuria, independentemente da sua constituio formal no

448

O regime da empresa comercial exportadora est regulado no Decreto-Lei 1.248/1972, e nos artigos
247 a 253 da Portaria SECEX n 23/2011 da Secretaria de Comrcio Exterior do Ministrio do
Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior. A Portaria n 438, de 26 de maio de 1992, do Ministrio
da Fazenda, regula a concesso do Registro Especial a Empresas Comerciais Exportadoras, assim
prescrevendo: Art. 2. permitido Empresa Comercial Exportadora adquirir e exportar qualquer
mercadoria de produo nacional, importar para comercializar no mercado interno, ou reexportar
mercadorias estrangeiras, atendidas as normas estabelecidas no Regulamento Aduaneiro, aprovado
pelo Decreto n 91.030, de 5 de maro de 1985, e demais legislao pertinente.
449 Na lio de Carvalho de Mendona, as operaes das empresas de espetculos pblicos devem
ser consideradas como exerccio da indstria tendo por objeto, recrear ou divertir o pblico mediante
paga, visando benefcios pecunirios: teatros, circos, sales de concertos ou festivais, salas de
conferncia, cinematgrafos, hipdromos, veldromos, etc. As empresas constitudas para a realizao
desses fins, qualquer que seja o gnero de diverses permitidas e a forma da organizao, so sujeitas
s disposies do Cdigo Comercial e leis complementares. So, portanto, comerciantes os
respectivos empresrios. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit. p. 503).
450 Agravo de instrumento. Recurso de Revista. No-provimento. Prescrio rurcola (...) Cenibra
Florestal. Empresa Extrativista. Atividade Rural. O entendimento jurisprudencial deste Tribunal no
sentido de que a empresa extrativista de madeira pertence ao ramo rural, caso da prpria Cenibra, em
que os precedentes reconhecem a sua qualidade de empregadora rural por explorar atividade
agroeconmica, ou seja, plantio e explorao de madeira. Agravo de instrumento a que se nega
provimento. (Tribunal Superior do Trabalho, 5 Turma, AIRR 4271900332002503 427190033.2002.5.03.0900, Relatora Ministra Ktia Magalhes Arruda, DJ 19/09/2008).
451 Cdigo Civil de 2002 Art. 971. O empresrio, cuja atividade rural constitua sua principal profisso,
pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus pargrafos, requerer inscrio no
Registro Pblico de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficar
equiparado, para todos os efeitos, ao empresrio sujeito a registro.

Teoria crtica da empresa

224

Ivanildo Figueiredo

registro de empresas.452 O Cdigo de 2002, ao contrrio, somente autoriza o


enquadramento de uma empresa como rural em razo do seu registro na Junta
Comercial.
14) empresa do agronegcio: compreende a empresa rural que explora propriedades
agrcolas e pecurias em grandes extenses, para produo de mercadorias com
cotao em bolsas (commodities) e destinadas, geralmente, exportao; as
empresas do agronegcio, para o financiamento da sua produo, podem emitir
ttulos de crdito especiais, denominados de ttulos ou cambiais do agronegcio,
para securitizao e comercializao no mercado financeiro.453

g) Regime de constituio O regime de constituio, como ato de criao,


aquele que determina o modo e exigncias pelas quais uma empresa pode ser
criada a partir da iniciativa do empresrio e de seus scios. Como regra especfica,
deve prevalecer o princpio da liberdade de empresa estatudo pelo pargrafo nico
do art. 170 da Constituio Federal: assegurado a todos o livre exerccio de
qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao de rgos
pblicos, salvo nos casos previstos em lei.454 Todavia, para determinadas atividades
que a lei considerar de relevante interesse pblico ou social, a constituio da
empresa depender de prvia autorizao do Estado, como assim ocorre, por

452

De acordo com o art. 4 da Lei 4.504/1964, a empresa rural assim definida: Empresa Rural o
empreendimento de pessoa fsica ou jurdica, pblica ou privada, que explore econmica e
racionalmente imvel rural, dentro de condio de rendimento econmico da regio em que se situe e
que explore rea mnima agricultvel do imvel segundo padres fixados, pblica e previamente, pelo
Poder Executivo. Para esse fim, equiparam-se s reas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e
artificiais e as reas ocupadas com benfeitorias.
453 Lei 11.076/2004, que dispe sobre o Certificado de Depsito Agropecurio CDA, o Warrant
Agropecurio WA, o Certificado de Direitos Creditrios do Agronegcio CDCA, a Letra de Crdito
do Agronegcio LCA e o Certificado de Recebveis do Agronegcio CRA. Os ttulos de crdito do
agronegcio so aqueles vinculados a direitos creditrios originrios de negcios realizados entre
produtores rurais, ou suas cooperativas, e terceiros, inclusive financiamentos ou emprstimos,
relacionados com a produo, comercializao, beneficiamento ou industrializao de produtos ou
insumos agropecurios ou de mquinas e implementos utilizados na atividade agropecuria. (Lei
11.076/2004, art. 23).
454 Para Eros Roberto Grau, o preceito inscrito no pargrafo nico do art. 170, que se tem enfatizado,
na afirmao de que reiteraria, consolidando, o carter liberal da ordem econmica na Constituio de
1988, tem relevncia normativa menor. Pois certo que postulao primria da liberdade de iniciativa
econmica (...) a garantia da legalidade: liberdade de iniciativa econmica liberdade pblica
precisamente ao expressar no sujeio a qualquer restrio estatal seno em virtude de lei. O que
esse preceito pretende introduzir no plano constitucional to-somente a sujeio ao princpio da
legalidade em termos absolutos e no, meramente, ao princpio da legalidade em termos relativos
(art. 5, II) da imposio, pelo Estado, de autorizao para o exerccio de qualquer atividade
econmica. (A ordem econmica na Constituio de 1988, cit., p. 205).

Teoria crtica da empresa

225

Ivanildo Figueiredo

exemplo, na atividade financeira e bancria. De acordo com o critrio do regime de


constituio, as empresas assim classificam-se:
1) regime de livre criao: para a imensa maioria das atividades econmicas, o
Estado no exige nenhuma autorizao prvia para a criao de empresas,
prevalecendo o princpio do art. 170, pargrafo nico, da Constituio Federal; em
decorrncia desse princpio da liberdade de empresa, toda e qualquer pessoa pode
exercer atividade econmica, desde que no sujeita a disciplina normativa prpria
do regime especial de autorizao;
2) regime de autorizao: quando a lei assim exigir, determinadas atividades
econmicas somente podem ser exercidas com prvia autorizao do Poder
Pblico; o Cdigo Civil de 2002 regula, em normas gerais, as sociedades
dependentes de autorizao (artigos 1.123 a 1.141), em especial para o
funcionamento de empresas estrangeiras no pas, sendo essa autorizao sempre
de competncia do Governo Federal; o regime de autorizao importa em modo de
interveno direta do Estado na atividade econmica, realizada por rgos pblicos,
como o Banco Central do Brasil no mbito do sistema financeiro nacional,
exercendo poderes de normatizao, fiscalizao, interveno e liquidao
extrajudicial sobre as empresas sujeitas a esse regime;455
3) regime de monoplio: como decorrncia do princpio constitucional da livre
concorrncia (CF, art. 170, inciso IV), vedada a existncia de monoplios em
qualquer setor da economia; a Constituio Federal somente admite a existncia
de monoplio da Unio nos setores de petrleo e minerais nucleares (CF, art. 177),
cabendo exclusivamente lei regular todo modo de atuao monopolista, sendo
qualquer tentativa ou ato de dominao no mercado objeto de represso pela
legislao antitruste ou de defesa da concorrncia (Lei 12.529/2011).

h) Vnculo pessoal O vnculo pessoal considerado, regra geral, como


resultante das relaes familiares do empresrio, ou dos scios entre si na sociedade
comercial.456 A vinculao familiar pode determinar a incidncia de normas especiais
455

O princpio da livre iniciativa garantido constitucionalmente (art. 170, pargrafo nico). Todavia,
existem atividades cujo exerccio afeta o interesse pblico. Assim, por exemplo, a atividade de
intermediao financeira ou aquelas que tenham em vista a sade ou a educao. Por tal razo, tendo
em vista os interesses desenvolvidos, estas atividades somente podem ser exercidas por quem o Poder
Pblico considere suficientemente habilitado. Da a necessidade da autorizao para funcionar.
Destarte, o Poder Pblico exerce uma superviso constante, a priori, verificando se o titular da atividade
preenche os requisitos necessrios para o seu exerccio, sem o que no concedida a autorizao;
durante o seu exerccio, de molde a que no se afaste dos requisitos para a concesso da autorizao,
sob pena de cassao; a posteriori, disciplinando o modo pelo qual ter lugar a extino do titular da
atividade, como ocorre no regime de liquidao extrajudicial (Lei 6.024/74) das instituies financeiras.
(Vera Helena de Mello Franco, Manual de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 51-52).
456 Na opinio de Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, a empresa familiar compreende a
sociedade empresria, cujas quotas ou aes estejam sob o controle de uma famlia, podendo ser

Teoria crtica da empresa

226

Ivanildo Figueiredo

nas relaes empresariais, particularmente em questes de natureza societria e


sucessria. De acordo com pesquisas e trabalhos cientficos, de base emprica, as
organizaes familiares representam a grande maioria das empresas.457 Todavia, o
conceito de empresa familiar comporta entendimento mais amplo, para tambm
compreender o empresrio individual que trabalha com o concurso de seus familiares
e tambm a empresa individual de responsabilidade limitada EIRELI, justificada pela
existncia da relao de sucesso hereditria. Por essa razo, a empresa familiar,
individual ou coletiva, deve ser objeto de anlise e tratamento jurdico especfico,458 tal
como regulada no Cdigo Civil italiano de 1942,459 e que assim vem sendo
diferenciada na jurisprudncia.460 Segundo esse critrio do vnculo pessoal, as
empresas podem ser classificadas do seguinte modo:
administrada por seus membros, ainda que com o auxlio de gestores profissionais. (Empresas
familiares O papel do advogado na administrao, sucesso e preveno de conflitos entre
scios, So Paulo, Atlas, 2 edio, 2014, p. 11).
457 Gersick, Davis, Hampton e Lansberg destacam que entre 65% e 80% das empresas no mundo so
familiares, de todos os portes e tamanhos (Kevin E. Gersick, John A. Davis, Marion McCollon Hampton,
Ivan Lansberg, De Gerao para gerao: Ciclos de vida da empresa familiar, Harvard Business
School Press, So Paulo, Negcio Editora, 1997, p. 3). No Brasil, Volnei Pereira Garcia chega a afirmar
que 95% das 300 maiores empresas nacionais so controladas por famlias, e essas empresas
familiares contribuem com mais de 50% do Produto Interno Bruto (PIB) e respondem por mais de trs
quartos dos empregos (Desenvolvimento das famlias empresrias, Rio de Janeiro, Qualitymark,
2001, p. 23). Estudo patrocinado pelo Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas
SEBRAE, destaca que mais de 70 % das pequenas empresas no Brasil so familiares (Antonio
Domingos Padula, Empresa familiar, Porto Alegre, SEBRAE/RS, 1998, p. 7-8).
458 Ainda que no tenha sido atribuda caracterizao legal especfica no ordenamento jurdico
brasileiro, observam Eduardo Goulart Pimenta e Mara Leitoguinhos de Lima Abreu que as sociedades
familiares so objeto de anlise pela jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia, sendo a elas
aplicados institutos que no seriam cabveis s demais. Um dos relevantes aspectos caractersticos
das chamadas empresas familiares est na premissa de que as decises no mbito familiar so
pautadas, em regra, no sentimento, pessoalidade e na tradio, o que confronta com a racionalidade e
eficincia que deve prevalecer na prtica empresarial (Conceituao jurdica da empresa familiar,
em Fbio Ulhoa Coelho e Marcelo Andrade Fres, coordenadores, Empresa familiar Estudos
jurdicos, So Paulo, Saraiva, 2014, p. 51).
459 Cdigo Civil italiano de 1942 - Art. 230-bis Impresa familiare - Salvo che configurabile un diverso
rapporto, il familiare che presta in modo continuativo la sua attivit di lavoro nella famiglia o nell'impresa
familiare ha diritto al mantenimento secondo la condizione patrimoniale della famiglia e partecipa agli
utili dell'impresa familiare ed ai beni acquistati con essi nonch agli incrementi dell'azienda, anche in
ordine all'avviamento, in proporzione alla quantit alla qualit del lavoro prestato. Le decisioni
concernenti l'impiego degli utili e degli incrementi nonch quelle inerenti alla gestione straordinaria, agli
indirizzi produttivi e alla cessazione dell'impresa sono adottate, a maggioranza, dai familiari che
partecipano alla impresa stessa. I familiari partecipanti all'impresa che non hanno la piena capacit di
agire sono rappresentati nel voto da chi esercita la potest su di essi.
460 Processual Civil Execuo Fiscal Penhora Bem de famlia Impenhorabilidade Imvel de
propriedade de sociedade comercial - Residncia dos dois nicos scios Empresa familiar
Precedentes. 1. A Lei n 8.009/90 estabeleceu a impenhorabilidade do bem de famlia, incluindo na
srie o imvel destinado moradia do casal ou da entidade familiar, a teor do disposto em seu art. 1.
2. Sendo a finalidade da Lei n 8.009/90 a proteo da habitao familiar, na hiptese dos autos,
demonstra-se o acerto da deciso de primeiro grau, corroborada pela Corte de origem, que reconheceu
a impenhorabilidade do nico imvel onde reside a famlia do scio, apesar de ser da propriedade da

Teoria crtica da empresa

227

Ivanildo Figueiredo

1) empresa individual familiar: aquela constituda sob a forma de firma individual ou


EIRELI, em que o trabalho realizado e dividido entre o empresrio, seu cnjuge e
familiares, com ou sem relao de emprego, mas tendo estes poderes de
representao ou preposio (CC, art. 1.169); a sucesso do titular na empresa
individual familiar um dos aspectos que revelam caractersticas prprias e
especficas a justificar tratamento jurdico diferenciado ou regime normativo
especial, no previsto no Cdigo Civil;
2) sociedade empresria familiar: sendo a empresa constituda sob a forma de
sociedade empresria ou comercial, como sociedade limitada ou sociedade
annima, ser familiar quando as quotas ou aes de controle forem detidas por
uma famlia ou ncleo familiar; a sociedade familiar entre cnjuges prevista no
Cdigo Civil de 2002, ainda que, contraditoriamente, no captulo relativo
capacidade do empresrio individual (CC, art. 977);461 a sociedade familiar pode ser
entre cnjuges (sociedade familiar conjungal) ou entre irmos, pais e filhos, primos
e primas (sociedade familiar parental); na sociedade empresria familiar, as
relaes de natureza societria e sucessria devem ser interpretadas e reguladas
de modo diferenciado em comparao com a sociedade entre pessoas que no
integram o mesmo ncleo familiar;
3) empresa impessoal ou profissional: nesta categoria enquadram-se as empresas
em que a atividade principal do empresrio exercida sem o concurso ou
participao de qualquer parente, ou nas quais o controle das quotas ou aes no
pertena a nenhuma famlia ou ncleo familiar dominante, estando dispersa entre
investidores no mercado, como ocorre nas companhias abertas, ainda que a
empresa tenha origem familiar; na empresa impessoal, a gesto desempenhada
por administradores que no possuem grau de parentesco entre si ou por
executivos profissionais, no prevalecendo qualquer aspecto personalssimo,
sentimental, afetivo ou solidrio, como prprio e caracterstico nas organizaes
familiares.

i) Durao De acordo com o critrio de durao, as empresas so criadas e


constitudas, regra geral, para existir por tempo determinado ou indeterminado. Este
critrio somente aplica-se s sociedades comerciais ou empresrias, porque a fixao
de um prazo, determinado ou indeterminado, para a durao da empresa depende de
disposio em clusula contratual ou estatutria. Essa determinao do prazo com

empresa executada, tendo em vista que a empresa eminentemente familiar. Recurso especial
improvido. (STJ, 2 Turma, REsp 1.024.394/RS, Relator Ministro Humberto Martins, DJe 14/03/2008,
LEXSTJ, vol. 225, p. 232).
461 Cdigo Civil de 2002 Art. 977. Faculta-se aos cnjuges contratar sociedade, entre si ou com
terceiros, desde que no tenham casado no regime da comunho universal de bens, ou no da
separao obrigatria.

Teoria crtica da empresa

228

Ivanildo Figueiredo

relao existncia da prpria sociedade, no da vinculao entre ela e os scios.462


As firmas ou empresas individuais esto vinculadas, em princpio, prpria vida ou
capacidade ativa e natural do seu criador, razo pela qual a lei (CC, art. 968) no
exige a declarao de prazo para a existncia da firma individual.463 Segundo esse
critrio, o tempo de durao das empresas pode ser:
1) empresa por prazo indeterminado: quando a sociedade empresria ou EIRELI
constituda sem prazo certo para ser dissolvida e extinta, de modo que sua durao
depender de ato de vontade dos scios, do falecimento destes ou de dissoluo
judicial, litigiosa ou falimentar;
2) empresa por prazo determinado: ocorre no caso da sociedade empresria ou
EIRELI ser constituda com prazo certo de existncia, devendo iniciar o processo
de dissoluo no implemento do tempo, aps esgotado o objeto que justificou a sua
criao,464 ou de condio estipulada no contrato ou estatuto social (Lei 6.404/1976,
art. 206; CC, art. 1.033).

j) Nacionalidade Principalmente, hoje, no mundo globalizado, cada vez mais


internacional e sem fronteiras, as empresas ficam sujeitas a regimes jurdicos e
jurisdies distintas, de acordo com as leis do pas em que foram constitudas e dos
pases em que atuam e exercem atividade econmica. Conforme a nacionalidade, as
empresas podem ser assim classificadas:
1) empresa brasileira de capital nacional: pode ser assim considerada a empresa
criada sob as leis brasileiras, com registro na Junta Comercial, tendo todos os seus
462

No caso da estabilidade do vnculo entre a sociedade e seus scios, estas podem ser classificadas,
segundo Fbio Ulhoa Coelho, em sociedades empresrias de vnculo estvel e sociedades
empresrias de vnculo instvel, dependendo da possibilidade do scio desligar-se da sociedade, a
qualquer tempo, por sua livre e espontnea vontade. A sociedade ser de vnculo estvel quando o
direito de retirada ou de recesso seja de carter excepcional, somente admitido em determinadas
situaes legalmente previstas (Lei 6.404/1976, art. 137). Ser de vnculo instvel a sociedade quando
o scio possa se retirar a sociedade a qualquer tempo mediante o reembolso de seu capital. (Curso
de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 45-46).
463 No caso da empresa individual de responsabilidade limitada EIRELI, por ser um tipo diferente,
equiparado pessoa jurdica (CC, art. 44, inciso VI), mais prximo da sociedade unipessoal, e como o
art. 980-A, 6 do Cdigo Civil prescreve que se aplicam a elas, no que couber, as regras previstas
para as sociedades limitadas, o ato constitutivo deve declarar o prazo de durao: Instruo
Normativa DREI n 10/2013, do Departamento de Registro de Empresas e Integrao - Anexo V
Manual de Registro da EIRELI - 1.2.20 - Prazo de durao da empresa - Dever ser indicada a data de
trmino do prazo da EIRELI, quando o mesmo for determinado, ou declarado que o prazo
indeterminado.
464 Como exemplo desse tipo diferenciado, Egberto Lacerda Teixeira considerava sub-espcie da
sociedade por prazo determinado aquela constituda para fim ou obra certa, que entra em dissoluo,
pleno jure, com o trmino da empresa ou operao projetada, tal como ocorre, hoje, nas sociedades
de propsito especfico - SPE (Das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada,
atualizado por Syllas Tozzini e Renato Berger, So Paulo, Quartier Latin, 2 edio, 2007, p. 359).

Teoria crtica da empresa

229

Ivanildo Figueiredo

acionistas ou scios controladores residentes e domiciliados no Brasil, sem


qualquer ingerncia ou influncia administrativa originria de outra pessoa fsica ou
jurdica estrangeira;465
2) empresa brasileira: a sociedade criada sob as leis brasileiras, com registro na
Junta Comercial de um Estado da Federao, que tenha sede e administrao
situada no Brasil (CC, art. 1.126),466 com acionistas controladores ou scios
majoritrios residentes no pas ou no estrangeiro, ainda que seu capital de controle
esteja situado em outro pas;
3) empresa estrangeira: a empresa constituda sob as leis de pas estrangeiro, cujos
acionistas ou controladores sejam residentes ou domiciliados no exterior, e que atue
no Brasil atravs de estabelecimento filial, escritrio ou agncia, sob regime de
autorizao do Governo Federal (CC, art. 1.134).

k) Territorialidade Tal critrio refere-se amplitude ou mbito de atuao da


empresa, se reservada ao mercado local, se desempenha atividade no mercado
nacional ou de alcance internacional. A anlise desse critrio pode ser relevante, no
mbito interno, para avaliao do atendimento da empresa funo social relacionada
a uma coletividade, em especial em situao de crise, que justifique a concesso de
recuperao judicial (Lei 11.101/2005), assim como para vinculao a regimes
tributrios nacionais, estaduais e municipais; no que se refere s operaes de
empresas transnacionais, esse critrio determinante para definir o regime jurdico e
foro aplicveis:
1) empresa local ou municipal: empresa cuja atuao restrita a determinado bairro,
localidade ou municpio, situao geralmente circunscrita s micro e pequenas
empresas e s firmas individuais;
2) empresa estadual: empresa que realiza operaes e negcios no mbito de todo
o Estado em que foi constituda e centraliza os seus negcios, e que mantm

465

A redao original da Constituio Federal de 1988, assim estabelecia a diferena entre empresa
brasileira e empresa brasileira de capital nacional: Art. 171. So consideradas: I - empresa brasileira
a constituda sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administrao no Pas; II - empresa
brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em carter permanente sob a
titularidade direta ou indireta de pessoas fsicas domiciliadas e residentes no Pas ou de entidades de
direito pblico interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu
capital votante e o exerccio, de fato e de direito, do poder decisrio para gerir suas atividades. No
obstante esse dispositivo tenha sido totalmente revogado pela Emenda Constitucional n 6, de 1995, o
Cdigo Civil de 2002 manteve essa diferenciao: Art. 1.126. nacional a sociedade organizada de
conformidade com a lei brasileira e que tenha no Pas a sede de sua administrao.
466 Cdigo Civil de 2002, art. 1.126.

Teoria crtica da empresa

230

Ivanildo Figueiredo

relaes exclusivamente com consumidores ou outras empresas estaduais, atravs


de filiais localizadas em mais de um municpio;
3) empresa regional: compreende a empresa que possui matriz em um Estado e filiais
em outros Estados da Federao, mas com atuao limitada a determinada regio,
sem amplitude nacional;
4) empresa nacional: a empresa com atuao ampla em todo territrio nacional,
esteja sob controle originrio de grupo empresarial nacional ou estrangeiro, com
filiais, representao comercial ou rede de franquias em todos os Estados da
Federao, ou na maioria deles;
5) empresa brasileira transnacional: consiste na empresa de controle ou sociedade
holding constituda sob as leis brasileiras, controladas por acionistas ou scios
brasileiros, mas que atuam no mercado nacional e no mercado internacional, no
apenas em operaes comerciais de importao e exportao, mas controlando
empresas estrangeiras;
6) empresa estrangeira ou multinacional: compreende a empresa que tem a sua
sede, foro e acionistas controladores localizados em outro pas, atuante em vrios
mercados mundiais, e participa de negcios em territrio nacional atravs de filiais
ou agncias (CC, art. 1.134), ou, ainda, simplesmente, relaciona-se com as
empresas e consumidores nacionais como exportadora ou importadora de bens e
servios.

l) Emisso de valores mobilirios Conforme a possibilidade de emitir ttulos


para assim captar recursos de terceiros investidores nos mercados financeiro e de
capitais, essas empresas, que somente podem adotar a forma de sociedade annima,
classificam-se do seguinte modo (Lei 6.404/1976, art. 4):
1) companhia de capital fechado: a sociedade annima constituda com o capital
prprio dos seus acionistas fundadores e adquirentes de aes, sem oferta pblica
ao mercado;
2) companhia de capital aberto: caracteriza-se como a sociedade annima
autorizada a emitir aes e outros ttulos e valores mobilirios para oferta pblica
em bolsa de valores ou no mercado de balco,467 junto a bancos, instituies
financeiras e sociedades corretoras e distribuidoras de valores mobilirios.

467

A companhia poder emitir, alm de aes do capital social, partes beneficirias, debntures e bnus
de subscrio (Lei 6.404/1976, artigos 46, 52 e 75), bem como notas promissrias comerciais,
denominadas commercial paper (Instrues Normativas CVM 134/1990, 292/1998 e 480/2009).

Teoria crtica da empresa

231

Ivanildo Figueiredo

m) Relao de participao A relao de participao aquela que vincula


sociedades ligadas entre si, quando estas integrem o mesmo grupo empresarial. De
acordo com tal entendimento, as sociedades devem ser assim classificadas segundo
o grau de vinculao entre si, com base na participao dos seus scios ou acionistas
controladores:
1) sociedades coligadas: so as empresas que possuem vnculo ou relao comum
de controle, dentro de um mesmo grupo empresarial no convencional ou de fato,
sendo assim caracterizadas quando a sociedade controladora ou investidora tenha
influncia significativa (Lei 6.404/1976, art. 243, 1, com a redao da Lei
11.941/2009); por influncia significativa, antes da reforma legislativa de 2009,
consideravam-se coligadas as sociedades quando uma participa, com 10% (dez
por cento) ou mais, do capital da outra, sem control-la;468 de acordo com o
conceito do artigo 1.099 do Cdigo Civil de 2002, Diz-se coligada ou filiada a
sociedade de cujo capital outra sociedade participa com dez por cento ou mais, do
capital da outra, sem control-la.;
2) sociedade controladora ou holding: so controladoras ou holding as sociedades
que no exercem atividade industrial ou comercial, que servem apenas para deter
ttulos, aes ou quotas, de participao majoritria no capital de sociedades
subordinadas, coligadas ou subsidirias, vinculadas ao mesmo grupo econmico
ou empresarial;469
3) sociedade controlada ou subsidiria: conforme o art. 243, 2 da Lei 6.404/1976,
Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou
atravs de outras controladas, titular de direitos de scio que lhe assegurem, de
modo permanente, preponderncia nas deliberaes sociais e o poder de eleger a
maioria dos administradores.

n) Relao de concorrncia Na relao de concorrncia, as empresas


podem ser analisadas e classificadas de acordo com o seu modo de participao,
468

As relaes de coligao e controle, na opinio de Modesto Carvalhosa, caracterizam-se como


modalidades fenomenolgicas de concentrao empresarial em que as sociedades envolvidas
mantem sua identidade e, assim, sua personalidade jurdica e patrimnio individualizado, formando,
pela participao relevante no capital das sociedades envolvidas, um grupo societrio de fato, e, assim,
uma entidade econmica de relevncia jurdica. (Comentrios Lei de Sociedades Annimas, vol.
4, tomo 2, cit., p. 11-12).
469 Na lio de Alfredo Lamy Filho e Jos Luiz Bulhes Pedreira, a palavra holding forma do verbo
ingls to hold, que significa segurar, manter, deter ou possuir. Literalmente pode designar qualquer
sociedade que detm ou possui aes de outra, mas usualmente empregada no sentido de sociedade
controladora. (A Lei das S.A., cit., p. 77). Esclarece Modesto Carvalhosa que as holdings so
sociedades no operacionais que tm seu patrimnio composto de aes de outras companhias, e
so constitudas ou para o exerccio do poder de controle ou para participao relevante em outras
companhias, visando, nesse caso, constituir a coligao. (Comentrios Lei de Sociedades
Annimas, cit., p. 14).

Teoria crtica da empresa

232

Ivanildo Figueiredo

ativo ou passivo, no mercado, e essas relaes so objeto de regulao pela


legislao de defesa da concorrncia ou anti-truste, no mercado nacional (Lei
12.529/2011), ou internacional (Organizao Mundial do Comrcio WTO).
1) empresas concorrentes: so as empresas que atuam normal e naturalmente no
mercado, em um mesmo setor industrial, distribuidor ou comercial de bens ou de
prestao de servios, detentoras de marcas de produtos ou servios, competindo
diretamente entre si em determinada rea de mbito local, regional ou nacional, sob
a gide dos princpios da livre empresa e da livre concorrncia (CF, art. 170, caput
e IV);
2) empresa de posio dominante: aquela empresa ou grupo de empresas que
seja capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condies de mercado ou
quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, sendo que
este patamar percentual de dominao em mercado relevante poder ser alterado
pelo Conselho Administrativo de Defesa da Economia CADE, para setores
especficos da economia (Lei 12.529/2011, art. 36, 2);470 uma empresa que
exera posio dominante ser capaz de impor preos e condies de
comercializao de matrias primas e produtos finais, inclusive quando ofertados
ao mercado consumidor;
3) empresa monopolista: consiste na empresa que detm um mercado relevante de
bens e servios com carter de dominao exclusiva ou quase exclusiva,471 e que
estabelece, unilateralmente, as condies de produo, preos e venda dos
produtos e servios nesse mercado, desconsiderando, quase que inteiramente, as
empresas concorrentes e os consumidores;
4) truste ou cartel: compreende a reunio de empresas no vinculadas ao mesmo
controle que, inobstante sejam pessoas jurdicas distintas, integrantes de grupos
concorrentes, combinam, previamente, entre si, a diviso espacial de mercados ou
a fixao artificial de preos mnimos e mximos, para dominao desses mercados
ou para participao em licitaes pblicas.472
470

Considera Paula Forgioni que o agente econmico detentor de posio dominante no se restringe
s empresas e grupos empresariais formalmente considerados, abrangendo, nessa definio, os assim
denominados grupos de fato, porque estes incluem no apenas aqueles constitudos por sociedades
controladora e controlada, mas tambm refere-se a aglutinaes derivadas de comunho de interesses
contratual, ainda que no formalizada. (Os fundamentos do antitruste, cit., p. 281).
471 Para Calixto Salomo Filho, a teoria do monoplio no se aplica exclusivamente quelas empresas
que detm 100% do mercado, mas, tambm, quelas situaes em que um dos produtores detm
parcela substancial do mercado (por hiptese, mais de 50%) e seus concorrentes so todos
atomizados, de tal forma que nenhum deles tem qualquer influncia sobre o preo de mercado. Essas
situaes so, em linhas gerais, idnticas em suas consequncias ao monoplio stricto sensu. (Direito
concorrencial As estruturas, So Paulo, Malheiros, 3 edio, 2007, p. 144).
472 O cartel, segundo Paula Forgioni, caracteriza-se como sendo o acordo horizontal celebrado entre
empresas concorrentes (que atuam, pois, no mesmo mercado relevante geogrfico e material) e que
visam neutralizar a concorrncia existente entre elas. (Os fundamentos do antitruste, cit., p. 326).
Na Lei 12.529/2011, o cartel tipificado dentre as infraes da ordem econmica: Art. 36, 3 - I acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a) os preos de bens
ou servios ofertados individualmente; b) a produo ou a comercializao de uma quantidade restrita

Teoria crtica da empresa

233

Ivanildo Figueiredo

o) Origem do capital Essa classificao refere-se origem, privada ou


pblica, do capital aplicado nas empresas, por seus acionistas ou scios, derivando
desse critrio a submisso a regime jurdico diferenciado de propriedade, controle,
regulao e fiscalizao:
1) empresa privada: privada ser sempre a empresa em que o capital integralizado
exclusivamente particular, originrio de aplicaes financeiras e investimentos
originrios de pessoas privadas, fscas ou jurdicas;
2) empresa pblica: considera-se empresa pblica, para os efeitos legais, a empresa
constituda por lei, dotada de personalidade jurdica de direito privado, com
patrimnio prprio e capital exclusivo da Unio, criado por lei para a explorao de
atividade econmica que o Governo seja levado a exercer por fra de contingncia
ou de convenincia administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas
admitidas em direito. (Decreto-Lei 200/1967, art. 5, II);
3) sociedade de economia mista: congrega a reunio de capital pblico e capital
privado, em que o poder pblico detm o controle da sociedade, sendo legalmente
definida como a entidade dotada de personalidade jurdica de direito privado, criada
por lei para a explorao de atividade econmica, sob a forma de sociedade
annima, cujas aes com direito a voto pertenam em sua maioria Unio ou a
entidade da Administrao Indireta. (Decreto-Lei 200/1967, art. 5, III; Lei
6.404/1976, arts. 235 a 240).

p) Objeto ou forma especial Considera-se de objeto ou finalidade especial


aquelas empresas que adotam ou seguem forma especfica determinada, definidas
ou reguladas pela legislao societria e outras normas prprias.
1) sociedade de propsito especfico (SPE): a sociedade, limitada ou annima,
constituda por tempo determinado para a execuo de um objeto especfico, que
automaticamente entrar em processo de dissoluo com o cumprimento do seu
objeto social, podendo assumir caractersticas de consrcio entre empresas;473

ou limitada de bens ou a prestao de um nmero, volume ou frequncia restrita ou limitada de


servios; c) a diviso de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou servios,
mediante, dentre outros, a distribuio de clientes, fornecedores, regies ou perodos; d) preos,
condies, vantagens ou absteno em licitao pblica.
473 A sociedade de propsito especfico (SPE) est expressamente prevista na Lei 11.079/2004, que
regula as normas gerais para licitao e contratao de parceria pblico-privada (PPP) no mbito da
Administrao Pblica (art. 9), podendo adotar a forma de socidade limitada ou annima, inclusive
companhia aberta. A constituio de SPE tambm est prevista como meio de recuperao judicial que
pode ser implementado pela empresa em crise: Art. 50. Constituem meios de recuperao judicial,
observada a legislao pertinente a cada caso, dentre outros: (...) XVI constituio de sociedade de

Teoria crtica da empresa

234

Ivanildo Figueiredo

2) sociedade de garantia solidria (SGS): consiste em tipo especfico de sociedade


annima para participao de investidores, associados a micros e pequenos
empresrios, visando, especialmente, a concesso de garantias em suas
operaes;474
3) offshore: tipo de empresa constituda geralmente sob a espcie de sociedade
limitada, sediada em pas estrangeiro, geralmente nos chamados parasos fiscais;
tem como finalidade precpua servir como instrumento de planejamento fiscal,
eliso tributria e proteo patrimonial;475
4) joint venture: compreede um tipo especial de consrcio de sociedades para
realizao de investimentos produtivos ou financeiros, geralment resultante de
associao temporria entre empresas multinacionais ou transnacionais sediadas
em pases distintos;476
5) grupo de sociedades: o grupo de sociedades pode ser convencional ou legal,
quando estruturado e formalizado nos termos do art. 265 da Lei 6.404/1976, com
registro na Junta Comercial, ou grupo econmico no convencional ou de fato; no
grupo convencional, a sociedade controladora e suas controladas ficam obrigadas

propsito especfico para adjudicar, em pagamento dos crditos, os ativos do devedor. A Lei
Complementar 123/2006, a partir da redao da Lei Complementar 128/2008, incluiu a SPE como tipo
societrio de apoio s pequenas empresas: Art. 56. As microempresas ou as empresas de pequeno
porte podero realizar negcios de compra e venda de bens e servios para os mercados nacional e
internacional, por meio de sociedade de propsito especfico, nos termos e condies estabelecidos
pelo Poder Executivo federal.
474 A sociedade de garantia solidria foi criada pela Lei 9.841/1999, antigo Estatuto da Micro Empresa
e da Empresa de Pequeno Porte, assim caracterizada: Art. 25. autorizada a constituio de
Sociedade de Garantia Solidria, constituda sob a forma de sociedade annima, para a concesso de
garantia a seus scios participantes, mediante a celebrao de contratos. Pargrafo nico. A sociedade
de garantia solidria ser constituda de scios participantes e scios investidores: I - os scios
participantes sero, exclusivamente, microempresas e empresas de pequeno porte com, no mnimo,
dez participantes e participao mxima individual de dez por cento do capital social; II - os scios
investidores sero pessoas fsicas ou jurdicas, que efetuaro aporte de capital na sociedade, com o
objetivo exclusivo de auferir rendimentos, no podendo sua participao, em conjunto, exceder a
quarenta e nove por cento do capital social. Apesar da Lei 9.841/1999 ter sido revogada pela Lei
Complementar 123/2006, esta continua a fazer meno a esse tipo especial de sociedade como
possvel de ser constituda, tendo como objetivo social a defesa exclusiva dos interesses econmicos
das microempresas e empresas de pequeno porte (art. 3, 5).
475 No entendimento de Fbio Ulhoa Coelho as offshore companies so sociedades empresrias
constitudas e estabelecidas em pas estrangeiro. No so necessariamente fraudulentas, mas podem
servir, como todas as demais sociedades, de instrumento para fraudes ou abusos. (Curso de Direito
Comercial, vol. 2, cit. p. 68).
476 A tcnica de joint venture, esclarece U.W. Rasmussen, mais aplicvel nas estratgias de
transnacionalizao de grupos multinacionais, que tentam evitar os riscos polticos e econmicos de
investimentos em subsidirias ou filiais no exterior. (...) Empresas multinacionais participam com
investimentos intangveis e tangveis em empresas brasileiras e vice-versa, empresas brasileiras
participam em fuses com empresas estrangeiras em mercados ultramar. Por outro lado, as tcnicas
do joint venture servem a empresas holding e/ou grupos econmicos para executar estratgias de
horizontalizao, verticalizao, pr-integrao, retro-integrao e transnacionalizao. (Holdings e
joint ventures: uma anlise transnacional de consolidaes e fuses empresariais, So Paulo,
Aduaneiras, 1988, p. 131-132).

Teoria crtica da empresa

235

Ivanildo Figueiredo

a combinar recursos ou esforos para a realizao dos respectivos objetos, ou a


participar de atividades ou empreendimentos comuns.477
6) consrcio de sociedades: segundo o art. 278 da Lei 6.404/1976, as companhias
e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou no, podem constituir
consrcio para executar determinado empreendimento, de tal modo que o
consrcio representa uma associao acidental e temporria, em que as
sociedades consorciadas mantm, cada uma, a sua individualidade e
personalidade jurdica prpria;

Como pode ser aqui constatado, aps exaustiva e qui cansativa enumerao e definio dos tipos, subtipos e modalidades de empresas, o fenmeno
empresarial multifacetado, compreende formas diversas, modelos prprios,
especializados, apropriados e adaptados segundo cada modo de explorao da
atividade mercantil. Nesse contexto altamente diversificado, a normatividade
generalista do Cdigo Civil de 2002 no se enquadra. Pelo contrrio, dela diverge,
radicalmente. Com base na anlise dessa tipologia empresarial, vlido reconhecer
a absoluta incapacidade da legislao civilista para apreender e regular, em sua
amplitude, as formas e modalidades comerciais. A empresa genrica tratada pelo
Cdigo Civil no representa, sequer, sombra da empresa comercial no mundo real.
O Cdigo Civil define a forma bsica da empresa na figura do empresrio
individual (art. 966), e o seu exerccio pluripersonalizado atravs da sociedade
empresria (art. 982). Na concepo codificada, todavia, somente existiria e assim
seria reconhecida a empresa regular, isto , aquela que adquire essa condio a partir
da sua inscrio obrigatria no registro de empresas mercantis (art. 967). O Cdigo
de 2002 apenas se refere empresa irregular, ou seja, ao exerccio de atividade
econmica atravs de uma empresa sem registro na Junta Comercial, quando trata
da sociedade em comum (arts. 986 a 990). De acordo com o Cdigo Civil, a sociedade
em comum um tipo transitrio de relao societria, que se destina legalizao
posterior, quando do registro dos seus atos constitutivos. Todavia, no que tange ao

477

Na definio de Modesto Carvalhosa, o grupo de sociedades consiste no conjunto de companhias


sujeitas a um controle comum, que, mediante conveno formal, visam a concentrar, sob a direo
autnoma do grupo, a poltica de administrao, os fatores de produo, o patrimnio e os resultados
(lucros), mantendo cada uma das pactuantes a sua formal personalidade jurdica. (Comentrios Lei
de Sociedades Annimas, vol. 4, tomo 2, cit., p. 266).

Teoria crtica da empresa

236

Ivanildo Figueiredo

empresrio individual irregular, o Cdigo silente, omisso. Essa situao jurdica da


irregularidade do exerccio da empresa da mais alta relevncia na realidade
brasileira, considerando que a maioria das empresas brasileiras encontra-se em
situao irregular, fazendo parte da denominada economia informal.478
Para o Cdigo Civil, as atividades econmicas exercidas por milhes de
pequenos comerciantes, autnomos, ambulantes, feirantes, artesos e trabalhadores
por conta prpria, simplesmente no existem, no estando previstas em nenhum
dispositivo legal, nem que seja de carter sancionatrio ou para desqualificar os atos
jurdicos praticados atravs de empresas irregulares. Essa ausncia de disciplina
poderia ser atribuda considerao de que o direito empresarial somente se aplicaria
ao exerccio regular da empresa, enquanto as atividades econmicas irregulares
ficariam sujeitas s normas do direito civil, como se fossem praticadas por particulares.
Mas no bem assim, pois o comerciante irregular, o barraqueiro da praia, o dono da
peixaria no mercado popular, da banca de jornal, do bar da esquina, o feirante, tais
pessoas, na prtica, exercem atividade econmica. Elas realizam, no dia a dia, faa
chuva ou faa sol, a intermediao entre produtores, atacadistas e consumidores,
aproximam partes interessadas em realizar negcios, celebram contratos verbais,
exploram essa atividade habitualmente, com o intuito de ganhos que assegurem sua
sobrevivncia. E assim, ainda que na informalidade, essas pessoas deveriam ser
reconhecidas, pela lei, como sujeitos nas relaes jurdicas mercantis, merecedoras
de uma mnima proteo legal.

478 Segundo as estatsticas da Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - IBGE, no ano
de 2010 existiam, no Brasil, 5,1 milhes de empresas, entre comerciais, industriais e de servios, em
situao de regularidade formal (IBGE - Estatstica do Cadastro Central de Empresas CEMPRE; ftp://
ftp.ibge.gov.br/Economia_Cadastro_de_Empresas/2011/tabelas_pdf/tab1.pdf; 04/04/2014). Apenas na
rea urbana das mdias e grandes cidades e suas regies metropolitanas, o IBGE identificou, na ltima
pesquisa, aplicada ainda no ano de 2003, a presena de mais de 10 milhes de pequenas empresas
informais ou irregulares. (IBGE Pesquisa Economia Informal Urbana 2003, http://www.ibge.gov.br/
home/estatistica/economia/ecinf/2003/comentario.pdf; 18/09/2013). Ou seja, das aproximadamente 15
milhes de empresas brasileiras, dois teros delas so empresas irregulares, situam-se margem da
formalidade, mas desempenham atividade econmica da mesma maneira prtica que as empresas
regulares. Apesar da economia informal no representar, proporcionalmente, o mesmo volume de
negcios em termos de patrimnio e de circulao de riquezas, a sua importncia para a ocupao de
grande contingente populacional significativa, e deveria merecer uma regulao mnima, ao menos o
seu reconhecimento, pelo sistema de direito positivo, como atividade econmica, para efeitos,
principalmente, de incentivar e facilitar a sua incluso na economia formal.

Teoria crtica da empresa

237

Ivanildo Figueiredo

O Cdigo Civil de 2002, ao contrrio dos dados da realidade e da legislao


especfica, nada dispe sobre a diferenciao das empresas em razo do seu porte
econmico, disciplinando a empresa de modo amorfo, linear, uniforme, como se todas
as empresas fossem iguais, como se apenas importasse, juridicamente, a sua forma,
como firma individual ou sociedade empresria. Essa omisso revela, tambm sob
esse aspecto, a grande distncia entre o regime jurdico da empresa no Cdigo e a
realidade emprica da economia e das relaes empresariais.
No que se refere natureza da atividade e ao objeto da empresa, como visto
anteriormente, o Cdigo de 2002 adota a concepo artificiosa de ignorar a diferena
entre as empresas em razo da atividade econmica exercida. Ao contrrio da sua
norma matriz, o Cdigo italiano de 1942, o Cdigo Civil brasileiro no reconhece
qualquer distino entre empresas comerciais, industriais, de servios, extrativas,
bancrias ou de transporte, consideradas estas as principais atividades econmicas
mercantis. O nico conceito distintivo empregado pelo Cdigo Civil refere-se
empresa rural, como tipo especfico de exerccio de atividade econmica (art. 971).
A ausncia, no Cdigo Civil, dos demais critrios demarcadores das grandes e
inafastveis diferenas entre os diversos tipos de empresa, demonstra que seu regime
generalista no compatvel com os fatos da realidade econmica, com os usos e
costumes comerciais, com a prtica mercantil. Continuar sendo da competncia
normativa das leis comerciais extravagantes a determinao de regimes jurdicos
diferenciados que reconhecem a existncia, na prtica e nos usos mercantis, de tipos
distintos de empresas, para que a regulao de cada tipo de empresa observe as
peculiaridades inerentes espcie respectiva, e assim possa a disciplina jurdica ser
mais apropriada, especfica e compatvel diante das exigncias da realidade.
No direito italiano, como observado por Berardino Libonati, a empresa
comercial encontra-se bem definida, no tocante ao seu objeto, frente empresa
agrcola (Codice Civile, art. 2.135) e, mais recentemente, da empresa instrumental
(impresa strumentale), introduzida pelo Decreto Legislativo 153, de 1999, que consiste
em um tipo de sociedade no lucrativa, que difere da natureza comercial das demais
empresas pelas vantagens financeiras e fiscais que as beneficiam, como entidades

Teoria crtica da empresa

238

Ivanildo Figueiredo

quase altrustas.479 O carter lucrativo, portanto, alm do objeto, sempre demarcou a


natureza comercial das sociedades no ambiente de mercado, aspecto diferencial que
foi propositadamente excludo pelo regime neutral do Cdigo Civil de 2002.
Tal ausncia de definio na tipologia e caracterizao da empresa, bem como
diante da falta de estatsticas confiveis, vem provocando, inclusive, certa disperso
na doutrina, quando esta vem a recusar relevncia econmica para as atividades
desempenhadas pelos empresrios individuais, como na opinio, por exemplo, de
Fbio Ulhoa Coelho.480 Sem embargo, apesar de no haver representao mais
significativa na contribuio para o Produto Interno Bruto do Brasil, da ordem de cerca
de 25 %, ou um quarto do PIB, de acordo com as estatsticas do Servio Brasileiro de
Apoio s Micro e Pequenas Empresas SEBRAE, com base nos censos econmicos
do IBGE,481 os empresrios ou firmas individuais, organizados sob a forma de micros
e pequenas empresas, constituem, segundo as ltimas estatsticas do Departamento
Nacional do Registro do Comrcio DNRC, quase a metade das empresas brasileiras
regulares ou formais.482
As firmas individuais, portanto, diante dessa representatividade, no exercem,
apenas, atividades ou negcios rudimentares e marginais, como assim percebidas,
restritivamente, por Fbio Ulhoa Coelho,483 mas devem ser consideradas, na verdade,
como agentes econmicos que, no seu amplo conjunto e devido sua penetrao e
capilaridade, contribuem, de modo efetivo, para a subsistncia de grande parte da
populao e para a circulao real das mercadorias na ponta das relaes de
consumo, especialmente nos municpios, cidades e vilas mais distantes, no interior,
no serto, nos rios da Amaznia, onde as grandes empresas no chegam.
479

Berardino Libonati, Diritto Commerciale Impresa e societ, Milano, Giuffr, 2005, p. 13/14.
No se tratar, seno em pouqussimas passagens, do exercente individual da atividade econmica
de produo ou circulao de bens ou servios, porque esta figura, na verdade, no possui presena
relevante na economia. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 79).
481 BRASIL, Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas SEBRAE - Unidade de
Gesto Estratgica UGE, Participao das Micro e Pequenas Empresas na Economia Brasileira,
Braslia, Julho 2014.
482 BRASIL, Departamento Nacional do Registro do Comrcio (DNRC) Constituio de empresas
por tipo jurdico Brasil 1985-2005, http://www.dnrc.gov.br, 23/10/2012.
483 Aos empresrios individuais sobram os negcios rudimentares e marginais, muitas vezes
ambulantes. Dedicam-se a atividades como varejo de produtos estrangeiros adquiridos em zonas
francas (sacoleiros), confeco de bijuterias, de doces para restaurantes e bufs, quiosques de
miudezas em locais pblicos, bancas de frutas ou pastelarias em feiras semanais, etc. (Manual de
Direito Comercial, So Paulo, Saraiva, 23 edio, 2011, p. 39).
480

Teoria crtica da empresa

239

Ivanildo Figueiredo

4.6. Transformao da empresa

No direito positivo brasileiro, a transformao sempre consistiu em operao


relacionada, exclusivamente, mudana de tipo societrio, tal como definido na Lei
das Sociedades Annimas (Lei 6.404/1976, art. 220).484
Considera Modesto Carvalhosa que a faculdade legal da transformao
atende a dois princpios fundamentais, quais sejam, o da liberdade contratual e o da
segurana jurdica dos scios quanto s bases do contrato social que firmaram.485
Nesse sentido, os scios tem a liberdade de transformar o tipo societrio adotado, de
acordo com as suas convenincias e interesses, ressalvados os casos das
companhias abertas, que se encontram sujeitas a outras regras de limitao
relacionadas com a proteo dos investidores e dos acionistas minoritrios.486 Para a
doutrina italiana, a transformao determinante de simples mutao na forma
jurdica da sociedade.487 A transformao, objetivamente, para Fbio Ulhoa Coelho,
consiste na mudana do tipo da sociedade empresria.488 O Cdigo Civil de 2002,
do mesmo modo, somente refere-se transformao como ato societrio.489
A transformao, regra geral, compreende a operao societria pela qual uma
sociedade annima muda de tipo jurdico para sociedade limitada, ou vice-versa, de
sociedade limitada para companhia.490 Em toda e qualquer hiptese, a transformao

484

Lei 6.404/1976 Art. 220. A transformao a operao pela qual a sociedade passa,
independentemente de dissoluo e liquidao, de um tipo para outro. Pargrafo nico. A
transformao obedecer aos preceitos que regulam a constituio e o registro do tipo a ser adotado
pela sociedade.
485 Modesto Carvalhosa, Comentrios Lei de Sociedades Annimas, So Paulo, Saraiva, 4 edio,
vol. 4, tomo I, 2002, p. 183.
486 Lei 6.404/1976, Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos
praticados com abuso de poder. 1 So modalidades de exerccio abusivo de poder: (...); c) promover
alterao estatutria, emisso de valores mobilirios ou adoo de polticas ou decises que no
tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuzo a acionistas minoritrios, aos que
trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobilirios emitidos pela companhia;
487 Flavio Dezzani, Piero Pisoni e Luigi Puddu, Fusioni, scissioni, trasformazioni e conferimenti,
Milano, Giuffr, 1995, p. 505.
488 Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 512.
489 Cdigo Civil Art. 1.113. O ato de transformao independe de dissoluo ou liquidao da
sociedade, e obedecer aos preceitos reguladores da constituio e inscrio prprios do tipo em que
vai converter-se.
490 Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 512.

Teoria crtica da empresa

240

Ivanildo Figueiredo

no altera a pessoa jurdica como pessoa de direito, como ente coletivo, nos seus
aspectos fundamentais, em especial quanto ao requisito da pluripessoalidade. No
alterava, vez que essa base tradicional veio a ser conceitual e dogmaticamente
subvertida pela Lei Complementar 128/2008.
A Lei Complementar 128/2008 teve como finalidade atualizar o regime jurdico
da microempresa e da empresa de pequeno porte, regulado na Lei Complementar
123/2006. Todavia, ainda que sendo assunto de interesse correlato s empresas
menores, a Lei Complementar 128/2008 modificou os artigos 968 e 1.033 Cdigo Civil,
para possibilitar a converso da firma individual em sociedade empresria e viceversa, de sociedade empresria em firma individual.491 Essa converso representa, na
verdade, nova hiptese de transformao lato sensu, e no apenas simplificao de
procedimento de registro na junta comercial, para que a empresa possa aproveitar o
nmero de inscrio no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurdicas).492
Com efeito, foi incorporado ao art. 968 do Cdigo Civil, que trata da inscrio
do empresrio individual no registro de empresas, um pargrafo terceiro, de espectro
bem mais abrangente. De acordo com a remisso expressa aos artigos 1.113 a 1.115
do Cdigo Civil, que se referem ao ato de transformao em si, essa converso da
forma da empresa, de firma individual para sociedade empresria, resulta de
491

Cdigo Civil Art. 968. A inscrio do empresrio far-se- mediante requerimento que contenha:
(...) 3. Caso venha a admitir scios, o empresrio individual poder solicitar ao Registro Pblico de
Empresas Mercantis a transformao de seu registro de empresrio para registro de sociedade
empresria, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 deste Cdigo. Art. 1.033.
Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (...) IV - a falta de pluralidade de scios, no reconstituda no
prazo de cento e oitenta dias; (...) Pargrafo nico. No se aplica o disposto no inciso IV caso o scio
remanescente, inclusive na hiptese de concentrao de todas as cotas da sociedade sob sua
titularidade, requeira no Registro Pblico de Empresas Mercantis a transformao do registro da
sociedade para empresrio individual, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115
deste Cdigo.
492 Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, no caso dos artigos 968 e 1.033 do Cdigo Civil, a partir da
redao da Lei Complementar 128/2008, a lei apenas est garantindo a simplificao dos
procedimentos administrativos e fiscais, ao permitir que o empresrio individual aproveite seu CNPJ na
sociedade que constitui com seus scios. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 513). No mesmo
equvoco conceitural e metodolgico incorrem as teses discutidas nas Jornadas de Direito Civil do
Conselho da Justia Federal: o Enunciado 465 igualmente diferenciou a transformao de registro da
transformao societria: A transformao de registro prevista no art. 968, 3, e no art. 1.033,
pargrafo nico, do Cdigo Civil no se confunde com a figura da transformao de pessoa jurdica.
O Enunciado 483 tambm refere-se operao de transformao de registro, admitindo, inclusive,
contraditoriamente ao esprito das companhias, classificadas como sociedades de capital e
institucionais, e no de pessoas e contratuais, a converso de sociedade annima em empresa
individual: Admite-se a transformao do registro da sociedade annima, na hiptese do art. 206, I, d,
da Lei n 6.404/1976, em empresrio individual ou e mpresa individual de responsabilidade limitada.

Teoria crtica da empresa

241

Ivanildo Figueiredo

modificao na estrutura do capital e no controle da empresa, em razo do nmero


de pessoas que contribuem para sua formao e, consequentemente, para a prpria
direo dos negcios empresariais. Essa converso depende, pois, da admisso de
uma ou mais pessoas, fsicas ou jurdicas, que passaro a dividir com o empresrio
individual a participao no capital e nos poderes resultantes desse investimento, na
condio de scios.
No sentido reverso, da transformao de sociedade para firma individual, o
artigo 1.033 do Cdigo Civil de 2002 passou a admitir, a partir da Lei Complementar
128/2008, que a falta de pluralidade de scios no importa, mais, em dissoluo
societria, caso a pluripessoalidade no venha a ser reconstituda no prazo legal, de
180 dias.
Nesse contexto, o conceito de transformao deve ser estendido ou dilatado,
para compreender, tambm, a transformao da empresa em sentido amplo. A
transformao deve passar a ser entendida como negcio jurdico empresarial, mais
amplo que a mera operao societria, cabendo afastar, portanto, sua referncia
como procedimento estritamente registral. De acordo com essa acepo mais ampla,
a Instruo Normativa 10/2014, do Departamento de Registro Empresarial e
Integrao DREI, sucessor do Departamento Nacional do Registro do Comrcio
DNRC,493 intrprete regulamentador desse novo procedimento de converso do tipo
de empresa no mbito do registro mercantil, dispe que a transformao de registro
a operao pela qual a sociedade, a empresa individual de responsabilidade
limitada ou o empresrio individual altera o tipo jurdico, sem sofrer dissoluo ou
liquidao, obedecidas as normas reguladoras da constituio e do registro da nova
forma a ser adotada.
O ato jurdico de transformao no fica mais resumido ou restrito a uma
operao societria, como assim a lei definiu por anos, mas passa a abranger a
converso da forma da empresa, de firma individual ou EIRELI para sociedade

493

BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integrao DREI, Instruo Normativa 10/2014,


item 2.3.11.1.

Teoria crtica da empresa

242

Ivanildo Figueiredo

comercial, bem como no sentido oposto, de sociedade contratual para empresa


individual.
A transformao, portanto, no pode mais ser considerada, sem embargo,
restrita ou exclusivamente, uma operao societria, apesar das incisivas e bem
formuladas opinies doutrinrias.494 Vale ressaltar que o registro apenas
consequncia formal do ato ou negcio jurdico anterior, e serve para legalizar e
publicizar o ato em si (Lei 8.934/1994, art. 1).495 A operao empresarial ou societria
ato anterior, precedente, validamente celebrado. O registro confere, como
procedimento complementar, publicidade e efeitos erga omnes aos atos submetidos
ao seu sistema de controle da legalidade e de publicidade, para validade perante
terceiros. O ato de registro, portanto, apesar de inerente e necessrio eficcia e
publicidade do processo de transformao,496 no compreende ou abrange o contedo
volitivo mutacional do ato jurdico em si e por si, e com este no se confunde.
A Lei Complementar 128/2008, apesar de dispor sobre a nova redao aos
artigos 968 e 1.033 do Cdigo Civil, referindo-se transformao do registro de
empresrio individual para sociedade e de sociedade para empresrio individual, trata
do ato formal subsequente, perante a Junta Comercial, sem contudo desconsiderar o
ato jurdico precedente ao registro, o ato material declaratrio da vontade do

494

Na opinio de Alfredo de Assis Gonalves Neto, no existe, na mudana de forma da empresa


prevista no art. 968, 3 do Cdigo Civil, minimamente, uma operao de transformao, isto porque
a transformao apenas diz respeito a tipo societrio e no a registro; e, no caso, est-se diante de
empresrio individual e no de sociedade. Esse procedimento ele denomina de convolao da figura
do empresrio para sociedade empresria. (Direito de empresa, cit., p. 84). Para Erasmo Valado
Azevedo e Novaes Frana e Marcelo Vieira Von Adamek, analisando a hiptese no caso da empresa
individual de responsabilidade limitada Eireli, considerada esta como subtipo da sociedade limitada,
tecnicamente no h mudana do tipo societrio e, portanto, no h propriamente transformao de
sociedade. No caracterizaria, ainda, transformao, a constituio de Eireli por meio da conferncia
ao capital social de bens, inclusive o estabelecimento inteiro, do empresrio individual, existindo, a,
constituio (originria) da Eireli. A converso de Eireli em empresrio individual tambm no se daria
atravs de transformao, mas sim como dissoluo por distrato. (Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada (Lei n 12.441/2011) Anotaes, em Luis Andr N. de Moura Azevedo
e Rodrigo R. Monteiro de Castro, Coordenadores, Sociedade Limitada Contempornea, So Paulo,
Quartier Latin, 2013, p. 64-65).
495 Lei 8.934/1994 Art. 1. O Registro Pblico de Empresas Mercantis e Atividades Afins, subordinado
s normas gerais prescritas nesta lei, ser exercido em todo o territrio nacional, de forma sistmica,
por rgos federais e estaduais, com as seguintes finalidades: I - dar garantia, publicidade,
autenticidade, segurana e eficcia aos atos jurdicos das empresas mercantis, submetidos a registro
na forma desta lei.
496 Lei 6.404/1976, art. 220, pargrafo nico.

Teoria crtica da empresa

243

Ivanildo Figueiredo

empresrio individual ou dos acionistas ou scios da sociedade, que decidiram alterar


a forma da empresa ou seu tipo societrio.
O ato de registro somente poder ser equiparado transformao se o ato
jurdico precedente contiver todos os elementos de vontade e de forma autorizativos
da sua celebrao, representados e expressos em uma ata de assembleia de
acionistas,497 de reunio do conselho de administrao, de diretoria ou de scios,498
em protocolos e outros documentos, que justifiquem o contedo das deliberaes
colegiadas ou da manifestao unilateral do empresrio individual. Portanto, o
documento apresentado a registro no se confunde com o contedo volitivo
autorizativo da transformao da empresa em si, na medida em que expressa e
demonstra a existncia de um ato antecedente, mas no do seu resultado no plano
da eficcia, o qual depende da regularidade jurdica do ato precedente de
manifestao de vontade dos scios, acionistas ou do empresrio individual.
A transformao, a partir dessa mudana radical operada no Cdigo Civil de
2002 pela Lei Complementar 128/2008, deve ser definida tambm como alterao do
tipo de empresa, e no apenas da espcie societria, passando a congregar duas
modalidades distintas:
Forma da empresa (CC, arts. 968 e 1.033)
Transformao
Tipo societrio (CC, art. 1.113; Lei 6.404/1976, art. 220)

A regulamentao infralegal, constante das instrues normativas do DREI,


rgo que substituiu o DNRC, adotam o conceito de transformao nesse duplo
sentido, como transformao de registro ou forma da empresa, e como transformao
societria.499 Deixando de lado o preciosismo tecnicista, em ambas as operaes,
foroso reconhecer, ocorre uma transformao jurdica, envolvendo a forma ou tipo

497

Lei 6.404/1976, art. 122, VIII.


