Entre A Caserna e A Rua

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Entre a caserna e a rua:

o dilema do pato

Robson Rodrigues da Silva

Entre a caserna e a rua:


o dilema do pato

Uma anlise antropolgica da instituio policial militar


a partir da Academia de Polcia Militar D. Joo VI

Niteri, RJ
2011

Copyright 2011 by Robson Rodrigues da Silva


Direitos desta edio reservados EdUFF - Editora da Universidade Federal
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Superviso grfica: Kthia M. P. Macedo
Dados Internacionais de Catalogao-na-Fonte - CIP
S5861 Silva, Robson Rodrigues da.
Entre a caserna e a rua: o dilema do pato: uma anlise antropolgica da

instituio policial militar a partir da Academia de polcia Militar Dom

Joo VI. / Robson Rodrigues da Silva. Niteri, RJ: Editora da UFF, 2011.
270 p. : 21 cm. (Coleo Antropologia e Cincia Poltica, 52. Sria

Justia Criminal).

Bibliografias: p. 259

ISBN 978-85-228-0686-7

1. Polcia Militar Formao Policial. 2. Antropologia Cincia Poltica.



I. Ttulo. II. Srie.
CDD 355.55
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Heraldo Silva da Cosata Mattos
Humberto Fernandes Machado
Juarez Duayer
Lvia Reis
Luiz Srgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos

Para Raysa, minha filha, e Cludia, minha esposa, que entenderam com resignao os momentos que lhes foram subtrados
na dedicao a este trabalho.

AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeo aos meus pais Sebastio Incio e Neuza Gama, pela bondade e firmeza de carter com que sempre se
conduziram, transmitindo-me valores que me marcaram profundamente a ponto de representarem, para mim, quase que uma
obrigao, uma questo de honra mesmo, a sua retransmisso
a quem partilhasse de minha convivncia. Creio que, assim,
suas presenas puderam ser percebidas em minhas atitudes,
por mais simples que elas fossem.
Ao amigo Wilson de Arajo Filho pela amizade simbitica, com a
troca de informaes valiosas e de opinies sinceras que muito
me auxiliaram na confeco deste livro.
Ao meu paciente orientador, Roberto Kant de Lima, que acreditou na possibilidade deste trabalho, mesmo diante de todos
os problemas pelos quais passei para conclu-lo.
Aos cadetes e oficiais da Academia de Polcia Militar D. Joo
VI que, por meio das aes por mim observadas, deram vida a
este trabalho e me fizeram refletir a cada dia mais sobre minha
prpria Corporao. As percepes argutas presentes nas
entrevistas que me forneceram deixaram-me num movimento
helicoidal de concluses e cogitaes extasiantes, quase transformando o final da pesquisa num sonho inalcanvel, no fosse
o retorno obrigatrio ao rigor metodolgico e o espao limitado
de uma dissertao.
Aos meus amigos do curso de mestrado Anamaria, Durval,
Ana Amlia, Rosngela, entre outros que, sabendo de minhas
limitaes de nefito na rea das cincias sociais, procuraram

me ajudar de todas as formas com as teorias e categorias sociolgicas. Em especial, Hayde Caruso, grande incentivadora e
responsvel por meu retorno ao mestrado para o trmino desta
pesquisa.
Ao amigo Mrio Srgio de Brito Duarte, que o destino generosamente ps ao meu lado nesses ltimos anos de minha trajetria
profissional e com quem travei interessantes debates para o
desenvolvimento de algumas ideias aqui presentes, mesmo que
em alguns momentos elas tivessem surgido a contrario senso.
s amigas, j quase policiais militares e sempre incentivadoras,
Jacqueline Muniz e Luciane Patrcio.
quelas que me receberam no Instituto de Segurana Pblica ISP e companheiras do Ncleo Fluminense de Estudos
e Pesquisas NUFEP, Ana Paula Mendes de Miranda, Ktia
Sento S Mello e Lana Lage, com quem tive a oportunidade de
compartilhar ideias interessantes.
A todos os amigos do ISP, em especial queles que contriburam
diretamente para a finalizao deste trabalho, Thiago Soliva,
Kelson, Biral, Capit Rosana, Cabo Alessandro e Soldado Diego.
E, por fim, mas no menos importante, a todos aqueles que
na Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro contriburam e
ajudaram-me nessa concretizao. Todos sabero a quem me
refiro e, de certa forma, podero se reconhecer nas linhas desse trabalho. Porm, citar nomes, individualmente, certamente
far-me-ia cair num erro lamentvel, por quaisquer eventuais
lapsos de uma memria que j no me boa, o que, sem dvida,
seria uma ingratido sem tamanho, que nem todas as erratas do
mundo tipogrfico, juntas, poderiam corrigir.

Dentro de mim existe


um deus e um demnio
que so to amigos
mas to terrivelmente amigos
que ficam juntos
tomando porre
e dizendo besteira.
Bruna Lombardi (1976)

Sumrio
AGRADECIMENTOS ..................................................................7
PREFCIO..................................................................................15
Roberto Kant de Lima
Apresentao.......................................................................19
Arthur Trindade M. Costa
Introduo............................................................................21
Dilemas e paradoxos institucionais: alguns
insights..................................................................................29
A Metfora do pato na teoria nativa....................................29
Um modelo dual de polcia....................................................33
A esttica militar como marca paradigmtica.....................51
Ferramentas analticas..........................................................58
A Caserna e a Rua..............................................................58
Sobre o ritual militar........................................................61
O palco do ritual................................................................65
Academia de Polcia Militar D. Joo VI................................65
Os profissionais no se improvisam..................................69
Do espadim espada: Os ritos de passagem.................73
A adaptao...................................................................75
A incorporao dos novos alunos................................81
O espadim de Tiradentes..............................................84
O aspirantado................................................................92
Consideraes preliminares sobre
o simbolismo da espada.........................................................99
A rotina................................................................................. 109
Interiorizando a Caserna................................................. 109
A estrutura organizacional................................................. 112
O curso de Formao de Oficiais........................................ 116
Uma pedagogia informal............................................... 128

O trote............................................................................................131
Imprio mpar versus Soberania Par.............................137
Com o bumbo no p direito...............................................139
Ordem, limpeza e controle....................................................149
O Cadete-Padro e a poltica do CA..................................153
Servios e alteraes..........................................................167
Um duelo simblico......................................................... 181
O ritual punitivo.................................................................. 181
Enquanto isso, a naba voava..................................... 182
Invente uma historinha, aluno................................... 197
At que enfim sexta-feira......................................... 205
Hora da porrada: o drama da punio..................... 209
Isso tudo um teatro: estigmas e estratgias na
ilha da fantasia........................................................... 220
A revanche dos cadetes....................................................... 226
Semana cultural.......................................................... 226
Cad a minha goiabada. Dorothy no Show da
Virada............................................................................. 229
Resumo da pera............................................................ 239
Sobre os rituais da APM...................................................... 248
Consideraes finais..................................................... 251
Referncias........................................................................ 259
Anexo...................................................................................... 267

LISTA DE GRFICOS
GRFICO 1 APM D. Joo VI (efetivo/2003) Relao Masculino/
feminino
GRFICO 2 Chefia
GRFICO 3 Alteraes por turma
GRFICO 4 No apartamento
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Matrias do Ensino Fundamental
TABELA 2 Matrias do Ensino Profissional
TABELA 3 Total da carga horria
TABELA 4 Controle de punies
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Vista de satlite da Fazenda dos Affonsos
FIGURA 2 Adaptandos e adaptadores
FIGURA 3 Adaptandos com o bichoforme
FIGURA 4 A Guarda bandeira
FIGURA 5 Os donos do ritual no palanque das autoridades
FIGURA 6 A consagrao do Espadim de Tiradentes. Guarda de
Honra ao fundo
FIGURA 7 Grupamento de Formandos
FIGURA 8 O primeiro colocado recebe a sua espada
FIGURA 9 A favelinha
FIGURA 10 O parado segue
FIGURA 11 Apresentao do parado para o hasteamento da
Bandeira
FIGURA 12 A punio ritual do cadete no CFO
FIGURA 13 Os duendes (zero-um e zero-dois)
FIGURA 14 O Mago dos Affonsos
FIGURA 15 O Homem de Lata e Espantalhoso
FIGURA 16 Dorothy, Espantalhoso, Homem de Lata, com o Leo
frente
FIGURA 17 Dorothy recebe sua goiabada

PREFCIO
Nos ltimos 30 anos tenho-me dedicado a pesquisa de campo,
alm de percorrer a literatura sobre culturas jurdicas e prticas
policiais, comparativas, em universos institucionais, estaduais
e nacionais distintos. Um dos resultados dessas pesquisas minhas e de meus colaboradores, alunos, ex-alunos e colegas
uma reflexo sobre a especificidade das polcias brasileiras,
particularmente as de atribuies judiciria e militar. Embora
estas tenham academias e escolas formativas, primam por no
incorporar nesses estudos escolarizados a legitimidade para o
fazer policial. Como consequncia, aprende-se a fazer polcia
na prtica, seja na rua, seja no cartrio policial, e as prticas
policiais acabam sendo transmitidas de mo em mo, de forma
tradicional.
Esta caracterstica da forma e mtodo de transmisso do saber
policial tem por consequncia provocar nos policiais, e nas instituies, reao negativa a qualquer forma de controle explcito,
seja escolar ou no, em sua reproduo. Assim, no h protocolos para guiar a prtica policial - ou no so de conhecimento
pblico e universal dentro da corporao e fora dela, nem se
fazem cumprir - como em outras polcias contemporneas, cujo
respeito e obedincia, comprovados em casos de acidentes e
de violaes de direitos, vm em defesa, seja dos policiais, que
atuaram by the book, seja dos cidados envolvidos.
Isso porque, diferentemente das formas de transmisso de conhecimento de saberes prticos on the job, trocando o pneu
com o carro andando e outras expresses que as designam,

no caso brasileiro no h referncias que explicitem as regras


formais manuais de procedimento que devem servir de
orientao e limite para essas prticas, embora essas no sejam
postas em prtica exatamente como esto no livro. Acresce a
isto que a lei, como em qualquer lugar, nesses casos, mera
referncia longnqua, pois, alm de ser abstrata e geral, no
descreve minuciosamente os ritos das prticas, tanto cartoriais
e investigativas, como de controle e manuteno da ordem
pblica e social.
Por isso to relevante a realizao, publicao e divulgao
para um pblico mais amplo desta etnografia de Robson Rodrigues da Silva, na oportunidade de sua dissertao de mestrado
em Antropologia no PPGA da UFF. Neste trabalho, o autor, um
ex-aluno e ex-comandante da Academia Dom Joo VI, escola
formadora dos oficiais da PMERJ, mas tambm ex-coordenador
das famosas UPPs e atual oficial do estado maior da PMERJ,
identifica, descreve e explicita, certos rituais, analisando e discutindo seus dilemas na compatibilizao do trabalho policial com
a formao puramente militar, tanto no dia a dia da academia,
como na expectativa de seus futuros profissionais.
Em funo desta problemtica, que frequentemente corresponsabilizada por inmeras crises nas polcias do Estado do Rio
de Janeiro, segundo a imprensa tem noticiado, cogita-se uma
vez mais mudar os currculos das academias de formao de
policiais do Estado, medida que, no entanto, me parece incua
se no for acompanhada de uma socializao adequada de seus
alunos e professores nos controles prprios das instituies
pblicas republicanas nos Estados democrticos de direito.
Diante desse quadro, apresentamos proposta da Faculdade
deDireito da UFF, j aprovada no seu Conselho e Pesquisa, de
criao de um curso de bacharelado em segurana pblica, no
qual possam se formar profissionais que sejam socializados para
pensar, formular, executar, acompanhar e avaliar as polticas
pblicas da rea, sem terem passado por essa socializao informal policial e que possam ver a segurana pblica para alm das
prticas policiais, em nvel municipal, estadual e federal. Assim,
pensamos que a universidade pblica federal poder contribuir
16

para que esse campo de foras opostas, acrescido de mais um


ator legtimo, conviva mais explicitamente com seus paradoxos,
no caminho de uma repblica e de uma democracia compatveis
com a contemporaneidade, em nosso Estado e em nosso pas.
Roberto Kant de Lima
Coordenador do INCT-InEAC Instituto de Estudos
Comparados em Administrao Institucional de Conflitos/Proppi/UFF
Pesquisador de Produtividade 1-A do CNPq e
Cientista do Nosso Estado/FAPERJ

17

Apresentao
A construo das identidades profissionais tem sido apontada
por estudiosos como a chave para entender as dinmicas e conflitos sociais existentes no interior de diferentes instituies, tais
como hospitais, tribunais, bancos e escolas. No caso das polcias militares, entender os conflitos e dilemas identitrios dos
seus membros fundamental para compreender as mudanas
que estas instituies tm passado desde a redemocratizao
do Brasil. Nada mais adequado, portanto, do que a proposta
deste livro: refletir sobre o processo de formao da identidade
policial-militar que tem curso na Academia de Polcia Militar
D. Joo VI, escola de formao de oficiais da Polcia Militar do
Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).
A existncia de uma identidade dual, policial e militar, um dos
dilemas mais fortes presentes no interior das polcias militares
brasileiras. A tenso Entre a Caserna e a Rua, como descreve
Robson Rodrigues da Silva, acaba por explicitar tal dilema, uma
vez que a identidade militar no mais satisfaz seus membros
como elemento de afirmao profissional.
A Academia de Polcia Militar (APM) o lugar da caserna. Muitos
dos seus rituais e rotinas foram inspirados naqueles existentes
na Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formao
dos oficiais do Exrcito. Isso torna a APM o principal locus de
transmisso dos valores e saberes militares. Entretanto, na
rua, ou melhor, nas unidades policiais, que o dilema se torna
mais forte. Os contedos adquiridos l no preenchem as necessidades dos jovens oficiais da PMERJ. Os saberes necessrios

ao exerccio da profisso de polcia sero adquiridos no dia a


dia, por meio das orientaes dos policiais mais antigos. Por
esse motivo, a academia de polcia descrita como uma ilha
da fantasia.
O dilema identitrio de que trata esse livro refere-se a um quadro mais amplo na constituio do campo de segurana pblica
brasileiro. Desde a sua criao no sculo XIX, os policiais construram suas identidades a partir de dois campos distintos: o
campo militar, no caso das polcias militares, e o campo jurdico,
para as polcias civis. Embora existente, o campo policial foi
pouco desenvolvido. Seus saberes no foram adequadamente
sistematizados, seus smbolos e rituais foram copiados. O quadro torna-se complicado na medida em que surgem demandas
para a construo de uma identidade profissional essencialmente policial.
As identidades, entretanto, so dinmicas. Resultam de estruturas do passado, mas tambm de conflitos do presente. Os
conflitos entre as diferentes geraes de policiais tornam a identidade policial mais complexa ainda. Como o autor descreve, os
conflitos entre oficiais e cadetes evidenciam novas demandas
por direitos individuais e por reconhecimento profissional.
a partir desses conflitos geracionais, inseridos numa estrutura
militar, que o autor vai nos guiar para compreender os dilemas
atuais da construo da identidade policial militar. Boa leitura!
Arthur Trindade M. Costa

20

Introduo
O presente trabalho tem por base a etnografia que realizei, entre
os anos 2003 e 2008, na Academia de Polcia Militar (APM) D.
Joo VI. A APM o espao designado pela Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) para a formao de seu futuro
oficial, que, ali, durante os trs primeiros anos de sua carreira,
realiza o Curso de Formao de Oficiais (CFO).
Meu foco foram os ritos militares promovidos com recorrncia na APM e com os quais procurei lanar luz nos valores em
jogo na aquisio do que chamei de identidade policial militar.
As observaes se estenderam dinmica de uma arena de
tenses em que se revelou o campo sociocultural da APM, no
qual conflitos surgidos entre os vrios grupos que o compem
eram ainda dramatizados numa dimenso simblica.
Os dados foram obtidos pela participao-observante de um
pesquisador-nativo que se disps a estudar sua prpria instituio profissional, pois, como oficial da PMERJ, eu j participava
da cultura profissional que agora, como pesquisador, deveria
observar. Nesse sentido, ao inverter o binmio malinowiskiano,
no precisei virar um nativo, porquanto eu j o era.
Quanto ao meu problema, creio que ele foi se construindo
concomitantemente com minha prpria trajetria profissional
na policia militar, que se iniciou quando ingressei na ento
Escola de Formao de Oficiais (EsFO), em 1985. Considero,
portanto, que seja importante apresentar preliminarmente alguns aspectos dessa trajetria para o entendimento do objeto
em foco neste trabalho.

Aps concluir meu CFO, no final de 1987, trabalhei em vrios


batalhes da PMERJ; a maioria na capital do Estado. Em 2000,
j como major, retornei APM para comandar o seu Corpo de
Alunos (CA). Naquela oportunidade, alguns detalhes me chamariam a ateno. O primeiro deles, e talvez o principal, foi, sem
dvida, o de ter de reaprender a me comportar adequadamente
conforme as normas e regulamentos nativos, principalmentepor
ocasio das solenidades que, ali, junto com as disciplinas do
CFO, eram promovidas com uma frequncia maior do que em
qualquer outro batalho pelo qual eu j havia passado. Como
Comandante do CA, tive de conduzir vrias delas e precisei
relembrar significados produzidos e reproduzidos naquelas
ocasies solenes. Isso foi, no mnimo, intrigante, pois, num
grupo em que os ritos militares so extremamente valorizados,
meu eventual desconhecimento sobre a maneira de conduzi-los
parecia colocar em xeque minha prpria identidade profissional
perante meus companheiros.
No final daquele ano, cumprindo mais uma etapa de minha
carreira profissional, deixei a APM para realizar o curso de
especializao em Polticas Pblicas de Justia Criminal e Segurana Pblica, na Universidade Federal Fluminense (UFF),
ento coordenado pelo Professor Roberto Kant de Lima. Ali, tive
o primeiro contato com o instrumental terico-metodolgico
da antropologia, que me pareceu bastante interessante para
analisar cientificamente um objeto que se definia. No ano seguinte, comecei o mestrado no Programa de Ps-Graduao em
Antropologia e Cincia Poltica da UFF, ao mesmo tempo em
que continuava com minhas atividades profissionais na PMERJ.
Foi ento que, no final de 2003, voltei APM, agora como um
pesquisador-nativo, para observar seus ritos em meu trabalho
de campo. Na ocasio, interessei-me especialmente por um
deles, no exatamente um daqueles eventos pomposos que
os nativos chamam de solenidades e com as quais ns nos
apresentamos ao pblico externo representando a instituio
militar, ao contrrio, preferi um rito interno que dramatizava
o processo punitivo disciplinar a que os alunos da APM so
periodicamente expostos quando se desviam do padro comportamental estabelecido.
22

Em 2004, j tendo concludo as disciplinas do mestrado e de


posse de um considervel material etnogrfico, quando escrevia minha dissertao, lamentavelmente alguns problemas,
familiares e profissionais, me fizeram abandonar o Programa.
Apesar desse abandono compulsrio do programa oficial, meu
problema no havia me abandonado; pelo contrrio, ele
continuava palpitante em minha cabea. Como participante da
cultura nativa, tornei-me um observador inquieto, porm privilegiado; esforcei-me ao mximo no exerccio de estranhamento
a que um pesquisador-nativo deve se impor e revi meus dados.
Foi ento que pude atentar melhor para algumas questes que
antes haviam passado despercebidas: elas me pareciam bem
mais claras agora. Elementos condensados naqueles momentos
especiais, que a perspectiva antropolgica me permitiu chamar
de rituais, apontavam para um conflito estrutural que parecia
perpassar no somente o ambiente sociocultural da APM, mas
tambm a Corporao como um todo. Aquele conflito muito
provavelmente fazia parte de um cotidiano mais amplo que eu
teria de inserir no objeto do trabalho se quisesse tentar entender meu problema a partir do que os ritos militares da APM me
diziam. Afinal, eles no estavam soltos no mundo, muito pelo
contrrio, faziam parte de um sistema nativo de comunicao
simblica. Foi assim que percebi a instituio policial militar
como um fato social total, no qual havia outros domnios em
que o ritual militar provavelmente no fosse to recorrente
quanto na APM; nos quais talvez ele nem fosse identificado
como um elemento da cultura nativa; nos quais, alis, ele fosse
at rejeitado. Nesse sentido, minha questo se ampliava: agora
passei a querer saber no s o que os ritos significavam, mas
tambm o porqu de eles estarem ali na APM, de uma maneira
to marcante.
Aps superar os problemas que me impediam de prosseguir com
o mestrado, retornei ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UFF, em 2007, para retomar minha pesquisa e concluir
meu curso. Ele inclui agora essas reflexes e observaes da
dinmica social da APM, fundamentais para a compreenso do
sistema ritual nativo, do qual meu trabalho passou a se ocupar.
Alm dos ritos punitivos, traz tambm outras solenidades que
23

marcam aquele local designado pela Corporao para a construo social de sua elite poltica.
Por essas caractersticas, a APM D. Joo VI revelou-se um locus privilegiado, no s para a observao de ritos militares,
mas tambm para a observao da prpria instituio policial
militar. Primeiro, porque, como ns nativos j sabemos, aquele
o domnio da PMERJ em que os ritos militares so promovidos com maior nfase e frequncia; depois, porque os valores,
cdigos e representaes nativos esto suspensos, socialmente
realados e, portanto, mais suscetveis ao olhar etnogrfico
nessas ocasies.
Foi assim que percebi uma socializao apenas parcial da instituio policial militar na APM, na qual predominam valores
eminentemente militares. Ali, naquele primeiro momento da
socializao policial militar, um outro lado da instituio que, em
tese, deveria compor seu fazer prtico, ou seja, a parte policial,
orientada talvez pelo paradigma a que chamei de rua, sistematicamente rejeitado pelo paradigma da caserna. Surgiu-me,
ento, a hiptese de identidades mltiplas geradas a partir de
um conflito paradigmtico entre os dois ethos que estruturam
os diferentes espaos institucionais da PM: a caserna e a rua.
Em campo, optei por adotar estratgias cautelosas para abordar meus sujeitos de obsrvao, sobretudo os cadetes, j que
a desconfiana que estes desenvolvem em relao aos oficiais
intensificada nesses momentos de iniciao, o que talvez
prejudicasse alguma eventual entrevista. Isto ocorre devido
ao imbricado sistema de controle social que permeia aquele
espao, cuja estrutura ope, muitas vezes, os dois grupos, como
veremos adiante.
Dessa forma, preferindo inicialmente observ-los em suas
rotinas, fui me aproximando com cautela para, s depois, arriscar entrevistas que somente cessavam quando as respostas
j no acrescentavam nada mais ao tema de que me ocupava
no momento.1

Ao todo foram 42 entrevistados, entre alunos e oficiais.

24

Foi-me necessrio tambm um exerccio de estranhamento


ainda mais disciplinado que o da praxe etnogrfica, pois muitos
dados, que a princpio me pareciam bvios, se tornavam verdadeiras armadilhas, j que estavam sobremaneira naturalizados
pelo nativo, o que acabou exigindo do pesquisador esse rigor
ainda maior. Se, por um lado, as portas e atalhos da instituio
estavam abertos para o nativo, os caminhos do campo, por vezes, ofereciam armadilhas dissimuladas ao pesquisador. Talvez
eu no tenha conseguido escapar de todas, mas com certeza me
desvencilhei de muitas, tal qual um Ndembu cauteloso, deixando nas rvores suas marcas de caador, em suas estratgias
de retorno das perigosas florestas na antiga Rodsia do Norte
(TURNER, 2005).
A pesquisa teve, portanto, dois perodos. O primeiro ocorrido
entre 2003 e 2004, quando realizei, ao todo, 12 visitas APM,
observando ritos punitivos e entrevistando cadetes e oficiais.
O segundo, entre 2007 e 2008, quando, aps ter resolvido os
problemas que me fizeram abandonar o mestrado, retornei a
campo para pesquisar outros rituais que compunham a dinmica
sociocultural pela qual passaria a observar a APM.
Foi no final do primeiro perodo da pesquisa, mais precisamente
no primeiro semestre de 2004, que coincidentemente tambm
aconteceu minha segunda transferncia profissional para a APM,
na qual assumi a funo de subcomandante. Nesse momento,
resolvi mais uma vez recuar nas entrevistas e dedicar-me apenas s observaes. J no segundo perodo da pesquisa, eu me
encontrava trabalhando como adido ao Instituto de Segurana
Pblica, da Secretaria de Estado de Segurana Pblica (ISP/SESEG), estando, portanto, afastado de meu campo, o suficiente
para que as entrevistas no fossem prejudicadas. Assim, pude
realiz-las com mais tranquilidade, sem me preocupar tanto com
as condies em que elas eram concedidas. Foi nesse segundo
momento, tambm, que eu tive a oportunidade de observar a
solenidade da Recepo aos Novos Alunos, a do Espadim
e a da Espada. Em conjunto, elas apresentavam um discurso
simblico que dramatizava ritualmente a passagem dos cadetes
pelo CFO.
25

Assim, aproveitando principalmente o referencial terico de


Victor Turner, abordei o CFO como um rito de passagem, num
processo que evidencia a mudana de estado do futuro oficial
da PMERJ. Por sua riqueza simblica, a fase liminar se tornou
extremamente atraente para o olhar etnogrfico. A iniciao militar na APM apresentava mesmo essa fase crtica e sobretudo
perigosa da vida dos cadetes que, rumo ao oficialato, no estavam nem aqui nem l beetwixt and between , numa situao
interestrutural em relao sociedade geral (TURNER, 2005,
p.137). Observei que era exatamente naquele momento, a partir
dos conflitos havidos entre os valores em jogo na interiorizao
de um novo ethos, que a instituio procurava controlar com
mais rigor esse processo de mudana social. O ritual punitivo
permitiu-me, assim, entender a maneira como a instituio encarava suas contradies que, diante da tenso entre os valores
reproduzidos pela caserna e os que os cadetes traziam de suas
socializaes anteriores, ficavam mais expostas.
As prticas que compunham a dinmica daquele campo sociocultural, palco de disputas paradigmticas (TURNER, 2008,
p. 15), puderam ser exploradas a partir de duas categorias de
anlise: a caserna e a rua. Elas serviram de polos ideais num
continuum institucional com o qual vislumbrei uma gama de
papis construdos a partir da maneira pela qual os indivduos
incorporavam o seu novo habitus.
Nesse sentido, pude observar ainda um duelo simblico entre o
discurso produzido nos ritos punitivos e o discurso produzido no
chamado Teatro dos Cadetes, evento que ocorria anualmente
durante a semana cultural, quando os cadetes, antes de iniciarem suas frias de meio de ano, elaboravam e participavam
de eventos criativos com o fito aparente de apresentarem seus
talentos. No entanto, o teatro serviu-me tambm para contemplar a representao simblica desse conflito segundo o
ponto de vista dos cadetes. O de 2006 havia sido particularmente
emblemtico por apresentar essa disputa de uma forma bastante acirrada, bem acima dos moldes socialmente permitidos.
Talvez por isso ele tenha deixado de ser promovido nos anos
posteriores. Se, por um lado, havia o ritual punitivo para o ajuste
26

permanente das ambiguidades percebidas nos cadetes, por outro, havia tambm um discurso ritual do teatro dos cadetes que
simbolicamente atacava o comportamento de oficiais julgados
inadequados para o desempenho de seus papis sociais. Dessa
forma, decidi reconstituir o teatro naquele seu ltimo contexto, com base no vdeo e nos depoimentos de alguns nativos
que o protagonizaram na poca, tanto cadetes quanto oficiais.
Assim, o trabalho ficou dividido em quatro captulos. O primeiro
traz insights de um perodo em que me vi afastado da pesquisa
de campo, somados construo de um instrumental analtico
para dar conta dos dados etnogrficos da pesquisa, incluindo
ainda uma discusso terica acerca de ritual e de como ele vai
ser tratado na etnografia. O segundo traz uma anlise das solenidades oficiais observadas por mim na APM. O terceiro trata
da rotina da APM e de como as representaes ali construdas,
cujos vestgios haviam sido detectados por mim nos rituais, se
manifestavam na prtica nativa. Finalmente, o quarto captulo
traz uma anlise do duelo ritual travado a partir das representaes construdas pelos grupos diferentemente posicionados
e que so incorporadas distintamente por seus indivduos na
dinmica do campo sociocultural da APM.