Cdigo Civil de 2002, arts. 1.072 e 1.114.
499 Instruo Normativa DREI 10/2014, Manual de Registro da Sociedade Limitada item 3.3 Transformao, incorporao, fuso e ciso de sociedades empresrias; item 3.9 - Transformao de
sociedade empresria em empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI ou em empresrio
individual. Segundo essa Instruo Normativa, a transformao pode decorrer tanto de ato de
converso ou mutao jurdica do tipo societrio, como da forma da empresa, de sociedade para
empresa individual.
498

Teoria crtica da empresa

244

Ivanildo Figueiredo

da empresa ou da pessoa jurdica, a situao patrimonial, do nome empresarial, da


responsabilidade do empresrio e scios, enfim, uma srie de mutaes que alteram
a morfologia e o enquadramento legal da empresa.
Segundo o regime original do Cdigo Civil de 2002, a perda do requisito da
pluripessoalidade, permanecendo esse estado por 180 dias ou seis meses, implicava
no incio obrigatrio do processo de dissoluo societria, para fins de liquidao e
consequente extino da sociedade. Assim tambm j era previsto para o caso da
sociedade annima, que seria dissolvida de pleno direito caso a pluripessoalidade no
fosse reconstituda no prazo de um ano, at a assembleia geral ordinria seguinte
que constatou a existncia de um nico acionista.500
Com efeito, o requisito da pluripessoalidade sempre foi necessrio e inafastvel
para a constituio de qualquer ente corporativo ou sociedade no direito positivo
brasileiro, salvo raras excees, como nos casos de subsidiria integral501 e da
empresa pblica.502 Todavia, a partir desse novo critrio ou parmetro decorrente da
Lei Complementar 128/2008, a pluripessoalidade passou a ser pressuposto acidental,
passageiro, no constituindo mais causa para a extino da empresa, e sim efeito
transitrio, como rito de passagem para outro estado formal.
Essa modificao no regime empresarial brasileiro deve ser recebida como
altamente vlida, meritria e benfica. Sem embargo, restringir a transformao
apenas aos tipos societrios, como apregoado pela doutrina tradicional a partir da
dogmtica at ento vigente, representa limitao formal que dificulta a flexibilidade
necessria e inerente aos negcios empresariais. Assim, por exemplo, o direito
positivo brasileiro jamais admitiu a evoluo natural da firma individual para a

500

Lei 6.404/1966 Art. 206. Dissolve-se a companhia: I - de pleno direito: (...) d) pela existncia de 1
(um) nico acionista, verificada em assemblia-geral ordinria, se o mnimo de 2 (dois) no for
reconstitudo at do ano seguinte, ressalvado o disposto no artigo 251;
501 Lei 6.404/1976, Art. 251. A companhia pode ser constituda, mediante escritura pblica, tendo como
nico acionista sociedade brasileira.
502 Decreto-Lei 200/1967, Art. 5 - II Empresa Pblica - a entidade dotada de personalidade jurdica
de direito privado, com patrimnio prprio e capital exclusivo da Unio, criado por lei para a explorao
de atividade econmica que o Govrno seja levado a exercer por fora de contingncia ou de
convenincia administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em
direito. (Redao do Decreto-Lei n 900, de 1969).

Teoria crtica da empresa

245

Ivanildo Figueiredo

sociedade por quotas, e vice-versa, da sociedade limitada reduzida a um nico scio


para a empresa individual.
De acordo com a concepo corrente e dominante, at ento adotada no direito
positivo brasileiro, a sociedade unipessoal ou reduzida a um nico scio deveria ser
extinta, com a baixa ou cancelamento do seu registro na Junta Comercial para, a partir
de ento, o scio remanescente recomear da estaca zero, e assim viabilizar a
constituio de nova empresa, como firma individual, sem qualquer relao jurdicoformal com a empresa extinta.
Todavia, independentemente da forma da empresa, a expresso ou
representao exterior do estabelecimento aquela que realmente importa, porque
dessa representao depende a execuo dos seus negcios, do seu objeto
mercantil. Muito mais importante e relevante para o empresrio so suas operaes,
a execuo do objeto da empresa, suas metas ou perspectivas de faturamento, as
relaes contratuais com a clientela e fornecedores, o fluxo de caixa, o regime
tributrio e trabalhista, as implicaes jurdicas resultantes dessas relaes.
A jurisprudncia, aos poucos, comea a reconhecer a aplicar tal conceito
diferenciado e extrair as concluses sobre a incidncia desse novo regime jurdico,
ainda vinculado definio legal de transformao do registro, e no da
transformao ou mutao do estado jurdico em si.503
A forma da empresa, sua fattispecie jurdica, aquela definida pelo empresrio
ou seus scios como mais de acordo ou em conformidade com seus interesses e com
as estipulaes determinantes para o exerccio da empresa e para o retorno dos
investimentos. No entanto, por fora, tambm, do regime tributrio, que interfere,
dominante e abusivamente, na configurao da empresa na realidade brasileira, a
503

Dissoluo parcial de sociedade. Ao de retirada de scio cumulada com apurao de haveres.


Ausncia de controvrsia quanto ao direito de retirada do scio. Divergncia que se limita ao valor
apurado a ttulo de haveres e possibilidade de converso da sociedade unipessoal em empresa
individual. Laudo pericial bem elaborado que merece ser prestigiado. Pluralidade de scios que deve
ser recomposta no prazo de 180 dias, ou converso do tipo societrio. Pargrafo nico do artigo 1.033
do Cdigo Civil que permite a transformao do registro da sociedade para empresa individual ou para
Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, desde que respeitado o prazo de 180 dias. Recurso
parcialmente provido. (Tribunal de Justia do Estado de So Paulo TJSP, 1 Cmara Reservada de
Direito Empresarial, Apelao Cvel n 0000615-90.2012.8.26.0447; Comarca: Bragana Paulista;
Relator: Desembargador Francisco Loureiro, DJe 22/03/2014).

Teoria crtica da empresa

246

Ivanildo Figueiredo

forma da empresa e do tipo societrio passam a ser determinantes para o


planejamento fiscal e para o equilbrio financeiro da organizao.
A forma da empresa, se firma individual, EIRELI, sociedade limitada ou
annima, representa aspecto que interessa bem mais ao empresrio, aos credores e
investidores, e raramente revela-se elemento decisor ou essencial realizao de
negcios pelos principais protagonistas do mercado: os clientes e consumidores.

4.7. A empresa individual de responsabilidade limitada

Por sculos, desde os primrdios do comrcio, o exerccio de atividade


comercial isolada, sem o concurso de scios, parceiros ou terceiros investidores,
sempre foi quantitativamente dominante, relacionada figura do comerciante
individual. O comerciante individual tinha sua atividade juridicamente regrada em
disposies legais que bem o definiam e caracterizavam, mas eram omissas quanto
extenso e limites da sua responsabilidade.
O Cdigo Comercial de 1850, por exemplo, pouco ou quase nada tratava a
respeito da responsabilidade do comerciante individual, mas apenas dos scios na
sociedade comercial.504 A omisso da lei resultava da ideia, aparentemente bvia,
elementar, de que o devedor responde pela integralidade das suas dvidas, e sendo o
comerciante individual uma pessoa natural, desprovido do anteparo fictcio da pessoa
jurdica, o seu patrimnio particular e familiar sempre restaria exposto, alcanvel
como garantia dos credores.

504

O Cdigo Comercial de 1850 adotava como pressuposto lgico que a responsabilidade do scio era
pessoal e, por isso mesmo, ilimitada: Art. 329. As obrigaes dos scios comeam da data do contrato,
ou da poca nele designada; e acabam depois que, dissolvida a sociedade, se acham satisfeitas e
extintas todas as responsabilidades sociais. Carvalho de Mendona observara que o Cdigo de 1850
sequer reconhecia as sociedades comerciais como pessoas jurdicas, para efeitos de separao
patrimonial: Os legisladores de 1850, no tendo a concepo das pessoas jurdicas, como atualmente
a estabelece a doutrina, no podiam assim considerar as sociedades de comrcio. Nenhum artigo do
Cdigo lhes reconheceu a personalidade; ao contrrio, parece que muitos a contestam. (Vejam-se,
para exemplos, os textos dos arts. 313 e 315). (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. III, Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 5 edio, 1954, p. 80-81).

Teoria crtica da empresa

247

Ivanildo Figueiredo

Sem embargo, a responsabilidade do comerciante individual perante terceiros,


fornecedores, banqueiros, clientes, empregados, sempre teve como pressuposto sua
honorabilidade pessoal, o nome e o sobrenome de famlia, sob critrios e aspectos
personalssimos.505 E estando vinculado sua pessoa, o nome do comerciante
respondia pelas obrigaes do seu negcio, em carter total, amplo e ilimitado.
Sendo ilimitada a responsabilidade do comerciante tradicional por dvidas da
sua casa de comrcio, no existia separao patrimonial absoluta entre seus bens
particulares e as dvidas decorrentes da atividade mercantil explorada. No caso de
insolvncia do negcio, os credores executavam os bens particulares do comerciante
e de sua famlia, que ficava, assim, exposta runa.
A limitao da responsabilidade foi criao da experincia societria, como
frmula legislativa inventada e adotada em determinado momento histrico para atrair
pessoas interessadas em investir dinheiro em atividades especulativas, sem o risco
de alcance ou execuo do seu patrimnio particular pelos credores.506 O nico perigo
assumido por esses investidores consistia no prprio risco, na lea comercial, de
perder o dinheiro aplicado, mas preservando ntegro seu patrimnio pessoal.
Na lio de Waldemar Ferreira, a sociedade em comandita, que tem sua origem
histrica no contrato de comenda martima da poca dos gregos e fencios, na era da

505

A propsito do conceito e da reputao pessoal do comerciante, Waldemar Ferreira assinalava:


Quando, observou-se, com alguma justeza, o comerciante instala seu estabelecimento, e prospera,
passa a gozar de certo crdito, ou seja da confiana testemunhada pelos que o cercam ou nele se
afreguesam. Obtida por habilidade, ou por efeito da simpatia pessoal, que provoque, ela resulta da
qualidade das mercadorias e das condies por via das quais o comerciante as fornece, ao inteiro sabor
dos fregueses. De gratuita, essa confiana, acrescenta o monografista, se torna fundada e se converte,
naturalmente, na reputao do comerciante e do seu estabelecimento, que lhe vale e lhe assegura a
freguesia. Aumenta, transpe os limites da cidade ou da regio. E essa reputao, que lhe vale o
crdito, ter ele adquirido merc do nome ou da designao, empregada nas suas obrigaes e que
se tornou a expresso da sua personalidade civil. (Tratado de Direito Comercial, vol. 2, O Estatuto
do Comerciante, So Paulo, Saraiva, 1960, p. 66).
506 Ao investigar a origem do regime da limitao da responsabilidade dos scios, Walfrido Jorge Warde
Junior discorre sobre a societas, no direito romano, tendo como origens o ercto non cito, ou consortium
entre irmos, passando pelas societates unius alicuius negotii e pelas societas publicanorum e tambm
pelas societas argentaria. Analisando as caractersticas e natureza dos direitos patrimoniais dos scios
que participavam de uma sociedade, o autor entende plausvel sustentar que a limitao da
responsabilidade dos membros da societas romana fundava-se em sua condio de credores dos
resultados eventuais da empresa, ao passo que, inversamente, a ilimitao da responsabilidade
decorria da natureza real dos direitos de um ou vrios scios sobre o patrimnio destinado atividade
e os resultados dela decorrentes. (Responsabilidade dos scios A crise da limitao e a teoria
da desconsiderao da personalidade jurdica, Belo Horizonte, Del Rey, 2007, p. 18-19; 24; 27; 47).

Teoria crtica da empresa

248

Ivanildo Figueiredo

antiguidade clssica (entre V a.C e II d.C), representou o primeiro modelo de limitao


da responsabilidade do scio de capital ou investidor, denominado comanditrio,
porque este no exercia qualquer atividade ou funo comercial, sendo ele, apenas,
o destinatrio dos resultados econmicos da explorao.507
A partir do sculo XIV, empresas maiores passaram a adotar a forma societria
da comandita, adquirindo a sociedade personalidade prpria, ficando assim limitada a
responsabilidade do scio capitalista.508 Todavia, nessa fase originria, a instituio
da limitao da responsabilidade dos scios investidores ocorria no sentido inverso,
ou seja, no para que os credores da sociedade fossem impedidos de alcanar o
patrimnio particular dos scios, mas sim para impedir que os credores particulares
dos scios pudessem constranger ou atacar o patrimnio da sociedade.509
No caso da limitao da responsabilidade nas companhias ou sociedades de
capital, Waldirio Bulgarelli registrou que a sociedade annima tem suas origens mais
diretas nas companhias coloniais que foram fundadas a partir do sculo XVII para a
explorao e colonizao das terras do novo mundo, reunindo capital da Coroa e de
grandes investidores privados.510 As aes, como ttulos de participao no capital da
companhia, permitiam que pessoas particulares investissem seus recursos e
poupanas na explorao colonial do Novo Mundo, propiciado pela era dos
Descobrimentos, com a excluso dos riscos decorrentes da incerteza e da competio
entre as Naes, com a garantia da limitao da responsabilidade, isto em condies
muitas vezes adversas, inerentes aos riscos da navegao de longo curso.511

507

Ao comeo, e durante muitos sculos, a comenda ostentava natureza contratual, como operao
isolada do comrcio de mar. Capitalista, que ficava em terra (o comendator, socius stans), ministrava
dinheiro, mercadorias e at mesmo o navio, ao empresrio (o accomanditarius, tractator, portitor ou
portator), a fim de que este negociasse alm-mar, com intuito de lucro e partilha do ganho. (Tratado
de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, So Paulo, Saraiva, 1961, p.
212).
508 Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas,
cit., p. 213.
509 Nesse sentido, Waldemar Ferreira esclarecia: Ento, a necessidade de defesa desse capital, como
garantia dos credores sociais contra os ataques dos credores particulares dos scios, fez sentir a
convenincia de tornar pblica, com o registro na corporao ou na comuna, a existncia da sociedade,
a medida das quotas conferidas pelos scios, a firma ou razo social, tornando indispensvel
contabilidade distinta das operaes sociais. (Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da
Sociedade de Pessoas, cit., p. 213).
510 Manual das Sociedades Annimas, So Paulo, Atlas, 3 edio, 1994, p. 59.
511 Essas companhias surgiram estreitamente ligadas ao Estado, que as privilegiava, por meio do
sistema do octroi, com a personalidade jurdica plena, o reconhecimento do patrimnio autnomo e

Teoria crtica da empresa

249

Ivanildo Figueiredo

As sociedades annimas pioneiras foram constitudas por iniciativa ou


concesso do Estado, como assim ocorreu inicialmente na Inglaterra, com a criao
da East India Company (1600), na Holanda, que fundou a Companhia das ndias
Orientais (1602) e a Companhia das ndias Ocidentais (1621), e na Frana, com a
Companhia Francesa das ndias Orientais (1664). Para explorao do Brasil, o Reino
de Portugal constituiu a Companhia do Comrcio do Brasil (1649).512
Entre os sculos XVIII e XIX, sob a garantia e segurana da limitao da
responsabilidade, especialmente com a expanso das empresas de manufatura
advindas da Revoluo Industrial (1760-1840), as sociedades annimas passaram a
representar o modelo ideal para a explorao de diversos tipos de atividades
econmicas de grande porte, especialmente nos setores da indstria, bancos, seguros
e transporte.513
No final do sculo XIX, o modelo de limitao de responsabilidade das
companhias vem a ser estendido s sociedades por quotas, tipo societrio resultante
de mera criao ou elaborao legislativa, e no da prtica mercantil, porquanto
destinava-se a incentivar a incluso, no mercado, de novos empresrios ou
comerciantes titulares de pequenas empresas, em razo da vantagem da separao
patrimonial, que protegeria os bens particulares face s dvidas da sociedade e ao

dois tipos de scios: os principais e os secundrios. Em regra, conferia-lhes o Estado inmeros outros
privilgios, em relao sua atuao nas Colnias. (Waldirio Bulgarelli, Manual das Sociedades
Annimas, cit., p. 60). Observa Tullio Ascarelli que nas companhias coloniais j se delineam os
caractersticos fundamentais hoje peculiares da sociedade annima e que a distinguem entre as vrias
espcies de sociedades: responsabilidade limitada dos scios e diviso do capital em aes, isto ,
possibilidade de serem, as participaes dos vrios scios, corporizadas em ttulos facilmente
circulveis; a pessoa do scio , destarte, indiferente caracterizao jurdica da sociedade.
(Problemas das sociedades annimas e Direito Comparado, cit., p. 336).
512 Waldirio Bulgarelli, Manual das Sociedades Annimas, cit., p. 60.
513 A despeito das crises, o desenvolvimento das sociedades annimas que aos poucos se
estenderam a novos campos (o seguro, o banco, os transportes, a indstria e o comrcio)
acompanhou o desenvolvimento econmico moderno. A sociedade annima foi elaborando aos poucos
sua disciplina: determinou-se a distino entre os acionistas e os vrios rgos sociais e as funes
destes; o conceito de um exerccio social e da repartio peridica dos lucros; foram-se introduzindo
as aes ao portador; foram-se precisando o conceito e os caracteres da responsabilidade limitada, e
elaborando e precisando o conceito de capital social. A partir de toda especializao desse aparato
jurdico, a sociedade annima passa a apresentar-se como o instrumento tpico da grande empresa
capitalstica e, com efeito, surgiu e se desenvolveu com este sistema econmico e em relao s suas
exigncias. (Tullio Ascerelli, Problemas das sociedades annimas e Direito Comparado, cit., p.
338-339).

Teoria crtica da empresa

250

Ivanildo Figueiredo

risco comercial.514 As sociedades limitadas surgem, assim, na Inglaterra, reguladas no


Companies Act, de 1862, mas como modelo simplificado de sociedade por aes.
Posteriormente, na Alemanha, pela Lei de 1892, foi criada a Gesellschaft Mit
Beschrnkter Haftung (GMBH),515 forma societria bsica que posteriormente passa
a ser adotada pelos demais pases,516 no como mera simplificao da sociedade
annima, mas sim como tipo intermedirio de organizao econmica bem mais
adaptvel e apropriado s pequenas e mdias empresas, com sua estrutura
obrigacional definida conforme o interesse contratual, volitivo, dos seus scios.
Investigando as caractersticas gerais inerentes sociedade por quotas de
responsabilidade limitada, Waldemar Ferreira considerava que, em razo da sua
natureza jurdica, a sociedade por quotas se aproxima da sociedade annima,
contudo, em sua essncia econmica, se agrega ao grupo de sociedades de
pessoas.517 A sociedade por quotas de responsabilidade limitada representa, pois,
tipo societrio hbrido, no sendo puramente uma sociedade de pessoas, constituda
mediante contrato, quando predomina o elemento vinculativo da affectio societatis,
nem caracteriza uma sociedade de capital, em que o elemento central, dominante,
a contribuio econmica dos scios em ttulos de livre circulao, sem exposio ao
risco de alcance do patrimnio pessoal pelos credores.
Bem, se as obrigaes do empresrio coletivo, dos acionistas e scios da
sociedade annima e da sociedade limitada, inclusive dos administradores, estavam
protegidas pela fico jurdica da limitao da responsabilidade, no existia mais

514

Fbio Ulhoa Coelho esclarece que a criao da sociedade limitada bastante recente em relao
aos tipos societrios histricos, como as sociedades em nome coletivo, em comandita e por aes, e
decorre da iniciativa de parlamentares, para atender ao interesse de pequenos e mdios
empreendedores, que queriam beneficiar-se, na explorao de atividade econmica, da limitao da
responsabilidade tpica das annimas, mas sem atender s complexas formalidades destas, nem se
sujeitar prvia autorizao governamental. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit. p. 394).
515 Sentiu-se desde muito, na Alemanha, necessidade de criar forma societria em que se limitassem
os riscos dos scios a soma determinada, por quantia previamente estabelecida, do mesmo modo que
na sociedade annima, mas que, por outro lado, se rodeasse de maior simplicidade em suas
constituio de desenvolvimento, de modo, e a observao de Karl Heinsheimer, que servisse a
empresas da ao restrita ou de carter provisrio, especialmente as empresas de famlia. (Waldemar
Ferreira, Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, cit., p. 388).
516 Reproduzindo o modelo da sociedade por quotas de responsabilidade limitada regulado na lei alem,
praticamente todas as naes do mundo passaram a adotar esse regime societrio para as pequenas
e mdias empresas: Portugal (1901); ustria (1906); Brasil (1919); Chile (1923); Frana (1925); Hungria
(1929); Argentina (1932); Uruguai (1933); Mxico (1934); Blgica (1935); Sua (1936); Itlia (1942).
517 Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, cit., p. 388-389.

Teoria crtica da empresa

251

Ivanildo Figueiredo

justificativa cientfica, de ordem tcnica, normativa, coerente ou plausvel, que


impedisse que essa mesma limitao, como direito garantidor, fosse estendida ao
empresrio individual. Afinal, o que se observava, na prtica, era o registro, nas juntas
comerciais, de milhares de contratos de sociedades limitadas e mesmo annimas, em
que existia um scio majoritrio, titular de mais de 90 % da quotas ou aes, e scios
minoritrios que somente participavam e assinavam o contrato social para assegurar
a limitao da responsabilidade do scio majoritrio, quase sempre e invariavelmente,
do controlador da empresa. Esse scio minoritrio apenas participava, designado pelo
jargo de mercado como homem de palha, para compor o quadro societrio e, por
conta da satisfao ao atendimento do requisito da pluripessoalidade, assim
assegurar a responsabilidade limitada do scio majoritrio que, na verdade, ao fim e
ao cabo, exercia o comrcio como empresrio individual.518
Como modo de superar ou mesmo desconsiderar essa brecha que a legislao
societria passou a permitir para a constituio de verdadeiras sociedades
unipessoais, os sistemas de direito positivo e a prpria doutrina vieram a admitir a
extenso e aplicabilidade da responsabilidade limitada para qualquer tipo de
organizao comercial, seja esta individual ou coletiva. A partir desse raciocnio
utilitarista ou pragmtico, foram desenvolvidas pela doutrina, desde o sculo XIX,
vrias teorias acerca da possibilidade jurdica de limitao da responsabilidade do
comerciante ou empresrio individual.
Essa discusso comea, segundo Calixto Salomo Filho, pela anlise e crtica
da teoria ficcionista de Savigny, quando este trata da possibilidade de personificao
de ente individual, no coletivo, e assim admite a criao de novo centro de imputao

518

A respeito dessa simulao societria, Tullio Ascarelli observara: Considera-se, por exemplo, a
sociedade por aes com um nico scio meio indireto para exercer, com responsabilidade limitada,
um comrcio individual: imaginaria societas, dir-se-ia, em linguagem romana. frequente o caso de
sociedades que, embora constituda por vrias pessoas, so, no entanto, substancialmente dominadas
por uma s, visando proporcionar a esta a possibilidade de exercer o comrcio com responsabilidade
limitada. As demais pessoas que intervm no ato constitutivo so normalmente amigos complacentes
(o advogado que redigiu a ata, parentes, etc.), que, com frequncia, logo aps a constituio da
sociedade, cedem as prprias aes ao nico scio e cuja participao , de qualquer forma, irrisria
e motivada por amizade. (Problemas das sociedades annimas e Direito Comparado, cit., p. 130).
Na prtica empresarial, segundo Wilges Bruscato, essas sociedades imaginrias so tambm
conhecidas por sociedade aparente, ficcional, de favor ou simulada. (Empresrio Individual de
Responsabilidade Limitada, So Paulo, Quartier Latin, 2005. P. 26).

Teoria crtica da empresa

252

Ivanildo Figueiredo

de direitos e deveres.519 De acordo com a teoria da fico, o racionalismo jurdico


deveria superar o realismo social para criar solues adaptadas s condies
econmicas presentes poca, na Alemanha, na fase pr-industrial do sculo XIX.
Naquele perodo, existia grande necessidade de instrumentos que permitissem o
agrupamento de recursos e, de outro, grande preocupao com a solvncia das
pequenas (e frequentemente sub-capitalizadas) empresas.520
A segunda teoria a do patrimnio de afetao, que defende a separao real
de uma parte do patrimnio da pessoa natural para o exerccio de atividade
empresarial, defendida por Brinz e Bekker.521 O patrimnio de afetao ou regime
fiducirio resulta de uma separao ou segregao patrimonial, quando o empresrio
individual destina uma determinada parcela do seu patrimnio para a explorao
econmica. Essa parcela, constituda por bens mveis e imveis, estar afetada aos
negcios e representar a garantia dos credores, pondo o patrimnio particular do
empresrio a salvo, em princpio, de excusso por dvidas.
Sylvio Machado Marcondes afirmava que o nico critrio seguro para
reconhecer a existncia do patrimnio separado o da responsabilidade pelas
dvidas.522 No caso do patrimnio de afetao, somente este responder pelas dvidas
da empresa, com o mesmo efeito da separao patrimonial resultante da criao de
uma pessoa jurdica.
A criao desse patrimnio de afetao ou regime fiducirio, com base na
experincia histrica, pode se dar pela forma da empresa individual de
responsabilidade limitada ou como sociedade unipessoal. A resultante de proteo do
patrimnio particular do empresrio a mesma. A diferena reside, principalmente,
na questo da personificao. A empresa individual possuiria um patrimnio apartado,
mas no seria dotada de personalidade jurdica. A sociedade unipessoal, por seu
turno, representa nova pessoa jurdica, mas nasceria de uma contradio

519

Calixto Salomo Filho, A sociedade unipessoal, So Paulo, Malheiros, 1995, p. 15.


Calixto Salomo Filho, cit., p. 17.
521 Calixto Salomo Filho, cit., p. 15.
522 Sylvio Marcondes Machado, Problemas de Direito Mercantil, So Paulo, Max Limonad, 1970, p.
97, apud Calixto Salomo Filho, cit., p. 27.
520

Teoria crtica da empresa

253

Ivanildo Figueiredo

caracterizada pelo contrato consigo mesmo, do contrato de um nico scio, o que no


era digerido pelo tecnicismo exagerado da doutrina dominante.
Durante muitos anos, observa Calixto Salomo Filho, a sociedade unipessoal
viu-se sempre envolta em preconceitos e mitos que impediam que se fizesse uma
pesquisa sria e objetiva sobre o assunto.523 Ainda assim, assinala o mesmo autor,
no Brasil, j h muito tempo se debate a respeito da convenincia ou no de se fazer
uma exceo ao princpio da responsabilidade integral da pessoa pelos seus
dbitos.524 Exemplo desse debate pode ser observado no anteprojeto de reforma da
Lei das Sociedades Limitadas, conduzido pelo Ministrio da Justia, e elaborado por
uma de comisso de juristas, que iniciou os trabalhos no ano de 1999, mas que no
se transformou em projeto de lei exatamente porque a opo do Governo Federal,
naquele momento, foi a de promulgar o Cdigo Civil.525 Nesse anteprojeto, era prevista
e regulada a Empresa Unipessoal de Responsabilidade Limitada (EURL),526 em
moldes semelhantes aos adotados, numa primeira fase, pela legislao de Portugal.527

523

Calixto Salomo Filho, A sociedade unipessoal, cit., p. 9.


Calixto Salomo Filho, cit., p. 41.
525 A comisso de juristas que elaborou o Anteprojeto da nova Lei de Sociedades Limitadas era
integrada por Arnoldo Wald, Jorge Lobo, Cesar Asfor Rocha, Alfredo Lamy Filho, Egberto Lacerda
Teixeira e Waldirio Bulgarelli. (Alfredo de Assis Gonalves Neto, Direito de empresa, cit., p. 124).
526 O Anteprojeto assim definia essa nova modalidade de empresa: Art. 41. considerada empresa
unipessoal de responsabilidade limitada: I a constituda por uma nica pessoa, fsica ou jurdica,
mediante instrumento pblico ou particular, assinado pelo fundador e subscrito por duas testemunhas;
II a sociedade por quotas de responsabilidade limitada que ficar reduzida a um nico scio aps o
transcurso do prazo previsto no 2 do art. 6. Pargrafo nico. Cada pessoa s poder ser scia de
uma nica empresa unipessoal de responsabilidade limitada.
527 O Decreto-Lei 248, de 1986, criou, em Portugal, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada
EIRL. Todavia, a partir da Diretiva 667, de 1989, da Comunidade Europeia, que passou a incentivar
a criao de sociedades unipessoais, o Cdigo de Sociedades Comerciais (CSC) portugus foi aditado
pelo Decreto-Lei 257, de 1997, para permitir a constituio de sociedades unipessoais, por derivao
das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. (Jos Engrcia Antunes, O estabelecimento
individual de responsabilidade limitada: crnica de uma morte anunciada, Revista da Faculdade
de Direito da Universidade do Porto, Coimbra, Coimbra Editora, ano 3, 2006, p. 434). A legislao
portuguesa, em suas caractersticas gerais, assim veio a definir a sociedade unipessoal: Art. 270-A
Constituio 1. A sociedade unipessoal por quotas constituda por um scio nico, pessoa singular
ou colectiva, que o titular da totalidade do capital social. 2. A sociedade unipessoal por quotas pode
resultar da concentrao na titularidade de um nico scio das quotas de uma sociedade por quotas,
independentemente da causa da concentrao. (...) Art. 270-B Firma A firma destas sociedades
deve ser formada pela expresso sociedade unipessoal ou pela palavra unipessoal antes da palavra
Limitada ou da abreviatura Lda.. Art. 270-C Efeitos da unipessoalidade 1. O scio nico de uma
sociedade unipessoal por quotas pode modificar esta sociedade em sociedade por quotas plural atravs
de diviso e cesso da quota ou de aumento do capital social por entrada de um novo scio, devendo,
nesse caso, ser eliminada da firma a expresso sociedade unipessoal, ou a palavra unipessoal, que
nela se contenha.
524

Teoria crtica da empresa

254

Ivanildo Figueiredo

A responsabilidade limitada do empresrio individual ou da empresa unipessoal


restou consagrada, na Europa, ao final do sculo XX, sob a forma da sociedade
unipessoal, como nova espcie societria de natureza contratual.528
A ltima tentativa, frustrada, de introduo de limitao da responsabilidade do
empresrio individual no direito positivo brasileiro, mesmo aps o Cdigo Civil de
2002, ocorreu quando da elaborao da Lei Complementar 123/2006, que instituiu o
novo regime da microempresa e da empresa de pequeno porte.529 O dispositivo que
previa a criao da nova figura do Empreendedor Individual de Responsabilidade
Limitada, somente aplicvel s micro e pequenas empresas. Contudo, a proposta foi
vetada pelo Presidente da Repblica, sob o argumento, inconsistente, de que essa
norma estaria a invadir matria de competncia tributria, apesar da sua hierarquia
de lei complementar Constituio (CF, art. 146).
O legislador do Cdigo Civil de 2002 passou ao largo dessa discusso
histrica.530 Por uma estranha ironia do destino, o relator do livro do Direito de
Empresa no Cdigo Civil, Sylvio Marcondes Machado, foi autor, quase cinquenta anos
antes, de um estudo inovador sobre a matria da responsabilidade limitada do
528

A sociedade unipessoal foi assim criada, sucessivamente, na Dinamarca (1976), Alemanha (1980),
Frana (1985), Holanda (1986) e Blgica (1987). A Comunidade Europeia, atravs da Diretiva 667, de
1989, props a constituio de sociedades unipessoais de responsabilidade limitada, com base nos
seguintes argumentos e disposies bsicas: Considerando que conveniente prever a criao de um
instrumento jurdico que permita a limitao da responsabilidade do empresrio individual, em toda a
Comunidade, sem prejuzo das legislaes dos Estados-membros que, em casos excepcionais,
impem a responsabilidade desse empresrio relativamente s obrigaes da empresa; (...) Art. 2.
Item 1. A sociedade pode ter um scio nico no momento da sua constituio, bem como por fora da
reunio de todas as partes sociais numa nica pessoa (sociedade unipessoal). (...) Art. 4. O scio
nico exerce os poderes atribudos assembleia geral de scios. (...) Art. 7. Um Estado-membro pode
decidir no permitir a existncia de sociedades unipessoais no caso de a sua legislao prever a
possibilidade de o empresrio individual constituir uma empresa de responsabilidade limitada com um
patrimnio afecto a uma determinada actividade desde que, no que se refere a essas empresas, se
prevejam garantias equivalentes s impostas pela presente directiva bem como pelas outras
disposies comunitrias aplicveis s sociedades referidas no artigo 1.
529 Dispositivo vetado na Lei Complementar 123/2006 - Do Empreendedor Individual de
Responsabilidade Limitada - Art. 69. Relativamente ao empresrio enquadrado como microempresa
ou empresa de pequeno porte nos termos desta Lei Complementar, aquele somente responder pelas
dvidas empresariais com os bens e direitos vinculados atividade empresarial, exceto nos casos de
desvio de finalidade, de confuso patrimonial e obrigaes trabalhistas, em que a responsabilidade
ser integral.
530 O Cdigo de 2002 prev, apenas, uma hiptese excepcional, de segregao patrimonial, para
permitir a continuidade ou sucesso na empresa por pessoa incapaz: Art. 974. Poder o incapaz, por
meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida por ele enquanto
capaz, por seus pais ou pelo autor de herana. (...) 2o No ficam sujeitos ao resultado da empresa os
bens que o incapaz j possua, ao tempo da sucesso ou da interdio, desde que estranhos ao acervo
daquela, devendo tais fatos constar do alvar que conceder a autorizao.

Teoria crtica da empresa

255

Ivanildo Figueiredo

comerciante individual. Todavia, contraditoriamente, ele no incorporou ao novo


sistema legislativo as concluses avanadas da sua tese acadmica.531 Somente com
a modificao resultante da Lei 12.441/2011, quase dez anos aps o Cdigo de 2002,
foi admitida, pela legislao brasileira,532 a limitao da responsabilidade do
empresrio individual, sob a forma da EIRELI.533
A lei brasileira, contudo, no ousou na reconfigurao da empresa individual de
responsabilidade limitada.534 A EIRELI foi concebida sob modelo hbrido e
contraditrio, como patrimnio de afetao dotado de personalidade jurdica, sem
constituir, todavia, ente societrio.535 Para esse fim, como criticado pela doutrina,536 o
531

Na sua tese de ctedra, Sylvio Marcondes Machado adota a concepo objetiva do patrimnio de
afetao, situando a empresa individual na categoria dos objetos de direito, por exigir o melhor desvlo
na elaborao das normas adequadas constituio do patrimnio separado. (Limitao da
responsabilidade de comerciante individual, So Paulo, Max Limonad, 1956, p. 286).
532 Foi assim que, depois de algumas tentativas legislativas frustradas e com aproximadamente 30
(trinta) anos de atraso em comparao realidade de diversos pases da famlia romano-germnica,
s com o advento da Lei n 12.441, de 11 de julho de 2011, o direito ptrio finalmente concebeu a sua
prpria e singular estrutura jurdica para limitar a responsabilidade de entes unipessoais exercentes de
atividades econmicas. (Erasmo Valado Azevedo e Novaes Frana e Marcelo Vieira Von Adamek,
Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei n 12.441/2011) Anotaes, em
Sociedade Limitada Contempornea, cit., p. 43).
533 A Lei 12.441/2011 teve sua origem no Projeto de Lei 4.605/2009, apresentado pelo Deputado
Marcos Montes Cordeiro (DEM-MG), inicialmente para inserir a empresa individual de responsabilidade
limitada no ttulo das sociedades, para incluso do art. 985-A. O deslocamento da matria para o ttulo
do empresrio individual, assim como a sugesto para incluso da EIRELI como pessoa jurdica de
direito privado, alterando o art. 44 do Cdigo Civil e a fixao de um capital mnimo, decorreram de
emendas do relator na Comisso de Constituio e Justia, Deputado Marcelo Itagiba (PSDB-RJ). A
principal motivao e justificativa do projeto de lei consistia na necessidade de fulminar com costume
(sic) de constituir sociedades limitadas com o enfoque nico de proteger o patrimnio pessoal do
verdadeiro e nico empreendedor e, para isto, era induzido a admitir um scio apenas para ter o
patrimnio pessoal protegido por eventuais dvidas derivadas da atividade econmica. (Paulo
Leonardo Vilela Cardoso, O empresrio de responsabilidade limitada, cit., p. 70-71).
534
Cdigo Civil de 2002 Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada ser
constituda por uma nica pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que
no ser inferior a 100 (cem) vezes o maior salrio-mnimo vigente no Pas. 1 O nome empresarial
dever ser formado pela incluso da expresso "EIRELI" aps a firma ou a denominao social da
empresa individual de responsabilidade limitada. 2 A pessoa natural que constituir empresa individual
de responsabilidade limitada somente poder figurar em uma nica empresa dessa modalidade. 3 A
empresa individual de responsabilidade limitada tambm poder resultar da concentrao das quotas
de outra modalidade societria num nico scio, independentemente das razes que motivaram tal
concentrao. 4 (VETADO). 5 Poder ser atribuda empresa individual de responsabilidade
limitada constituda para a prestao de servios de qualquer natureza a remunerao decorrente da
cesso de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o
titular da pessoa jurdica, vinculados atividade profissional. 6 Aplicam-se empresa individual de
responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
535 Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, a EIRELI, como instituto jurdico, seria, simplesmente, o nome
juris dado, no Brasil, sociedade limitada unipessoal (Curso de Direito Comercial, vol. 1, 18 edio,
2014, p. 127). Essa concluso ele justifica pela incluso da EIRELI como pessoa jurdica de direito
privado, bem como pela sua regulao subsidiria nas normas das sociedades limitadas.
536 Alfredo de Assis Gonalves Neto observa que na lei brasileira afora a questo da convenincia de
se adotar a limitao da responsabilidade do comerciante ou empresrio individual, verificou-se a

Teoria crtica da empresa

256

Ivanildo Figueiredo

art. 44 do Cdigo Civil foi alterado pela Lei 12.441/2011 para inserir, entre as pessoas
jurdicas de direito privado, a EIRELI. Nesse modelo hbrido, a lei brasileira ficou mais
prxima do estabelecimento individual de responsabilidade limitada EIRL, de
Portugal, o qual se encontra em franco desuso,537 do que da forma da sociedade
unipessoal, que passou a ser adotada e hoje predomina em Portugal desde o DecretoLei 257, de 1997, assim como em quase todos os pases europeus.
Esse modelo indefinido da EIRELI levou alguns autores, a exemplo de Carlos
Henrique Abro, a confundir o capital mnimo com o limite da responsabilidade do
empreendedor individual, de modo tal que o patrimnio de afetao estaria
subordinado ao capital social integralizado desde o incio da constituio do negcio,
ao teto de 100 salrios-mnimos.538 Assim, o limite da responsabilidade do empresrio
ficaria representado pelo capital mnimo, e as dvidas que ultrapassarem esse teto no
estariam vinculadas aos efeitos da limitao, respondendo o empresrio titular da
EIRELI, ilimitadamente, pelo passivo excedente a 100 salrios-mnimos. Tal
entendimento, todavia, no dever prosperar, porque inexiste, na lei, qualquer
previso nesse sentido.

mesma hesitao entre conferir ao empresrio a limitao da sua responsabilidade ou admitir a


sociedade unipessoal para o mesmo fim. A Lei 12.441/2011, com efeito, seguiu, segundo ele, uma
terceira via: no atribuiu ao empresrio individual responsabilidade limitada aos bens que afetar sua
empresa, na linha da mais recente orientao do direito francs (Lei 658, de 15.06.2010, que disps
sobre o empreendedor individual de responsabilidade limitada); tambm no escolheu o caminho da
sociedade unipessoal. Preferiu a frmula no societria sob peculiar roupagem, regulando uma nova
figura jurdica a empresa individual de responsabilidade limitada -, prxima do modelo portugus do
estabelecimento comercial de responsabilidade limitada, com a diferena do patrimnio destinado ao
seu negcio pertencer a pessoa diversa, tanto do empresrio quanto da sociedade empresria.
(Direito de empresa, cit., p. 123).
537 Jos Engrcia Antunes, O estabelecimento individual de responsabilidade limitada: crnica de
uma morte anunciada, cit., p. 434.
538 A maior novidade surgida em relao criao do modelo da empresa individual se refere
limitao da responsabilidade adstrita ao capital mnimo de constituio, correspondendo soma de
100 salrios-mnimos. Propsito imediato do legislador, sem sombra de dvida, caminhou no sentido
de fomentar a constituio de empresa individual e, ao mesmo tempo, lhe conceder o modelo no qual
a responsabilidade no alcanasse o patrimnio individual do seu titular. (Empresa Individual, cit., p.
43; 89). Em sentido oposto, o entendimento de Alfredo de Assis Gonalves Neto: Do ponto de vista da
sua origem, evidencia-se que a EIRELI foi criada indubitavelmente para limitar a responsabilidade do
empresrio (individual), sendo inscrita, inclusive, no Registro Pblico de Empresas Mercantis (CC, art.
1.033, pargrafo nico); e, no que concerne ao seu regime jurdico, pautado nas normas da sociedade
limitada (art. 980-A, 6), que encartada entre os tipos de sociedade empresria (art. 983). (Direito
de Empresa, cit., p. 133). Assim tambm converge o entendimento de Erasmo Valado Azevedo e
Novaes Frana e Marcelo Von Adamek: Por essa senda, a autonomia patrimonial da Eireli absoluta
e vige, em ambos os sentidos: a favor, mas tambm contra o scio nico. (Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada (Lei n 12.441/2011) Anotaes, em Sociedade Limitada
Contempornea, cit., p. 69).

Teoria crtica da empresa

257

Ivanildo Figueiredo

A limitao da responsabilidade do empresrio na EIRELI decorre do simples


fato desta ser constituda como pessoa jurdica, e ser a ela aplicvel,
subsidiariamente, o regime da sociedade limitada, no subordinada ao capital mnimo.
A exigncia de capital mnimo, como ressaltado por Modesto Carvalhosa, vem,
inclusive, na contramo da nossa legislao societria.539
A justificativa para a fixao desse capital mnimo foi a de que a criao da
EIRELI teve como fundamento bsico evitar a constituio de sociedades fictcias,
simuladas, em que um scio de palha assina o contrato social apenas para
assegurar a limitao da responsabilidade do scio controlador, verdadeiro dono da
empresa.540 Todavia, a fixao do valor de 100 salrios-mnimos decorreu de critrio
eminentemente subjetivo, ou de no-critrio, de um nmero cabalstico, porque,
segundo o Deputado Marcelo Itagiba, relator do projeto de lei na Comisso de
Constituio e Justia da Cmara dos Deputados, esse seria o montante a partir do
qual se tem por aceitvel a configurao patrimonial da empresa individual.541 O
citado deputado nada mais disse ou esclareceu a respeito da definio contbil do
que ele entende por configurao patrimonial aceitvel.542

539 Saliente-se, a propsito, que a fixao pelo legislador de um valor mnimo ao capital vem na
contramo de uma tendncia de supresso dessa exigncia legal. Esta tendncia foi, inclusive, adotada
pela Lei de S/A, que em sua exposio de motivos j esclarecia que embora muitas das pequenas
companhias existentes no Pas pudessem ser organizadas como sociedades por quotas de
responsabilidade limitada, no h interesse em limitar arbitrariamente a utilizao de forma de
companhia. (Prefcio obra de Paulo Leonardo Vilela Cardoso, O empresrio de responsabilidade
limitada, cit., p. 14).
540 Alfredo de Assis Gonalves Neto, Direito de empresa, cit., p. 134.
541 Paulo Leonardo Vilela Cardoso, O empresrio de responsabilidade limitada, cit., p. 77. Cabe
observar que, na lei portuguesa reguladora do Estabelecimento Individual de Responsabilidade
Limitada - EIRL, criado pelo Decreto-Lei 248, de 1986, com a ltima atualizao do Decreto-Lei 08, de
2007, no qual a lei brasileira, ao que parece, procurou se espelhar, foi definido o capital mnimo no
montante de 5.000,00, para a constituio da EIRL em Portugal. No Brasil, exige-se, hoje, para a
constituio da EIRELI, capital superior a mais de quatro vezes o capital exigido em Portugal.
542 Visando reduzir o capital exigido da EIRELI, de 100 para 50 salrios-mnimos, tramita na Cmara
dos Deputados o Projeto de Lei 2.468/2011; o autor do projeto, Deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT),
prope a reduo do capital mnimo exigido pela regra atual, so R$ 62,2 mil, o que cairia pela
metade baseado no argumento do professor Cssio Cavalli, da Escola de Direito da Fundao Getlio
Vargas (FGV Direito Rio). Cavalli ressalta que 100 salrios mnimos superam o valor dos ativos
empregados para a organizao da maioria das pequenas empresas. No de se esperar, por
exemplo, que o proprietrio de um carrinho de cachorro quente empregue mais de R$ 50 mil como
capital social, afirma. O professor acrescenta, a ttulo de comparao, que com R$ 3 mil possvel
constituir uma sociedade limitada, pois no h valor mnimo exigido. (Cmara Notcias, Economia,
17/01/2012, http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/economia/207859).

Teoria crtica da empresa

258

Ivanildo Figueiredo

A sociedade annima, espcime superior e a mais complexa construo dentre


todos os tipos societrios, pode ser constituda com o capital social desvinculado de
qualquer patamar mnimo legal. A Lei 6.404/1976 exige, apenas, no ato de
constituio da companhia, o depsito, em dinheiro, do valor correspondente a dez
por cento do preo de emisso das aes subscritas (art. 80). Se o capital subscrito
for, por exemplo, de R$ 100 mil, qualquer sociedade annima pode ser constituda
com o depsito mnimo no valor de R$ 10 mil. Somente em determinadas atividades
de relevante interesse pblico submetidas a regime de autorizao, como na atividade
bancria,543 a legislao exige capital mnimo para a constituio dessas sociedades,
especialmente porque tais empresas atuam no mbito da captao de depsitos e
poupanas privadas, ou seja, na esfera pblica da economia popular.544
Para fins de constituio de sociedade limitada, a legislao sequer exige a
integralizao de capital mnimo. Qualquer sociedade limitada, independentemente
do seu objeto, pode ser criada com qualquer capital subscrito, ainda que no venha a
ser integralizado no ato da sua formao e registro.
Diante dessa realidade jurdica, isto , de inexistir exigncia de capital mnimo
para a constituio de qualquer empresa ou sociedade comercial no Brasil, revela-se
que a EIRELI representa, como assim observado por Modesto Carvalhosa, evidente
contramo no mbito da liberdade de escolha ou opo da forma da empresa.545
O efeito, todavia, poder ser at contrrio, como bem anotado por Erasmo
Valado Frana e Marcelo Von Adamek, isto porque, longe de reforar a regra de
limitao de responsabilidade, a EIRELI, tal como estruturada, contribui ainda mais

543

Lei 4.595/1964 - Art. 4 Compete ao Conselho Monetrio Nacional, segundo diretrizes estabelecidas
pelo Presidente da Repblica: (...) XIII - Delimitar, com periodicidade no inferior a dois anos o capital
mnimo das instituies financeiras privadas, levando em conta sua natureza, bem como a localizao
de suas sedes e agncias ou filiais;
544 Normas de exigncia ou fixao de capital mnimo: companhias financeiras e bancrias (Lei
4.595/1964, art. 4, XIII; Resoluo do Banco Central 2.099/1994; Regulamento Bacen, Anexo II, art.
1, com a redao das Resolues 2.607/1999 e 3.334/2005; Resoluo 2.828/2001, art. 5; Resoluo
3.334/2005, art. 9; Resoluo 3.426/2006, art. 5; Resoluo 3.567/2008, art. 4, I); companhias de
seguro privado (Decreto-Lei 73/1966, art. 32, VI; Resoluo CNSP 316/2014); sociedades de planos
de assistncia e seguros privados de sade (Lei 9.656/1998, art. 35-A, IV).
545 No entender de Paulo Roberto Bastos Pedro, a exigncia de capital mnimo seria, inclusive,
inconstitucional, pois trata o empresrio individual de responsabilidade limitada de maneira diferente
dos demais empresrios que, de modo livre, fixam o valor do capital social. (Curso de Direito
Empresarial, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 48).

Teoria crtica da empresa

259

Ivanildo Figueiredo

para o descrdito da regra de limitao de responsabilidade das sociedades em


geral.546 Neste aspecto, Carlos Henrique Abro afirma que, como no existe rgo
de controle ou de fiscalizao que possa, no momento da constituio da empresa
individual, constatar, de maneira slida e concreta, a existncia do capital mnimo,
esse capital mnimo poder ser mero artificialismo, ou se constituir em simples
escriturao fiscal, sem qualquer concretude ou realidade que proteja o prprio
negcio e a massa de credores.547
Diante dessa contradio do capital mnimo, a prtica simulada de criao de
sociedades fictcias permanecer existindo. Se um empresrio no pretende aplicar
um montante de 100 salrios mnimos (atualmente no valor de quase R$ 80 mil), para
assim ficar protegido sob o anteparo da EIRELI, e desse modo assegurar a limitao
da sua responsabilidade, ele poder constituir uma sociedade limitada, arranjando um
scio de palha, participando com 0,01 % do capital social. Poder, at, maxima
contraditio, constituir uma sociedade annima com qualquer valor do capital e, para
atender ao requisito da pluripessoalidade, efetuar a doao de uma nica ao a
terceiro. Ou seja, o objetivo da inovao, que era evitar a existncia de sociedades
unipessoais simuladas, continuar desvirtuando a realidade empresarial.
A criao da EIRELI poder resultar de procedimento de constituio originria,
quando o empresrio no era scio ou titular de outra empresa, ou por procedimento
derivado, mediante transformao da firma individual ou sociedade limitada em
EIRELI. Ambos os procedimentos de constituio, originria ou derivada, esto
regulados pela Instruo Normativa 10/2014 do Departamento de Registro de
Empresas e Integrao DREI, no seu Anexo V.
Na constituio originria da EIRELI, o regulamento no define a natureza do
ato constitutivo, se declarao de constituio, como na firma individual, se contrato,

546

Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei n 12.441/2011) Anotaes, em


Sociedade Limitada Contempornea, cit., p. 56.
547 Empresa Individual, cit., p. 3.

Teoria crtica da empresa

260

Ivanildo Figueiredo

como prprio da sociedade limitada. O regulamento do registro de empresas apenas


denomina-o como ato constitutivo, sem precisar sua natureza.548
Para efeito de constituio derivada, os procedimentos regulados pelas normas
do registro de empresas denominam esses atos como de transformao (Instruo
Normativa 10/2014, Anexo V, itens 3.2.14 e 3.2.15).549 A constituio derivada, no
mbito da transformao, dever resultar, na maioria dos casos, da reduo da
sociedade limitada contratual a um nico scio, por falecimento ou retirada do outro
scio (CC, art. 1.033). Interessante destacar que o regulamento do registro de
empresas somente admite a transformao da EIRELI em sociedade contratual ou
vice-versa, no prevendo a transformao em sociedade institucional ou estatutria,
como a sociedade annima. Desse modo, uma sociedade annima reduzida a um
nico acionista (Lei 6.404/1976, art. 206, IV) no poder ser transformada ou

548

BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integrao (DREI); Instruo Normativa DREI


10/2014 1.2.4. Elementos do ato constitutivo - O ato constitutivo dever conter, no mnimo, os
seguintes elementos: a) ttulo (Ato Constitutivo); b) prembulo; c) corpo do ato constitutivo: c.1)
clusulas obrigatrias; d) fecho; (...) Devero constar do prembulo do ato constitutivo: a) qualificao
do titular da empresa e, se for o caso, de seu procurador: titular pessoa natural (brasileiro ou
estrangeiro) residente e domiciliado no Pas ou no exterior: nome civil, por extenso; nacionalidade;
estado civil; (no caso de unio estvel, incluir o estado civil) data de nascimento, se solteiro; profisso;
documento de identidade, nmero e rgo expedidor/UF; CPF; endereo residencial (tipo e nome do
logradouro, n, complemento, bairro/distrito, municpio, unidade federativa e CEP, se no Pas); b) tipo
jurdico (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada). (...) 1.2.7 - Clusulas obrigatrias do ato
constitutivo - O corpo do ato constitutivo dever contemplar, obrigatoriamente, o seguinte (art. 980-A,
, c/c art. 1.054 do CC): a) nome empresarial, que poder ser firma ou denominao, do qual constar
obrigatoriamente, como ltima expresso, a abreviatura EIRELI; b) capital, expresso em moeda
corrente, equivalente a, pelo menos, 100 (cem) vezes o maior salrio mnimo vigente no Pas (art. 980A do CC); sendo desnecessria a atualizao do capital social por alterao e/ou deciso do titular,
quando houver mudanas no valor institudo pelo Governo Federal. Havendo qualquer outra alterao
de dados, o capital dever ser atualizado; c) declarao de integralizao de todo o capital (art. 980-A
do CC); d) endereo completo da sede (tipo e nome do logradouro, nmero, complemento,
bairro/distrito, municpio, unidade federativa e CEP) bem como o endereo das filiais; e) declarao
precisa e detalhada do objeto da empresa; f) prazo de durao da empresa; g) data de encerramento
do exerccio social, quando no coincidente com o ano civil; h) a(s) pessoa(s) natural(is) incumbida(s)
da administrao da empresa, e seus poderes e atribuies; i) qualificao do administrador, caso no
seja o titular da empresa; e j) declarao de que o seu titular, no participa de nenhuma outra empresa
dessa modalidade.
549 BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integrao (DREI); Instruo Normativa DREI
10/2014 3.2.14 - Transformao do registro de sociedade empresria para empresa individual de
responsabilidade limitada - EIRELI - O scio remanescente, inclusive na hiptese de concentrao de
todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, poder requerer, no Registro Pblico de Empresas
Mercantis, a transformao do registro da sociedade para Empresa Individual de Responsabilidade
Limitada. A transformao do registro poder ser requerida independentemente do decurso do prazo
de cento e oitenta dias, desde que no tenha sido registrado ato de liquidao da sociedade. 3.2.15 Transformao de registro de EIRELI para sociedade empresria - A transformao do registro de
EIRELI para sociedade contratual, caso o titular queira admitir um ou mais scios, poder ser
formalizada em um ou dois processos.

Teoria crtica da empresa

261

Ivanildo Figueiredo

convertida em EIRELI, e tampouco poder adotar a forma de subsidiria integral, visto


que a sociedade instituidora e orginria desaparecer com a perda da
pluripessoalidade.
A doutrina, reunida nas Jornadas de Direito Civil, do Conselho da Justia
Federal,550 formulou diversos enunciados tratando da EIRELI, diante da novidade da
sua implantao pioneira, ainda que retardada, no nosso pas, da empresa individual
de responsabilidade limitada.
Assim, o Enunciado n 468 da Jornada de Direito Civil considerou que a EIRELI
s poder ser constituda por pessoa natural, e no por pessoa jurdica.551 Esse
entendimento, desde a regulamentao pela Instruo Normativa 117/2011 do DNRC,
polmico, de legalidade duvidosa, na opinio de Fbio Ulhoa Coelho.552 A dvida
decorre do fato de que o art. 980-A do Cdigo Civil, com a redao da Lei 12.441/2011,
no explcito quanto reserva de constituio da EIRELI apenas por pessoa natural:
A empresa individual de responsabilidade limitada ser constituda por uma nica
pessoa titular da totalidade do capital social (...). Como visto, a norma refere-se
presena de uma nica pessoa titular, no distinguindo esta como pessoa fsica ou
jurdica. Todavia, no 2 adiante, o referido artigo prescreve: A pessoa natural que
constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poder figurar em
uma nica empresa dessa modalidade. Em respeito autonomia das normas,
segundo a melhor tcnica hermenutica,553 aquilo que estiver disposto em um
pargrafo pode conter regra excepcionante ou divergente do contedo do caput do
artigo. A norma do 2 do art. 980-A estabelece disposio restritiva quando a EIRELI
for constituda por pessoa fsica ou natural, mas no probe, de modo algum, que uma
pessoa jurdica participe de EIRELI. No sentido lgico, a norma permite que a pessoa

550

Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justia Federal, ver em http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJCoedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/jornadas-de-direitocivil-enunciados-aprovados, 25/04/2015.


551 Alfredo de Assis Gonalves Neto entende que a EIRELI somente pode ser constituda por pessoa
natural, e observa que na 1 Jornada de Direito Comercial do CJF, realizada em outubro de 2012, esse
tema voltou a ser discutido, mas a proposta de permitir a criao de EIRELI por pessoa jurdica foi
rejeitada por expressiva maioria. (Direito de empresa Comentrios aos artigos 966 a 1.195 do
Cdigo Civil, cit., p. 129).
552 Curso de Direito Comercial, vol. 1, 18 edio, cit. p. 128.
553 Carlos Maximiliano, Hermenutica e aplicao do direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 4
edio, 1947, p. 246.

Teoria crtica da empresa

262

Ivanildo Figueiredo

jurdica possa constituir mais de uma EIRELI, por se tratar de ente formado por vrias
outras pessoas, fsicas ou jurdicas.
Em suporte a essa interpretao ampliativa, de admitir que a EIRELI possa ser
constituda por pessoa jurdica, o 6 do mesmo art. 980-A do Cdigo Civil estabelece
que aplicam-se EIRELI, no que couber, as regras previstas para as sociedades
limitadas. No mbito do regime jurdico da sociedade limitada (CC, arts. 1.052 a
1.087), no existe qualquer norma que restrinja, limite ou proba uma pessoa jurdica
de ser scia ou participar dos rgos de administrao da sociedade. No existindo
vedao expressa para a participao de pessoa jurdica na sociedade limitada, como
scia ou administradora, essa faculdade de participao deveria ser naturalmente
estendida EIRELI, e no vedada, como assim, de modo equivocado, o rgo do
registro de empresas regulamentou. 554
Parte da doutrina entende, em consonncia com as instrues normativas do
DNRC/DREI e com o Enunciado n 468 da Jornada de Direito Civil, que a EIRELI
somente pode ser constituda por pessoa fsica ou natural.555 Todavia, de modo
esclarecedor, Erasmo Valado de Frana e Marcelo Von Adamek consideram que tal
restrio no encontra justificao plausvel, nem lgica, nem dogmtica, inclusive
porque, em todos os pases da Europa, no mbito da Diretiva n 667, de 1989, a

554 A respeito dessa questo controversa da pessoa jurdica como titular da EIRELI, fazendo citao de
outros doutrinadores, Leslie Amendolara comenta: A Junta Comercial no permite o registro de EIRELI
como pessoa jurdica, com fundamento na interpretao contrria dada lei pelo Departamento
Nacional do Registro do Comrcio, rgo a que esto subordinadas as juntas. O advogado, expresidente da Junta Comercial de So Paulo, Armando Rovai, tem se posicionado reiteradamente
favorvel EIRELI pessoa jurdica, afirmando que ao DNRC dever apenas caber a superviso e
coordenao da execuo dos servios de registro pblico a cargo das Juntas Comerciais, deixando
entrever, como assinala mais frente, que se trata de reflexo do indevido e equivocado controle
material dos atos societrios que deveria ser exercido unicamente pelo Poder Judicirio (Jornal
Empresa e Negcios). O professor e consultor jurdico Jorge Lobo defende tambm a tese da
permisso de a EIRELI ser constituda por pessoa jurdica, afirmando textualmente: A incorreta
exegese do DNRC , ademais, repelida pelo elemento histrico, porquanto o Projeto de Lei 4.605/09
que se transformou na Lei 12.441/11 dispunha, inspirado nas legislaes do Chile, Peru, Paraguai (...)
textualmente: A EIRELI ser constituda por um nico scio, pessoa natural. (Jornal Valor). Ocorre
que a proposta foi alterada no Congresso, com a supresso do vocbulo natural, concluindo Jorge
Lobo, no mesmo texto: a pessoa natural e a pessoa jurdica podem fundar uma EIRELI.
(Transformao de tipos societrios em empresa individual de responsabilidade limitada, em
Pedro Anan Junior e Marcelo Magalhes Peixoto, Coordenadores, Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada Aspectos econmicos e legais, So Paulo, MP Editora, 2012, p. 137138).
555 Carlos Henrique Abro Empresa individual, cit., p. 10; Alfredo de Assis Gonalves Neto, Direito
de empresa Comentrios aos artigos 966 a 1.195 do Cdigo Civil, cit., p. 128-130.

Teoria crtica da empresa

263

Ivanildo Figueiredo

sociedade unipessoal pode ter como nico scio instituidor tanto uma pessoa fsica
como uma pessoa jurdica.556
Atravs do Enunciado n 469, a Jornada de Direito Civil do Conselho da Justia
Federal - CJF, no que tange s suas caractersticas, entendeu que a empresa
individual de responsabilidade limitada (EIRELI) no sociedade, mas novo ente
jurdico personificado. A 1 Jornada de Direito Comercial, tambm promovida pelo
CJF,557 chegou a concluso semelhante, ao aprovar o Enunciado n 3, com a seguinte
redao: A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada EIRELI no
sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresrio e da
sociedade empresria.
Preliminarmente, sob interpretao topogrfica estrita, a EIRELI no
configuraria sociedade porque sua disciplina jurdica no est localizada na parte
referente s sociedades no Cdigo Civil (artigos 981 e seguintes), mas sim no ttulo
que regula o empresrio individual (art. 980-A). Vale lembrar que, no projeto de lei
originrio, as disposies relativas EIRELI foram propostas dentro do ttulo das
sociedades (art. 985-A).558 Logo, diante da indeciso do legislador, tal critrio no se
demonstra til para a definio da natureza da EIRELI.
De acordo com a concluso dos enunciados doutrinrios acima citados, a
EIRELI seria um terceiro ente, um tertium genus, pois no caracterizaria nem
empresrio individual, nem sociedade, mas modalidade hbrida. Por determinao
expressa da lei, foroso reconhecer que a EIRELI uma pessoa jurdica, por
definio legal, no por mera equiparao. A partir do momento em que a Lei
12.441/2011 modificou o art. 44 do Cdigo Civil para nele incluir, como pessoa jurdica
de direito privado, a empresa individual de responsabilidade limitada,559 ao invs de

556

Ainda que a EIRELI tenha sido idealmente concebida para estruturar pequenos negcios (algo que,
pela exigncia de capital mnimo elevado, perdeu-se nas boas intenes do legislador), nada obsta a
que tambm venha a ser utilizada para os mais diversos fins, inclusive por mdias e grandes empresas.
Exatamente da mesma forma como ocorre no exterior. Empresa Individual de Responsabilidade
Limitada (Lei n 12.441/2011) Anotaes, em Sociedade Limitada Contempornea, cit., p. 50-51.
557 1 Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justia Federal, ver em http://www.cjf.jus.br/cjf/
CEJ-Coedi/jornadas-cej/LIVRETO%20-20I%20JORNADA%20DE%20DIREITO%20COMERCIAL.pdf.
558 Paulo Leonardo Vilela Cardoso, O empresrio de responsabilidade limitada, cit., p. 70.
559 Cdigo Civil de 2002 Art. 44. So pessoas jurdicas de direito privado: I - as associaes; II - as
sociedades; III - as fundaes; IV - as organizaes religiosas; (Includo pela Lei 10.825/2003); V - os

Teoria crtica da empresa

264

Ivanildo Figueiredo

simplesmente reconhecer esta como modalidade societria, a norma criou nova


espcime de pessoa jurdica, ainda que constituda por um s membro ou titular.
Do ponto de vista terico, a partir dos princpios histricos do direito e da sua
secular construo doutrinria, a incluso da EIRELI como pessoa jurdica de direito
privado representa inexplicvel e abominvel heresia. Jamais um ente formado pela
vontade de uma s pessoa pode ser considerado como categoria definidora de pessoa
jurdica, ente artificial, e no natural. A pessoa jurdica uma entidade que surge pela
conjugao de vontades, as quais definem, atravs de um contrato ou estatuto, o
regime de conjugao e representao de interesses. A pessoa jurdica sempre foi
considerada ente ou ser coletivo, sendo contraditrio sua criao e a expresso
exterior da sua vontade ser atribuda a uma parte autnoma, de modo unilateral. Sem
embargo, neste caso, bastaria lei criar a figura hbrida da empresa individual e, por
equiparao, atribuir a ela certos efeitos prprios da pessoa jurdica.
Desde a edio do Decreto-Lei 200/1967 e da Lei 6.404/1976, isto , durante
mais de 40 anos, o direito positivo brasileiro reconheceu a existncia de sociedades
unipessoais, de direito pblico e de direito privado, como as empresas pblicas e as
subsidirias integrais, isto sem a necessidade de redefinir a configurao legal das
pessoas jurdicas no Cdigo Civil e na legislao complementar. As pessoas jurdicas
representam categorias fundamentais do direito, cujas definies bsicas no podem
ficar sujeitas aos caprichos e ignorncia dos legisladores leigos de planto, como
assim, infelizmente, vem ocorrendo, em vrios casos, no mbito do Congresso
Nacional, nas ltimas dcadas.
Portanto, afastando as imprecises conceituais e as contradies legais, a
EIRELI deve ser definida como pessoa jurdica hbrida e excepcional, por
equiparao, no uma pessoa jurdica autntica, material, mas apenas formal.
A EIRELI deve ser tratada como pessoa jurdica imprpria inclusive porque a
lei procurou atribuir efeitos patrimoniais determinados, diferentemente do regime geral
do patrimnio prprio e separado das pessoas jurdicas. Esse dispositivo da lei,

partidos polticos; (Includo pela Lei 10.825/2003); VI - as empresas individuais de responsabilidade


limitada. (Includo pela Lei 12.441/2011).

Teoria crtica da empresa

265

Ivanildo Figueiredo

contudo, foi vetado quando da sano da Lei 12.441/2011,560 sob o argumento, pfio,
de que a expresso em qualquer situao poderia gerar divergncias quanto
aplicao das hipteses gerais de desconsiderao da personalidade jurdica,
previstas no art. 50 do Cdigo Civil. Para preencher o vcuo legislativo resultante do
veto aposto ao 4 do art. 980-A, o Enunciado 470 da Jornada de Direito Civil do CJF
assim prescreveu, reproduzindo, quase que literalmente, o dispositivo vetado: O
patrimnio da empresa individual de responsabilidade limitada responder pelas
dvidas da pessoa jurdica, no se confundindo com o patrimnio da pessoa natural
que a constitui, sem prejuzo da aplicao do instituto da desconsiderao da
personalidade jurdica.
Por bvio, o principal efeito resultante da aquisio da personalidade jurdica
o da separao patrimonial.561 Os demais efeitos decorrentes do registro da pessoa
jurdica (CC, art. 46), como denominao, objeto, foro e representao, so
secundrios. Com o nascimento da pessoa jurdica, esta passa a existir com
patrimnio prprio, segregado, distinto do patrimnio dos seus membros. Se a
responsabilidade dos scios instituidores limitada ou ilimitada, isso outra questo.
No caso da EIRELI, mesmo diante do regime jurdico e dos efeitos inerentes
criao das pessoas jurdicas, a lei ainda buscou reforar, inutilmente, em vo, esse
carter da segregao do patrimnio da empresa do patrimnio particular do
empresrio instituidor. Ora, se a EIRELI surge como pessoa jurdica formal, assim
definida pela lei (CC, art. 44, VI), no poderiam remanescer quaisquer dvidas quanto
aos efeitos da separao patrimonial. O dispositivo vetado (CC, art. 980-A, 4),
efetivamente, teve como resultado ou efeito, a representao da metfora constante
do adgio popular chover no molhado. Mesmo assim, a Presidenta da Repblica,
mal assessorada pelos seus jurisconsultos, resolveu vetar essa norma, veto este que,
560

Cdigo Civil, art. 980-A (redao da Lei 12.441/2011) Dispositivo vetado 4 Somente o
patrimnio social da empresa responder pelas dvidas da empresa individual de responsabilidade
limitada, no se confundindo em qualquer situao com o patrimnio da pessoa natural que a constitui,
conforme descrito em sua declarao anual de bens entregue ao rgo competente.
561 Sobre essa questo do principal efeito da personifizao, Jos de Oliveira Ascenso enfatiza: O
primeiro aspecto est ligado autonomia patrimonial. H bens (os em comunho) que respondem
particularmente por certas dvidas. Cria-se por isso um patrimnio autnomo, como vimos; e, como
esse patrimnio autnomo pertence a vrias pessoas simultaneamente, designa-se patrimnio
colectivo. Porm, segundo certos autores, como Carnelutti, para haver personalidade colectiva basta
justamente a autonomia patrimonial. Temos aqui uma concepo minimalista da personalidade
jurdica. (Direito Civil Teoria Geral, cit., p. 252).

Teoria crtica da empresa

266

Ivanildo Figueiredo

na prtica, no produzir, como visto, consequncia alguma. Isto porque o 6 do


mesmo artigo 980-A dispe que aplicam-se EIRELI, as regras previstas para as
sociedades limitadas. Ora, se no caso das sociedades limitadas, como o prprio
nome assim j evoca e significa, a responsabilidade de cada scio restrita ao valor
de suas quotas (CC, art. 1.052), ento o regime patrimonial da EIRELI o da limitao
da responsabilidade do empresrio instituidor, ou seja, da separao entre o
patrimnio pessoal e o patrimnio destacado para a atividade empresarial.
Esse patrimnio destacado corresponde ao patrimnio de afetao, dito
segregado ou sob regime fiducirio do empresrio, aplicado no exerccio da sua
atividade econmica especulativa. E assim, do mesmo modo como a lei assegura a
limitao da responsabilidade do scio da sociedade por quotas ou limitada, o
patrimnio pessoal do titular da EIRELI, a princpio, no se confunde com o patrimnio
da empresa individual, mas fica sujeito, todavia, aplicao, se for o caso, da regra
de desconsiderao da personalidade jurdica (CC, art. 50).
Em sntese final, constatamos que o legislador brasileiro optou por soluo
superada e divergente da dominante em outros pases, ao afastar o regime da EIRELI
da sociedade unipessoal,562 criando um tipo hbrido, indefinido, como patrimnio de
afetao, mas ao mesmo tempo considerado como pessoa jurdica (CC, art. 44, VI),
provocando dvidas e insegurana da doutrina na caracterizao desse novo ente.563
A adoo do modelo da sociedade unipessoal seria o mais correto e coerente, como
categoria jurdica definida e com ampla base referencial no direito comparado.

562

No dizer da Carlos Henrique Abro, no se cuida de sociedade com nico scio, mas empresa de
um empreendedor. Empresa Individual EIRELI, cit., p. 4.
563 vista das disposies do art. 980-A do Cdigo Civil, Alfredo de Assis Gonalves Neto conceitua a
EIRELI como agente econmico personificado, constitudo por ato unilateral de uma pessoa natural,
mediante aporte de um patrimnio mnimo, ou mediante converso de uma socidade unipessoal com
patrimnio lquido mnimo para o fim de exercer atividade prpria de empresrio. Direito de empresa
Comentrios aos artigos 966 a 1.195 do Cdigo Civil, cit., p. 125.

Teoria crtica da empresa

267

Ivanildo Figueiredo

4.8. O regime da microempresa e da empresa de pequeno porte

Fiel sua concepo generalista, o Cdigo de 2002 no distinguiu a empresa


em razo do seu porte.564 Apenas admitiu, como se legislador constitucional fosse,
que a lei deveria assegurar tratamento favorecido ao pequeno empresrio, que
recebeu o mesmo tratamento da empresa rural.565 A caracterizao da pequena
empresa, pois, instituio econmica de relevante importncia na realidade brasileira,
no foi merecedora de quase nenhum destaque ou referncia no Cdigo de 2002,
apesar da Constituio da Repblica de 1988 assegurar, como princpio da ordem
econmica, tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (CF, artigos
170, IX e 179).566
Como visto, a prpria Constituio definiu as linhas gerais da poltica de
incentivo s microempresas e empresas de pequeno porte, sendo essa norma bem
mais detalhada e abrangente do que aquela contida no Cdigo de 2002.
Na legislao comercial infraconstitucional, a Lei 7.256/1984, anterior
Constituio de 1988, foi a primeira a estabelecer um regime prprio para a
microempresa, assim denominada, com tratamento diferenciado e favorecido nas
esferas administrativa, tributria, previdenciria, trabalhista, creditcia e de

564

O Cdigo italiano de 1942, fonte de inspirao do nosso Cdigo de 2002, contm normas especiais
que definem o pequeno empresrio, assim caracterizado no art. 2.083: Sono piccoli imprenditori i
coltivatori diretti del fondo (1647, 2139), gli artigiani, i piccoli commercianti e coloro che esercitano
un'attivit professionale organizzata prevalentemente con il lavoro proprio e dei componenti della
famiglia (2.202, 2.214, 2.221). Ao pequeno empresrio no se aplicam as regras que determinam
obrigaes especficas aos demais empresrios, como a inscrio no registro de empresas (art. 2.202),
a dispensa da escriturao contbil (art. 2.214) e a no sujeio falncia (art. 2.221).
565 CC, Art. 970. A lei assegurar tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresrio
rural e ao pequeno empresrio, quanto inscrio e aos efeitos da decorrentes.
566 Constituio Federal Art. 170. A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano
e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia
social, observados os seguintes princpios: (...) IX - tratamento favorecido para as empresas de
pequeno porte constitudas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administrao no Pas.
Art. 179. A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios dispensaro s microempresas e s
empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurdico diferenciado, visando a
incentiv-las pela simplificao de suas obrigaes administrativas, tributrias, previdencirias e
creditcias, ou pela eliminao ou reduo destas por meio de lei.

Teoria crtica da empresa

268

Ivanildo Figueiredo

desenvolvimento empresarial (art. 1). Esse diploma pioneiro foi revogado pela Lei
8.864/1994, que regulamentou o art. 179 da Constituio Federal, passando a
estabelecer regimes especficos e diferenciados para a microempresa (ME) e para a
empresa de pequeno porte (EPP), assim classificadas em razo do seu faturamento
e com enquadramento formalizado perante a Junta Comercial.
A Lei 8.864/1994, por sua vez, foi revogada e substituda pela Lei 9.841/1999,
que praticamente manteve o mesmo regime anterior, com pequenas modificaes,
mas que teve como finalidade principal adaptar o regime jurdico da microempresa e
da empresa de pequeno porte nova sistemtica fiscal de pagamento de impostos e
contribuies institudo pela Lei 9.317/1996, denominado SIMPLES (Sistema
Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuies das Microempresas e
Empresas de Pequeno Porte).
A partir da Lei 9.841/1999,567 o regime de regulao da microempresa e da
empresa de pequeno porte passa a ter carter dominantemente tributrio, relegando
para segundo plano outros incentivos de ordem creditcia, comercial, trabalhista,
previdenciria e de desburocratizao dos procedimentos no registro de empresas.
A Lei 9.841/1999 vigorou por sete anos, sendo integralmente revogada pela Lei
Complementar 123/2006.568 Somente em algumas poucas disposies normativas, a
567

Lei 9.841/1999 Art. 1o Nos termos dos arts. 170 e 179 da Constituio Federal, assegurado s
microempresas e s empresas de pequeno porte tratamento jurdico diferenciado e simplificado nos
campos administrativo, tributrio, previdencirio, trabalhista, creditcio e de desenvolvimento
empresarial, em conformidade com o que dispe esta Lei e a Lei no 9.317, de 5 de dezembro de 1996,
e alteraes posteriores. Pargrafo nico. O tratamento jurdico simplificado e favorecido, estabelecido
nesta Lei, visa facilitar a constituio e o funcionamento da microempresa e da empresa de pequeno
porte, de modo a assegurar o fortalecimento de sua participao no processo de desenvolvimento
econmico e social.
568 A preocupo maior da Lei Complementar 123/2006, atualizada pela Lei Complementar 128/2008 e
depois pela Lei Complementar 147/2014, foi estabelecer um regime especial de tributao para as
microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP), como previsto no seu art. 1, o qual
estabelece que as normas gerais aplicveis a essas empresas instituem um tratamento diferenciado
especialmente no que se refere apurao e recolhimento dos impostos e contribuies da Unio,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, mediante regime nico de arrecadao, inclusive
obrigaes acessrias. De acordo com o art. 3 da Lei Complementar 123/2006, atualizada pela Lei
Complementar 147/2014, consideram-se microempresas e empresas de pequeno porte a sociedade
empresria, a sociedade simples e o empresrio, do modo como previsto no Cdigo Civil de 2002,
desde que registrados perante a Junta Comercial, sendo que, para efeitos de definio e
enquadramento legal, a microempresa aquela que aufere uma receita bruta anual igual ou inferior a
R$ 360.000,00, ou R$ 30.000,00 por ms, enquanto a empresa de pequeno porte ser assim
considerada aquela com receita bruta anual entre R$ 360.000,01 e R$ 3.600.000,00 (art. 3), ou com
faturamento mdio mensal acima de R$ 30.000,00, e inferior a R$ 300.000,00. Acima desse valor de

269

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Lei Complementar 123/2006 contm matria de natureza comercial, ao definir os


requisitos,

exigncias

procedimentos

para

enquadramento

legal

das

microempresas e empresas de pequeno porte, como nos atos perante o registro de


empresas mercantis (artigos 4 a 11), para a caracterizao do pequeno empresrio
(art. 68), do nome empresarial (art. 72) e para o protesto de ttulos (art. 73). Todo o
resto dessa lei, todavia, constitudo de normas tributrias e de desonerao de
algumas obrigaes trabalhistas acessrias (art. 51).
A Lei Complementar 123/2006

no teve como objetivo disciplinar e

regulamentar o princpio de proteo das empresas com menor capacidade


econmica, como constante do art. 179 da Constituio da Repblica, mas apenas
estabelecer um regime de incluso dessas microempresas e das empresas de
pequeno porte no mercado formal, como contribuintes fiscais.569
Alm da microempresa (ME) e da empresa de pequeno porte (EPP), a Lei
Complementar 123/2006 criou uma nova figura jurdica, a do microempreendedor
individual (MEI).570 O microempreendedor individual ou pequeno empresrio,571 o
menor exercente de atividade econmica em carter autnomo e formal, com registro
regular na Junta Comercial. Necessariamente, o microempreendedor individual deve
adotar a forma de empresrio individual (CC, art. 966), no podendo constituir sua
atividade como EIRELI (CC, art. 980-A) ou como sociedade empresria. Essa
atividade do microempreendedor individual abrange e ser sempre mais aplicada na
micro indstria artesanal, no pequeno comrcio de bairro, dos feirantes e ambulantes,
entre proprietrios de granjas, pescadores, donos de pequenos restaurantes, bares e
faturamento mensal de R$ 300.000,00, ocorrer o desenquadramento como EPP, e esta passa a
submeter-se ao regime jurdico normal aplicvel s demais empresas.
569 A Lei Complementar 123/2006 foi modificada pelas Leis Complementares 127/2007 e 128/2008,
com nfase no seu carter eminentemente tributrio e no de incentivo ou promoo das pequenas e
mdias empresas.
570 Lei Complementar 123/2006 Art. 18-A. O Microempreendedor Individual - MEI poder optar pelo
recolhimento dos impostos e contribuies abrangidos pelo Simples Nacional em valores fixos mensais,
independentemente da receita bruta por ele auferida no ms, na forma prevista neste artigo. 1o Para
os efeitos desta Lei Complementar, considera-se MEI o empresrio individual a que se refere o art. 966
da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Cdigo Civil), que tenha auferido receita bruta, no anocalendrio anterior, de at R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), optante pelo Simples Nacional e que no
esteja impedido de optar pela sistemtica prevista neste artigo.
571 Lei Complementar 123/2006 Art. 68. Considera-se pequeno empresrio, para efeito de aplicao
do disposto nos arts. 970 e 1.179 da Lei n10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Cdigo Civil), o empresrio
individual caracterizado como microempresa na forma desta Lei Complementar que aufira receita bruta
anual at o limite previsto no 1o do art. 18-A.

Teoria crtica da empresa

270

Ivanildo Figueiredo

pousadas, taxistas, profissionais autnomos de um modo geral, que exeram seu


trabalho de modo independente e sem vnculo empregatcio.
O regime diferenciado da microempresa (ME) e da empresa de pequeno porte
(EPP), de acordo com a Lei Complementar 123/2006 (art. 1), deve compreender a
existncia de um sistema de normas gerais que garantam tratamento diferenciado e
favorecido a ser dispensado a essas empresas menores no mbito dos Governos da
Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, especialmente para:
a) apurao e recolhimento dos impostos e contribuies da Unio, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municpios, mediante regime nico de arrecadao, inclusive
obrigaes acessrias (SIMPLES Nacional);
b) cumprimento de obrigaes trabalhistas e previdencirias, inclusive obrigaes
acessrias;
c) acesso a crdito e ao mercado, inclusive quanto preferncia nas aquisies de
bens e servios pelos Poderes Pblicos, tecnologia, ao associativismo e s regras
de incluso;
d) uso de cadastro nacional nico de contribuintes previsto no art. 146, pargrafo
nico, inciso IV, da Constituio Federal.

Em termos estatsticos, a importncia das microempresas e das empresas de


pequeno porte ganha muito maior relevo na realidade econmica brasileira,
considerando que elas representam 99 % das empresas, a esmagadora ou quase
totalidade das empresas nacionais.
De um total de 4.879.616 ou quase cinco milhes de empresas formais
registradas pelas pesquisas da Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica IBGE e do Servio Brasileiro de Apoio s Micros e Pequenas Empresas
- SEBRAE, um montante de 4.605.607 (93,6%) so microempresas e 274.009 (5,6 %)
representam empresas de pequeno porte. 572

572

Como critrio de classificao, segundo o Servio Brasileiro de Apoio s Micros e Pequenas


Empresas - SEBRAE, as mdias e grandes empresas so assim definidas: Mdia empresa: na
indstria, de 100 a 499 pessoas ocupadas; no comrcio e servios, de 50 a 99 pessoas ocupadas;
Grande empresa: na indstria, acima de 499 pessoas ocupadas; no comrcio e servios, acima de 99
pessoas ocupadas.

Teoria crtica da empresa

271

Ivanildo Figueiredo

As mdias e grandes empresas, no Brasil, em nmeros absolutos, resumemse, apenas, a 23.652 organizaes (0,5 %), apesar da representatividade econmica,
na medida que participam com aproximadamente 80 % da gerao de riquezas,
aferida pelo Produto Interno Bruto - PIB. Na sua relao de participao na economia
brasileira, as microempresas e as empresas de pequeno porte, formais ou regulares,
respondem por cerca de 20 % do PIB, pela ocupao de 57,2 % dos trabalhadores e
por 26 % da massa salarial distribuda.573
Portanto, apesar de quase que totalmente omitida pelas normas genricas do
Cdigo Civil de 2002, as microempresas e empresas de pequeno porte so
disciplinadas, de modo bastante especfico, pela legislao infraconstitucional,
regulamentadora do art. 179 da Constituio da Repblica. Importante observar que
o sistema de registro simplificado, destinado criao e formalizao das pequenas
empresas, denominado de Rede Nacional para a Simplificao do Registro e da
Legalizao de Empresas e Negcios - REDESIM, foi includo e assim referido no
Cdigo Civil, a partir da modificao do seu art. 968, que trata do registro do
empresrio na Junta Comercial.574
As microempresas (ME), as empresas de pequeno porte (EPP) e o
microempreendedor individual (MEI), para fins de registro nas Juntas Comerciais,
devem obter o reconhecimento da sua regularidade jurdica na REDESIM.575 Essa

573

BRASIL, Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE; http://www.ibge.gov.br/


home/estatistica/economia/microempresa, ltima estatstica disponvel referente pesquisa As Micro
e Pequenas Empresas Comerciais e de Servios no Brasil, 14/02/2012.
574 Cdigo Civil de 2002 - Art. 968. (....) 4o O processo de abertura, registro, alterao e baixa do
microempreendedor individual de que trata o art. 18-A da Lei Complementar n 123, de 14 de dezembro
de 2006, bem como qualquer exigncia para o incio de seu funcionamento devero ter trmite especial
e simplificado, preferentemente eletrnico, opcional para o empreendedor, na forma a ser disciplinada
pelo Comit para Gesto da Rede Nacional para a Simplificao do Registro e da Legalizao de
Empresas e Negcios - CGSIM, de que trata o inciso III do art. 2 da mesma Lei. 5o Para fins do
disposto no 4o, podero ser dispensados o uso da firma, com a respectiva assinatura autgrafa, o
capital, requerimentos, demais assinaturas, informaes relativas nacionalidade, estado civil e regime
de bens, bem como remessa de documentos, na forma estabelecida pelo CGSIM. (Pargrafos
includos pela Lei 12.470/2011).
575 Lei Complementar 123/2006 Art. 2o O tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado s
microempresas e empresas de pequeno porte de que trata o art. 1o desta Lei Complementar ser gerido
pelas instncias a seguir especificadas: (...) III - Comit para Gesto da Rede Nacional para
Simplificao do Registro e da Legalizao de Empresas e Negcios - CGSIM, vinculado Secretaria
da Micro e Pequena Empresa da Presidncia da Repblica, composto por representantes da Unio,
dos Estados e do Distrito Federal, dos Municpios e demais rgos de apoio e de registro empresarial,
na forma definida pelo Poder Executivo, para tratar do processo de registro e de legalizao de
empresrios e de pessoas jurdicas. (Redao da Lei Complementar n 147, de 2014).

Teoria crtica da empresa

272

Ivanildo Figueiredo

rede, operada atravs da Internet, pelo Departamento de Registro de Empresas e


Integrao DREI, subordinado Secretaria da Micro e Pequena Empresa da
Presidncia da Repblica, e por cada Junta Comercial nos Estados da Federao,
est encarregada de processar os documentos de constituio, e assim deferir o
arquivamento e registro a partir da anlise parametrizada dos atos de enquadramento
dessas pequenas empresas no regime legal especial.

273

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

4.9. O estabelecimento comercial e sua positivao na legislao codificada

A positivao do estabelecimento comercial pelo Cdigo Civil de 2002, que a


ele dedicou os artigos 1.142 a 1.149, foi recebida pela doutrina como um dos poucos
avanos introduzidos pelo regime do Direito de Empresa na novel disciplina do
exerccio

da

atividade

econmica.

Mantendo

orientao

dominante

da

desmercantilizao da empresa, o Cdigo se refere a esse instituto do direito


comercial simplesmente como estabelecimento, e no como estabelecimento
comercial, como assim sempre foi definido e tratado pela doutrina.576
O Cdigo Comercial brasileiro de 1850, apesar de no tratar, especificamente,
dos elementos integrantes da organizao da empresa, fez meno ao
estabelecimento comercial ao dispor sobre a emancipao do menor comerciante (art.
1, item 3),577 bem como empregou a expresso casa de comrcio como designao
genrica do exerccio organizado da funo mercantil (artigos 18, 39, inciso III; e 77).
Observa Carvalho de Mendona que a legislao tambm utilizava a expresso
negcio comercial como sinnima de estabelecimento comercial.578

576

Jos Xavier Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 5 edio, 1955, p. 15; Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento
comercial, cit., p. 75.
577 Cdigo Comercial de 1850 Art. 1. Podem commerciar no Brasil: 1. Todas as pessoas que, na
conformidade das Leis deste Imperio, se acharem na livre administrao de suas pessoas e bens, e
no forem expressamente prohibidas neste Codigo. 2. Os menores legitimamente emancipados. 3. Os
filhos-familias que tiverem mais de dezoito annos de idade, com autorisao dos paes, provada por
escriptura publica. O filho maior de vinte e hum annos, que for associado ao commercio do pae, e o
que com sua approvao, provada por escripto, levantar algum estabelecimento commercial, ser
reputado emancipado e maior para todos os effeitos legaes nas negociaes mercantis.
578 Como sinnima de estabelecimento comercial podemos adotar a expresso negcio comercial,
empregada na Lei n 2.024, de 17 de dezembro de 1908, arts. 2, n. 7, 78, 157 et passim, no Regul. n
738, de 1850, art. 15, e no Decreto n 848, de 11 de outubro de 1890, art. 191, letra g. O Cdigo
Comercial, no art. 301, alude casa de comrcio, no mesmo sentido. Aquela expresso equivale ao
negotium ou negotiatio do direito romano, ao fonds de commerce do direito francs e belga, a azienda
commerciale do direito italiano, ao Geschaeft ou Hendelsgeschaeft do direito alemo e austraco, ao
goodwill of a trade do direito ingls e norte-americano. Cada um desses direitos trata do instituto sob o
ponto de vista, no diremos absolutamente diferente, mas peculiar s suas instituies e tradies.
(J.X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, cit., p. 16-17).

Teoria crtica da empresa

274

Ivanildo Figueiredo

Desde que foi regulado, pela primeira vez, em uma norma positiva, no ano de
1898, na Frana, o estabelecimento recebeu a denominao de fundo de comrcio
(fonds de commerce). Essa expresso revela que a organizao da empresa sempre
esteve caracterizada, intrinsecamente, por sua natureza comercial ou mercantil. Na
Itlia, o estabelecimento foi definido, de modo mais sinttico, como azienda
commerciale ou patrimonio aziendale. Na Inglaterra, a figura do estabelecimento
consagrou-se sob a denominao goodwill of a trade, que expressa, por si s, a idia
de uma entidade mercantil. Na Espanha, a organizao dos elementos da empresa
veio a ser designada como hacienda ou establecimiento comercial, expresso
incorporada no direito portugus como estabelecimento comercial e assim tambm
adotada pela doutrina brasileira.
A idia de estabelecimento comercial decorre do modo como o empresrio
organiza os fatores de produo e os recursos necessrios explorao da atividade
econmica.579 A partir do momento em que o empresrio integraliza o capital na
empresa, ele ir estruturar o seu negcio, escolher o local que constituir sua base
fsica de atuao, passando, ento, a adquirir bens, maquinrio, equipamentos,
matrias primas e mercadorias para revenda, organizando e dispondo dos recursos
necessrios execuo do objeto da empresa, contratando empregados, enfim,
alocar e ordenar os meios para o exerccio da empresa. O estabelecimento comercial
restar configurado no momento em que esses recursos estiverem racionalmente
organizados para o cumprimento da funo econmica da empresa.

579 Na lio de Oscar Barreto Filho, o estabelecimento comercial define-se a partir de trs elementos
ou fatores: capital, trabalho e organizao: No sentido econmico, o patrimnio comercial, tanto da
pessoa fsica quanto da pessoa jurdica, se constitui, inicialmente, pelo capital, que, de ordinrio,
representado por dinheiro. Mas, para a consecuo do objetivo econmico, faz-se mister aplicar o
capital em bens adequados ao exerccio do comrcio (mquinas, matrias-primas, mercadorias, etc.).
Da transformao do capital num complexo de bens apropriados para o exerccio da atividade mercantil
resulta o estabelecimento comercial. No suficiente, contudo, o elemento esttico, representado pelo
capital, para formar o estabelecimento comercial, como unidade econmica. Faz-se mister juntar-lhe o
elemento dinmico, representado pelo trabalho, que se converte em servios, por sua vez adequados
aos objetivos que se tem em mira alcanar. Esses bens (oriundos do capital) e servios (provenientes
do trabalho) so conjugados em funo do fim colimado, e a surge o elemento estrutural: a
organizao. (...) combinao desses trs elementos ou fatores capital, trabalho e organizao
que servem ao comerciante para o exerccio de sua atividade produtiva que se denomina, em
economia, de estabelecimento comercial. Este se apresenta, sob o ponto de vista econmico, como
um organismo unitrio resultante da organizao concreta dos fatores de produo dirigida para uma
determinada atividade produtiva. (Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 62/63).

Teoria crtica da empresa

275

Ivanildo Figueiredo

Todavia, ainda antes de viabilizar a obteno dos recursos materiais


imprescindveis implantao e funcionamento da empresa, o empresrio planeja e
elabora, racionalmente, seu projeto de explorao econmica. Vrias so as idias e
concepes que antecedem execuo fsica do projeto empresarial, como a
delimitao do objeto da empresa, a definio do nome pelo qual sua empresa ser
conhecida e identificada formalmente no mercado, a escolha do ponto comercial mais
favorvel obteno de resultados econmicos, assim como do ttulo do
estabelecimento ou nome de fantasia, que seja mais receptivo ou atraente para a
captao da clientela.580
O estabelecimento comercial, sob esse ponto de vista, estar sempre
representado pelo conjunto de bens e direitos, materiais e imateriais, organizado ideal
e racionalmente pelo empresrio, para a explorao da empresa.
De acordo com o conceito legal agora positivado no art. 1.142 do Cdigo Civil
de 2002, o estabelecimento foi assim juridicamente definido:
Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado,
para exerccio da empresa, por empresrio, ou por sociedade empresria.

O estabelecimento, a partir desse conceito, compreende a organizao dos


fatores de produo necessrios ao exerccio da empresa. Esta definio cpia,
quase literal, do art. 2.555 do Cdigo Civil italiano de 1942, que conceitua a azienda
nos termos seguintes:
Art. 2.555 - Nozione - L'azienda il complesso dei beni organizzati
dall'imprenditore (2082) per l'esercizio dell'impresa.

A nica diferena entre esses dois conceitos que o Cdigo Civil brasileiro
atribui a organizao do complexo de bens do estabelecimento ao empresrio e
igualmente sociedade empresria. A expresso sociedade empresria criao do

580 O estabelecimento empresarial, assim explica Fbio Ulhoa Coelho, representa elemento
indissocivel empresa, de tal modo que no existe como iniciar a explorao de qualquer atividade
empresarial, sem a organizao de um estabelecimento, podendo ser considerado como uma
propriedade com caractersticas singulares, dependendo do modo como o empresrio ir organizar e
agregar os fatores de produo para a explorao do negcio. (Curso de Direito Comercial, vol. 1,
cit. P. 112-113).

Teoria crtica da empresa

276

Ivanildo Figueiredo

legislador brasileiro, sendo figura desconhecida no direito italiano. Como visto,


segundo o regime codificado de 2002, quando a empresa exercida coletivamente,
quem a representa no o empresrio, mas a prpria sociedade, noo contraditria
diante da prpria ausncia de capacidade volitiva desse ente, que somente
reconhecido, juridicamente, como pessoa, em virtude de uma fico legal.
De acordo com o entendimento doutrinrio dominante, o estabelecimento ,
necessariamente, comercial, e aquela pessoa natural que rene e organiza os
elementos e recursos para o exerccio da empresa um empresrio ou comerciante,
seja esse exerccio desempenhado atravs de firma individual ou de sociedade
comercial. Para Carvalho de Mendona, estabelecimento comercial o complexo de
meios idneos materiais e imateriais, pelos quais o comerciante explora determinada
espcie de comrcio.581 De modo semelhante, Oscar Barreto Filho considera que o
estabelecimento comercial o complexo de bens, materiais e imateriais, que
constituem o instrumento utilizado pelo comerciante para a explorao de
determinada atividade mercantil.582
Na caracterizao dos bens materiais da empresa, como os imveis,
maquinrio, equipamentos, mobilirio, veculos, matrias primas e estoques de
produtos, por exemplo, no existe maior dificuldade para a compreenso desses
elementos corpreos que integram o estabelecimento, e que so mobilizados a partir
do capital investido.
Os bens imateriais, por sua vez, no so perceptveis de imediato, e vo se
agregando lentamente ao patrimnio incorpreo da empresa. Constituem bens
imateriais do estabelecimento o nome empresarial, a insgnia,583 as marcas e patentes,
o ponto comercial, os processos de gesto, os sistemas de franquia, os programas de
software, a tecnologia e as demais criaes intelectuais aplicadas na atividade da
empresa. Esses direitos imateriais nascem da ao planejada, criativa ou intuitiva do
empresrio e de seus colaboradores na concepo de ideias aplicadas ao
desenvolvimento da organizao empresarial. Tais ideias so transformadas em

581

J.X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, cit., p. 15.
Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 75.
583 J.X. Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, cit., p. 23.
582

Teoria crtica da empresa

277

Ivanildo Figueiredo

elementos de explorao econmica que iro servir, em um momento subsequente,


atrao e captao de clientes, visando a realizao de negcios e gerao dos
lucros do empreendimento.
O conceito de estabelecimento, como ressalta Oscar Barreto Filho, correlativo
ao conceito de empresa. Assim, seria inconcebvel, ontologicamente, adotar a teoria
da empresa sem introduzir nesse sistema a ideia reflexa do estabelecimento como
projeo patrimonial da empresa.584 Apesar do instituto do estabelecimento ser mais
reconhecido e melhor caracterizado no regime comercial, a teoria da empresa tomou
emprestada a sua concepo como necessria para fornecer um mnimo de contedo
material, patrimonial, para embasar a forma empresarial despida de significado
concreto, pela deconsiderao do elemento mercantil.
O estabelecimento comercial se exterioriza a partir de dois atributos essenciais,
o aviamento e a clientela. O aviamento o resultado de um conjunto de variados
fatores, materiais e imateriais, que conferem a dado estabelecimento in concreto a
aptido de produzir lucros.585 O lucro, assim, a medida do aviamento incorporado
empresa pela atuao do empresrio, como objetivo essencial inerente a toda
atividade mercantil.
O aviamento significa, em sntese, o modo como o empresrio organiza os
fatores de produo para a explorao da empresa. Todavia, como ensina Oscar
Barreto Filho, o aviamento o resultado no s do conjunto da organizao dos
fatores de produo (bens e servios), como tambm da atividade e das qualidades
pessoais do comerciante (habilidade, cortesia, honestidade).586 Na ideia de
aviamento dever sempre estar presente a noo de que este depende,
fundamentalmente, da atuao do empresrio voltada para tornar a sua empresa
sempre mais eficiente e competitiva no mercado. O aviamento se revela, assim, em

584 Considera Oscar Barreto Filho que o exerccio de atividade econmica organizada pelo empresrio
pressupe, necessariamente, uma base econmica, ou seja, um complexo de bens que constituem o
instrumento e, de certo modo, o objeto de seu trabalho, de tal modo que pode-se dizer que o
estabelecimento representa a projeo patrimonial da empresa, ou, com preciso maior, o organismo
tcnico-econmico, por cujo intermdio se realiza a coordenao dos fatores de produo pela qual a
empresa atua e se desenvolve (Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 115-116).
585 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 169.
586 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 173.

Teoria crtica da empresa

278

Ivanildo Figueiredo

um primeiro momento, como a expresso do estabelecimento perante a sua clientela,


o modo como a empresa conhecida e avaliada exteriormente.
No direito anglo-saxo, o estabelecimento (goodwill of trade) visto mais sob
o aspecto prtico, como resultado concreto da ao do empresrio na gesto da
empresa. Por isso, os ingleses passaram a distinguir dois tipos de manifestao do
aviamento, o aviamento objetivo (local goodwill) e o aviamento subjetivo (personal
goodwill). O aviamento objetivo representa as qualidades e fatores externos de
explorao da empresa que ficam incorporados ao estabelecimento e assim so
considerados como elementos concretos de atrao da clientela.587
Exemplo marcante de manifestao do aviamento objetivo o ponto comercial,
que o prprio local onde se encontra instalada a empresa, sendo este de importncia
estratgica e determinante na viabilidade econmica do empreendimento. O
aviamento objetivo integra-se ao estabelecimento, podendo ser objeto unitrio de
direitos, ou seja, pode ser alienado ou arrendado, sem perda imediata das suas
caractersticas negociais.
O aviamento subjetivo assim denominado porque resulta da atuao pessoal
do empresrio, da sua experincia, da sua competncia para o exerccio de atividade
econmica lucrativa. Esse aviamento subjetivo tambm pode ser traduzido como tino
comercial, ou seja, a vocao natural que uma pessoa possui para ser profissional do
comrcio. Sendo atributo personalssimo, o aviamento subjetivo se confunde com a
prpria pessoa do empresrio, e por isso intransmissvel, desaparecendo com a
morte ou afastamento do seu titular.
O segundo atributo do estabelecimento comercial a clientela, considerada
esta como o conjunto de pessoas que, de fato, mantm com o estabelecimento
relaes continuadas de procura de bens e de servios, e que, por isso mesmo,

587

Segundo Oscar Barreto Filho, uma das mais clssicas definies de aviamento foi elaborada pelo
Juiz Joseph Story (1779-1845), da Suprema Corte dos Estados Unidos, que assim a ele se referiu:
Aviamento a vantagem ou proveito que adquirido por um estabelecimento alm do mero valor do
capital, aes, fundos ou bens nele empregados, em conseqncia do geral apoio e estmulo pblico
que ele recebe de clientes constantes ou habituais, por motivo de sua localizao ou fama, reputao
de percia ou abundncia, pontualidade, ou de outras circunstncias acidentais ou necessidades, ou
ainda de antigas parcialidades ou preconceitos (Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 175).

Teoria crtica da empresa

279

Ivanildo Figueiredo

constitui exatamente a manifestao externa do aviamento.588 A clientela no se


encontra em uma relao de domnio ou de controle por parte da empresa ou do
empresrio, mas o ordenamento jurdico reconhece um certo direito do empresrio
manuteno da sua clientela, especialmente para evitar o desvio ilcito de clientela
decorrente de atos de concorrncia desleal.
certo e induvidoso que, para a explorao econmica, a empresa depende
dos seus clientes como condio essencial para a sua prpria existncia. Todavia,
como ressaltado por Oscar Barreto Filho, a clientela no um bem imaterial, objeto
autnomo de direito; uma situao de fato, qual se atribui um valor econmico,
muitas vezes relevante, que protegido indiretamente pela lei.589 Essa proteo
jurdica geralmente representada por uma obrigao legal de no fazer, que consiste
no impedimento ou proibio a que uma empresa concorrente tente desviar,
ilicitamente, a clientela habitual de outro estabelecimento.
A tutela jurdica da clientela, no direito positivo brasileiro, encontra-se hoje
regulada a partir da Lei 12.529/2011, tambm conhecida por legislao antitruste, que
tem por objetivo estruturar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrncia SBDC,
e assim tipificar e reprimir as infraes contra a ordem econmica. Essa legislao
especfica, mais conhecida como lei antitruste, destina-se a garantir a livre
concorrncia entre as empresas no mercado, como assegurado pelo art. 173, 4 da
Constituio da Repblica, atravs de restries e vedaes ao abuso do poder
econmico, que vise dominao dos mercados, eliminao da concorrncia e ao
aumento arbitrrio dos lucros.
No caso do sistema brasileiro, Paula Forgioni observa que o nosso regime
antitruste possui, ainda, um carter instrumental vinculado proteo da economia
popular e defesa do consumidor, devendo a tutela da concorrncia tambm atender,
necessria e reflexamente, a esse escopo.590
A teoria do estabelecimento comercial est fundada, portanto, nesses dois
atributos essenciais, o aviamento e a clientela, tanto para demonstrar a importncia
588

Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 178.


Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 182.
590 Paula Andrea Forgioni, Os fundamentos do antitruste, cit., p. 170.
589

Teoria crtica da empresa

280

Ivanildo Figueiredo

dos fatores de organizao da empresa, dos seus bens e direitos materiais e


imateriais, como para evidenciar o reconhecimento da clientela como elemento
imprescindvel prpria existncia da empresa. Da porque a lei deve estabelecer um
regime especial de tutela jurdica da clientela, exatamente para evitar prticas de
concorrncia desleal ou de qualquer outro ato ilcito, ostensivo ou dissimulado, de
desvio artificial de clientes no ambiente competitivo de mercado.
O Cdigo Civil de 2002, contudo, regulou esse importante instituto do
estabelecimento comercial de modo tmido, restrito, muito mais com carter limitativo
do que para reconhecer e disciplinar os elementos essenciais do patrimnio material
e imaterial da empresa. Para o Cdigo Civil, o estabelecimento deve ser reconhecido,
principalmente, como objeto de direitos e de negcios compatveis com a sua
natureza. Nesse sentido, o art. 1.143 enuncia:
Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitrio de direitos e de negcios
jurdicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatveis com a sua natureza.

Logo em seguida, o art. 1.144 exemplifica, como negcios jurdicos que podem
ser realizados no mbito do estabelecimento, a alienao, usufruto ou
arrendamento.
A alienao ou trespasse do estabelecimento significa a venda integral da
empresa ou de alguma instalao fabril ou comercial destacada, que passa ao
controle ou subordinao de outra empresa. O trespasse a modalidade mais comum
de negcio jurdico tendo por objeto o estabelecimento. O trespasse no deve ser
confundido com a alienao do controle societrio ou com outras operaes
societrias em que a transmisso da propriedade da empresa realiza-se mediante a
venda das quotas ou aes, e no de um patrimnio separado ou cindido. Nos casos
de alienao de controle, de incorporao (Lei 6.404/1976, art. 227) ou de fuso (Lei
6.404/1976, art. 228), o objeto do negcio jurdico so os prprios ttulos
representativos do capital, e no o patrimnio segregado e contabilizado.
No trespasse, a empresa alienante do estabelecimento continuar existindo,
salvo se vier a transferir a totalidade do patrimnio cindido. Com efeito, o objeto do
negcio jurdico, na alienao do estabelecimento, so parcelas do patrimnio

Teoria crtica da empresa

281

Ivanildo Figueiredo

cindidas e transferidas para outra empresa. Assim encontra-se previsto, por exemplo,
na Lei de Recuperao de Empresas e Falncia (Lei 11.101/2005, art. 50, VII), ao
contemplar a hiptese de trespasse do estabelecimento como um dos meios ou
estratgias que podem ser adotados pelo plano de recuperao visando o
saneamento da empresa em crise.
Atravs do usufruto do estabelecimento, o titular da empresa transfere a outra
pessoa, fsica ou jurdica, o direito de percepo dos frutos, rendimentos ou lucros
gerados pela explorao comercial, mantendo todavia, no seu domnio patrimonial, a
nua propriedade do capital da empresa individual ou das quotas ou aes da
sociedade comercial.
O arrendamento empresarial representa a cesso temporria dos direitos de
explorao dos resultados do estabelecimento, mediante a celebrao de um contrato
entre o arrendador (empresrio ou scio controlador) e o arrendatrio (novo
explorador da empresa), em que o arrendatrio passar a administrar e gerenciar a
empresa durante um certo perodo de tempo, dividindo com o arrendador os lucros da
atividade, ou pagando a este um valor previamente determinado no contrato.
Alm dos negcios jurdicos expressamente relacionados no art. 1.144 do
Cdigo Civil, o estabelecimento e seus bens unitariamente considerados, podem ser
objeto, ainda, de penhor industrial ou mercantil (art. 1.447), de anticrese (art. 1.506),
de ciso patrimonial (Lei 6.404/76, art. 229) ou de penhora judicial do seu faturamento
(Cdigo de Processo Civil de 1973, art. 655, VII; Novo Cdigo de Processo Civil de
2015, art. 837).
Dependendo da natureza do problema ou da criatividade dos operadores do
direito, diversos outros negcios jurdicos podem ser realizados tendo o
estabelecimento como objeto.
Na anlise da disciplina do estabelecimento comercial no Cdigo de 2002,
Fbio Tokars revela a sua decepo com a preocupao do legislador em conceber o
estabelecimento muito mais como instrumento de interesse dos credores do que com
a prpria configurao conceitual do estabelecimento como modo de organizao dos

Teoria crtica da empresa

282

Ivanildo Figueiredo

fatores de produo e dos direitos imateriais dele resultantes.591 Isto porque os artigos
1.145 e 1.146 definem as regras de proteo dos interesses dos credores no caso de
alienao ou trespasse do estabelecimento, antes mesmo de caracterizar a projeo
desses direitos sob a perspectiva patrimonial.
De acordo com o disposto no art. 1.145 do Cdigo Civil, se no trespasse do
estabelecimento, ao empresrio vendedor no restarem bens suficientes para solver
o seu passivo, a eficcia da alienao do estabelecimento depende do pagamento de
todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tcito, em trinta
dias a partir de sua notificao. Essa regra exige a concordncia da unanimidade dos
credores para a validade da alienao do estabelecimento, reproduzindo norma que
igulamente consta na Lei de Recuperao de Empresas e Falncia (Lei 11.101/2005,
art. 129, VI). Esse requisito, de quase impossvel aplicabilidade, diante da
necessidade da aceitao da totalidade ou unanimidade dos credores para a validade
do trespasse do estabelecimento, revela evidente antinomia diante da tendncia
evolutiva recente do direito comercial, que passou a mover o seu foco antes centrado
apenas no interesse dos credores, para a necessidade de preservao da empresa e
para o cumprimento da sua funo social.592
Na legislao comercial extravagante, como na parte disciplinada pela Lei de
Recuperao de Empresas e Falncia (Lei 11.101/2005), a alienao do
estabelecimento comercial vem a ser considerada como uma das principais
estratgias para a superao da crise patrimonial da empresa, e assim se observa em
alguns de seus dispositivos.593 O Cdigo Civil de 2002 no seguiu essa tendncia

591

Fbio Tokars, Estabelecimento empresarial, So Paulo, Atlas, LTR, 2006, p. 13.


Considera Fbio Tokars que o art. 1.145 repete a supramencionada regra do direito falimentar,
estendendo seu mbito de aplicao para alm dos limites da declarao de falncia do vendedor,
possibilitando-se a declarao de ineficcia da venda do estabelecimento incidentalmente em qualquer
modalidade de execuo. O legislador do Cdigo, assim, partiu de uma regra em si criticvel, por
presumir indevidamente a m-f do adquirente do estabelecimento empresarial, para consagr-la,
tornando-a aplicvel em qualquer relao de crdito (Estabelecimento empresarial, cit., p. 13).
593 A Lei 11.101/2005 prev, em dispositivo especfico, a possibilidade do trespasse ou arrendamento
do estabelecimento como um dos meios para a recuperao da empresa, dependendo essa alienao
do consentimento da maioria dos credores, e no da sua unanimidade (art. 50, VII); somente no caso
de falncia da empresa, que a alienao do estabelecimento sem o consentimento da unanimidade
dos credores pode servir de fundamento para a decretao da quebra (art. 94, III, c) ou para que seja
declarada ineficaz (art. 129, VI). Todavia, mesmo na falncia, a alienao do estabelecimento pode ser
realizada, judicialmente, sem a necessidade de concordncia de todos os credores (art. 140).
592

Teoria crtica da empresa

283

Ivanildo Figueiredo

evolutiva, na medida em que coloca sob suspeio os negcios que tenham por objeto
a alienao do estabelecimento.
Ocorrendo a alienao do estabelecimento, o art. 1.146 do Cdigo prescreve
que o adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos dbitos
anteriores transferncia, desde que regularmente contabilizados, continuando o
devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos
crditos vencidos, da publicao, e, quanto aos outros, da data do vencimento.594
Desse modo, na alienao do estabelecimento, instaura-se uma situao de
insegurana jurdica para o adquirente, que ficar como devedor solidrio pelas
dvidas da empresa existentes no momento da alienao, ainda que a esse passivo
no tenha dado causa.595
A redao do art. 1.146 do Cdigo Civil caracteriza, na opinio de Fbio Tokars,
evidente absurdo jurdico, decorrente da confuso entre sujeito e objeto de direito, e
que gera dificuldades prticas de aplicao nas operaes de alienao do
estabelecimento, instaurando um estado de regulamentao imprpria, que impede
materialmente a realizao do negcio por empresrios que sejam previamente
informados quanto aos possveis efeitos jurdicos do negcio, e que, desta forma,
nega o princpio da preservao da empresa.596
Como resultante desse princpio de preservao da empresa, que tem como
fundamento um princpio constitucional superior, o da funo social da empresa (CF,
art. 170, III), no regime falimentar, no caso de alienao de ativos representados pelo
prprio estabelecimento empresarial, ocorrendo a alienao da empresa como um
todo, o objeto da alienao estar livre de qualquer nus e no haver sucesso do

594

O trespasse do estabelecimento, na opinio de Marcelo Andrade Fres, representa um negcio


jurdico derivado, como assim por ele explicado: Esse mecanismo negocial de aquisio derivada
enseja a continuao da empresa (atividade) nas mos do adquirente do estabelecimento. Assim, o
trespasse deve importar na transferncia das vicissitudes negociais do estabelecimento. Ao adquirente
devem ser transmitidos sucesso ou insucesso da atividade desempenhada no passado da azienda.
Esse o intuito que orienta a escolha pelo trespasse e dele o sistema deve desincumbir-se.
(Estabelecimento empresarial: trespasse e efeitos obrigacionais, So Paulo, Saraiva, 2007, p. 45).
595 Segundo Fbio Tokars, em vez de aprimorar o tratamento jurdico da matria, concedendo maior
segurana aos contratantes, o Cdigo Civil acabou por elevar exponencialmente os riscos do
adquirente do fundo de empresa, acatando a falsa premissa da necessidade de tutelar ao extremo os
interesses dos credores (Estabelecimento empresarial, cit., p. 13).
596 Fbio Tokars, Estabelecimento empresarial, cit., p. 13.

284

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

arrematante nas obrigaes do devedor, inclusive as de natureza tributria, as


derivadas da legislao do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho. (Lei
11.101/2005, art. 141, inciso II). Todavia, no caso de recuperao judicial, esse efeito
ser mais restrito, pois somente no ocorrer a relao de sucesso na alienao de
filial ou unidade produtiva isolada, e no do estabelecimento como um todo (Lei
11.101/2005, art. 60, pargrafo nico).
O Cdigo Civil de 2002, na contramo da histria e da evoluo do direito
mercantil, simplesmente reproduziu as normas do Cdigo italiano de 1942, que
consideram

que

passivo

do

estabelecimento

alienado

fica

sendo

de

responsabilidade conjunta e solidria do vendedor e do comprador (art. 2.560),


adotando esse pressuposto no exclusivo interesse dos credores da empresa, e no
das demais partes envolvidas nas relaes jurdicas de natureza econmica, fiscal ou
trabalhista. A sucesso nas obrigaes civis, comerciais, tributrias e at trabalhistas
do estabelecimento alienado passou a ser relativizada pela legislao comercial mais
recente, agora mais preocupada com os novos paradigmas voltados continuidade
da organizao produtiva.
Ainda na disciplina do estabelecimento comercial, o Cdigo de 2002 vem a
contemplar uma hiptese muito importante no mbito da proteo da clientela, que
trata da clusula de no-concorrncia no caso de alienao ou trespasse do
estabelecimento. A norma que dispe sobre tal situao, que representa um avano
tardio no direito positivo brasileiro, assim prescreve:
Art. 1.147. No havendo autorizao expressa, o alienante do
estabelecimento no pode fazer concorrncia ao adquirente, nos cinco anos
subseqentes transferncia.

A clusula de no-concorrncia tambm denominada, pela doutrina, de


cesso da clientela. Isto porque o adquirente do estabelecimento deve assumir a
obrigao de no constituir nova empresa para explorao do mesmo ramo de
atividade daquele explorado pelo estabelecimento alienado. A cesso de clientela,
apesar da clientela no se caracterizar como um objeto de posse ou de domnio do
empresrio, significa que o estabelecimento, ao ser alienado, estar sendo
acompanhado dos seus atributos principais, representados pelo aviamento objetivo e

Teoria crtica da empresa

285

Ivanildo Figueiredo

pela clientela que, em condies normais, realiza negcios com aquela casa
comercial.
No Cdigo italiano de 1942, essa obrigao especfica na alienao do
estabelecimento foi denominada de proibio de concorrncia, expressa em seu art.
2.557:
Art. 2.557 - Divieto di concorrenza - Chi aliena l'azienda deve astenersi,
per il periodo di cinque anni dal trasferimento, dall'iniziare una nuova impresa che per
l'oggetto, l'ubicazione o altre circostanze sia idonea a sviare la clientela dell'azienda
ceduta (2.125, 2.596).

No mnimo, o adquirente do estabelecimento deve ter a garantia de que o


alienante, ao receber a soma decorrente da venda da empresa e da cesso dos
direitos de explorao econmica, no ir aplicar esse dinheiro na constituio de
outra empresa para fazer concorrncia no mesmo ramo de atividade. No direito
positivo brasileiro, todavia, essa matria estava sendo objeto de previso, apenas,
nos contratos de alienao do estabelecimento, no existindo nenhum precedente
como norma cogente.597
A regra constante do art. 1.147 do Cdigo Civil consagra o princpio de que o
alienante do estabelecimento no pode fazer concorrncia ao adquirente, e
reconhece, desse modo, que o trespasse do fundo de comrcio importa tambm na
cesso da clientela, ou seja, no direito do adquirente dos bens materiais de ser

597

O caso mais famoso relacionado clusula de no concorrncia ou de cesso de clientela no Brasil


ocorreu no processo envolvendo a alienao, no ano de 1913, da Companhia Nacional de Tecidos de
Juta, de So Paulo, ento controlada pelo Conde Slvio lvares Penteado, titular da Fbrica de Juta
Santana, que fabricava sacos para acondicionamento de gros de caf destinado exportao. Aps
haver alienado o seu estabelecimento, o Conde lvares Penteado, decorrido o prazo de menos de um
ano, veio a instalar uma nova fbrica para explorar a mesma atividade, atravs da Companhia Paulista
de Aniagem, no mesmo bairro da capital paulista onde estava instalado o estabelecimento alienado.
Sentindo-se prejudicada, a Companhia Nacional de Tecidos de Juta, adquirida por um grupo ingls,
ingressou com uma ao indenizatria contra a Companhia Paulista de Aniagem, pedindo a
condenao da parte contrria para que esta restitusse a importncia de $ 3.000 contos de ris,
correspondente estimativa da clientela da fbrica alienada, considerando que a cesso da clientela
estaria implcita na alienao do estabelecimento. Este caso foi considerado um embate mpar entre
dois dos maiores advogados e juristas brasileiros: de um lado, J.X. Carvalho de Mendona como
advogado do adquirente do estabelecimento, a Companhia Nacional de Tecidos de Juta, e, do outro
lado, Ruy Barbosa, patrono dos interesses do Conde lvares Penteado e da Companhia Paulista de
Aniagem. Julgando a causa em grau de recurso, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa ao
alienante, Conde lvares Penteado, entendendo que a clusula de no concorrncia ou de cesso da
clientela, que no estava prevista no contrato, deveria ser expressa. (Rubens Requio, Curso de
Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 349).

Teoria crtica da empresa

286

Ivanildo Figueiredo

tambm cessionrio dos atributos e dos bens imateriais do estabelecimento. Somente


aps decorrido o prazo de cinco anos da alienao, poder o alienante constituir nova
empresa para explorar o mesmo ramo de atividade econmica, o que demonstra a
aceitao, pelo nosso direito positivo, da existncia de certos atributos imateriais do
estabelecimento, em especial o direito clientela.
No caso do aviamento, ainda que o Cdigo Civil de 2002 no venha a se referir
a esse atributo como integrante do estabelecimento, ele admite, no seu art. 1.187,
pargrafo nico, que a quantia efetivamente paga a ttulo de aviamento de
estabelecimento adquirido pelo empresrio ou sociedade possa ser inserida e
contabilizada nos valores do ativo da empresa compradora e cessionria dos direitos
imateriais incorporados ao fundo de comrcio.
Ainda que disciplinado em poucas regras no livro do Direito de Empresa, o
simples fato da positivao do estabelecimento comercial pelo Cdigo Civil, na opinio
de Waldirio Bulgarelli, representa uma inovao valiosa, permitindo que se liberte, na
prtica principalmente no que toca aos negcios jurdicos de que objeto - das
inseguranas e incertezas em que est envolto, pela ausncia de normas
expressas.598
Essa nova situao normativa ir permitir, em concluso, um melhor tratamento
doutrinrio tendo por objeto a figura do estabelecimento comercial. E isto no apenas
para consagrar a sua importncia como instituto fundamental do Direito de Empresa,
mas para reconhecer o estabelecimento como elemento essencial para a prpria
definio da empresa no contexto das relaes patrimoniais, especialmente daquelas
resultantes da ao criativa e inovadora do empresrio na explorao da atividade
econmica.

598

Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, cit., p. 243.

287

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Captulo 5
A unificao do direito das obrigaes

5.1. Pressupostos da unificao do direito das


obrigaes; 5.2. Princpios e modalidades
contratuais no Cdigo de 2002; 5.3. Aspectos
diferenciadores da compra e venda mercantil; 5.4.
Contratos mercantis regulados pela legislao
especial; 5.5. A nova classificao dos contratos
empresariais.

5.1. Pressupostos da unificao do direito das obrigaes

Um dos principais objetivos do legislador do Cdigo Civil de 2002, alm da


proposta de atualizao do direito privado brasileiro, foi promover a unificao do
direito das obrigaes em nosso ordenamento jurdico.599 Essa concepo unificadora
foi originariamente adotada pelo Cdigo das Obrigaes da Sua de 1881, que teve
como escopo a necessidade de tratamento igualitrio para as obrigaes,
considerando que a sua estrutura relacional era e sempre seria comum para qualquer
tipo de negcio jurdico, fosse este de natureza civil ou comercial.
A

unicidade

da

estrutura

obrigacional implica,

necessariamente,

no

reconhecimento de um mesmo tratamento para qualquer tipo de relao jurdica de


direito privado. Este aspecto incontroverso, por bvio, a partir da noo geral de
obrigao, que se expressa pela relao em que um sujeito (credor) realiza seu
prprio interesse com a cooperao ativa ou passiva de outro sujeito (devedor).600

599
600

Miguel Reale, Exposio de Motivos do Projeto do Cdigo Civil, cit., p. 107.


Mario Rotondi, Instituciones de Derecho Privado, Barcelona, Labor, 1953, p. 308.