27

Dilemas e paradoxos
institucionais: alguns
insights

A Metfora do pato na teoria nativa


A gente faz tudo mesmo... pra tudo que misso t l a PM... e,
apesar de tudo, a gente t sempre sendo esculachado. Ningum
gosta da gente, s precisa... Na hora do sufoco s se lembram
da PM. Somos o patinho feio. O bonitinho o Exrcito. Acham
que com o Exrcito nas ruas a situao vai melhorar, mas
coisa de tempo; vo ter os mesmos problemas, de corrupo
tambm, e ainda por cima vo perder as armas porque, quando o
bicho pega, eles se perdem; tm medo; no esto acostumados.
(Sargento da PMERJ com 18 anos de servio).

A Academia de Polcia Militar D. Joo VI o local em que as


cerimnias militares so promovidas com mais nfase e frequn
cia na Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Para isso,
os cadetes treinam exausto. No raro, eles so chamados
para realizar esse tipo de trabalho simblico por ocasio das
solenidades militares em que a Corporao se faz representar.
Assim ocorre, por exemplo, quando realizam o que os militares
chamam de Guarda de Honra, grupamento que compe esteti
camente a paisagem militar das solenidades; ou, ainda, quando
participam do desfile cvico do dia da ptria, juntamente com
outras corporaes militares; ou do desfile de 21 de abril,
em homenagem a Tiradentes, patrono das polcias militares
brasileiras.

Entretanto, h um outro lado da instituio digamos o lado


policial , que no to especializado nesse trabalho simblico.
Mas, antes mesmo de tentar querer entender os significados
desses rituais militares, creio que seja interessante perguntar
por que eles estariam ali na APM, daquela maneira to enfti
ca, numa das unidades de ensino da Corporao que, alm de
militar, tambm policial.
Quando fazia meu campo, na primeira parte da pesquisa, ouvi
de algum a seguinte frase: A PM um pato [?]. Registrei.
Ao retomar meus trabalhos, mais atento ao exerccio de estra
nhamento contnuo que um pesquisador-nativo deve se impor,
resolvi investigar aquela sentena. Percebi que se tratava de
uma comparao a que o nativo geralmente recorre quando
quer explicar, de uma maneira at irnica, o savoir-faire da
Polcia Militar.1 Desde meu ingresso na PMERJ eu j a conhecia
e achei interessante estranh-la agora, mas dessa vez tentando
entend-la tambm como uma teoria nativa, cuja explicao
rica de detalhes me foi fornecida por um oficial da prpria APM
num bate-papo descontrado:
A primeira vez que ouvi isso? Eu acho que foi quando eu ainda
era cadete e estava fazendo um estgio junto com minha turma
no CER.2 Lembro que, na ocasio, um coronel que dava uma
palestra perguntou para a turma o seguinte:
Se a PM fosse um animal, qual deles vocs acham que seria?
Como ningum pareceu ter entendido a pergunta do coronel,
ou se entendeu no arriscou a respond-la, ele continuou todo
professoral:
Senhores, na natureza h vrios animais que se destacam;
cada um dentro de suas especialidades. Eles tm habilidades
1

Quando o texto trouxer o termo Polcia Militar, ou mesmo sua abreviatura (PM),
porque naquele momento me refiro instituio que, de uma maneira geral, se
encontra sedimentada em toda sociedade brasileira, a partir de uma origem comum.
Entretanto, cada unidade da federao apresentou peculiaridades que fizeram com
que, ao longo da histria, essas organizaes recebessem diferentes denominaes
no mbito de seus territrios. Hoje, de uma maneira mais uniforme, elas so todas
PM de algum Estado, e, no caso do estado do Rio de Janeiro, temos a PMERJ. Assim,
quando me referir especificamente corporao policial militar fluminense, o texto
vir com o seu nome abreviado ou por extenso.

Trata-se do ento Centro de Especializao e Recompletamento de Praas da PMERJ,


que h poucos anos se transformou no CQPS.

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soberanas que os deixam no topo da cadeia alimentar. Vejam,


por exemplo, o tubaro, rei dos mares que mesmo com toda
aquela estrutura consegue sentir o cheiro do sangue de sua pre
sa a quilmetros de distncia. Que criatura no teria medo do
tubaro? Quantas conseguiriam escapar de sua rota predatria?
No cu temos a guia altiva e majestosa, smbolo do pas mais
poderoso do mundo, capaz de voar a altas velocidades e ainda
enxergar sua presa a muitos metros de distncia. Ela , sem
dvida, a rainha dos ares...
E na terra? O que dizer de um felino esguio com uma anatomia
perfeita para correr como o guepardo? Quando ele caa, atinge
fcil os 60 km/h; por isso leva muita vantagem quando disputa
com outros predadores.
Como os senhores mesmos podem ver, no d para comparar
a PM com nenhum desses animais. No entanto, temos o pato,
bicho metido a ecltico, mas que no nada como o tubaro, no
voa como a guia (se aquilo puder ser chamado de voo...) e no
corre como o guepardo. Ento, senhores, a PM esse pato que
nada, corre e voa, mas nada mal, voa mal e corre pior ainda.
Ainda por cima faz cagada por onde passa... E somos ns que
pagamos esse pato.

evidente a ironia nessa maneira recorrente de se representar


e ser representado. H nela certo sarcasmo em relao ao que
a PM faz e maneira como ela vista exatamente pelo que faz.
Mas, talvez, esse complexo de pato possa mesmo ser analisado
como uma metfora que, ao ser trazida do mundo animal, ex
plique aspectos idiossincrticos da prpria instituio policial
militar, seno vejamos.
Segundo a multivocalidade observada por Turner (2008, p. 24)
a partir da viso interativa de Richards, Max Black, e mesmo
Nisbet, a metfora a maneira que ns temos de efetuar a fu
so instantnea de dois domnios de experincias distintos em
uma imagem iluminadora icnica e englobadora (NISBET apud
TURNER, 2008, p. 21). Uma metfora seria, ento, a expresso
em que dois sujeitos o principal e o subsidirio representam
diferentes sistemas de coisas em interao, o que ajudaria a
engendrar um pensamento no qual as caractersticas no con
ceituadas de um primeiro sujeito seriam iluminadas por aquelas
j conhecidas pelo segundo. com Black que Turner (2008, p.
31

25) nos lembra ainda que toda a metfora carregada de ironia


e provoca uma releitura dos papis.
No rastro desses autores que veem as premissas metafricas
de determinados paradigmas como instrumentos capazes de
gerar hipteses para a transformao de arqutipos ou de
metforas-radicais, Turner (2008, p. 22) conclui que talvez
toda cincia deva comear com a metfora e terminar com a
lgebra. Nesse caso, decidi procurar por alguma lgebra na PM
que eventualmente tenha surgido dessa metfora do pato. Para
incrementar mais ainda esse meu raciocnio, resolvi tambm
trazer baila das discusses a no menos lembrada pelos na
tivos fbula do patinho feio que, juntamente com a metfora
do pato, sugere uma espcie de mitologia nativa do pato.
Pelo que j sabemos, ela trata do drama de um filhote de cisne
que, tendo nascido por engano numa ninhada de patos, siste
maticamente rejeitado quando no humilhado pelos demais
personagens, em razo mesmo dessa sua condio de estranho
no ninho. A reflexo a que ela nos leva a de entender a PM
como uma instituio estranha no ninho, vivendo s voltas
com suas prprias ambiguidades, sejam elas culturais, histricas
ou institucionais. Tal como o pato, ela tambm rene diferentes
lgicas e/ou paradigmas para a construo de seu fazer prtico.
Por esse prisma iluminador que a metfora do pato nos sugere,
podemos analisar a PM como uma instituio mltipla, abri
gando aspectos de outras instituies j definidas no cenrio
ocidental. Trata-se da juno de diferentes lgicas paradigm
ticas num nico arcabouo institucional, cuja ambiguidade
marca seus indivduos com a fora que as representaes co
letivas exercem sobre comportamentos individuais. Afinal de
contas, somos ns mesmos, seus nativos, que a representamos
como essa instituio-pato, organizada a partir de um dilema
bsico que a todo o momento nos lembra que, alm de sermos
militares, somos tambm policiais. por isso que a gente faz
tudo mesmo... pr tudo que misso t l a PM.... Somos tam
bm o patinho feio quando olhados com desconfiana tanto
por policiais quanto por militares. Pelos primeiros, por no
possuirmos o chamado ciclo [policial] completo, o que no
32

nos permitiria realizar o trabalho policial at o seu final, quando


os criminosos presos so levados s barras da justia, j que a
investigao no faria parte de nossa atribuio constitucional.3
Alm do mais, tiras veem policiais militares como milicos
de movimentos rgidos e inteligncia curta. Pelos segundos,
porque para os militares genunos somos uma instituio militar
de segunda categoria, primeiramente por no estarmos dire
tamente ligados ao poder nacional, depois, por no sabermos
praticar ritos militares com a mesma desenvoltura com que
eles os promovem e, por ltimo, por sermos uma tropa larga
da que frequenta o submundo poludo do paisano,4 de onde
adquirimos posturas impuras, inconcebveis para a prtica e a
esttica militar. Aqui a instituio policial militar despertaria
aquela mesma ansiedade que as aberraes anmalas causam
s nossas classificaes e, consequentemente, ordem institu
cionalizada, como nos mostrou Mary Douglas (1991).
Um modelo dual de polcia
importante ressaltar que essa ambiguidade institucional da PM
no passa despercebida por muitos de seus prprios integran
tes. O coronel da Polcia Militar do Estado do Paran, Wilson
Odirlei Valla (2004), por exemplo, as destaca sob um ponto de
vista histrico, alegando que as polcias militares seriam foras
3

A Constituio da Repblica Federativa do Brasil ainda revela uma maneira


dicotmica de o Estado tratar a questo da segurana pblica, ao dividir, nos estadosmembros, a funo policial entre duas corporaes que disputam o monoplio do
uso legtimo da fora. De acordo com o artigo 144, 4, cabe s polcias civis a
chamada polcia judiciria com a funo de investigar crimes comuns e, s polcias
militares, o policiamento ostensivo e a preservao da ordem pblica. Nenhuma das
duas instituies, no entanto, tem mandado para fazer o chamado ciclo completo de
polcia, que ao mesmo tempo reuniria investigao repressiva do delito e presena
preventiva nas ruas. Alm disso, a outra parte dessa funo ou semi-funo policial
da PM ainda se encontra atrelada constitucionalmente ao Exrcito e se estrutura
segundo o modelo organizacional burocrtico daquela instituio militar, assimilando
at mesmo seus valores basilares, isto , a hierarquia e a disciplina militares.

Essa categoria nativa usada para se referir, de maneira depreciativa, a tudo o que
no faz parte do mundo e, por conseguinte, da identidade militar, ou seja, o civil.
Eu a encontrei nos discursos dos cadetes da APM com um sentido semelhante ao
que foi observado por Celso Castro na Academia das Agulhas Negras (AMAN) do
Exrcito Brasileiro (CASTRO, 1990, p. 39).

33

hbridas dentro da dicotomia com que foi construdo o sistema


de segurana pblica brasileiro.
A fora policial brasileira seguiu tradies recebidas
de Portugal, tendo na base uma esttica militar diversa
daquela tradicionalmente utilizada pela polcia civil. Esta
tem por funo exercer a atividade de polcia judiciria
e, por objetivo, a busca da autoria e da materialidade do
ilcito penal. Historicamente, pode-se dizer que as presen
as das foras pblicas estaduais contriburam para que
a Federao Brasileira se consolidasse em breve espao
de tempo. Isto porque aquelas, hoje denominadas polcias
militares, eram foras hbridas. No interior dos Estados,
eram foras policiais e seus integrantes realizavam poli
ciamento ostensivo, investigavam e, at h pouco tempo,
eram Delegados. Na maioria das capitais, eram foras
adestradas e treinadas militarmente, de forma acentuada,
para a defesa do Estado-Membro. (VALLA, 2004, p. 21).

Nota-se o mesmo tom metafrico no discurso de Valla, no


momento em que aborda essas foras hbridas como um
pndulo oscilando no tempo e no espao, ora para um lado, ora
para outro desses diferentes fazeres (o policial e o militar). A
principal diferena entre eles, parece ser a esttica militar que,
apesar de ausente no primeiro, se mantm no segundo graas
a ritos e cerimoniais que reproduzem suas estruturas formando
uma ilha de tradio no meio da fluidez de nossa modernidade
contempornea.5
A instituio militar a que me refiro neste trabalho foi a que,
segundo Norbert Elias (1993) se consolidou no Ocidente a partir
do surgimento do Estado-nao, momento em que se firmava o
pacto poltico entre o soberano e seus prncipes vassalos (depois
cavaleiros e oficiais do exrcito real). A partir de ento, exrcitos
nacionais puderam se unificar em torno daquela nova figura
o social.6 possvel notar aqui uma especializao residual da
5

A noo de modernidade que utilizo neste trabalho a que resultou da materializao


histrica das ideias iluministas no contexto ocidental a partir do final do sculo XVIII.
Bauman (2001), por sua vez, nos aponta uma modernidade lquida, se referindo s
sociedades ocidentais contemporneas, que, ao contrrio da modernidade clssica,
apresentam estruturas cada vez mais fragmentadas e fluidas.

Sobre essa sociognese do Estado-nao, confira o captulo II de Elias (1993, p. 87,


190).

34

instituio militar, similar funo externa do campo religioso


observado por Bourdieu (2005). Neste sentido, a ideia de nao
que havia sido fundamental para a construo das identidades
e di-vises regionais,7 viabilizando simbolicamente o Estado
nacional, era e parece ainda continuar sendo tambm con
sagrada pelos ritos militares que, ao se utilizarem de smbolos
holsticos, como brases, bandeiras, msica e a prpria lngua,
ajudam a tornar natural o Estado nacional. Desde sua origem,
portanto, a instituio militar reproduziu as prprias estruturas
sociais que ajudava a legitimar, na medida em que consagrava
os mesmos ideais nacionais e princpios hierrquicos que orga
nizavam a sociedade pr-moderna.8
J a polcia, no sentido contemporneo, isto , como uma orga
nizao estatal burocrtica e permanente, separada de outras
funes (militares, administrativas, judiciais etc.), uma recen
te inveno ocidental que resulta dos esforos de construo
de uma concepo de Estado que identificamos como moderna
(MUNIZ, 1999, p. 23). Quando comparada a essas instituies
mais longevas (exrcito e igreja), podemos dizer que ela , de
fato, uma instituio nova, recm-surgida no cenrio ocidental.
Nesse sentido, a moderna historiografia de polcia nos tem
remetido, invariavelmente, a dois modelos: o francs e o brit
nico. O primeiro teria se expandido pelo continente no rastro
das invases napolenicas. Ele abrangente na medida em que
engloba vrias atividades do Estado e se baseia no controle e
vigilncia dos indivduos, dentro da ideia do que ainda hoje
entendemos por segurana nacional. O segundo teria surgido
com a concepo liberal do individualismo ingls, primeira
mente local e visa a atender comunidade em sua preocupao
7

Para essa ideia de regio como produto do poder simblico, (BOURDIEU, 2002,
p. 107-132).

Vemos em Bourdieu (2005, p. 69-78) que essa funo externa do campo religioso de
legitimao da ordem poltica, resulta da homologia entre os campos religioso e
poltico. Entretanto, plausvel inferir que, apesar do monoplio da Igreja em relao
a essa atividade de manuteno da ordem poltica, enquanto mantenedora da ordem
religiosa, a instituio militar tambm zelava simbolicamente pela manuteno da
ordem poltica, enquanto promovia o seu trabalho ritual de reforo solene do consenso
instaurado, distribuindo bens simblicos de culto nao, o que parece ocorrer ainda
hoje, por ocasio das cerimnias militares.

35

com a segurana e as liberdades individuais. Segundo Bretas


(1997a), essa diferenciao em apenas dois modelos surgiu
na criao da polcia inglesa que tinha o claro propsito de
ser diferente do modelo original francs (BRETAS, 1997a, p.
39). Para o autor, pensar a polcia por meio dessa dicotomia
uma perspectiva estreita. Primeiro, pela dificuldade que eles
apresentam em definir o que de fato polcia e o que essa pol
cia faz, devido a uma variedade de formas com que as agncias
policiais se apresentam nos diferentes contextos culturais;
depois, porque, sob essa perspectiva dicotmica, so desconsi
deradas especificidades importantes para a compreenso dessa
variabilidade (BRETAS, 1997c, p. 81). Bretas (1997a) admite, no
entanto, que tais modelos tm conformado as representaes
coletivas ocidentais, ao alegar haver uma dificuldade imensa
em pensar alternativas, na medida em que a ideia genrica [de
polcia] permanece.
interessante perceber que as representaes institucionais do
policial ocidental contemporneo, grosso modo, nos remetem
a essas ideias gerais. Primeiro, como integrante de um corpo
organizado para a proteo do Estado contra potenciais suble
vaes, como ocorre no modelo da police francesa (MUNIZ,
1999, p. 24); depois, como o profissional que organiza o espao
pblico e se utiliza de conhecimentos cientficos e de tcnicas
modernas de policiamento para descobrir e prender criminosos
em defesa da sociedade, como o fazem, por exemplo, tiras,
bobbies, ou Sherlock Holmes contemporneos, dentro de uma
matriz britnica de polcia.
Parece haver, nessa perspectiva dicotmica, certo paralelismo
com os modelos da tradio jurdica ocidental (BERMAN, 1996)
utilizados por Roberto Kant de Lima (1994) em seu estudo com
parado entre os sistemas de justia criminal norte-americano
e brasileiro. Nesse sentido, podemos encontrar neles alguma
coincidncia nas maneiras de o Estado exercer, tanto o mono
plio da produo da verdade jurdica quanto o monoplio da
violncia legtima. Enquanto o modelo britnico de polcia pare
ce ocorrer em pases que adotaram a common law tradition,
pela caracterstica local do direito costumeiro com que o Estado
36

tende a administrar seus conflitos, o modelo da police francesa


parece se estabelecer em pases que apresentaram a civil law
tradition, pela caracterstica administrativa de uma tradio
continental baseada na codificao vigilante da realidade social.
Apesar de tudo isso, encontramos consenso no entendimento de
que a polcia tenha sido o resultado de uma espcie de diviso
do trabalho (militar) durante o curso do processo civilizador
ocidental. Nesse sentido, ela teria surgido para substituir gra
dativamente o exrcito na funo de primeiro garantidor da
integridade fsica (segurana interna e territorial) e ideolgica
(segurana nacional) dos territrios conquistados. Nesta tica,
tanto o exerccio interno do monoplio da violncia legtima
usado como estratgia de controle social e vigilncia sistemtica
de cidados, quanto moderna agenda que passou a contemplar
demandas protagonizadas pelo indivduo enquanto produto
de uma ordem burguesa ocidental, representariam etapas des
se processo de construo da instituio policial no mundo
moderno.
Todavia, aqui no Brasil, as polcias militares tornaram-se uma
variao dessa especializao do fazer policial ocidental, por
juntar traos de ambos os modelos (matriz britnica e police
francesa) num mesmo arcabouo institucional. Creio que essa
caracterstica dual de nosso modelo brasileira tenha sido
fruto do contexto poltico em que ele emergiu, isto , em meio
ao liberalismo moderado que vacilava entre uma liberdade
jacobina e o autoritarismo absolutista (FAORO, 2008, p. 315).
Essas corporaes, com efeito, permanecem assim at hoje,
apresentando um sincretismo similar ao encontrado por outros
autores em outras de nossas instituies sociais (DAMATTA,
1990; KANT DE LIMA, 1994).
Portanto, mesmo que polcia e exrcito tenham tido suas pr
prias trajetrias no processo civilizador ocidental, cada qual
com seus objetivos, lgicas e prticas distintas, a PM brasileira
conjuga aspectos de ambas as instituies, formando uma ter
ceira que, no sendo nem uma coisa nem outra, acaba por se
transformar no patinho feio da histria. Assim, dependendo do
contexto em que a observemos, ela tem perambulado por esses
37

distintos fazeres ao longo de sua existncia, ora como agncia


policial, ora como fora militar, e ora ainda como as duas coisas
ao mesmo tempo, caracterstica que paradoxalmente parece ter
-lhe dado alguma flexibilidade para sobreviver ao longo desses
anos. Essa talvez seja uma peculiaridade da instituio policial
brasileira que possa ser analisada sobre o pano de fundo dos
dois tipos genricos apontados por Bretas (1997a).
importante ressaltar que o que chamo de modelo dual brasileiro de polcia no uma realidade naturalmente dada,
mas um construto que, como tal, tem sua histria. Sob crtica
sociolgica, podemos verificar sua gnese nos primrdios do
Estado nacional brasileiro, cujo processo de independncia
avanou em etapas desde a chegada da famlia real portuguesa
ao Rio de Janeiro, em 1808, at a consolidao das primeiras
instituies nacionais, logo aps a abdicao de Dom Pedro I
(HOLLOWAY, 1997, p. 45).
Para acolher a Corte portuguesa em fuga das tropas napoleni
cas foram criadas, num curto espao de tempo, instituies que
tentavam reproduzir por aqui o chamado Almanaque de Lisboa
(HOLLOWAY, 1997, p. 289). Uma das primeiras instituies
criadas naquele momento foi a Intendncia Geral de Polcia da
Corte e do Brasil, cujo Intendente Geral, Paulo Fernandes Viana,
representava a prpria autoridade absoluta do monarca, acu
mulando amplos poderes, fossem eles legislativos, executivos
(policiais) ou judiciais. Alm de intendente, Viana tambm era,
nesse sentido, conselheiro do pao e desembargador (HOLLO
WAY, 1997, p. 47).
A Diviso Militar de Guarda Real de Polcia da Corte (GRPC)
foi criada no ano seguinte no intuito de tornar mais civilizada a
nova capital do Imprio portugus aos olhos de seus mais novos

38

e ilustres moradores.9 Organizada militarmente com base numa


equivalente lisboeta, a Guarda estava subordinada diretamente
ao Intendente Geral e tinha por obrigao cuidar da ordem e
perseguir criminosos. No entanto, seus mtodos espelhavam a
mesma brutalidade desregulada das ruas e da sociedade escra
vocrata em geral.10 Com amplos poderes e sem se preocupar com
procedimentos legais, nem mesmo pro forma, ela agiria assim
durante os quase 22 anos de sua existncia, na maior parte do
tempo investindo contra batuques e rodas de capoeira, escravos,
vadios ou tratantes que encontrava no caminho (HOLLOWAY,
1997, p. 48-50).
Ao mesmo tempo em que D. Joo VI voltava a Portugal, em
1821, atendendo s exigncias das Cortes lusitanas, as ideias
iluministas ganhavam fora por aqui no Brasil. Os Liberais exi
giam a exonerao do Intendente, tido como arbitrrio at pelas
prprias elites que no haviam esquecido as expropriaes de
suas propriedades para atender as necessidades da famlia real.
Viana foi, enfim, destitudo, mas o violento Major Miguel Nunes
Vidigal, terror dos capoeiras e implacvel caador de escravos
fujes, continuou comandando a Guarda Real, num sinal claro
de que o arbtrio e a violncia, quando dirigidos a alvos certos,
eram bem aceitos, mesmo por aqueles que exigiram a sada do
arbitrrio Viana. (HOLLOWAY, 1997).
A presso liberal voltou a crescer aps a independncia, agora
contra o Imperador e Defensor Perptuo do Brasil, que j no
contava mais com a graa popular angariada desde o grito
do Ipiranga. Tal como ocorreu com D. Joo VI em Portugal,
a populao brasileira exigia a obedincia de seu Imperador
9

Cabe lembrar que a aristocracia vivia amedrontada por uma populao incivilizada
que a cercava e pelos ventos liberais que sopravam da Europa e dos Estados Unidos
e que o Rio de Janeiro era, naquele momento, o maior porto negreiro do mundo. Sua
populao de afro-brasileiros, escravos e libertos, somada a de pobres livres era
bem maior que a da elite branca. Juntando tudo isso ao fato de que seus recursos
provinham de taxas, emprstimos privados e subvenes de comerciantes locais e
proprietrios de terras, podemos concluir por quem a Guarda Real foi criada e contra
quem ela era dirigida.