Teoria crtica da empresa

288

Ivanildo Figueiredo

Na sua origem, a obrigao resultava da prtica de ato ilcito, e estava


representada pelo estado de submisso em que o devedor posicionava-se perante o
credor. A reside o prprio significado etimolgico da expresso, derivada de obligare
ou obligatio, que somente considerava-se cumprida diante do solvere, da solutio.601
Em um momento posterior da evoluo do direito, a fonte das obrigaes
passou a ser o contrato, instrumento negociado de estipulao de deveres unilaterais
ou bilaterais, mas tendo como elemento comum a relao jurdica, o vnculo
instaurado entre credor e devedor.602
No contrato de mtuo, por exemplo, a obrigao unilateral, cabendo ao
devedor cumprir a nica prestao admitida, juridicamente prevista, de pagar quantia
determinada em dinheiro ao credor. O contrato de compra e venda, por sua vez,
bilateral,603 na medida em que o vendedor credor do comprador para que este
preste, pagando o preo, ao passo que o comprador ao mesmo tempo credor do
vendedor, para que este preste, entregando a coisa vendida.604
No mbito dessa estrutura relacional, a obrigao revela-se una, como
categoria fundamental do direito. Na evoluo do direito civil, que passou a incorporar
os princpios da sociabilidade e da sua insero na nova doutrina da
constitucionalizao das relaes privadas, com o deslocamento do objeto tutelado
para a pessoa, colocando em segundo plano o contedo patrimonial da prestao, a

601

Na lio de Mario Rotondi, obligare quer dizer ligar com cordas, e solvere liberar das cordas, dos
vnculos, das correntes, do vnculo estreito de sujeio do devedor que somente extinto com a
satisfao do credor diante do adimplemento da prestao correspondente. (Instituciones de Derecho
Privado, cit., p. 310).
602 Na sua acepo mais ampla, ensina Roberto de Ruggiero, a obrigao exprime qualquer espcie
de vnculo ou de sujeio da pessoa, qualquer que seja a sua fonte ou contedo, nela se podendo
englobar qualquer obrigao que seja ditada pela moral, convenincia, honra, usos sociais, por outro
lado qualquer obrigao imposta pelas normas jurdicas, sejam elas de direito pblico ou privado, mas
no seu sentido jurdico, considera-se obrigao somente as que nascem de relaes entre pessoas,
tm um contedo patrimonial e implicam para uma pessoa o dever de fazer a outra uma prestao e,
para essa segunda pessoa, a faculdade de a exigir da primeira(Instituies de Direito Civil, vol. 3,
Campinas, Bookseller, 1 edio, 1999, p. 33-34).
603 Cdigo Civil Art. 481.Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir
o domnio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preo em dinheiro.
604 Paulo Luiz Netto Lobo, Teoria Geral das Obrigaes, So Paulo, Saraiva, 2005, p. 21.

Teoria crtica da empresa

289

Ivanildo Figueiredo

obrigao, na lio de Pietro Perlingieri, no se identifica no direito ou nos direitos do


credor, passando a se representar, destarte, autntica relao de cooperao.605
Em qualquer esfera obrigacional no campo do direito privado, seja nos negcios
civis ou comerciais, a obrigao, como relao de cooperao, mantm as mesmas
caractersticas e produzir os mesmos efeitos jurdicos: o adimplemento,
simplesmente, extingue a obrigao; o inadimplemento, por sua vez, tem como
conseqncia a execuo forada do credor contra o devedor, se com este no
conseguir encontrar soluo negociada para o atraso no pagamento.
Sob o aspecto estrutural, so trs os elementos da obrigao, qualquer que
seja a natureza ou o tipo do negcio jurdico: a existncia de um vnculo jurdico entre
duas pessoas, a duplicidade de sujeitos, um ativo (credor) e outro passivo (devedor),
e a prestao, que constitui o objeto da obrigao.606
Considerando a unicidade da relao obrigacional, independentemente do seu
objeto, essa estrutura formal aplica-se tanto aos negcios civis, entre particulares,
como aos contratos empresariais, no qual deve figurar em um dos plos da relao
um empresrio ou uma empresa comercial, assim como no que se refere aos
contratos de consumo, regulados pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990).
Partindo dessa diretriz unitarista, o legislador do Cdigo Civil de 2002 entendeu
conveniente e oportuno reproduzir a concepo reducionista do Cdigo italiano de
1942, e assim veio a imprimir tratamento generalista ao direito das obrigaes, sem
considerar as peculiaridades inerentes ao objeto contratual especfico dos negcios
jurdicos mercantis e tambm s relaes de consumo, em que sempre haver em um
dos polos do processo negocial uma empresa ou empresrio, dito fornecedor.607

605

Segundo Pietro Perlingieri, a obrigao configura-se cada vez mais como uma relao de
cooperao. E tal fato importa em uma mudana radical de perspectiva de leitura da disciplina das
obrigaes; esta ltima no deve ser considerada o estatuto do credor; a cooperao, e um
determinado modo de ser, substitui a subordinao e o credor se torna titular de obrigaes genricas
ou especficas de cooperao ao adimplemento do devedor (Perfis do Direito Civil Introduo ao
Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2 edio, 2002, p. 212).
606 Roberto de Ruggiero, Instituies de Direito Civil, cit., p. 37.
607 Lei 8.078/1990 Art. 3. Fornecedor toda pess oa fsica ou jurdica, pblica ou privada, nacional
ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produo,

Teoria crtica da empresa

290

Ivanildo Figueiredo

O Cdigo Comercial de 1850, no seu Ttulo V (arts. 121 a 139), estabelecia as


normas gerais relativas aos contratos e obrigaes mercantis. Cabe desde logo
destacar que, nessa poca, ainda no havia entrado em vigor o Cdigo Civil, o que
somente ocorreria 66 anos depois.608 A obrigao mercantil, portanto, foi definida no
nosso direito positivo como categoria obrigacional especfica ainda antes da
conceituao da obrigao civil.
Essas disposies do Cdigo Comercial no definiam a obrigao como
mercantil, mas apenas continham regras de interpretao, prova e execuo dos
contratos comerciais, considerados estes como aqueles no qual em um dos plos da
relao encontrava-se a pessoa de um comerciante. Na sua estrutura deontolgica, a
obrigao comercial no se diferenciava da do direito comum, tanto que o art. 121 do
Cdigo Comercial estabelecia a aplicao subsidiria das normas de Direito Civil na
regulao dos contratos mercantis.
O Cdigo Comercial de 1850, na verdade, encerrava no seu contexto normas
obrigacionais genricas. O art. 129 do Cdigo Comercial prescrevia as causas de
nulidade dos contratos comerciais, enquanto em algumas outras disposies,
estabelecia regras especficas para a formao, prova e interpretao dos contratos
mercantis. Os artigos 135, 137 e 138 do Cdigo de Comrcio do Imprio mencionavam
a existncia da obrigao mercantil ou comercial, atribuindo, assim, natureza
diferenciada da obrigao civil. Essas normas regulavam as hipteses de contagem
dos prazos dos contratos mercantis (art. 135), do prazo presumido para o incio da
execuo da prestao do contrato (art. 137), assim como tambm os efeitos da mora
quando no estipulada no contrato (art. 138).
No final da sua Parte Primeira, no Ttulo XVII, o Cdigo de 1850 definia, ainda,
algumas regras sobre os modos de dissoluo e extino das obrigaes mercantis

montagem, criao, construo, transformao, importao, exportao, distribuio ou


comercializao de produtos ou prestao de servios.
608 Na opinio de Paula Castello Miguel, as regras relativas a obrigaes foram includas no Cdigo
Comercial, pois a nossa legislao civil da poca era falha e desordenada, e para que os contratos
comerciais tivessem uma fcil interpretao eram necessrias normas relativas ao direito obrigacional
(Contratos entre empresas, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 63).

Teoria crtica da empresa

291

Ivanildo Figueiredo

(arts. 428 a 440), que eram na sua base originrias do direito civil, com normas
limitadas ao pagamento, novao e compensao nos contratos comerciais.
No Cdigo Comercial, a denominada obrigao mercantil confundia-se com o
prprio contrato. No existia um regime obrigacional amplo para os negcios
mercantis, tal como posteriormente foi institudo pelo Cdigo Civil de 1916. O Cdigo
Civil passou, a partir de ento, a disciplinar as categorias e institutos fundamentais do
direito das obrigaes, como as suas modalidades denticas bsicas (dar, fazer e no
fazer), as obrigaes alternativas, divisibilidade e indivisibilidade, solidariedade,
transmisso das obrigaes, pagamento, novao, sub-rogao, dao em
pagamento, efeitos da inexecuo, a mora, as perdas e danos, os juros, e, por fim, a
clusula penal.
necessrio afirmar, neste ponto, que o direito das obrigaes no se
encontrava regulado no Cdigo Comercial, e as referncias existncia da obrigao
mercantil, em alguns artigos, no importava no reconhecimento da existncia de um
direito obrigacional comercial, instituidor de regime diferenciado do regime geral do
direito privado. O que o Cdigo Comercial de 1850 regulava eram normas genricas
de obrigaes e tipos especficos de contratos mercantis, praticados por
comerciantes, que tinham por objeto bens mveis, e que eram executados e
interpretados no que for mais conforme boa-f, e ao verdadeiro esprito e natureza
do contrato. (art. 131, item 1).
Os contratos mercantis, estes sim, sempre mereceram tratamento prprio,
especfico e adaptado s peculiaridades dos negcios comerciais. A simplicidade e a
agilidade das frmulas dos contratos mercantis exigiam, e ainda continuam a exigir,
sem embargo, tratamento diferenciado daquelas aplicadas aos contratos civis entre
particulares, ou seja, daqueles que no exercem, com profissionalidade, uma
atividade especulativa e de risco.
Observa Paulo Lobo, ao comentar o Cdigo Civil de 2002, que as normas
jurdicas estabelecidas nos arts. 233 a 420 do Cdigo aplicam-se a todas as relaes
jurdicas obrigacionais, assim as negociais como as extranegociais, de natureza civil
ou mercantil, previstas no referido Cdigo ou na legislao especial. Essas mesmas

Teoria crtica da empresa

292

Ivanildo Figueiredo

normas tambm so aplicveis s relaes contratuais de consumo, supletivamente,


no que no contrariarem o princpio constitucional de defesa do consumidor (art. 170,
V, da CF).609
O objetivo do Cdigo de 2002 foi estabelecer um regime obrigacional comum,
qualquer que seja a natureza do negcio, sob o fundamento de que no existiriam
mais razes histricas e metodolgicas para a diferenciao entre a obrigao civil e
a obrigao comercial.
O Cdigo das Obrigaes suo do sculo XIX, contudo, teve como objetivo
retirar do Cdigo Civil a parte relativa s obrigaes, exatamente porque o direito das
obrigaes, diferentemente dos outros ramos do direito civil, o que menos se torna
sensvel s mutaes sociais, sendo, segundo lvaro Villaa Azevedo, o que mais
se presta unificao.610 Essa constatao deveras vlida, mas apenas no que se
refere parte geral do direito das obrigaes, no sendo, todavia, apropriada ou
extensvel para as diversas modalidades contratuais, em razo do objeto especfico
correspondente a cada negcio jurdico.
O direito das obrigaes resulta de um ncleo firme e imutvel. Ou seja, o
regime obrigacional decorre de uma estrutura unvoca, aplicvel a qualquer tipo de
relao jurdica em que estejam presentes duas partes, uma credora e outra
devedora, independentemente da natureza do negcio ou do contedo da prestao.
Portanto, para evidenciar mais uma das relevantes antinomias presentes no
regime do Direito de Empresa no Cdigo Civil de 2002, o presente captulo tem como
finalidade destacar a existncia de um regime comercialista especfico aplicvel,
apenas, aos contratos mercantis, separado do regime genrico das normas do Cdigo
Civil. Para esse fim, ser demonstrado que esse sistema mercantilista tpico, que
compreende dentro de si gama infindvel de negcios e operaes mercantis, no foi
minimamente abalado ou modificado pelas normas do Cdigo Civil, que, nessa parte
relevante, nenhuma unificao promoveu no mbito do direito privado.

609

Paulo Luiz Netto Lbo, Teoria Geral das Obrigaes, cit., p. 20.
Teoria Geral das Obrigaes Responsabilidade Civil, So Paulo, Atlas, 10 edio, 2004, p.
26-27.

610

Teoria crtica da empresa

293

Ivanildo Figueiredo

A mera transposio de alguns tipos contratuais do Cdigo Comercial para o


novo Cdigo Civil no representou, com certeza, a unificao do direito obrigacional
em nosso sistema de direito positivo.611 Alm do mais, a manuteno, quase intacta,
da tipologia contratual regulada pelo Cdigo de 1916 revela, isto sim, que os negcios
contratuais previstos no Cdigo de 2002 caracterizam-se muito mais como negcios
de natureza civil, e no de natureza mercantil.
A disciplina prpria e especfica dos contratos comerciais apresenta-se, como
ser melhor demonstrado adiante, incompatvel com o regime unificado adotado pelo
Cdigo de 2002. Isto porque o regime peculiar dos contratos mercantis deveria
considerar a disciplina dessas relaes contratuais, segundo assim entende Fbio
Ulhoa Coelho, como direito-custo, que existe de modo diferenciado em face das
vantagens competitivas na economia.612 A relao jurdico-mercantil, assim,
compreende, em si, o carter econmico dos contratos, e no uma natureza indefinida
e despida de profissionalidade ou finalidade lucrativa.
O contrato mercantil, diferentemente do modelo generalista do contrato civil,
possui como substrato essencial a regulao de negcios jurdicos especulativos, que
so discutidos, elaborados e formalizados a partir, como referido por Fbio Ulhoa
Coelho, de pressupostos e elementos de custos sempre presentes nas transaes
comerciais. Esse direito-custo significa que o contrato mercantil contempla aspectos
diferenciais especficos estranhos aos contratos no-profissionais, de direito civil,
celebrados esporadicamente para atender a fim determinado e que se esgotam em si
mesmos, ao ser concludo o negcio jurdico.
Os contratos comerciais, ao contrrio, se reproduzem em massa, so
celebrados em srie, se repetem em sequncia, conferem a uma das partes, a
611

Em crtica contundente, Rubens Requio discorda, radicalmente, do projeto de unificao do direito


das obrigaes tal como proposto pelo Cdigo de 2002, em crtica proferida ainda na fase do projeto:
Consiste a unificao, isto sim, na simples justaposio formal da matria civil, ao lado da matria
comercial, regulada num mesmo diploma. Constitui, repetimos, simples e inexpressiva unificao
formal. Isso, na verdade, nada diz de cientfico e de lgico, pois, como se disse em Exposio de
Motivos preliminar, o Direito Comercial, como disciplina autnoma, no desaparecer com a
codificao, pois nela apenas se integra formalmente. O artificialismo desse critrio criou no projeto a
preocupao de proscrever o adjetivo comercial ou mercantil. Essas expresses so tabus...
(Projeto de Cdigo Civil, Apreciao Crtica sobre a Parte Geral e Livro I (Das Obrigaes), So
Paulo, Revista dos Tribunais, n 477, 1985, p. 12-13).
612 Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 14.

Teoria crtica da empresa

294

Ivanildo Figueiredo

empresa, uma particular e especfica natureza profissional e especulativa. A execuo


desses atos em massa, ofertados ao pblico pelas empresas atravs de recursos de
publicidade e de estratgias de marketing e propaganda, com a finalidade de atrair a
clientela e consumidores indeterminados, pressupe a presena de elementos
prprios de modo totalmente diverso daquele que observado nos contratos civis no
empresariais.
Em razo dessas caractersticas diferenciais, Fbio Ulhoa Coelho considera
que essa distino entre contratos civis e contratos mercantis continua pertinente,
mesmo aps a entrada em vigor do Cdigo Civil de 2002, porque a unificao
legislativa no importa na eliminao de diferentes disciplinas jurdicas.613
Os contratos mercantis no poderiam ser simplesmente extintos ou
juridicamente desqualificados pelo simples fato do legislador haver optado pela
desmercantilizao dos negcios privados, enquanto que, passando ao largo desse
regime codificado, verificamos a existncia de uma srie de negcios e contratos que
permanecero tipificados como mercantis, ainda que o ncleo obrigacional dessas
relaes econmicas tenha sido artificialmente unificado.
Como visto, no campo do objeto negocial que as relaes contratuais devem
ser inicialmente separadas e diferenciadas. Com efeito, os negcios mercantis
continuaro assim sendo classificados em razo do peculiar objeto da prestao
especialmente constituda, do modo de sua execuo e da presena, em um dos plos
da relao, de uma empresa comercial.
Apesar da unicidade da relao obrigacional, os contratos mercantis possuem
objeto prprio, que compreende a comercializao de mercadorias ou a prestao de
servios comerciais. O especfico objeto mercantil, a predisposio das mercadorias
para a sua venda no mercado, com o intuito de obteno de lucro, representa um
aspecto diferenciador de efetiva relevncia jurdica, situao que no se faz presente
nos contratos civis.

613

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 19.

Teoria crtica da empresa

295

Ivanildo Figueiredo

Por exemplo, no caso de uma empresa que tem por objeto a fabricao e
comercializao de calados, esta realiza negcios de compra de matrias primas,
como o couro, produzido por um cortume, alm de outros insumos, como pregos
adquiridos de uma empresa metalrgica, a cola de uma indstria qumica e a borracha
dos solados fornecida por uma fbrica de produtos sintticos, para em seguida
submeter esses insumos a um processo de industrializao. Essa empresa no vende
diretamente os calados produzidos aos consumidores, mas realiza a distribuio dos
seus produtos atravs de outras empresas atacadistas e varejistas ou por
representantes comerciais. Nessa situao tpica, o objeto das relaes contratuais
assume natureza estritamente mercantil, seja na aquisio de insumos de outras
empresas comerciais, seja na venda dos produtos industrializados a empresas
distribuidoras, varejistas ou representantes, tambm comerciais. As caractersticas
dessas operaes empresariais revestem-se de uma especificidade que no pode ser,
de modo algum, enquadrada na generalidade dos contratos civis, celebrados entre
particulares, que geralmente tm por objeto uma coisa fora do comrcio e tampouco
visam o lucro.
Os negcios comerciais so planejados, concebidos e implementados a partir
de um desiderato lucrativo, em que a racionalidade contbil orienta e determina o
contedo e os objetivos buscados nas relaes contratuais. Todo contrato empresarial
visa, necessariamente o lucro, ou seja, nas palavras de Paula Forgioni, tem o escopo
de lucro.614 As estratgias mercadolgicas para a oferta dos produtos no mercado, os
modelos negociais adotados pelas empresas, a organizao dos seus sistemas
administrativos, a estruturao de processos industriais, a persecuo constante de
resultados econmicos, a cotao das aes das companhias abertas nas bolsas de
valores, todos esses elementos, totalmente ausentes nas relaes de Direito Civil,

614

Nos contratos empresariais, ambos [ou todos] os polos so movidos pela busca do lucro, tm sua
atividade toda ela voltada para a perseguio de vantagem econmica. (...) Talvez a onerosidade
seja o atributo dos contratos mercantis mais destacado pela doutrina, que sempre os encarou como
forma de obter proveito econmico. A empresa no atua no mercado por outra razo ltima que no a
obteno de lucro; assim, pode-se legitimamente supor que a celebrao dos contratos
interempresariais d-se porque todas as partes acreditam que seus interesses esto sendo satisfeitos.
O fim lucrativo a caracterstica fundamental a partir do qual se desdobram as demais peculiaridades
dos negcios mercantis. (Paula Andrea Forgioni, Teoria geral dos contratos empresariais, So
Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 56/57).

Teoria crtica da empresa

296

Ivanildo Figueiredo

evidenciam que os contratos mercantis no podem ser disciplinados sob um regime


jurdico comum.
Ainda que a estrutura relacional do direito das obrigaes venha a ser
desenvolvida a partir de conceitos e institutos gerais, a tipologia dos contratos e as
caractersticas prprias dos negcios comerciais sempre exigiram tratamento
diferenciado, que respeite as peculiaridades das transaes mercantis, funo que
assumida, sem dvida, pela legislao comercial suplementar e descodificada. Para
o sistema unitarista e unificador do Cdigo Civil de 2002, no seria mais conveniente
manter a diviso entre os contratos civis e os contratos mercantis.
Na Itlia, observa Paula Forgioni, a teoria geral dos contratos comerciais
restou estagnada, chegando a ser contestada a prpria existncia dos contratos
mercantis.615 Em determinado momento da histria, entendeu a doutrina italiana que
a distino entre negcios civis e negcios comerciais no mais se justificava, e que
esta separao representaria mesmo uma inutilidade ou ilegitimidade que estaria
provocando grande dificuldade para a interpretao e aplicao das normas
contratuais na esfera do direito privado.616
No Brasil, duas iniciativas anteriores de unificao do direito das obrigaes,
propostas por Teixeira de Freitas, no esboo do seu projeto do Cdigo Civil (1866), e
por Ingls de Souza (1912), apesar de no incorporadas ao nosso direito positivo,
contriburam para disseminar a idia de que a dualidade de regimes obrigacionais
representaria um problema metodolgico somente supervel pela supresso do
sistema mercantil. Partindo de premissas equivocadas, a doutrina civilista entendia
que, de certo modo, o direito das obrigaes j estaria unificado em face da redao
dos artigos 121 e 428 do Cdigo Comercial de 1850, como tambm pela extino da
jurisdio comercial ocorrida em 1875.617
Resgatando das tumbas da histria esses precedentes antigos e superados, o
Cdigo de 2002 desmercantilizou os contratos, retirou a natureza comercial dos

615

Paula Andrea Forgioni, Teoria geral dos contratos empresariais, cit., p. 41.
Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, I contratti dellImpresa, Turim, G. Giappichelli Editore,
2006, p. 1.
617 Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, op. cit., p. 15.
616

Teoria crtica da empresa

297

Ivanildo Figueiredo

negcios das empresas, positivando uma situao fictcia, irreal, em contraposio


realidade do mercado, que a cada dia torna mais complexas as relaes econmicas,
na medida em que estas acompanham a evoluo tecnolgica e os novos modelos
de operaes empresariais resultantes do processo de globalizao.
Ainda que a teoria geral das obrigaes possa ser unificada num diploma
codificado, os contratos mercantis sempre devero merecer um tratamento especfico,
como categoria jurdica prpria, porque dotados de elementos caractersticos
singulares. isso que buscaremos demonstrar neste captulo.

5.2. Princpios e modalidades contratuais no Cdigo de 2002

Na esfera do direito contratual, cuja proposta terica originria, como


observado, era a de promover a unificao do direito das obrigaes, o Cdigo Civil
de 2002 passou a disciplinar vrias espcies de contratos, tratados com neutralidade
no que tange ao objeto de cada tipo de negcio jurdico. Sob a concepo unitarista,
foram reunidos, em um nico ttulo, diversas modalidades contratuais, que seriam
inerentes a todas as relaes de direito privado, independentemente de ser celebrada
por pessoa particular ou atravs de uma empresa comercial.
O Cdigo Civil de 2002 define como contratos tpicos e assim por ele foram
regulados, um total de 16 espcies contratuais. De acordo com o regime unificado,
esses tipos contratuais seriam suficientes para disciplinar vrios tipos ou modalidades
de relaes jurdicas de contedo econmico, envolvendo tanto partes empresariais
como no empresariais.
Basta, contudo, uma simples e superficial comparao analtica desse regime
contratual frente ao Cdigo Civil de 1916, para que se conclua que, das 16 espcies
contratuais presentes no Cdigo de 2002, apenas cinco no existiam no diploma
revogado. De modo efetivo, o Cdigo Civil apresentou como inovao, to-somente,
a disciplina tipificada para os contratos estimatrio, de comisso, de agncia e

298

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

distribuio, de corretagem e de transporte, at ento regulados na legislao


comercial.
Essa constatao evidencia que a proposta de unificao do direito das
obrigaes e dos contratos no novo Cdigo Civil revela-se tmida, limitada, restrita,
por somente abranger tipos contratuais bsicos do direito civil, mais compatveis com
os negcios entre particulares. Com efeito, o Cdigo de 2002 nada dispe sobre a
utilizao desses tipos contratuais nas operaes empresariais, considerando que em
todos os seus 372 artigos, ao regular os contratos em espcie (artigos 481 a 853), no
existe nenhuma meno ou referncia aplicabilidade desses contratos empresa
ou ao empresrio.
Diante da falta de compatibilizao e consolidao entre os contedos
normatizados no Cdigo de 2002, este se limitou a regular tipos contratuais genricos,
tal como se observa a partir da anlise do quadro abaixo:
Contratos tpicos regulados no Cdigo Civil
Tipo contratual
Compra e venda
Troca ou permuta
Contrato estimatrio
Doao
Locao de bens
Comodato
Mtuo
Prestao de servios
Empreitada
Depsito
Mandato
Comisso
Agncia e distribuio
Corretagem
Transporte
Seguro

Cdigo de 2002

Cdigo de 1916

(artigos)

(artigos)

481 a 532
533
534 a 537
538 a 564
565 a 578
579 a 585
586 a 592
593 a 609
610 a 626
627 a 652
653 a 692
693 a 709
710 a 721
722 a 729
730 a 756
757 a 802

1.122 a 1.163
1.164
Sem previso
1.165 a 1.187
1.188 a 1.215
1.248 a 1.255
1.256 a 1.264
1.216 a 1.236
1.237 a 1.247
1.265 a 1.287
1.288 a 1.330
Sem previso
Sem previso
Sem previso
Sem previso
1.432 a 1.476

De todos os tipos contratuais constantes do Cdigo de 2002, as nicas


inovaes introduzidas dizem respeito, como visto, ao contrato estimatrio,
comisso, ao contrato de agncia e distribuio, corretagem e ao contrato de

Teoria crtica da empresa

299

Ivanildo Figueiredo

transporte. Com exceo do contrato de agncia e distribuio, os demais tipos


contratuais eram regulados pelo Cdigo Comercial de 1850, sob modalidade
exclusivamente mercantil.
A partir do contrato de compra e venda, que representa a principal modalidade
contratual de contedo patrimonial na atividade comercial, as demais espcies
reguladas pelo Cdigo Civil so tipos negociais de contedo genrico. Os contratos
de permuta, doao, locao, comodato, emprstimo, prestao de servios, depsito
e mandato, por exemplo, so modelos que se prestam a disciplinar transaes de
contedo econmico restrito, no possuindo referibilidade imediata no tocante s
operaes de natureza mercantil, realizadas pelas empresas.
O Cdigo de 2002, alm de ser neutro e indefinido, reproduz quase na ntegra
o antigo regime civilista dos contratos, o que demonstra a ausncia de uma diretriz
comum entre os diversos juristas relatores encarregados da elaborao do projeto.
Na parte das obrigaes e contratos, prevaleceu a concepo estritamente civilista do
seu relator, Agostinho Alvim, enquanto que no ttulo do Direito de Empresa, sob a
responsabilidade de Sylvio Marcondes Machado, inexiste qualquer aspecto de
referibilidade aos atos e contratos que seriam inerentes s atividades das empresas.
Em matria contratual, alm de modificaes puntuais no regime de alguns
contratos em espcie, a principal inovao introduzida pelo Cdigo de 2002 est
representada pela insero de princpios ou clusulas gerais aplicveis aos contratos,
como os princpios da funo social dos contratos (art. 421), o da probidade e da boaf na celebrao e na execuo do contrato (art. 422), apesar do novo Cdigo no se
referir boa-f na fase ps-contratual,618 assim como o princpio da equivalncia

618 Apesar de ser recebido como destacada evoluo em matria contratual, o princpio da boa-f, tal
como consta do art. 422 do Cdigo Civil se releva limitado porque, como observa Gustavo Tepedino,
sequer cogita do dever de boa-f na fase ps-contratual, e essa omisso representa um ponto
gravssimo uma vez que, na prtica, os juzes vinham aplicando a boa-f objetiva nas relaes
contratuais de maneira ampla, e sero tolhidos com a entrada em vigor do novo Cdigo Civil (O Novo
Cdigo Civil: duro golpe na recente experincia constitucional brasileira, in Temas de Direito
Civil, Tomo II, cit., p. 359).

300

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

material do contrato, mais presente na interpretao dos contratos de adeso (arts.


423 e 424).619
Alm desses princpios, fruto de rica construo doutrinria e jurisprudencial
nas ltimas dcadas, o Cdigo de 2002 adota um regime de fixao de clusulas
gerais aplicveis s relaes contratuais, especialmente da incidncia da clusula
resolutiva (arts. 474 e 475), da exceo do contrato no cumprido (arts. 476 e 477) e
da hiptese de resoluo por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480).
Esse regime de clusulas gerais no representa novidade no direito positivo
brasileiro, principalmente em razo de que as normas de defesa do consumidor (Lei
8.078/1990), resultantes de princpios constitucionais postos pela Constituio de
1988, j definiam regras prprias de contratao e interpretao aplicveis s relaes
de consumo. Desde que entrou em vigor o Cdigo de Defesa do Consumidor, as
disposies

contratuais

constantes

do

Cdigo

Civil

de

1916,

fundadas,

dominantemente, no interesse patrimonial dos credores, foram derrogadas e restaram


inaplicveis e assim afastadas, em face da prevalncia dos princpios e normas do
direito do consumidor.
Na opinio de Paulo Lbo, o Cdigo Civil de 2002, tal como o fez o Cdigo de
Defesa do Consumidor, tem como paradigma a funcionalizao do contrato a fins
sociais, equilibrando os interesses individuais e sociais, segundo os fundamentos
ditados pelas Constituies do Estado Social, inaugurado em 1934, no Brasil, e bem
delineado na Constituio de 1988.620 Ainda que o Cdigo de 2002 apresente uma
regulao de princpios e clusulas gerais de modo mais limitado do que aquela
verificada na Constituio de 1988 e na legislao de defesa do consumidor, mesmo
assim, a nova disciplina civilista deve ser considerada um avano significativo no
campo contratual, ainda que com atraso de vrias dcadas.621
O problema que se verifica que essa socializao dos contratos no foi
seguida da correspondente mudana de paradigmas na regulao dos negcios

619

Paulo Lbo, Princpios contratuais, in A teoria do contrato e o novo Cdigo Civil, Paulo Lbo e
Eduardo Messias Gonalves de Lyra Junior, Coordenadores, Recife, Nossa Livraria, 2003, p. 15.
620 Paulo Lbo, Princpios contratuais, in A teoria do contrato e o novo Cdigo Civil, cit., p. 12.
621 Paulo Lbo, Princpios contratuais, cit., p. 22.

Teoria crtica da empresa

301

Ivanildo Figueiredo

contratuais em espcie, que permanecem presos aos modelos clssicos previstos no


Cdigo de 1916. Tanto assim que, em nenhum momento, o Cdigo Civil de 2002
adotou um tratamento diferenciado para os contratos celebrados sob a gide do
regime do direito do consumidor.
A generalidade dos tipos contratuais regulados pelo Cdigo de 2002 poderia
ser atribuda adoo da tcnica de clusulas gerais, como opo do legislador de
estabelecer standards ou modelos bsicos de negcios jurdicos, deixando s partes
contratantes, em razo dos princpios da liberdade de contratar e da autonomia da
vontade, o poder de estipular do modo mais conveniente aos seus interesses, o
contedo obrigacional e os efeitos do contrato.622 Esse raciocnio seria mais prprio
dos contratos tpicos, ou seja, das modalidades mais comuns e usuais das relaes
contratuais previstas no Cdigo ou na legislao supletiva.
No caso dos contratos atpicos, que so criados e desenvolvidos a partir das
prticas e usos sociais,623 face previso do art. 425 do Cdigo Civil, a tcnica de
clusulas gerais revela-se mais apropriada para orientar a ao do intrprete, que
dever analisar e avaliar a execuo do contrato a partir da adequao das suas
normas e do comportamento das partes aos princpios superiores do ordenamento
jurdico, como o da funo social dos contratos, da boa-f, da justia social e dos
direitos e garantias individuais.624

622

A liberdade de contratar, na explicao de Cludia Lima Marques, significa a liberdade de contratar


ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o contedo e os
limites das obrigaes que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que
desejar, contando sempre com a proteo do direito; (Contratos no Cdigo de Defesa do
Consumidor, So Paulo, Revista dos Tribunais, 4 edio, 2002, p. 48).
623 O contrato atpico, para Giselda Hironaka, aquele no disciplinado pelo ordenamento jurdico,
embora lcito, pelo fato de restar sujeito s normas gerais do contrato e pelo fato de no contrariar a
lei, nem os bons costumes, nem os princpios gerais do direito, sendo o seu trao caracterstico no
estar sujeito a uma disciplina prpria (Contrato: estrutura milenar de fundao do Direito Privado.
Superando a crise e renovando princpios, no incio do vigsimo primeiro sculo, ao tempo da
transio legislativa brasileira, Introduo Crtica ao Cdigo Civil, Lucas Abreu Barroso, org., Rio de
Janeiro, Forense, 2006, p. 121).
624 Considera Gustavo Tepedino, quanto a este aspecto, que a fragmentao dos conceitos (...)
acompanhada de tcnica legislativa que se utiliza de clusulas gerais, exatamente para que o intrprete
tenha maior flexibilidade no sentido de, diante do fato jurdico concreto, fazer prevalecer os valores do
ordenamento em todas as situaes novas que, desconhecidas do legislador, surgem e se reproduzem
como realidade mutante na sociedade tecnolgica de massa. (As Relaes de Consumo e a Nova
Teoria Contratual, in Temas de Direito Civil, cit., p. 227).

Teoria crtica da empresa

302

Ivanildo Figueiredo

Essa tcnica legislativa de clusulas gerais bastante ntida nas normas do


Cdigo de Defesa do Consumidor, que estabelece diversos princpios de proteo do
consumidor (art. 4), a fixao dos seus direitos bsicos (art. 6), a responsabilidade
pelo fato de produto ou servio (art. 12), as regras aplicveis s prticas comerciais
(art. 29), a vedao s clusulas abusivas (art. 39) e as normas gerais de proteo
contratual (art. 46).
O Cdigo Civil de 2002, alm de definir princpios e condies gerais para a
elaborao, execuo e interpretao dos contratos, tambm disciplina tipos
contratuais especficos e, neste caso, o grau de liberdade de contratar reduzido em
razo da regulamentao legislativa. Neste ponto, instaura-se uma situao de
controvrsia, que guarda referncia na clebre frase de Grant Gilmore: o contrato
est morto. Ou seja, em face do crescente intervencionismo estatal na definio e
configurao das normas contratuais, a liberdade de contratar resta cada vez mais
reduzida ou limitada pelas disposies de ordem pblica.
Diante das contradies entre a estrutura conceitual do direito contratual no
sculo XIX e o avano da interveno legislativa estatal do sculo XX,625 adotando o
Cdigo Civil de 2002 tanto o esquema de clusulas e condies gerais das obrigaes
e contratos, a tipificao das novas modalidades negociais veio agora incorporar
espcies antes reguladas pela legislao comercial.
fato incontroverso que o legislador sempre demonstrou incapacidade de
acompanhar a contnua evoluo da realidade social e do desenvolvimento de novas
frmulas negociais, como observado por Gustavo Tepedino.626 E nem por isso as
pessoas e as empresas deixaram de criar, de inventar novas espcies de contratos,
de adaptar ou modernizar modalidades existentes, principalmente na esfera dos
negcios comerciais e dos contratos de massa. Exemplos caractersticos dessa
constatao verificamos no contrato de carto de crdito e nas transaes por meio

625

Gustavo Tepedino, As relaes de consumo e a nova teoria contratual, Temas de Direito Civil,
cit., p. 220.
626 Nesse sentido, explica Gustavo Tepedino: Nos dias de hoje, a necessidade de se dar efetividade
plena s clusulas gerais faz-se tanto urgente na medida em que se afigura praticamente impossvel
ao direito regular o conjunto de situaes negociais que floresce na vida contempornea, cujos avanos
tecnolgicos surpreendem at mesmo o legislador mais frentico e obcecado pela autalidade. (As
relaes de consumo e a nova teoria contratual, Temas de Direito Civil, cit., p. 226).

Teoria crtica da empresa

303

Ivanildo Figueiredo

eletrnico, os quais, apesar de jamais haver sido normatizados pelo legislador, so


modalidades hoje bastante usuais nas transaes mercantis.
Apesar da diretriz unificadora e da abrangncia do Cdigo Civil, no
ordenamento jurdico brasileiro existe uma verdadeira fragmentao de normas
contratuais, que encontramos tanto no mbito da diviso entre os contratos tpicos e
atpicos, como na diferenciao que continuar presente entre os contratos civis, os
contratos mercantis e os contratos de consumo. necessrio que essa fragmentao
passe a ter um ponto comum de sustentao, um fundamento jurdico superior no qual
possam estar ancoradas as diversas modalidades contratuais.
A unidade do sistema somente poder resultar da Constituio, dos seus
princpios gerais, que regem os direitos fundamentais e da personalidade, a funo
social da propriedade e da empresa, as relaes econmicas e as demais reguladas
instrumentalmente pela legislao infraconstitucional de direito civil como tambm de
direito comercial. Desse modo, para Pietro Perlingieri, o papel unificador do sistema,
tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilsticos quanto naqueles de
relevncia publicista, desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto
constitucional.627
O sistema contratual do Cdigo de 2002, sem embargo, mantm uma estrutura
tradicionalista, ainda que tenha feito algumas concesses a princpios gerais que
podem ser diretamente compatibilizados com a Constituio, como o da funo social
do contrato, por exemplo. Todavia, no existe uma plena correlao axiolgica e
funcional entre a Carta de 1988 e o Cdigo Civil projetado bem antes da Constituio.
Por essa razo, Teresa Negreiros observa que, apesar de eleito como ponto
de referncia para a teoria crtica, o modelo tradicional acaba por determinar que a
metodologia contempornea padea das mesmas limitaes que pretende superar.628

627

Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil Introduo ao Direito Civil Constitucional, cit., p. 6.
Teresa Negreiros, Teoria do Contrato: novos paradigmas, Rio de Janeiro, Renovar, 2 edio,
2006, p. 299.
628

Teoria crtica da empresa

304

Ivanildo Figueiredo

Fazendo uma comparao das dicotomias existentes entre o modelo clssico


e a tendncia evolutiva do direito contratual, Teresa Negreiros elaborou o seguinte
quadro explicativo:629
Direito contratual tradicional
Neutralidade de contedo
Abordagem esttica
Antagonismo
Atomismo
Abordagem abstrata

Tendncias modernas
Enfoque contenudstico
Abordagem dinmica
Cooperao
Coletivismo
Abordagem voltada para a pessoa

Esse quadro revela as profundas diferenas entre a concepo e a filosofia do


modelo tradicional, ao qual o Cdigo de 2002 est materialmente filiado, ainda que
procurando se fundamentar nos princpios da eticidade, da socialidade e da
operabilidade,630 diante da viso contempornea do regime contratual, fundado na
constitucionalizao do direito civil. A nova abordagem dinmica e funcionalista do
direito contratual, os elementos de cooperao e coletivismo que devem prevalecer
nas relaes privadas, no esto presentes de modo claro e objetivo no regime
codificado.
Mais ainda no mbito do direito de empresa, no se encontram vestgios da
presena desses novos princpios relacionados com a funo social da propriedade,
das relaes de cooperao, da preocupao com a dinamicidade e operabilidade
das atividades comerciais, que constituem o objeto nato das organizaes
empresariais. Na descrio e tipificao dos contratos em espcie, os quais tambm
so aplicveis, por fora da lei, aos negcios mercantis, o Cdigo de 2002
basicamente reproduz a perspectiva patrimonialista dominante no Cdigo de 1916,
podendo ser nele constatada, como observado por Luiz Edson Fachin, a ausncia de
uma tradio construda para tutelar a pessoa.631

629

Teresa Negreiros, Teoria do Contrato: novos paradigmas, cit., p. 299.


Miguel Reale, Estrutura e esprito do novo Cdigo Civil Brasileiro, Histria do Novo Cdigo
Civil, cit., p. 37.
631 Luiz Edson Fachin, Estatuto Jurdico do Patrimnio Mnimo, Rio de Janeiro, Renovar, 2 edio,
2006, p. 91.
630

Teoria crtica da empresa

305

Ivanildo Figueiredo

Alm das dicotomias de princpios e de contedo que exsurgem do sistema do


Cdigo de 2002, no campo do direito de empresa as contradies do regime contratual
so ainda mais flagrantes. Isto porque, a simples transposio de cinco tipos
contratuais do Cdigo Comercial de 1850 para o Cdigo Civil de 2002 no podem
representar, de modo algum, a instituio de um sistema contratual comum e aplicvel
a todos os tipos de negcios privados, empresariais e no empresariais.
Neste ponto, cabe concluir que a permanncia de diversas outras modalidades
de contratos mercantis regulados pela legislao comercial extravagante, demonstra
a mais evidente e inafastvel contradio do sistema unificado, a sua limitao diante
das novas tendncias do direito contratual. E esta situao contraditria exigir do
intrprete um verdadeiro contorcionismo hermenutico, para poder compatibilizar dois
sistemas antagnicos entre si.

5.3. Aspectos diferenciadores da compra e venda mercantil

Ao promover a unificao do direito das obrigaes e do regime jurdico dos


contratos de direito privado, o Cdigo Civil de 2002 igualmente e por conseqncia
lgica, tambm unificou o contrato de compra e venda. A partir do novo Cdigo e sob
a sua concepo exclusivista, no existiria mais a compra e venda mercantil. Todo
contrato de compra e venda civil e tambm civil o seu regime legal. Esta situao
de exclusividade normativa ou de unicidade dogmtica resulta, obviamente, da
revogao de toda a parte primeira do Cdigo Comercial de 1850, em especial dos
artigos 191 a 220, que disciplinavam a compra e venda mercantil.
De acordo com a definio prpria do contrato de compra e venda mercantil no
Cdigo Comercial de 1850, este se considerava perfeito e acabado logo que o
comprador e vendedor se acordam na coisa, no preo e nas condies,
acrescentando esse dispositivo que, desde esse momento, nenhuma das partes pode
arrepender-se sem o consentimento da outra, ainda que a coisa se no ache entregue
nem o preo pago (C.Com, art. 191). Para a devida caracterizao da compra e venda

Teoria crtica da empresa

306

Ivanildo Figueiredo

mercantil, essa mesma norma estabelecia que unicamente considerada mercantil


a compra e venda de efeitos mveis ou semoventes, para os revender a grosso ou a
retalho, na mesma espcie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso.
O Cdigo Civil de 2002, ao conceituar o contrato de compra e venda, reproduz
a mesma regra do Cdigo de 1916 (art. 1.122), enunciando que Pelo contrato de
compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domnio de certa coisa,
e o outro, a pagar-lhe certo preo em dinheiro (art. 481). Em complemento a essa
definio, o Cdigo de 2002, ainda que parcialmente, menciona o critrio de perfeio
do contrato que era previsto no Cdigo Comercial de 1850, ao prever que A compra
e venda, quando pura, considerar-se- obrigatria e perfeita, desde que as partes
acordarem no objeto e no preo (art. 482).
Alm de reproduzir, de modo parcial, o conceito da compra e venda mercantil
originariamente disciplinada no Cdigo Comercial de 1850, o Cdigo Civil de 2002 no
definiu, propositadamente, o objeto da compra e venda nas operaes e negcios
realizados pelas empresas. Dessa maneira, o Cdigo de 2002, com a pretenso de
unificar o direito das obrigaes, omitiu que a compra e venda empresarial deve ter,
dominantemente, como objeto, coisas mveis, ou seja, mercadorias, tal como
constava, de modo expresso e inquestionvel, no Cdigo Comercial revogado.632
O contrato de compra e venda previsto e regulado no Cdigo de 2002, somente
pode ser considerado como categoria negocial genrica, uma vez que a concepo
adotada abrange tanto as operaes com bens mveis como aquelas realizadas com
bens imveis, realizadas por pessoas particulares ou por empresas. As normas
civilistas da compra e venda constantes do Cdigo Civil devem ser caracterizadas
632

A doutrina, com base nas lies de Carvalho de Mendona, passou a inserir no objeto da compra e
venda mercantil as operaes com bens imveis, considerando que a excluso dos imveis do conceito
de mercadoria no mais se justificava nos tempos atuais, em especial porque os imveis podem ser
objeto de negcios especulativos realizados em carter profissional, por empresas construtoras e
incorporadoras que perseguem o lucro, caracterstica marcante das atividades mercantis. O simples
fato do imvel no ser passvel de circulao fsica no descaracterizaria, pois, a sua natureza como
mercadoria, tal como assim tambm consideram Joo Eunpio Borges, Waldirio Bulgarelli e Fran
Martins. No direito positivo brasileiro, a Lei 4.068/1962, expressamente esclareceu no seu art. 1, que
So comerciais as empresas de construo, atribuindo, desse modo, natureza mercantil s atividades
imobilirias por estas efetuadas. Mas tambm em razo da forma, uma vez que as empresas do setor
imobilirio so constitudas como sociedades comerciais e registradas perante a Junta Comercial,
essas empresas ficam submetidas legislao mercantil e os negcios de compra e venda de imveis
restam caracterizados como atos empresariais.

Teoria crtica da empresa

307

Ivanildo Figueiredo

como normas gerais, de contedo amplo, determinantes de diretrizes e efeitos


comuns da compra e venda.
Na verdade, para as transaes e negcios comerciais, a figura da compra e
venda tradicional demonstra-se superada, ou seja, defasada, diante das prticas
correntes no mercado, principalmente, nos dias atuais, com a introduo dos
procedimentos eletrnicos de contratao e pagamento via Internet. A compra e
venda regulada pelo Cdigo Civil absolutamente insuficiente para disciplinar as
mltiplas variveis e as condies dinmicas de contratao da compra e venda
mercantil, na realidade corrente do sculo XXI.
Esse regime genrico da compra e venda civil comea por ser derrogado e
superado diante dos princpios e das clusulas gerais aplicveis aos contratos de
consumo. As normas do Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) que
tratam das prticas comerciais (arts. 29 a 44) e da proteo contratual (arts. 46 a 54),
com efeito, estabelecem um regime especial da compra e venda aplicvel s relaes
de consumo, distinto, em vrios aspectos, do sistema contratual civil.
Ainda sob a gide da concepo tradicionalista dos atos de comrcio, a compra
e venda mercantil era caracterizada, segundo Fran Martins, em razo da presena
dos seguintes elementos:633
a) o fato de serem os objetos comprados destinados revenda ou alugados;
b) a necessidade de serem esses objetos mveis ou semoventes;
c) a necessidade de ser comerciante o comprador ou vendedor.

Apesar desses requisitos do contrato de compra e venda mercantil terem sido


concebidos de acordo com a teoria dos atos de comrcio, esta situao no pode
significar, a partir de um raciocnio simplista, que a mera supresso do regime dos
atos de comrcio venha a provocar a descomercializao total do contrato de compra
e venda. Na opinio de Waldirio Bulgarelli, a comercialidade da compra e venda no
pode estar na dependncia da confusa, difusa, e incompleta teoria dos atos de

633

Fran Martins, Contratos e Obrigaes Comerciais, cit., p. 141.

Teoria crtica da empresa

308

Ivanildo Figueiredo

comrcio, isto porque, o contrato ser comercial quando for firmado por comerciante
no exerccio da sua profisso.634
O elemento subjetivo destacado por Bulgarelli perfeitamente adaptvel e
compatvel com a teoria da empresa, podendo ser caracterizada como mercantil a
compra e venda na qual um dos contratantes seja uma empresa, e esse contrato
esteja vinculado ao exerccio do objeto da atividade empresarial. De acordo com o
Cdigo Civil, constitui objeto da empresa o exerccio de atividade econmica
organizada destinada produo ou circulao de bens ou de servios. A compra e
venda mercantil tanto pode, baseada nesse conceito legal, ser caracterizada no plano
da empresa industrial que produz para vender, como da empresa comercial que
compra a mercadoria produzida para revender ou para alugar o seu uso.
Em complemento caracterizao da comercialidade da compra e venda, o
fato dessas operaes serem realizadas de modo repetitivo, em massa, com carter
habitual e profissional, consistindo, inclusive, no objeto da empresa, que somente
existe para promover tais negcios, isto demonstra que os contratos celebrados pelas
empresas apresentam aspectos diferenciadores de uma simples compra e venda civil,
celebrada entre particulares.
Assim, se uma pessoa oferece, atravs de um anncio de classificados
publicado em jornal, o seu automvel para venda, e outra pessoa particular, no
comerciante, negocia e contrata a compra desse bem, para uso prprio, essa
transao pode ser satisfatria e suficientemente regida pelo modelo genrico da
compra e venda civil.
Situao inteiramente diversa ocorre quando uma empresa industrial realiza a
transformao de matrias-primas em produtos finais, para colocao no mercado
atravs de uma rede de distribuio, e ambas as partes envolvidas na relao so
empresas cujo objeto a realizao de negcios profissionais com escopo lucrativo.
A empresa distribuidora adquire as mercadorias com a nica finalidade de revenda, e
no para uso ou consumo prprio.

634

Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, So Paulo, Atlas, 10 edio, 1998, p. 177.

Teoria crtica da empresa

309

Ivanildo Figueiredo

Resulta claro, lgico, que os exemplos acima citados no podem ser regulados
por normas idnticas, se a causa e a finalidade do negcio so totalmente distintos. A
diversidade de situao fctica exige um tratamento diferenciado, no podendo uma
operao profissional ser regulada da mesma maneira que um negcio particular
isolado.635
No sistema do Cdigo Civil italiano de 1942, o qual foi reproduzido no Cdigo
Civil de 2002, ocorreu, como j referido, a supresso da distino entre contrato civil
e contrato comercial.636 Todavia, com o passar dos anos, como observado por
Vincenzo Buonocore, a doutrina italiana veio progressivamente a admitir a existncia
de uma nova categoria de contratos comerciais, que foram ento denominados de
contratos de empresa ou contratos empresariais.637 Para Buonocore, a configurao
dos contratos empresariais como categoria foi defendida por vrios autores, com base
na individuao de uma srie de atos, tanto previstos no Cdigo Civil como fora do
Cdigo, ou mesmo extranormativos, e que, diante de suas peculiaridades, conferem
unitareidade e homogeneidade a vrias figuras negociais compreendidas nas
atividades das empresas.638
No mbito especfico dos contratos de troca e da compra e venda mercantil,
segundo Buonocore, diversos fatores contriburam para a especializao dos
contratos empresariais, entre os quais, em particular, as crescentes exigncias da
contratao, as mutaes das tcnicas de colocao dos produtos no mercado e os
novos sistemas de integrao industrial e comercial, que passaram a determinar um
processo dplice: de um lado, a fragmentao do contrato de venda em mltiplos
subtipos e variveis, e de outro lado, a diferenciao dos novos tipos negociais.639

635

No mesmo sentido, Paula Castello Miguel considera que no h como tratar de forma idntica os
contratos firmados por pessoas comuns, a fim de regular uma ou outra relao obrigacional, com os
contratos firmados entre empresrios no exerccio de sua atividade econmica. (Contratos entre
empresas, cit., p. 67).
636 Observa Paula Forgioni, com a acuidade que lhe peculiar, que premidos pela influncia do Codice
Civile e pela centralidade do conceito de empresrio, os doutrinadores abrigam os contratos
interempresariais e os consumeristas na mesma categoria (contratti dellimpresa ou contratti
commerciali), ainda que reconhecendo as diferenas entre eles. (Teoria geral dos contratos
empresariais, cit., p. 42).
637 Vincenzo Buonocore, et alli, Istituzioni di Diritto Commerciale, Torino, G. Giappichelli, 6 edizione,
2006, p. 499.
638 Vincenzo Buonocore, et alli, cit., p. 500.
639 Vincenzo Buonocore, et alli, cit., p. 516.

310

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Os diversos subtipos e variaes modais derivados da compra e venda


mercantil, como os contratos de distribuio, fornecimento, franchising, leasing,
alienao fiduciria em garantia, dentre os mais usuais, devem ser necessariamente
considerados como contratos empresariais, no sendo possvel admitir que o
contedo generalista do Cdigo Civil seja capaz de regular esses tipos contratuais
especficos.

Mesmo

que

reconhecida

tendncia

contempornea

de

desregulamentao dos contratos a partir da fixao de modelos legislativos contendo


clusulas gerais, os contratos celebrados exclusivamente entre empresas, e que
possam interferir, de modo significativo, nas relaes econmicas, devem merecer
uma disciplina legal prpria, justificada por fatores de interesse pblico e pela
necessidade do Estado controlar os tipos negociais de maior relevncia para a
estabilidade dos mercados.
No campo dos contratos internacionais, a Conveno de Viena, de 1980, assim
como os Termos Internacionais do Comrcio - INCOTERMS, compreendem, em sua
estrutura, os elementos bsicos de definio, de determinao das caractersticas e
das condies gerais para a formalizao dos contratos de compra e venda
internacional.
Os INCOTERMS, criados no ano de 1936 e desde ento editados e atualizados
pela Cmara de Comrcio Internacional (CCI), passaram a estabelecer as condies
negociais que devem ser observadas entre empresas sediadas em pases distintos,
dispondo sobre uma regulao jurdica comum e uniforme vlida para todos os
contratos internacionais de compra e venda. De acordo com os INCOTERMS, que
significa, em sua traduo literal, Termos Internacionais do Comrcio, as condies e
clusulas padronizadas dos contratos de compra e venda internacional passaram a
ser formuladas e tipificadas uniformemente. Assim, foram definidas as clusulas
bsicas representativas dos mais utilizados contratos de venda internacional, sob as
modalidades CIF (cost, insurance and freight) e FOB (free on board) e suas mltiplas
variaes, de acordo com as condies estipuladas entre vendedor e comprador para
a entrega, embarque, seguro e para o transporte das mercadorias vendidas.
Na estipulao privada das operaes de compra e venda no mercado interno,
as clusulas CIF e FOB foram tambm adotadas, por remisso analgica da

Teoria crtica da empresa

311

Ivanildo Figueiredo

legislao internacional da compra e venda mercantil, fato este que demonstra, de


modo peculiar, que as empresas foram buscar nessas normas internacionais modelos
contratuais no previstos, a esse nvel de detalhamento, no sistema interno, ainda sob
o regime do Cdigo Comercial de 1850.
Nesse contexto, observando a prtica mercantil, cumpre considerar que as
normas genricas da compra e venda reguladas pelo Cdigo Civil no so suficientes
nem apropriadas para disciplinar o incessante trfico comercial que se realiza atravs
dos contratos de compra e venda entre empresas. Desse modo, afigura-se necessria
a instituio de um regime jurdico especfico para regular essa principal modalidade
de contratao mercantil, presente na maior parte das operaes de produo e
circulao de bens, quando no diga respeito a uma relao de consumo, que deve
ser objeto de disciplina prpria.
Neste sentido, alguns doutrinadores defendem, inclusive, a aplicao do
Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) nas relaes entre empresas, por
exemplo, quando uma pequena empresa adquire um computador de uma grande
empresa multinacional para uso na sua atividade comercial. Aqui, surgem duas
correntes doutrinrias, na explicao de Paula Forgioni: a finalista, para a qual no
devem ser consideradas consumidoras as pessoas (especialmente as jurdicas) que
adquirem produtos ou servios utilizados em sua atividade profissional,640 e a
maximalista, cujos defensores, como Fbio Ulhoa Coelho,641 consideram que as
normas do Cdigo de Defesa do Consumidor devem proteger no apenas o
consumidor em si, mas qualquer pessoa, fsica ou jurdica, que esteja em situao de
vulnerabilidade ou presumida hipossuficincia econmica.642

640

Paula Andrea Forgioni, Teoria geral dos contratos empresariais, cit., p. 31.
De acordo com Fbio Ulhoa Coelho, pode-se afirmar que, entre empresrios iguais isto , com
recursos para entabular negociaes devidamente informados sobre a exata extenso dos direitos e
obrigaes em contratao -, aplica-se o regime cvel; entre empresrios desiguais, aplicam-se as
normas especificamente editadas para o contrato (p. ex. as das leis sobre representao comercial) ou
o regime do direito do consumidor (na hiptese de empresrio consumidor ou vulnervel). Por isso, na
sua opinio, submetem-se ao direito do consumidor, caracterizado pelas normas cogentes sobre as
obrigaes das partes, os contratos entre empresrios em que um deles consumidor (figura como
destinatrio final, sob o ponto de vista econmico e no fsico, da mercadoria ou servio) ou se encontra
em situao anloga de consumidor (vulnerabilidade econmica, social ou cultural). (Curso de
Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 35-37).
642 A doutrina consumerista, todavia, representada por Cludia Lima Marques, recusa que seja
considerado consumidor o profissional empresrio, qualquer que seja o seu porte, pois a finalidade do
641

312

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Alguns

contratos

estritamente

mercantis

ou

empresariais,

como

representao comercial autnoma (Lei 4.886/1965) e a concesso comercial de


veculos automotores (Lei 6.729/1979), estabelecem um regime legal de proteo
empresa representante, geralmente de menor porte, nas suas relaes com a
empresa representada.
Em decorrncia da condio econmica da empresa representada, de grande
porte, existe, na maioria das vezes, uma relao de dependncia comercial qual se
submete a empresa pequena ou mdia. Assim ocorre, segundo Paula Forgioni, nos
contratos de distribuio, onde comum encerrar uma relao de poder
desequilibrada, uma das partes sobrepondo-se outra, e essa situao de
dependncia econmica influencia marcadamente a natureza das relaes entre as
partes e pode gerar exploraes oportunistas.643
Os conflitos decorrentes do desequilbrio entre empresas de porte diferentes,
ainda que vinculadas a contratos de colaborao, podem resultar em problemas tanto
de ordem contratual como de prticas anticoncorrenciais, reprimidas pela legislao
antitruste, gerando uma figura jurdica nova, diferente, definida por Paula Forgioni
como coibio do abuso de dependncia econmica644 da empresa menor,
dominada, em relao empresa maior, dominante.

Cdigo de Defesa do Consumidor tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que mais
vulnervel, e quanto mais especfico e restrito for o campo de aplicao das normas de proteo do
consumidor, ficar assegurado um nvel mais alto de proteo para estes, pois a jurisprudncia ser
construda em casos, onde o consumidor era realmente a parte mais fraca da relao de consumo e
no sobre casos em que profissionais-consumidores reclamam mais benesses do que o Direito
Comercial j lhes concede. (Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor, So Paulo, Revista
dos Tribunais, 4 edio, 2002, p. 254).
643 Paula Andrea Forgioni, Contrato de distribuio, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 344345.
644 Paula Andrea Forgioni, Contrato de distribuio, cit., p. 347.

Teoria crtica da empresa

313

Ivanildo Figueiredo

5.4. Contratos mercantis regulados pela legislao especial

No obstante a tentativa de unificao do direito das obrigaes e dos contratos


em espcie pelo Cdigo Civil de 2002, continuam sendo regulados pela legislao
comercial extravagante diversos tipos de contratos comerciais, cabendo destacar
vrias espcies de contratos interempresariais, denominados de contratos de
colaborao mercantil. Na rea especfica dos contratos de colaborao mercantil
podemos observar, com maior segurana, a incapacidade da legislao codificada de
disciplinar, de modo completo e integral, as mltiplas relaes comerciais entre
empresas.
Os contratos de colaborao mercantil definem-se como sendo os vnculos
negociais, com carter de permanncia, que se formam entre empresas comerciais
visando a colocao e distribuio de produtos industrializados no mercado. Esses
contratos, em sentido amplo, so considerados pela doutrina como contratos de
representao, celebrados entre empresas industriais e empresas comerciais
atacadistas ou varejistas ou mesmo atravs de representantes comerciais autnomos
(Lei 4.886/1965).645
Os contratos de colaborao so contratos tipicamente interempresariais.
Esses contratos demonstram-se imprescindveis para a viabilizao de certos tipos de
operaes comerciais, com participao destacada no processo de intermediao de
negcios e de aproximao das empresas produtoras do mercado consumidor. A
finalidade do vnculo de colaborao o de representao de marcas e produtos para
a comercializao no mercado, atravs da formao de redes de distribuio.
Uma rede de distribuio mercantil constituda por empresas vinculadas
contratualmente empresa industrial titular da patente ou da marca de produto ou
servio, que atuam como pessoas jurdicas autnomas e formalmente independentes,

645

Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, cit., p. 145.

Teoria crtica da empresa

314

Ivanildo Figueiredo

sob clusula de exclusividade, para a realizao de negcios e colocao dos


produtos da empresa representada no mercado. As empresas integrantes de
determinada rede de distribuio exercem uma verdadeira funo de intermediao
de negcios (terceirizao mercantil), facilitando a colocao de produtos no mercado
e servindo como elo para a divulgao de marcas junto aos consumidores finais dos
produtos comercializados.
Na prtica comercial, destacam-se como principais tipos de contratos de
colaborao mercantil os referidos e constantes no quadro abaixo:
Contratos de colaborao mercantil
Espcie contratual

Legislao comercial

Cdigo 2002

Contrato estimatrio ou consignao mercantil


Comisso mercantil
Representao comercial ou agncia
Distribuio
Concesso comercial
Franquia (franchising)

Cdigo Comercial, art. 170


Cdigo Comercial. arts. 165/190
Lei 4.886/1965 e Lei 8.420/1992
Sem regulao
Lei 6.729/1979 e Lei 8.132/1990
Lei 8.955/1994

(artigos)
534 a 537
693 a 709
710 a 721
710 a 721
Sem previso
Sem previso

Dessas espcies de contratos de colaborao, o contrato estimatrio e a


comisso, sem a caracterizao da natureza mercantil, o contrato de agncia e de
distribuio, passaram a ser regulados pelo Cdigo Civil. Contudo, o contrato de
representao comercial, cuja lei especial (Lei 4.886/1965) de contedo e
especificidade bem mais ampla que o contrato de agncia, continua ainda em vigor e
considera a representao como espcie comercial de intermediao por excelncia.
contrato mercantil, pois, e no de direito comum.
Dois tipos caractersticos de contratos de colaborao no foram regulados
pelo Cdigo de 2002, relativos a negcios tipicamente mercantis, e que no so
exercidos seno atravs de empresas comerciais, compreendendo os contratos de
concesso comercial de revenda de veculos automotores (Lei 6.729/1979) e o de
franquia empresarial (Lei 8.955/1994).
A concesso comercial, de acordo com a sua definio legal, o contrato de
distribuio de veculos automotores, de via terrestre, celebrado entre produtores e

Teoria crtica da empresa

315

Ivanildo Figueiredo

distribuidores, para fins de revenda de veculos e peas originais e prestao de


servios de assistncia tcnica (Lei 6.729/1979, art. 1). O contrato de concesso tem
por objeto a representao da marca e a realizao de vendas diretas aos
consumidores e adquirentes de veculos automotores e mquinas agrcolas, com
estipulaes adicionais de garantia e assistncia tcnica.
A concesso comercial caracteriza-se, quanto ao seu elemento temporal, pela
permanncia do vnculo contratual646 que se forma entre a empresa industrial
concedente e a empresa concessionria. Para exercer a funo de integrante da rede
de distribuio de determinada marca, deve a concessionria realizar investimentos e
assumir custos operacionais e administrativos exigidos no contrato de concesso. No
se tratando de um mero contrato de revenda, mas sim de um contrato de natureza
mista que envolve fornecimento, servios, crditos e aplicao de tecnologias
comerciais relacionadas com a marca, resulta disto a constatao de que o
concessionrio quem suporta, financeiramente, o custo do processo final de
distribuio dos automveis fabricados pela concedente. Por sua conta e risco, como
pessoa jurdica autnoma, a empresa concessionria quem vai colocar, no mercado,
os produtos da empresa concedente, sendo que esta, somente em casos especiais,
pode vir a realizar operaes diretas de venda final ou ao consumidor dos bens por
ela fabricados (Lei 6.729/1979, art. 15).
Assim sendo, deve a formao e a execuo do contrato de concesso
comercial de veculos, ainda que tpico negcio privado, subordinar-se a normas
legais reveladoras de interesse pblico, a partir dos quais se erigem essas relaes,
de relevante importncia e significao para a economia nacional, dada a
representatividade econmica das atividades concernentes produo, importao
e comercializao de automveis e utilitrios. Mesmo que inaplicvel a relaes de
natureza privada, contudo, por admissvel extenso analgica, deve ser observado
que o conceito de concesso pressupe, se por prazo indeterminado, uma delegao
contratual irrevogvel e rescindvel, apenas, na hiptese de culpa da concessionria
(Lei 8.987/1995).