10

Em 1830, por presso dos movimentos liberais democratas, foi criado um cdigo
criminal que passava a regular os arbtrios da Guarda e, por consequncia, o poder
monrquico.

39

a uma constituio. No entanto, lampejos autoritrios de um


imperador contraditrio s fizeram aumentar a desconfiana
nativista e os sentimentos antiportugueses. Foi assim que na
tivistas radicais e militares insatisfeitos se reuniram nas ruas
da capital, no tumultuado ano de 1831, para, em manifestao
pblica, exigirem que o Imperador renunciasse ao Imprio que
ele mesmo havia fundado.
Usando a estratgia de abdicar do trono em nome do filho me
nor, D. Pedro conseguiu acalmar momentaneamente os nimos
revolucionrios. No entanto, era preciso muito mais do que uma
simples substituio no trono imperial para que a monarquia
conseguisse se sustentar ante as ameaas republicanas. O vcuo
deixado por D. Pedro naquele momento crtico da incipiente
monarquia brasileira desencadeou uma disputa poltica entre
faces rivais, da qual saram vencedores os liberais modera
dos. Estes assumiram uma Regncia Provisria com medidas
firmes, visando a impedir que a soberania popular pretendida
por liberais exaltados se concretizasse. Assim, conciliando o
velho absolutismo com um liberalismo diferente do europeu, que
apresentava um contedo novo que o desfigurava na essncia
e na forma (FAORO, 2008, p. 307), os moderados buscaram
eliminar resqucios da monarquia estrangeira anterior para ten
tar estabelecer uma monarquia nacional. O Ministro da Justia
na Regncia, Diogo Feij, conduziu a transio com seu punho
forte caracterstico, inclusive no momento em que precisou ex
tinguir a Guarda Real de Polcia, considerada arbitrria e, alm
disso, uma ameaa incontrolvel por causa de seus vnculos de
lealdade com a monarquia anterior.
Naqueles momentos de instabilidade poltica, tanto as praas
da Guarda Real quanto as do Exrcito eram, muitas das vezes,
recrutadas fora nos estratos mais pobres da populao e,
nesse sentido, havia a possibilidade de se identificarem com
a insatisfao popular, o que representava considervel risco
para o governo. O efetivo do Exrcito foi, ento, drasticamente
reduzido, sendo criadas Guardas Municipais civis nos distritos
judiciais para substiturem as praas militares no servio poli
cial. Tal fato antecipava a criao de uma guarda nacional de
40

natureza civil,11 cujos integrantes deveriam ser oriundos das


classes proprietrias. Ainda assim, aconteceu o que se temia:
praas da Guarda Real de Polcia, solidrios aos militares de um
batalho do exrcito desmobilizado pela Regncia, amotinaram
-se juntamente com populares insatisfeitos, gerando uma onda
de crimes e violncia que aterrorizou a populao carioca. Aps
ter conseguido finalmente controlar a situao, Feij no he
sitou em extinguir a Guarda Real, em julho de 1831, passados,
portanto, 22 anos de sua criao (HOLLOWAY, 1997, p. 78).
No entanto, a lacuna deixada pela Guarda Real naqueles mo
mentos de crise poltica obrigou Feij a unificar as Guardas
Municipais para criar, em outubro daquele mesmo ano, o Corpo
de Guardas Municipais Permanentes. Apesar do molde braganti
no, a nova instituio, funcionava como um curinga no baralho
poltico de Feij, devendo estar nas ruas de forma cordial e
civilizada ao mesmo tempo em que tambm estava militarmente
pronta para enfrentar eventuais manifestaes sediciosas.
O Corpo de Permanentes se diferenciava de sua predecessora
sob vrios aspectos, a comear pelos soldos percebidos por seus
integrantes, que eram mais altos do que os da Guarda, e a forma
voluntria de seu recrutamento. Mas a principal diferena era,
sem dvida, a disciplina militar em moldes modernos e civili
zados, a despeito do liberalismo moderado de seus criadores.
O projeto de Feij, portanto, parecia querer materializar, por
aqui, aquele mesmo sonho militar de sociedade, em que se
pretendeu projetar na sociedade civil, as estruturas disciplinares
da instituio militar (FOUCAULT, 2007, p. 142).
Ao contrrio dos que talvez possam ter vislumbrado algum
vnculo entre o Corpo de Permanentes e outras organizaes
militarizadas de policiamento existentes no velho mundo, Tho
mas Holloway deixa claro que esse modelo de polcia de cunho
militar foi, desde seus primrdios, uma opo poltica eminente
mente brasileira, essencial para a transio gradativa do Brasil
de colnia nao (HOLLOWAY, 1999, p. 43). Holloway tambm
percebeu a diferena entre as atribuies da Guarda Real de
11

J havia, nesse sentido, um projeto de lei tramitando no Parlamento desde 1830 para
criar a Guarda Nacional.

41

Polcia da Corte e as do novo Corpo de Guardas Municipais


Permanentes. Mesmo com o Brasil na condio de Reino Unido
de Portugal, a Guarda Real representava um modelo policial de
controle colonial, diferente dos Permanentes que, como vimos,
parecem ter sido criados sob a gide de nosso despotismo
esclarecido. Creio que a disputa havida naquele momento
tenso entre liberais exaltados notadamente republicanos e
liberais moderados aos que Feij se filiava talvez tambm
tenha dado, nova Corporao, essa feio liberal-moderada
de natureza conciliatria.
A resposta encontrada pelas faces politicamente dominantes
foi, portanto, a criao de uma organizao policial moderna,
com esprito de corpo suficientemente forte para controlar as
insurgncias que possivelmente viriam pela frente12 e, ao mesmo
tempo, desestimular a indisciplina interna contra os donos do
poder. Nesse sentido, Muniz nos lembra que:
Restaurar e manter o controle sobre a capital significava
muito mais do que sufocar os agitadores republicanos, conter
os capoeiras, disciplinar os escravos de ganho e normatizar
o comportamento pblico. Era preciso tambm controlar, ou
melhor, buscar manter as rdeas sobre os homens a quem o
Estado tinha entregue armas e mandato para agir em seu nome.
(MUNIZ, 1999, p. 51).

A partir dali, as demais provncias brasileiras foram autorizadas


pelo governo regencial a constituir, em moldes similares, seus
prprios corpos de permanentes. At ento governos locais
no podiam ter um exrcito prprio para manter a ordem
poltica e social dentro de seus respectivos territrios. Nesse
caso, dependiam dos escassos efetivos fornecidos pelas tropas
de primeira linha. A autonomia que as provncias adquiriam
nesse momento, j que foram, tambm, autorizadas a instalar
suas prprias Assembleias Legislativas , passaria a representar
uma potencial ameaa ao poder central. Proprietrios locais
no tardaram em tirar proveito poltico dessa situao, usando

12

Os Permanentes, como passaram a ser chamados os integrantes do Corpo pela


populao, combateram inclusive em vrios movimentos desse tipo no Brasil-Imprio.

42

seus prrios corpos de permanentes como j haviam feito antes


com as extintas milcias e ordenanas.13
Em janeiro de 1866, o Corpo de Permanentes foi dividido em
dois: o Corpo Militar de Polcia da Corte e a Guarda Urbana. O
primeiro, que mais tarde receberia o nome de Polcia Militar,
foi aos poucos sendo substitudo nas ruas pelo segundo e por
outras instituies uniformizadas e de natureza civil. Tal fato
representou uma inverso na trajetria original da Corporao
que, com o Corpo de Permanentes, havia levado a disciplina
militar para as ruas. Esse retorno caserna dava ento vazo
vocao eminentemente militar do Corpo. Enquanto isso, as
guardas urbanas, com sua vocao eminentemente policial, se
multiplicaram nas ruas e passaram, j no sculo XX, a ser cha
madas de guardas civis, sendo, por fim, extintas ou agregadas
Polcia Militar, no momento em que esta voltou s ruas na
ditadura militar.14
Segundo Muniz:
[...] as PMs foram se transformando paulatinamente em foras
aquarteladas especiais ou extraordinrias, que atuavam me
nos nos servios de proteo da sociedade e mais nas questes
de defesa do Estado. Suas atividades propriamente policiais
como as patrulhas urbanas passaram a ser mais espordicas
e residuais, sendo seus recursos destinados prioritariamente
para os casos de emergncia pblica, e para misses militares
extraordinrias etc. (MUNIZ, 2001, p. 182).

Hoje, esse modelo dual de polcia (polcia e fora militar) j se


encontra sedimentado na realidade institucional brasileira. Ele
permaneceu vivo ao longo do tempo, mesmo com a criao e
extino de outras foras policiais concorrentes, revelando-se
providencialmente plstico em alguns episdios da prpria
histria poltica do pas. Foi o que ocorreu, por exemplo, nos
chamados Anos de Chumbo da ditadura militar, quando o
governo central baixou o famoso Ato Institucional no 5 (AI-5).
13

Tropas de segunda linha e reserva do Exrcito que, custeadas e comandadas pelos


proprietrios locais, mantinham a ordem colonial sob sua gide.

14

Como veremos adiante, os decretos 667 e 1.072 de 1969 concederam s Polcias


Militares a exclusividade do policiamento ostensivo fardado, proibindo, ainda, os
estados de criarem outra organizao policial uniformizada.

43

Naquele momento foi criada a Inspetoria Geral das Polcias


Militares (IGPM),15 instrumento que dava ao regime militar a
possibilidade de um controle sistemtico das PMs e, por meio
delas, o monoplio do policiamento ostensivo nos estados, o
que permitiu ao Ministrio do Exrcito assumir um combate
mais efetivo contra a subverso.16 Foi nesse contexto tambm
que as PMs passaram a fazer parte da chamada comunidade de
inteligncia,17 rede capilarizada de informaes que estruturava
o extinto Sistema Nacional de Inteligncia (SisNI) e do qual
fez parte o famoso Servio Nacional de Informaes (SNI).18
Portanto, assim se consolidava de fato e de direito uma antiga
pretenso centralizadora surgida ainda no primeiro governo
Vargas (1930-45) e desde ento materializada nas constituies
brasileiras.19

15

A IGPM, cuja chefia exercida por um General-de-Brigada, foi instituda pelo DecretoLei no 317, de 13/3/1967, para o controle e fiscalizao das atividades policiais militares
no pas.

16

O Decreto 88.777 de 1983 que aprova o Regulamento para as polcias militares e


corpos de bombeiros militares (R-200), estabelecendo princpios e normas para a
aplicao do Decreto-Lei 667, de 2 de julho de 1969, modificado pelo Decreto-Lei 1.406,
de 24 de julho de 1975, e pelo Decreto-Lei 2.010, de 12 de janeiro de 1983 , revela
uma dupla estrutura de comando e obedincia a que esto submetidas as polcias
militares. Enquanto a orientao e o planejamento cabem ao Secretrio de Segurana
Pblica do Estado, o controle e a coordenao cabem ao Exrcito. interessante
notar que quase todas as normas legais que iniciaram o controle e a coordenao
das PMs continuam em vigor at hoje, permanecendo, portanto, a subordinao
dessas corporaes estaduais ao Exrcito. Nesse sentido, a IGPM, mesmo com
suas atribuies redefinidas pelo Decreto 88.777, continua com a responsabilidade
de estabelecer princpios, diretrizes e normas para a efetiva realizao do controle
e da coordenao das polcias militares pelo Exrcito, Comandos Militares de
reas, Regies Militares e demais Grandes Comandos; pela orientao, fiscalizao
e controle do ensino e da instruo das polcias militares; e pelo controle da
organizao dos efetivos e de todo o material blico, entre outras atribuies.

17

O artigo 41 do mesmo Decreto estabelece que As Polcias Militares integraro o


sistema de informaes do Exrcito, conforme dispuserem os comandantes de
Exrcito ou Comandos Militares de rea, nas respectivas reas de jurisdio.

18

Criado no perodo militar, o SNI foi extinto em 1990 pelo ento presidente Fernando
Collor. Suas atividades foram reduzidas e passadas para o Departamento de
Informaes (DI), alocado na recm-criada Secretaria de Assuntos Estratgicos
SAE. Para uma anlise mais detalhada da atividade de inteligncia no Brasil,
(ANTUNES, 2002).

19

Foi a partir da constituio de 1934 que as polcias militares passaram a ser includas
com maior detalhamento nos textos constitucionais como uma preocupao da Unio.

44

Foi por esse processo de padronizao que as PMs, pela condi


o de militar, deixavam de ser exrcitos estaduais autnomos
e potenciais ameaas ao governo central, para se transforma
rem em sua longa manus (militar) nos Estados membros.20
Assim, voltava tona a mesma lgica dual e conciliadora que
prevaleceu no momento da criao de nosso modelo policial,
ou seja, a que estabelecia a hierarquia e a disciplina militares
como elementos essenciais para o controle poltico e social,
inclusive com relao a seu prprio efetivo.
Sob o ponto de vista legal, esse modelo sobreviveu transio
democrtica, pois, na atual Constituio Federal (1988), as
polcias militares ainda so definidas como foras auxiliares
e reservas do Exrcito e seus integrantes assim como os
integrantes dos Corpos de Bombeiros Militares considerados
militares estaduais.21 Quanto a isso, Muniz ressalta que:
Todas as constituies republicanas, incluindo em parte a
recente carta constitucional de 1988, assim como alguns de
cretos presidenciais anteriores, institucionalizam pela letra da
lei, o que na nossa histria poltica foi se transformando em
tradio. (MUNIZ, 2001, p. 183)

O fato de as polcias militares se encontrarem legalmente aptas


para atuarem tanto no campo da segurana pblica,22 operando
o poder de polcia nos estados, quanto eventualmente nas defe

20

Na verdade, a constituio de 1934 apenas iniciou o processo de controle dessas


corporaes, cuja autonomia representava uma potencial ameaa integridade
nacional a Fora Pblica paulista j havia inclusive atuado na Revoluo
Constitucionalista de 1932 contra o governo de Getlio. As atividades desses
chamados exrcitos locais passaram a ser mais controladas a partir daquela
primeira constituio da Repblica Nova. Ali foi inaugurada a competncia da unio
para legislar sobre organizao, efetivos, instruo, justia e garantias das polcias
militares, incluindo sua convocao e mobilizao; e foi onde elas foram definidas
pela primeira vez como Polcias Militares e foras reservas do exrcito, voltadas
para a segurana interna e manuteno da ordem.

21

A Emenda Constitucional no 18/98 deu ao artigo 42 da CF a seguinte redao: Os


membros das Polcias Militares e Corpo de Bombeiros Militares, instituies
organizadas com base na hierarquia e disciplina, so militares dos Estados, do
Distrito Federal e dos Territrios.

22

A atuao das polcias militares no campo da segurana pblica diz respeito


preservao da ordem pblica e ao policiamento ostensivo fardado.

45

sas interna23 e territorial,24 as mantm vinculadas s instituies


militares nacionais, notadamente o Exrcito. H, portanto, mo
mentos constitucionais especiais em que as polcias militares
podem, em tese, ser mobilizadas pelo prprio Presidente da
Repblica.25 Nesses casos, elas passariam subordinao direta
do Exrcito Brasileiro. Talvez, pela expectativa da concretizao
desses momentos especiais, as PMs ainda cultivem a identidade
militar permanentemente reforada pela esttica dos smbolos
e valores castrenses.
Apesar das crescentes crticas recebidas, vrios fatores ainda
impedem que esse modelo dual de polcia seja revisto. Cito dois:
a resistncia de grupos mais conservadores dessas corporaes
que o justificam em nome de suas tradies e a ausncia
deuma participao mais efetiva da sociedade em questesde
segurana pblica. Para os que defendem a desconstitucio
nalizao e modernizao das polcias, como Luiz Eduardo
Soares, a legislao que ainda vincula a PM ao Exrcito seria
uma espcie de entulho autoritrio. A propsito das greves
seriais das PMs brasileiras ocorridas em junho de 2001, Soares26
criticava a inrcia dos constituintes, propondo uma reflexo
mais aprofundada sobre esse nosso modelo.
sempre bom seguir a sabedoria acaciana e comear do in
cio. E o incio simples: como naquele divertido filme infantil
Esqueceram de mim, em que o pequeno heri acorda sozinho
no casaro vazio e descobre que a famlia j saiu de frias, a so
ciedade brasileira viajou para o futuro democrtico, tripulando
a Constituio de 1988, mas esqueceu uma parte da famlia no
velho casaro da ditadura. Ns chegamos ao Estado de Direito
Democrtico mudando nossas instituies e deixamos a polcia
militar para trs. Abandonamos o primo pobre das foras arma
das, a PM, porque sempre tivemos pavor de mudana, porque
23

No caso de grave perturbao ou subverso da ordem.

24

No caso de guerra externa.

25

O artigo 4o do Decreto 88.777 prev duas hipteses de convocao da PM: 1) em


caso de guerra externa, mediante ato de convocao total ou parcial da corporao,
baixado pelo Governo Federal; ou 2) para prevenir ou reprimir grave perturbao
da ordem ou ameaa de sua irrupo, nos casos de calamidade pblica declarada
pelo Governo Federal e nos casos de emergncia, de acordo com diretrizes especiais
baixadas pelo Presidente da Repblica.

26

Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 28 de junho de 2001.

46

os lobbies corporativos eram poderosos e porque a opinio


pblica e boa parte dos legisladores no tinham a menor ideia
do que estavam fazendo. Gente da estirpe de Hlio Bicudo e
Jos Genono ficou falando sozinha. Afinal, quem se interessa
pelas polcias, particularmente pela polcia militar? Elas so
como os presos e os dentes. A gente s se lembra deles quando
doem. O diabo que, se a gente no cuida, mais cedo ou mais
tarde, di. Agora tempo de dor, de velar os mortos da Bahia.
tempo, portanto, de despertar de nossa indiferena.
Segundo a Constituio, as polcias militares so foras au
xiliares e reserva do Exrcito (art. 144, pargrafo 6o) e sua
identidade tem expresso institucional por intermdio do
Decreto no 88.777, de 30 de setembro de 1983, do Decreto
-Leino 667, de 02 de julho de 1969, modificado pelo Decreto-Lei
no1.406, de 24 de junho de 1975, e do Decreto-Lei no 2.010, de
12 de janeiro de 1983. Em resumo, isso significa o seguinte: o
Exrcito responsvel pelo controle e a coordenao das
polcias militares, enquanto as secretarias de Segurana dos
estados tm autoridade sobre sua orientao e planejamento.
Em outras palavras, os comandantes-gerais das PMs devem
reportar-se a dois senhores. Indic-los prerrogativa do Exr
cito (art. 1 do Decreto-Lei 2.010, de 12 de janeiro de 1983, que
modifica o art. 6 do Decreto-Lei 667/69), ao qual se subordinam,
pela mediao da Inspetoria-Geral das Polcias Militares (que
passou a integrar o Estado-Maior do Exrcito em 1969), as
segundas sees (as PM2), dedicadas ao servio de intelign
cia, assim como as decises sobre estruturas organizacionais,
efetivos, ensino e instruo, entre outras. As PMs obrigam-se a
obedecer a regulamentos disciplinares inspirados no regimento
vigente no Exrcito (art.18 do Decreto-Lei 667/69) e a seguir o
regulamento de administrao do Exrcito (art. 47 do Decreto
88.777/83), desde que este no colida com normas estaduais.
H, portanto, duas cadeias de comando, duas estruturas orga
nizacionais, convivendo no interior de cada polcia militar, em
cada estado da Federao. Uma delas vertebra a hierarquia,
ligando as praas aos oficiais, ao Comandante Geral da PM, ao
secretrio de Segurana e ao governador; a outra vincula o Co
mandante Geral da PM ao Comandante do Exrcito, ao ministro
da Defesa e ao presidente da Repblica. Apesar da autoridade
estadual sobre orientao e planejamento, a principal cadeia
de comando a que subordina as PMs ao Exrcito. No difcil
compreender o primeiro efeito da duplicidade assimtrica: as
PMs estaduais constituem, potencialmente, poderes paralelos
que subvertem o princpio federativo. (SOARES, 2001).

47

Se considerarmos o fato de que, na modernidade,27 a atividade


policial deve estar voltada para seu principal produto ideolgico,
qual seja, o indivduo incluindo a seus atributos: liberdade
e igualdade28 , ser prximo desse indivduo que a polcia,
em tese, deve ser encontrada enquanto instituio moderna e
democrtica. Independentemente, portanto, do modelo a ser
abordado (matriz britnica, ou police francesa), a rua sempre
o locus institucional da polcia. ali, no meio do burburinho
citadino pleno de contingncias e dinamismos sociais que po
deremos encontr-la. E mais: embora a polcia seja, assim como
o exrcito, uma instituio de sustentao do Estado porque
materializa o monoplio da violncia legtima, ela deve fazer
uso diferenciado dessa fora no contexto democrtico, pautada
que estar pelas especificidades de seu mandato.
Quanto ao moderno significado da instituio militar, Foucault
(2007) j nos mostrava que, com a tendncia do aquartelamento
racional e utilitarista da tropa a partir do sculo XVIII, o soldado
tornou-se algo que se fabrica (FOUCAULT, 2007, p. 117, 122),
ao contrrio do antigo homem de guerra sem regras. Para o
autor, essa necessidade da cerca separando o exrcito para
transform-lo numa mquina perfeita tratava-se, na realidade,
de uma tcnica poltica na qual a disciplina moderna operava
sua arte das distribuies. Parece-me que essa mesma lgica
da separao foi de certa forma encontrada por Castro (1990)
em suas observaes acerca da construo do esprito mili
tar, sobretudo quando os militares costumavam evocar, num
tom pejorativo, a categoria paisano para opor seu mundo de
dentro (caserna) ao mundo de fora (sociedade).
A construo da identidade social do militar tem lugar em meio
a uma tenso entre uma viso ideal que permanece aproxi
27

No sentido de Dumont (1997, 2000), trata-se de uma ruptura com o mundo e os valores
tradicionais, em que o indivduo ocupa o eixo central como sujeito normativo
das instituies, tendo como seus principais atributos os valores da liberdade e da
igualdade.

28

Nota-se que aqui o sentido o do indivduo ideolgico definido por Louis Dumont
(2000), diferente daquele indivduo emprico das observaes de Norbert Elias
(1994), cuja individualidade ou configurao de sua autorregulao psquica se
produziu a partir do aumento do nmero de interdependncias com outros indivduos
e coisas sociais.

48

madamente a mesma desde a dcada de 1930, afirmando uma


posio de superioridade moral, prestgio e distino sociais
dos militares em relao aos paisanos, e a vivncia pelos ca
detes no mundo de fora, de experincias que muitas vezes no
confirmam ou mesmo contradizem isso. (CASTRO, 1990, p. 43)

No obstante, o mesmo autor chega concluso de que, no


momento em que a polis surge como varivel nova no cenrio
poltico moderno, cumpriria ao Exrcito redefinir seu papel, ou
melhor, modernizar-se, atualizando suas prticas e se adequando
ao novo contexto. Seu argumento de que, mesmo com uma
identidade construda a partir da lgica da separao, o mundo
militar deveria interagir com a polis em vez de se fechar a ela,
pois antes de tudo o Exrcito uma instituio polis-tica, ou
seja, da polis.
Mas o que esse mundo de fora seno a polis? Se por um
lado, os militares esto dela afastados, isolados, por outro,
esto a ela irremediavelmente ligados: a instituio militar
uma instituio polis-tica, preocupada com a coisa pblica
e com a Ptria. (CASTRO, 1990, p. 43).