646

BRASIL, Ministrio da Justia, Exposio de Motivos ao Projeto da Lei n 6.729/79, Dirio do


Congresso Nacional de 02/10/1979, p. 2.198.

Teoria crtica da empresa

316

Ivanildo Figueiredo

O contrato de concesso deve ser executado em condies especiais, gerando


direitos concretos e com expectativa duradoura para ambas as partes. Na verdade,
face exigncia de dedicao exclusiva marca a que se filia, a empresa
concessionria passa a depender economicamente da empresa concedente, que se
apresenta em posio de supremacia contratual.647 Em decorrncia dessa situao de
prevalncia e dominao da empresa concedente frente empresa concessionria,
faz-se necessrio a interveno estatal, seja atravs do dirigismo contratual imposto
pela lei que regula o contrato de concesso mercantil (Lei 6.729/1979), seja pela
recomposio do equilbrio econmico entre as partes que pode ser objeto de deciso
judicial.648
Ao analisar o desequilbrio presente na relao contratual de concesso
comercial, a doutrina francesa de Buisson, Lagger e Granrut destaca que o
concedente, como grande empresa, tende a tornar-se o senhor da relao contratual
e fazer prevalecer, sobre cada concessionrio isolado, a sua vontade, pois detm,
graas sua cadeia de monoplios justapostos, um terrvel poder de domnio.649 No
mesmo sentido, na opinio do comercialista francs Jean Treard, o vnculo de
subordinao e dependncia existente entre a empresa concedente e a

647 Na opinio de Claude Champaud, o contrato de concesso comercial define-se como [U]ma
conveno pela qual um comerciante, denominado concessionrio, pe sua empresa de distribuio a
servio de um comerciante ou industrial, denominado concedente, para assegurar, com exclusividade
sobre um territrio determinado, durante um perodo limitado e sob a vigilncia do concedente, a
distribuio dos produtos cujo monoplio de revenda lhe assegurado. (La concession
commerciale, in Revue Trimestrielle du Droit Commerciale, n 24, Paris, 1963, p. 471, traduo livre).
648 A relao contratual constituda entre o concedente e o concessionrio extrapola, todavia, o mbito
da relatividade dos efeitos desse vnculo, isto porque incide sobre a livre vontade das partes, um regime
legal que estabelece regras protetivas em favor do concessionrio, tal como observado por Carlos
Alberto Senatore: Contm assim a concesso comercial uma normativa complexa das relaes entre
concedente e concessionrios, que se manifesta sob uma srie de pactos que atingem no s as suas
relaes bilaterais como tambm a prpria rede. Esses pactos se referem s partes, ao objeto da
concesso, ao preo, remunerao do concessionrio, exclusividade, durao do contrato, sendo
ainda freqente pactos especiais que contm manifestaes mais ou menos amplas de um domnio da
empresa concedente sobre a concessionria, tais como a clusula de imposio do preo de revenda,
a clusula de quotas, de estoques, etc., chegando mesmo a coarctar de tal maneira a livre atuao do
concessionrio que este no pode dispor a seu livre arbtrio dos benefcios que resultam de sua
explorao mercantil. (A concesso comercial entre produtores e distribuidores de veculos
automotores de via terrestre no Brasil, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econmico e
Financeiro, So Paulo, Editora RT, Nova Srie, n 36, Outubro/Dezembro 1979, p. 110).
649 Bernard Buisson, Michel Lagger e Bernard du Granrut, tude sur le contrat de concession
exclusive, Paris, Sirrey, 1968, p. 8.

Teoria crtica da empresa

317

Ivanildo Figueiredo

concessionria, evidencia o contrato de concesso sob o aspecto meramente


formal.650
Essas caractersticas que integram a estrutura normativa do contrato de
concesso comercial destacam a sua natureza mercantil e a comercialidade das suas
obrigaes. Cabe assim observar que a concesso um contrato estritamente
mercantil, porque somente empresas comerciais podem fazer parte dessa relao.
De igual modo, tambm contrato estritamente mercantil e celebrado entre
empresas, o contrato de franquia empresarial ou franchising, regulado pela Lei
8.955/1994. De acordo com o conceito legal exposto no seu art. 2:
Franquia empresarial o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o
direito de uso de marca ou patente, associada ao direito de distribuio exclusiva ou
semi-exclusiva de produtos ou servios e, eventualmente, tambm ao direito de uso
de tecnologia de implantao e administrao de negcio ou sistema operacional
desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remunerao direta ou indireta,
sem que, no entanto, fique caracterizado vnculo empregatcio.

Segundo Fran Martins, franquia o contrato que liga uma pessoa a uma
empresa, para que esta, mediante condies especiais, conceda primeira o direito
de comercializar marcas ou produtos de sua propriedade sem que, contudo, a essas
estejam ligadas por vnculo de subordinao.651 Orlando Gomes tambm destaca o
carter exclusivamente empresarial do contrato de franquia, ao defin-lo como sendo
a operao pela qual um empresrio concede a outro o direito de usar a marca de
produto seu com assistncia tcnica para a sua comercializao, recebendo, em
troca, determinada remunerao.652

650

Na verdade, como tambm anotam os doutrinadores, o contrato entre as partes assume aspecto
puramente formal, porquanto o concedente, determinando e controlando toda a atividade do
concessionrio, em suas compras, preos de mercadorias, estoques, margem de comercializao,
reas de atuao e demais atos de sua operao, estabelece uma subordinao econmica sob
aparncia de uma independncia jurdica (Jean Treard, Revue Trimestralle du Droit Commercial,
Paris, 1972, n 3, apud Nvio Terra, Contrato de concesso comercial margem de
comercializao, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro, So Paulo, Editora
RT, Nova Srie, n 71, 1988, op. cit., p. 97).
651 Contratos e obrigaes comerciais, cit., p. 244.
652 Contratos, atualizado por Humberto Theodoro Junior, Rio de Janeiro, Forense, 21 edio, 2000,
p. 467.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

Sendo um contrato estritamente mercantil, a franquia tem como objeto diversos


negcios e operaes comerciais, reguladas pela legislao no codificada,
especialmente pela lei de marcas e patentes (Lei 9.279/1996) compreendendo, ao
mesmo tempo, uma cesso do direito de explorao de marca, a cesso do direito de
explorao de patentes, o direito de venda ou revenda exclusiva ou semi-exclusiva de
produtos, o direito de prestao exclusiva ou semi-exclusiva de servios comerciais e
a cesso do direito de uso de tecnologia de implantao e administrao de negcios
ou de sistema operacional.
O contrato de franchising tem natureza mista, pois contempla no seu objeto
tanto a cesso de marcas e tecnologias comerciais, como uma prestao de servios,
e pode conter, ainda, obrigaes relacionadas com a distribuio exclusiva de certos
produtos.
Por exigncia da prpria lei, franqueador e franqueado devem ser empresas
comerciais, constituda a franqueada especialmente para a explorao da franquia,
ou vinculando-se o franqueador a empresa j existente, como empresa individual ou
sociedade comercial regular, tendo como caracterstica formal a autonomia jurdica do
franqueado, enquanto no empregado ou dependente economicamente do
franqueador. Essa autonomia do franqueado, todavia, apenas jurdica e
administrativa, mas no comercial ou operacional, nas quais dependente da
tecnologia transferida pelo franqueador.
Assim, nos contratos de colaborao mercantil, existem diversas espcies
aplicveis a cada tipo de negcio, compreendendo desde uma forma jurdica menos
complexa, como presente nos contratos de distribuio, at alcanar formas jurdicas
mais complexas, como no caso dos contratos de franchising.
No demais destacar que o contrato de franquia empresarial uma das
modalidades principais de exerccio da atividade mercantil na atualidade, estando
presente na maioria das operaes de colaborao, nos diversos ramos de comrcio,
principalmente nos setores de vesturio e alimentao, representando grande parte
da estrutura lojista presente nos grandes centros de compra (shopping centers).

Teoria crtica da empresa

319

Ivanildo Figueiredo

Esses contratos de colaborao demonstram o fato concreto de que as


empresas produtoras necessitam, cada vez mais, de contar com estruturas
descentralizadas e capilarizadas para a distribuio, colocao e venda, junto aos
consumidores, das mercadorias por elas industrializadas, reduzindo seus custos de
distribuio e repartindo os riscos da atividade comercial.
Todavia, essa realidade comercial de ampla significncia no mercado no foi
pensada nem minimamente contemplada na estrutura contratual do Cdigo Civil de
2002. A pretensa unificao do direito das obrigaes, por ser parcial e restrita, no
pode ser considerada cientificamente como bastante para suprimir a dualidade
econmica que separa as atividades estritamente civis das atividades mercantis, cujo
contedo normativo continuar sendo parte integrante de um direito autnomo, com
objeto prprio e mtodo diferenciado daquele aplicvel ao direito comum, dos
contratos entre particulares.

Teoria crtica da empresa

320

Ivanildo Figueiredo

5.5. A nova classificao dos contratos empresariais

Com a supresso da natureza mercantil dos contratos e das relaes


econmicas das empresas, o Cdigo Civil de 2002 simplesmente optou por recusar
qualquer critrio de classificao dos contratos de direito privado em razo da
natureza do seu objeto ou das partes integrantes do vnculo negocial. Como
observado, de acordo com o regime neutro ou estril do Cdigo, todo contrato de
direito privado, seja ele um contrato tpico ou atpico, esteja ou no regulado no regime
codificado.
Todavia, como primeira manifestao de inconsistncia normativa desse
regime codificado diante da realidade econmica e mesmo do direito positivo, o
legislador do Cdigo no foi nem mesmo capaz de reconhecer a existncia de um
sistema prprio de regulao das relaes de consumo e de proteo dos direitos dos
consumidores nas relaes contratuais.
Desde a Constituio da Repblica de 1988, a proteo do consumidor foi
elevada a categoria de princpio constitucional (CF, art. 5., XXXII; art. 170, V), sendo
ento o regime especial das relaes de consumo regulamentado pela Lei
8.078/1990. Adotando como pressuposto a necessidade de proteger o consumidor na
condio de parte economicamente mais fraca,653 a legislao consumerista introduziu
um regime contratual diferenciado, que passou a reger as relaes contratuais
subsumidas na sua disciplina.
Em qualquer relao contratual entre um fornecedor e um consumidor, o regime
jurdico diretamente aplicvel o da legislao de defesa do consumidor, ficando as
normas obrigacionais do Cdigo Civil relegadas ao plano perifrico e supletivo,
somente incidentes no caso de inexistncia de norma especfica na lei especial. De
653

De acordo com o art. 4 da Lei 8.078/90, foi instituda por essa lei a Poltica Nacional de Relaes
de Consumo, tendo por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito sua
dignidade, sade e segurana, a proteo de seus interesses econmicos, a melhoria da sua qualidade
de vida, bem como a transferncia e harmonia das relaes de consumo.

Teoria crtica da empresa

321

Ivanildo Figueiredo

acordo com esse regime especial de proteo do consumidor, as prticas comerciais


(arts. 29 a 44) e as relaes contratuais (arts. 46 a 54) reguladas por essa lei, passam
a ser prevalentes de modo absoluto, inclusive para fins de interpretao dos contratos
de consumo.654
Considerando esse regime especfico e diferenciado de proteo do
consumidor, vlido reconhecer um primeiro critrio de classificao para os
contratos privados, que devem ser, a partir de ento, divididos em duas espcies:
contratos civis e contratos de consumo.
O Cdigo Civil de 2002, evidenciando, tambm sob esse aspecto, a sua
desatualizao e absurda defasagem diante da evoluo legislativa das ltimas
dcadas, desconhece as relaes de consumo e no contm uma s disposio
normativa dirigida proteo do consumidor. Em apenas um nico artigo (art. 1.467),
ao tratar do penhor legal, o Cdigo se refere ao consumidor, ao considerar que as
bagagens, jias ou dinheiro dos consumidores ou fregueses constituem penhor legal
em favor dos hospedeiros ou fornecedores de pousada pelas dvidas contradas. Mas,
nessa norma, o consumidor simplesmente equiparado ao fregus, como simples
cliente, sem qualquer diferenciao de carter protetivo.
Sob um segundo aspecto, a partir da constatao de que a unificao do direito
das obrigaes no importou na extino do direito comercial como ramo autnomo
do direito privado, tal como reconhecido pelo legislador, devemos admitir que os
contratos celebrados entre empresas, diretamente relacionados com o objeto
econmico das partes, no podem ser qualificados na mesma vala comum dos
contratos civis. Tal situao especfica ocorre, por exemplo, nas relaes entre uma
empresa fabricante de automveis e uma empresa concessionria integrante da sua
rede de distribuio.

654 A relao contratual de consumo aquela que se constitui entre um consumidor, considerado este
como toda pessoa fsica ou jurdica que adquire ou utiliza produto ou servio como destinatrio final
(Lei 8.078/90, art. 2), e um fornecedor de bens ou servios, definido pela lei como pessoa fsica ou
jurdica, pblica ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que
desenvolvem atividade de produo, montagem, criao, construo, transformao, importao,
exportao, distribuio ou comercializao de produtos ou prestao de servios (art. 3).

Teoria crtica da empresa

322

Ivanildo Figueiredo

Estando esse contrato tipificado em uma lei especial, como disciplinado na lei
de concesso comercial de veculos automotores (Lei 6.729/1979), e estabelecendo
essa mesma lei que esse contrato comercial, por esse motivo no se deve recusar
o enquadramendo desse negcio jurdico como um contrato empresarial.
Seguindo essa ordem de raciocnio, Fbio Ulhoa Coelho entende, de modo
acertado e coerente que, em matria contratual, o regime jurdico aplicvel passou a
variar segundo o contrato vinculasse empresrio a empresrio (direito comercial),
empresrio a no empresrio (direito do consumidor) ou no empresrio a no
empresrio (direito civil).655
No mesmo sentido, Paula Castello Miguel reconhece a existncia desses trs
regimes contratuais diferenciados, o de tutela dos consumidores, o de direito civil e o
de direito empresarial.656 Na esfera dos contratos celebrados pelas empresas, deve
ser ainda aceita a distino entre os contratos empresariais, como sendo aqueles
firmados por empresrios, no se levando em conta o outro plo da relao
contratual, e os contratos interempresariais, que so aqueles em que, nos dois plos
da relao jurdica, esto presentes duas empresas.657
Tambm Waldirio Bulgarelli adota esse critrio de classificao, entendendo
que os contratos das empresas subdividem-se em empresariais e interempresariais,
tendo em conta que esto destinados aos negcios das empresas entre si e a destas
com no-empresrios.658 Segundo, ainda, Bulgarelli, sero sempre empresariais, por
pressupor a participao de uma empresa, os contratos de arrendamento mercantil
ou leasing, de alienao fiduciria em garantia, a locao mercantil, a compra e venda
mercantil entre empresas, o seguro e o carto de crdito, no vnculo entre o
comerciante e a empresa administradora do carto.659

655

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 18.


Paula Castello Miguel, Contratos entre empresas, cit., p. 58.
657 Paula Castello Miguel, cit., p. 62.
658 Waldirio Bulgarelli, Contratos e ttulos empresariais: as novas perspectivas, So Paulo, Atlas,
2001, p. 28.
659 Waldirio Bulgarelli, Diretrizes gerais dos contratos empresariais, Novos contratos
empresariais, Carlos Alberto Bittar, org., So Paulo, Revista dos Tribunais, 1990, p. 19.
656

Teoria crtica da empresa

323

Ivanildo Figueiredo

Os contratos interempresariais, alm de celebrados entre empresas, destinamse ao atendimento de uma funo econmica, cumprem a finalidade de regular
relaes estritas de carter profissional, e assim devem ser classificados como
categoria distinta dos contratos civis e dos contratos aplicveis s relaes de
consumo.
Mesmo contrariando a diretriz unificadora do Cdigo Civil de 2002, a doutrina
recusa essa generalizao tecnicista e inapropriada em face da realidade de mercado,
como assim considera a crtica de Salvatore Monticelli, ao observar que, sob o regime
original do Cdigo italiano de 1942, a expresso contrato comercial esteve por
dcadas banida do lxico jurdico, ainda que para efeitos meramente descritivos.660
Contudo, na atualidade, a expresso contratos empresariais voltou a ser
adotada pela doutrina, a partir da teimosia de alguns autores, diz Salvatore Monticelli,
que defendem a legitimidade e a utilidade de se considerar os contratos empresariais
como uma categoria especfica. A designao de contrato empresarial refere-se,
exclusivamente, segundo Monticelli, aos contratos nos quais uma das partes
caracterizada pelo status de empresa ou empresrio e o contrato estipulado como
funo instrumental do exerccio da empresa.661
Observa Monticelli que, a partir do incio da dcada de 80 do sculo passado,
profundas mudanas foram sendo introduzidas na legislao italiana, em
consequncia da recepo das diretrizes comunitrias da Unio Europia, e assim a
figura tradicional e a disciplina dos contratos empresariais, progressivamente, se
afastou do modelo codificado. Ao largo da legislao codificada, foram nascendo
vrios microssistemas contendo a disciplina de tipos especficos e de classes de
contratos, razo pela qual o Cdigo perdeu a sua centralidade. E esse fenmeno
legislativo no apenas assume propores de relevncia, incidindo de maneira
significativa em todos os setores da vida econmica, mas, sobretudo, denota-se pela
finalidade de regulao do mercado, delineando uma ordem de maior eficincia e

660
661

Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, I contratti dellImpresa, cit., p. 1.


Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, cit., p. 2.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

equidade entre os protagonistas institucionais do mercado, da empresa e os


consumidores, assim como das empresas entre si. 662
O regime do direito de empresa, como posto no Cdigo Civil de 2002, no faz
qualquer referncia ao mercado, como ambiente no qual se realizam e se verificam
as operaes econmicas nos mais variados nveis. Apenas em dois dispositivos
(artigos 486 e 528) o Cdigo faz meno ao mercado, mas com outro significado,
relativo ao mercado de bolsa ou de capitais, ao tratar do contrato de compra e venda
e do contrato com reserva de domnio. Portanto, para o regime codificado, o mercado
como ambiente econmico simplesmente no existe, e tal omisso reveladora do
nvel de alienao do legislador diante dos fatos concretos da realidade das empresas.
Os contratos empresariais, no entendimento Salvatore Monticelli e Giacomo
Porcelli, devem servir como disciplina especial de regulao do mercado, tanto das
relaes entre consumidores e empresrios quanto, como assim concebido mais
recentemente, nas relaes entre empresas, e essa concepo constitui uma das
finalidades prioritrias da legislao nacional de derivao comunitria, e nesse
contexto normativo se reafirma a redescoberta dos contratos empresariais como
categoria unitria.663
Enquanto a doutrina italiana vem modificando e atualizando o seu
entendimento, ao reconhecer a necessidade da consolidao de uma disciplina
especfica para os contratos empresariais, e a legislao mais recente desconsidera
o modelo unificado herdado do Cdigo fascista de 1942, o direito positivo brasileiro
claramente retrocede ao se estruturar a partir de um sistema superado pela
modernidade. Os novos paradigmas tecnolgicos e culturais resultantes dos avanos
das telecomunicaes e da informtica, a existncia de um mercado virtual de
transaes eletrnicas, as operaes automatizadas, a influncia e o poderio
econmico das grandes corporaes transnacionais, todos esses fatos de relevante
influncia na sociedade moderna no foram, nem mesmo superficialmente, tratados
ou referidos pelo regime da empresa no Cdigo de 2002.

662
663

Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, I contratti dellImpresa, cit., p. 2.


Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, cit., p. 3.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

A preocupao dominante do legislador brasileiro, ao desqualificar a natureza


comercial da empresa como uma instituio de mercado, teve como conseqncia
resultante a positivao de uma legislao obsoleta, retrgrada, divorciada e alheia
aos fatos concretos da atual era da ps-modernidade e da globalizao. Ao deixar de
reconhecer a classificao dos contratos empresariais como categoria especial de
regulao de determinadas relaes econmicas no mercado, o Cdigo de 2002 nem
mesmo pode ser compatibilizado com a legislao de regncia de modalidades
contratuais tipificadas como mercantis, e que permanecem em vigor. Assim se
verifica, por exemplo, no caso dos contratos bancrios, de arrendamento mercantil
(leasing), de franquia empresarial, de concesso mercantil, de representao
comercial, de faturizao (factoring), dentre outros.
Os contratos empresariais, nova denominao doutrinria dos contratos
comerciais ou mercantis, devem ser admitidos como modalidades especiais de
negcios jurdicos realizados pelas empresas. Como primeiro critrio de classificao,
os contratos empresariais podem ser subdivididos em contratos empresariais em
sentido amplo e contratos empresariais em sentido estrito, ou interempresariais,
conforme a qualificao das partes envolvidas na relao jurdica, da forma seguinte:
1) Contratos empresariais em sentido amplo assim se caracterizam os contratos
celebrados pelas empresas em decorrncia do desempenho da sua atividade ou
objeto econmico, sendo que o outro sujeito da relao jurdica no uma
empresa, mas sim uma pessoa fsica ou jurdica, de direito privado ou direito
pblico; esta categoria pode ser subdividida em:
a) Contratos de consumo quando o contrato est submetido legislao de
defesa do consumidor, que determina o regime jurdico das relaes de
consumo, qualificando-se a empresa como fornecedor de bens ou servios;
b) Contratos administrativos so os contratos celebrados entre empresas e
rgos ou entidades da administrao pblica, resultantes de processos de
licitao, e que passam a ser regulados, em primeiro grau, por normas de
direito pblico, mas que no ficam dissociados do regime geral dos contratos,
e a execuo desses contratos realiza-se atravs de prticas mercantis
prprias das empresas privadas;
c) Contratos de bolsa e de atos societrios esto representados pelos
contratos em que investidores adquirem aes e outros ttulos de emisso das
sociedades mercantis em bolsas de valores ou no mercado secundrio, bem

Teoria crtica da empresa

326

Ivanildo Figueiredo

como de quotas de outros tipos societrios, na condio de scios de


empresas;
2) Contratos empresariais em sentido estrito ou interempresariais representam
todas as espcies de contratos celebrados entre empresas mercantis, em que
ambas as partes so empresas e a finalidade do contrato est relacionada com o
objeto de explorao econmica, sendo desse modo caracterizados como
contratos empresariais puros, que devem estar submetidos ao regime especial de
Direito Comercial.

Em segundo nvel, resultante da natureza do negcio ou do objeto mercantil


correspondente, os contratos empresariais podem ser classificados de acordo com o
seguinte critrio:
1) Contratos de troca compreende as operaes tpicas de compra e venda de bens
e mercadorias entre empresas produtoras e distribuidores atacadistas ou varejistas,
podendo ser subdivididos em:
a) Compra e venda simples so as operaes de venda de bens para pagamento
vista ou financiada pelo vendedor;
b) Compra e venda complexa so os contratos de fornecimento ou de entrega de
bens em partidas ou lotes seqenciados em prazos pr-determinados e os
contratos de venda de bens e equipamentos com estipulao de assistncia
tcnica ou garantia;
2) Contratos de uso de bens nesta modalidade devem ser classificados os contratos
que tenham por objeto o uso de bens com finalidade comercial, como a locao de
mveis e imveis e do ponto comercial, aluguel de bens com opo de compra
(leasing) e os contratos de locao de lojas e espaos comerciais em shopping
centers;
3) Contratos de colaborao mercantil - so os contratos celebrados entre empresas
produtoras e empresas integrantes de redes de distribuio, sendo tipos
caractersticos os contratos de representao comercial, agncia ou distribuio,
concesso comercial e franquia empresarial (franchising);
4) Contratos de servios esto neste grupo inseridos os contratos de prestao de
servios nas reas de transporte, por via terrestre, martima ou area, de assistncia
tcnica, manuteno, empreitada, construo, locao de mo-de-obra, terceirizao
e outros conexos com essa modalidade de servios de terceiros;
5) Contratos financeiros e bancrios compreende toda a gama e espcies de
contratos de emprstimo, financiamento, mtuo, carto de crdito e demais
modalidades de operaes realizadas atravs de instituies financeiras;

Teoria crtica da empresa

327

Ivanildo Figueiredo

6) Contratos de seguro esto nesta categoria enquadrados os contratos de seguro


celebrados atravs de companhias seguradoras, para a cobertura de riscos de vida,
acidentes e bens;
7) Contratos societrios so representados pelos negcios de aquisio de aes ou
quotas de sociedades comerciais, operaes de bolsa de valores, transferncia de
controle societrio, acordo de acionistas e de alienao ou arrendamento de
estabelecimento comercial.
8) Contratos de cesso e transferncia de tecnologia nesta categoria devem ser
classificados os contratos de cesso de direitos de propriedade industrial sobre
marcas e patentes, de programas de computador (software) e de sistemas e processos
tecnolgicos (know-how e engineering).

As categorias e espcies de contratos relacionados acima, primeira


impresso, poderiam ser confudidos com a prpria classificao dos atos de comrcio,
do modo como constava da enumerao do Cdigo Comercial francs de 1807, ou do
Regulamento 737, de 1850, no Brasil. Diante dessa semelhana, talvez por esse
motivo, os legisladores do Cdigo italiano de 1942 e do Cdigo Civil de 2002, hajam
recusado ou negado a qualificao de empresarial para essas modalidades
contratuais tpicas presentes nas relaes das empresas.
Considerando os critrios de classificao apresentados acima, cabe
reconhecer que, em virtude da especificidade dos contratos empresariais, estes
devem merecer um tratamento legislativo prprio e singular, principalmente pela
constatao bvia de que as normas contratuais codificadas so insuficientes e
incapazes de fornecer regras disciplinadoras aplicveis aos diversos tipos de atos e
negcios empresariais.
Esta demanda necessria por um regime especial para os contratos
empresariais, ainda que seja para a fixao de clusulas gerais, decorre das
exigncias de mercado, da necessidade da legislao definir e tipificar os tipos
contratuais mais importantes para o normal desempenho das funes econmicas.
Deveriam ser estabelecidas, no mnimo, regras e limites para a aplicao das
clusulas gerais, inerentes aos princpios da boa-f, da funo social do contrato e da
equivalncia material.

Teoria crtica da empresa

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Ivanildo Figueiredo

Os contratos empresariais, derivados dos atos das empresas, so


caracterizados como atos em massa, cujo modo de execuo encontra-se relacionado
e indissoluvelmente ligado com o objetivo lucrativo e a natureza especulativa
caracterstica dos negcios mercantis. Diante das peculiaridades prprias dos
contratos celebrados pelas empresas, no se demonstra compatvel com a realidade
econmica considerar que os contratos empresariais derivam de um tronco comum,
que seria originrio do sistema de direito civil, como assim consideram alguns tericos
defensores da unificao,664 cujos argumentos se limitam a reproduzir as justificativas
formuladas pelos autores do projeto do Cdigo de 2002.
Essa doutrina minoritria chega ao ponto extremo de argumentar, baseada na
concepo unificadora, que o direito comercial foi extinto e suprimido em virtude da
revogao do sistema dos atos de comrcio.665 Desse modo, os contratos
empresariais no poderiam mais subsistir como categoria autnoma, apesar do
Cdigo de 2002 ter se limitado, praticamente, a reproduzir as mesmas espcies
contratuais presentes no Cdigo Civil de 1916.

664 Marcia Mallmann Lippert, A empresa no Cdigo Civil Elemento de unificao do Direito
Privado, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 154.
665 De acordo com o entendimento dessa doutrina minoritria, o Cdigo Civil de 2002 teria revogado o
regime dos atos de comrcio, sendo este substitudo pelo ato empresarial, e assim, se o ato comercial
no mais existe e o Direito Comercial o direito dos atos de comrcio, necessariamente a concluso
lgica que o Direito Comercial tampouco existe (Marcia Mallmann Lippert, A empresa no Cdigo
Civil Elemento de unificao do Direito Privado, cit., p. 156).

Teoria crtica da empresa

329

Ivanildo Figueiredo

Captulo 6
A unificao parcial do direito societrio

6.1. A nova classificao das sociedades; 6.2. A sociedade


simples como tipo societrio genrico; 6.3. As
caractersticas e novo modelo burocrtico da sociedade
limitada; 6.4. Principais entraves na regulao da
sociedade limitada; 6.5. Aplicao supletiva da Lei das
Sociedades Annimas; 6.6. A reviso necessria da
sociedade limitada.

6.1. A nova classificao das sociedades

O Cdigo Civil de 2002 instituiu um novo regime das sociedades no direito


positivo brasileiro, ao promover a unificao parcial do direito societrio, buscando
disciplinar, em um sistema comum, os tipos societrios de direito civil e os de direito
comercial. Essa unificao foi parcial e no total porque as sociedades por aes (Lei
6.404/1976) e as sociedades cooperativas (Lei 5.764/1971) continuam sendo regidas
por leis especiais, extravagantes ao Cdigo. Desse modo, as normas do Cdigo Civil
no podem ser consideradas como um cdigo societrio, na medida em que no
abrangem, principalmente, as sociedades annimas, que representam o mais
complexo tipo societrio do direito comercial.666
O Cdigo Civil de 2002 passou a classificar as sociedades, de um modo geral,
conforme a sua situao legal, em sociedades personificadas e sociedades no
personificadas, e segundo o objeto da atividade exercida, em sociedades simples e
sociedades empresrias. As sociedades so espcies corporativas de associaes,
666

Como anteriormente observado, o Projeto do Cdigo das Obrigaes de 1965 regulava todos os
tipos societrios de direito privado, inclusive a sociedade por aes, a partir da perspectiva do contrato
de sociedade como uma das modalidades obrigacionais.

Teoria crtica da empresa

330

Ivanildo Figueiredo

integradas por pessoas, mas cuja existncia depende da vontade dos seus scios,
que podem livremente extinguir a sociedade. As associaes civis, por seu turno,
apesar de estar enquadradas no primeiro nvel classificatrio das pessoas jurdicas,
reguladas nos termos dos artigos 44 a 52 do Cdigo Civil, so dotadas de autonomia
funcional, do mesmo modo que as fundaes, e caso sejam extintas, o patrimnio da
entidade reverte para outra pessoa jurdica com a mesma finalidade. As pessoas
jurdicas, de modo geral, esto assim classificadas no direito positivo brasileiro:
Classificao das pessoas jurdicas
Direito Pblico
Pessoas jurdicas
Direito Privado
Associaes
Pessoas de direito privado

Sociedades

(CC 2002, art. 44) 667

Fundaes
As sociedades so formas contratuais destinadas ao exerccio de atividade
econmica, podendo ser assim classificadas, a partir do novo critrio definido pelo
Cdigo Civil de 2002:
Classificao das sociedades
Sociedade em comum
No Personificadas
Sociedade em conta de
participao
Sociedades
Sociedade simples
Personificadas
Sociedade empresria

667

A EIRELI, criao da Lei 12.441/2011, no foi includa, aqui, como pessoa jurdica, por tratar-se de
modalidade artificial, no representando a configurao caracterstica de uma pessoa jurdica.

Teoria crtica da empresa

331

Ivanildo Figueiredo

As sociedades no personificadas, de acordo com o Cdigo de 2002, so


aquelas em processo de constituio e tambm aquelas outras que no se constituem
de modo regular, ou seja, que no levaram os seus atos constitutivos para registro
perante a Junta Comercial (sociedade empresria) ou no Cartrio de Registro Civil
das Pessoas Jurdicas (sociedade simples). So espcies de sociedades no
personificadas a sociedade em comum (arts. 986 a 990) e a sociedade em conta de
participao (arts. 991 a 996)
A sociedade em comum, assim como a sociedade em conta de participao,
podem existir de fato, mas no adquirem personalidade jurdica, porque o ato
constitutivo respectivo, o seu contrato social, no foi levado para arquivamento ou
registro na Junta Comercial. Por isso, a existncia da sociedade no personificada
limita-se a produzir efeitos, apenas, entre os scios que a integram, no valendo,
assim, perante terceiros, que contratam com uma pessoa ou mais pessoas e no com
uma sociedade.
A doutrina tratou de estabelecer uma diviso interessante e til para as
sociedades no personificadas, distinguindo-as como sociedades de fato e
sociedades irregulares. A sociedade de fato aquela em que seus scios integrantes
exercem atividade econmicam em comum, mas no providenciaram a elaborao de
um contrato escrito, dispondo sobre os direitos e obrigaes recprocos. A constituio
da sociedade ocorreu atravs de acertos verbais ou de outros documentos e provas
sem um contrato formal.
Na opinio de Rubens Requio, a sociedade de fato caracterizada como
sendo aquela que no est documentada, que viceja no mundo ftico,668 e a sua
existncia somente pode ser demonstrada com base em elementos de prova, das
quais se possa inferir que houve alguma comunho de interesses entre pessoas
objetivando auferir resultados econmicos e repart-los, mediante a diviso dos lucros.
A sociedade irregular, por sua vez, possui um contrato escrito, assinado pelos scios,
contudo, o contrato no foi tornado pblico mediante seu arquivamento no registro
competente.

668

Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 268.

Teoria crtica da empresa

332

Ivanildo Figueiredo

Mas, tanto no caso da sociedade de fato, como da sociedade irregular,


nenhuma das duas adquire personalidade jurdica, e se fazem representar pela
pessoa fsica ou jurdica exterior que aparece e contrata perante terceiros, como se
fosse em seu prprio nome, com responsabilidade ilimitada pelas obrigaes e dvidas
que contrair.
A conta em participao um tipo peculiar de sociedade em comum, tratandose, na lio de Bulgarelli, de sociedade interna, que nem sempre se exterioriza,
permanecendo oculta.669 Prescreve o art. 991 do Cdigo Civil de 2002:
Na sociedade em conta de participao, a atividade constitutiva do objeto
social exercida unicamente pelo scio ostensivo, em seu nome individual e sob sua
prpria e exclusiva responsabilidade, participando os demais dos resultados
correspondentes.

A sociedade em conta de participao possui, assim, dois tipos de scios, um


ou mais scios ostensivos e um ou mais scios ocultos, que o novo Cdigo denomina
de scios participantes. O scio ostensivo, que pode ser tanto uma pessoa fsica como
uma pessoa jurdica, aquele que aparece e se relaciona perante terceiros,
assumindo, em seu nome, os compromissos e as responsabilidades pelos atos
praticados. O scio oculto, que investiu dinheiro e colocou esse capital nas mos do
scio ostensivo, apenas participa dos resultados da explorao, auferindo os lucros,
se exitosa a empreitada. A sociedade em conta de participao existia com essas
mesmas caractersticas e era regulada pelo Cdigo Comercial de 1850 (arts. 325 a
328). A principal diferena decorrente do Cdigo de 2002 que essa modalidade de
sociedade sem personalidade jurdica pode ser utilizada tanto em operaes
empresariais ou mercantis, como tambm em negcios civis.
As sociedades personificadas compreendem as sociedades regulares que se
constituem legalmente, adquirindo personalidade jurdica a partir do arquivamento dos
seus atos constitutivos no registro competente. As sociedades personificadas so
divididas ou classificadas pelo novo Cdigo Civil em sociedade simples e sociedade
empresria.

669

Sociedades Comerciais, cit., p. 49.

Teoria crtica da empresa

333

Ivanildo Figueiredo

A sociedade simples, em princpio, por ter natureza civil e no empresarial,


deve arquivar o seu contrato social em Cartrio de Registro Civil das Pessoas
Jurdicas (Lei 6.015/1976, arts. 114 a 126). A sociedade empresria, da sua parte,
possuindo natureza comercial, deve promover o arquivamento do seu contrato social
no Registro Pblico de Empresas Mercantis, funo desempenhada pelas Juntas
Comerciais (Lei n 8.934/1994).
De acordo com o art. 982 do Cdigo Civil de 2002, Salvo as excees
expressas, considera-se empresria a sociedade que tem por objeto o exerccio de
atividade prpria de empresrio sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais,
estabelecendo o pargrafo nico do mesmo artigo que Independentemente de seu
objeto, considera-se empresria a sociedade por aes; e, simples, a cooperativa. A
sociedade empresria, tambm denominada por alguns autores e pela jurisprudncia
como sociedade empresarial, seria a prpria titular do exerccio da empresa,
desempenhando atividade de produo ou circulao de bens ou de servios.
So sociedades personificadas as sociedades constitudas regularmente e que
adquirem personalidade jurdica com o registro ou arquivamento dos seus atos
constitutivos no rgo de registro competente, cujo tipo societrio vem a ser definido
de modo especfico na legislao prpria, tal como constante do quadro a seguir:
Tipos societrios no Cdigo Civil de 2002
Tipo Societrio

1) Sociedade simples
2) Sociedade em nome coletivo
3) Sociedade em comandita simples
4) Sociedade limitada
5) Sociedade annima
6) Sociedade em comandita por aes
7) Sociedade cooperativa

Cdigo Civil de 2002


(artigos)

997 a 1.038
1.039 a 1.044
1.045 a 1.051
1.052 a 1.087
1.088 e 1.089 Lei 6404/1976
1.090 a 1.092 Lei 6404/1976
1.093 a 1.096 Lei 5764/1971

No que concerne ao tipo societrio, entre as empresas regulares, o Cdigo Civil


de 2002 apenas regulou, efetivamente, a sociedade limitada, considerando que o
regime das sociedades por aes, que compreende a sociedade annima, a
sociedade em comandita por aes e a subsidiria integral, continua sendo
disciplinada pela legislao especial (Lei 6.404/1976). Portanto, sob esse critrio de

Teoria crtica da empresa

334

Ivanildo Figueiredo

classificao, cabe considerar, quanto ao tipo societrio vlido, apenas as sociedades


comerciais cujos modelos so aplicados, na prtica, no Brasil, apesar do Cdigo de
2002 ainda regular, de modo intil, a sociedade em nome coletivo (artigos 1.039 a
1.044) e a sociedade em comandita simples (artigos 1.045 a 1.051), tipos societrios
ultrapassados, que caram em completo desuso desde o incio do sculo XX.
No projeto do Cdigo das Obrigaes de 1965, na parte dedicada aos
empresrios e s sociedades, tambm de autoria de Sylvio Marcondes Machado, a
sociedade annima foi inserida no regime geral de direito societrio (arts. 1.276 a
1.406).670 O legislador do Cdigo de 2002 no ousou tanto, apesar da tentao em
proceder unificao integral do direito societrio.671 Todavia, reconhecendo a alto
grau de especializao e a complexidade da sociedade annima, bem assim sua
incompatibilidade ontolgica com o regime geral do direito de empresa, o Cdigo Civil
limitou-se, de maneira abreviada (art. 1.088), a reproduzir, apenas, o conceito de
sociedade annima constante da Lei 6.404/1976 (art. 1).672
O Cdigo Civil de 2002, de modo contraditrio, manteve e ainda regula tipos
totalmente inteis de organizao societria, como a sociedade em nome coletivo
(arts. 1.039 a 1.044) e a sociedade em comandita simples (arts. 1.045 a 1.051). Essas
sociedades, desde que surgiu no direito brasileiro a sociedade por quotas de
responsabilidade limitada, em 1919, caram em completo desuso e no existem mais,
desapareceram da vida comercial.673 As sociedades em nome coletivo e em comandita
simples desapareceram porque pertenciam a uma poca (sculos XVIII e XIX) em que
a responsabilidade dos scios era ilimitada em face das obrigaes sociais. Com a
instituio do modelo simplificado de sociedade com responsabilidade limitada, esses
tipos foram abandonados, porque inapropriados para o exerccio de atividade
especulativa, onde est presente o risco ou lea comercial. Nada justifica a
manuteno dessas espcies superadas no Cdigo Civil de 2002, podendo esse
670

BRASIL, Ministrio da Justia e Negcios Interiores, Comisso de Estudos Legislativos, Projeto de


Cdigo das Obrigaes, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1965, op. cit, p. 124-144.
671 Miguel Reale, Estudos preliminares do Cdigo Civil, cit., p. 55.
672 Cdigo Civil de 2002, Art. 1.088. Na sociedade annima ou companhia, o capital divide-se em aes,
obrigando-se cada scio ou acionista somente pelo preo de emisso das aes que subscrever ou
adquirir. Art. 1.089. A sociedade annima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos,
as disposies deste Cdigo.
673 Paulo Penalva Santos, Comentrios ao Cdigo Civil Brasileiro Do Direito de Empresa, vol. IX,
Newton de Lucca, org., Rio de Janeiro, Forense-FADISP, 2005, p. 240.

Teoria crtica da empresa

335

Ivanildo Figueiredo

grave equvoco legislativo ser decorrente da preocupao do legislador brasileiro em


decalcar, fielmente, o modelo italiano do Cdigo de 1942.
Enquanto isso, na Europa, a legislao de diversos pases, por orientao das
diretrizes comunitrias, vem criando tipos mais flexveis de organizao empresarial,
como a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada ou a empresa individual
de responsabilidade limitada, como ocorreu na Alemanha (1980), em Portugal (1986),
na Frana (1985) e mais recentemente na Espanha (2005), s para ficar nesses
exemplos.674 Com pesar, observa Vera Helena de Mello Franco, o novo Cdigo Civil
deixa passar em branco a possibilidade de introduo da sociedade limitada
unipessoal em descompasso flagrante com as leis modernas.675
O Cdigo Civil de 2002 est filiado concepo de que a sociedade ser
empresria se tiver por objeto o desempenho de atividade de produo ou circulao
de bens ou de servios. Desse modo, alguns doutrinadores entendem superada a
teoria que diferenciava a sociedade comercial da sociedade civil em razo da
finalidade lucrativa, segundo a qual se considerava como comercial a sociedade que
perseguia o lucro como objetivo necessrio para a remunerao do capital investido.
No Brasil, prevalece o sistema de ampla liberdade dos scios para a
constituio de sociedades comerciais ou empresrias, qualquer que seja a sua
espcie. bastante que se atenda ao requisito mnimo da pluripessoalidade, ou seja,
a presena de dois ou mais scios no momento da constituio da sociedade. Assim,
os scios podem decidir pela criao de qualquer tipo de sociedade, seja uma
sociedade limitada ou mesmo uma sociedade annima, bastando que definam a
espcie desejada no contrato ou estatuto social.
Se a forma societria adotada pelos scios for a de uma sociedade comercial
ou empresria, mesmo que para o exerccio de atividade civil, como no caso de
empresa rural, um educandrio ou instituio hospitalar, a sociedade considerada
como empresria em razo da forma, devendo arquivar seus atos constitutivos

674

Calixto Salomo Filho, A sociedade unipessoal, cit., p. 11.


Vera Helena de Mello Franco, O triste fim das sociedades limitadas no novo Cdigo Civil,
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro RDM, So Paulo, Malheiros, n 123,
julho/setembro 2001, p. 84.

675

Teoria crtica da empresa

336

Ivanildo Figueiredo

perante a Junta Comercial, e passa a se reger pela legislao mercantil, codificada e


no codificada. Em razo da natureza mercantil da atividade, o Cdigo Civil de 1916
vedava (art. 1.364) que uma atividade comercial pudesse ser realizada ou
desempenhada atravs de sociedade civil, o que no era possvel em virtude do objeto
comercial da empresa, voltado para a prtica de atos de comrcio, tal como agora
prescreve o art. 982 do Cdigo Civil de 2002.676 Para o desempenho de atividades no
empresariais, o Cdigo em vigor reserva a forma da sociedade simples.
A sociedade simples, sob uma perspectiva inicial, pode ser considerada como
a sucessora ou substituta da antiga sociedade civil. Ela tem por finalidade servir para
o exerccio de atividades relacionadas com objeto no mercantil, destinando-se a
profisses intelectuais, de natureza cientfica, literria ou artstica (art. 966, pargrafo
nico), bem como de outras atividades que no se caracterizem como comerciais.
A sociedade empresria, segundo o Cdigo de 2002, aquela que tem por
finalidade o exerccio de atividade empresarial, destinada produo ou circulao
de bens ou de servios, e sujeita a registro perante a Junta Comercial (art. 982). A
sociedade empresria, via de regra, quando desempenha atividade mercantil, de
compra, revenda, locao e prestao de servios comerciais, com finalidade
lucrativa, devendo ser equiparada antiga sociedade comercial. Para o Cdigo Civil
(art. 966), empresrio somente o titular de firma individual, que exerce sua atividade
profissional, de natureza comercial, sem a participao de outras pessoas na
formao do capital e na partilha dos resultados.
O exerccio de atividade mercantil de modo coletivo, atravs de duas ou mais
pessoas, preenchendo o requisito da pluripessoalidade, prprio, assim, da
sociedade empresria. Nesse contexto, o empresrio ou titular da empresa a prpria
sociedade, e no as pessoas fsicas que a integram na condio de scios ou
acionistas. Os scios que controlam o capital e exercem os poderes de administrao,
representao e gesto da sociedade so denominados, pelo Cdigo Civil,

676

Exemplo de sociedade civil que no pode adotar forma empresarial a sociedade de advogados,
por vedao expressa do Estatuto da Advocacia - Lei 8.906/1994 Art. 16: No so admitidas a
registro, nem podem funcionar, as sociedades de advogados que apresentem forma ou caractersticas
mercantis, que adotem denominao de fantasia, que realizem atividades estranhas advocacia, que
incluam scio no inscrito como advogado ou totalmente proibido de advogar.

Teoria crtica da empresa

337

Ivanildo Figueiredo

simplesmente, como administradores. Para Fbio Ulhoa Coelho, os scios ou


acionistas responsveis pela representao e conduo dos negcios da empresa
deveriam ser designados de empreendedores,677 ainda que, na prtica e no
entendimento comum, em sentido amplo, possam ser considerados empresrios.
O paradigma perfeito da sociedade empresria a sociedade annima,
regulada pela Lei 6.404/1976, exemplo maior do tipo societrio em que se destaca a
impessoalidade, isto , quando a existncia e continuidade da sociedade no
dependem da vontade pessoal dos scios que a constituram. A sociedade limitada
tambm deve ser considerada como empresria, apesar do Cdigo Civil no
determinar assim a sua caracterizao.
De todas as contradies conceituais resultantes do novo regime institudo pelo
Cdigo Civil de 2002, dois institutos devem ser destacados como os mais afetados
por essa reforma legislativa: em primeiro lugar, a reconfigurao normativa do direito
societrio, em que o Cdigo pretendeu estabelecer, com carter de dogma absoluto,
regras e disposies gerais para regulao das sociedades de fins econmicos, em
particular da nova sociedade limitada, tipo preponderante de organizao empresarial.
Em segundo lugar, na tentativa de unificar o direito das obrigaes, o Cdigo
procurou abarcar, em sua ampla generalizao, uma srie de contratos comerciais
que somente se aplicam, na prtica, a atividades mercantis, ao passo em que deixou
de tratar de vrias espcies de contratos, tpicos e atpicos, que so amplamente
utilizados no cotidiano dos negcios comerciais exercidos pelas empresas. Muito alm
de pretender unificar o direito das obrigaes, o Cdigo Civil invadiu reas de
regulao que sempre foram prprias e inerentes ao direito comercial, como o prprio
direito societrio de regulao das empresas mercantis.
O Cdigo Civil de 2002, na sua concepo civilista do direito de empresa, no
define nenhuma atividade econmica das sociedades empresrias como sendo de
natureza comercial ou mercantil. A princpio, toda adjetivao funcional designativa
da atividade mercantil ou comercial foi banida pelo novo Cdigo, que adotou uma
posio muito mais radical e estereotipada do que aquela empregada pela sua fonte
677

Fbio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 6.

Teoria crtica da empresa

338

Ivanildo Figueiredo

material de origem, o Cdigo Italiano de 1942. Essa injustificvel esterilizao


conceitual representa mais um motivo que vem provocando dificuldades quase
intransponveis de compatibilizao terica do regime de empresa com o sistema
mercantilista, que continua subsistindo na legislao extravagante ao Cdigo Civil.
Na opinio de Geraldo Neves, o Direito de Empresa ou Direito Empresarial, ou
Direito Comercial, est dentro do Cdigo Civil de 2002, mas est fora dele,678
concluso que resulta, exatamente, da constatao de que vrios institutos
fundamentais do direito comercial, como a disciplina das sociedades annimas, dos
contratos bancrios, dos ttulos de crdito, da propriedade industrial e da falncia e
recuperao de empresas, permanecem sendo regulados por leis comerciais
especiais atravs de microssistemas normativos. Como anotado por Raquel Sztajn, a
unificao do direito privado no veio a ocorrer nem mesmo na Itlia:
Se algum fosse levado a entender que a unificao do direito obrigacional implique
o desaparecimento do Direito Comercial, preciso lembrar que, mesmo na Itlia, em
que o fenmeno data de 1942, Direito Civil e Comercial permanecem distintos.
Tambm de apontar que nunca houve grande preocupao, seja pela doutrina, seja
pela jurisprudncia, com a questo, porque, de regra, se entendem comerciais as
atividades segundo noo econmica ou contbil. 679

Relativamente ao regime da sociedade de responsabilidade limitada, o Cdigo


Civil confere a ela um tratamento em que essa entidade empresarial fica despida de
sua intrnseca natureza mercantil. O sistema do direito de empresa, no Cdigo de
2002, abomina a adjetivao comercial ou mercantil, como se, por um passe de
mgica, o legislador pudesse negar a existncia de relaes jurdicas de natureza
comercial, ao tentar subordinar disciplina comum do direito civil o contedo
eminentemente mercantilista das atividades empresariais. Tanto assim que o artigo
1.053 do Cdigo vincula a regulao da sociedade limitada, nas omisses das normas
especficas, ao regime comum da sociedade simples, e no da sociedade empresria.

678

Geraldo de Oliveira Santos Neves, Cdigo Civil Brasileiro de 2002 Principais alteraes,
Curitiba, Juru Editora, 2003, p. 149.
679 Raquel Sztajn, Teoria Jurdica da Empresa, cit., p. 145.

Teoria crtica da empresa

339

Ivanildo Figueiredo

6.2. A sociedade simples como tipo societrio genrico

A sociedade simples, sob uma perspectiva inicial, pode ser considerada como
a sucessora ou substituta da antiga sociedade civil. Ela tem por finalidade servir para
o exerccio de atividades relacionadas com objeto no mercantil, destinando-se a
profisses intelectuais, de natureza cientfica, literria ou artstica (art. 966, pargrafo
nico), bem como de outras atividades que no se caracterizem como comerciais.
Dentro do esprito do Cdigo Civil de 2002, a sociedade simples representa o
tipo bsico de sociedade, compreendendo na sua estrutura e relaes as normas
gerais do direito societrio. Origina-se o modelo da sociedade simples do Cdigo de
Obrigaes da Sua (1881), ideia posteriormente adotada, com outra configurao,
de modo inovador, pelo Cdigo Civil Italiano (1942).680
O art. 530 do Cdigo de Obrigaes da Sua enuncia que A sociedade uma
sociedade simples (...) quando ela no oferece caractersticos distintivos das outras
sociedades reguladas pela lei. Portanto, a sociedade simples uma espcie de
sociedade genrica, modelo bsico de sociedade, que assim se caracteriza se no for
constituda sob outra forma societria prevista na legislao.681
Em termos gerais, pondera Vera Helena de Mello Franco:
O fundamento da criao da sociedade simples no modelo de 1942 residiu, pura e
simplesmente, na necessidade de criar uma sociedade civil apta ao exerccio de
atividades econmicas, posto que impedia de se valer das formas societrias

680 Para Francesco Galgano, La societ semplice , como tipo de societ, una invenzione del Codice
Civile italiano del 1942: essa non ha precedenti nella nostra tradizione legislativa, n trova riscontro in
corrispondenti figura di altre legislazioni (Diritto Privato, Padova, CEDAM, 5 edio, 1988, p. 657).
681 Na opinio de J.A. Penalva Santos, a sociedade simples constitui o prottipo de sociedade de
pessoas, e as suas normas, alm de disciplinar o exerccio coletivo de uma empresa no comercial,
oferecem uma regulamentao aplicvel a todas as sociedades de pessoas, comerciais ou no
(Comentrios ao Cdigo Civil Brasileiro Do Direito de Empresa, vol. IX, cit., p. 171).

Teoria crtica da empresa

340

Ivanildo Figueiredo

comerciais chamadas de pessoas, dada a correlao entre forma e objeto


(necessariamente comercial). 682

Alm desse fato, Arnoldo Wald considera que, no direito italiano, a


necessidade de criao de tal tipo societrio deu-se em virtude do anterior regime das
sociedades civis no conceber, naquele pas, a responsabilidade limitada dos scios,
que permaneciam titulares dos bens utilizados no desenvolvimento da atividade.683
A sociedade simples, segundo a concepo originria do Cdigo italiano de
1942, foi criada com uma dupla finalidade: tanto servir como um tipo societrio
destinado ao exerccio de atividade no empresarial, sendo assim a sucessora da
sociedade civil, como tambm para representar um modelo societrio genrico,
compreendendo as normas gerais de direito societrio que podem ser aplicadas a
todas as demais espcies de sociedade, exceto para as sociedades por aes.684
Desse modo, alm de constituir um tipo societrio de direito civil, uma espcie
contratual, as normas que regulam as sociedades simples so aplicveis, em carter
subsidirio, aos demais tipos societrios de natureza pessoal, regidos pelo princpio
da affectio societatis.685 Conclui Francesco Galgano que a sociedade simples
representa um prottipo da categoria das sociedades de pessoas ou, ainda, tem a
funo da disciplina geral das sociedades de pessoas, pois destinada a regular,
ainda que subsidiariamente, outros tipos societrios.686
Sob a crtica contundente da doutrina comercialista, que considerava mais
apropriada a elaborao de um cdigo ou de uma lei geral de sociedades, em respeito
longa formao histrica do nosso direito mercantil,687 a disciplina da sociedade
682 Vera Helena de Mello Franco, O triste fim das sociedades limitadas no novo Cdigo Civil, cit.,
p. 82.
683 Arnoldo Wald, Comentrios ao novo Cdigo Civil Livro II Direito de Empresa, cit., p. 113.
684 Na justificativa ao projeto de lei do Cdigo Civil, Sylvio Marcondes Machado defendeu a criao das
sociedades simples porque elas servem de esquema para a composio das sociedades no
empresrias e, quanto a estas, funcionam como normas especiais, e como paradigma para os demais
tipos societrios (Exposio de Motivos Complementar ao Anteprojeto do Cdigo Civil, apud Arnoldo
Wald, Comentrios ao novo Cdigo Civil Livro II Direito de Empresa, cit., p. 114-115).
685 Arnoldo Wald, Comentrios ao novo Cdigo Civil Livro II Direito de Empresa, cit., p. 116.
686 Francesco Galgano, Diritto Privato, cit., p. 568.
687 Sobre a sociedade simples na disciplina do Cdigo Civil, Rubens Requio revela-se um dos seus
maiores crticos: No nos parece esse o melhor sistema, subvertendo totalmente a tradio do direito
brasileiro, que muito bem atendeu, at hoje, s necessidades jurdicas e tcnicas no campo das
sociedades. Pelo sistema adotado, a todo instante a doutrina e a jurisprudncia seriam chamadas a
opinar e decidir sobre quais os princpios das sociedades simples que lhes so especficos e quais os

Teoria crtica da empresa

341

Ivanildo Figueiredo

simples dever ser, na prtica, muito mais apropriada para regular esse tipo especfico
de sociedade, como a nova modalidade de sociedade civil, tal como se verificou na
experincia italiana.
O Cdigo Civil de 2002 no definiu a sociedade simples. Estabelece, de modo
formalista, que a sociedade simples constitui-se mediante contrato escrito, particular
ou pblico (art. 997). Tambm no tratou o Cdigo de especificar o seu objeto, sendo
este determinado de modo residual, por excluso, porque ser simples a sociedade
que no exera atividade prpria de empresrio (art. 982), sendo que, conforme a
norma, independentemente de seu objeto, considera-se empresria a sociedade por
aes; e, simples, a cooperativa (art. 982, pargrafo nico).688
Esse critrio de configurao da natureza da sociedade contm um duplo
equvoco. Em primeiro lugar, a sociedade por aes no espcie societria, mas
uma categoria de sociedade mercantil que compreende duas espcies, a sociedade
annima e a sociedade em comandita por aes. Assim empresria a espcie
societria, e no a categoria ou gnero. Em segundo lugar, a cooperativa somente
qualificada como sociedade simples por uma necessidade do legislador de impor o
seu critrio de neutralidade quanto ao carter civil ou comercial da empresa, por
recusar a adjetivao do objeto da atividade econmica. A sociedade cooperativa no
pode ser uma sociedade simples porque um tipo especfico de sociedade civil, como
assim define o art. 4 da Lei 5.764/1971: As cooperativas so sociedades de pessoas,
com forma e natureza jurdica prprias, de natureza civil, no sujeitas a falncia,
constitudas para prestar servios aos associados.

gerais, para serem aplicados aos outros tipos de sociedade. (...) Em sntese, no h nenhuma razo
de ordem cientfica, nem tcnica, nem prtica, para se transladar para o Direito brasileiro, ou novo tipo,
ou nova nomenclatura de sociedade civil. Ao contrrio do Direito italiano e do suo o Direito brasileiro
j tem modernamente muito bem constituda a sua prpria teoria das sociedades (Estudo crtico ao
Projeto de Cdigo Civil, in Aspectos Modernos de Direito Comercial, Estudos e Pareceres, So
Paulo, Saraiva, 2 edio, 1988, p. 234-235).
688 A respeito da ausncia de um conceito especfico para a sociedade simples no Cdigo Civil, Mnica
Gusmo considera que esse artigo 982 (apesar dela se referir, de modo equivocado, ao art. 983) um
primor de obviedade quando diz que a sociedade empresria aquela que exerce atividade tpica de
empresrio. Trata-se de um conceito tautolgico pois define pelo indefinido. Na parte final, obriga o
intrprete a garimpar o conceito, por excluso, isto , sem ainda saber exatamente o que se entende
por sociedade empresria, o intrprete se v na contingncia de entender que todas as outras so
simples... (Curso de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 5 edio, 2007, p. 126).

Teoria crtica da empresa

342

Ivanildo Figueiredo

Para a vinculao do gnero societrio s espcies tipificadas no Cdigo Civil,


o art. 983 prescreve que A sociedade empresria deve constituir-se segundo um dos
tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092;689 a sociedade simples pode constituir-se de
conformidade com um desses tipos, e, no o fazendo, subordina-se s normas que
lhe so prprias. Ao ser transposto o modelo da sociedade simples do direito italiano
para o Cdigo Civil de 2002, o legislador no considerou que a sociedade simples
estritamente aquela que no desempenha atividade comercial. De acordo, todavia,
com o art. 2.249 do Cdigo Civil italiano, os tipos societrios so enquadrados do
seguinte modo:
Art. 2.249. Tipi di societ
Le societ che hanno per oggetto l'esercizio di un'attivit commerciale (2195)
devono costituirsi secondo uno dei tipi regolati nei Capi III e seguenti di questo Titolo.
Le societ che hanno per oggetto l'esercizio di un'attivit diversa sono regolate
dalle disposizioni sulla societ semplice, a meno che i soci abbiano voluto costituire la
societ secondo uno degli altri tipi regolati nei Capi III e seguenti di questo Titolo.690

Assim, para o Cdigo italiano, a sociedade ou comercial ou simples, e a


sociedade simples serve tambm de modelo subsidirio para a regulao dos demais
tipos societrios. A sociedade simples, necessariamente, somente existe para o
exerccio de atividade no comercial, como de modo fcil, direto e objetivo est posto
no direito italiano.691 Na opinio de Giuseppe Auletta e Niccol Salanitro, a sociedade
simples, como indica o mesmo nome, constitui o tipo menos complicado de sociedade
previsto pelo legislador, e diferentemente dos outros tipos sociais no pode
desempenhar atividade comercial. 692

689

A sociedade empresria pode assim adotar os seguintes tipos societrios: a) sociedade em nome
coletivo; b) sociedade em comandita simples; c) sociedade limitada; d) sociedade annima; ou e)
sociedade em comandita por aes.
690 Art. 2.249. Tipos de sociedade - As socidades que tenham por objeto o exerccio de uma atividade
comercial (2195) devem ser constitudas segundo um dos tipos regulados no Captulo III e seguintes
deste Ttulo. As sociedades que tenham por objeto o exerccio de uma atividade diferente, so regidas
pelas disposies da sociedade simples, a menos que os scios tenham desejado constituir a
sociedade segundo um dos outros tipos regulados no Captulo III e seguintes deste Ttulo.
691 Na direta conceituao adotada pela doutrina italiana, a sociedade simples tem necessariamente
por objeto o exerccio de uma atividade no comercial e o tipo normal para essa atividade, e
geralmente constituda para as atividades agrcolas, artesanais e aquelas relacionadas s profisses
intelectuais (Francesco Ferrara Jr., Gli Imprenditori e Le Societ, cit., p. 265).
692 Giuseppe Auletta e Niccol Salanitro, Diritto Commerciale, cit., p. 106.

343

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

O Cdigo Civil de 2002 nem definiu a sociedade simples nem esclareceu que
ela seria um tipo societrio aplicvel s atividades econmicas no comerciais. Diante
da opo pela desmercantilizao das sociedades comerciais, o legislador brasileiro,
tambm neste ponto, obriga o intrprete a elaborar o seu prprio conceito de
sociedade simples, quando seria muito mais fcil e objetivo, continuar adotando o
modelo da sociedade civil, instituto bastante desenvolvido, de conceito claro e mais
afeto nossa cultura e histria jurdica.
A antiga sociedade civil era facilmente identificada, na sua denominao, pela
adoo da abreviatura S/C. Apesar do Cdigo de 2002 nada estipular sobre a
identificao da sociedade simples a partir da sua denominao, dever ser
empregada, como j vem sendo, a abreviatura S/S para esse fim.693
A sociedade simples pode adotar configurao empresarial, se constituda
como sociedade limitada, em nome coletivo, em comandita simples ou em comandita
por aes (art. 983). Todavia, o fato de adotar configurao empresarial no
transforma a sociedade simples em empresria. Ela permanece vinculada ao regime
que lhe prprio, a sua constituio deve ser formalizada mediante o seu registro em
Cartrio de Registro Civil das Pessoas Jurdicas, mas assume esse tipo peculiar
algumas

caractersticas

da

sociedade

por

quotas,

como

limitao

da

responsabilidade dos scios.


A sociedade simples sob forma limitada deve indicar na denominao a sua
espcie jurdica, acrescida da expresso limitada, por extenso ou abreviadamente
(S/S LTDA.), tal como era assim utilizado na antiga sociedade civil de
responsabilidade limitada.
A sociedade simples deve ser constituda para o exerccio de atividades
econmicas que no sejam estritamente empresariais, como ocorre nos casos das

693 Essa abreviao S/S possui uma histrica conotao negativa, de triste memria, por lembrar a
organizao militar do Partido Nazista da Alemanha (Schutzstaffel) durante a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), a qual se atribui a prtica de crimes hediondos cometidos com o extermnio sistemtico
de judeus e de outras raas consideradas, pelos seguidores de Adolf Hitler, inferiores ao padro ariano
da raa pura. Revela-se impondervel e contraditrio, por exemplo, que uma sociedade simples
integrada por scios de origem judaica venha a reproduzir, na sua denominao, uma sigla que lembre
essa nefasta organizao nazista.

Teoria crtica da empresa

344

Ivanildo Figueiredo

atividades rurais, educacionais, mdicas ou hospitalares, de exerccio de profisses


liberais nas reas da advocacia, engenharia, arquitetura, cincias contbeis,
consultoria, auditoria, pesquisa cientfica, artes, esportes e servio social.
Contudo, se o exerccio de profisso intelectual ou cientfica, prpria da
sociedade simples, constituir elemento de empresa, isto , se ela for organizada para
a produo ou circulao de bens ou de servios, os scios podem constituir a
sociedade sob forma empresria, bastando que adotem, no contrato, uma das formas
empresariais e submetam o ato constitutivo ao Registro Pblico de Empresas
Mercantis, de competncia da Junta Comercial. Em outras palavras, os scios,
mesmo exercendo atividade econmica no mercantil, podem adotar a forma de uma
sociedade empresria ou comercial.

Teoria crtica da empresa

345

Ivanildo Figueiredo

6.3. As caractersticas e o novo modelo burocrtico da sociedade limitada

A sociedade por quotas de responsabilidade limitada, agora denominada


abreviadamente pelo Cdigo Civil de 2002 como sociedade limitada, o tipo societrio
dominante no mbito da atividade comercial no Brasil. Ela representa, segundo
estatsticas do Departamento Nacional do Registro do Comrcio DNRC,
praticamente 98,5 % das sociedades comerciais existentes no Pas, diante de apenas
1,5 % de sociedades annimas. No ano de 2005, por exemplo, foram criadas 246.722
sociedades limitadas no Brasil e apenas 1.800 companhias.694 Os demais tipos de
sociedade comercial previstos pela legislao, como a sociedade em nome coletivo e
a sociedade em comandita simples possuem uma representatividade residual, por
serem, como j observado, modelos que caram em completo desuso.
Esses dados demonstram, de modo enftico, que a sociedade limitada,
principalmente por representar o tipo mais adequado para a organizao das
pequenas e mdias empresas, deveria ser objeto de uma regulamentao
simplificada, de fcil constituio e com uma organizao de baixo custo
administrativo para a empresa. Todavia, assim no pensou o legislador do Cdigo
Civil de 2002, quando veio a substituir o antigo regime da sociedade por quotas do
Decreto 3.708/1919, por uma complexa normatividade, que agora faz a sociedade
limitada se aproximar bastante do modelo de organizao da sociedade annima de
capital fechado.695

694

BRASIL, DNRC - Departamento Nacional do Registro do Comrcio - Estatstica de empresas, em


www.dnrc.gov.br, 24/03/2012.
695 Apesar do modelo de sociedade limitada adotado pelo Cdigo de 2002 ser mais apropriado para as
empresas de mdio e grande porte, o prprio relator do projeto, Miguel Reale, reconhece que as
sociedades por quotas de responsabilidade limitada tm o mais amplo espectro, indo desde inmeras
microempresas, ou de empresas de pequeno porte, at as poderosas sociedades que que regem, s
vezes, toda uma rede de grandes sociedades annimas, sendo manifestamente inaplicveis quelas
as disposies pertinentes a estas. (Das sociedades limitadas e da propriedade fiduciria, in
Histria do Novo Cdigo Civil, cit., p. 215).

Teoria crtica da empresa

346

Ivanildo Figueiredo

A sociedade de responsabilidade limitada foi criada e regulada legalmente, pela


primeira vez, na Alemanha, em 1892, sob a denominao de Gesellschaft Mit
Beschrenkter Haftung ou, abreviadamente, GMBH. Consolidando o costume
mercantil, uma lei inglesa de 1900 (Companies Act) regulamentou e disciplinou a
constituio e a existncia legal da sociedade limitada nos pases e colnias
britnicas.696
Em Portugal, uma lei de 1901 tambm criou, com base no modelo germnico,
a sociedade por quota de responsabilidade limitada. A partir de uma verso da lei
portuguesa, o jurista brasileiro Ingls de Souza elaborou, em 1912, um projeto de
Cdigo Comercial disciplinando, nesse projeto, a sociedade por quotas. Devido
demora na tramitao do Cdigo, que nunca passou de projeto, o Deputado Joaquim
Luis Osrio redigiu um texto resumido extrado das normas do projeto de Ingls de
Souza, e assim surgiu a lei brasileira da sociedade por quotas de responsabilidade
limitada, aprovada sob a forma do Decreto 3.708, de 1919, sendo o Brasil o quinto
pas do mundo a criar esse tipo de sociedade. O Decreto 3.708/1919 vigorou, sem
alteraes, durante todo esse tempo, sendo revogado pelo Cdigo Civil de 2002.
Na atualidade, praticamente todos os pases do mundo adotam a sociedade
limitada como o modelo bsico de sociedade para o exerccio de atividade empresarial
por empresas de pequeno e mdio porte. O Cdigo Civil de 2002 partiu de um outro
pressuposto, o de que a sociedade limitada deveria tambm servir para a organizao
de grandes empresas, e pouco ou quase nada aproveitou do regime do Decreto
3.708/1919, preferindo seguir o modelo institucional da sociedade annima e mesclar
esse modelo com as regras aplicveis s sociedades simples. Foi assim institudo um
regime bastante diferente ao anterior, regulado pelo Decreto 3.708/1919 e pelas
normas gerais societrias do Cdigo Comercial de 1850.

696 Na Inglaterra, quase mesma poca, ao final do sculo XIX, observa Jos Waldecy Lucena, os
pequenos e mdios comerciantes ingleses, procurando fugir s dificuldades e nus prprios da criao
das sociedades annimas, e no querendo se submeter responsabilidade ilimitada das sociedades
de pessoas (partnerships), criaram, consoante o autorizava o direito costumeiro (common law),
sociedades diferentes das sociedades annimas, em cuja forma de constituio introduziram profundas
modificaes, e a essas sociedades o uso deu o nome de private companies. (Das sociedades
limitadas, Rio de Janeiro, Renovar, 5 edio, 2003, p. 7).

Teoria crtica da empresa

347

Ivanildo Figueiredo

O modelo precedente das sociedades por quotas foi objeto de crticas por parte
de alguns doutrinadores em virtude de um certo laconismo do seu texto, ou seja, pelo
fato do Decreto 3.708/1919 conter apenas 19 artigos, e assim regular, de modo
bastante sinttico, as sociedades por quotas de responsabilidade limitada.697 Contudo,
na opinio de Modesto Carvalhosa, esse laconismo da lei acabou por se tornar o
grande fator responsvel pelo sucesso da sociedade limitada, pois lhe imprimiu
grande flexibilidade, permitindo que a autonomia privada, no caso concreto, moldasse
a sociedade segundo os interesses dos scios, por meio do contrato social.698
O modelo imposto pelo Cdigo de 2002 s sociedades limitadas reduziu, de
modo acentuado, a liberdade de contratar. Enquanto a legislao anterior da
sociedade limitada, consubstanciada no Decreto 3.708/1919, regulava o regime legal
da sociedade por quotas de responsabilidade limitada em 19 artigos, deixando para
os scios um alto grau de liberdade para dispor, no contrato social, sobre o contedo
bsico das relaes jurdicas que deveriam prevalecer em cada sociedade, o Cdigo
Civil de 2002 contm 35 artigos (arts. 1.052 a 1.087) com diversos pargrafos e
incisos, que compreendem, na verdade, 74 normas que, obrigatoriamente, devem ser
observadas na regulao da sociedade limitada e assim previstas e incorporadas ao
seu contrato social. A ampliao do nmero de normas de regulao da sociedade
limitada foi notada e tambm criticada por Carlos Henrique Abro, que considera esse
novo regime, imposto pelo Cdigo Civil de 2002, verdadeiro retrocesso.699
Um dos motivos pelos quais o Decreto 3.708/1919 teve longa vida, resultava
do fato de que, apesar de seus defeitos tcnicos, ele estabelecia um regime bsico
de definio e regulao da sociedade de responsabilidade limitada nos seus poucos
artigos, e deixava que os scios, atravs do contrato, estipulassem da maneira que

697

Na opinio de Egberto Lacerda Teixeira, um dos principais crticos do regime do Decreto 3.708/1919,
diante das omisses existentes, no devem os juristas levar ao exagero comodista de ver o Decreto
3.708 como o suporte ideal para a vida das sociedades limitadas no Brasil. (Sociedades Limitadas e
Annimas no Direito Brasileiro, So Paulo, Saraiva, 1987, p. 2).
698 Modesto Carvalhosa, Comentrios ao Cdigo Civil Parte Especial Do Direito de Empresa,
vol. 13, Antonio Junqueira Azevedo, coord., So Paulo, Saraiva, 2003, p. 4.
699 Segundo Carlos Henrique Abro, aqui repousa a unanimidade da crtica, houve retrocesso, a uma
pela demora na tramitao de quase trs dcadas, a duas pelo encarecimento e custo na constituio
de uma limitada e por derradeiro sua emblemtica percepo de sociedade simples ou indicativa
prevista de annima, o que levou a quase dobrar o nmero de artigos em relao ao revogado Diploma
3.708/19. (Nelson Abro, Sociedades Limitadas, atualizado por Carlos Henrique Abro, So Paulo,
Saraiva, 2005, 9 edio, p. 25).

Teoria crtica da empresa

348

Ivanildo Figueiredo

fosse a eles mais conveniente o modo de organizao da empresa.700 Pelo fato do


Decreto 3.708/1919 conter poucas normas imperativas, a sua concepo privilegiava
o contrato social, caracterizando a sociedade limitada como uma sociedade de
pessoas, em que o vnculo da affectio societatis se destacava na relao entre os
scios,701 como assim anotado por Jos Edwaldo Tavares Borba.702 O Cdigo Civil de
2002, ao contrrio, aumentou a complexidade desse tipo societrio que tinha na
simplicidade das suas frmulas a maior razo para o seu sucesso e sua ampla
utilizao como principal forma de organizao da empresa em nosso pas.703
A orientao adotada pelo legislador do Cdigo Civil para a regulao das
sociedades limitadas partiu, como visto, de uma concepo equivocada, direcionando
esse tipo societrio para estruturas empresariais de maior porte, e que seriam mais
compatveis como o modelo da sociedade annima. Ao propor a adoo de
mecanismos normativos voltados para a defesa dos scios minoritrios, o Cdigo de
2002 exagerou na medida, estabelecendo para a sociedade limitada um regime
jurdico divorciado da realidade da maioria das micro e pequenas empresas
brasileiras.
A partir das normas do Cdigo Civil de 2002 que instituram um novo regime
dotado de maior grau de complexidade para a sociedade limitada, podemos destacar

700

Nesse sentido, opina Waldirio Bulgarelli: Essa lei, como j frisamos bastante sucinta, apesar das
crticas que mereceu e ainda recebe de muitos autores, serviu como uma luva pequena e mdia
empresa brasileira, e continua a sua marcha com grande sucesso, embora gere, como natural, uma
srie de problemas, os quais, porm, via de regra, vm sendo resolvidos sem maiores dificuldades pela
nossa jurisprudncia. (Sociedades Comerciais, cit., p. 121).
701 Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, atualmente, a utilidade do conceito de affectio societatis
pequena. Serve de referncia ao desfazimento do vnculo societrio, por desentenfimento entre os
scios, no tocante conduo dos negcios sociais, repartio dos sucessos ou responsabilizao
pelos fracassos da empresa. Quando se diz ter ocorrido a quebra da affectio, isso significa que os
scios no mais esto motivados o suficiente para manterem os laos societrios que haviam
estabelecido. (A sociedade limitada no novo Cdigo Civil, So Paulo, Saraiva, 2003, p. 33).
702 Direito Societrio, Rio de Janeiro, Renovar, 5 edio, 1999, p. 76.
703 Fbio Ulhoa Coelho, todavia, alinha-se com a posio de Fran Martins para afirmar que A Lei das
Limitadas de 1919 era sucinta, o que lhe valeu, at mesmo, crticas severssimas de tecnlogos do
direito societrio (Martins, 1960:317). Nela encontravam-se regras relativas formao do nome
empresarial, proibio de scio de indstria, responsabilidade dos scios pelas obrigaes sociais,
responsabilidade do scio-gerente, delegao de poderes de gerncia, retirada do scio dissidente,
responsabilidade dos scios por deliberaes contrrias lei ou ao contrato social e algumas outras
de eficcia nenhuma. Como se pode perceber dessa pequena lista, grande parte das relaes internas
e externas da sociedade limitada no se encontrava disciplinada na lei de 1919, o que despertava a
questo doutrinria acerca do arcabouo legislativo aplicvel a esse tipo de sociedade empresria.
(Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 395).

Teoria crtica da empresa

349

Ivanildo Figueiredo

as seguintes caractersticas principais que definem e passaram a estruturar esse tipo


societrio, conforme quadro a seguir:
Caractersticas principais da sociedade limitada
no Cdigo Civil de 2002

Matria
Ato constitutivo
Responsabilidade
dos scios
Responsabilidade
dos scios
Nome empresarial

Regime jurdico
Capital social
Cesso das quotas

Deliberaes dos
scios
Administrao da
sociedade
Administrao da
sociedade
Balano patrimonial

Conselho Fiscal
Direito de recesso

Excluso de scio

Dissoluo da
sociedade

Caractersticas
A sociedade limitada constitui-se mediante contrato social,
adquirindo personalidade jurdica com o arquivamento do seu
ato constitutivo na Junta Comercial.
A responsabilidade dos scios limitada ou restrita ao valor das
suas quotas respectivas no capital social.
Enquanto o capital da sociedade no for integralizado, os scios
respondem solidariamente pela integralizao.
O nome empresarial deve ser formado atravs de firma social ou
de denominao, sendo agora obrigatria a designao do
objeto da empresa na denominao, vedada a sua alienao.
Aplicam-se, supletivamente, na regulao da sociedade limitada,
as normas que regem a sociedade simples.
O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais,
podendo ser integralizado em dinheiro ou em bens suscetveis
de avaliao em dinheiro.
O scio pode ceder as suas quotas a outro scio sem
necessidade de consentimento dos demais, bem como a terceiro
estranho, se no houver oposio de scios que representem
1/4 do capital social.
Os scios devem deliberar atravs de Assemblia ou Reunio
de Quotistas, previamente convocadas, com o registro de suas
decises em atas.
A administrao da sociedade limitada pode ser atribuda a scio
ou a terceiro, desde que autorizado pelo contrato social
A destituio de scio administrador designado pelo contrato
depende da aprovao de scios que representem 2/3 do capital
social.
Os administradores so obrigados a elaborar, anualmente, o
inventrio dos bens, o balano patrimonial e o balano de
resultado econmico da sociedade, para prestao de contas
aos demais scios.
A sociedade pode instituir um Conselho Fiscal, com a atribuio
de fiscalizar os atos dos administradores.
O scio que discordar da alterao do contrato social, ou de
operao de fuso ou incorporao decidida pela maioria dos
scios, tem o direito de retirar-se da sociedade, apurados os
seus haveres em balano especial.
Os scios que representem mais da metade do capital social
podem decidir pela excluso compulsria do scio que esteja
colocando em risco a continuidade da empresa.
A sociedade limitada dissolve-se pelas mesmas causas
aplicveis s sociedades simples.

Teoria crtica da empresa

350

Ivanildo Figueiredo

A sociedade limitada constituda e fixa as suas regras bsicas a partir do seu


contrato social. O contrato de sociedade um contrato peculiar no mbito do direito,
que difere bastante das demais espcies contratuais. Isto porque, de uma maneira
geral, os contratos privados so contratos bilaterais, em que esto presentes
interesses divergentes, como nas relaes entre um vendedor (credor) e um
comprador (devedor), em que o credor busca um ganho com a obteno de
pagamento e o devedor objetiva a satisfao de uma necessidade de consumo.
Os contratos de sociedade, por sua vez, so contratos plurilaterais, em que
todos os contratantes esto vinculados e unidos por interesses convergentes, sendo
por isso mesmo considerados pela doutrina moderna como contratos de colaborao
e de organizao.704 Todos aqueles que celebram um contrato de sociedade possuem
interesses comuns, e se relacionam a partir da vontade voltada para a obteno de
vantagens qualitativas uniformes ou idnticas, ainda que quantitativamente possam
estas diferir em razo da participao, maior ou menor, de cada contratante, na
formao do fundo (capital) aplicado na explorao da atividade mercantil.
Em virtude do aumento expressivo das normas legais que passaram a regular
a sociedade limitada, em particular no que se refere aos rgos sociais,
administrao da sociedade e aos procedimentos para deliberao dos scios,
fundamental que o contrato social da nova sociedade limitada seja elaborado ou
adaptado para atender aos interesses particulares dos seus scios, isto de modo a
impedir a automtica adeso das relaes societrias internas s prescries
genricas da legislao, importando, pois, em um maior aprofundamento e
detalhamento das normas contratuais.
Considerando as caractersticas gerais do exerccio coletivo da empresa,
podemos apontar como elementos prprios e especficos do contrato de sociedade,705
fazendo a remisso correspondente diante das normas do Cdigo Civil de 2002: a) a
contribuio individual de cada um dos scios para a formao do capital social (art.
704

Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 24.


Jos Xavier Carvalho de Mendona, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. III, Freitas
Bastos, 7 edio, 1963, p. 22; Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 24.
705

Teoria crtica da empresa

351

Ivanildo Figueiredo

1.055); b) a participao proporcional dos scios nos lucros e nas perdas resultantes
da explorao da atividade empresarial (art. 997, VII); e c) a cooperao ativa dos
scios para o alcance dos fins comuns, vinculados entre si pelo elemento da affectio
societatis (art. 981).
Atravs do contrato social, os contratantes interessados estipulam as
condies e regras que iro definir e caracterizar a sociedade em processo de criao,
devendo constar do contrato as clusulas bsicas ou essenciais relacionadas no art.
997 do novo Cdigo Civil.
O contrato social deve regular quatro nveis de relaes jurdicas, aqui definidas
como relaes jurdicas societrias, que so as seguintes, segundo esquema
desenvolvido por Egberto Lacerda Teixeira:706
1) Relaes dos scios entre si Derivam dos direitos e das obrigaes assumidas
por cada scio em face das normas do contrato social, em particular no que tange
formao do capital, nomeao dos administradores, distribuio dos lucros, ingresso
e retirada de scios e dissoluo total ou parcial da sociedade.
2) Relaes dos scios com a sociedade Importam, em primeiro lugar, na obrigao
de cada scio de integralizar o capital em favor da sociedade, seguindo os demais
deveres perante a empresa, como o dever de lealdade e de contribuir para a execuo
do seu objeto; as relaes dos scios com a sociedade assumem ora uma posio
credora, ora uma posio devedora, dependendo da obrigao devida, como no caso
da distribuio de lucros, em que os scios so credores, ou no caso da integralizao
do capital, em que os scios so devedores perante a sociedade.
3) Relaes da sociedade com terceiros Naturalmente, na execuo do seu objeto
social, a sociedade mantm relaes com terceiros, como seus clientes, fornecedores,
instituies financeiras, empregados e perante o prprio Estado e suas entidades da
administrao indireta. Nestas hipteses, a sociedade contrata em seu prprio nome,
enquanto tais obrigaes estejam vinculadas realizao do seu objeto.

4) Relaes dos scios com terceiros Em princpio, os scios no respondem


perante terceiros por dvidas da sociedade, mas podero vir a ser demandados em
carter pessoal ou subsidirio nos casos de responsabilidade ilimitada por atos de
gesto e administrao ou de desconsiderao da personalidade jurdica societria.

706

Sociedades limitadas e annimas no direito brasileiro, cit., p. 47.

Teoria crtica da empresa

352

Ivanildo Figueiredo

Todos esses nveis de relaes societrias devem ser cuidadosa e


detalhadamente estipulados pelo contrato social. Aps a elaborao definitiva do
contrato social, esse instrumento, celebrado por escritura pblica ou por documento
particular, dever ser assinado por todos os scios. Em princpio, considera-se
constituda a sociedade na data em que os scios assinam o contrato social. Todavia,
enquanto o contrato social no for levado para arquivamento na Junta Comercial, a
sociedade ainda no adquiriu personalidade jurdica, devendo ser regida, nesse
intervalo, como uma sociedade em comum, forma caracterstica das sociedades
irregulares, tal como previsto pelo art. 986 do Cdigo Civil de 2002.
Prescreve, ainda, o art. 45 do Cdigo Civil de 2002: Comea a existncia legal
das pessoas jurdicas de Direito Privado com a inscrio do ato constitutivo no
respectivo registro, precedida, quando necessrio, de autorizao ou aprovao do
Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alteraes por que passar o ato
constitutivo. Desse modo, em razo dessa exigncia legal, a sociedade limitada
somente se considera validamente constituda e adquire personalidade jurdica com o
registro do seu contrato social perante a Junta Comercial.
Como efeito principal da aquisio de personalidade jurdica societria, Rubens
Requio destaca que a sociedade legalmente constituda representa um sujeito
capaz de direitos e obrigaes, como se pessoa natural fosse e a ela fica equiparada
para todos os efeitos legais, e assim pode estar em Juzo por si, contrata e se
obriga.707 No mesmo sentido, Bulgarelli ressalta que implica a personalidade jurdica
trs elementos, que se podem considerar bsicos: 1. capacidade patrimonial; 2.
capacidade de atuar na ordem jurdica, praticando atos, adquirindo direitos e
contraindo obrigaes; 3. capacidade judiciria ativa e passiva.708
A sociedade, como pessoa jurdica, representada por seus administradores
ou procuradores, designados no contrato social ou em ato separado (art. 1.060). Por
isso a sociedade expressa a sua vontade organicamente, ou seja, atravs de seus
rgos de representao, considerando que a personalidade especial da sociedade

707
708

Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 269.


Sociedades Comerciais, cit., p. 31.

353

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

uma criao do direito que reconhece a sociedade como sujeito de direitos e


obrigaes, equiparando-as, para esse fim, s pessoas naturais.
Analisando, de modo comparativo, as principais modificaes entre o antigo e
o novo regime jurdico da sociedade de responsabilidade limitada, podemos destacar
as diferenas de contedo normativo, como demonstradas no quadro abaixo:
Principais mudanas no regime da sociedade limitada
Decreto 3.708/1919 e Cdigo
Comercial de 1850
1) Denominao: sociedade por quotas
de responsabilidade limitada (art. 1).
2) Contrato social regulado pelas normas
gerais das sociedades comerciais (art.
2).
3) Aplicao supletiva da legislao das
sociedades annimas (art. 18).

4) Responsabilidade do scio limitada


importncia total do capital social (art.
2).
5) Na formao do nome da sociedade
sob denominao, deve o nome
empresarial, quando possvel, dar a
conhecer o objetivo da sociedade (art.
3, 1).
6) Distino entre as quotas primitivas
subscritas pelo scio e as quotas que
posteriormente vier a adquirir (art. 5).
7) Todas as quotas so iguais no tocante
atribuio de direitos dos scios,
havendo somente distino entre quotas
primitivas e quotas futuras (art. 5).
8) O scio no pode ceder suas quotas a
terceiro sem o consentimento dos
demais scios (Cdigo Comercial, art.
334).
9) Os titulares de quota indivisa ou em
condomnio, devem exercer em comum
os direitos respectivos, e todos
respondem solidariamente pela parte
que faltar para a integralizao do capital
(art. 6).

Cdigo Civil 2002


1) Denominao abreviada: sociedade
limitada (art. 1.052).
2) O contrato social deve seguir as regras
gerais da sociedade simples (art. 1.054).
3) Aplicao supletiva das normas da
sociedade simples (art. 1.053), salvo quando o
contrato estipular a regncia supletiva pela lei
das sociedades annimas (art. 1.053,
pargrafo nico).
4) Responsabilidade do scio limitada ao valor
das suas quotas (art. 1.052).
5) Na formao do nome da sociedade sob
denominao, esta deve designar,
obrigatoriamente, o objeto da sociedade (art.
1.158, 2).
6) A nova legislao no estabelece qualquer
distino entre quotas primitivas e as quotas
subscritas posteriormente.
7) As quotas podem ser iguais ou desiguais,
de classes distintas, variando de acordo com
os direitos conferidos aos scios pelo contrato
social (art. 1.055).
8) Se o contrato for omisso, o scio pode
ceder suas quotas a terceiro se no houver
oposio de scios que representem mais de
do capital social (art. 1.057).
9) No caso de condomnio de quota, os
direitos inerentes sero exercidos pelo
condmino representante, ou pelo
inventariante do esplio de scio falecido, e os
condminos de quota indivisa respondem
solidariamente pelas prestaes necessrias
sua integralizao (art.1056).

Teoria crtica da empresa

354

Ivanildo Figueiredo

Decreto 3.708/1919 e Cdigo


Cdigo Civil 2002
Comercial de 1850
10) Quando o scio remisso deixa de
10) Os scios devem notificar o scio remisso
integralizar a sua quota, no existe prazo para que este integralize a sua parte no
para a sua constituio em mora (art. 7). capital, no prazo de 30 dias, a partir de quando
fica constitudo em mora (art. 1.058 c/c art.
1.004).
11) A sociedade pode adquirir quotas
11) O Cdigo Civil nada estipula sobre a
liberadas com reservas disponveis do
aquisio de quotas integralizadas, que
patrimnio lquido, sem reduo do
poder ocorrer quanto o contrato
capital social (art. 8).
expressamente permitir e com remisso aos
procedimentos de resgate previstos na lei das
S.A. (Lei n 6.404/1976, art. 44).
12) Somente em caso de falncia, todos 12) Desde a constituio e a todo tempo, os
os scios respondem solidariamente pela scios respondem solidariamente pela
parte que faltar para a integralizao do integralizao do capital (art. 1.052).
capital (art. 9).
13) A administrao da sociedade
13) A administrao da sociedade limitada
compete ao scio-gerente (art. 10), que atribuio dos administradores designados no
pode ser pessoa fsica ou jurdica.
contrato social ou em ato separado (art.
1.060), somente podendo ser exercida por
pessoa natural (art. 997, IV); a expresso
gerente fica sendo exclusiva para o preposto
ou empregado com poderes de administrao
(art. 1.172).
14) Os scios-gerentes ou que derem
14) Os administradores respondem
nome firma social respondem para com solidariamente perante a sociedade e os
a sociedade e com terceiros solidria e
terceiros prejudicados, por culpa no
ilimitadamente pelo excesso de mandato desempenho de suas funes (art. 1.016).
e pelos atos praticados com violao do
contrato ou da lei (art. 10).
15) Cabe ao de perdas e danos, sem 15) Responde por perdas e danos perante a
prejuzo de responsabilidade criminal,
sociedade o administrador que realizar
contra o scio que usar indevidamente a operaes, sabendo ou devendo saber que
firma social ou que dela abusar (art. 11). estava agindo em desacordo com a maioria
(art. 1.013, 2).
16) Os scios-gerentes podero ser
16) O novo Cdigo Civil nada dispe a
dispensados de cauo pelo contrato
respeito da cauo dos administradores,
social (art. 12).
consistindo em matria a ser prevista no
contrato.
17) O uso da firma cabe aos scios17) O uso da firma ou denominao social
gerentes; se, porm, for omisso o
privativo dos administradores que tenham os
contrato, todos os scios dela podero
necessrios poderes (art. 1.064).
usar (art. 13).
18) lcito aos gerentes delegar o uso
18) Se o contrato permitir administradores no
da firma somente quando o contrato no scios, a designao deles depender de
contiver clusula que se oponha a essa aprovao da unanimidade dos scios,
delegao (art. 13).
enquanto o capital no estiver integralizado, e
de 2/3, no mnimo, aps a integralizao (art.
1.061).

355

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

Decreto 3.708/1919 e Cdigo


Comercial de 1850
19) A sociedade responde pelos
compromissos assumidos por seus
gerentes, ainda que sem o uso da firma
social, se forem tais compromissos
contrados em seu nome ou proveito, nos
limites dos poderes da gerncia (art. 14).
20) As deliberaes dos scios so
tomadas sem qualquer formalidade que
no seja atravs da alterao do
contrato social (art. 15).
21) O scio que divergir da alterao do
contrato social tem a faculdade de se
retirar da sociedade, mediante o
reembolso de suas quotas calculadas
com base no ltimo balano patrimonial
(art. 15).
22) O scio que se retira da sociedade
fica obrigado pelas dvidas e obrigaes
sociais correspondentes s quotas
respectivas, at a data do registro da
alterao do contrato social na Junta
Comercial (art. 15).
23) As obrigaes dos scios comeam
da data do contrato, ou da poca nele
designada (Cdigo Comercial, art. 329).
24) A nulidade do contrato social no
exonera os scios das prestaes
correspondentes s suas quotas, na
parte em que suas prestaes forem
necessrias para cumprimento das
obrigaes contradas (art. 17).

Cdigo Civil 2002


19) A sociedade adquire direitos, assume
obrigaes e procede judicialmente, por meio
de administradores com poderes especiais,
ou, no os havendo, por intermdio de
qualquer administrador (art. 1.022).
20) As deliberaes dos scios devem ser
tomadas atravs de Assemblia de Quotistas,
se a sociedade tiver mais de 10 scios, ou em
Reunio de Quotistas, se foram 10 ou menos
scios (art. 1.072).
21) Quando houver modificao do contrato,
fuso da sociedade ou incorporao, o scio
dissidente tem o direito de retirar-se da
sociedade, com o reembolso das quotas
calculados em balano especial (art. 1.077).
22) A retirada, excluso ou morte do scio no
o exime, ou a seus herdeiros, da
responsabilidade pelas obrigaes sociais
anteriores, at dois anos aps averbada a
alterao do contrato na Junta Comercial (art.
1.032).
23) O scio, admitido em sociedade j
constituda, no se exime das dvidas sociais
anteriores sua admisso (art. 1.025).
24) Anulada a constituio da sociedade, as
relaes entre os scios e destes com
terceiros regem-se pelas normas aplicveis
sociedade em comum (arts. 986/990).

A partir da anlise das modificaes relacionadas no quadro acima, podemos


observar que essas mudanas foram relevantes e de significativa profundidade na
disciplina jurdica da sociedade limitada. Isto porque a flexibilidade que antes existia
para a regulao desse tipo societrio foi substituda por um modelo que exige que o
contrato social, de modo pormenorizado, venha a prever e estipular cada aspecto
especfico das relaes societrias. Assim se verifica na obrigatoriedade de fixao,
pelo contrato, da regncia supletiva pelas normas das sociedades simples ou da
sociedade annima (art. 1.053), na caracterizao das quotas como iguais ou
desiguais no tocante aos direitos conferidos aos quotistas (art. 1.055), na

356

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

possibilidade, ou no, de alienao das quotas a terceiros (art. 1.057), na necessria


identificao e qualificao dos scios administradores (art. 1.060), da exigncia de
que as deliberaes dos scios sejam tomadas atravs de reunio ou de assemblia
de quotistas (art. 1.072), da mesma maneira como exigido para as deliberaes dos
acionistas na sociedade annima.
Alm dessas modificaes inseridas pelo Cdigo de 2002, em comparao com
a legislao anterior, diversas outras inovaes passaram a constar do novo regime
da sociedade limitada, e que no eram tratadas ou reguladas no Cdigo Comercial de
1850 ou no Decreto 3.708/1919, cabendo destacar as seguintes:

Inovaes no regime jurdico da sociedade limitada

Regra de inovao

Cdigo Civil 2002


(artigo)

1) Procedimentos para investidura dos administradores atravs de


ato separado com assinatura de termo de posse.
2) Procedimentos para destituio dos administradores por
deliberao dos scios.
3) Introduo do balano de resultado econmico entre as
demonstraes contbeis obrigatrias da sociedade limitada.
4) Faculdade de criao e funcionamento de Conselho Fiscal na
sociedade limitada, com amplos poderes de fiscalizao dos atos da
administrao.
5) Representao dos scios quotistas minoritrios no Conselho
Fiscal.
6) Possibilidade de convocao de Assemblia ou Reunio de
Quotistas por representantes dos scios minoritrios titulares de mais
de 1/5 do capital social.
7) Exigncia de convocao e realizao anual de Assemblia ou
Reunio de Scios.
8) Regras especficas para os processos de aumento e reduo do
capital social.
9) Procedimentos para excluso de scio em virtude de conduta
prejudicial aos interesses da sociedade.
10) Obrigao para que todas as sociedades por quotas de
responsabilidade limitada venham a adaptar os seus contratos
sociais ao novo regime jurdico estabelecido pelo Cdigo de 2002.

1.062
1.063
1.065
1.066

1.066, 2
1.073, I

1.078
1.081 a 1.084
1.085
2.031

Teoria crtica da empresa

357

Ivanildo Figueiredo

Considerando, portanto, as modificaes promovidas pelo Cdigo Civil de 2002


no regime jurdico da sociedade limitada, importante que seja formulado um novo
conceito que melhor apresente e coloque em destaque as caractersticas principais
desse que o principal tipo societrio do direito brasileiro.
Assim, a partir das novas diretrizes legais estabelecidas pelo Cdigo Civil de
2002, cabe definir a sociedade limitada como a sociedade que tem por finalidade
dominante o exerccio de atividade mercantil, com natureza de sociedade empresria,
destinada produo ou circulao de bens ou de servios, sendo constituda por
duas ou mais pessoas atravs de um contrato social, em que a responsabilidade dos
scios limitada ao valor das suas respectivas quotas.
Esse conceito coloca em destaque, preliminarmente, o fato de que a sociedade
limitada uma sociedade empresria, por ser constituda para desempenhar atividade
prpria de empresrio (art. 982). O seu ato constitutivo representado por um contrato
social, instrumento que vincula pessoalmente os scios a partir das clusulas e
disposies discutidas e livremente pactuadas, tendo como limite e referencial as
normas legais constantes dos artigos 1.052 a 1.087 do Cdigo Civil.
Na opinio dos doutrinadores que assumem uma posio de contestao s
mudanas do regime da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o Cdigo
Civil de 2002 veio por abaixo a magnfica simplicidade de constituio e de
funcionamento desse tipo societrio to bem aclimatado no Pas, pondo em seu lugar
um modelo complexo.709 E esse novo modelo imposto para a sociedade limitada,
levando em considerao que essa parte do projeto original elaborada por Sylvio
Marcondes Machado remonta ao ano de 1965, quando foi inserida no anteprojeto do
Cdigo das Obrigaes, tem esse novo modelo uma data mental, como mencionou
Pontes de Miranda ao analisar os precendentes do Cdigo Civil de 1916,710 de mais
de 40 anos. Ou seja, pelo menos na parte que regula a sociedade limitada, o Cdigo
Civil uma lei que j nasceu velha, desatualizada, elaborada para uma outra

709

Jos Waldecy Lucena, Das sociedades limitadas, cit., p. 31.


Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Fontes e evoluo do Direito Civil Brasileiro, Rio de
Janeiro, Forense, 2 edio, 1981, p. 85.
710

Teoria crtica da empresa

358

Ivanildo Figueiredo

realidade, que no considerou os imensos avanos que a atividade econmica


vivenciou nas ltimas dcadas.
So poucos os recentes comentaristas do Cdigo e doutrinadores do Direito
Comercial que assumem uma posio crtica com relao reforma da sociedade de
responsabilidade limitada. A maior parte da doutrina adota uma postura de exegese
neutra, restringindo-se interpretao mais literal das normas codificadas.711
A nova disciplina da sociedade de responsabilidade limitada, todavia, revela-se
anacrnica a partir da prpria denominao desse tipo societrio pelo Cdigo Civil,
como sociedade limitada. Segundo a crtica de Egberto Lacerda Teixeira, sacrificouse o tecnicismo jurdico em favor da terminologia consuetudinria consagrada.712
Na verdade e na estrita acepo do termo, limitada a responsabilidade dos
scios em razo das quotas que cada um possui, e nunca a sociedade. A
responsabilidade da sociedade e sempre ser ilimitada, pelo total do seu passivo.
Se o nome do tipo societrio houvesse de ser abreviado para facilitar a sua referncia,
deveria passar a ser sociedade de responsabilidade limitada, ou ento, sociedade por
quotas, como era tambm identificada na prtica. Mas sociedade limitada no, porque
revela esta denominao ser juridicamente incorreta e imprpria, e que pode at gerar
certa confuso, quando podemos considerar que tambm a sociedade annima seria
uma sociedade limitada.
Mas no apenas por causa do nome, mas principalmente pelo excesso de
normas burocratizantes e contraditrias diante da dinmica da atividade comercial,
que a nova disciplina dessa sociedade limitada revela-se inadequada e por isso
merecedora de crticas contundentes por parte da doutrina especializada. Na
contramo do progresso e dos modernos institutos do Direito Comercial, o legislador
transforma a sociedade de responsabilidade limitada em uma organizao sujeita a
normas rgidas, e no final, o que restou mesmo limitada no foi a responsabilidade, e

711

Nesse grupo de comentaristas axiologicamente neutros encontram-se autores como Amador Paes
de Almeida, Celso Marcelo de Oliveira, Amrico Luis Martins da Silva, Ricardo Negro, Osmar Brina
Corra-Lima, Rodrigo Prado Marques e Edmar Oliveira Andrade Filho.
712 Egberto Lacerda Teixeira, As sociedades limitadas e o Projeto do Novo Cdigo Civil Brasileiro,
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro RDM, So Paulo, Revista dos
Tribunais, n 55, julho/setembro 1984, p. 162.

Teoria crtica da empresa

359

Ivanildo Figueiredo

sim a liberdade de contratao entre os scios, que constitua um dos maiores mritos
do Decreto 3.708/1919.
Alm das contradies e indefinies de natureza conceitual, o novo regime da
sociedade de responsabilidade limitada revela-se inadequado para regular o principal
tipo societrio de empresa existente em nosso pas, considerando que a orientao
dada a esse tipo societrio, no Cdigo Civil de 2002, partiu do equivocado pressuposto
de que as suas normas devem ser dirigidas para regular as organizaes empresariais
de maior porte, em que a legislao deve estar preocupada com a proteo dos scios
minoritrios, tal como ocorre na lei das sociedades annimas.
Esse novo regime societrio esqueceu e desconsiderou, ao revs, que as
pequenas e mdias empresas constituem a esmagadora maioria das sociedades
limitadas, e que as sociedades de grande porte que se organizam como de
responsabilidade limitada, em termos quantitativos, representam exceo na prtica
comercial.713 Em razo dessa regulao minuciosa, detalhista, a sociedade de
responsabilidade limitada no mais se demonstra adequada para a organizao das
micro e pequenas empresas, considerando que o legislador somente tratou desse tipo
societrio estando voltado para as empresas de maior porte e para a proteo dos
acionistas minoritrios, como destacado na Exposio de Motivos do projeto.
E entre as diversas normas do novo Cdigo Civil de regulao da sociedade
limitada, observamos que vrias esto voltadas para a proteo dos scios
minoritrios, como aquelas que possibilitam a criao de Conselho Fiscal (art. 1.066),
o rgido quorum de deliberao nas reunies ou assemblias de cotistas (art. 1.076)
e do procedimento para excluso do scio dissidente (art. 1.085). Essa preocupao
com os scios minoritrios tpica da organizao das grandes empresas, em que os

713

Essa orientao equivocada consta da Exposio de Motivos em que o Professor Miguel Reale
procurou explicar as modificaes na disciplina desse tipo societrio: Minucioso tratamento
dispensado sociedade limitada, destinada a desempenhar funo cada vez mais relevante no setor
empresarial, sobretudo em virtude das transformaes por que vm passando as sociedades
annimas, a ponto de requererem estas a edio de lei especial, por sua direta vinculao com a poltica
financeira do Pas. Nessa linha de idias, foi revista a matria, prevendo-se a constituio de entidades
de maior porte do que as atualmente existentes, facultando-se-lhe a constituio de rgos
complementares da administrao, como o Conselho Fiscal, com responsabilidades expressas, sendo
fixados com mais amplitude os poderes da assemblia de scios. (Exposio de Motivos do Projeto
do Cdigo Civil, Dirio do Congresso Nacional, Seo I, Suplemento B, 13/06/1975, p. 120).

Teoria crtica da empresa

360

Ivanildo Figueiredo

acionistas que no participam da gesto social ficam dependentes das decises e


interesses dos controladores.
Mas esse no o caso da maioria das sociedades de responsabilidade limitada
existentes no Brasil, em que as relaes societrias internas confundem-se com as
relaes familiares. Grande parte das sociedades limitadas so empresas familiares,
com capital mnimo, que assumem essa forma muito mais para assegurar a limitao
da responsabilidade dos scios. So sociedades entre marido e mulher, pai e filhos,
irmos, amigos e pequenos empreendedores, que tinham na facilidade de constituio
desse tipo societrio um efetivo fator de descomplicao e desburocratizao.
As mudanas promovidas pelo Cdigo Civil de 2002 suprimiram essas
vantagens facilitadoras de constituio para as sociedades limitadas familiares, na
opinio de Jos Waldecy Lucena.714 Alguns outros comercialistas, mais preocupados
com o aspecto interpretativo, como Egberto Lacerda Teixeira, apesar das reservas
quanto sabedoria dessa orientao civilista, reconhecem, contraditoriamente, que
o tratamento mais extenso dado s sociedades limitadas pelo Projeto tender a
diminuir, qui, as reas de atrito hermenutico, muito comuns na vigncia do Decreto
3.708/1919.715
Assim, no campo das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, o
Cdigo Civil de 2002, ao revogar o Decreto 3.708/1919, instituiu um regime complexo
e burocrtico que passou a disciplinar esse tipo societrio. Desse modo, o perfil
contratual da antiga sociedade por quotas, considerado um modelo adequado para a
organizao societria das pequenas empresas em razo da sua simplicidade e por
assegurar aos scios a garantia da limitao da responsabilidade, deixou de ter
importncia estratgica, sendo a simplicidade da sua estrutura relegada a segundo
plano, em nome da proteo dos scios minoritrios, situao somente presente nas
empresas de maior porte.

714 Para Jos Waldecy Lucena, imposta a inevitvel comparao entre o Decreto n 3.708/19 e o novo
Cdigo, h de se concluir que, se foi aquele acoimado de atcnico e falto de regras indispensveis,
este, embora dotado de tecnicidade, no deixar de profligado como extremamente burocratizante da
constituio e funcionamento das sociedades limitadas, assim eliminando uma das vantagens que
levaram criao e ampla aceitao desse tipo societrio. (Das sociedades limitadas, cit., p. 31).
715 As sociedades limitadas e o Projeto do Novo Cdigo Civil Brasileiro, cit., p. 164.

Teoria crtica da empresa

361

Ivanildo Figueiredo

6.4. Principais entraves na regulao da sociedade limitada

Por obra do legislador do Cdigo Civil de 2002, a sociedade limitada, na sua


estrutura, tornou-se mais complexa, com a introduo de novas exigncias legais e
novos procedimentos para o funcionamento dos seus rgos e para a disciplina geral
das relaes entre os scios. Considerando a organizao das grandes empresas,
notadamente das sociedades holdings e das empresas multinacionais, o modelo de
sociedade limitada adotado pelo novo regime do Cdigo Civil at que se revelaria
apropriado.
A sociedade por quotas de responsabilidade limitada era considerada, pela
doutrina, como um tipo hbrido de sociedade, porque possua, ao mesmo tempo,
caractersticas prprias das sociedades de pessoas e caractersticas inerentes s
sociedades de capital, que tem como expoente maior a sociedade annima.
A partir do Cdigo Civil de 2002, a sua designao passou a ser simplesmente
sociedade limitada, adotando, assim, uma denominao mais direta e corrente como
a que vinha sendo empregada na prtica mercantil. Ainda que o seu capital
permanea dividido em quotas, a nova titulao destaca como caracterstica principal
desse tipo societrio o limite da responsabilidade dos scios que a integram. Todavia,
como visto, essa denominao sociedade limitada imprpria, pois limitada a
responsabilidade dos scios, e no da sociedade em si.
O Decreto 3.708/1919, por ser uma lei que apenas estabelecia normas bsicas
para a regulao desse tipo societrio, deixava para a esfera volitiva e da autonomia
da vontade dos scios a estipulao das regras pelas quais a sociedade deveria se
reger, como lei interna e peculiar aos interesses particulares das pessoas que a
integravam.
Mas o Cdigo Civil de 2002, contrariando todas as experincias de regulao
da sociedade de responsabilidade limitada no direito comparado, estabeleceu um

Teoria crtica da empresa

362

Ivanildo Figueiredo

regime de significativa complexidade para a disciplina desse tipo societrio, criando


uma srie de novas exigncias e restringindo, de modo acentuado, a esfera da
liberdade de contratao entre os scios.
Para fins de constituio e elaborao do contrato social, o Cdigo de 2002
define que as clusulas bsicas do contrato da sociedade limitada so as mesmas
clusulas adotadas para a sociedade simples (art. 1.054). Assim, desde logo, alm do
Cdigo Civil vincular o contrato social de uma sociedade empresria ou mercantil ao
modelo da sociedade simples, no empresria, ele exige uma remisso necessria
que o intrprete dever proceder para compatibilizar o contedo do contrato social ao
prescrito por outro dispositivo do Cdigo (art. 997).
O modelo do Cdigo italiano de 1942 regula a constituio da sociedade de
responsabilidade de modo autnomo, atravs de um dispositivo especfico (art.
2.475), no havendo necessidade de remisso a outra norma, ainda mais quando
referente a um tipo societrio no empresarial.
O Cdigo de 2002 admite que o contrato social estipule quotas desiguais, ou
seja, quotas que confiram direitos diferenciados aos scios (art. 1.055). A
desigualdade entre as quotas pode ser tambm em razo do seu valor, como j era
assim admitido pelo Decreto 3.708/1919.716 Na sociedade annima, os direitos
conferidos aos acionistas podem ser tambm diferenciados, de classes distintas,
atribudos de modo diferenciado a cada espcie de ao em razo, por exemplo, do
direito de eleio de administradores, exigncia da nacionalidade brasileira para o
acionista, para a prioridade na distribuio de dividendo ou no reembolso do capital
(Lei 6.404/1976, arts. 16 e 17).
A criao de classes especiais de quotas na sociedade limitada somente
deveria ser admitida quando a sociedade fosse constituda por um elevado nmero
de scios, em que a diferenciao de direitos fosse justificada, como acontece nas
sociedades annimas, para que determinadas quotas sejam mais ou menos atrativas
para os investidores externos. Mas como a sociedade limitada no pode ofertar as

716

Paulo Penalva Santos, Comentrios ao Cdigo Civil Brasileiro Do Direito de Empresa, vol. IX,
cit., p. 322.

Teoria crtica da empresa

363

Ivanildo Figueiredo

suas quotas ao pblico, e a adoo de quotas desiguais no se encontra disciplinada


pelo Cdigo, essa possibilidade de diferenciao de quotas ser de pouca ou quase
nenhuma utilidade na prtica societria.
Outro exemplo que demonstra a preocupao do legislador do Cdigo de 2002
de conferir sociedade limitada uma estrutura societria de grande empresa,
encontra-se na possibilidade do scio ceder as suas quotas a outro scio ou a terceiro
estranho, sem o exerccio do direito de preferncia (art. 1.057).
Considerando que a sociedade limitada , dominantemente, um tipo de
sociedade de pessoas, regida pelo princpio da affectio societatis, no se admitia, na
legislao societria, que algum pudesse ingressar na sociedade sem o
consentimento dos demais scios. Ou, ainda, que um dos scios adquirisse com
exclusividade as quotas de um scio retirante, passando, assim, a ser majoritrio, sem
que o outro scio remanescente tivesse o direito de manter a sua posio proporcional
no capital da empresa.
De acordo com a regra do art. 1.057 do Cdigo Civil, Na omisso do contrato,
o scio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja scio,
independentemente de audincia dos outros, ou a estranho, se no houver oposio
de titulares de mais de um quarto do capital social. Assim, um scio minoritrio que
detenha 1/5 do capital social no precisa ser comunicado da alterao da composio
societria, o que representa uma quebra do princpio do direito de opo, uma vez
que, como observado por Egberto Lacerda Teixeira os scios tm evidente interesse
patrimonial em que o status quo ante no se modifique sem a sua concordncia ou,
pelo menos, sua cincia prvia.717 Essa norma se apresenta, inclusive, em
contradio com o art. 1.081, 1 do Cdigo, o qual prescreve que tero os scios
preferncia para participar do aumento, na proporo das quotas de que sejam
titulares.
Nesse sentido, considera Arnoldo Wald que esta permissividade do art. 1.057
contraditria e equivocada, porque, em razo da evidente possibilidade da regra
aposta no novo Cdigo Civil quebrar o equilbrio previamente estabelecido em uma
717

Das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada, cit., p. 244.

Teoria crtica da empresa

364

Ivanildo Figueiredo

estrutura societria, que entendemos ser reprovvel tal escolha legislativa.718 Para
evitar a transferncia de quotas sem o consentimento dos demais scios, dever
existir no contrato expressa estipulao quanto ao exerccio do direito de preferncia.
Todavia, se os scios se opuserem alienao das quotas a terceiros, assim entende
Modesto Carvalhosa, ficaro obrigados a adquirir essas quotas pelo preo e
condies pr-acordados entre o scio cedente e o terceiro pretendente.719
Outra demonstrao da opo do legislador em estruturar as sociedades
limitadas como modelo mais apropriado para as mdias e grandes empresas, reside
na previso da possibilidade de criao de conselho fiscal (arts. 1.066 a 1.070). Com
efeito, o conselho fiscal um rgo societrio prprio para as sociedades integradas
por um grande nmero de scios ou acionistas, como assim exigido pela Lei das
Sociedades Annimas (Lei 6.404/1976, arts. 161 a 165). O conselho fiscal tem como
principal funo o exame e aprovao das contas anuais dos administradores,
elaborando o parecer respectivo que ser levado para apreciao da assemblia geral
de acionistas. Sendo rgo de fiscalizao, ele existe no interesse e para a proteo
dos acionistas minoritrios.
Ainda que o conselho fiscal seja um rgo de constituio facultativa (art.
1.066), no existe justificativa para a sua criao e funcionamento em uma sociedade
limitada, a no ser no caso de uma sociedade composta por centenas ou milhares de
scios, contudo, nesse caso, o modelo mais adequado para a sua organizao ser
o da sociedade annima. Por esse motivo, o Cdigo Civil italiano de 1942 no prev,
nem mesmo facultativamente, a constituio de conselho fiscal na sociedade de
responsabilidade limitada.
Exemplo tambm evidente da restrio liberdade de contratar e de gesto
da sociedade de responsabilidade limitada, a exigncia de quorum elevado para as
deliberaes societrias, que devem ser, agora, tomadas em reunies ou assemblia
de scios.

718
719

Comentrios ao novo Cdigo Civil - Livro II Direito de Empresa, vol. XIV, cit., p. 380-381.
Comentrios ao Cdigo Civil Parte Especial Do Direito de Empresa, vol. 13, cit., p. 87.

Teoria crtica da empresa

365

Ivanildo Figueiredo

Nos termos dos artigos 1.061, 1.063, 1 e 1.076 do Cdigo Civil, so previstos
os seguintes quoruns mnimos para as deliberaes dos scios:
Quorum
Unanimidade dos scios
3/4 do capital social
2/3 do capital social
Maioria do capital social

Maioria dos presentes

Matria
Designao de administradores no scios quando o
capital no estiver totalmente integralizado.
a) Modificao do contrato social;
b) Incorporao, fuso ou dissoluo da sociedade.
a) Designao de administrador no scio;
b) Destituio de scio administrador nomeado no
contrato social.
a) Designao dos administradores;
b) Destituio dos administradores;
c) Remunerao dos administradores;
d) Pedido de recuperao judicial.
Demais casos previstos na lei ou no contrato social.

De acordo com o Cdigo de 2002, necessria a aprovao de scios que


representem 3/4 do capital para a aprovao de qualquer alterao ao contrato social
(art. 1.076), at mesmo para a criao de uma filial, para o aumento do capital ou uma
simples mudana de endereo.720
No modelo matriz constante do Cdigo italiano de 1942, a regra bsica para
aprovao das deliberaes na sociedade de responsabilidade limitada a da maioria
do capital social (art. 2.486). Nas sociedades annimas, a lei brasileira sempre fixou
como regra geral para a aprovao das matrias de maior significao para a
companhia, o quorum qualificado da maioria do capital social com direito a voto (Lei
6.404/1976, art. 136).
O Cdigo Civil exige, para a sociedade limitada integrada por mais de dez
scios, a existncia de assemblia geral de quotistas, devendo ela ser convocada e
instalada anualmente (art. 1.072). O Cdigo de 2002 suprimiu, assim, uma das
principais vantagens presentes na legislao anterior da sociedade por quotas, que
no exigia a prtica de qualquer ato societrio de carter regular para demonstrar o
720

Visando corrigir essa exigncia absurda para aprovao de qualquer matria, o prprio Relator final
do projeto, Deputado Ricardo Fiza, diante da avalanche de crticas da doutrina, apresentou um projeto
de lei (PL 7.160/2002) propondo a reduo do quorum mnimo obrigatrio para a maioria do capital
social. Em razo do falecimento do Deputado Ricardo Fiza, e no sendo reapresentado, esse projeto
de lei foi arquivado em 2008.

Teoria crtica da empresa

366

Ivanildo Figueiredo

funcionamento legal da sociedade. Pelo menos a cada ano, a assemblia geral ou a


reunio de quotistas dever ser realizada para a aprovao das contas dos
administradores, cabendo em seguida apresentar para registro perante a Junta
Comercial a ata e documentos correspondentes s deliberaes tomadas (art. 1.075,
2).
Diversas outras exigncias de natureza burocrtica e que importaro em custos
administrativos para as sociedades limitadas so previstas nas normas do Cdigo Civil
de 2002. So exemplos as exigncias de que deve a sociedade manter e escriturar
livro de atas da administrao (art. 1.062), livro de atas e pareceres do conselho fiscal,
se instalado (art. 1.067), livro de atas da assemblia geral ou da reunio de quotistas
(art. 1.075, 1), bem como do livro de protocolo de entrega aos scios das
demonstraes contbeis (art. 1.078, 1).
As exigncias e procedimentos burocrticos previstos nas normas acima
citadas seriam at justificveis no caso de sociedades limitadas de mdio ou grande
porte, integradas por um grande nmero de scios, como uma empresa holding ou
uma corporao multinacional. Tendo em vista, todavia, que mais de 80 % das
sociedades limitadas no Brasil so empresas enquadradas, em razo do porte, como
micro e pequenas empresas, a maioria delas de natureza familiar, essa burocracia
desnecessria imposta pelo Cdigo Civil de 2002 poder, inclusive, provocar um
aumento no grau de informalidade e de irregularidade nessas empresas, em face do
custo administrativo que elas sero obrigadas a suportar para cumprir essas
exigncias legais.

Teoria crtica da empresa

367

Ivanildo Figueiredo

6.5. Aplicao supletiva da Lei das Sociedades Annimas

No que se refere ao regime jurdico dominante nesse tipo societrio, o art. 1.053
do Cdigo Civil prescreve que A sociedade limitada rege-se, nas omisses deste
Captulo, pelas normas das sociedades simples, mas o contrato social poder prever
a regncia supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade annima.
Essa disposio normativa apresenta uma grave contradio, por recusar, em
princpio, a natureza da sociedade de responsabilidade limitada como sociedade
empresria, empurrando-a para a proximidade do regime aplicvel s sociedade
simples. Todavia, a sociedade limitada deve ser considerada como uma sociedade
empresria, por desempenhar atividade mercantil, e a regulao supletiva do seu
contrato deveria ser atravs da Lei das Sociedades Annimas e no das normas da
sociedade simples, como previa, alis, o art. 18 do Decreto 3.708/1919.721
Como elemento conclusivo do conceito da sociedade por quotas, destaca-se a
responsabilidade limitada dos scios que integram a sociedade, em que cada scio
tem a sua responsabilidade restrita ao valor de suas quotas respectivas no capital da
sociedade, o que prprio das sociedades mercantis, e no da sociedade simples.
A sociedade limitada sempre foi considerada pela doutrina como uma
sociedade de pessoas. Na sociedade de pessoas, existe uma forte vinculao pessoal
entre os scios e encontra-se nela presente, na maioria dos casos, o elemento
personalssimo denominado affectio societatis. O elemento da affectio societatis
implica em uma relao de confiana e aceitao recproca entre todos os scios que
integram a sociedade, representado pela inteno dos scios de envidar seus
esforos para a consecuo do objeto comum.722

721

Decreto 3708/1919 Art. 18. Sero observadas quanto s sociedades por quotas, de
responsabilidade limitada, no que no for regulado no estatuto social, e na parte applicavel, as
disposies da lei das sociedades anonymas.
722 Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 39.

Teoria crtica da empresa

368

Ivanildo Figueiredo

As sociedades de pessoas possuem natureza contratual, isto , so


constitudas mediante contrato social, ato formal do qual participam todos os scios
no momento da sua criao. Contudo, a sociedade limitada vista pela doutrina como
uma sociedade de natureza hbrida, na medida em que congrega, ao mesmo tempo,
caractersticas tanto das sociedades de pessoas, como das sociedades de capital. A
jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal apresenta julgados que afirmam que A
sociedade por quotas de responsabilidade limitada mista e no de pessoas,723 tendo
em vista, principalmente, o fato de que o contrato social pode at prever a cesso ou
alienao de quotas a terceiros estranhos, sem a necessidade do consentimento dos
demais scios.
Todavia, ainda que a natureza da sociedade limitada possa ser considerada
como hbrida ou mista, nos seus aspectos caractersticos dominantes, ela deve ser
classificada como sociedade de pessoas, de natureza contratual, situao esta que
vem agora reforada pelo Cdigo Civil de 2002, que manda aplicar as normas que
regem as sociedades simples, que so sociedades personalssimas, na falta ou
lacuna de norma disciplinadora especfica.
No quadro abaixo, procuramos evidenciar a natureza da sociedade limitada a
partir da combinao dos elementos caractersticos prprios, por um lado, das
sociedades de pessoas, e por outro lado, das sociedades de capitais:

Elementos caractersticos da sociedade limitada


Caractersticas como
sociedade de pessoas
Constituio mediante Contrato Social.
Presena do elemento da affectio
societatis.
Diviso do capital em quotas.
Restries para a alienao das quotas
a terceiro no scio.