Ora, se este um problema contemporneo da instituio mi


litar, com maior razo o ser da policial militar, cujos afazeres
a obrigam a conjugar os dois mundos, o de dentro com o
defora. Alis, para a instituio policial militar, o mundo de
fora a extenso de seu prprio mundo de dentro; o que
podemos depreender no fato de o termo polcia nos remeter a
uma necessria proximidade etimolgica com a polis.
Assim, temos a Polcia Militar abrigando em seu arcabouo
institucional dilemas e paradoxos como anjos e demnios,
cujos fazeres oscilam entre afastamentos e aproximaes. Ao
mesmo tempo em que ela interage com o mundo de fora, o
das ruas, est dentro dos quartis construindo seu mundo de
dentro, o da caserna; ao mesmo tempo em que atua no campo
da segurana pblica, realizando o policiamento ostensivo, pode
ser convocada pela Unio, como Reserva do Exrcito. Por isso
mesmo que na viso dos mais pessimistas tericos nativos
a PM um pato, com todos os perigos e desconfianas que a
ambiguidade lhe suscita. Muito embora eu insista que esse no
seja um privilgio exclusivo das polcias militares, pois carac
49

tersticas semelhantes j foram encontradas noutras de nossas


prprias instituies sociais.
Com isso, podemos dizer que a PM tambm guarda seus dilemas
e paradoxos, tais como os observados por Roberto Kant de Lima
em instituies de nosso sistema de Justia Criminal (KANT
DE LIMA, 1994; 1997). Creio que isso possa ser um reflexo da
maneira como a sociedade brasileira foi retratada por DaMatta
(1990), ou seja, como uma alternativa ao modelo individualista
hegemnico ocidental, j que, segundo o prprio, somos mes
tres das transies equilibradas e da conciliao (DAMATTA,
1997, p. 21). Por esse prisma, as polcias militares brasileiras
talvez tenham chegado a sua modernidade de uma maneira
que nos bem familiar, isto , conservando no novo algumas
caractersticas tradicionais. Noutras palavras, poderamos
ento dizer que elas mantiveram o mesmo esprito moderador
de seu projeto original.
Nesse sentido, creio eu, no haveria incoerncia no fato de a
PM vir, no atual momento democrtico, tentando se aproximar
da sociedade por meio da chamada polcia cidad ou policia
mento de proximidade.29 Entretanto, interessante observar
que, ao mesmo tempo em que essas novas estratgias so ado
tadas, algumas prticas tradicionais que separam a polcia da
sociedade ainda continuam sendo mantidas. Creio que parta
da a percepo de que nos ltimos anos tenha havido no Rio
de Janeiro uma espcie de poltica pendular de segurana, com
aes que se alternavam entre fazeres militares e suas tticas
blicas, visando ocupao territorial sem interao com a
comunidade, e fazeres policiais que valorizam essa interao.30
Pode-se perceber, portanto, que a PM, como instituio hbrida
que , no fugiu ao estilo liberal-moderador e nem regra da
lgica conciliatria percebida na realidade institucional brasilei
ra por DaMatta (1990, 1997). Nesse sentido, ela apresenta uma
arquitetura institucional marcada pela conciliao de diferentes

29

Para a definio desse conceito, (SKOLNICK; BAYLEY, 2006).

30

Nesse sentido, (GAROTINHO, 2002).

50

lgicas e, diria eu, de diferentes ideologias ou paradigmas.31 De


um lado, a lgica ou o paradigma policial que a orienta para a
aproximao com a polis contempornea, e de outro, a lgica
ou paradigma militar que a separa dessa mesma polis, sobretudo
quando constri seus guerreiros.
A esttica militar como marca paradigmtica
Talvez a esttica militar tenha ajudado a reforar a percepo de
que a PM, quando comparada com outras organizaes policiais,
de fato possua um controle interno eficaz. a representao
que, de certa forma, Lemgruber (2003) parece reproduzir, ao
tratar do controle das agncias policiais brasileiras.Vejamos:
Um conjunto de smbolos e ritos da PM serve como forma de
controle interno no sentido de induzir assimilao da auto
ridade, do espirit de corps e da hierarquia. O modelo militar
sem dvida fornece uma vertebrao a essa fora policial que
falta, como veremos, Polcia Civil e at certo ponto garante
a subordinao da conduta externa dos agentes s orientaes
dos comandos corporativos, o que faz com que faa variar bas
tante, para o bem e para o mal, o comportamento das PMs entre
diferentes estados, entre sucessivos governos de um mesmo
estado, ou at entre diferentes batalhes numa mesma cidade.
Vale dizer, as inclinaes da poltica de segurana que podem
ser mais ou menos tolerantes ilegalidade policial e mais ou
menos sensveis a presses externas tm boa chance de
produzir reflexos imediatos, ainda que conjunturais, no compor
tamento dos agentes de ponta, aumentando ou reduzindo, por
exemplo, seus nveis de violncia e corrupo. (LEMGRUBER;
MUSUMECI; CANO, 2003, p.61).

Sem entrar no mrito das questes levantadas pela autora, creio


que essa vertebrao ritual ou a ausncia dela possa nos
ajudar a mapear a dualidade institucional da PM na medida em
que os limites desses seus diferentes paradigmas (o policial eo
militar) sejam revelados em razo dela. O que eu proponho
31

Garotinho (2002, p. 66) fala de 3 paradigmas em disputa no campo da segurana


pblica: o penalista, o militarista e o prevencionista. Entretanto, por estar me referindo
a representaes do fazer policial militar, ainda que dentro desse mesmo campo,
atenho-me a dois paradigmas somente: o militar e o policial, que se assemelham
aos dois ltimos citados por aquele autor. Veremos depois que o primeiro j estar
englobado no fazer policial.

51

que o rito militar, recebendo ateno semelhante j dispensada


anteriormente hierarquia e disciplina, seja observado como
um elemento identificador daquilo a que se chamou cultura
militar (LEIRNER, 2003, p. 26) e, assim, nos permita visualizar
esses diferentes domnios no arcabouo institucional da PM.
A ideia de que, em razo dos ritos militares, a estrutura militar
exera maior controle sobre seus indivduos para o bem e
para o mal, como mencionaram Lemgruber, Musumeci e Cano
(2003), suscita questes que, sem dvida, merecem maior apro
fundamento. No entanto, pensar por ora o ritual como elemento
que indica a instituio militar, pode nos ajudar a entender a
prpria realidade institucional da PM, desde que lembremos que
h ainda um outro lado de seu arcabouo institucional o poli
cial, no qual os ritos militares talvez no sejam percebidos assim
como um valor positivo, e no qual, por isso mesmo, no sejam
nem to presentes. Nesse sentido, os ritos militares indicariam,
em tese, os limites desses diferentes domnios institucionais
da PM dentro do que eu chamaria de seu mundo objetivado,
tomando emprestado o termo de Berger e Luckmann (2003).
Aqui, portanto, torna-se fundamental sabermos um pouco mais
acerca desses ritos militares na PM, e minhas observaes de
nativo apontavam a APM D. Joo VI como o espao institucional
em que eles eram promovidos com maior nfase e frequncia
dentro do universo institucional da PMERJ. Alis, so seus pr
prios nativos que, de uma maneira inversa, reconhecem-lhe tal
caracterstica. Foram, inclusive, as observaes de um amigo
contemporneo dos tempos de EsFO e que coincidentemente
visitava a APM quando eu fazia meu campo, que me fizeram
atentar para um detalhe interessante, e a meu ver bastante
pertinente ao tema. Ele percebeu que na medida em que o As
pirante deixava a APM para continuar sua carreira nas unidades
operacionais da PMERJ ele era acometido de um relaxamento
postural gradativo. Na ocasio, informei a meu amigo que eu
estava ali na APM justamente para estudar rituais militares.
Foi quando ele, demonstrando perplexidade por ter de explicar
para algum de dentro significados que pareciam to bvios
e naturais, me disse:
52

P, Robson, lgico que nas unidades operacionais a gente


no se preocupa tanto [com a esttica militar] como aqui na
EsFO. Aqui a ilha da fantasia, mas tem que ser assim mes
mo, n? L no quartel diferente; o combate. Como que eu
vou querer que os policiais sejam que nem robs? lgico que
isso prejudicaria a operacionalidade dos caras. So tantas as
preocupaes com a criminalidade que a gente at se esquece
de cobrar a marcialidade, no ? Quando d, a gente at co
bra. Agora, tem um ou outro oficial..., no..., isso ..., depende
muito do comandante, que cobra a continncia, a cobertura,32
o coturno, mas no geral no d nem tempo, de tanto trabalho
que . (Major PM de uma unidade operacional da capital).

interessante perceber como o discurso revela a posio de seu


autor. Para meu amigo que havia passado a maior parte de sua
vida profissional voltado para a chamada operacionalidade,
isto , para as atividades, assuntos e problemas policiais da rua,
seus ritos deveriam ser outros que no os militares, menos estru
turados provavelmente e que, por razes prticas, no poderiam
produzir robs. Percebe-se, nesse seu discurso, que o rito
militar apresenta o mesmo significado de controle. Talvez fosse
por isso que meu amigo demonstrasse completa averso aeles
e, consequentemente, aos valores da caserna que cerceiam a
atividade policial, o que obviamente no encontrei nos discursos
dos oficiais da APM. Estes, ao contrrio, se identificavam com os
valores e tradies militares de sua Corporao, percebendo
neles o fundamento de sua existncia. No era raro eles se refe
rirem aos policiais militares da rua, geralmente mais relaxados
dessa vertebrao ritual tpica que ordena o espao militar,
como largados, por no apresentarem a postura idealmente
produzida pelo e para o ethos militar. A partir desse prisma fica
bem mais fcil entender por que a atitude corporal do policial
militar tende a mudar quando ele percebe ter atravessado as
32

A cobertura a pea da farda usada para cobrir a cabea do militar. Dependendo


do tipo do uniforme trajado e definido pelo Regulamento de Uniformes da PMERJ
(RUPMERJ), ela varia de tipo, como boinas, quepes, capacetes, gorros com pala
(bons) ou sem pala (bibicos) etc. Na cultura militar, o fato de o militar no utilizar
sua cobertura quando o regulamento determina faz-lo, significa desleixo, qui
indisciplina militar. Mas quando praticado pelo policial militar, esse comportamento
pode ainda significar em termos ideolgicos uma averso deliberada aos valores do
militarismo.

53

fronteiras que separam esses diferentes enclaves ou campos


finitos de significao (BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 42).
Podemos vislumbrar assim um trajeto ritual do indivduo na PM
diminuindo de intensidade medida que ele sai das unidades de
formao em direo rua, passando pelos batalhes operacio
nais e vice-versa, exatamente como me ocorreu no meu retorno
APM para comandar o seu Corpo de alunos (CA). Reforando
esse argumento, comum verificarmos policiais militares fisca
lizando seus prprios fardamento e postura quando prximos
dos limites desses diferentes domnios simblicos, o que ainda
mais realado se o quartel o da APM ou o do CFAP, unidades de
formao nas quais a esttica militar cultuada com mais rigor.
Quando eu era o Subcomandante do 22o Batalho da PMERJ,33
tive a ateno voltada para a atitude de meu motorista, um sar
gento que poca contava cerca de 16 anos de profisso e que
possua o hbito de s recolocar sua cobertura quando nossa
viatura j estava bem prxima do porto da guarda.34 Vendo
naquela ao quase automtica uma interessante oportunidade
para testar minha hiptese, decidi entrevistar meu mais novo
informante.
Por que voc faz isso? Perguntei.
Isso o qu, chefe?
S colocar a cobertura quando j estamos perto do porto
da guarda?
No sei..., sempre fao assim. que eu aprendi assim.
Assim, como?
Que tem de colocar a cobertura em locais descobertos.
Isso est escrito [em algum regulamento]?
No, mas acho que me falaram que era assim...; no sei.
E dentro da viatura pode ficar sem a cobertura?
33

Localizado no bairro de Bonsucesso, mais precisamente no complexo de favelas da


Mar.

34

Porto de entrada, no qual ficam policiais militares guardando o quartel e identificando


os que entram. a primeira barreira fsica do quartel, nos moldes dos quartis
militares. Suas normas esto previstas no RISG (Regulamento Interno de Servios
Gerais), comum s organizaes militares.

54

Pode, porque um local coberto afirmou categrico.


T, mas, quando a gente atravessa a guarda e entra no ptio
do quartel, a gente ainda est dentro da viatura que o mesmo
local coberto, certo?
... disse-me ele, meio confuso, mas j maquinando um
argumento mais convincente.
Mas tambm pode vir algum oficial e cobrar.
U, mas se eu estou aqui e sou o subcomandante, ento
presumo que minha autoridade seja maior do que a da guarda
e de todos os outros oficiais do quartel menos o Comandante,
no verdade?
...
E se at agora voc estava sem sua cobertura porque eu
estava te autorizando, pelo menos tacitamente.
verdade.
Ento, o que a guarda ou os oficiais poderiam fazer contra
voc se no tem nada que te obrigue a colocar essa merda de
cobertura?
[?]

Com frequncia, obtive respostas parecidas de outros entrevista


dos. Elas invariavelmente confirmavam a mudana da percepo
representacional dos nativos na passagem pelos limites dos
diferentes domnios simblicos que formam o universo institu
cional da PM. Evidentemente aquilo no era uma exclusividade
da caserna, pois funcionava de uma maneira semelhante que
ocorre quando determinados comportamentos rituais amenizam
o impacto de nossas passagens por diferentes mundos, confor
me nos mostrou Van Gennep (1978). So mudanas que ocorrem
ainda quando, por exemplo, retornamos do trabalho exaustivo e
retiramos nossas roupas sufocantes para entrarmos no conforto
informal de nossos lares. Nesse caso, quanto mais vigorosos
forem os movimentos desse rito de passagem, mais revelamos
nossa angstia com a vontade de nos livrarmos rapidamente do
fardo ideolgico que essas roupas representam. Afinal, como j
havia observado DaMatta (1977), ns brasileiros preferimos o
calor das relaes pessoais da casa impessoalidade de uma
rua que nos confina a todos como indivduos.
55

Creio que a mudana na postura do policial militar possa ser


mesmo reflexo de um fazer prtico que comuta essas diferentes,
digamos, tcnicas do corpo, que, segundo Mauss (2005), so
maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade,
de forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo (MAUSS,
2005, p.401). Creio que esse prisma possa nos oferecer uma
nova possibilidade de entendermos melhor o fazer prtico po
licial militar, por essa sua alternncia postural caracterstica,
uma vez que o mimetismo corporal adquirido tradicionalmente
com a ajuda do ritual na formao militar desaparece do corpo
do policial militar na medida em que este vai do quartel rua,
e vice-versa. Nesse sentido, minhas observaes registravam
uma notvel habilidade de o nativo policial militar combinar
diferentes tcnicas do corpo, adequando seu comportamento
s diferentes estruturas simblicas que seu fazer prtico percebe
e conjuga, o que seria menos provvel de ocorrer com sujeitos
exclusivamente militares ou exclusivamente policiais.
Com efeito, o fazer da PM parece exigir do corpo de seus inte
grantes diferentes tcnicas em razo dessas prticas distintas.
Assim, creio que com elas tambm possamos mapear os diferen
tes domnios simblicos desse universo institucional. Observei,
por exemplo, que muitos policiais de servio na rua retiravam
suas coberturas ao perceberem a ausncia da formalidade ritual
do quartel. L, se sentiam mais vontade e, portanto, mais
protegidos daquilo que entendiam como arbitrariedades do
militarismo. Em situaes especficas, at colocavam algum
outro tipo de cobertura no autorizada pelas normas internas,
como as toucas-ninja, que, em outros contextos, podem rep
resentar um conflito aberto a tudo aquilo que venha a lembrar
o ambiente solenizado do quartel. Muitas vezes esses mesmos
policiais retomavam rapidamente seu fardamento original diante
da aproximao do oficial supervisor. Vrias foram as vezes nas
quais eu, estando na rua como oficial supervisor, pude observar
policiais militares agindo assim. Penso que, ali, para eles, eu
personificava a prpria estrutura militar.
Acredito que, agora sob esta tica, eu possa compreender me
lhor um fato interessante que eu presenciei em 2000, quando
56

eu comandava o Corpo de Alunos da APM. Na ocasio, tive


a oportunidade de acompanhar pessoalmente uma pesquisa
que todo ano o Setor de Pedagogia fazia quando os aspirantes
retornavam APM, no intuito de jurar bandeira para serem
promovidos ao posto de Segundo-tenente. Tratava-se de uma so
lenidade simples, mas que, como outros rituais militares da APM,
tambm marcava uma etapa da nova gerao de oficiais rumo
a seu novo status. A diferena era que os recm-promovidos,
diferentemente dos cadetes, j vinham regularmente tirando
servio de rua.
As pedagogas aproveitavam aquela oportunidade para aplicar
um questionrio no qual a identidade do entrevistado no era
exigida, pois o objetivo principal era avaliar os conhecimentos
passados no Curso de Formao de Oficiais, se eram ou no
compatveis com a prtica policial militar. Observando pos
teriormente as respostas, pude constatar que a maioria dos
aspirantes entendia no ter recebido uma formao adequada
para a prtica de sua profisso. Uma delas, alis, chamou-me a
ateno por apresentar uma depreciao dos valores cultuados
na APM, que ali era definida como ilha da fantasia, sob um
ponto de vista at mais agressivo que o de meu amigo oficial.
Ela trazia todo um elaborado glossrio de termos recm-apreen
didos no combate da rua, como barulhar, por exemplo, que
segundo o entrevistado seria atirar com o fuzil; papa-indian
ou p-de-chinelo, usados para classificar pessoas simplrias
do povo; pranchar, que era o mesmo que pagar propina a
superiores corruptos; tria, que significava uma estratgia
para emboscar bandido na favela e assim por diante. Entendi
ento que aquilo tudo revelava um outro lado do mundo policial
militar, posicionado ali num confronto tcito com os valores da
APM, um lado obscuro que o entrevistado insinuava ter assimi
lado provavelmente no mundo da rua.

57

Ferramentas analticas
A Caserna e a Rua
claro que nem todo mundo tem palet, usa gravatas ou tira
chapus quando entra em templos; tampouco, so todos os
policiais militares que se sentem angustiados com coberturas.
Muitos at se sentem bem com elas. H inclusive os caxias que
preferem permanecer com suas fardas impecavelmente intactas
em quaisquer ocasies ou locais, revelando uma melhor inte
riorizao dos valores militares. Mas h tambm os chamados
federais, mangos, patameiros operacionais, caveiras,
entre uma srie de tipos que assimilaram melhor uma ou outra
parte dessas tcnicas corporais, em razo dos diferentes fa
zeres e domnios institucionais disponibilizados pela PM.
Para a anlise de meus dados a partir dessas observaes pre
liminares na APM, optei por utilizar um artifcio semelhante ao
de DaMatta (1997), que procurou evidenciar diferentes dom
nios por intermdio de categorias sociolgicas. Creio que eles
possam ser mais bem compreendidos quando dispostos num
continuum ideal que contenha em cada um de seus polos os
paradigmas compreendidos no universo institucional PM. Num
desses polos ficaria o que chamei de caserna, representando as
idiossincrasias de uma viso de mundo emotiva e holstica que
gera um ethos caracterstico identificado com a prtica militar.
No polo oposto estaria a rua, com suas regras universais e viso
de mundo prtica, conformando um ethos baseado na ideologia
moderna35 e que, ao ser praticado, identifica o fazer policial.
Nesse sentido, enquanto a rua orienta prticas policiais para
decises que valorizam a iniciativa individual, produzindo papis
caractersticos em que o policial comunitrio seu tipo para
digmtico, a caserna tipicamente o domnio da honra emotiva
no qual se constroem e vivem guerreiros militares fabricados
como peas de uma mquina ideal.

35

Conforme definida por Dumont (2000, p. 20), isto , como um sistema de idias e
valores caracterstico das sociedades modernas.

58

Tais como as categorias sociolgicas de DaMatta (1997), mi


nhas categorias de anlise tambm
[...] no designam simplesmente espaos geogrficos ou coisas
fsicas, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ao
social, provncias ticas dotadas de positividade, domnios
culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de
despertar emoes, reaes, leis, oraes, msicas e imagens
esteticamente emolduradas e inspiradas. (DAMATTA, 1997,
p. 15).

A caserna, portanto, tem significado mais amplo do que o espao


fsico limitado pelos muros dos quartis. Como categoria tpica
dos militares, ela uma entidade moral que aponta o universo
da cultura militar e assim encontrada evocando cdigos e
sistemas classificatrios, tanto no Exrcito quanto na PM. Por
seu turno, a rua uma entidade moral definida por oposio
aos valores militares da caserna que, como nos mostrou Castro
(1990), encontra-se separada do mundo civil. No entanto, pode
mos dizer que, por ser uma extenso do mundo policial militar
e no do mundo militar, ela poder ser encontrada sociologica
mente na PM, mas no na instituio genuinamente militar. Ao
mesmo tempo em que para os militares ela a rua dos paisa
nos, para os policiais ela a rua da aventura, do perigo e da
afirmao e, para alguns policiais militares ainda (mais militares
que policiais), ela vai representar a perigosa anomalia do pato
poluindo a caserna. Mas, como eu disse, tudo isso vai depender
da maneira como essa dualidade institucional for interiorizada
pelo indivduo, pois o seu comportamento que nos vai apontar
o paradigma que predominou em sua socializao.
Algumas outras categorias nativas tambm jogam luz nesses
polos: para os nativos, o policial militar de rua quando
apresenta caractersticas como a astcia policial que o afasta
do comportamento emotivo tpico do militar e o conduz ra
cionalidade fria do policial, ao contrrio do que ocorreria com
o caxias e com o vibrador, que esto mais prximos da
caserna. Vale ressaltar tambm que os policiais de rua no se
veem to presos aos ritos e s continncias corporais que iden
tificam os tipos militares; muitas vezes os ouvimos se referindo
aos caxias como burocrticos ou administrativos, o que
59

evidencia uma estratgia de depreciao simblica semelhante


observada por Castro na evocao da categoria paisano pelos
militares (CASTRO, 1990).
Pensando essas possibilidades analticas, vejo que no s
os indivduos, mas tambm as unidades da PMERJ parecem
reproduzir esse continuum tpico. Num de seus extremos,
encontraramos a caserna no Batalho de Polcia de Choque
(BPChq), ou no Batalho de Operaes Policiais Especiais
(BOPE), por exemplo, Unidades Especiais cuja tropa quase
sempre est em treinamento, apartada das ruas e sob a lgica
holstica da disciplina militar. Essas unidades, como o nome j
diz, atuam primordialmente em situaes especiais: o BPChq,
em manifestaes e distrbios civis e o BOPE, no que seus
integrantes chamam de combate urbano, no qual tm des
taque as incurses em favelas dominadas pelo narcotrfico.
No lado oposto, encontraramos a rua nos Grupamentos de
Policiamento em reas Especiais (GEPAE), que, assim como o
BOPE, tambm atuam nas chamadas comunidades carentes ou
informais (favelas), s que utilizando tcnicas de policiamento
comunitrio tentando uma aproximao com a comunidade.
Assim, BOPE e BPChq, de um lado, e GEPAE, do outro, so
exemplos extremos tpicos dessa dualidade produzida pelo
fazer policial militar que revela diferentes possibilidades de a
PMERJ encarar o mesmo problema. Nesse sentido, a caserna
prevaleceria sobre a rua no momento em que tticas militares
so adaptadas para as prticas da rua, sobretudo quando as
metforas da guerra esto presentes no discurso nativo para
representar a favela como um teatro de operaes por exceln
cia. Por outro lado, quando o discurso nativo utiliza metforas
de uma modernidade policial para representar o policiamento
comunitrio como soluo dos os problemas da segurana p
blica, ou como uma filosofia que tem no cidado o seu foco,
seria a rua quem prevaleceria sobre a caserna.
Dessa maneira, os demais batalhes da PM e seus indivdu
os estariam localizados em algum ponto desse continuum
identitrio ideal refletindo o paradoxo institucional da PM de,
ora estar na caserna, ora na rua. evidente que tipos ideais,
60

apesar de no existirem de forma pura na realidade social, nos


ajudam a pensar o mundo das prticas (Weber, 1944). Neste
caso, posso inferir que na realidade ocorra mesmo uma inva
so varivel entre a rua e a caserna que tanto pode nos levar
a policiais atuando na rua com uma espcie de tica guerreira
o que pareceu ter sido o caso do aspirante entrevistado pelo
setor de pedagogia , quanto a guerreiros que, tendo apreendido
na prpria caserna as tcnicas de policiamento comunitrio,
as difundem, a seu estilo, na rua. Mas isso s poder mesmo
ser constatado com a etnografia j que, como a maioria dessas
identidades parece mesmo ser construda num momento poste
rior, ou seja, no mundo da rua. Por isso esses tipos ficaro de
fora deste primeiro trabalho que, apesar de no perder de vista
minhas observaes preliminares, foi baseado na APM. Aqui,
pelo menos por enquanto, pretendo apenas apresentar essas
categorias a caserna e a rua como ferramentas de anlise,
boas para se pensar o fazer policial militar e que, portanto,
servem tambm para a discusso dos dados colhidos na APM.
Sobre o ritual militar
Apesar de ser um objeto clssico da antropologia, o ritual no
atingiu um consenso no que concerne a sua formalizao con
ceitual no campo da disciplina. Tendo sido bastante utilizado
nos estudos das sociedades primitivas, muitas vezes como
fenmeno mgico, ou promovido pelo pensamento pr-l
gico, ou ainda, pelo sentimento religioso, o ritual, em algum
momento, foi abandonado como categoria analtica capaz de dar
conta de eventos culturais, sobretudo nas sociedades moder
nas. Entretanto, ao se livrar dessa camisa de fora conceitual,
costurada ainda nos primrdios da tradio antropolgica, o
ritual ressurgiu para nos revelar que o homem moderno tambm
ritualizava, mesmo dentro de seu pragmatismo caracterstico.
Em outras palavras, a comunicao no mais o sagrado, o
mgico ou o primitivo , como atividade simblica inerente
racionalidade humana, passou a ser fundamental no conceito
contemporneo do ritual.