723

Caractersticas como
sociedade de capital
Responsabilidade limitada dos scios.
Uso de denominao na formao do nome
empresarial.
A sociedade no se dissolve pela morte ou
retirada de scio.
No existe a obrigatoriedade de ser scio para
exercer funo de administrao.

Rubens Requio, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 320.

Teoria crtica da empresa

369

Ivanildo Figueiredo

Pelo fato de ser constituda, necessariamente, atravs de contrato social, o que


implica em uma vinculao personalssima entre os scios (sociedade intuitu
personae), estes participam do capital da sociedade limitada adquirindo as quotas
respectivas. E as quotas do capital so ttulos que, diferentemente das aes das
sociedades annimas, no so livremente negociveis, porque, em princpio, salvo
exceo expressa no contrato social, a alienao das quotas a terceiro estranho
depende do consentimento dos demais scios ou daqueles que representem a maioria
do capital. Essa restrio livre negociao das quotas mais um aspecto que
confere sociedade limitada caracterstica prpria das sociedades de pessoas.
Dependendo do modo como a sociedade limitada estipular a vinculao
supletiva ao regime jurdico da sociedade simples ou ao regime jurdico da sociedade
annima, ela poder ser definida com maior segurana em razo da sua natureza.
Mas, nos termos genricos da lei, segundo Arnoldo Wald, a partir da anlise das
novas regras, pode constatar-se que a disciplina das sociedades limitadas do Cdigo
Civil no se adequa na integralidade nem s sociedades de capitais, nem s
sociedades pessoais.724
A sociedade de capital, que tem como espcie tpica a sociedade annima,
uma sociedade de natureza estatutria, sendo constituda atravs de estatuto social,
que um instrumento bem mais complexo do que o contrato social, porque deve
seguir um padro normativo determinado pela legislao. A sociedade de capital tem
natureza institucional, uma vez que deve atender a uma funo social, destacada pela
Constituio Federal (art. 170, III) e pela Lei das Sociedades Annimas (Lei
6.404/1976, art. 116, pargrafo nico).
Desse modo, podemos considerar que a sociedade de capital transcende aos
interesses particulares dos seus acionistas para assumir um fim pblico, e os
administradores da companhia, no exerccio das suas atribuies, devem observar
as exigncias do bem pblico e da funo social da empresa (Lei 6.404/1976, art.
154). Esse aspecto da funo social da empresa, por decorrer de um princpio

724

Comentrios ao novo Cdigo Civil - Livro II Direito de Empresa, vol. XIV, cit., p. 304.

Teoria crtica da empresa

370

Ivanildo Figueiredo

constitucional, deve tambm ser atendido pela sociedade limitada no mbito da


execuo do seu objeto mercantil.
Mas a principal caracterstica da sociedade limitada resultante dos princpios
que regem as sociedades de capital diz respeito responsabilidade limitada dos seus
scios. A responsabilidade limitada sempre representou uma garantia dos acionistas
das sociedades de capital, enquanto nas sociedades de pessoas a responsabilidade
dos scios era ilimitada, ou seja, no existia uma ntida separao entre o patrimnio
da sociedade e o patrimnio particular dos scios. Se o patrimnio da sociedade fosse
insuficiente para o pagamento das dvidas sociais, os credores poderiam executar o
patrimnio particular dos scios. A garantia da limitao da responsabilidade dos
scios foi a causa principal que propiciou o vertiginoso crescimento da sociedade
limitada na realidade econmica e no direito contemporneo a partir do incio do
sculo XX.
Outro aspecto interessante e prprio das sociedades de capital incorporado s
caractersticas da sociedade limitada reside na possibilidade de formao do seu
nome empresarial atravs de denominao. Nas sociedades de pessoas, somente
admite-se a formao do nome comercial atravs de firma social, no qual deve constar
o nome completo ou abreviado dos scios comerciantes ou daqueles que podem fazer
uso da firma, assinando em nome da sociedade. A denominao oculta a identidade
dos scios, fazendo referncia, apenas, ao objeto da empresa.
Na sociedade de responsabilidade limitada, assim como tambm ocorre nas
sociedades de capital, no necessria a presena de scio na administrao da
sociedade, em que a participao dos scios controladores do capital na gesto da
empresa facultativa, sendo permitida a designao de terceiros no scios para o
exerccio das funes de representao e administrao da sociedade, nomeados
atravs de ato em separado (art. 1.062).
A sociedade limitada deve ser considerada, a partir das suas particularidades,
como uma sociedade empresria, porque tem por objeto primordial promover a
produo ou a comercializao de bens ou de servios no mercado.

Teoria crtica da empresa

371

Ivanildo Figueiredo

A atividade de produo ou circulao de bens ou de servios deve continuar


sendo considerada e classificada como atividade comercial ou mercantil, apesar da
tentativa do Cdigo Civil de 2002 de abandonar esse critrio de classificao, uma
vez que:
a) o objeto negocial quase sempre uma mercadoria, seja esta mercadoria um bem
mvel ou imvel, ou a prestao de um servio;
b) a produo, negociao ou comercializao das mercadorias e a prestao de
servios realiza-se dentro de um espao fsico ou virtual denominado de mercado;
c) o agente responsvel pelo processo de produo ou de circulao da mercadoria
ou do servio uma empresa, devidamente organizada e estruturada para esse
fim;
d) toda atividade de produo e negociao de mercadorias ou de prestao de
servios realizada no ambiente de mercado deve ser considerada como mercantil;
e) o exerccio de atividade mercantil, em carter habitual ou profissional,
denominado como mercancia, funo prpria do empresrio que atua atravs da
empresa.

Em face dessa realidade, a sociedade limitada, tanto sob o ponto de vista


terico, como sob o aspecto prtico e concreto, existe para desempenhar,
predominantemente, atividade comercial ou mercantil, devendo, por conseguinte, ser
considerada como uma sociedade empresria, ainda que a sociedade simples, de
natureza civil, possa ser constituda como sociedade de responsabilidade limitada.
A sociedade limitada representa o caso tpico de um instituto jurdico criado
especialmente para preencher uma lacuna existente na legislao comercial, diante
da evidente distncia existente entre as sociedades de pessoas ou familiares, com a
responsabilidade ilimitada dos scios, e as sociedades annimas, forma jurdica que
atende s necessidades das grandes corporaes.
Dependendo da aplicao supletiva do regime da sociedade simples e da
sociedade annima, Lucila de Oliveira Carvalho opina que passaro a coexistir dois
tipos de sociedades limitadas, as reguladas supletivamente pelas regras que
disciplinam as sociedades simples e as reguladas supletivamente pela lei das

Teoria crtica da empresa

372

Ivanildo Figueiredo

sociedades annimas, conforme for da escolha dos contratantes.725 Fbio Ulhoa


Coelho vem a reforar esse entendimento, ao classificar essas sociedades como
limitadas com vnculo societrio instvel, que so reguladas supletivamente pelas
normas das sociedades simples, e limitadas com vnculo societrio estvel, quando a
elas se aplica supletivamente a legislao das sociedades annimas.726
Quando a sociedade de responsabilidade limitada adotar como regime
supletivo as normas das sociedades annimas, no existiro dvidas de que se trata
de uma sociedade empresria. Caso adote o regime supletivo da sociedade simples,
ela ser empresria apenas em razo da forma, ainda que o seu objeto no seja de
natureza mercantil.
Diante de todas as caractersticas ressaltadas como prprias e inerentes
sociedade limitada, no h como negar que este tipo societrio muito mais
apropriado para o desempenho de atividade comercial, tal como se verifica na prtica.
Nessa condio, diante da natureza mercantil do seu objeto e do carter lucrativo da
explorao da atividade econmica, a sociedade limitada deve ser sempre regulada,
em carter supletivo, pela Lei das Sociedades Annimas, no cabendo a aplicao
supletiva do regime da sociedade simples, seno quando o objeto da sociedade
estiver relacionado com o exerccio de atividade rural ou de natureza literria, artstica
ou cientfica, como, alis, estabelece o pargrafo nico do art. 966 do Cdigo Civil de
2002.

725

A responsabilidade do administrador da sociedade limitada, Rio de Janeiro, Forense, 2003, p.


19.
726 A sociedade limitada no novo Cdigo Civil, cit., p. 23-24.

Teoria crtica da empresa

373

Ivanildo Figueiredo

6.6. A reviso necessria da sociedade limitada

Considerando as relevantes modificaes decorrentes do Cdigo Civil de 2002


destinadas a disciplinar a sociedade de responsabilidade limitada, a incluso do
estudo mais aprofundado desse tipo de empresa no presente trabalho tem como
finalidade evidenciar, em termos dogmticos e tambm empricos, o aumento
desnecessrio e inexplicvel do grau de complexidade da sociedade limitada, que
pode ser at equiparada a uma sociedade annima fechada, e as dificuldades
conceituais que decorrero do prprio conceito de sociedade empresria.
Ao procurar abarcar o vasto campo do direito comercial em algumas normas
do novo Cdigo Civil, o legislador veio a causar uma grande confuso conceitual e
metodolgica no direito positivo brasileiro, sob a justificativa de que estava, apenas,
unificando o direito das obrigaes em seu tronco comum. Nesse diapaso, considera
Geraldo Neves que a tentativa do legislador civil de absorver o Direito Comercial foi
tmida e improdutiva,727 uma vez que diversos e amplos institutos do direito comercial
continuam sendo regulados por leis mercantis especiais.
A interveno no direito societrio foi ainda mais grave, porque o novo Cdigo
Civil apresenta srias incongruncias temticas, ao se basear em uma realidade de
60 anos atrs, ainda disciplinando tipos societrios superados.728 E assim o Cdigo de
2002 passou a regular, de modo anacrnico, a sociedade por quotas de
responsabilidade limitada, apesar desta ser o tipo societrio mais utilizado pelas
micro, pequenas e mdias empresas. Apenas tendo em mira as excees, que so
as grandes empresas organizadas como sociedades limitadas, o legislador ignorou,
solenemente, a realidade da esmagadora maioria das empresas brasileiras.

727

Geraldo de Oliveira Santos Neves, Cdigo Civil Brasileiro de 2002 Principais alteraes, cit.,
p. 116.
728 A permanncia de normas de regulao das sociedades em nome coletivo e em comandita simples,
tipos superados desde o incio do sculo XX e que caram em total desuso, demonstra, sob o aspecto
societrio, a defasagem normativa dessa disciplina no Cdigo Civil de 2002.

Teoria crtica da empresa

374

Ivanildo Figueiredo

A sociedade limitada, diante da variabilidade das formas de sua organizao,


deveria ser disciplinada no sob uma nica modalidade, como adotado pelo Cdigo
Civil, mas este poderia muito bem prever a regulao de trs ou quatro tipos de
sociedades de responsabilidade limitada, com graus variveis de complexidade, das
mais simples, que poderia ser a sociedade unipessoal, s mais complexas,
representada, exatamente, pelo modelo burocrtico e complexo concebido pelo
legislador civilista.
Diante da tendncia contempornea da descodificao e da regulao de
institutos jurdicos atravs de microssistemas normativos, a opo do legislador
civilista revela-se no s defasada historicamente, como tambm totalmente
divorciada da realidade econmica e da necessidade objetiva da fixao de regimes
diferenciados em razo das diversas formas e modalidades de explorao das
atividades comerciais pelas empresas.
Observa Rodrigo Prado Marques que uma outra via costumeiramente
apontada seria a unio de todo ordenamento jurdico societrio em um nico Cdigo,
fazendo-se um Cdigo Societrio completo e abrangente, a exemplo do que fizeram
a Frana em 1966, a Argentina em 1972 e Portugal em 1986.729 Essa posio
representa uma alternativa vlida, de muito maior coerncia, e teria por finalidade
regular, exclusivamente, em um microssistema normativo, as sociedades mercantis,
deixando para o Cdigo Civil a disciplina das sociedades no econmicas, como as
associaes, as fundaes e as sociedades simples.730
No direito portugus, por exemplo, foi criado, atravs do Decreto-Lei 248/1986,
o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada, ou seja, a
empresa individual limitada, modalidade de explorao comercial mais apropriada
729

Rodrigo Prado Marques, Sociedades limitadas no Brasil, So Paulo, Editora Juarez de Oliveira,
2006, p. 57.
730 Divergindo apenas quanto reunio, em um mesmo cdigo, da disciplina integral do direito
societrio, Jos Waldecy Lucena opina: H de se concluir, de conseguinte, que o legislador brasileiro
estaria em harmonia com o pensar deste incio de sculo, destes novos tempos de globalizao
(mondialisation), se tivesse retirado do novo Cdigo Civil todo o Direito Societrio ali disciplinado, e que
passaria a ser objeto de um corpo legislativo em separado, isto , de um microssistema parte,
integrado pela Lei de Sociedade Annima, que o prprio Cdigo j excluiu, e pela disciplina de todos
os demais tipos societrios, qualquer que seja seu objeto, seja empresarial (comercial), seja noempresarial (civil), contanto que tenha uma finalidade econmica. (Das sociedades limitadas, cit., p.
37).

Teoria crtica da empresa

375

Ivanildo Figueiredo

para as micro e pequenas empresas, e que, no Brasil, representam praticamente a


metade das organizaes empresariais. O simples fato de se atribuir a limitao da
responsabilidade aos empresrios individuais, tem o efeito direto de evitar a
constituio de sociedades fictcias ou simuladas, e que ocorre quando o capital social
pertence, de modo majoritrio, a um nico scio, e que a participao restante seria
formalizada, apenas, pelo scio minoritrio, com a nica finalidade de garantir a
responsabilidade limitada aos seus integrantes.731
Na Espanha, a Lei 02/1995, ao regular a Sociedade de Responsabilidade
Limitada (SL), permite aos seus scios ampla margem para estabelecer, no contrato,
as normas sobre a organizao e administrao interna da sociedade, sendo esta uma
sociedade extremamente flexvel e adaptvel aos interesses dos scios, podendo
adotar modelos diferenciados de acordo com o seu porte econmico. Todavia, para o
devido enquadramento da sociedade de responsabilidade limitada no correspondente
regime legal, esta no pode ter um capital social inferior a 3.500 euros, o que
representa um requisito patrimonial mnimo que a legislao brasileira sequer cogita
para a definio do tipo societrio.
Como tipo intermedirio mais apropriado para as sociedades de mdio porte, a
legislao espanhola, atravs da Lei 7/2003, prev a constituio de outro tipo
societrio. denominado Sociedade Limitada Nova Empresa (SLNE), cujo capital social
no poder ser inferior a 3.012 euros nem superior a 120.202 euros. Caso o seu
capital seja aumentado e venha a ultrapassar esse valor, esse tipo societrio dever
adotar, obrigatoriamente, a forma de sociedade annima.
Nos exemplos citados acima, a legislao dos pases europeus estabeleceu
critrios e patamares, em razo do capital, para a configurao dos tipos societrios.
A fixao de critrios objetivos para a definio do tipo societrio, seja em razo do
capital, seja pelo valor do faturamento anual, seja pelo nmero de empregados,
deveria ser tambm seguido e considerado pela legislao societria brasileira, tal
como ocorre, por exemplo, para a organizao das companhias de capital fechado

731

Esta situao bastante comum verifica-se nas sociedades familiares, em que o scio majoritrio
detentor de 99 % do capital, e o scio minoritrio possui mera participao residual, apenas para
conferir, de modo artificial, carter societrio empresa para limitao da responsabilidade.

Teoria crtica da empresa

376

Ivanildo Figueiredo

(Lei 6.404/1976, art. 176), bem como para o enquadramento das micro e pequenas
empresas (Lei Complementar 123/2006).
O Cdigo Civil de 2002, contudo, no contm qualquer parmetro classificatrio
ou determinante, com base em critrios objetivos, para a definio do tipo societrio
que deve ser adotado pelos scios ou acionistas na constituio de qualquer
empresa.732 Para o direito positivo brasileiro, sendo satisfeito, apenas, o requisito da
pluripessoalidade, com a presena de dois ou mais scios, qualquer empresa pode
ser constituda e estruturada como sociedade limitada ou como sociedade annima,
independentemente do porte, do volume de negcios ou do capital social. E essa
ausncia de critrio, destarte, faz com que a legislao societria brasileira
permanea atrelada a modelos e estruturas superadas, que no foram discutidas ou
sequer questionadas em todo o longo processo legislativo de elaborao do Cdigo
Civil de 2002.
Espera-se, portanto, em sntese final, que o regime da sociedade de
responsabilidade limitada no Cdigo Civil de 2002 tenha existncia breve, para que
os seus graves defeitos de origem sejam corrigidos, que uma nova legislao
societria venha a substituir um regime que j nasceu velho, arcaico, e que se
demonstra mais preocupado com a afirmao de concepes filosficas pessoais e
com as idiossincrasias dos seus criadores, do que com a praticidade e utilidade que
deveriam predominar nas normas jurdicas societrias, principalmente no mbito das
atividades das empresas comerciais.
Com a proposta de projeto de um novo Cdigo Comercial, como ser explorado
no captulo seguinte, aguarda-se a reconfigurao necessria da sociedade de
responsabilidade limitada, para que ela retorne ao seu modelo simplificado e
adaptvel, tanto para servir constituio e organizao de empresas de pequeno
porte, como para atender s exigncias de estruturao jurdica das empresas
maiores.

732

Somente a partir da Lei 12.441/2011, que introduziu o art. 980-A no Cdigo Civil para assim criar a
figura esdrxula e indefinida da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada EIRELI, com capital
obrigatrio de 100 salrios mnimos, a legislao brasileira passou a estabelecer um patamar de capital
integralizado para a constituio desse tipo de empresa. Ver seo 4.7 do Captulo 4 acima.

Teoria crtica da empresa

377

Ivanildo Figueiredo

Captulo 7
A renovao do direito comercial

7.1. Os problemas de adaptao do regime do direito de


empresa realidade econmica brasileira; 7.2.
Dificuldades no mbito do registro de empresas; 7.3.
Restries cientficas e didticas no direito empresarial;
7.4. O projeto de novo Cdigo Comercial e sua justificao;
7.5. O retorno metodolgico aos princpios do direito
comercial; 7.6. Redefinio das fronteiras do direito
comercial, do direito civil e do direito do consumidor.

7.1. Os problemas de adaptao do regime do direito de empresa realidade


econmica brasileira

A disciplina da atividade econmica, no Brasil, sempre esteve relacionada com


a natureza comercial ou mercantil da atividade empresarial. O prprio conceito de
mercancia, agregador da explorao mercantil, como assim encontrava-se expresso
desde o Cdigo de Comrcio do Imprio de 1850 (art. 4), representava a ideia, a
concepo, de que a funo comercial inerente ao exerccio da empresa e
atividade do empresrio.
Sob a perspectiva ontolgica, da definio do ser em si, o Cdigo Civil de 2002
buscou afastar o conceito de mercantil ou comercial do mbito da caracterizao da
empresa, no obstante o enquadramento legal da sociedade annima como mercantil
e da sua vinculao necessria, por fora de norma positiva, s leis e prtica
comercial.733

733

Lei 6.404/1976 - Art. 2, 1. Qualquer que seja o objeto, a companhia mercantil e se rege pelas
leis e usos do comrcio.

Teoria crtica da empresa

378

Ivanildo Figueiredo

A empresa, segundo a concepo civilista, compreenderia, genericamente,


qualquer atividade econmica, esteja essa atividade voltada industrializao e
comercializao de bens, ao transporte de mercadorias, s operaes de crdito ou
prestao de servios. Todavia, como pressuposto para sua caracterizao
normativa, a atividade econmica da empresa deve estar dotada minimamente de
uma infraestrutura bsica, compreendendo organizao tecnolgica, administrativa,
gerencial e contbil, com informaes detalhadas dos seus elementos patrimoniais.
Nessa perspectiva, a empresa um ente, sujeito de direito, e no apenas
representao de uma funo ou atividade.
Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, a empresa, na estrita acepo do termo,
somente pode ser caracterizada e definida, como atividade, a partir da reunio
racional desses elementos organizacionais e estruturantes.734 Em resumo: no existe
empresa sem a organizao mnima dos fatores essenciais de produo: capital,
trabalho, bens (mveis e imveis) e tecnologia.
A princpio, a discusso a respeito de tal questo conceitual poderia parecer
mero diletantismo terico ou preciosismo acadmico. Mas no . A determinao das
caractersticas prprias de uma atividade econmica revela-se essencial para a
definio do correspondente regime jurdico, de natureza comercial, com seus
elementos de interpretao. Tal circunstncia deve afastar, consequentemente, da
regulao e soluo de problemas concretos inerentes aos negcios comerciais, a
incidncia das normas de direito civil e de direito do consumidor.
O direito comercial o ramo do direito privado que tem por objeto regular as
relaes entre empresas e empresrios. Exclusiva e estritamente. No tem o direito
comercial a funo ou condo de disciplinar as relaes econmicas e patrimoniais
entre pessoas, quando as partes no sejam empresrios ou no exercitem atividade
econmica com finalidade lucrativa.

734

A empresa atividade organizada no sentido de que nela se encontram articulados, pelo


empresrio (que organiza), os quatro fatores de produo: capital, mo de obra, insumos e tecnologia.
A noo de organizao, nsita ideia de empresa, envolve, portanto, um certo grau de sofisticao da
produo ou circulao de bens ou servios. (Comentrios Lei de Falncias e de recuperao de
empresas, So Paulo, Saraiva, 10 edio, 2014, p. 43-44).

Teoria crtica da empresa

379

Ivanildo Figueiredo

A partir dessa separao simples, direta e objetiva, as normas de direito


comercial devem servir para regular as relaes entre pessoas, fsicas ou jurdicas,
que exeram atividade empresarial, com carter profissional.
O ncleo do Direito Mercantil moderno, como assim posto por Oscar Barreto
Filho, a empresa comercial.735 E o conceito de empresa comercial, dentro da
realidade econmica, no estgio atual do Direito, no pode ser reduzida a um
conceito unitrio, devendo ser considerada sob vrios aspectos diferentes,736 a
exemplo do modo como tratada por Asquini, sob a perspectiva de ser um fenmeno
polidrico.737 E no quadro da realidade econmica, a funo social da empresa passou
a ser, alm de princpio consagrado pela Constituio Federal de 1988,738 elemento
definidor da prpria empresa, considerada como ente imprescindvel sustentao
da economia, na gerao e distribuio de riquezas e na satisfao das necessidades
de consumo da sociedade de um modo geral.
Antes do Cdigo Civil de 2002, a regulao da atividade comercial encontravase disciplinada, residualmente, pelo Cdigo Comercial de 1850. A legislao no
codificada, como visto anteriormente, disciplinava as sociedades comerciais, a
falncia, o registro do comrcio e uma srie de contratos mercantis. A partir da
promulgao do Cdigo de 2002, passa a existir um dplice regime normativo, o do
direito de empresa e o da legislao comercial supletiva ou complementar. A
existncia de dois sistemas dispositivos, com conceitos que no dialogam entre si,
vem causando dificuldades de toda espcie, a comear pela prpria definio de

735

A dignidade do Direito Mercantil, Revista de Direito Bancrio e do Mercado de Capitais, RDB, vol.
6, set.dez/1999, So Paulo, RT, 1999, p. 304.
736 Apesar dessa lio de Oscar Barreto Filho haver sido proferida em uma aula magna de abertura dos
cursos jurdicos da Faculdade do Largo de So Francisco, no longnquo ano de 1973, ele j antevia a
necessidade da legislao separar a figura do empresrio individualista da instituio empresa,
destacando trs ordens de fenmenos econmico-sociais que se traduzem em impulsos evolutivos no
sentido de modificar a estrutura jurdica da empresa, organizada sob a forma de sociedade annima:
a) a progressiva separao entre a propriedade e a gesto da empresa, que se observa principalmente
no quadro das grandes companhias; b) a gradativa afirmao de um direito de co-gesto atribudo aos
colaboradores da empresa, de modo a limitar a liberdade dos proprietrios dos meios de produo (v.
Franois Bloch, LAin, Pour une reforme de lentreprise, 1963); c) a elaborao do conceito da funo
social da propriedade empresarial, acarretando no s restries, mas tambm deveres positivos para
com a coletividade por parte dos proprietrios. Estas atitudes traduzem, em sntese, na atribuio aos
empresrios de maior conscincia de sua responsabilidade social, perante seus colaboradores e a
coletividade qual destinam seus produtos. (A dignidade do Direito Mercantil, cit., p. 304-305).
737 Perfis da Empresa, cit., p. 109/126.
738 Constituio Federal, art. 170, inciso III.

Teoria crtica da empresa

380

Ivanildo Figueiredo

empresa, quando esse espao ainda continua sendo ocupado pelas antigas figuras
do comerciante e da sociedade comercial.
O primeiro problema decorrente da introduo artificial do regime do direito de
empresa no nosso sistema de direito positivo, , portanto, de ordem ontolgica,
referente prpria conceituao da empresa, e caracterizao da sua natureza
como ente mercantil. O Cdigo de 2002, apesar de erigir a empresa categoria
fundamental do sistema, resume sua compreenso a um conceito meramente
funcional, de atividade de produo e circulao de bens e de servios, conceito
indireto, extrado da norma que define o empresrio (art. 966).
A empresa no vem a ser definida como sujeito de mercado ou agente
econmico, que a sua real imagem exterior, do modo como as pessoas assim
apreendem na sua representao externa. O conceito legal de empresa, resultante da
frmula do legislador do Cdigo de 1942 na Itlia fascista, reduzido atividade de
produo e circulao de bens e de servios, demonstra-se insuficiente e contraditrio
para exprimir o seu significado concreto, econmico, social e jurdico, em completo
divrcio com a realidade econmica, nas palavras de Fbio Konder Comparato.739
A doutrina, apesar dessa evidente limitao conceitual, insiste em referir-se
empresa meramente como atividade, e no no seu sentido subjetivo, de ente
econmico. Alguns autores, inclusive Fbio Ulhoa Coelho, defendem a vinculao
estrita s definies positivistas, ao qualificar juridicamente o empresrio individual e
a sociedade empresria, recusando tratar, cientificamente, esses agentes no seu
sentido genrico como empresa, por exemplo, como em alguns casos quando a lei
assim dirige-se aos destinatrios das suas normas na legislao de recuperao de
empresas e falncia.740

739

A reforma da empresa, cit., p. 68.


Lei 11.101/2005 Art. 1o Esta Lei disciplina a recuperao judicial, a recuperao extrajudicial e a
falncia do empresrio e da sociedade empresria, doravante referidos simplesmente como devedor.
A delimitao dos sujeitos destinatrios da lei, o empresrio e a sociedade empresria, vem provocando
a rejeio de doutrinadores, como Fbio Ulhoa Coelho, em utilizar a figura da empresa como
destinatria genrica do regime recuperacional e falimentar: Na verdade, no direito brasileiro,
empresa deve forosamente ser definida como atividade, uma vez que h conceitos legais prprios
para empresrio (CC, art. 966) e estabelecimento (CC, art. 1.142). Estas faces do polidrico fenmeno
descrito por Asquini, entre ns, devem ser adequadamente referidas pelos termos que o legislador a
ela reservou. Ademais, como deflui do conceito legal de empresrio, empresa s pode ser entendida
740

Teoria crtica da empresa

381

Ivanildo Figueiredo

A empresa no pode ser entendida somente como atividade, como expresso


da sua funo de produo e troca no mercado. A empresa, antes de mais nada, o
principal agente da atividade econmica e, por isso mesmo, sujeito juridicamente
tutelado como destinatrio de normas de proteo em face do reconhecimento de sua
relevante funo social. Na designao genrica de empresa devem ser enquadrados
todos os agentes econmicos, sujeitos de direito, qualquer que seja sua forma, se
empresrio individual ou sociedade comercial, de responsabilidade limitada ou por
aes. Destacando a centralidade e importncia da empresa, como elemento
fundamental e explicativo do prprio direito comercial, Vincenzo Buonocore afirma:
Isto refora a convico de que, hoje, a empresa , ao mesmo tempo, o
fundamento do direito comercial e o elemento unificador de todos os institutos que
nesta matria esto naturalmente compreendidos. Sem temor de ser repetitivo, se
pode reafirmar que o direito comercial o direito da empresa e o sujeito que a exercita
o empresrio o inconteste protagonista da matria.741

Para Ascarelli, entender a empresa como atividade exige uma compreenso


bem mais ampla. Ora a empresa pode ser vista como atividade na sua funo
econmica, ora com o mesmo sentido de estabelecimento, ora como organizao do
trabalho humano.742
A empresa, assim considerada por Oscar Barreto Filho, necessariamente
comercial.743 A adjetivao como comercial ou mercantil, insistimos, inerente
atividade da empresa. Essa a segunda consequncia da neutralidade do conceito de
empresa no Cdigo de 2002, que revela evidente limitao na caracterizao da
empresa, ao omitir o contedo e natureza especfica da sua atividade. Toda essa
riqueza e diversidade conceitual da figura polidrica da empresa e da natureza da sua
atividade foi afastada pela neutralidade conceitual do Cdigo Civil de 2002, que se
afastou, inclusive, da sua matriz italiana. Esse problema terminolgico e conceitual,
como visto, causou toda uma confuso e anacronismo no tratamento jurdico da
empresa, exigindo uma nova configurao dogmtica desse instituto.

mesmo como uma atividade revestida de duas caractersticas singulares: econmica e organizada.
(Comentrios Lei de Falncias e de recuperao de empresas, cit., p. 38).
741 LImpresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 49.
742 Corso di Diritto Commerciale, cit., p. 36.
743 A dignidade do Direito Mercantil, cit., p. 304.

Teoria crtica da empresa

382

Ivanildo Figueiredo

7.2. Dificuldades no mbito do registro de empresas

Uma das consequncias imediatas do regime do direito de empresa no Cdigo


Civil de 2002, e que provocaram profundas alteraes na sistemtica legal da
atividade econmica, diz respeito ao registro de empresas, funo exercida pelas
Juntas Comerciais, de acordo com os procedimentos da Lei 8.934/1994.
O regime da Lei 8.934/1994, que regula o sistema de registro pblico de
empresas mercantis, foi concebido e estruturado com base nas definies e na
terminologia do Cdigo de 1850 e da legislao comercial. Assim, ele trata e referese s empresas, s firmas individuais e s sociedades como mercantis (artigos 1 e
2).744 O sistema do registro de empresas, de acordo com essa lei, encontra-se
vinculado, tcnica e normativamente, ao Departamento Nacional do Registro do
Comrcio (DNRC), e suas funes executadas pelas Juntas Comerciais. Assim, a
atividade da empresa, sob a perspectiva tcnica do registro, mercantil, comercial.
Enquanto as questes epistemolgicas, conceituais e metodolgicas, que
substituram os alicerces tericos do antigo direito comercial, estavam restritas aos
crculos acadmicos, as empresas, na prtica, passaram a se deparar com um
expressivo aumento das exigncias burocrticas para a constituio, registro e
alterao dos contratos sociais nas Juntas Comerciais.
E essa incompatibilidade de regime normativo se fez sentir de imediato,
constatada pela prpria insegurana do legislador que, atravs de sucessivas
medidas provisrias e leis, prorrogou o prazo de adaptao do empresrio e das

744

Lei 8.934/1994 - Art. 1 O Registro Pblico de Empresas Mercantis e Atividades Afins, subordinado
s normas gerais prescritas nesta lei, ser exercido em todo o territrio nacional, de forma sistmica,
por rgos federais e estaduais, com as seguintes finalidades: I - dar garantia, publicidade,
autenticidade, segurana e eficcia aos atos jurdicos das empresas mercantis, submetidos a registro
na forma desta lei; II - cadastrar as empresas nacionais e estrangeiras em funcionamento no Pas e
manter atualizadas as informaes pertinentes; III - proceder matrcula dos agentes auxiliares do
comrcio, bem como ao seu cancelamento. Art. 2 Os atos das firmas mercantis individuais e das
sociedades mercantis sero arquivados no Registro Pblico de Empresas Mercantis e Atividades Afins,
independentemente de seu objeto, salvo as excees previstas em lei.

Teoria crtica da empresa

383

Ivanildo Figueiredo

sociedades empresrias s novas formas e definies do Cdigo de 2002. Na sua


redao original, o art. 2.031 do Cdigo Civil definiu o seguinte prazo para a adaptao
das firmas individuais e das sociedades comerciais a esse novo regime jurdico:
Art. 2.031. As associaes, sociedades e fundaes, constitudas na forma das
leis anteriores, tero o prazo de um ano para se adaptarem s disposies deste
Cdigo, a partir de sua vigncia; igual prazo concedido aos empresrios.

Em virtude das dificuldades naturais decorrentes dessa mudana radical em


todo um regime jurdico, principalmente pela incapacidade dos rgos do registro de
empresas mercantis de adotar um entendimento uniforme sobre os modelos de atos
dos empresrios e dos contratos das sociedades empresrias que deveriam ser
observados com base nesse novo regime legal, a entrada em vigor desse art. 2.031
foi sendo sucessivamente prorrogada. At que, finalmente, veio a ser fixado um prazo
definitivo, quando foi, enfim, determinada a data de 11/01/2007, ou seja, 4 anos aps
a sua vigncia inicialmente prevista, para a adaptao dos contratos das sociedades
empresrias sujeitas ao novo Cdigo s suas disposies.745
Todavia, a partir de 2002, o DNRC passou a editar uma srie de instrues
normativas e a emitir pareceres jurdicos no sentido de aplicao das burocrticas
medidas de registro previstas no Cdigo Civil, aumentando, com essa excessiva
interveno, o grau de dificuldades das empresas na elaborao dos seus
instrumentos registrais e societrios.746

745

A redao do art. 2.031 do Cdigo Civil de 2002 foi sucessivamente modificada pelas seguintes
normas: Lei n 10.825, de 22.12.2003 inseriu um pargrafo nico no art. 2.031 para excluir as
organizaes religiosas e partidos polticos da exigncia de modificao dos seus estatutos sociais; Lei
n 10.838, de 30.01.2004 Nova redao do Art. 2.031: As associaes, sociedades e fundaes,
constitudas na forma das leis anteriores, tero o prazo de 2 (dois) anos para se adaptar s disposies
deste Cdigo, a partir de sua vigncia igual prazo concedido aos empresrios; Medida Provisria n
234, de 10.01.2005 Nova redao do Art. 2.031: As associaes, sociedades e fundaes,
constitudas na forma das leis anteriores, bem assim os empresrios, devero se adaptar s
disposies deste Cdigo at 11 de janeiro de 2006"; Lei n 11.227, de 28.06.2005 - Nova redao do
Art. 2.031: As associaes, sociedades e fundaes, constitudas na forma das leis anteriores, bem
como os empresrios, devero se adaptar s disposies deste Cdigo at 11 de janeiro de 2007.
746 A Instruo Normativa do DNRC 92, de 04/12/2002, veio a exigir a converso do nome de todas as
firmas individuais existentes no Pas, apenas para mudana na caracterizao do tipo de empresa: Art.
4o. As Firmas Mercantis Individuais, que a partir de 11 de janeiro de 2003 passam a ter a denominao
de empresrios, tm at 10 de janeiro de 2004 para se adaptarem s disposies da Lei
no 10.406/2002, devendo promover, no mbito do Registro Pblico de Empresas Mercantis, o
arquivamento de Requerimento de Empresrio e demais instrumentos determinados por aquela Lei.

Teoria crtica da empresa

384

Ivanildo Figueiredo

No caso das sociedades por quotas, que passou a se chamar sociedade


limitada, o DNRC editou a Instruo Normativa 98, em 23/12/2003, estabelecendo
uma srie de exigncias de contedo e clusulas obrigatrias nos contratos sociais,
extrapolando, bastante, o prprio contedo do artigo 997 do Cdigo Civil.747 Essas
dificuldades adicionais derivadas de uma regulamentao excessiva, terminam por
ampliar o grau de litigiosidade entre as Juntas Comerciais e os usurios dos seus
servios, diante do absurdo de exigncias formuladas para o registro dos atos das
empresas.748

747

BRASIL Departamento Nacional do Registro do Comrcio (DNRC) Manual de atos de registro


de Sociedade Limitada - 1.2 - Orientaes e Procedimentos - Elementos do Contrato Social - O contrato
social dever conter, no mnimo, os seguintes elementos: a) ttulo (Contrato Social); b) prembulo; c)
corpo do contrato: c.1) clusulas obrigatrias; d) fecho. Devero constar do prembulo do contrato
social: a) qualificao dos scios e de seus representantes: scio pessoa fsica (brasileiro ou
estrangeiro) residente e domiciliado no Pas ou no exterior: nome civil, por extenso; nacionalidade;
estado civil; data de nascimento, se solteiro; profisso; documento de identidade, nmero e rgo
expedidor/UF; CPF; endereo residencial (tipo e nome do logradouro, n, complemento, bairro/distrito,
municpio, unidade federativa e CEP, se no Pas); scio pessoa jurdica com sede no Pas: nome
empresarial; nacionalidade; endereo da sede (tipo e nome do logradouro, n, complemento,
bairro/distrito, municpio, unidade federativa e CEP); Nmero de identificao do Registro de Empresa
NIRE ou nmero de inscrio no Cartrio competente; CNPJ; scio pessoa jurdica com sede no
exterior: nome empresarial; nacionalidade; endereo da sede; CNPJ; b) tipo jurdico da sociedade
(Sociedade Limitada). 1.2.7 - Clusulas obrigatrias do contrato social - O corpo do contrato social
dever contemplar, obrigatoriamente, o seguinte: a) nome empresarial, que poder ser firma social ou
denominao social; b) capital da sociedade, expresso em moeda corrente, a quota de cada scio, a
forma e o prazo de sua integralizao; c) endereo completo da sede (tipo e nome do logradouro,
nmero, complemento, bairro/distrito, municpio, unidade federativa e CEP) bem como o endereo das
filiais; d) declarao precisa e detalhada do objeto social; e) prazo de durao da sociedade; f) data de
encerramento do exerccio social, quando no coincidente com o ano civil; g) as pessoas naturais
incumbidas da administrao da sociedade, e seus poderes e atribuies; h) qualificao do
administrador no scio, designado no contrato; i) participao de cada scio nos lucros e nas perdas;
j) foro ou clusula arbitral.
748 Civil e administrativo. Sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Baixa do registro da
mesma pela Junta Comercial. Ocorrncia de erro na interpretao do negcio jurdico. 1. Por fora da
disposio inscrita no artigo 112 do Cdigo Civil Brasileiro, nas declaraes de vontade se atender
mais inteno neles substanciada do que o sentido literal da linguagem. 2. Pondo em evidncia o
instrumento de "distrato social de sociedade limitada", levado a registro na Junta Comercial do Estado
do Mato Grosso, que a vontade declarada no fora a de extinguir a sociedade, mas to s encerrar as
atividades de filial, ilegtimo o ato de baixa da pessoa jurdica. 3. Remessa oficial no provida. (Tribunal
Regional Federal da 1 Regio, 6 Turma, REOMS - Remessa Ex-Officio em Mandado de Segurana
00014647520114013600, Relator Desembargador Federal Carlos Moreira Alves, 11/02/2014).
Administrativo. Mandado de segurana. Junta comercial. Arquivamento. Filial. Colidncia de nome
empresarial. Alterao da denominao social. Exigncia desproporcional. Princpio da livre iniciativa.
I - Afigura-se, na espcie, desarrazoada e desproporcional a exigncia imposta no art. 10, inciso II, da
Instruo Normativa n 116/11 do Departamento Nacional de Registro do Comrcio, de que a abertura
de filial, quando houver caso de identidade ou semelhana entre nomes empresariais, ser
condicionada alterao do nome empresarial da sociedade, eis que tal exigncia, em face do prejuzo
a ser ocasionado, equivaleria a impedimento ao exerccio da atividade no respectivo ente federativo,
em flagrante violao ao princpio constitucional da livre iniciativa. III - Apelao e remessa oficial
desprovidas. Sentena mantida. (Tribunal Regional Federal da 1 Regio, 5 Turma, Apelao em
Mandado de Segurana 00209666120104013300, Relator Juiz Federal Carlos Eduardo Castro Martins,

Teoria crtica da empresa

385

Ivanildo Figueiredo

7.3. Restries cientficas e didticas do direito empresarial

Com a vigncia do Cdigo Civil de 2002, alguns autores, alienados de qualquer


rigor cientfico, passaram a entender que, simplesmente, o direito comercial veio a ser
extinto, perdeu a sua autonomia e a disciplina mercantil varrida do perfil acadmico
dos cursos de direito.749 A partir do Cdigo de 2002, o direito comercial teria sido at
mesmo revogado,750 e toda a normatividade dessa matria ancestral, ancorada em
forte base consuetudinria, substituda pelo novel direito empresarial.
Alm dessa questo preliminar, da supresso do direito comercial como
disciplina autnoma, mesmo na fase de transio, com a atualizao dos currculos
de direito comercial para a nova denominao de direito empresarial ou direito de
empresa, vieram a ocorrer choques ou superposies curriculares, entre o direito
comercial e o direito civil, especialmente em matria societria, a partir das noes
iniciais de pessoas jurdicas e, principalmente, em matria contratual, considerando a
tentativa do Cdigo Civil de unificar o direito das obrigaes. Desse modo, passou a
haver duplicidade de matrias contratuais, especificamente a partir da compra e
venda, que deixou de ser mercantil, ao passar a ser espcie negocial genrica. Outras
modalidades contratuais, como a agncia e distribuio e de transporte, de natureza
DJe 01/08/2013) Administrativo. Mandado de segurana. Registro de alterao contratual na Junta
Comercial. Sociedade entre cnjuges. Disposio do novo Cdigo Civil ainda no vigente, poca.
Inaplicabilidade. I - A regra inserta no art. 977, do novo Cdigo Civil, que impede aos cnjuges, casados
no regime da comunho universal de bens, ou no da separao obrigatria, contratar sociedade entre
si ou com terceiros, tem aplicao a partir da sua vigncia, ocorrida em 11/01/2003, no atingindo os
atos contratuais anteriores a esta data. II - Remessa oficial desprovida. Sentena confirmada. (Tribunal
Regional Federal da 1 Regio, 5 Turma, REOMS 00159125220034013400, Relator Desembargador
Federal Souza Prudente, DJe 18/04/2005).
749 Gustavo Ceroni Guedes, A Transformao do Direito Comercial em Direito Empresarial, FAEF,
http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/QnPqODaM10HHXxG_2013-4-24-10-437.pdf, 25/11/2014.
750 Sobre a revogao do direito comercial, afirma Nadialice Francischini: Com a promulgao do
Cdigo Civil de 2002, foi inserido no ordenamento jurdico brasileiro o Direito Empresarial revogando o
Direito Comercial, juntamente com a primeira parte do Cdigo Comercial. Este era regulado pela teoria
dos atos de comrcio, dependendo de descrio legal dos mesmos para determinar quais atividades
eram tuteladas. Por sua vez, o Direito Empresarial est fundamentado na teoria da atividade da
empresa, sendo esta a atividade economicamente organizada com o fim de lucro. Direito
Empresarial: muito alm do Direito Comercial, Revista Direito, artigo eletrnico, em
http://revistadireito.com/direito-empresarial-muito-alem-do-direito-comercial/, 20/05/2014.

Teoria crtica da empresa

386

Ivanildo Figueiredo

comercial por excelncia, passaram a ser objeto de estudo tanto nas cadeiras de
direito civil, como nas disciplinas de direito empresarial ou comercial.
Todavia, os contratos empresariais ou mercantis seguem uma metodologia
prpria, porque so contratos em cadeia e executados em massa, que no se esgotam
na relao contratual entre duas pessoas, como acontece, por exemplo, com uma
compra e venda civil. A metodologia interdisciplinar dos contratos mercantis, que
esto sempre interagindo com questes econmicas, tecnolgicas, administrativas,
mercadolgicas, tributrias, trabalhistas, exige uma abordagem cientfica bem mais
ampla nos cursos de direito.
No campo didtico-pedaggico, o direito comercial no desapareceu dos
currculos acadmicos. A matria comercial no foi, sem embargo, simplesmente
incorporada ao direito civil. Tamanha heresia cientfica jamais poderia ter sido
cometida. Mas, na grande maioria das faculdades de direito, a partir do Cdigo de
2002, a denominao da disciplina foi alterada para direito de empresa ou direito
empresarial. Em matrias como sociedades annimas e falncia, todavia, a disciplina
comercial permaneceu intocada em seus princpios e fundamentos dogmticos.
Na opinio de Ivo Waisberg, o direito comercial possui caractersticas especiais
e prprias, podendo ser definido como o direito do mercado, o direito que representa
o suporte jurdico do capitalismo.751 O sistema produtivo e as relaes econmicas
so apreendidos e assim objeto de regulao pelo direito comercial, como direito
especializado. Essa especializao exige um tratamento metodolgico e cientfico
separado do direito privado comum, das relaes em que o carter patrimonialista e
econmico no possui referibilidade profissional, permanente, relacionado com a
cadeia produtiva, com os atos em massa da atividade comercial.

751

O direito comercial o ramo do Direito que se desenvolveu e deu suporte ao meio de produo
capitalista. Em outras palavras, o surgimento de uma subrea do direito privado voltada
fundamentalmente para viabilizar a relao entre os comerciantes inicialmente e, mais tarde, entre os
agentes econmicos de produo, incluindo a indstria e o que veio a se constituir economicamente
como empresa, foi pea vital para o progresso do capitalismo. inegvel a relao entre o tipo
especfico de meio de produo e o surgimento do direito comercial. (O Projeto de Lei n 1.572/2011
e a Autonomia do Direito Comercial, em Fbio Ulhoa Coelho, Tiago Asfor Rocha Lima e Marcelo
Guedes Nunes, org., Reflexes sobre o projeto de Cdigo Comercial, So Paulo, Saraiva, 2013, p.
69).

Teoria crtica da empresa

387

Ivanildo Figueiredo

7.4. O projeto de novo Cdigo Comercial e sua justificao

O regime do Cdigo Civil de 2002, sem sombra de dvidas, gerou uma


mudana radical nos conceitos e na disciplina normativa da empresa no mbito da
atividade econmica. A empresa passou a ser considerada como objeto e conceito
fundamental do direito comercial, regulado pelo novo direito empresarial. Mas, como
observado anteriormente, o regime comercialista no desapareceu nem foi
pulverizado pela codificao civilista, permanecendo hgido e vigorante, como, por
exemplo, na legislao das sociedades annimas, na tipologia dos contratos
mercantis e no sistema falimentar.
O Projeto de um novo Cdigo Comercial, diante de todas as contradies e
incongruncias do regime do direito de empresa do Cdigo Civil de 2002, surgiu, pelos
idos de 2011, por obra de uma iniciativa quixotesca do Professor Fbio Ulhoa Coelho.
E o ponto de partida para a discusso da real necessidade de um novo Cdigo
Comercial decorreu da constatao de que o direito comercial estava perdendo os
seus valores, seus princpios histricos, que sempre modularam a sua evoluo, ao
considerar que os valores do direito comercial esto esgarados.752
Esgarar tem como sentido o ato de rasgar, de desfiar o tecido, mas tambm
pode significar o ato de fragmentar.753 Na verdade, podemos considerar que os valores
e princpios do direito comercial encontram-se fragmentados, espalhados por diversas
outras reas e subramos do direito privado, sem uma unicidade lgica, perdidos desde
que o direito comercial teve constestadas as suas autonomias cientfica, legislativa e
didtica. Na opinio de Fbio Ulhoa Coelho, por culpa dos prprios comercialistas. 754

752

O futuro do direito comercial, So Paulo, Saraiva, 2011, p. 7.


Antonio Houaiss, Grande Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, Edio Beta, So Paulo,
www.uol.com.br, 2014.
754 A responsabilidade pelo esgarar dos valores do direito comercial dos comercialistas, que
tardaram a perceber as mudanas introduzidas pela argumentao por princpios na forma como se
decidem as demandas judiciais entre ns, depois da Constituio de 1988. A resistncia a estas
mudanas, embora herica e competente, no produziu nenhum resultado significativo. O direito
comercial, malgrado os esforos doutrinrios empreendidos, no consegue firmar-se numa sintonia
753

Teoria crtica da empresa

388

Ivanildo Figueiredo

Todavia, demonstrou-se evidente a desconexo cientfica do direito de


empresa disciplinado dentro do sistema de direito comum. Essa desconexo cientfica
entre o direito comercial e o direito privado geral at mesmo reconhecida pelos
civilistas, a exemplo de Luiz Edson Fachin, ao analisar as razes que esto hoje a
justificar um novo projeto de Cdigo Comercial.755
Diante da crise do direito comercial, da ausncia de consistncia e de
deficincia do sistema normativo, provocado pela imposio artificial do direito de
empresa pelo Cdigo Civil de 2002, foi se formando e crescendo um legtimo
movimento pela revitalizao do direito comercial no Brasil a partir de uma avaliao
coerente das reais necessidades de recodificao do sistema normativo empresarial.
Observou ento Fbio Ulhoa Coelho que, a partir de uma iniciativa desbravadora,
instaurou-se um pungente movimento de revitalizao do direito comercial. O seu
motor de propulso fcil de identificar: a maturao do processo de desenvolvimento
econmico, e essa nova posio econmica demanda um novo direito comercial.756
O projeto de Cdigo Comercial nasceu dessa necessidade de restaurar a
dignidade do direito mercantil e de reafirmao dos seus valores e da sua autonomia
como disciplina jurdica especializada. Mesmo sob as crticas de alguns doutrinadores
ao processo de codificao,757 inclusive em face do movimento de descodificao e
prpria. (Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p.
19).
755 Faticamente, os valores inerentes ao Direito Comercial esto esgarados, vez que dita unificao
do direito privado das obrigaes acabou por olvidar as especificidades de tal desinncia jurdica, e
assim, enveredamos a reproduzir um entendimento anacrnico, fazendo contratar a complexidade
social ante os estagnados axiomas do Direito Comercial, e ao encastelar o Direito Comercial em uma
unificao legislativa, observamos, mesmo sob a moo de novos ventos, [que] foram mantidos
vetustos e anacrnicos conceitos que engessam, ainda mais, o exerccio hermenutico e
jurisprudencial. (Correspondncia citada por Fbio Ulhoa Coelho, em Princpios do direito
comercial, com anotaes ao Projeto de Cdigo Comercial, So Paulo, Saraiva, 2012, p. 59-60.
756 Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 11.
757 Um dos principais crticos do projeto de Cdigo Comercial, Erasmo Vallado Azevedo e Novaes
Frana, assim manifestou sua opinio: A ideia de cdigo, em primeiro lugar, algo deslocado no
tempo. S se justificaria para exprimir um conjunto de regras jurdicas gerais, o que o projeto em
questo no faz. Pelo contrrio, de uma exuberante prolixidade, contendo 670 artigos, afora
incisos e pargrafos, e pretende regular matrias as mais dspares, tais como o empresrio e as
sociedades empresrias, o estabelecimento, as obrigaes e contratos empresariais, os ttulos de
crdito (entre os quais os "ttulos armazeneiros"), a recuperao judicial, extrajudicial e a falncia,
o agronegcio, o "processo empresarial", etc., propondo ainda alteraes nos Cdigos Civil e Penal.
(...) No necessrio um novo Cdigo Comercial. No que diz com o direito das obrigaes, sua
unificao segue a sbia lio do nosso grande Teixeira de Freitas que, dcadas antes de Vivante,
em 20/09/1867, a props ao Governo Imperial. Muitos outros equvocos do projeto poderiam ainda
ser apontados, mas o reduzido espao deste artigo insuficiente para tanto. (...) Esse desiderato,

Teoria crtica da empresa

389

Ivanildo Figueiredo

de regulao dos microssistemas normativos defendido por Natalino Irti,758 a iniciativa


de um novo sistema comercialista seguiu angariando a acumulando, cada vez mais,
apoio diante dos problemas prticos derivados do inconsistente regime do direito de
empresa regulado no Cdigo Civil.
Fbio Konder Comparato j havia observado que, na famlia dos direitos
romano-germnicos, pode-se dizer que a funo precpua de um cdigo exprimir um
conjunto de regras jurdicas gerais, constituintes de um novo jus commune, que
enforma e ilumina a interpretao desse mare magnum crescente da legislao
extravagante.759 Essa nova conformao jurdica demonstra, hoje, evidente exigncia
de restaurao do direito comercial e dos seus princpios, diante das contradies
conceituais do regime civilista do direito de empresa, que est a confundir-se e
confrontar-se diante da legislao comercial complementar.
Especialmente no mbito do direito comercial, em que a legislao
extravagante at superava o quantitativo de normas do velho Cdigo Comercial do
Imprio, como nas normas societrias, contratuais e falimentares, mais ainda se torna
apropriada uma nova codificao, que, se antes era justificada em razo da possvel
compatibilizao do regime do direito de empresa dentro do Cdigo Civil, no momento
presente esse processo de recodificao representa a nica alternativa legislativa
lgica para a restaurao da unicidade e coerncia cientfica do direito comercial.
Segundo assim coloca Fbio UIhoa Coelho,760 autor do primeiro projeto que
comeou a tramitar na Cmara dos Deputados, em 2011,761 a recodificao do direito

segundo nos parece, no pressupe um novo Cdigo Comercial, o qual no tinha sido reclamado
por ningum at agora, e seguramente no ser alcanado pelo projeto que ora tramita no
Congresso Nacional. (Erasmo Vallado Azevedo e Novaes Frana, O projeto do Cdigo
Comercial, Migalhas, Revista Eletrnica, http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI146663,61044O+projeto+do+Codigo+Comercial, 22/07/2014).
758 Natalino Irti, Let della decodificazione, cit., p. 22.
759 Fbio Konder Comparato, Projeto de Cdigo Civil, em Ensaios e pareceres de Direito
Empresarial, cit., p. 545.
760 Propus um cdigo que pudesse servir de instrumento ao inadivel recoser dos esgarados valores
do direito comercial. Para tanto, tem que ser um cdigo com forte acento principiolgico, que enuncie,
no direito positivo, os princpios do direito comercial. Sendo algo indito, em todo o mundo, um Cdigo
Comercial assim caracterizado, entendi que a forma mais direta e eficaz para apresentao da proposta
seria por meio de uma minuta. (Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de
Cdigo Comercial, cit., p. 22).
761 BRASIL, Cmara dos Deputados, Projeto de Lei 1.572/2011, apresentado pelo Deputado Vicente
Cndido (PT/SP).

Teoria crtica da empresa

390

Ivanildo Figueiredo

comercial brasileiro justifica-se, tambm, para retirar o direito comercial do estado de


isolamento a que foi relegado, com a perda da sua centralidade, coerncia interna e
de harmonia cientfica.762 Esse processo de isolamento resultou da imposio civilista
do regime do direito de empresa, totalmente alheio ao processo econmico nacional,
da construo histrica das prticas de mercado na realidade atual de revoluo
tecnolgica e de globalizao.
Na verdade, existem dois projetos de lei destinados a implantar um novo
Cdigo Comercial no Brasil. O que foi apresentado e encontra-se em tramitao na
Cmara dos Deputados (PL 1.572/2011), e outro que foi elaborado no mbito do
Senado Federal, por uma Comisso de Juristas, tambm sob a coordenao do
Professor Fbio Ulhoa Coelho, e que comeou a tramitar em 2013 (PLS 487). A ideia
que ambos os projetos corram paralelamente, permitindo uma apreciao
simultnea por ambas as casas do Congresso Nacional, o que facilitar e certamente
agilizar sua aprovao final.
A finalidade precpua do novo Cdigo Comercial , assim, segundo Fbio Ulhoa
Coelho, recuperar a centralidade do direito comercial,763 a partir da restaurao da
organicidade da matria empresarial e da atualizao normativa, de acordo,
coerentemente, com a realidade econmica nacional.
A matria comercial encontra-se dispersa por vrias leis e prejudicada pela
ausncia de sistematizao normativa, e a sua pretensa unificao e uniformizao
no Cdigo Civil de 2002 muito mais dificulta do que facilita a compreenso da
dogmtica empresarial. Tanto para o empresrio nacional, como principalmente para
o investidor estrangeiro, o modo de regulao acfalo do direito de empresa no Brasil
dificulta a sua incluso no mundo econmico globalizado. Por isso, a preocupao
762

O resultado do isolamento do direito comercial foi lamentvel. Regras importantes da nossa


disciplina, destinadas a proteger e atrair investimentos como , por exemplo, a regra da limitao da
responsabilidade dos scios pelas obrigaes sociais -, tiveram sua eficcia seriamente comprometida
pela generalizada distoro da teoria da desconsiderao da personalidade jurdica. (Os desafios do
direito comercial, com anotao do projeto de Cdigo Comercial, So Paulo, Saraiva, 2014, p. 13).
763 Um Cdigo principiolgico quando corresponde ao paradigma dos princpios. Quando, em outros
termos, confere centralidade aos princpios. E aqui, adentra-se ao cerne da questo. A palavra-chave
para compreender tanto o paradigma dos princpios como o carter principiolgico do Projeto de Cdigo
Comercial em tramitao na Cmara dos Deputados e no Senado Federal esta: centralidade. (Os
desafios do direito comercial, com anotao do projeto de Cdigo Comercial, So Paulo, Saraiva,
2014, p. 15).

Teoria crtica da empresa

391

Ivanildo Figueiredo

principal do projeto de Cdigo Comercial foi resgatar a coerncia intrasistemtica do


direito comercial e organizar, de modo bem mais compreensvel, o conjunto de normas
que devem regular as atividades das empresas nas relaes de mercado.
O projeto de Cdigo Comercial em tramitao na Cmara dos Deputados (PL
1.572/2011), aps amplos debates, em seminrios e reunies de trabalho da
Comisso Especial em todos os Estados da Federao, da apresentao de emendas
e consolidao das suas disposies, inclusive em razo da tramitao paralela do
projeto no Senado Federal (PLS 487/2013), encontra-se estruturado do modo
seguinte:
Livro I Da empresa.
Livro II Das sociedades empresrias.
Livro III Das obrigaes dos empresrios.
Livro IV Da crise da empresa.
Livro V Do agronegcio.
Livro VI Do direito comercial martimo.
Livro VII - Do Alcance deste Cdigo, das Disposies Finais e Transitrias.
A partir do projeto apresentado na Cmara dos Deputados, com as melhorias
resultantes de emendas e discusses nas audincias pblicas realizadas, uma
Comisso de Juristas, integrada pelos principais doutrinadores do direito comercial
brasileiro,764 frente o Professor Fbio Ulhoa Coelho, elaborou um novo projeto de
Cdigo Comercial para apresentao pelo Senado Federal. Esse segundo projeto
(PLS 487/2013) incorporou uma srie de propostas de aperfeioamento, a comear
pela concentrao dos princpios do direito comercial nas disposies iniciais,
conferindo maior organicidade na sua estruturao, e inserindo trs outros institutos
regulados por leis esparsas e ainda pela parte que vigorava do Cdigo Comercial de
1850: o direito do agronegcio, o direito comercial martimo e o processo empresarial.

764

Alfredo de Assis Gonalves Neto, Arnoldo Wald, Bruno Dantas, Cleantho de Moura Rizzo Neto,
Clvis Cunha da Gama Malcher Filho, Daniel Beltro de Rossiter Correia, Eduardo Montenegro Serur,
Felipe Lckmann Fabro, Jairo Saddi, Marcelo Guedes Nunes, Mrcio Souza Guimares, Newton de
Lucca, Osmar Brina Corra Lima, Paulo de Moraes Penalva Santos, Ricardo Lupion Garcia, Tiago Asfor
Rocha Lima e Uinie Caminha.