61

Os estudos de Turner (1974) a partir da pista deixada por


Van Gennep (1974) comearam a romper com essas amarras
apontando o novo caminho a ser tomado pelo ritual no campo
antropolgico. Como ao social prenhe de significados, seja em
sociedades de pequena escala, seja nas complexas sociedades
contemporneas, o ritual passou ento a se revelar um pode
roso instrumental para anlise de fenmenos culturais. Assim,
no momento em que a disciplina antropolgica abandonava
a pretenso de explicar o mundo cultural para se voltar mais
detidamente para seus significados, o ritual ressurgiu como
uma fnix metodolgica e, nessa dimenso simblica: o ritual
seria, enfim o processo de pr em relao, dando sentido aos
fatos da vida social, como os processos de elaborao de um
texto do sentido s histrias que se quer contar e interpretar.
(KANT DE LIMA, 1986).
Os caminhos traados por Turner (1974; 2005; 2008) e outros
autores como Leach (1978) e Geertz (1973), portanto, abriram
espao para uma teoria da comunicao ritual, e foi exatamente
dessa maneira que pretendi tratar o ritual neste trabalho, ou seja,
como um sistema cultural de comunicao simblica. Fica cla
ro, portanto, que trabalhei com o conceito de cultura enquanto
teia de significados tecidos pelo homem (GEERTZ, 1978), na
qual fatos culturais so comunicados e na qual o ritual funciona
como um dos principais instrumentos para a transmisso dessas
mensagens simblicas que, alm de significados, comunicam
tambm seus cdigos (LEACH, 1973).
Num sentido parecido, o ritual militar brasileiro j havia sido
observado no tringulo utilizado por DaMatta (1990) para anali
sar nossas festas populares. Em seus vrtices esto nossas
mais importantes instituies como promotores desses eventos
culturais: o povo, a Igreja e o Estado. Segundo este autor, nosso
sistema ritual apresentaria trs mecanismos bsicos: reforo,
inverso e neutralizao, revelados nos diferentes arranjos
gramaticais com que a matria-prima social apresentada
simbolicamente no espao pblico por cada uma dessas insti
tuies. Nesse sentido, enquanto os rituais militares da Semana
da Ptria apresentam um mecanismo bsico de reforo, o carna
62

val apresenta um mecanismo de inverso e as festas religiosas


promovidas pela Igreja, um mecanismo de neutralizao. Sob
esta tica, o discurso ritual militar totalizante, hierrquico e
uniforme, o que refora o Estado Nacional; o da Igreja, neu
tralizador e, nesse sentido, coerente com o pacto tcito de no
interveno com o prprio Estado Nacional, que remonta
sua hegemonia na pr-modernidade; o do povo o da inverso,
do riso inocente e galhofeiro, num estilo similar ao das festas
populares da Idade Mdia estudadas por Bakhtin (1999).
Creio que se DaMatta tivesse insistido na varivel poltica
que apenas ensaiou, provavelmente seu modelo triangular
representasse esses diferentes discursos num espao de lutas
simblicas, em vez do modelo harmnico e complementar que
ele me pareceu. Talvez assim o carnaval no fosse visto como
um rito sem dono, mas como um rito cujo dono teria mesmo
a proposta de um discurso no hegemnico; alternativo, quando
igualitrio e subversivo, quando anarquista.
Os dados colhidos na APM, portanto, apontavam-me eventos
que observei como rituais, apesar de os nativos da PMERJ nem
sempre se referirem a eles nesses termos. Por vezes, falavam
em solenidade, cerimnia ou cerimonial, quando queriam
tratar dos momentos mais importantes em que a APM abria
suas portas para receber a sociedade, incluindo as mais altas
autoridades do Estado. Quando no, usavam somente o nome
dos eventos que haviam motivado a reunio das pessoas naque
les momentos que, apesar de serem tambm especiais, eram
internos e menos elaborados do que as solenidades oficiais.
Para todos os efeitos, considerei todos como rituais, sobre
tudo porque tratavam simbolicamente aspectos de relevncia
social que rompiam com a temporalidade linear rotineira para
inserirem, no cotidiano nativo, uma temporalidade cclica, ca
racterstica dos momentos festivos ou crticos da vida social.
Assim, eles compunham um extraordinrio construdo pelos
nativos (DAMATTA, 1990, p. 39) e, alm disso, eram ordenados,
relativamente estveis e apresentavam significados partilha
dos e condensados numa economia caracterstica dos rituais.
Nessas ocasies, portanto, havia comunicao dentro de uma
63

gramaticalidade ritual nativa. Foi justamente essa forma de co


municao ordenada, incluindo a maneira como sua mensagem
era apreendida pelos grupos nativos, que me chamou a ateno
em campo.
A partir desse referencial, analisei trs solenidades e mais ou
tros dois eventos rituais na APM, conforme veremos a seguir.
As solenidades, ao menos, eram rituais que possuam o mesmo
mecanismo bsico de reforo por apresentar um discurso
simblico voltado para a manuteno das estruturas de poder
na qual se encontrava o seu dono, nesse caso o Estado. (DA
MATTA, 1990, p. 59-69).
Antes de analis-los, porm, devo apresentar a APM como o
local em que os rituais militares so promovidos com mais n
fase, momento em que o seu ptio interno se transforma num
verdadeiro palco poltico-performtico, semelhante queles
espaos encontrados nas aldeias G e Bororo, ou nas praas
do mundo latino, ou ainda dos ptios das casas mediterrneas
que, conforme DaMatta, funcionavam como ponto focal para
eventos coletivos, sobretudo os rituais (DAMATTA, 1990, p. 75).

64

O palco do ritual

Academia de Polcia Militar D. Joo VI

Figura 1 Vista de satlite da Fazenda dos Affonsos

A Academia de Polcia Militar (APM) D. Joo VI est localizada


nas dependncias da Fazenda ou Invernada1 dos Affonsos,
no subrbio carioca de Jardim Sulacap. No aspecto fsico ela
um quadriltero arquitetnico que nos lembra uma instituio
de sequestro nos moldes de Foucault (2007, p. 165). Sob o pon1

Esse nome surgiu porque o local foi originariamente adquirido para servir de
Invernada do Regimento de Cavalaria.

to de vista institucional, ela a unidade de ensino da PMERJ


com atribuio de formar seu futuro oficial, e, numa dimenso
simblica, o local designado pela Corporao para a passagem
ritual do nefito rumo ao oficialato.
A Prefeitura da Fazenda2 responsvel pelo complexo de
estabelecimentos policiais militares no qual, alm da APM,
funcionam ainda outros rgos da Corporao. Parte do terreno
original da Fazenda que um dia pertenceu Unio, ou melhor,
ento Polcia Militar do Distrito Federal (PMDF), foi cedida ao
Exrcito e depois Fora Area Brasileira para a construo
da atual Base Area dos Affonsos.
A fachada dos prdios que compem a APM revestida porazulejos azuis. O prdio principal, primeiro a ser avistado por quem
chega Fazenda, torna-se um imponente quadriltero de um
tom azulado que em dias ensolarados se confunde com o prprio horizonte.3 Suas linhas retilneas, no entanto, sugerem a
interveno humana em contraste com a natureza exuberante
que desponta dos arredores da Fazenda.
Grades metlicas e blocos de alvenaria delimitam o prdio
principal. Em seu interior descoberto h um ptio para onde as
janelas se voltam, lembrando o princpio da inspeo utilitria
de um panptico benthamiano dentro da mesma lgica das
instituies de sequestro. Ao mesmo tempo em que o local
em que a maior parte das rotinas dos cadetes acontece, pelo
menos as mais pblicas e coletivas, o ptio tambm o palco
em que as principais cerimnias da APM so promovidas.
O prdio principal possui uma rea de aproximadamente 500 mil
metros quadrados distribuda pelas quatro alas de dois andares.
No trreo, a Ala Leste reservada para as salas de aula e possui
um corredor que as interligam a um prdio secundrio, anexo ao
principal. Na Ala Sul, esto o prtico principal, a administrao
2

A Prefeitura dos Affonsos administrada pelo comandante do Centro de Formao


e Aperfeioamento de Praas CFAP que, na qualidade de prefeito, deve cuidar
da intendncia das reas comuns, alm de suas atribuies normais no comando
daquele Centro.

A cor azul, predominante nos quartis da PMERJ, trazida da bandeira do estado


fluminense para dar o tom institucional da Corporao.

66

do Corpo de Alunos (CA)4 e algumas salas reservadas ao setor


de psicologia. Na Ala Norte, ao lado de um prtico secundrio,
fica a Reserva do Armamento. E na Ala Oeste, esto o rancho,
o auditrio e alguns gabinetes mdicos.
No segundo andar do quadriltero principal ficam os alojamentos dos cadetes que se distribuem da seguinte forma: os do
Primeiro-ano ficam na Ala Leste e os do Segundo-ano, entre as
Alas Leste e Sul. Os alunos do Segundo-ano, que eventualmente
sobram dessa diviso original, podem ocupar apartamentos na
Ala Oeste, mas esta reservada originariamente para os alojamentos dos veteranos do Terceiro-ano. O fato de os cadetes
mudarem de ala quando passam de ano no CFO no diz respeito apenas a uma diviso racional do espao fsico, mas indica
tambm uma diferenciao simblica das posies sociais que
seus grupos vo ocupando na estrutura da APM, a medida que
avanam em sua socializao, como veremos adiante. A passagem entre essas divises fsicas, portanto, representa tambm
mudana de estado social.
No prdio anexo ficam a Sociedade Acadmica Tiradentes
(SAT) e a Biblioteca. H outras dependncias da APM que esto fora do quadriltero original, mas dentro ainda dos limites
da Fazenda, como a piscina, o campo de futebol e um ginsio
poliesportivo, que ficam a leste do prdio principal, e um outro
campo de futebol e o stand de tiro, do lado oeste.
no ptio interno, localizado no centro do prdio principal,
que acontece a maior parte da vida cotidiana da APM, incluindo
as solenidades especiais. Nele h um palanque especialmente
construdo para abrigar as autoridades reverenciadas nessas
ocasies especiais e os dois portes que definem os limites fsicos da APM. Esses so, portanto, seus trs pontos de relevncia
fsica e simblica: os prticos e o palanque que abriga os donos
do ritual, sujeitos para quem ou em nome de quem os rituais
so promovidos (DAMATTA, 1990, p. 96).
4

Dependendo do contexto em que estiver sendo utilizada, essa sigla poder significar
tanto o staff dos oficiais que compem o comando do Corpo de Alunos, quanto o
local fsico onde esse staff se instala; ou ainda, toda a coletividade dos cadetes. Nesse
momento, me refiro s instalaes.

67

O Parecer no 233/82 do Conselho Federal de Educao, homologado pelo Ministrio da Educao e Cultura, nos informa que a
Academia de Polcia Militar D. Joo VI um Estabelecimento
de Ensino Superior que tem por objetivo dar cultura jurdica,
policial militar e tcnico-profissional aos futuros Oficiais da
PMERJ.5 Para isso, ela classificada dentro da estrutura organizacional da PMERJ como um rgo de Apoio e Ensino
(OAE)6 que, junto com outros OAE, se encontram diretamente
subordinados Diretoria de Ensino e Instruo (DEI), responsvel pela poltica de ensino da PMERJ. Sua funo precpua,
portanto, educativa, pois objetiva formar o futuro oficial que
ali chega para realizar o Curso de Formao de Oficiais (CFO).
Mas, alm dessa atribuio da APM, ainda h uma outra que
a de socializar o indivduo, preparando-o para o mundo militar.
O acesso APM se d atualmente pelo Vestibular Unificado
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Aps os
exames intelectuais, os candidatos tm de passar ainda por toda
uma bateria de exames fsicos, mdicos e psicolgicos para s
depois serem incorporados APM. L eles so iniciados, mas
antes de comearem de fato o CFO, passam por um breve pero
do de adaptao. Depois de no mnimo trs anos de curso, os
cadetes so declarados Aspirante-a-Oficial e, a partir de ento,
so integrados s Unidades da Corporao, nas quais iniciam
efetivamente suas carreiras no oficialato.
Os alunos integram duas totalidades na APM. Sob o ponto de
vista acadmico, eles compem as trs turmas do CFO, cada
uma representando uma fase do curso. No aspecto disciplinar
militar, essas turmas tambm so, por ordem de antiguidade,
as companhias do Corpo de Alunos. Muito provavelmente o
5

Publicado no Dirio Oficial da Unio, no 104, de 03 Junho, de 1982.

As outras Unidades de Ensino da PMERJ so o Centro de Formao e


Aperfeioamento de Praas (CFAP), no qual realizado o Curso de Formao de
Soldado (CFSd), a Escola Superior de Polcia Militar (EsPM), onde so ministrados
o Curso de Aperfeioamento de Oficiais (para capites) e o Curso Superior de Polcia
(para majores e tenentes-coronis), e o Centro de Qualificao de Profissionais de
Segurana Pblica (CQPS), onde so realizados outros cursos na Corporao, como
o curso do QOA/QOE, para a formao de oficiais administrativos e especialistas a
partir do quadro de praas, e o EPAL/QOS para a formao do quadro de oficiais
mdicos.

68

Corpo de Alunos da APM seja uma equivalncia do Corpo de


Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras que, segundo
nos informa Celso Castro, teria sido uma das invenes criadas
pelo Exrcito no dia 25 de agosto de 1931 (CASTRO, 2002, p.
42). Mas enfim, ao mesmo tempo em que os cadetes pertencem
a uma turma do CFO, fazem parte tambm de uma companhia
do Corpo de Alunos. O Primeiro-ano, portanto, a sua 3a CIA;
o Segundo-ano a 2a CIA; e o Terceiro-ano, como turma mais
antiga do CFO, a sua 1a CIA.
Os profissionais no se improvisam...
No comeo eu nem sabia bem o que queria dizer [aquela frase],
mas j paguei muita suga com o veterano mandando a gente
repetir ela: OS PROFISSIONAIS NO SE IMPROVISAM E O
MANDO DEVE CABER AO MAIS DIGNO E COMPETENTE.
Em qualquer lugar que eu escuto [essa frase], eu me lembro da
Academia. (tenente PM 6 anos de Corporao trabalhando,
em 2003, num Batalho do interior do estado).

A Escola Profissional (EP) da ento Polcia Militar do Distrito


Federal (PMDF) foi, segundo os nativos, o embrio institucional da atual Academia de Polcia Militar D. Joo VI (CALDAS,
2006). Criada em 1o de dezembro de 1920, a EP se instalou primeiramente no Regimento Marechal Caetano de Faria, na atual
Cidade Nova, na qual permaneceu at 1960. Depois disso, ela
foi transferida para as instalaes da Fazenda dos Affonsos, na
qual funcionou como uma companhia do Centro de Instruo7
at 1967, quando obteve sua autonomia administrativa.
A ideia da Escola Profissional teria surgido do pleito apresentado por um grupo de sargentos ao ento Comandante Geral
da Corporao, General Jos da Silva Pessoa,8 para que fosse
criado um curso que posssibilitasse a ascenso de sargentos ao
oficialato pelo critrio do mrito individual. Aps a autorizao
7

Atual Centro de Formao e Aperfeioamento de Praas CFAP 31 de Voluntrios.

O General Jos da Silva Pessoa comandou a Corporao (Na poca, Polcia Militar
do Distrito Federal) no perodo de 11 de outubro de 1919 21 de setembro de 1924,
quando ento era comum oficiais superiores do Exrcito comandarem a polcia
militar. Somente a partir de 1983, com a transio democrtica, que a PMERJ passou
a ser comandada continuamente por coronis da prpria Corporao.

69

do prprio Ministro da Justia, Pessoa criou o Curso Profissional


(CP) que durava dois anos em regime de externato. O curioso
que, no obstante o ter sido criado essencialmente para sargentos, o CP era eventualmente desfrutado tambm por oficiais.9
Um fato que refora a EP como mito de origem da APM a
frase do seu criador que se encontra hoje materializada em
letras garrafais de ao polido, sobre o prtico do saguo da Ala
Norte. Ela traz os seguintes dizeres retirados da Ordem do Dia
produzida por Pessoa na formatura da primeira turma da EP:
Os profissionais no se improvisam e o mando deve caber
ao mais digno e competente. Naquela oportunidade, Pessoa se
dirigia nova gerao de oficiais, talvez anunciando a modernizao pretendida pela instituio, destacando o desempenho
individual com novo critrio de mrito para promoes, a ser
estabelecido a partir daquele momento. No entanto, interessante ressaltar, apesar da frase que hoje destaca um dos locais da
passagem simblica do futuro oficial pela APM, que os cadetes
atuais no vm mais de praas como os daquela primeira turma
da EP. Nesse sentido, creio que talvez ela fosse mais adequada a
um outro curso de formao que contempla praas para o oficialato, por meio deum concurso interno, como veremos adiante.
Foi em 19 de maro de 1951 que, por fora de um decreto do
ento presidente Getlio Vargas,10 a Escola Profissional passou
a se chamar Escola de Formao de Oficiais (EFO) e, em 20 de
Maro de 1956, por outro decreto presidencial, era adotado o
Espadim de Tiradentes como o smbolo do Cadete PM.
Em 1967, como eu j havia mencionado, foi criada a Inspetoria
Geral das Polcias Militares (IGPM) que, vinculada ao Ministrio
do Exrcito, fiscalizava e controlava as atividades das polcias
militares nos Estados, inclusive as de ensino. Naquele ano, a
EFO sofreu profundas mudanas: o programa do CFO foi re9

Pelo CP no s passaram oficiais da prpria corporao policial militar carioca, como


tambm os de outras instituies militares, como a Marinha de Guerra Brasileira,
por exemplo.

10

Como Polcia Militar do Distrito Federal, a corporao estava diretamente vinculada


ao Poder Executivo federal e, consequentemente, ao Presidente da Repblica. Dessa
forma ela, por vezes, conjugava trs nveis de deciso. (BRANDO, 1981).

70

formulado para atender demandas da ideologia da segurana


nacional.
Com a fuso dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro em
maro de 1975, as polcias militares desses estados PMEG e
PMRJ tambm se fundiram para formar uma nica corporao
que at hoje permanece com o nome de Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).11 O mesmo ocorreu com suas
escolas de formao de oficiais (EFO / PMEG e EFO / PMRJ)
que deram origem Escola de Formao de Oficiais da PMERJ
EsFO / PMERJ), que funcionou na Fazenda dos Affonsos, nas
mesmas instalaes onde at ento havia funcionado a EFO/
PMEG.
Em 19 de outubro de 1988, por fora do Decreto Estadual no
24.731, a EsFO recebeu sua ltima e atual denominao: Academia de Polcia Militar D. Joo VI. Na ocasio, o aluno da APM,
tal como havia ocorrido no Exrcito Brasileiro, passou tambm
a ser denominado cadete. Entretanto, tanto a terminologia
antiga aluno oficial , quanto a atual cadete , coexistem
concomitantemente na APM. Na prtica uma no excluiu a outra, pois ambas eram utilizadas indistintamente para se referirem
aos internos da APM.12 A justificativa apresentada poca por
alguns oficiais era eminentemente jurdica, j que o tal decreto
no teria fora legal suficiente para derrubar uma Lei (RIO DE
JANEIRO, 1981) que, dentro do que se entende no campo do
direito por hierarquia das leis, estaria numa posio superior.
11

A Polcia Militar do Estado da Guanabara (PMEG) foi criada por ocasio da


transferncia da capital federal para Braslia, substituindo a antiga PMDF. Na
oportunidade, foi concedida aos policiais militares da ento PMDF a opo de
continuarem a ter seus soldos custeados pelos cofres da Unio. Aqueles que assim
o fizeram, permaneceram vinculados ao governo federal e ficaram conhecidos como
federais. Assim, no momento da fuso, a atual PMERJ foi, na verdade, formada por
trs categorias de policiais: os federais, remanescentes da PMDF; os treme-terra,
que pertenciam Polcia Militar do antigo Estado do Rio (PMRJ), numa aluso ao seu
famoso 12o Batalho de Voluntrios da Ptria, conhecido como o Treme-Terra, por
ter combatido ao lado do exrcito imperial na Guerra do Paraguai; e os guanabaras,
remanescentes da Polcia Militar do antigo Estado da Guanabara e que hoje so
chamados de azules, numa referncia cor de sua farda, diferente do meganha
cqui treme-terra.

12

Assim, continuarei usando cadete, aluno oficial, ou, simplesmente, aluno para
me referir a meus sujeitos observados, da forma como os prprios nativos o fazem.

71

Um outro fato foi interessante nesse episdio: a definio do


nome de D. Joo VI para a APM. Embora a criao das PM nos
Estados tenha sido quase concomitante, este fato parece revelar
uma estratgia, agora da prpria polcia militar fluminense, de
reforar a Guarda Real de Polcia e no o Corpo de Guardas
Municipais Permanentes, que a sucedeu e que deu incio criao das demais polcias militares brasileiras, como o seu mito
de origem. Nesse caso, a PMERJ conseguiu se diferenciar pela
antiguidade, j que a GRP anterior aos Permanentes. Em outras palavras (simblicas), dizer que a PMERJ a mais antiga
entre as demais polcias militares brasileiras.
Quanto ao significado histrico de categoria cadete, recorro
a Jos Murilo de Carvalho (2006, p. 16), que a observou nas
origens do exrcito brasileiro como uma sobrevivncia do
cadetismo portugus. Para o referido autor, esse termo tinha
originariamente um sentido aristocrtico e, ao mesmo tempo
oligrquico, porque se referia a um ttulo reservado no apenas
nobreza, mas aos filhos da aristocracia de uma maneira geral.
Passava primeiro pelos critrios do sangue e da origem, para
depois privilegiar somente uma aristocracia militar. Foi dessa
forma que Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, pde
ter sido cadete aos cinco anos de idade (SOUZA, 2008). J na
Repblica, aps a Revoluo de 1930, essa categoria seria resgatada pelo idealizador da reforma da Escola Militar do Realengo,13
General Jos Pessoa Cavalcanti de Albuquerque,14 mas com um
outro significado. o prprio General Pessoa quem diz, numa
autobiografia inacabada, ter ressuscitado esse termo para que
ele passasse a representar uma nova elite social, uma verdadeira
aristocracia de mrito e no mais de sangue nem de origem
13

Unidade de Ensino do Exrcito Brasileiro que deu origem Escola Militar de Resende
e, posteriormente, atual Academia Militar das Agulhas Negras AMAN. Segundo
Celso Castro (2002, p. 38 et seq.), a reforma do Realengo se deu essencialmente
no plano simblico com a inveno de uma nova tradio a partir de smbolos
estratgicos como o Corpo de Cadetes, o uniforme de gala que remontava s fardas
do exrcito imperial, o Espadim de Caxias que era cpia em menor escala da espada
de Caxias, o novo Regulamento Disciplinar do Corpo de Cadetes etc.

14

Coincidncia ou no, o General Pessoa, idealizador da AMAN, era sobrinho do General


Jos da Silva Pessoa, que comandou a PMDF por duas vezes nos perodos de 1910/14
e 1919/24, bem como sobrinho de Epitcio Pessoa, Presidente da Repblica de 1919
a 1922.

72

como havia ocorrido em um passado recente (PESSOA apud


CASTRO, 1994, 2002, p. 38).
interessante observar que essas mudanas tambm foram se
reproduzindo, ao longo dos anos, como uma espcie de ressonncia simblica nas polcias militares brasileiras a partir do
roteiro traado por Pessoa para a reforma do Realengo. Embora elas perdurassem aps a ditadura militar, foi sem dvida
nesse perodo autoritrio que elas se manifestaram com mais
intensidade. Numa questo de tempo, as polcias militares transformariam suas escolas de formao de oficiais em academias
de polcia militar. Creio que essa reverberao simblica possa
explicar as vrias equivalentes culturais da AMAN que at hoje
se veem presentes na APM D. Joo VI.
Uma das poucas excees talvez tenha sido a presena da mulher na APM. As cadetes femininas (FEM) chegaram EsFO em
1983, sem nunca ter havido algo similar na AMAN. Provavelmente o modelo aqui tenha sido o da Polcia Militar do Estado de
So Paulo, que foi a pioneira nesse aspecto. Mas interessante
perceber, como o fez Soares (2001), que o restante do pas s
passaria a admitir a presena feminina em seus quadros aps a
autorizao concedida pelo Exrcito ainda no perodo militar.
Assim, a PM fluminense admitiria sua primeira turma de soldados femininos em 1982, j quase no final daquele perodo de
exceo, o que, segundo a autora, teve o intuito de modernizar
prticas e amenizar uma imagem j por demais desgastada pelo
autoritarismo militar. As 14 cadetes que naquele ano de 1983
ingressaram na EsFO deram origem ao ento Corpo de Oficiais
Feminino da Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que
mais tarde foi englobado pelo Quadro de Oficiais Combatentes,
no havendo, portanto, mais a distino terminolgica entre
oficiais femininos e oficiais masculinos.
Do espadim espada: Os ritos de passagem
As cerimnias mais importantes da APM j esto previamente
estabelecidas num calendrio anual de eventos (Ver Anexo I).
A partir delas que se realiza o planejamento acadmico anual

73

do curso. Essas solenidades ocorrem em datas histricas da


PMERJ, marcando a passagem dos cadetes pela APM rumo ao
oficialato. A primeira aconteceu em 13 de maio, dia da criao
da Guarda Real de Polcia. O ms de maio , nesse sentido, um
ms de festas para a Corporao, que comemora seu aniversrio com vrios eventos, incluindo aquele em que os cadetes
do Primeiro-ano da APM recebem seus espadins. A outra
solenidade o Aspirantado, que acontece no aniversrio de
criao da Escola Profissional, em 1o de dezembro, quando os
cadetes do Terceiro-ano so ordenados os novos Aspirantes da
PMERJ, ao conclurem seu CFO.
Nesses momentos, quando as portas da instituio so abertas
ao pblico externo, a rotina temporariamente suspensa para
que algum aspecto da cultura nativa seja dramatizado. Os elementos excepcionalmente encontrados ali, como os uniformes
de gala, a banda de msicos, os metais polidos, o palanque, as
autoridades civis e militares e o pblico de uma maneira geral,
compem um quadro especialmente recortado para tornar
especiais aquelas ocasies em que as tradies so reforadas.
Turner (2005, p. 35) chamou de crises de vida os momentos
que marcam algum ponto importante no desenvolvimento
fsico ou social do indivduo. As solenidades da APM ocorrem exatamente em momentos crticos da vida do cadete e da
PMERJ, quando vrios smbolos que representam o Estado se
fazem presentes, determinando quem vai ou no fazer parte de
sua estrutura de poder, primeiro como militares, depois como
aspirantes a oficial.
possvel perceber o discurso ritual da Corporao nesses
momentos, representando a cosmoviso de seu mundo de dentro, composto por temas que tratam do poder a ser concedido
gradativamente ao cadete pelo Estado, em sua trajetria social
pela APM. As duas solenidades juntas nos informam um ciclo
que percorre os trs anos de durao do Curso de Formao
de Oficiais (CFO). Esse ciclo aberto com o primeiro ritual, em
que os cadetes recebem seus espadins, e concludo no momento
em que esse espadim finalmente substitudo pela espada
que consagra o Aspirante. Podemos dizer que os dois eventos
74

fazem parte de uma mesma mensagem ritual, mesmo estando


separados por um relativo espao de tempo linear, possibilidade
que tambm j havia sido observada por Leach (1978, p. 35).
A mesma mensagem nos indica que a diferena entre os eventos
que a compem no est na qualidade, mas na quantidade de poder transmitido naqueles momentos aos sujeitos rituais. Nesse
sentido, interessante observar que o smbolo central desses
eventos parece ser mesmo a espada e o discurso do ritual,
que lhe promove um gradativo aumento fsico de espadim
espada , nos informa a prpria mudana de estado social dos
sujeitos. Veremos adiante nos captulos em que o CFO estiver
sendo abordado, que os dados etnogrficos das solenidades reforam essa ideia de ciclo da APM como um ritual de passagem
(VAN GENNEP, 1978).
Juntamente a essas solenidades mais elaboradas e identificadas
como tpicos rituais militares, uma outra, que marca o ingresso
do cadete no Corpo de Alunos da APM, ser ainda analisada.
Embora apresentando uma menor abrangncia, ela tambm
pode ser includa na mesma mensagem ritual produzida pelas solenidades anteriores. Antes, porm, vejamos um outro
evento que lhe ainda preliminar, chamado pelos nativos de
Adaptao.
A adaptao
Quem visita a APM pela primeira vez logo percebe a diferena
entre a realidade institucional construda15 ali, no seu mundo
de dentro, e a realidade cotidiana do lado de fora. O choque
ainda mais acentuado quando o protagonista um novato,
na mais pura acepo. Nesse caso, ocorre um estranhamento
inevitvel quando dois diferentes sistemas representacionais se
chocam de maneira dramtica. A esse respeito, vale lembrar as
observaes de Berger e Luckmann (2003) de que:
[...] o mundo consiste em mltiplas realidades. Quando passo
de uma realidade a outra, experimento a transio como uma
espcie de choque. Este choque deve ser entendido como cau15

Realidades construdas, no sentido construtivista de Berger e Luckmam (2003, p.