Teoria crtica da empresa

392

Ivanildo Figueiredo

Tambm ficou definitivamente pacificado que o novo Cdigo Comercial no


deveria regular os demais microssistemas normativos consolidados, como a
legislao da sociedade por aes (Lei 6.404/1976) e de recuperao de empresas e
falncia (Lei 11.101/2005). Apenas os princpios relativos a esses microssistemas
foram enunciados na parte geral do projeto do Senado, que assim est estruturado:
Parte Geral - Livro I Do Direito Comercial - Ttulo nico Das normas do
direito comercial - Captulo I Das disposies introdutrias - Captulo II Dos
princpios do direito comercial - Captulo III Da autorregulamentao.
Livro II Da Pessoa do Empresrio - Ttulo I Do conceito e registro do
empresrio - Captulo I Do conceito - Captulo II Do Registro Pblico de
Empresas - Ttulo II Do empresrio individual - Captulo I Da inscrio - Captulo
II Da capacidade e impedimentos - Captulo III Do empresrio casado - Captulo
IV Do exerccio da empresa em regime fiducirio.
Livro III Dos bens e da atividade do empresrio - Ttulo I Dos bens do
empresrio - Captulo I Do nome empresarial - Captulo II Do estabelecimento
empresarial - Ttulo II Da atividade do empresrio - Captulo I Do registro
contbil da atividade - Captulo II Da concorrncia desleal e parasitismo.
Livro IV Dos fatos jurdicos empresariais - Ttulo nico Dos negcios
jurdicos empresariais - Captulo I Do conceito, validade e interpretao do
negcio jurdico empresarial - Captulo II Da prescrio e decadncia.
Parte Especial - Livro I Das Sociedades - Ttulo I Das disposies comuns a
qualquer sociedade - Captulo I Das disposies introdutrias - Captulo II Dos
atos societrios - Captulo III Da personalidade jurdica - Captulo IV Da
nacionalidade da sociedade - Captulo V Da sociedade dependente de autorizao
- Ttulo II Das sociedades por quotas - Captulo I Das quotas - Captulo II Da
constituio da sociedade - Captulo III Das deliberaes sociais - Captulo IV Da
administrao - Captulo V Dos scios - Captulo VI Da Liquidao de quota Captulo VII Da dissoluo e liquidao - Captulo VIII Das espcies de
sociedades por quotas - Ttulo III Das sociedades por aes - Captulo nico
Da sociedade annima - Ttulo IV Da Sociedade de profisso intelectual - Ttulo
V Das operaes societrias - Captulo I Da transformao - Captulo II Da
incorporao, fuso e ciso - Ttulo VI Das ligaes societrias - Captulo I Das
Sociedades Coligadas, Controladoras e Controladas - Captulo II Do grupo de
sociedades - Captulo III Do consrcio.
Livro II Das obrigaes dos empresrios - Ttulo I Das obrigaes
empresariais - Captulo I Das normas especficas sobre as obrigaes entre
empresrios Captulo II Da responsabilidade civil - Ttulo II Dos contratos
empresariais - Subttulo I Dos contratos empresariais em geral - Captulo I
Do Regime Jurdico dos Contratos Empresariais - Captulo II Da vigncia e extino

Teoria crtica da empresa

393

Ivanildo Figueiredo

do contrato - Captulo III Da reviso do contrato empresarial - Subttulo II Dos


contratos empresariais em espcie - Captulo I da compra e venda mercantil Captulo II dos contratos de colaborao empresarial - Captulo III Dos contratos
de logstica - Captulo IV Dos contratos financeiros - Captulo V Do contrato de
investimento conjunto - Captulo VI Do contrato fiducirio - Captulo VII Do
Fomento Mercantil - Captulo VIII Do contrato de Shopping Center - Ttulo III Dos
ttulos de crdito - Captulo I Das disposies gerais - Captulo II Dos atos
cambirios - Captulo III Da duplicata - Captulo IV Dos ttulos armazeneiros Captulo V Do Conhecimento de Transporte de Cargas.
Livro III Do agronegcio - Ttulo I Da Atividade Empresarial no Agronegcio
- Captulo I Dos conceitos fundamentais - Captulo II Dos negcios e da alocao
dos riscos na cadeia agroindustrial - Ttulo II Do contrato de integrao
agroindustrial - Captulo I Dos conceitos - Captulo II Dos requisitos - Captulo
III Do sistema de integrao - Ttulo III Dos ttulos de crdito do agronegcio
- Captulo I Das disposies gerais - Captulo II Da Cdula de Produto Rural Captulo III Dos ttulos armazeneiros do agronegcio - Captulo IV Dos ttulos
vinculados a direitos creditrios.
Livro IV Do Direito Comercial Martimo - Ttulo I Das disposies gerais Captulo I Da regncia do Direito Comercial Martimo - Captulo II Do mbito de
aplicao do direito comercial martimo - Captulo III - Das embarcaes e sua
propriedade - Ttulo II Dos sujeitos - Captulo I - Do armador - Captulo II - Do
operador ou administrador de embarcaes - Captulo III - Do capito - Captulo IV Do prtico - Captulo V - Do agente martimo - Captulo VI - Dos operadores de
transporte - Ttulo III Das obrigaes, contratos e ttulos de direito martimo Captulo I Das disposies introdutrias - Captulo II - Dos contratos de utilizao
de embarcao - Captulo III - Do transporte aquavirio de cargas - Captulo IV - Do
conhecimento martimo - Captulo V - Da limitao de responsabilidade do armador Ttulo IV - Da hipoteca naval e dos privilgios martimos - Captulo I - Da hipoteca
naval - Captulo II - Dos privilgios martimos - Ttulo V Das Avarias - Captulo I Da natureza e classificao das avarias - Captulo II - Da liquidao, repartio e
contribuio da avaria grossa - Ttulo VI Dos danos causados por abalroao Ttulo VII Das arribadas foradas.
Livro V Do processo empresarial - Ttulo I Das regras comuns ao processo
empresarial - Captulo I Das disposies gerais - Captulo I Das provas - Ttulo
II Dos procedimentos especiais - Captulo I Da ao de dissoluo parcial de
sociedade - Captulo II Da Superao do Impasse - Captulo III Da ao de
responsabilidade civil por danos sociedade - Captulo IV Da tutela especfica de
acordo de acionistas ou quotistas - Captulo V Da ao de exigir contas - Captulo
VI - Das aes de invalidao de deliberaes assembleares - Captulo VII - Da
interveno judicial - Ttulo III Do processo empresarial martimo - Captulo I
Das disposies gerais - Captulo II - Do Embargo de Embarcao - Captulo III - Do
procedimento de limitao de responsabilidade - Captulo IV Da execuo para
recebimento de fretes - Ttulo IV - Da falncia e da recuperao judicial
transnacionais - Captulo I Da falncia transnacional - Captulo II Da recuperao

Teoria crtica da empresa

394

Ivanildo Figueiredo

judicial transnacional - Ttulo V Da jurisdio especializada - Captulo nico


Dos juzos, turmas e cmaras de direito comercial ou empresarial.
Parte Complementar - Livro nico Das disposies finais e transitrias - Ttulo
I Das disposies finais - Captulo I Do alcance do Cdigo Comercial - Captulo
II Das disposies finais sobre o Registro Pblico de Empresas - Captulo III Das
disposies finais sobre microempreendedor individual, microempresrio,
empresrio de pequeno porte e sociedades de grande porte - Captulo IV Das
demais disposies finais - Ttulo II Das Disposies Transitrias - Captulo I
Das alteraes no Cdigo Civil - Captulo II Das alteraes na Lei n 11.101, de 9
de fevereiro de 2005 - Captulo III Das demais alteraes - Captulo IV Das
revogaes e vigncia.

Alm da consolidao da quase integralidade do regime normativo de


regulao da empresa, o Projeto de Cdigo Comercial do Senado restaura a lgica
da regulao das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, que voltam a
ser denominadas como sociedades por quotas. De modo coerente, o projeto no
adota mais o nome sociedade empresria para as sociedades, que devem ser
designadas como sociedades comerciais ou mercantis, como assim sempre foram
conhecidas na histria do direito comercial. A nomenclatura da sociedade comercial
como sociedade empresria, introduzida artificialmente pelo Cdigo Civil de 2002,
sempre foi criticada por Fbio Konder Comparato, que considera essa expresso
evidente abuso de retrica.765
Com a aprovao do novo Cdigo Comercial, todo o Livro II do Cdigo Civil
(artigos 966 a 1.195), que regula o Direito de Empresa, restar revogado, e o sistema
de direito comercial ir recuperar a sua lgica, harmonia e historicidade, como o
regime especial da empresa, sepultando, em definitivo, esse incongruente e
anacrnico regime civilista da atividade econmica e do mercado.

765

A reforma da empresa, cit., p. 68.

Teoria crtica da empresa

395

Ivanildo Figueiredo

7.5. O retorno metodolgico aos princpios do direito comercial

Os princpios sempre representaram, para o direito, um vetor essencial de


interpretao normativa. So os princpios considerados sobrenormas porque sua
valncia e eficcia orienta a aplicao das normas inferiores. Todavia, do mesmo
modo que as normas, os princpios enunciam regras gerais de conduta, dirigidas mais
ao intrpretes e aplicadores da lei, inclusive no processo de integrao normativa.766
Especialmente a partir da Constituio Federal de 1988, uma carta
principiolgica, os princpios passaram a representar o mtodo hermenutico
preponderante, denominado como argumentao por princpios.767
No mbito especfico da ordem econmica, o art. 170 da Constituio
estabelece uma srie de princpios estruturantes,768 que devem orientar e limitar,
tambm, a atuao do legislador. Todavia, desde o art. 1 da Constituio, est
expresso que o princpio da livre iniciativa ou livre empresa, representa fundamento
da prpria Repblica, do seu sistema econmico capitalista.
Os princpios do direito comercial so elaborados pela doutrina e assim
reconhecidos pela legislao quando alcanam esse status de norma fundamental,
766

Na definio de Fbio Ulhoa Coelho, Os princpios jurdicos so regras de conduta, como todas as
demais normas componentes do ordenamento vigente num pas. Caracteriza-os a extensa proporo
de seu mbito de incidncia, de modo a servirem de elementos informadores da interpretao das
demais normas jurdicas e soluo de lacunas. (Princpios do direito comercial, com anotaes
ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 13).
767 Do direito tributrio, a argumentao por princpios disseminou-se para o direito constitucional,
administrativo, previdencirio, processual civil e, enfim, dominou todo o campo publicista. (Fbio Ulhoa
Coelho) Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p.
15.
768 CF, Art. 170. A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os
seguintes princpios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - funo social da propriedade;
IV - livre concorrncia; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante
tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e servios e de seus processos
de elaborao e prestao; VII - reduo das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno
emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constitudas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administrao no Pas. Pargrafo nico. assegurado a todos o
livre exerccio de qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao de rgos
pblicos, salvo nos casos previstos em lei.

Teoria crtica da empresa

396

Ivanildo Figueiredo

em uma situao de supraordenao normativa, como assim descortinava Lourival


Vilanova.769 Para Fbio Ulhoa Coelho, os princpios no so, por si ss, normas
jurdicas prevalecentes sobre as demais regras de conduta. Auxiliam a interpretao
destas e suprem lacunas, mas no as substituem, nem podem (por si ss) afastar sua
aplicao.770
Os princpios aplicveis ao direito comercial sempre foram assim desenvolvidos
e estudados, nas reas da teoria da empresa, como o princpio da funo social da
empresa, do direito societrio, como o princpio da desconsiderao da personalidade
jurdica, ou no campo do direito cambial, a exemplo do princpio da inoponibilidade
das excees pessoais.771
Todavia, os princpios do direito comercial estavam fragmentados em diversos
diplomas legais, sem uma compreenso coerente e uniforme, razo pela qual o
Projeto de Cdigo Comercial adotou como fundamento essencial para sua aplicao
e interpretao a fixao clara dos princpios aplicados s empresas, como fonte de
integrao normativa.772 A caracterstica bsica ou objetivo maior do projeto de Cdigo
Comercial foi a de resgatar e reafirmar os princpios do direito comercial. Esses
princpios encontravam-se dispersos, fragmentados e esgarados, perdidos e at
esquecidos na confusa disciplina civilista da empresa.
Nesse sentido, o Projeto de Cdigo Comercial considera como princpios
fundamentais do direito comercial: a liberdade de iniciativa empresarial;773 a liberdade

769

As estruturas lgicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 66.


Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 14.
771 Observa Fbio Ulhoa Coelho que, Entre os sub-ramos do direito comercial, o cambirio o nico,
desde sempre, marcadamente principiolgico (Princpios do direito comercial, com anotaes ao
projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 55).
772 PLS 487/2013 - Art. 4. So normas do direito comercial: I os princpios e regras da Constituio
Federal aplicveis; II as regras prescritas por este Cdigo, pela lei, tratados e convenes; III os
princpios expressamente enunciados neste Cdigo ou na lei comercial; IV as regras prescritas pelos
decretos, instrues e regulamentos editados pelas autoridades competentes; V as de
autorregulamentao; e V as consuetudinrias. 1. A norma consuetudinria no tem eficcia
enquanto vigorar outra norma de direito comercial. 2. Nenhum princpio, expresso ou implcito, pode
ser invocado para afastar a aplicao de qualquer disposio deste Cdigo ou da lei, ressalvada a
hiptese de inconstitucionalidade da regra.
773 PLS 487/2013 - Art. 6. Decorre do princpio da liberdade de iniciativa empresarial o reconhecimento:
I da imprescindibilidade, no sistema capitalista, da empresa privada para o atendimento das
necessidades de cada um e de todos; II do lucro obtido com a explorao regular e lcita de empresa
como o principal fator de motivao da iniciativa privada; III da importncia, para toda a sociedade,
da proteo jurdica assegurada ao investimento privado feito com vistas ao fornecimento de produtos
770

Teoria crtica da empresa

397

Ivanildo Figueiredo

de competio;774 a funo econmica e social da empresa775 e a tica e boa-f776 (PLS


487/2013, art. 5).
Para cada um dos livros ou matrias do cdigo, como relativos s sociedades
comerciais,777 aos contratos empresariais,778 aos ttulos de crdito,779 ao direito do
agronegcio,780 recuperao de empresas e falncia,781 ao direito comercial
martimo782 e ao processo empresarial,783 tambm foram enunciados os princpios
instrumentais aplicveis e que devem orientar a compreenso de cada um desses
institutos do direito comercial.
A reconstruo do direito comercial a partir dos seus princpios o maior
desafio legislativo que os operadores do direito comercial tero pela frente, pela qual

e servios, na criao, consolidao ou ampliao de mercados consumidores, na inovao e no


desenvolvimento econmico do pas; e IV da empresa privada como importante plo gerador de
postos de trabalho e tributos, bem como fomentadora de riqueza local, regional, nacional e global.
774 PLS 487/2013 - Art. 7. No mbito deste Cdigo, a liberdade de iniciativa empresarial e de
competio protegida mediante a coibio da concorrncia desleal e de condutas parasitrias.
775 PLS 487/2013 - Art. 8. A empresa cumpre sua funo econmica e social ao gerar empregos,
tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econmico da comunidade em que atua, ao
adotar prticas empresariais com observncia de toda legislao aplicvel sua atividade, em especial
aquela voltada proteo do meio ambiente, dos direitos dos consumidores e da livre competio.
776 PLS 487/2013 - Art. 9. Pelo princpio da tica e boa-f, o empresrio deve buscar a realizao de
seus interesses na explorao da atividade empresarial cumprindo rigorosamente a lei e observando
os preceitos morais aceitos pela sociedade brasileira do seu tempo, bem como adotar constante
postura proba, leal, conciliatria e colaborativa.
777 PLS 487/2013 - Art. 10. So princpios gerais aplicveis s sociedades: I Autonomia patrimonial;
II Tipicidade; III Preservao da empresa economicamente vivel; IV Proteo do investidor pela
limitao de sua responsabilidade na aplicao de recursos na atividade econmica; V Formao da
vontade social por deliberao dos scios; e VI Proteo dos scios no controladores.
778 PLS 487/2013 - Art. 17. So princpios aplicveis aos contratos empresariais: I autonomia da
vontade; II plena vinculao dos contratantes ao contrato; III proteo do contratante
empresarialmente dependente nas relaes contratuais assimtricas; e IV reconhecimento dos usos
e costumes do comrcio.
779 PLS 487/2013 - Art. 22. So princpios do direito cambial: I literalidade; II autonomia das
obrigaes cambiais; e III inoponibilidade das excees pessoais aos terceiros de boa-f.
780 PLS 487/2013 - Art. 26. So princpios aplicveis ao agronegcio e sistemas agroindustriais: I
sustentabilidade das atividades do agronegcio; II integrao e proteo das atividades da cadeia
agroindustrial; III interveno mnima nas relaes do agronegcio; e IV parassuficincia dos que
inserem sua atividade no agronegcio.
781 PLS 487/2013 - Art. 32. So princpios aplicveis falncia e recuperao das empresas: I
inerncia do risco a qualquer atividade empresarial; II impacto social da crise da empresa; III
transparncia nas medidas de preveno e soluo da crise; e IV cooperao judiciria internacional;
782 PLS 487/2013 - Art. 39. So princpios do direito comercial martimo: I princpio do risco martimo;
II princpio da garantia patrimonial; III princpio da limitao de responsabilidade; IV princpio da
origem costumeira; V princpio da informalidade.
783 PLS 487/2013 - Art. 46. So princpios do processo empresarial: I Autonomia procedimental das
partes; II Presuno de igualdade real das partes; III Interveno mnima; e IV Ateno s
externalidades. Pargrafo nico. No processo empresarial, sero observados os princpios que
informam o devido processo legal, da celeridade e da economia processual.

Teoria crtica da empresa

398

Ivanildo Figueiredo

devem unir os esforos e a presso poltica necessrias ao avano do projeto de novo


cdigo. Esse esforo, que comeou isoladamente com a iniciativa do Professor Fbio
Ulhoa Coelho, aos poucos vai somando mais e mais adeptos e granjeando apoio na
academia, na classe empresarial, entre os advogados e demais operadores do direito,
e, como esteio fundamental, no Congresso Nacional e no Poder Executivo da Unio.
Como destacado por Fbio Ulhoa Coelho, o direito comercial est visivelmente
isolado no processo de disseminao da argumentao por princpios,784 e a sua
revitalizao depende, hoje, da enunciao, exame e difuso dos princpios desta
rea jurdica.785
Deve ser observado, todavia, que a aplicao dos princpios no poder servir
para banalizar e pasteurizar a interpretao das normas comerciais, pois cabe
considerar que um princpio s ser hierarquicamente superior a determinada regra
se tiver sido enunciado por norma de categoria mais elevada.786
Nesse sentido, o enunciado pelo 2 do art. 4 do PLC 487/2013: Nenhum
princpio, expresso ou implcito, pode ser invocado para afastar a aplicao de
qualquer disposio deste Cdigo ou da lei, ressalvada a hiptese de
inconstitucionalidade da regra. Apesar desse disposto ter sido apontado por alguns
comercialistas como contraditrio,787 essa regra vem, exatamente, esclarecer que o
princpio no pode ser aplicado ou incidir contra expressa regra de lei, devendo servir,
isso sim, como farol de orientao do intrprete, para a melhor aplicao do direito e
tambm para suprir as lacunas que, inevitavelmente, sempre surgiro no mbito dos
casos concretos e dos fatos relacionados a um direito bastante dinmico e to
inovador como o direito comercial.

784

Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 16.
Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 14.
786 Fbio Ulhoa Coelho, Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo
Comercial, cit., p. 13.
787 Erasmo Vallado Azevedo e Novaes Frana, O projeto do Cdigo Comercial Um arremedo
de projeto de lei, Migalhas Revista Eletrnica, http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI154743,
51045- O+projeto+de+Codigo+ Comercial+um+arremedo+de+projeto+de+lei, 22/07/2014.
785

Teoria crtica da empresa

399

Ivanildo Figueiredo

7.6. Redefinio das fronteiras do direito comercial, do direito civil e do direito


do consumidor

O novo Cdigo Comercial dever, se corretamente aplicado, possibilitar a


redefinio clara das fronteiras dogmticas entre o direito comercial, o direito civil e o
direito do consumidor. Essas fronteiras encontram-se, at hoje, ainda confusas e com
reas cinzentas de interpenetrao, pela ausncia de normas que delimitem a
incidncia e regulao por cada rea ou ramo do direito privado ou econmico. Nesse
sentido, o art. 380 do Projeto de Lei do Senado 487/2013 tem como finalidade
esclarecer e demarcar as fronteiras de aplicao das normas empresariais,
separando, de modo claro e objetivo, o direito comercial do direito do consumidor,
assim prescrevendo: O Cdigo de Defesa do Consumidor no aplicvel s
obrigaes dos empresrios. 788
As obrigaes comerciais, portanto, no devero mais ficar submetidas
interferncia das normas consumeristas, restando eliminada ou definitivamente
afastada a confuso criada pela v tentativa de unificao do direito das obrigaes
pelo Cdigo Civil de 2002, o qual ignorou, solenemente, o regime especial de proteo
do consumidor institudo pela Constituio de 1988 (art. 5, XXXII e art. 170, V) e
regulamentado pela Lei n 8.078/1990.789
Todavia, alm de apartar a incidncia simultnea de sistemas normativos
distintos, pondera Fbio Ulhoa Coelho que os valores do direito comercial no sero
recosidos se simplesmente insistirmos em repetir sua formulao originria,
acentuadamente individualista.790 Isto porque, alm de (re)construir um regime
788

PLS 487/2013 - Art. 380 - 2. No que no for regulado por este Cdigo, aplica-se s obrigaes
dos empresrios o Cdigo Civil (Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002). 3. O Cdigo de Defesa do
Consumidor (Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990) no aplicvel s obrigaes dos empresrios.
789 Ignorando as especificidades do direito comercial, e seus princpios prprios, a unificao legislativa
acabou no somente contribuindo enormemente para acentuar o esgarar dos valores da disciplina,
como tambm privou a ordem jurdica nacional do regramento adequado para o atual estgio de
evoluo da nossa economia, fortemente integrada ao processo de globalizao. A unificao
legislativa foi um erro. preciso corrig-lo, o quanto antes. (Fbio Ulhoa Coelho, O futuro do direito
comercial, cit., p. 8).
790 O futuro do direito comercial, cit., p. 7.

Teoria crtica da empresa

400

Ivanildo Figueiredo

normativo especfico para a regulao da empresa, ele deve ser um regime novo,
voltado para o mercado, e no para o individualismo que prevalecia poca que o
direito comercial era um direito eminentemente corporativista.
Por essa razo, os mais eminentes e experientes juristas do Brasil, a exemplo
de Arnoldo Wald, defendem a aprovao do projeto de novo Cdigo Comercial,791 para
que seja restaurado e viabilizado um sistema moderno de regulao da empresa,
coerente com o crescimento do pas e com a sua insero no mundo globalizado.
Na justificao e fundamentao da necessidade de implantao do novo
Cdigo Comercial, Fbio Ulhoa Coelho entende que uma vez assentado que a
segurana jurdica resultante da reduo da imprevisibilidade das decises judiciais
aproveitaria a toda economia brasileira (a todos os brasileiros, por conseguinte),
impe-se a indagao: Como aumentar a previsibilidade das decises judiciais
atinentes s relaes entre os empresrios?792 Para isso, Fbio Ulhoa Coelho
considera que precisamos mudar o foco e mostrar o quanto a proteo desse
interesse privado dos scios corresponde proteo de interesses metaindividuais da
coletividade, ao limitar os riscos e, portanto, contribuir para o barateamento dos
produtos e servios oferecidos ao mercado consumidor.793
Sem embargo, existe, efetivamente, uma necessidade do Brasil, de ajustar o
arcabouo legislativo ao seu novo momento econmico,794 para reduzir o grau de
litigiosidade presente no sistema jurdico brasileiro, e assim diminuir e tornar
previsveis os custos das transaes, ao contrrio de opinies contrrias e refratrias
reconstruo do nosso sistema normativo, sob a base de um falso laissez-faire, que
791

Em tese, vrias solues legislativas poderiam ser adotadas, abrangendo desde a reviso do
Cdigo Civil at a elaborao de vrios microssistemas, tratando das diversas matrias do direito
empresarial. Mas a aprovao de um novo Cdigo Comercial ou Empresarial nos parece o caminho
mais lgico ou eficaz. o que explica a boa acolhida da oportuna sugesto de um novo Cdigo
Comercial ou Empresarial, como direito especial, ao lado do nosso Cdigo Civil, que continuaria sendo
o diploma de direito comum. Teremos, assim, ao lado das normas gerais do cidado (Cdigo Civil),
regras especiais de proteo ao consumidor (Cdigo de Defesa do Consumidor) e ao empregado (CLT)
e outras, tratando da estrutura e funcionamento da empresa e dos contratos empresariais (Cdigo
Comercial), dando maior coerncia e segurana ao sistema jurdico e adequando-o s necessidades
do sculo XXI, com uma viso do presente e do futuro. (O Cdigo Civil e o Projeto de Cdigo
Comercial, em Fbio Ulhoa Coelho, Tiago Asfor Rocha Lima e Marcelo Guedes Nunes, org.,
Reflexes sobre o projeto de Cdigo Comercial, So Paulo, Saraiva, 2013, p. 30).
792 Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 18.
793 O futuro do direito comercial, cit., p. 8.
794 Princpios do direito comercial, com anotaes ao projeto de Cdigo Comercial, cit., p. 11.

Teoria crtica da empresa

401

Ivanildo Figueiredo

defende uma interveno mnima do Estado na atividade econmica, inclusive na


esfera normativa.
Dentre os objetivos resultantes de um novo Cdigo Comercial, encontra-se,
pois, a necessidade de reduo de litgios entre empresas e do consequente custo
relativo a processos derivados da insegurana jurdica. Todavia, partindo de falsa
premissa, alguns estudos passaram a ser divulgados no mbito da doutrina
especializada, entre os economistas e repercutidas pela imprensa, de que o novo
Cdigo Comercial iria representar um aumento no grau de litigiosidade, e que esse
grau de litigiosidade iria implicar em uma elevao significativa de custos jurdicos.795
O projeto de novo Cdigo Comercial tem como diretriz exatamente o sentido
oposto: pacificar a interpretao e aplicao das normas comerciais, pela fixao de
regras mais claras e inteligveis para o empresrio brasileiro e para o investidor
estrangeiro.
Em concluso, demonstra-se imperioso afastar do nosso sistema normativo
uma regulao confusa, inespecfica, incompleta, obtusa, diante da matria e dos
negcios mercantis, elaborada sob outra realidade, para assim resgatar os valores e
princpios do direito comercial que resultam, diretamente, da nossa real experincia
econmica, social, cultural e tecnolgica.

795

Em trabalho patrocinado pelo Insper, e desprovido de qualquer base cientfica confivel, elaborado
pela economista Luciana Yeung, esta aduz que a aprovao de um projeto de Cdigo Comercial
representaria um enorme custo de R$ 182 bilhes para o Pas, custo esse que seria suportado pelas
empresas brasileiras e estrangeiras com negcios no Brasil, em razo da suposta insegurana jurdica
decorrente dessa inovao legislativa. Esse estudo parte de uma falsa, seno inapropriada premissa,
ao considerar, para clculo dos impactos do novo Cdigo Comercial, ou como parmetro de
comparao a Lei 11.101/2005, a chamada Nova Lei das Falncias. Trata-se de uma lei que
igualmente atingiu as empresas, mas de dimenso menor, com apenas 201 artigos, e sendo mais
pontual. Essa base de comparao demonstra-se absolutamente inconsistente, impertinente e
inadequada. No se pode comparar um novo sistema de direito comercial, baseado em princpios e
normas que visam, exatamente, tornar mais claras e objetivas essas mesmas normas e princpios dos
sujeitos do processo e de elaborao dos contratos e de relaes mercantis, com uma lei que tem por
natureza imanente, restrita, a litigiosidade entre credores e uma empresa devedora inadimplente, objeto
de sua regulao (Lei 11.101/2005). A comparao ou utilizao, tomando como base de anlise, para
alcanar essa concluso absurda quanto ao suposto ou projetado custo da litigiosidade, referente a um
novo Cdigo Comercial, a partir de uma lei de insolvncia, demonstrao evidente, cabal, de que
essa pesquisadora, de direito e matria jurdica, conhece muito pouco, ou quase nada. Sobre esse
estudo carente de qualquer rigor cientfico e consistncia jurdica, ver Luciana Yeung, Medindo os
Impactos do PL 1.572 da Cmara dos Deputados, ou do PL 487 do Senado Federal, que propem
o Novo Cdigo Comercial Brasileiro, Insper, Maio 2014, http://www.insper.edu.br/noticias/codigocomercial-pode-gerar-perdas-de-r-182-bi-diz-estudo/, 12/05/2015).

Teoria crtica da empresa

402

Ivanildo Figueiredo

Captulo 8
Do direito comercial ao direito empresarial

Partindo do regime jurdico de regulao da atividade econmica tal como hoje


existente na legislao comercial no codificada, extravagante ao Cdigo Civil de
2002, pretendeu este estudo realizar uma comparao entre as normas de contedo
mercantil que tm por objeto disciplinar o fenmeno da empresa. Considerando,
ademais, a necessidade de formulao de conceitos normativos prprios aplicveis
regulao da atividade empresarial, este trabalho procedeu anlise de determinados
fatos que no s servem como elementos de esclarecimento quanto a relaes
econmicas positivadas, mas que podem ser utilizados para questionar os critrios
axiolgicos que influenciaram o legislador no curso do processo de positivao do
Cdigo Civil de 2002.796
Em termos metodolgicos, o presente trabalho teve como objetivo desenvolver:
a) a anlise e interpretao das normas positivas de regulao da atividade da
empresa no Cdigo Civil de 2002 e na legislao comercial supletiva;
b) a pesquisa de precedentes doutrinrios anteriores ao Cdigo de 2002 que tratam
do direito de empresa e dos conceitos normativos definidores da figura do
empresrio e das sociedades comerciais;
c) o estudo da bibliografia especializada em direito comercial e direito de empresa,
nacional e estrangeira, para fins de fundamentao das razes e concluses
exploradas neste estudo;
d) a pesquisa da legislao comparada para investigao e anlise dos modelos
dogmticos e dos sistemas de legislao empresarial adotados por outros pases
na regulao da empresa, especialmente na Itlia, Frana, Espanha e Portugal.

796

Karl Engish, Introduo ao pensamento jurdico, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 6


edio, 1983, p. 236.

Teoria crtica da empresa

403

Ivanildo Figueiredo

Com base nas fontes investigadas, este estudo analtico procurou destacar as
principais antinomias presentes no regime do direito de empresa disciplinado nas
normas do Cdigo Civil de 2002, principalmente para demonstrar a ausncia de
critrios lgicos para a imposio desse regime estranho normatividade histrica e
prtica mercantil prevalentes em nossa realidade econmica.797 No plano de
investigao terica, o presente trabalho demonstrou que o direito comercial
representa um complexo de normas que regula especial categoria de relaes
privadas, complexo de normas que, colocando-se no mesmo plano das outras normas
contidas no Cdigo Civil, destas se diferencia pela especialidade da matria regulada,
isto em relao ao contedo, no do ponto de vista estritamente formal.798
A comercialidade ou a mercantilidade do ato econmico deve ser juridicamente
considerada, isto para que as atividades empresariais sejam diferenciadas das demais
atividades econmicas no empresariais ou civis. Essa diferenciao necessria
para que o especfico objeto do ato ou negcio seja legalmente determinado, e assim
se possa definir:
a) a incidncia e aplicao das normas de Direito Comercial na regulao de atos e
negcios jurdicos de natureza econmica, em face da legislao supletiva especial e
extravagante ao Cdigo Civil;
b) a determinao da natureza mercantil da empresa para a caracterizao da sua
jurisdio administrativa de competncia do Registro Pblico de Empresas Mercantis,
funo exercida pelas Juntas Comerciais, nos termos da Lei n 8.934/1994;
c) a sujeio das empresas mercantis aos processos de recuperao e de falncia,
segundo o regime da Lei n 11.101/2005;
d) a competncia da jurisdio comercial especializada que vem sendo implantada em
alguns Estados, com a criao de Varas Empresariais, para julgamento de processos
de natureza mercantil e de obrigaes derivadas de contratos comerciais no sujeitos
ao regime especial de defesa do consumidor.

797

Sintetizando o pensamento de uma corrente doutrinria do direito comercial no Brasil, Haroldo


Malheiros Duqclerc Verosa pondera que no campo do Direito de Empresa, o Cdigo Civil/2002 no
merece to propalada glria. Mesmo porque veio na contramo do direito da descodificao, e, como
no conseguiu unificar sob suas normas toda a tutela da empresa velho problema conhecido de todos
os comercialistas -, o tratamento da empresa constante do Cdigo Civil/2002 no abrange,
evidentemente, todo o Direito aplicvel empresa, mas somente pequena parte dele. (Curso de
Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 105).
798 Giuseppe Ferri, Manuale di Diritto Commerciale, cit., p. 12.

Teoria crtica da empresa

404

Ivanildo Figueiredo

Alm desses aspectos relacionados com a necessidade de diferenciao do


direito comercial e da fixao da especificidade do seu objeto, em termos
metodolgicos, encontramos vrios outros elementos que apontam sempre no sentido
de manter a matria comercial apartada do direito civil. Ainda que vinculados a uma
base comum de direito privado, constante da parte geral e do direito das obrigaes
no cdigo civil, o direito comercial retira o seu fundamento de validade diretamente da
Constituio Federal (CF, art. 22, I), e assim determina seu prprio objeto e o mtodo
de tratamento do fenmeno econmico, centrado na atividade e nas relaes da
empresa.
Sendo, como visto, uma entidade essencialmente mercantil, a empresa no
pode ser considerada como um ente de direito comum, nivelada s demais pessoas
reguladas pelo direito civil, que no desempenham atividade com fins lucrativos. A
empresa existe a partir de uma estrutura patrimonial destinada a essa funo
econmica, o que no se aplica na esfera privada no mercantil.799
A profissionalidade do exerccio da empresa, a exigncia de capital e de
recursos, o carter sempre oneroso das operaes, a especialidade da sua
organizao, principalmente nas grandes empresas e corporaes, suas demandas
tecnolgicas, todos esses fatores, por si s, exigem um tratamento diferenciado, que
a estaticidade e conservadorismo do direito civil jamais poder suprir.
Quando os doutrinadores contrrios unificao do direito privado
contestavam, com argumentos dessa ordem, a impropriedade de reduo do direito
comercial a uma zona dogmtica nas dependncias do direito civil, Waldirio Bulgarelli
observava que essas crticas eram representativas das dificuldades de compreenso
e aceitao do novo regime empresarial, devidas, em grande parte, existncia ainda
viva da comercialidade.800 Essa existncia da comercialidade, sem dvida, continuar
sempre a dominar o cenrio empresarial, e a tendncia natural do comrcio ser a de

799

Francesco Galgano considera que, no mbito do direito privado, o particularismo do direito comercial
estar sempre representando pelo economismo, como valor histrico determinante nas relaes da
empresa (Lex Mercatoria, cit., p. 13).
800 Tratado de Direito Empresarial, cit., p. 248.

Teoria crtica da empresa

405

Ivanildo Figueiredo

aumentar, de modo progressivo, o seu grau de especializao, proporcionalmente ao


processo de avano tecnolgico das empresas, tal como se verifica no mundo
globalizado. Com efeito, a globalizao torna as empresas de ponta, altamente
desenvolvidas, em organizaes a cada dia mais complexas, em que o fluxo financeiro
e de mercadorias aponta para nveis de especializao sempre mais evoludos.
Em termos mais estritamente dogmticos, estamos nos deparando com
contradies efetivas no campo da regulao da empresa tal como veio a ser imposto
pelo regime simplista do legislador do Cdigo Civil de 2002. As empresas deixam de
ser consideradas como organizaes tecnicamente especializadas e passam a ser
tratadas como instituies comuns, despidas da sua natureza mercantil. Apesar desse
raciocnio crtico ser aplicvel com maior intensidade na anlise das grandes
corporaes empresariais, no deixa de ser vlido tambm para as pequenas e
mdias empresas, que atuam em um ambiente de mercado competitivo, mercado este
que exige constantes progressos nas frmulas aplicveis aos negcios, contnuas
adaptaes s exigncias da clientela, das relaes de consumo e da compatibilidade
com os avanos da tecnologia.
O Cdigo de 2002, desde a sua origem legislativa, sempre se apresentou
defasado diante da evoluo do comrcio e carente de qualquer viso prospectiva
futura frente ao processo de globalizao econmica, que se delineava a partir do final
dos anos setenta do sculo passado. A sua idia de empresa permaneceu arraigada
na concepo superada do Livro Del Lavoro do Cdigo italiano, de sessenta anos
atrs. Apesar de dissimulada sob a justificativa da necessidade de unificao do
direito das obrigaes, o Cdigo Civil tentou modificar a prpria estrutura deontolgica
em que historicamente estava assentado o Direito Comercial brasileiro.
Alm da incerteza da situao legislativa, diante da tentativa de se modificar,
de modo significativo, o livro do direito de empresa, uma segunda ordem de
argumentao, de natureza doutrinria, corrobora com as concluses deste estudo no
que tange ao problema da unificao do direito privado.
Partindo do aspecto doutrinrio, devemos considerar que a doutrina civilista
continuar inteiramente separada da doutrina comercialista, investigando e

406

Teoria crtica da empresa


Ivanildo Figueiredo

analisando os institutos histricos que sempre integraram o direito civil, especialmente


nos campos dos contratos, famlia e sucesses. O estudo da empresa, por sua vez,
permanecer

restrito

ao

mbito

da

doutrina

comercial

especializada.

Os

comercialistas devero manter o seu campo prprio de investigao, a sua pesquisa


interdisciplinar nas interfaces econmica, financeira, contbil e mercadolgica da
empresa, reas de estudo em que poucos civilistas ingressam.
A confirmao desse argumento doutrinrio encontra-se no fato de que os
civilistas brasileiros, nas obras de comentrios ao novo Cdigo Civil, nos manuais de
direito civil, nas suas compilaes, no abordam nem tratam do livro do direito de
empresa. O estudo da empresa, tal como se constata nas principais obras clssicas
dos nossos civilistas, no passou a integrar o direito civil.
As colees e manuais de direito civil continuam adotando a clssica diviso
dos seus captulos em parte geral, obrigaes e contratos, direito das coisas, da
famlia e sucesses. Apenas na abordagem dos contratos em espcie, alguns autores
civilistas discorrem sobre negcios mercantis, como os contratos de distribuio,
agncia e transportes, agora regulados no Cdigo Civil de 2002. As obras de direito
civil editadas e atualizadas a partir do novo Cdigo, mantm a separao do objeto
estudado, e no tratam da matria do direito de empresa.801
Nas principais colees de comentrios ao Cdigo Civil, a parte do direito de
empresa coube aos comercialistas,802 o que demonstra, tambm por esse ngulo, que

801 As principais obras e manuais de Direito Civil editadas no Brasil, a partir do Cdigo de 2002, no
tratam do livro do Direito de Empresa, conforme se observa nos seguintes autores civilistas: Caio Mrio
da Silva Pereira, Instituies de Direito Civil, atualizado por Maria Celina Bodin de Moraes e outros,
Rio de Janeiro, Forense, 21 edio, 2005; Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil,
atualizado por Carlos Alberto Dabus Maluf, So Paulo, Saraiva, 33 edio, 2007; Silvio Rodrigues,
Direito Civil, So Paulo, Saraiva, 34 edio, 2003; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil,
Saraiva, So Paulo, 24 edio, 1977; Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, So Paulo, Atlas, 7 edio,
2007; Carlos Roberto Gonalves Gonalves, Direito Civil Brasileiro, So Paulo, Saraiva, 4 edio,
2004; Paulo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, So Paulo,
Saraiva, 7 edio, 2006; Roberto Senise Lisboa, Manual de Direito Civil, So Paulo, Revista dos
Tribunais, 3 edio, 2004.
802 Os artigos 966 a 1.195 do livro do Direito de Empresa foram objeto de comentrios em trabalhos de
maior porte e profundidade, como em: Arnoldo Wald, Comentrios ao Novo Cdigo Civil - Livro II
Direito de Empresa, vol. XIV, Rio de Janeiro, Forense, 2005; Modesto Carvalhosa, Comentrios ao
Cdigo Civil, vol. 13, So Paulo, Saraiva, 2003; Newton de Lucca e outros, Comentrios ao Cdigo
Civil Brasileiro, vol. IX, Rio deJaneiro, Forense-FADISP, 2005.

Teoria crtica da empresa

407

Ivanildo Figueiredo

a matria mercantil especial, que o estudo do direito comercial exige um


conhecimento diferenciado da clssica abordagem civilista.
Nestas concluses procuramos evidenciar, assim, que no foi coerente nem
cientificamente apropriada a imposio de um regime civilista para a empresa, diante
das contradies inerentes a objetos dspares, a mtodos incompatveis e,
principalmente, pela especificidade da matria mercantil que continuar prevalente na
legislao extravagante ao Cdigo Civil. O regime da comercialidade, assim, no
perdeu a sua autonomia, mas continuar dominante porque dotado de caractersticas
e elementos prprios, que no foram modificados, como visto, pela tentativa de
unificao do direito privado.
A tendncia futura, como vem sendo adotado nos pases europeus, a
elaborao de uma legislao especial para a disciplina da empresa e do empresrio,
contendo, tambm, normas gerais de direito societrio e a regulao dos tipos de
sociedades de acordo com as necessidades do mercado, no apenas da sociedade
limitada, mas de outras modalidades, como a empresa individual de responsabilidade
limitada e a sociedade unipessoal.
No campo do direito das obrigaes, este permaneceria, logicamente, como
instituto geral e regulado pelo Cdigo Civil, como norma de direito privado. Os
contratos empresariais, todavia, no podem ficar submetidos ao regime civilista, e
devem continuar sendo regulados por leis especiais, ou atravs de sistemas de
clusulas gerais, como se encontra estruturado o sistema de proteo do consumidor.
Alguns autores, como Jarbas Macchioni entendem que seria conveniente
suprimir o Livro II, da empresa, para promulgar-se um cdigo de atividades
empresariais,803 como vem sendo desenvolvido no projeto de novo Cdigo Comercial.
Mas a idia sob anlise passa por esse raciocnio, da revogao de todo o Livro II do
Cdigo Civil e a sua substituio por uma legislao empresarial codificada, e a parte
suplementar, como sociedades annimas e falncia, estruturada em microssistemas,
como reconhece Ricardo Lorenzetti, para quem a atividade empresarial constitui um
803

Jarbas Andrade Macchioni, Novos Fundamentos do Direito Comercial sob o Cdigo Civil de
2002, in Direito Empresarial Contemporneo, Adalberto Simo Filho e Newton De Lucca, org., So
Paulo, Juarez de Oliveira, 2 Edio, 2004, p. 361.

Teoria crtica da empresa

408

Ivanildo Figueiredo

verdadeiro microssistema da empresa, que exibe os seus prprios princpios, normas,


fontes de criao, doutrina e jurisprudncia.804
A necessidade de mudana desse Cdigo, que nasceu defasado e sob
concepo de ntida inspirao fascista, vem sendo motivo de diversas manifestaes
doutrinrias na esfera do direito privado, e no apenas entre os comercialistas, mas
tambm no mbito da melhor doutrina civilista.805
A toda evidncia, o vigente Cdigo Civil, apesar de apresentar ares de
modernidade, por haver sido sancionado no sculo XXI, nasceu de costas para o
presente, e no concebe a empresa como uma instituio em constante evoluo,
impulsionada pelo desenvolvimento tecnolgico, pela concorrncia no mercado, pela
internacionalizao das suas relaes no mundo globalizado.
A permanncia do atual regime do direito de empresa no Cdigo Civil de 2002,
reconhecido como imprprio e defasado pela doutrina comercialista dominante,
representar a progressiva desconexo do direito positivo brasileiro de todos os
demais sistemas da atual era da ps-modernidade, aprofundando, ainda mais, o
desnvel da tecnologia jurdica da empresa, diante de uma realidade em constante
evoluo. Mesmo em uma fase ou tendncia de descodificao, o momento histrico
exige a substituio do regime civilista da empresa por um novo Cdigo Comercial,
para que seja restaurada a harmonia e logicidade do sistema de regulao da
economia de mercado, e assim facilitar o entendimento e aplicao das regras desse
sistema pelos seus principais operadores e protagonistas: os empresrios.

804

Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1998,
p. 47.
805 o inegvel envelhecimento do que j nasceu passado, pois foi parido de costas para o presente.
Outro horizonte, inquietante e interrogativo, bate s portas cerradas do sistema. O medievo que
emoldura os institutos do status quo se mostra em pnico pois, medida que o civilismo pretensamente
neutro se assimilou ao servilismo burocrata doutrinrio e jurisprudencial, no conseguiu disfarar que
no corresponde aos fatos e s situaes que brotam da realidade contempornea. (Luiz Edson
Fachin, Teoria Crtica do Direito Civil luz do novo Cdigo Civil Brasileiro, Rio de Janeiro,
Renovar, 2 edio, 2003, p. 11).

Teoria crtica da empresa

409

Ivanildo Figueiredo

Apndice
O longo processo legislativo do Cdigo Civil de 2002

O projeto original do Cdigo Civil de 2002 fruto da elaborao de uma


comisso de juristas de renome, formada no ano de 1969, em plena ditadura militar,
e assim instituda por ato do ento Ministro da Justia Alfredo Buzaid, denominada
Comisso Revisora e Elaboradora do Cdigo Civil, coordenada pelo jusfilsofo
conservador Miguel Reale. Nessa comisso, foram designados como relatores
responsveis por cada uma das partes do novo Cdigo, Jos Carlos Moreira Alves
(Parte Geral), Agostinho Alvim (Direito das Obrigaes), Sylvio Marcondes Machado
(Direito de Empresa), Erbert Chamoun (Direito das Coisas), Clvis do Couto e Silva
(Direito de Famlia) e Torquato Castro (Direito das Sucesses).806
A comisso constituda para a elaborao do anteprojeto do novo Cdigo Civil
adotou como base terica e conceitual o prprio Cdigo Civil de 1916, e aproveitou
as contribuies derivadas de projetos anteriores de reforma legislativa para a
elaborao de um Cdigo de Obrigaes, redigido em 1965 pelos juristas Orosimbo
Nonato, Caio Mrio da Silva Pereira, Sylvio Marcondes Machado, Orlando Gomes,
Thephilo de Azeredo Santos e Nehemias Gueiros,807 bem como um anteprojeto de
Cdigo Civil, de 1963, de autoria de Orlando Gomes.808
Aps sucessivas verses apresentadas e discutidas pela Comisso Revisora e
Elaboradora do Cdigo Civil entre os anos de 1970 e 1974, a proposta final do projeto
foi encaminhada ao Congresso Nacional, em exposio de motivos assinada pelo
ento Ministro da Justia Armando Falco e aprovada pelo Presidente General
Ernesto Geisel, sendo publicada no Dirio do Congresso Nacional, em uma sexta806

Miguel Reale, Exposio de Motivos do Projeto do Cdigo Civil, Dirio do Congresso Nacional,
I, Suplemento B, 13.06.1975, p. 107.
807 Estados Unidos do Brasil, Comisso de Estudos Legislativos do Ministrio da Justia e Negcios
Interiores, Projeto de Cdigo das Obrigaes, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1965.
808 Miguel Reale, Exposio de Motivos do Projeto do Cdigo Civil, cit., p. 109.

Teoria crtica da empresa

410

Ivanildo Figueiredo

feira, 13, do ms de junho do ano de 1975, quando iniciou a sua tramitao na Cmara
dos Deputados sob a forma do Projeto de Lei n 634/1975.
Desde a sua recepo na Cmara dos Deputados, o projeto do novo Cdigo
Civil foi relegado a segundo plano, e pouca ateno mereceu dos parlamentares.809
Tanto assim que, aps o encerramento do prazo para apresentao de emendas, em
26/09/1975, o projeto permaneceu paralisado por quase oito anos, sem qualquer
procedimento de discusso, at o ms de abril de 1983. E, nesse perodo, diante da
paralisao do projeto por longo tempo, o Deputado Fernando Coelho (MDB-PE) veio,
inclusive, a requerer, em 13/06/1979, perante a Mesa da Cmara, o arquivamento do
projeto do Cdigo Civil e a dissoluo da Comisso Especial constituda para a sua
apreciao. O argumento para o arquivamento do projeto do Cdigo Civil era de que
ele se apresentava defasado diante da nova realidade poltica e social brasileira,
principalmente por ser resultado de proposta encaminhada ao Congresso Nacional
sob os auspcios de um governo ditatorial.
Apenas no ms de junho de 1983, foram retomadas as discusses do projeto
do Cdigo Civil na Cmara dos Deputados, agora sob a coordenao do Deputado
Ernani Styro (PDS-PB), seu novo relator. Aps a anlise e breve discusso das
emendas apresentadas no ano de 1975, a Cmara dos Deputados aprovou, na
sesso realizada em 09/05/1984, a redao do projeto do novo Cdigo Civil, sendo o
projeto ento enviado ao Senado Federal.
No Senado da Repblica, o projeto do Cdigo Civil tomou o nmero 118/1984,
sendo designado como Relator Geral o Senador Murilo Badar (PDS-MG). De 1984
a 1989, ou seja, por mais de 5 anos, o projeto permaneceu sem nenhum andamento
no Senado, e apenas em 24/08/1989 a Comisso Temporria destinada sua

809

No incio da tramitao do Projeto do Cdigo Civil na Cmara dos Deputados, apesar do pouco
interesse demonstrado pelos parlamentares no encaminhamento do projeto, a Comisso Especial da
Cmara dos Deputados realizou uma srie de palestras e conferncias com os membros da Comisso
Revisora e Elaboradora do Cdigo Civil e com os principais juristas do pas, havendo participado dessas
sesses: Miguel Reale (05/08/1975), Caio Mrio da Silva Pereira e Ebert Vianna Chamoun
(06/08/1975), Clvis do Couto e Silva (07/08/1975), Alfredo Lamy Filho e Jos Luis Bulhes Pedreira
(12/08/1975), Rubens Requio (13/08/1975), Torquato Castro (14/08/1975), Jos Carlos Moreira Alves
(19/08/1975), Fbio Konder Comparato (21/08/1975), Philomeno Joaquim Da Costa (03/09/1975) e
Egberto Lacerda Teixeira (04/09/1975); http://www2.camara.gov.br/proposicoes/PL63475.

Teoria crtica da empresa

411

Ivanildo Figueiredo

apreciao foi reinstalada, com a designao do Senador Wilson Martins (PDS-MS)


como Relator Geral.
Em virtude da paralisao do projeto no Senado Federal por vrios anos, sem
que a comisso responsvel promovesse qualquer encaminhamento, o projeto do
Cdigo Civil chegou a ser arquivado pela Mesa do Senado em 17/12/1990. Graas a
gestes polticas resultantes da instalao de uma nova legislatura, o projeto foi
desarquivado pela Mesa em 19/06/1991, sendo reconstituda a comisso especial e
designado Relator Geral o Senador Josaphat Marinho (PMDB-BA).
Somente aps decorridos quase 4 anos, em 11/04/1995, foi reaberto o prazo
para a apresentao de emendas pelos senadores, oportunidade em que se
aproveitou para se promover a compatibilizao parcial do projeto do Cdigo Civil
diante das profundas mudanas inseridas na legislao de Direito Privado pela
Constituio da Repblica de 1988, notadamente na Parte Geral e no Direito de
Famlia. Aps a apreciao das emendas, o Relator Geral, Senador Josaphat Marinho
apresentou o seu parecer final em 05/11/1997, e nas sesses de 26/11/1997 e
12/12/1997, o projeto foi discutido e aprovado pelo plenrio do Senado Federal, e
devolvido Cmara dos Deputados.
Com a instalao da nova legislatura no ano de 1999, o Deputado Federal
Ricardo Fiza (PFL-PE)810 tomou a iniciativa de assumir a relatoria da tramitao do
projeto na Cmara dos Deputados, para fins de aprovao das emendas inseridas no
Senado. A Mesa Diretora da Cmara dos Deputados criou, ento, uma Comisso
Especial destinada a proferir parecer sobre as emendas inseridas no projeto do
Cdigo Civil pelo Senado Federal, de modo a dar prosseguimento tramitao do
projeto. O prprio Deputado Ricardo Fiza veio a ser designado relator do projeto na

810

O Deputado Ricardo Fiza (1939-2005), que exercia mandato na Cmara desde o ano de 1970, foi
um dos mais influentes deputados conservadores integrantes do chamado Centro durante a
Assembleia Constituinte (1986-1988). Ele teve a sua imagem poltica bastante abalada por haver
integrado o Governo deposto de Fernando Collor de Mello (1989-1992) como Ministro da Ao Social,
alm de quase ter perdido o mandato, envolvido em denncias no chamado escndalo dos Anes do
Oramento do Congresso Nacional (1992-1994). Como estratgia para recuperar seu prestgio,
tambm em razo de sua formao jurdica e profundo conhecedor do processo legislativo, aproveitou
essa oportunidade mpar para assumir a funo de Relator-Geral no perodo final de tramitao do
Projeto do Cdigo Civil na Cmara dos Deputados, conseguindo superar as resistncias e fazer aprovar
o novo Cdigo Civil, sancionado como a Lei 11.406, em 10 de janeiro de 2002.

Teoria crtica da empresa

412

Ivanildo Figueiredo

Comisso Especial, sendo esta comisso investida de poderes de reviso e de


adaptao do projeto aos princpios e normas da Constituio da Repblica de 1988.
A Comisso Especial recebeu, desse modo, atribuies para apreciar as
emendas aprovadas pelo Senado Federal, bem como para promover emendas de
ajustes e de reviso ao texto.811
Com efeito, o relatrio final da Comisso Especial no se limitou a promover
meras adequaes constitucionais e legais ao texto aprovado pelo Senado Federal,
mas inseriu vrias modificaes de fundo e de forma em diversos artigos do projeto.
Somente na parte do Livro II Direito de Empresa, em comparao com o projeto
aprovado no Senado, foram modificadas 35 normas do cdigo, entre artigos e
pargrafos, sendo que algumas dessas modificaes implicaram em uma nova
adjetivao para o regime do registro de empresas, entrando em contradio com o
esprito inicial do projeto, que visava afastar da atividade empresarial a sua intrnseca
natureza mercantil. 812
No dia 06/12/2000, a Comisso Especial aprovou o parecer do Relator Geral
Deputado Ricardo Fiza.813 Com a aprovao do relatrio final, o projeto seguiu para

811

O Relator-Geral do projeto nessa etapa final, Deputado Ricardo Fiza, assim se pronunciou sobre
o trabalho realizado nessa fase: A despeito de seus ponderveis e slidos argumentos, a corrente
contrria codificao e favorvel a reformas parciais opo j vencida, na medida em que a
aprovao do projeto de reforma total terminou consagrando a tese prevalecente, tanto pela Cmara
quanto pelo Senado. Constitucional e regimentalmente portanto, nosso dever se circunscreveu
manifestao relativa s 331 emendas do Senado ao texto acolhido por esta Casa e s adequaes
constitucionais e legais do texto, dentro dos limites fixados pela Resoluo 01/2000 do Congresso
Nacional. (Relatrio Final ao Projeto de Lei 634/1975, Comisso Especial da Cmara dos
Deputados, in http://www.camara.gov.br/sileg/integras/303077.htm).
812 Dos 230 artigos do Livro do Direito de Empresa, o parecer final do Relator Deputado Ricardo Fiza
introduziu modificaes em 35 disposies normativas, constantes dos seguintes artigos: Art. 967; Art.
968, 1; Art. 969 e pargrafo nico; Art. 971; Art. 976; Art. 979; Art. 980; Art. 984; Art. 990; Art. 1.011,
1; Art. 1.013 e 1; Art. 1.014; Art. 1.052; Art. 1.058; Art. 1.059; Art. 1.061; Art. 1.066, 2; Art. 1.075,
2; Art. 1.084, 3; Art. 1.085, pargrafo nico; Art. 1.088; Art. 1.093; Denominao do Captulo VIII
e art. 1.097; Art. 1.098, inciso I; Art. 1.099; Art. 1.129; Art. 1.144; Art. 1.150; Denominao do Captulo
II e Art. 1.155; Art. 1.164; Art. 1.167; Art. 1.168; Art. 1.174 e pargrafo nico; Art. 1.181; Art. 1.192,
pargrafo nico.
813 A Comisso Especial aprovou, sem qualquer modificao e por unanimidade, o parecer final do
Relator Deputado Ricardo Fiza, o qual introduziu um total de 59 emendas, alterando a redao do
projeto originrio do Senado Federal, sendo essas emendas numeradas de 01 a 03, 14, 85, 135, 136,
160 a 164, 167, 168, 170, 178 a 180, 182 a 184, 187, 188, 190, 193, 195, 196, 198 a 200, 202, 204,
207 A 210, 213, 215, 217, 219, 222 a 225, 227 a 230, 232 a 234, 243, 245, 249 a 251, 273, 274, 278,
283, 297 e 300 (Resoluo 01/2000-CN), o que demonstra que o Relator Geral, nessa fase final, deteve
poderes
para
alterar,
de
modo
significativo,
vrios
artigos
do
projeto
(http://www2.camara.gov.br/proposicoes).

Teoria crtica da empresa

413

Ivanildo Figueiredo

discusso e apreciao em plenrio. Em 12/12/2000, iniciou-se a discusso, em


primeiro turno, do projeto pelo plenrio da Cmara dos Deputados, mas apenas na
sesso realizada em 15/08/2001 que ocorreram os principais debates e a aprovao
das emendas constantes do relatrio final. Sendo rejeitadas algumas emendas
apresentadas ainda na fase de aprovao pelo Senado Federal, o projeto do Cdigo
Civil retornou Comisso Especial, e somente em 06/12/2001 foi novamente
submetido ao plenrio e aprovada a sua redao final. No dia 12/12/2001, a Mesa da
Cmara encaminhou o projeto sano presidencial, encerrando uma fase de
tramitao legislativa que durou 27 anos.
Em solenidade realizada no Palcio do Planalto, tendo como convidado de
honra o Professor Miguel Reale, que proferiu o discurso principal, o novo Cdigo Civil
foi sancionado, em 10/01/2002, pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, na
forma da Lei n 10.406/2002.
Um outro argumento de ordem legislativa vem, ainda, a demonstrar no apenas
a insegurana do legislador, mas o reconhecimento explcito das imperfeies e
antinomias presentes no regime do direito de empresa no Cdigo Civil de 2002, e que
reside no fato de que o prprio relator do projeto final do Cdigo, o hoje falecido
Deputado Ricardo Fiza, veio a apresentar dois projetos de lei que podero modificar,
substancialmente, o texto original do Cdigo. Atravs do Projeto de Lei 6.960, de
12/06/2002, e do Projeto de Lei 7.160, de 27/08/2002, foram propostas alteraes de
redao em 87 dos 229 artigos do livro do direito de empresa, o que significa uma
mudana substancial em quase quarenta por cento do texto original.814
De modo contraditrio, nesses dois projetos de lei foram apresentadas
propostas de modificaes para seis artigos, de nmeros 966, 999, 1.053, 1.094,
1.099 e 1.165, que constam em ambos os projetos. Essa duplicidade de previso para

814

Projeto de Lei 6.960, de 12/06/2002 proposta de alterao de 14 artigos do Livro do Direito de


Empresa: arts. 966, 977, 999, 1.053, 1.060, 1.086, 1.094, 1.099, 1.158, 1.160, 1.163, 1.165, 1.166,
1.168; Projeto de Lei 7.160, de 27/08/2002 proposta de alterao de 79 artigos do Livro do Direito de
Empresa: arts. 966, 968, 997, 999, 1.000, 1.002, 1.003, 1.004, 1.007, 1.010, 1.013, 1.017, 1.019, 1.020,
1.022, 1.023, 1.024, 1.025, 1.026, 1.030, 1.039, 1.040, 1.041, 1.043, 1.044, 1.045, 1.053, 1.055, 1.061,
1.062, 1.063, 1.065, 1.066, 1.067, 1.068, 1.069, 1.071, 1.072, 1.073, 1.074, 1.075, 1.076, 1.077, 1.078,
1.080, 1.081, 1.082, 1.083, 1.084, 1.085, 1.087, 1.094, 1.095, 1.097, 1.099, 1.101, 1.102, 1.103, 1.108,
1.109, 1.110, 1.117, 1.122, 1.125, 1.126, 1.127, 1.134, 1.144, 1.145, 1.146, 1.147, 1.148, 1.149, 1.150,
1.151, 1.152, 1.153, 1.161 e 1.165.

Teoria crtica da empresa

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a alterao de normas, originria do mesmo deputado relator, demonstra, tambm por


esse ngulo, a inconsistncia do processo legislativo do Cdigo Civil no Congresso
Nacional e a persistncia de dvidas acerca de definies fundamentais do regime da
empresa. Apesar de ambos os projetos de lei encontrarem-se, hoje, arquivados,815 a
proposta de imediata modificao do livro do direito de empresa, logo em seguida ou
quase simultaneamente sano do Cdigo de 2002, revela o reconhecimento, por
parte do legislador, da existncia de srias defasagens e incongruncias, tal como
apontadas no presente estudo, principalmente na regulao da sociedade limitada.
Dos 27 anos em que demorou a sua tramitao, durante quase 15 anos o
projeto do novo Cdigo Civil ficou totalmente paralisado e esquecido nos escaninhos
do Congresso Nacional. Ao que se constata por esse fato, a maioria dos
parlamentares no demonstrou grande interesse na concluso de um projeto
elaborado sob a gide de um regime constitucional ultrapassado e moldado no
perodo da ditadura militar.
Com efeito, a gnese de inspirao conservadora prevalente no projeto original
do Cdigo Civil, no obstante o saber jurdico e o brilhantismo dos juristas que
integraram a comisso responsvel pela elaborao do projeto, decerto contribuiu
para prejudicar e desmobilizar a corrente terica que defendia a reviso do Cdigo de
1916, originrio de projeto do jurista Clovis Bevilacqua, mas inspirado em uma
realidade superada da sociedade pr-industrial brasileira e ainda recm sada de uma
atrasada economia de base escravocrata.
No campo da Cincia do Direito, ao final da dcada de 1970, encontrava-se em
plena efervescncia o movimento pela descodificao do direito civil, fruto de
profundos debates em congressos de civilistas realizados em Roma (1979) e Caracas
(1982).816 E essa tendncia que no entendia mais justificvel, naquele momento
histrico, uma nova codificao do direito privado, tornou-se a principal corrente crtica
do Cdigo Civil de 2002.

815

Desde 31/01/2007, os Projetos de Lei 6.960/2002 e 7.160/2002 foram arquivados por despacho da
Mesa da Cmara dos Deputados, conforme informao em http://www2.camara.gov.br/proposicoes.
816 Orlando Gomes, O problema da codificao, cit., p. 17.

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