35).

75

sado pelo deslocamento da ateno acarretado pela transio. A


mais simples ilustrao deste deslocamento o ato de acordar
de um sonho (BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 38).

Por isso os cadetes quase sempre se referem a um choque, ao


lembrarem seus momentos iniciais na Academia. Nos primeiros
dias do chamado perodo de adaptao, a inteno dos veteranos (cadetes do Terceiro-ano) parece ser a de realmente chocar
os bichos (novatos), marcando dramaticamente a diferena
entre a realidade social de onde vieram e aquela nova realidade
que tero de interiorizar. Antes do ingresso efetivo na APM, os
nefitos passam por esse perodo de adaptao, durante o
qual recebem os ensinamentos bsicos do militarismo para a
sua insero no Corpo de Alunos. Segundo alguns veteranos,
a adaptao necessria naquele momento preliminar exatamente porque os nefitos ainda no sabem marchar e nem
cantar as canes militares. Este ento o momento em que
se estabelece um primeiro contato com exerccios de ordem
unida, regulando os movimentos sincronizados da marcha militar. Tais exerccios, que entre outras coisas servem para apurar
a velocidade de deslocamento da tropa e calcular as distncias
que elas percorrem em determinado espao de tempo, representam a mais fiel traduo do fazer militar. Nas solenidades, essa
velocidade cadenciada pelo som do bumbo da banda militar,
ou de uma fanfarra militar, no caso de eventos de menor porte.
Segundo o Manual de Ordem Unida do Exrcito Brasileiro,
usado tambm na PMERJ, as marchas militares se desenvolvem
com diferentes velocidades medidas pelo nmero de passos
que o militar d por minuto. Essa velocidade chamada cadncia
estar presente nas marchas em passo ordinrio e acelerado.
Na primeira, o passo do militar deve medir aproximadamente
75 centmetros de extenso e apresentar a cadncia de 116
passos por minuto; na segunda, o passo executado com uma
extenso de 75 a 80 cm, conforme o terreno, devendo apresentar
uma cadncia de 180 passos por minuto. H ainda o passo sem
cadncia, que se executa na amplitude que convm ao militar,
de acordo com a sua conformao fsica e com o terreno. No
entanto, ele deve conservar a atitude correta, a distncia e o
alinhamento no grupo. Nessa altura, o adaptando j deve ter
76

compreendido que o rompimento da marcha se d sempre


com o p esquerdo avanando no solo a partir de uma posio
esttica a de sentido , no comando de ordinrio marche!.
Logo depois desse primeiro passo, o som forte do bumbo dever
coincidir com uma batida forte do p direito do militar no solo.
Ou, como preferem os nativos, com o bumbo no p direito,
o que significa dizer que o paisano tem de se enquadrar disciplina militar.
Os adaptandos, como so chamados os nefitos no incio,
sero integrados ao Corpo de Alunos por meio de uma solenidade militar. Se no fossem preliminarmente adaptados na
caserna daquela maneira que ameniza o choque entre essas duas
realidades em foco, no teriam como participar desta primeira
solenidade logo que chegam APM.

Figura 2 Adaptandos e adaptadores

A adaptao dura em torno de duas semanas e representa


tambm um momento de reflexo para o nefito, que ali pode
decidir se aquela vida prenunciada pelas ralaes a que ele
realmente almeja. Enquanto isso, os adaptandos so estimulados
a desistirem do CFO pelos veteranos e at por alguns oficiais.
77

Os que optam por ficar e o conseguem, o fazem por muitos motivos: emprego, vocao militar, vocao policial, desejo do pai
ou de um parente policial militar etc. Mas a caracterstica dessa
iniciao que, diferentemente das iniciaes que ocorrem em
sistemas totais, ela voluntria, ou seja, a qualquer momento o
nefito poder pedir para sair.
Em campo, tive a oportunidade de observar algumas adaptaes de calouros. Numa delas, um veterano explicou-me
que: esses que de alguma forma j tiveram contato com a vida
militar, no sofrero tanto, mas os paisanos, que nunca tiveram experincia na caserna, vo ter que se adaptar melhor.
A presena dessas categorias prprias do universo militar
nos discursos nativos tornava a diferena entre as diferentes
realidades ainda mais chocante. Para tentar reproduzir esse
primeiro contato dramtico, tentarei remontar aqui minhas
prprias impresses iniciais de nefito, pois creio que nenhum
material possa ser descartado a priori, o que est de acordo
com a participao-observante proposta como metodologia,
na qual uma participao pretrita possa servir para estranhar
minha prpria cultura profissional.
Na primeira vez em que me deparei com aquela realidade estranha, a Academia de Polcia Militar D. Joo VI ainda no
tinha exatamente esse nome. Chamava-se, ento, Escola de
Formao de Oficiais; era incio de 1985 e eu havia acabado
de passar no vestibular para a carreira de Oficial da PMERJ.
Assim, tivemos, eu e os demais aprovados no vestibular da
Cesgranrio,16 de comparecer EsFO para realizar a ltima fase
do certame, composta de testes fsicos e psicotcnicos. Esses
testes so normalmente marcados para o incio do ano letivo,
enquanto os cadetes, principais protagonistas da APM, ainda
esto de frias. Antes de chegar s instalaes da EsFO, tive de
passar pelo porto da guarda do CFAP, que d acesso Fazenda
dos Affonsos. Ali, vi sentinelas realizando malabarismos com
seus fuzis numa efuso de continncias corporais dirigidas s
autoridades que acessavam a Fazenda. A complexidade e o
16

Atualmente o vestibular para a carreira de Oficial da Policia Militar realizado pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, juntamente com o vestibular para
as suas faculdades.

78

nmero das peripcias variavam conforme o grau da autoridade


que passava pelo porto. Aps me identificar, tive a entrada autorizada por um gesto marcial, mas sem peripcias reverenciais.
Depois de dobrar esquerda, avistei a uns 500 metros direita o
nico prdio que at ento havia na EsFO. Enquanto caminhava
em sua direo, tentava, intrigado, decifrar o protocolo gestual
promovido pelas sentinelas. Aquilo era totalmente incompreensvel para mim naquele incio. Achei melhor no fazer perguntas.
Talvez elas atrapalhassem a performance dos sentinelas, ou
parecessem uma insolncia de minha parte. Enfim, entendi que
o momento no era o mais apropriado. No entanto, deu para
perceber que eu havia entrado num mundo totalmente diferente
do que eu conhecia at ento. Novas formas, novos comportamentos, rituais em profuso, enfim, uma realidade bastante
diferente daquela a que eu estava acostumado e que eu s havia
visto emfilmes. Mesmo no tendo me deparado ainda com a
Escola em plena atividade, j dava para sentir o desconforto
que aquele estranho territrio causava. Apesar de at ento
no ter tido nenhuma experincia militar, a representao era
a de um quartel militar. Vrios elementos me indicavam isso:
tudo muito ordenado; a limpeza meticulosa; o monocromatismo sbrio; o ptio com marcaes numeradas que pareciam
racionalizar o espao fsico, todas aquelas caractersticas que
me conduziam ideia de um mundo militar. O fato de nunca
ter estudado numa escola militar e de, na ocasio do servio
militar obrigatrio, ter escapado providencialmente do lao do
recrutamento, sobrando com a ajuda de um surrado jeitinho
chamado excesso de contingente,17 me fizeram, portanto, um
autntico nefito na EsFO.
Aps os testes, j tendo sido aprovado, voltei para iniciar meu
Curso de Formao de Oficiais (CFO/85). Tambm passei pelo
prprio perodo de adaptao. Se na ocasio dos testes, enquanto ramos apenas candidatos, a EsFO havia-se apresentado
17

Apesar de o atual recrutamento militar no ter o carter dramtico e arbitrrio


que possua no incio do sculo passado (CARVALHO, 2006, p. 22), fazendo-se
hoje pelo sorteio universal, preciso enfatizar o fato de que a inescapabilidade
universal,pelo menos na poca do meu recrutamento, era um fardo que muitas vezes
podia ser estrategicamente burlado por meio das prticas sociais de uma sociedade
relacional como a nossa.

79

como um ambiente tranquilo, ainda que desconfortavelmente


estranho, o perodo da adaptao, ao contrrio, foi uma verdadeira loucura conduzida pelos cadetes do Terceiro-ano, a quem
devamos chamar reverencialmente de senhores veteranos.
Ensandecidos e parecendo querer demonstrar a qualquer custo
o rigor e a rusticidade da vida militar, eles insistiam para que
desistssemos do curso. Aos berros, nos ordenavam movimentos
incoerentes, cuja lgica naquele momento escapava minha
racionalidade. Ns, os bichos, tnhamos de pagar flexes,
pulinhos-de-galo e polichinelos aleatrios pelo ptio; ou,
ainda, encenar dramas fictcios e participar de brincadeiras que
chegavam s raias da humilhao.
Um dos motivos que aumentava a tenso daquele primeiro
encontro era o fato de que, at ento, eu no havia conseguido
decifrar smbolos to estranhos, que me iam sendo apresentados
de uma s vez. Estrelas e espadas costuradas como divisas nos
ombros dos uniformes dos veteranos, por exemplo, certamente possuam diferenas que talvez explicassem o porqu de
alguns mandarem mais e darem mais esporro que outros, talvez porque aqueles fossem os chefes. Entretanto, eu infelizmente
no tinha a menor condio de decifrar quem e quantos eram
esses chefes naquele momento. Antes que pudesse refletir
sobre tudo aquilo, ou ao menos tentar conseguir aprender a me
comportar dentro do coerentemente esperado naquele ambiente
para assim me livrar dos constrangimentos, recebi uma reprimenda do veterano: no atinei que meus cabelos compridos e
o camiso colorido fora da cala, normais para jovens do Rio de
Janeiro de meu tempo, seriam os alvos preferenciais das piadas
e dos trotes dos veteranos. Dali em diante fui perdendo cabelos
e roupas que lembravam uma identidade anterior para adquirir
uma aparncia, digamos, mais caserna. Quando percebi, virei
um nmero: oito cinco treze (8513), senhor!. Era assim que
tinha de responder ao ser eventualmente interpelado por algum
veterano. O nmero indicava o ano de minha entrada combinado com a posio da minha classificao no certame. Com ele
passaria a ser lembrado durante todo o CFO. Foi, portanto, por
meio desse ritual dramtico, que aniquilava vestgios de uma

80

vida paisana, que comecei a ingressar em minha mais nova


carreira profissional.
Depois de passar por todo esse perodo tenso que a adaptao, os adaptandos que permanecerem estaro prontos para
reproduzir, diante dos olhares orgulhosos de seus familiares
e amigos, o ritual da incorporao. Ali sero protagonistas de
um drama no qual eles prprios representaro a separao
que caracteriza o sistema castrense. Nesse sentido, os trajes
coloridos, a gesticulao desnecessria, a visvel falta da habilidade militar devem, portanto, desaparecer com o tempo. Por
enquanto so coisas fora de lugar, conforme afirma Douglas
(1991), isto , so perigosas impurezas, ambiguidades que os
nefitos-paisanos trazem da rua e ameaam a caserna.
A incorporao dos novos alunos
Comparada s duas solenidades mais importantes do calendrio
festivo da APM, a Incorporao dos novos alunos no possui
um aparato to pomposo ou elaborado quanto, mas apresenta
um significado aproximado do delas, j que tambm mostram
a iniciao gradativa dos cadetes pelo CFO. Primeiramente, ela
enfatiza a separao dos nefitos que, como indivduos, deixam
suas vidas paisanas e suas famlias biolgicas; depois marca
sua insero naquela nova comunidade, a de cadetes, de forma
coletiva, quando eles vestem pela primeira vez o fardamento da
caserna, o mug.18 Nesse ritual, portanto, a farda funciona como
smbolo instrumental, isto , como um meio para a comunicao ritual (TURNER, 2005). Antes do clmax, os novios trajam
o bichoforme, que o uniforme do bicho, composto basicamente por cala jeans, tnis e camiseta branca, representando
a primeira tentativa de se uniformizar o paisano; o primeiro
banho de caserna visando a purific-los das impurezas que trazem da rua. O nome uniforme sugestivo nesse momento em
que se pretende uniformizar as posturas do indivduo, para

18

Trata-se do 5o uniforme do Regulamento de Uniformes da PMERJ RUPMERJ,


uniforme de instruo que o nefito passar a usar na maior parte de sua rotina na
APM.

81

inseri-lo num grupo que se representa exatamente pela coeso


e uniformidade.

Figura 3 "Adaptandos" com o "bichoforme"

Na data marcada para a solenidade, logo pela manh, os novatos entram em forma do lado de fora da APM com seus trajes
civis. Ao toque de 3a CIA Avanar!, eles se deslocam, ao passo
ordinrio, comandados pelo aluno de maior hierarquia (mais
antigo) na APM, o cadete-padro. Depois, param no saguo da
Ala Sul e tomam a posio de Descansar! na entrada da APM.
Imediatamente frente deles est estendida uma fita que separa
simbolicamente esses dois mundos, a caserna e a rua. Ento, o
Comandante da APM caminha em direo aos adaptandos para
descerrar essa fita. Ao faz-lo, o porto da APM estar aberto
aos novos alunos.
O Mestre de Cerimnia anuncia os novos alunos e a Banda
de Msicos toca um dobrado militar enquanto eles, depois de
adentrarem o ptio, sobem aos seus alojamentos para trocarem
seus trajes civis pela farda da PMERJ. Aps se uniformizarem,
os nefitos entram em forma como os mais novos alunos-oficiais
do CFO. Nervosos pelo risco de esquecerem a coreografia re82

centemente aprendida, mas ainda no introjetada como hexis


corporal, eles quase no percebem a presena de parentes e
convidados que se espalham pelas alas no 2o andar do quadriltero principal da APM. Naquela data, a escola est especialmente
decorada como em todas as datas especiais , para receb-los
em seu palco ritual. O Corpo de Alunos j est no ptio, ao longo
da Ala Oeste, formado apenas por duas companhias (1a e 2a).
A sua frente est o Comandante do CA, pronto para receber
seus mais novos comandados. o Comandante do CA quem
determina ao corneteiro o toque de Sentido!. Em seguida,
o aluno-padro, ao lado do grupamento de novos alunos, comanda em voz alta: 3a CIA, Ordinrio, Marche!. A tropa ento
se desloca at a frente do palanque, local em que permanece
imvel para a execuo do Hino Nacional. A Banda de Msicos
executa a introduo que todos ns brasileiros conhecemos,
no que todos acompanham o mestre da Banda, cantando at a
ltima estrofe: ... ptria amada, Brasil!.
J com seus novos uniformes, os nefitos ouvem as seguintes
palavras do Mestre de Cerimnias em exaltao quele smbolo
que representa a nova vida na caserna. Ele agora o foco do
ritual:
Nossa farda iguala a todos que a envergam, independentemente
de sua origem social, sua cor e seu credo. Representa quase
200 anos de tradies histricas e de sacrifcios de vrios
companheiros que imolaram suas vidas em defesa da populao. Por esses motivos, s deve ser usada por quem possua
conduta ilibada e moral sem mcula. Estes jovens que vimos
desfilar garbosamente nossa frente, foram selecionados no
seio de nossa sociedade e se submeteram a vrios e rigorosos
exames, alm dos que so normalmente exigidos no vestibular
para ingresso em outros cursos superiores regulares. Orgulhai-vos, portanto, jovens alunos oficiais, pois vs sois os melhores
entre os melhores e deveis dedicar sua vidas a partir de agora,
defesa do nosso amado Estado do Rio de Janeiro. (Mestre
de Cerimnias).

Em seguida, os veteranos adaptadores, sob o comando de


seu Comandante de Companhia, deslocam-se para o centro do

83

ptio no qual colocam as insgnias brancas19 de Primeiro-ano


nas fardas dos adaptandos. Depois, o cadete-Padro apresenta
a nova 3a CIA do Corpo de Alunos j adaptada a seu novo
comandante, em frente ao palanque da APM. Nesse momento,
o Aluno-Padro representa todos os veteranos adaptadores
num ato que consagra o papel social do veterano naquele domnio cultural.
Depois dessa consagrao mltipla, a nova 3a CIA se incorpora
s demais companhias do Corpo de Alunos, entrando em forma
em passo acelerado, retaguarda do Segundo-ano. Todos
ento cantam a Cano do Policial Militar (Anexo II) e, em
seguida, a tropa, agora j completa, desfila em continncia
maior autoridade presente.
Aps o desfile, o Comandante do Corpo de Alunos ordena que
as companhias se dirijam s suas respectivas salas de aula, com
exceo do Primeiro-ano, que segue direto para o auditrio, no
qual assistir Aula Inaugural do CFO. Normalmente, a Aula
Inaugural ministrada pelo Comandante da APM ou por outra
autoridade que ele convide. Neste caso, tm prevalecido autoridades militares e judicirias. Depois da aula, est terminada
a solenidade de incorporao e, consequentemente, o ritual.
O espadim de Tiradentes
O Espadim de Tiradentes foi institudo em 1956 para uso dos
alunos da Escola de Formao de Oficiais, na gesto do General Joo Ururahy de Magalhes, comandante Geral da ento
Polcia Militar do Distrito Federal.20 Segundo a tradio nativa,
foi a partir da que o espadim se transformou no smbolo de
idealismo e destemor do Cadete PM. (BRASIL, 1956).
19

Essas insgnias, chamadas de luvas do mug, so confeccionadas em pano com um


espadim bordado. A cor vai variando gradativamente do branco ao dourado. Assim,
as insgnias do Primeiro-ano, como eu disse no texto, so brancas; as do segundo
so metade branca, metade dourada; e as do terceiro so todas douradas.

20

A nomeao de Oficiais do Exrcito Brasileiro para o comando da Polcia Militar foi


regra at a transio democrtica depois da ditadura militar, quando em 1983 assumiu
o Coronel da PMERJ Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Antes disso, apenas alguns
comandantes oriundos da prpria Corporao foram excees que comprovam essa
regra. Trata-se de um reflexo da aproximao histrica entre essas duas instituies.

84

O nome cultua a memria de Joaquim Jos da Silva Xavier, o Tiradentes, mrtir da Inconfidncia mineira e alferes da Tropa de
Cavalaria de Minas Geraes, considerado oficialmente o Patrono
das Polcias Militares do Brasil (BRASIL, 1946). No aspecto fsico,
trata-se de uma espada em dimenses reduzidas, acompanhada
de uma bainha que o protege. Em sua lmina est esculpida a
expresso latina Pro Lege Vigilanda (Para a vigilncia da Lei),
numa aluso atividade policial. No aspecto cultural, no entanto,
trata-se de mais uma equivalncia verde-oliva na PM, j que o
Exrcito Brasileiro criou seu Espadim de Caxias em 1931, para
ser utilizado pelos cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras
com lgica similar (CASTRO, 2002, p. 43).
O ritual do Espadim foi promovido pela primeira vez na Corporao21 em 15 de dezembro de 1956. A primeira turma a receb-lo
foi a Marechal Rondon,22 em cerimnia realizada no Estdio
do Clube Botafogo de Futebol e Regatas, na ocasio em que se
formava a turma de aspirantes Presidente Juscelino Kubitschek,
que recebeu o espadim de no 001. A partir de ento, todos os anos
novas geraes de cadetes recebem seus espadins em solenidades
especiais, agora marcadas oficialmente no dia 13 de maio.
Em 13 de maio de 2007 cheguei APM para assistir ao Espadim
de Tiradentes da turma Bicentenrio, nome escolhido em aluso aos 200 anos de existncia da PMERJ a serem computados
em 2009, no ano de seu Aspirantado. Aquela era mais uma
das muitas solenidades de entrega de espadins a que assisti em
minha carreira policial militar, s que dessa vez na condio de
pesquisador. A novidade era que ela seria realizada noite. No
ano seguinte, entretanto, ela voltaria sua forma diurna original,
confirmando a caracterstica de o ritual militar ser mesmo um
rito diurno (DAMATTA, 1990). No mais, todos os elementos

21

Houve, ainda, na antiga PMRJ, o Espadim de Castrioto, em homenagem ao tenente


Coronel do Exrcito Brasileiro Joo Nepomuceno Castrioto, primeiro comandante
daquela Corporao que se uniria PM carioca depois da fuso. Apesar de a primeira
solenidade de entrega de espadins ter sido realizada pela PM carioca, a lgica das
equivalncias a mesma.

22

Tal como Celso Castro (2002) havia observado no Exrcito, existe na PMERJ a
formalidade de se escolher o nome de um patrono para geraes de oficiais.

85

do ritual militar continuavam presentes naquele ano, conforme


estabelecia sua Ordem de Servio.23
Como novo elemento do ritual, a luz artificial incrementava a
carga dramtica da solenidade. Seu foco estava agora literalmente iluminado. O feixe de luz conduzia arbitrariamente o olhar
dos presentes para o que a instituio desejava ressaltar. Nesse
sentido, o canho de luz era um importante aliado do Mestre
de Cerimnias. Isso, por outro lado, permitiu-me atentar para
um sutil manejo ideolgico dos smbolos naquele ritual, em que
luz e voz guiavam as atenes das pessoas; ora para a Guarda
de Honra, ora para a Bandeira Nacional, ora para a Banda de
Msicos; e ora para os cadetes e seus espadins. Todos aqueles
elementos eram apresentados no momento certo e no lugar
certo, marcados de acordo com o script diligente do Mestre de
Cerimnias e de sua equipe cerimonial.
Desde antes do toque da alvorada festiva, a APM vinha se
preparando para entrar naquela temporalidade especial que
se diferenciava de sua rotina. Aquele era o tempo das solenidades; um tempo de festas. Aqui, quando a APM est sempre
enfeitada, com destaque para o palanque que receber as mais
altas autoridades do Estado, mesas e cadeiras so dispostas no
ptio para acomodar madrinhas, padrinhos, familiares e amigos
dos cadetes. uma festa aberta sociedade. Nas sacadas, h
pessoas se acotovelando entre as bandeiras dos Estados de
origem dos aratacas, cadetes de outros Estados que realizam
o CFO aqui na PMERJ. Neste sentido, o Espadim um ritual
abrangente que relembra o vnculo poltico da instituio militar
com a federao.
A Guarda-Bandeira24 entra no ptio em passo25 lento, ao som
de uma marcha militar que alterna acordes estilizados do Hino
23

Apenas para adiantar o que ser visto mais adiante, a Ordem de Servio (OS) um
documento formal da administrao policial militar detalhando minuciosamente
o planejamento a ser executado por ocasio de algum servio especial; onde cada
agente toma conhecimento de sua misso especfica dentro de todo o contexto.

24

Pequena frao de militares em torno do oficial que conduz reverencialmente a


Bandeira Nacional.

25

Segundo o Manual de Ordem Unida do Exrcito, o passo da marcha militar com


aproximadamente 75cm de extenso, em que o homem ainda preserva a atitude
militar numa cadncia de 116 passos por minuto. Nas solenidades essa velocidade
cadenciada pelo som do bumbo fornecido pela banda militar, ou, no caso de eventos
de menor porte, poder partir de uma fanfarra militar.

86

Bandeira, com pancadas fortes do bumbo. Essas batidas so


sinais certeiros para que sua frao altamente treinada possa
mudar de direo com maestria, seguindo seu trajeto ao longo
do ptio at o local em que a Bandeira Nacional homenagea
da. Depois disso, ela se incorpora tropa. Vale lembrar que a
honra de usar esse smbolo da ptria em solenidades tambm
foi concedida PMERJ pelo Exrcito Brasileiro, para situaes
especficas. Trata-se de um ritual nacional, portanto.
Aos poucos, as autoridades chegam para disputar as vagas do
palanque central. Foram adaptadas tendas para, eventualmente,
abrigar autoridades menores. Nesses momentos tradicionais,
medalhas e condecoraes so especialmente ostentadas por
civis e militares orgulhosos. Aguardando ainda a chegada de sua
excelncia o Governador do Estado, esto outras autoridades,
entre elas o Secretrio de Segurana, o Presidente do Tribunal
de Justia e o Comandante Geral da PMERJ. Finalmente o
Governador chega e o Comandante do CA, que nesses eventos
comanda a Guarda de Honra, apresenta-lhe a tropa formada. Sua
excelncia o dono do ritual passa em revista a tropa, acompanhado pelo Comandante Geral; depois, se dirige posio
de destaque que ocupar no palanque at o trmino do evento.
Antes, porm, h homenagens. Primeiro so agraciados policiais
militares feridos gravemente em servio com a medalha Nossos
Bravos; depois, so personalidades civis e militares que recebem a medalha Mrito D. Joo VI,26 entre essas personalidades,
o prprio governador. Creio que essa prtica, comum no Imprio
e ressuscitada na Repblica a partir de 1936,27 carea de uma
etnografia prpria, o que no o meu foco aqui. Talvez ela nos
26

Criada pelo Decreto no 5.72, de 17 de junho de 1982, concedida por ato do


Comandante Geral da PMERJ, na semana de aniversrio da Corporao, como parte
dos eventos comemorativos. O nome faz referncia ao Criador da Guarda Real de
Polcia da Corte, consagrando o mito de origem da Corporao, ao reforar suas
tradies.

27

A autorizao para criar e outorgar insgnias como essas foi concedida pela primeira
vez Corporao aps a campanha do Paraguai, em que o Corpo de Permanentes
participou com unidades incorporadas aos 12o e 31o Corpos de Voluntrios da Ptria.
J em 1936, foram criadas ordens honorficas militares representativas da Repblica
em moldes muito semelhantes aos das antigas ordens imperiais, algumas, at, trazidas
de Portugal.

87

lembre de longe a tradicional investidura dos cavaleiros realizada pela Coroa britnica, quando tambm havia uma distribuio
de ttulos de nobreza a cidados e autoridades civis e militares
(LEACH, 2000). Os indicados para serem agraciados com esse
trabalho simblico podem, inclusive, ascender aos diversos
graus na hierarquia da ordem, a partir de novas indicaes,
desde que, claro, faam parte da rede certa. Aqui, mrito
no condiz com desempenho individual, caracterstica da ordem moderna igualitria que confere prestgio ao mais capaz,
mas trata-se de um prestgio outorgado a considerados por
condies relacionais, num sentido mais prximo ao de uma
honra mediterrnea, presente em sistemas morais baseados
no patronato e em relaes clientelistas. Mesmo excees que
corroborariam esse argumento, como a Medalha Prmio Duque de Caxias, que no Espadim serve para premiar o cadete
primeiro colocado do CFO, parecem ter naquele cerimonial um
sentido de outorga, pois so concedidas em conjunto com todas
essas outras honrarias.

Figura 4 A Guarda bandeira

A homenagem demora alm do previsto e, por isso, os oficiais do Gabinete do Comando Geral (GCG), que do suporte
cerimonial solenidade, esto tensos. A corneta orienta os
88

movimentos dos presentes na consagrao das medalhas. Os


militares abatem suas espadas e, aps a troca desses mimos
relacionais, os homenageados finalmente deixam o palco ritual.
Os alunos do Primeiro-ano j esto formados no saguo da Ala
Norte, aguardando o momento certo para entrarem em cena.
Eles esto trajando pela primeira vez a tnica azul-petrleo,28
mas ainda no portam os espadins que recebero no decorrer da
solenidade. Seus uniformes contrastam com as fardas histricas
usadas pela Guarda de Honra que lembram as da Guarda Real
de Polcia da Corte.
A Guarda de Honra est formada ao longo da Ala Oeste com
as outras companhias do Corpo de Alunos. Seus respectivos
oficiais, juntamente com o comandante e o subcomandante, esto acompanhados pelo cadete porta-smbolo do CA. A Guarda
Bandeira j est incorporada tropa, frente das companhias,
logo atrs da frao de comando da Guarda de Honra. O tenente
que a comanda conduz a bandeira nacional acompanhado pelo
cadete-padro que, por sua vez, conduz o estandarte da APM.
Essa parada militar emoldurar o quadro ritual at o final, dando
o destaque pretendido ao ritual.
Com todo o dispositivo pronto (ver croquis do Anexo III), o
corneteiro d o toque de 3 Companhia Avanar!. o sinal. O
capito Comandante do Primeiro-ano est agora no foco luminoso frente do grupamento. Ele ordena seu deslocamento em
passo ordinrio at o centro do ptio, com a Banda executando
uma marcha militar. Chegando ao centro do palco ritual, os alunos procuram se orientar ficando sobre bolinhas numeradas
pintadas no cho para marcar seus locais no dispositivo da formatura. Ali, fazem o alto! e, logo depois, o esquerda-volver,
ficando de frente para o palanque das autoridades. O pblico
se silencia e detm seus movimentos com a entrada em cena
dos cadetes. A Bandeira Nacional conduzida por sua guarda-bandeira, num passo mais lento que o ordinrio, at a frente
do grupamento. Logo depois, a banda executa o Hino Nacional
que cantado por todos os presentes.
28

Uniformes de passeio e solenidades estabelecido como o 3o uniforme do RUPMERJ.

89

Figura 5 Os "donos do ritual" no palanque das autoridades

Terminada a execuo do Hino e com a bandeira j deslocada


a seu local na Guarda de Honra, o Comandante da 3a CIA d
aos cadetes a ordem de Apresentar Armas!. Eles erguem o
brao direito com rapidez militar e prestam, em coro, o seguinte
compromisso.
Ao ingressar na Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro,
prometo regular minha conduta pelos preceitos da moral,
cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver
subordinado e dedicar-me inteiramente ao servio da ptria,
ao servio policial militar, preservao da ordem pblica
e a segurana nda comunidade, mesmo com o sacrifcio da
prpria vida. (Compromisso prestado pelos cadetes durante
o ritual do Espadim).

Ao trmino do compromisso, a banda executa uma marcha


dramtica. O comandante do grupamento ordena que os trs
primeiros colocados saiam de forma, separando-os de seu grupo. A seu tempo, cada um deles toma a posio de sentido,
gritando automaticamente o nome de guerra. Depois, os trs se
deslocam em passo ordinrio at uma distncia aproximada de
dez passos frente do palanque, no qual recebem seus espadins
das mos das mais altas autoridades presentes. O primeiro a
receb-lo das mos do Comandante Geral da PM o terceiro
90

colocado da turma. O segundo colocado recebe, logo depois,


oespadim das mos do Secretrio de Segurana; e, finalmente, o
primeiro colocado recebe seu espadim das mos do Governador.
Nesse momento, o espadim passa a ser o foco do ritual. Flashes
fotogrficos, inclusive os da imprensa, espocam na direo dos
cadetes e das autoridades consagradoras. Ao mesmo tempo, o
Mestre de Cerimnias profere palavras alusivas a Tiradentes,
instituio do Espadim, ao dia das mes, enfim, a toda uma
srie de fatos que visivelmente aumentavam a carga emocional
daquele momento, prenunciando o clmax do ritual.
Depois, os primeiros colocados prestam continncia s autoridades j com suas armas simblicas que acabaram de receber,
para, em seguida, embainh-las. Agora a vez dos demais cadetes receberem seus espadins. O Mestre de Cerimnias convida,
ento, padrinhos e madrinhas a entreg-los a seus afilhados.
A tropa relaxa da imobilidade no momento em que todos os
cadetes recebem seus espadins. A banda prossegue tocando
dobrados suaves e a carga emocional aumenta com a msica.
Muitos cadetes e parentes choram; outros esto efusivos; outros, ainda, tensos e retrados. Aps aproximadamente uns dez
minutos, padrinhos e madrinhas so convidados pelo mestre de
cerimnias a se retirar do palco ritual, voltando a seus lugares,
nas laterais do ptio. A tropa fica em sentido e os cadetes se
preparam para prestar o compromisso ao espadim. A Bandeira
Nacional se desloca, ento, com sua Guarda-Bandeira, parando
frente dos cadetes do Primeiro-ano que, cumprindo as ordens
de seu Comandante de CIA para perfilar-espadins! e, depois,
apresentar espadins!, retiram os espadins das bainhas e os
levam automaticamente frente de seus rostos. Nesse momento, proferem as seguintes palavras rituais: Recebo o Espadim
de Tiradentes, Smbolo de Idealismo e Destemor. Rufam os
tambores.

91

Figura 6 A consagrao do Espadim de Tiradentes. Guarda


de Honra ao fundo

Logo depois, os cadetes do Primeiro-ano perfilam seus espadins


e os recolocam nas respectivas bainhas para iniciarem um desfile individual, um atrs do outro, em continncia Bandeira
Nacional. Todos os policiais militares passam a cantar a Cano
do Policial Militar (Anexo II) e, logo depois, o Primeiro-ano se
retira do palco ritual para o saguo da Ala Norte. Agora a
vez de a Guarda de Honra prestar seu preito de tropa ao dono
do ritual e, depois, se retirar. Em seguida, o Primeiro-ano, que
aguardava no saguo da Ala Norte, regressa a seu local no dispositivo original para o tradicional fora de forma em frente
ao palanque. Nesse momento, o Comandante da 3 CIA grita
um Fora de Forma, Marche! e os cadetes deixam a formao
original, gritando palavras alusivas turma, com a vibrao
que caracteriza aqueles momentos: o fim do ritual.
O aspirantado
As duas principais solenidades do ciclo da passagem do cadete
pela APM tm estruturas muito parecidas, variando um ou outro
elemento para adequar sua mensagem simblica, como o caso
92

da disposio dos seus smbolos focais (espadim e espada),


como veremos adiante. Nesse sentido, tanto o Espadim quanto o Aspirantado comportam outros eventos festivos que se
prolongam alm do ritual propriamente dito; ambos tm seus
bailes que ocorrem em momentos posteriores s cerimnias
de outorga; ambos tambm abrem espaos para a entrega de
medalhas; e ambos consagram coletivamente sujeitos rituais,
tanto outorgantes, quanto outorgados.
No caso do Aspirantado, o nmero desses eventos ainda
maior. Os primeiros deles formam a Solenidade de Declarao
de Aspirantes, na qual se inclui tanto a entrega das espadas,
quanto a entrega de medalhas da Ordem do Mrito Policial
Militar.29 Alm do ritual de entrega das espadas, h tambm um
Culto Evanglico, uma Missa de Beno das Espadas e o Baile
das Espadas que, todavia, no estaro focalizados neste trabalho. O baile das espadas ocorre num momento posterior ao da
solenidade de declarao, quando o recm-consagrado aspirante
apresenta seu novo status sociedade. Na prtica, significa
que ele passa a poder frequentar um novo crculo profissional:
o dos oficiais. Ali, aps separar-se de sua antiga comunidade
de cadetes, o novo Aspirante de fato integrado ao crculo de
oficiais. Nessa oportunidade, o aspirante ostenta suas novas
insgnias: a farda branca do oficial (2 Uniforme do RUPMERJ)
e a primeira estrela da carreira que carrega nos ombros.
Eventualmente, a solenidade de declarao tem sido promovida
noite, mas, tal qual o Espadim, ela normalmente um rito
diurno. Nesse caso, ela apresenta a seguinte sequncia: nas
vsperas da solenidade, a Academia recebe uma pintura nova
e o ptio enfeitado cuidadosamente com as bandeiras dos
Estados da federao. O palanque ornamentado com flores.
Tudo preparado para se prestigiar a turma que em breve
29

Ordem honorfica criada pelo Decreto no 5.720 de 17 de julho de 1982, para premiar,
ordinariamente, policiais militares que se destacaram no exerccio da profisso e,
excepcionalmente, outras corporaes militares e instituies civis, bem como
personalidade brasileiras ou estrangeiras que tenham prestado assinalados servios
Polcia Militar. Trata-se da mais importante insgnia da PMERJ, com seus cinco
graus hierrquicos (Gro-Cruz; Grande-Oficial; Comendador; Oficial; e Cavaleiro),
onde o prprio Governador do estado o seu Gro-Mestre. A Ordem administrada
por um Conselho cujo Presidente e Chanceler o Comandante Geral da PMERJ.

93

deixar a APM. O dia amanhece com toques diferenciados e


mais alegres do clarim, anunciando a alvorada festiva, o que
indica que a APM ingressou na temporalidade do ritual. Logo
depois, a Bandeira Nacional hasteada, com o Corpo de Alunos
formado apenas pelas companhias que no sero consagradas
naquele dia.
Diferentemente do dia a dia, a Guarda de Honra veste traje de
solenidade que imita o fardamento original da antiga Guarda
Real de Polcia da Corte, na cor azul-escuro, com barretina,
charlateiras e botes dourados; e ainda, com cala e polainas
brancas. Os cadetes esto armados de antigos mosquetes FO
1902 calados com baionetas. Todos esses detalhes tradicionais apontam para o mito de origem da PMERJ, ali novamente
reforado. Provavelmente tambm digam respeito a uma
equivalncia militar, pois, como vimos, a tradio de usar
fardamento imperial j havia sido, segundo Castro, inventada pelo Exrcito brasileiro para AMAN, desde 1931, com seus
prprios propsitos (CASTRO, 2002, p. 43).
Logo depois, o Corpo de Alunos, com duas companhias apenas, toma seu dispositivo no ptio, como Guarda de Honra da
solenidade. Ela comandada pelo major, Comandante do CA,
e permanecer durante quase todo o ritual de frente para o palanque, mas numa posio secundria, atrs do local reservado
aos formandos.
Depois da Guarda de Honra com a banda de msicos frente,
a vez de a Guarda Bandeira chamar a ateno, no momento em
que o pavilho nacional integrado tropa formada (Anexo IV).
Imvel e impecvel, ela aguarda a chegada do representante do
Estado que presidir a solenidade como a mais alta autoridade
presente. Assim que ele chega ao ptio, anunciado pelo mestre
de cerimnias. O Comandante da Guarda de Honra d a ordem
para que o toque do exrdio daquela autoridade seja executado pelo corneteiro. Logo em seguida, o Comandante da APM
e o Comandante Geral da PMERJ se dirigem ao governador, ou
a quem o represente naquele momento, que passa em revista a
tropa formada. Aps a revista, todas as autoridades assumem,
enfim, seus lugares no palanque para o incio do ritual.
94

A ordem hierrquica orienta as posies. O centro, em destaque,


reservado maior autoridade do Estado presente. Depois
que ele ocupado, o Comandante da Guarda de Honra deixa
a formatura em passo ordinrio, acompanhado apenas pelo
corneteiro que marcha a seu lado, e, ao chegar frente do local
em que est a maior autoridade, solicita-lhe a autorizao para
iniciar a solenidade. Aps ter sido concedida a autorizao, o
ritual se inicia.
Nesse momento, antes de ser declarado aspirante, o cadete-padro passa o estandarte que havia conduzido durante todo
o ano enquanto esteve na Guarda Bandeira, s mos de seu
sucessor. Logo depois, todos cantam o hino nacional e, no
raro, os convidados civis aplaudem ao trmino, deixando os
militares constrangidos, inclusive os cadetes que aprenderam
que o militar no bate palmas, em especial para smbolos da
ptria diante dos quais devem ter uma atitude respeitosa e,
acima de tudo, continente.
Os espadins so devolvidos pela turma que ser consagrada
no ritual das espadas e, para isso, os cadetes passam individualmente em passo ordinrio, depositando-os, um a um, sobre a
mesa posicionada no ptio para aquele fim. O fato de trajarem
o 3o uniforme (tnica azul-petrleo) e de ainda portarem o espadim significa que ainda so cadetes. Aqui, pareceu-me que
a substituio desses smbolos, com destaque para o espadim,
representava a morte sacrificial do cadete, necessria nos rites
de passage para o renascimento de um novo ser, com o novo
status social adquirido na agregao (TURNER, 2005; VAN
GENNEP, 1978). Corroborando esse argumento, os cadetes
sobem a seus alojamentos para trocar suas fardas antigas pelo
novo fardamento de oficial. Os signos do status anterior usados
pelos cadetes desde o espadim so, nesse momento, deixados
para trs, lembrando a separao do indivduo e sua antiga
comunidade de cadetes.
Tal como ocorrera na Entrega dos Espadins, abre-se um
parntese para a outorga de honrarias, nesse caso, para que
as medalhas da Ordem do Mrito Policial Militar sejam concedidas a personalidades homenageadas pela PMERJ, Civis e
95

militares, chamadas frente do palanque para receberem suas


condecoraes. A distino ocorre na hierarquia dos seus graus
que vai de Cavaleiro a Gro-Mestre (Governador), passando por
Comendador, o que novamente remonta ao paradigma militar
original.
Terminada a entrega das medalhas, a tropa de formandos,
com seu comandante de companhia frente, se desloca at o
centro do ptio, parando em frente ao palanque. O Mestre de
Cerimnias faz a leitura da ordem do dia do Comandante Geral
da PMERJ, que normalmente congratula os novos aspirantes,
destacando aquele momento especial de suas carreiras e as responsabilidades que adquiriro dali para frente com a mudana
estatutria. O clima de emoo, alguns choram, outros ficam
em silncio. muito provvel que, naquele momento, estejam
recordando todo o esforo desprendido na passagem pela APM.
Assim, se misturam sentimentos de dor e prazer, orgulho e alegria, xtase e responsabilidade.

Figura 7 Grupamento de Formandos

Aps a leitura da ordem do dia, os trs aspirantes primeiros


colocados da turma so destacados para receberem suas espadas das mos das mais altas autoridades presentes. A partir
dali, o foco estar com eles. O destaque o mrito, no caso o
96

desempenho dos primeiros colocados que reforam ao mesmo


tempo a hierarquia das autoridades consagradoras. Essas autoridades normalmente so: o governador, algum oficial general
das Foras Armadas e o Comandante Geral da PM. Os distintos
formandos, ento saem de forma, um aps o outro, para prestarem suas continncias individuais quelas autoridades e, delas
receberem em contrapartida suas honradas armas simblicas.
Alguns cadetes juntamente com o primeiro colocado da turma
recebem prmios pelos desempenhos apresentados ao longo dos
trs anos do CFO. Entre esses prmios est a Medalha Duque
de Caxias.30 Aps esse reconhecimento ritual, os cadetes premiados se retiram e voltam a seus lugares na formatura.
A seguir, chega o momento em que os demais formandos recebem suas espadas das mos de seus padrinhos e madrinhas, que
so convidados a irem at o ptio para fazerem pessoalmente
a entrega. um momento de descontrao, em que a ordem
do ptio momentaneamente desconfigurada com a presena
catica de paisanos. A banda de msicos executa dobrados e
baladas, quebrando a formalidade militar. O mestre de cerimnias profere os nomes dos formandos, um aps o outro, ao som
de uma msica suave, at que ela prpria, a banda de msicos,
interrompe suas execues para dar o sinal para que os convidados se retirem do ptio. O mestre de cerimnias refora
o pedido e, no terceiro toque, os formandos retornam a suas
posies originais no dispositivo original da formatura, j sem
seus padrinhos e convidados.
No momento seguinte, a bandeira nacional se desloca sem
sua guarda para o centro do ptio, frente dos formandos. O
Comandante da companhia dos formandos (1a CIA) ordena,
frente dela, o ombro armas e, em seguida, o apresentar armas
para que o compromisso dos aspirantes perante a Bandeira Nacional, sociedade e instituio policial militar seja prestado.
Os aspirantes levam suas novas armas ao rosto, como haviam
feito com seus espadins h quase trs anos para, em seguida,
proferirem as seguintes palavras rituais:
30

Instituda pelo Decreto no 29.363, de 19 de maro de 1951, para agraciar o aluno que
concluir o CFO em primeiro lugar, com grau oito ou superior.

97

Figura 8 O primeiro colocado recebe a sua espada


Ao ser declarado aspirante-oficial da polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro, assumo o compromisso de cumprir
rigorosamente as ordens legais das autoridades a que estiver
subordinado e dedicar-me inteiramente ao servio da ptria,
preservao da ordem pblica e segurana da comunidade,
mesmo com o sacrifcio da prpria vida. (Aspirantes-oficiais
durante o ritual da Espada).

Ao trmino da ltima palavra proferida pelos aspirantes, a banda


executa um dobrado com batidas fortes no tambor, revelando
o clmax do ritual. O rufar dos tambores anuncia os mais novos
aspirantes da PMERJ.
Aps esse compromisso, os Aspirantes desfilam em continncia
Bandeira Nacional, deixando o palco ritual, acompanhados,
em seguida, pela Guarda de Honra que desfila em continncia ao
governador e que tambm deixa o ptio. Somente a turma dos
novos aspirantes retorna ao centro do palco para o ltimo e
tradicional fora de forma comandado por seu Comandante de
Cia. Com os nervos flor da pele, os novos aspirantes bradam
o grito de guerra da turma, arremessando seus quepes para o
alto numa exploso de emoes. o final do ritual de passagem
pelo CFO.

98

Consideraes preliminares sobre o simbolismo da


espada
O rei pediu minha espada Minha espada lhe ofertei Com
lmina de Toledo E copo de ouro de lei
O rei desejou meu elmo Escudo e couraa lhe dei Sempre os
usei nas batalhas Lutando pelo meu Rei
O rei me pediu coragem Na guerra me desdobrei Lutei com
ardor e raa Pela glria do meu rei
O rei pediu meu cavalo Negro, que eu mesmo domei. Sem
relutar fui infante Para atender ao meu rei
Caso o rei pedisse a honra Da farda, que sempre honrei De
corao contristado Diria no ao meu rei
Dei-lhe a espada de Toledo Com copo de ouro de lei Mas a
honra um bem de famlia Que dos meus ancestrais herdei
Nbrega de Siqueira31

Os elementos presentes nas solenidades da APM esto arranjados numa gramaticalidade que produz determinada
comunicao ritual com significados compartilhados pelos
nativos. Nesse sentido, creio que os rituais militares sejam instrumentos dessa ao social que comunica, como sugeriu Turner
(2008), o programa monoltico baseado no poder, trazendo
as representaes sociais dos nativos, ou melhor, daquele
grupo nativo que os organiza e que, naquele momento, possui o
monoplio de sua produo simblica. Por outro lado, percebi
ainda nas prticas sociais da APM que tais representaes tambm produziam identidades e comportamentos diferenciados.
Neste captulo, alm da anlise dos rituais j tratados at aqui,
pretendo adiantar alguns elementos observados em outros pontos da pesquisa com o fito de elaborar uma anlise preliminar
da espada enquanto smbolo nativo, sobretudo nessas prticas
cujos dados mais completos sero apresentados adiante. Essa
anlise inicial vai-se consubstanciar mais tarde, quando as tais
observaes da dinmica social da APM forem detalhadas, demonstrando como os smbolos despertam comportamentos ou
emoes manifestas, como argumentava Turner (2005).
31

Poema que se encontra emoldurado num quadro que decora a sala do CMT do BOPE.
Agradeo ao amigo CEL PM Mrio Srgio de Brito Duarte por essa lembrana.

99

J havia dito que as solenidades observadas na APM apresentavam, num primeiro momento, a maneira de a instituio ver
e classificar o mundo. Para fins de anlise, optei por agrup-las
de acordo com suas caractersticas observadas num discurso
institucional. As que escolhi apresentavam uma elaborao
sbria que reforava a viso de mundo oficial, porquanto eram
promovidas pelo grupo de maior poder no campo, primeiramente pela cpula dirigente da APM e, depois, pela cpula da prpria
PMERJ. Se, por um lado, a Incorporao dos novos alunos
tinha um cunho interno porque era promovida pelo comando
da APM para a insero do nefito na estrutura de poder local,
as outras cerimnias pareciam tratar de uma estrutura mais
ampla de poder. Nesses casos era o prprio Estado quese fazia
presente na figura de seus representantes diretos que, naquelas
oportunidades, comandavam o ritual. Eram, pois, suas estruturas de poder que ali se reforavam na medida em que smbolos
nacionais eram reverenciados, com destaque para a Bandeira
Nacional, normalmente incorporada tropa policial militar em
solenidades desse tipo.
Inseridos na gramaticalidade simblica daquelas solenidades,
estavam os valores do militarismo. A hierarquia, na forma das
posies estatutrias que o indivduo vai alcanando em sua
trajetria poltica pela instituio; a disciplina, representada
pela espera paciente do indivduo pelo momento certo de adquiri-las juntamente com as prerrogativas a elas vinculadas; e a
antiguidade, reforada pela ascenso coletiva, porm ordenada,
de uma gerao de indivduos em que cada um sabe e respeita
o lugar que se deve ocupar nessa totalidade. Nesse sentido, a
passagem dos cadetes se assemelha ascenso gradativa dos
nefitos Baktaman da Nova Guin, em seus rituais de passagens
(BARTH, 1975).
Outro elemento interessante de se observar nessas solenidades
foi a emoo que, acumulada durante todo o perodo em que
os cadetes estiveram realizando o seu CFO, era desprendida
com mais nfase nos momentos de clmax ritual. Na cultura
militar, ela entendida como vibrao. Percebi que ali ela era
estimulada, canalizada e, em seguida, aflorada por um propsito
100

ritual. Assim, a emoo desprendida e a forma gradativa de o


indivduo ser inserido nessas comunidades polticas pareciam
revelar, naqueles ritos, um sentido de controle social (TURNER,
1974, 2005).
Creio que outras referncias tambm possam nos ajudar na
anlise desses rituais e na decodificao dos cdigos que os
smbolos rituais suscitam. Turner (2005), por exemplo, via o
smbolo como a menor unidade do ritual que ainda mantm
as propriedades especficas do comportamento ritual (TURNER, 2005. p. 49). Sua abordagem processualista permitiu-lhe
observar smbolos rituais em ao sob diferentes nveis de
interpretao, nos quais no se incluam somente os significados fornecidos pelos nativos, ou aqueles que os antroplogos
entendiam ser os significados para os nativos. Dessa maneira,
Turner observou as maneiras como os prprios nativos se
comportavam em contato com seus smbolos, j que para ele
importavam ainda as emoes manifestadas na prtica nativa.
Por isso, suas anlises sobre a estrutura simblica do ritual,
incluindo caractersticas como a polissemia e a condensao
de significados (TURNER, 2005, p. 49-82), se mostraram estimulantes, justamente por permitir abordar essas emoes que
os smbolos despertam.
Observando ainda a polarizao como uma outra caracterstica dos smbolos rituais, Turner agrupou seus significados em
dois polos: um ideolgico, ou normativo, e outro sensorial, ou
ortico. O primeiro diz respeito ordem moral e social do grupo, retratando a estrutura de poder de onde o ritual produzido.
O segundo relacionado aos aspectos grosseiros esensuais
suscitados a priori pela aparncia concreta do smbolo e que,
portanto, no teriam a necessidade imediata de anlises mais
abstratas. O resultado simblico do ritual seria, ento, a condensao de significados dspares que faz com que um polo se
manifeste no outro, tornando, assim, prazeroso o normativo.
Vejamos pois, por esse prisma, as solenidades da APM.
So seus prprios smbolos instrumentais que representam
a passagem gradativa que eu havia observado na iniciao dos
cadetes. Primeiramente na Incorporao, a farda do nefito
101

trazia a figura de um espadim bordado como insgnia nos ombros; depois, o prprio espadim fsico que o cadete recebia do
Estado; e, no fim do percurso, por ocasio do Aspirantado, a
espada substitua o espadim no momento em que o indivduo,
deixando de ser cadete, ingressava em sua nova comunidade
poltica. Essa comunicao ritual representa, por meio do
crescimento performtico da arma que representa o oficial,
o crescimento simblico do prprio indivduo no universo da
caserna, que se d, a seu tempo, e com a aquiescncia do Estado, senhor do mandato poltico transmitido por meio desses
instrumentos simblicos naqueles momentos solenes.
Creio que at aqui j tenhamos pelo menos duas possibilidades
de entender os ritos da APM, o que, obviamente, no esgotaria a
nossa compreenso. Enquanto a primeira diz respeito leitura
de uma mensagem no discurso ritual, a segunda, que veremos
a posteriori, seria a possibilidade de entender esses ritos com
a experiencializao concreta dos smbolos rituais a partir das
prticas nativas, por meio de sua decodificao metafrica. Nesse caso a espada o smbolo dominante dos nativos (TURNER,
2005, p. 50). Ela est presente na vida nativa como um fim em
si mesmo, tal como a rvore mudyi dos ndembu. Ao mesmo
tempo ela tambm funciona como um smbolo instrumental
em cada um desses ritos, quando devidamente arranjada como
elemento semitico para realizar uma comunicao ritual com
determinado propsito. Vejamos ento seu manejo simblico
nesses rituais, desde o momento em que ela se apresenta inicialmente em sua forma miniaturizada de espadim.
Com a espada os indivduos so ordenados nessas diferentes
estruturas de poder, tanto as locais que dizem respeito burocracia interna da APM, quanto aquelas mais amplas, relativas ao
poder poltico do Estado. Nesse caso, o discurso ritual nativo
parece nos informar que o cadete dever busc-la por meio da
passagem que representa o CFO. Primeiramente, adquirindo
o direito de ser militar, quando para isso tem de se livrar dos
resqucios paisanos por meio da adaptao. Nesse sentido,
o sofrimento, muito presente nessa primeira etapa, que o
legitima a envergar a farda da caserna, com seus espadins
102

brancos bordados nos ombros (luvas) que vo ficando dourados


medida que os diferentes estgios do CFO so cumpridos.
No Segundo-ano eles j no so mais totalmente brancos, mas
metade brancos, metade dourados. No terceiro, so totalmente
dourados. Na solenidade do Espadim, o cadete, que naquele
momento j se livrou de seus resqucios iniciais de paisano, est
pronto para receber sua arma simblica: a miniatura da espada,
ou seja, a espada em potncia que, nesse sentido, representa
o maior objetivo da passagem, a ser alcanado mais tarde no
Aspirantado.
interessante ainda observar que, j na incorporao, os
papis sociais da passagem so consagrados ritualmente. O
do veterano (adaptador), como o iniciador que auxilia ooficial na iniciao do nefito e que se faz representar ali pelo
Cadete-Padro que entrega o bicho (adaptando) a seu novo
Comandante de Companhia, e o do oficial, como o modelo a
ser seguido, quando a espada que o representa almejada pelo
cadete em seu trajeto de passagem.
A espada , portanto, uma arma simblica usada nas prticas
rituais por oficiais e que, assim, est presente como um fim na
vida do cadete. O relato abaixo nos revela essa instrumentalidade ritual da espada, ao confirmar seu uso mais frequente por
oficiais que trabalham na APM.
No meu Aspirantado no comprei espada para economizar.
A gente, quando sai oficial, no usa mesmo, n? Ento, pedi
emprestada a do meu veterano, mas quando eu fui [transferido
para] trabalhar na Academia, tive que comprar uma, porque
aqui todo mundo t sempre enfiado em formatura. (Capito,
com nove anos de servio, trabalhando na APM).

Segundo as regras nativas, a espada distingue o oficial das praas nas solenidades. No momento em que ela desembainhada,
revela-se ainda a antiguidade do oficial que a empunha. Ele
o comandante da tropa formada, ou seja, o oficial de maior
patente ou, em outras palavras, o mais antigo. Os movimentos
realizados pelos que esto no comando so diferentes daqueles
executados pelos demais. Alm disso, ela tambm nos revela
o foco ritual no momento de seu clmax, ao ser utilizada nas
103

solenidades que compem o ritual de passagem do CFO, quando


o oficial , enfim, ordenado.
Quanto forma como ela era empunhada nos rituais da APM,
seu polo concreto pareceu-me antecipar os conflitos simblicos
que observei entre cadetes femininos e cadetes masculinos,
como veremos adiante nos captulos que tratam das prticas sociais da APM. Caractersticas flicas representando a virilidade
masculina caracterstica que marca a hexis corporal do cadete,
pareceram-me antecipar a APM como espao tipicamente masculino, como de fato observei.
De outro lado, seu polo normativo tambm pode nos informar
o objeto letal que, em outras pocas, despertava o medo pela
possibilidade de derramar o sangue alheio na defesa do trono
real. Esse direito assimtrico que, segundo Foucault, teria ocorrido com o surgimento do soberano na sociedade ocidental, se
baseava no fato de o monarca poder dispor da vida daqueles que
o ameaavam, pois o poder formulado como de vida e morte
, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver. Afinal
de contas, era simbolizado pelo gldio (FOUCAULT, 2009, p.
148). Por esse prisma, a espada representa um poder letal que
se traduz na virilidade e na destreza do guerreiro a servio do
soberano, isto , seu poder de gldio. Assim, o polo normativo ou ideolgico da espada indicaria essa estrutura de poder
absoluto do monarca a que a ela parece se vincular.
Nesse sentido, foi interessante observar que os rituais da APM
pareciam revelar exatamente caractersticas de uma honra
pela espada, na medida em que ela era outorgada pelo representante do poder, dentro de um certo contexto de smbolos
histricos como a coroa ibrica, o nome da APM e o fardamento,
por exemplo, que, ao serem exibidos como metforas rituais,
informavam relaes e pactos palacianos. Ao invocarem essas
estruturas de poder, os ritos da APM parecem demonstrar uma
vontade de submisso e de lealdade a um poder absoluto.
Foucault tambm nos informa sobre as transformaes ocorridas a partir do sculo XIX nas estruturas do poder de gldio,
quando as prprias estruturas da sociedade ocidental se
104

transformaram. Nesse sentido, a espada que representava um


poder absoluto, passa a representar, segundo Foucault, um bio-poder, quando deixa de objetivar a morte e o derramamento
de sangue sobretudo o dos no nobres , passando a objetivar
a vida, ou melhor, o controle dessa vida que se tornava cada vez
mais til quelas novas estruturas polticas. Com a lei, portanto,
o gldio passou a representar o poder controlado que se encarregava da utilizao da vida (FOUCAULT, 2009).
Fora algum exagero, possvel que os argumentos de Foucault
indiquem mesmo a transformao daquele poder absoluto do
soberano num poder policial, controlador da vida e controlado
pela Lei. Seno, vejamos que o polo sensorial do gldio nos
indica, por seus aspectos flicos, tanto a virilidade masculina,
quanto a vida. No momento em que o sexo foi colocado em
discurso pela vontade de saber, a espada passou a representar
a potencialidade da vida, ou seja, o poder de control-la e, exatamente por isso, o gozo em poder control-la (FOUCAULT, 2009).
Nesse sentido, observei ainda nos ritos da APM que a espada
era ostentada maneira como faziam, por exemplo, os nefitos dos ritos de puberdade ndembu, em sua passagem para
a sociedade dos guerreiros (TURNER, 2005): ela desembainhada no clmax ritual e elevada frente do rosto e, depois, do
corpo, demonstrando o crescimento ritual da potncia que ela
representa na sequncia da mensagem ritual. No Espadim,
as feridas desses falus simblicos do incio a um processo de
cicatrizao que s se conclui no momento em que os novos
aspirantes exibem suas espadas, daquela mesma maneira, no
Aspirantado, quando prontas para o comando e a servio da
biopoltica. A espada do aspirantado no seria ento a espada brbara da violncia sem regras, mas a espada civilizada,
ainda que com a honra do cavaleiro ordenado na fonte do poder
soberano. A forma de sua concesso queles que obtiveram as
melhores notas em seus concursos, talvez possa confundir s
vezes de forma proposital, como veremos adiante honra com
desempenho, caracterizando o militarismo representado na
PMERJ que, naqueles momentos, muito provavelmente evoca
os valores tradicionais da honra e da lealdade.
105

A teoria poltica pode nos revelar, ainda, o pacto da gnese do


Estado nacional, no momento em que prncipes vassalos ofertavam suas espadas a um s rei, tornando-se assim cavaleiros e,
consequentemente, oficiais de um nico exrcito real (ELIAS,
1993). Nessa tica, a espada representaria o monoplio do uso
da violncia, smbolo do pacto poltico original do Estado-nao.
Aquele que assim a empunhava, o fazia porque tivera a honra
de se tornar cavaleiro real, passando a representar a prpria
estrutura de poder que o consagrava.
De alguma maneira, as solenidades da APM acabam por naturalizar essas estruturas de poder baseadas na honra e na lealdade
que representam a caserna, ou melhor, a posio que ela ocupou
no pacto original do Estado-nao. Aqui tambm interessante
observar que o Espadim de Tiradentes, numa comparao lgica
com o Espadim de Caxias, o patrono do Exrcito Brasileiro,
indica a posio subalterna que historicamente a PM teve de
ocupar em relao ao Exrcito. O fato de Tiradentes ter sido
escolhido como patrono de todas as Polcias Militares brasileiras
sintomtico nesse sentido, mesmo porque seu nome foi definido poca pela cpula do Exrcito. Se o Exrcito tinha como
patrono um fidalgo oriundo de tradicional famlia de militares,
que havia alcanado o maior posto e todas as condecoraesque
sua instituio poderia ter-lhe concedido, Joaquim Jos da Silva
Xavier, o Tiradentes, era um alferes que muito provavelmente
nem teria chegado ao oficialato, oriundo dos estratos mais
subalternos da sociedade mineira de sua poca. Creio que essa
metfora tenha reforado a subordinao legal e ftica das PMs
ao Exrcito.32 Dessa forma, os ritos militares na PM no seriam
assim to anacrnicos, pelo menos sob o aspecto jurdico, j que
dramatizam uma situao legalmente vigente no plano poltico
nacional no que diz respeito PM.
Aqui, a categoria misso, muito presente na cultura militar, me
pareceu adequada para pensar o significado da disciplina militar
naturalizado naqueles momentos. Nesse sentido, a ordem do
dono, ou seja, daquele que ali representa o poder consagrado e
consagrador, tornar-se-ia tambm sagrada, no no sentido trans32

Agradeo ao meu orientador, Roberto Kant de Lima, por me auxiliar nessa percepo.

106

cendental da Escola Clssica Britnica, mas no sentido como a


sociedade foi representada pela Escola Sociolgica Francesa
a partir de Durkheim, isto , como algo dado e inquestionvel
(DURKHEIM, 2003). Creio que o pacto militar original possa,
assim, ter-se adequado aos elementos do pacto formador de
nosso prprio Estado nacional, a todo o momento lembrado
nas solenidades da APM por meio de seus smbolos histricos.
Naquele momento, a matriz moderadora de um liberalismo
jacobino foi adaptada pela elite poltica que conformava ideologicamente o Estado nacional brasileiro. Talvez por isso que
tambm podemos perceber um carter nacional e holstico nos
discursos rituais das solenidades promovidas na APM. Parece
que, por reflexo dessa matriz moderadora, o que ocorreu por
aqui foi mesmo uma conciliao, em vez da sucesso do poder
do gldio por um bio-poder, como havia sido observado por
Foucault na sociedade ocidental. Foi exatamente essa conciliao do moderno com o tradicional que o Braso da PMERJ
(Anexo V) pareceu-me informar, quando insistentemente
preservado nos ritos da APM. Ao analis-lo mais detidamente,
pude perceber que, junto com as garruchas que simbolizavam
a atividade policial moderna, ele trazia a Coroa de D. Joo VI,
fundador da Guarda Real de Polcia, e, dessa forma, representava o poder absoluto do monarca portugus no Brasil. Dentro
dessa lgica, seria possvel intuir que a arma de fogo, isto ,
a arma de fato do policial, representava ali uma extenso da
tradicional espada do guerreiro.

107

A rotina1

Interiorizando a Caserna
por meio da socializao que os indivduos se tornam aptos
para participarem dos diferentes sistemas sociais, compartilhando cdigos, ideias e significados comuns. Berger e Luckmann
(2003) definem socializao como a ampla e consistente introduo de um indivduo no mundo objetivo de uma sociedade
ou de um setor dela. Sob essa tica, so vrias as instituies
como a famlia, a escola, os grupos profissionais, entre outras,
que promovem a socializao dos indivduos, interiorizando
neles uma realidade que os capacita ao convvio social. Os
mesmos autores ainda subdividem esse processo em dois tipos
de socializao: a primria, que o indivduo experimenta na infncia, e em virtude da qual se torna membro da sociedade, e a
secundria, como qualquer processo subsequente que introduz
um indivduo j socializado em novos setores do mundo objetivo
de sua sociedade (BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 175).
fcil verificar, portanto, que socializaes secundrias
ocorrem com uma frequncia cada vez maior nas sociedades
contemporneas, graas sua caracterstica voltil e fragmentada. A maior diviso do trabalho social e o leque mais amplo de
escolhas permitem que o indivduo contemporneo faa parte,
voluntariamente, de diferentes grupos ao mesmo tempo, o que
obviamente no ocorreria em sociedades de pequena escala.
1

Os dados etnogrficos que constam neste captulo foram colhidos na primeira fase
da pesquisa, realizada entre os anos de 2003 e 2004, e os documentos pesquisados
referem-se a dados consolidados do final de 2003.

Se a famlia promove a socializao primria, corporaes


profissionais e instituies militares so, entre outros exemplos, instituies que promovem socializaes secundrias,
inculcando nos indivduos determinada tica juntamente com
uma parcela de conhecimentos tcnicos objetivos.
No caso da escola, h um programa sistemtico continuado que
organiza o saber tecnolgico e normativo a ser transmitido s
futuras geraes. Entretanto, dentro da lgica de separao, as
academias militares so, ainda, alm de escolas de formao,
instituies de sequestro que, na definio de Foucault (2007),
separam indivduos de um mundo exterior para incorporar-lhes,
eficientemente, um ethos militar, por meio de um processo de
normalizao. Portanto, ao lado de um currculo formal, existe
ainda toda uma pedagogia informal que o regime de recluso
das academias militares proporciona.
Pierre Bourdieu (1980), por seu turno, tratou da incorporao
de um habitus que, em linhas gerais, definiu como um sistema de disposies (atitudes) duradouras funcionando como
estruturas estruturantes, isto , como princpios geradores e
organizadores de prticas e representaes sociais interiorizadas pelos indivduos em razo de suas condies objetivas de
existncia. Sob essa tica, o indivduo naturalizaria esquemas
de percepo e de ao caractersticos, interiorizando determinado habitus. Bourdieu distingue ainda dois componentes
desse habitus: um ethos que compreende sistemas de valores
em estado prtico, isto , esquemas em ao com uma moral
praticada inconscientemente, e uma hexis corporal, que so
posturas ou atitudes (disposies) que o indivduo adquire
durante sua trajetria de vida, ou seja, sua histria praticada.
Ao identificarmos uma hexis tpica no fazer militar, podemos
encontrar similitudes entre o habitus de Bourdieu, as tcnicas corporais maussianas e o processo de normalizao de
Foucault. Nesse sentido, ao separar indivduos da realidade
social do mundo da rua, as academias militares realizam uma
socializao prpria que compreende ainda os momentos informais na interiorizao do habitus militar que caracterizaria a
caserna. Creio que, ao materializar a ideia do ethos e possibi110

litar a anlise da varivel poltica, o habitus bourdieusiano seja


compatvel com as observaes de uma instituio de sequestro
como a APM.
Seguindo o modelo organizacional burocrtico do Exrcito, as
polcias militares possuem, tal como o equivalente verde-oliva,
rgos especialmente designados para a formao profissional
de seus integrantes. Pelo fato de os militares e, por consequncia, os policiais militares estarem escalonados em dois grandes
segmentos hierrquicos (praas e oficiais), a instituio militar
reserva locais distintos para a formao de recrutas (praas
novatos) e de cadetes (futuros oficiais). Na PMERJ, a formao
dos primeiros ocorre em torno de nove meses, no Centro de
Formao e Aperfeioamento de Praas (CFAP), enquanto a
dos cadetes ocorre em, no mnimo, trs anos, na Academia de
Polcia Militar (APM) D. Joo VI.
As questes surgidas aqui so: Que tipo de socializao a
PMERJ, como instituio que conjuga dois mundos distintos, cada qual com sua lgica e seus valores, oferece a seus
indivduos? E, depois: Seria legtimo inferir a existncia
de momentos especiais na PM em que essa viso dualstica
de mundo interiorizada, j que percebemos um continuum
depapis institucionais a partir de tcnicas corporais definidas
(a policial e a militar)?
A hiptese a de que uma instituio hbrida, do tipo XY, tipificaria papis tambm hbridos, do tipo XY e, assim, dependendo
das circunstncias e do momento em que a socializao policial
militar ocorra ou ainda, da legitimidade que essa realidade possa
ter junto a seus indivduos, surgiro (ou no) conflitos, dadas
as diferenas ideolgicas entre os tipos X e Y. Nesse sentido, a
PMERJ produziria uma socializao bastante interessante para
a anlise antropolgica, que, sendo priorizada nesse trabalho,
poder nos permitir uma melhor compreenso de sua realidade
institucional.
Nesse intuito passarei a privilegiar, a partir daqui, o cotidiano
dos cadetes na Academia de Polcia Militar D. Joo VI, com
observaes acerca de sua socializao profissional, onde tento
111

analisar por meio de minhas categorias analticas a maneira pela


qual o sistema de valores que compe essa realidade institucional inculcado junto com o saber profissional disponibilizado
aos futuros oficiais da PMERJ. Meu foco, portanto, estar
voltado tanto para essas ideologias praticadas, quanto para o
que faz com elas se manifestem da forma como se manifestam.
A estrutura organizacional
A APM dispe de pessoal prprio para o desempenho de suas
atividades funcionais.2 Entretanto, os agentes diretamente
responsveis pela funo precpua da APM so os oficiais do
Corpo de Alunos e os oficiais da Diviso de Ensino. Os primeiros cuidam das polticas institucionais do comando da APM,
notadamente dos assuntos de ordem militar, e os ltimos, da
execuo das polticas de ensino da Corporao, o que nos revela haver uma diviso social do trabalho de formao na APM.
J os cadetes esto na outra ponta da linha desse processo de
formao, como alvos das polticas institucionais de ensino e
instruo da Corporao.
O comando exercido por um oficial superior com patente de
coronel ou tenente-coronel que, ao mesmo tempo, o diretor
de ensino da APM. A administrao segue o modelo burocrtico das organizaes militares e, nesse sentido, se divide em
Comando e um Estado Maior (EM) chefiado pelo subcomandante, que tambm o subdiretor de ensino. Ele traz, alm das
sees administrativas comuns s demais unidades da PMERJ,
sees responsveis pela funo especfica de ensino. Existem,
portanto, quatro sees genricas no EM da APM, semelhantes
s que encontramos nos demais batalhes da PMERJ. A P/1
responsvel pela poltica de pessoal, a P/2 pela inteligncia
policial militar e assuntos sigilosos, a P/4 pela logstica, e a P/5
pelos assuntos civis. A diferena fica por conta da terceira seo
do EM (P/3) que, enquanto nas demais unidades da PMERJ se
encarrega do planejamento operacional de policiamento, na
2

So seus oficiais e praas e, ainda, os funcionrios civis contratados para


desempenharem algumas funes administrativas.

112

APM recebe o nome de Diviso de Ensino e realiza o planejamento pedaggico.


Alm dessas sees, o EM possui ainda o Corpo de Alunos (CA),
um modelo reduzido de um batalho de infantaria,3 funcionando
com finalidades pedaggicas prprias para a introduo dos
valores militares. Para isso, o CA, como j disse, est dividido
em trs companhias (CIAs) que, por sua vez, esto subdivididas em pelotes. Cada companhia do CA comporta uma das
trs turmas de cadetes do CFO. Por ordem de antiguidade, a 1a
CIA a turma do Terceiro-ano do CFO; a 2a CIA a turma do
Segundo-ano; e a 3a CIA, a do Primeiro-ano.
O Comando do CA funo de major que, por sua vez, auxiliado por capites comandantes de companhias e tenentes
comandantes de pelotes. Assim, cada aluno-oficial faz parte de
uma totalidade organizacional dentro da APM. Primeiramente
de um peloto, depois de uma companhia e, por fim, do Corpo
de Alunos. Esse todo militar organizado como nas instituies
militares, com base na hierarquia e na disciplina, conceitos esses formalmente definidos no Estatuto dos Policiais Militares.4
Nesse momento interessante observar como e onde o aluno
da APM est situado no escalonamento hierrquico da PMERJ.
Como podemos observar (Anexo VI), os indivduos na PMERJ
esto escalonados hierarquicamente em linha de antiguidade
o que permite que todos saibam quem manda e quem obedece.
Eles tambm so divididos em dois grandes grupos: o dos oficiais, organizado em postos e localizado na parte superior da
pirmide hierrquica, e o dos praas, organizado em gradua
es que ocupam a parte subalterna dessa mesma pirmide.
Graduaes e patentes se dividem em diferentes graus hierrquicos que do nomes s categorias profissionais e, ao mesmo
tempo, tambm se organizam em crculos hierrquicos. Em
ordem crescente de hierarquia, essas categorias se dividem
nas seguintes graduaes, soldado (Sd PM), cabo (Cb PM),
3

Alis, todas as chamadas Unidades Operacionais da PMERJ, isto , seus Batalhes


de Polcia Militar (BPM), so, como vimos, espelhados nesse modelo por motivos
histricos.

(RIO DE JANEIRO, 1981). O captulo III trata da Hierarquia e da Disciplina.

113

terceiro-sargento (3o Sgt PM), segundo-sargento (2o Sgt PM),


primeiro-sargento (1o Sgt PM) e subtenente (Sub Ten PM); e nos
seguintes postos, segundo-tenente (2o Ten PM), primeiro-tenente
(1o Ten PM), capito (Cap PM), major (Maj PM), tenente-coronel
(Ten Cel PM) e coronel (Cel PM). Os crculos hierrquicos
agrupam postos e graduaes distintos, cujas relaes de convivncia so reguladas pelo Estatuto do Policial Militar. Coronis,
tenentes-coronis e majores formam o chamado crculo de
oficiais superiores; capites compem o crculo de oficiais
intermedirios; e primeiros e segundos tenentes, o crculo de
oficiais subalternos. J os praas se renem todos num nico
crculo chamado crculo de praas.
As duas categorias de praas especiais, aspirante-a-oficial
(Asp Of PM) e aluno-oficial (Al Of PM), ocupam uma posio
intermediria nesse escalonamento. Enquanto os primeiros
podem frequentar o crculo de oficiais superiores, os ltimos
esto autorizados pelo Estatuto a faz-lo somente em ocasies
especiais. A hifenizao dos nomes dessas categorias nos d
uma ideia do significado especial que elas tm dentro do sistema representacional nativo, com a indefinio caracterstica
de sujeitos em formao, na passagem de um estado a outro.
A segmentao hierrquica que divide a instituio em dois grandes grupos profissionais implica socializaes diferenciadas,
bem como culturas profissionais distintas e complementares.
Um que representa a elite poltica preparada para comandar e
elaborar as polticas institucionais da Corporao, e o outro,
composto dos chamados elementos de execuo. Como j
vimos, os oficiais geralmente ingressam como cadetes na APM,
onde realizam o CFO, passando a fazer parte do chamado Quadro de Oficiais Combatentes (QOC);5 j os praas entram como
recrutas no Centro de Formao e Aperfeioamento de Praas
(CFAP), no qual realizam o Curso de Formao de Soldados
(CFSd).
5

O oficial combatente aquele que possui uma qualificao geral, equivalente do


infante no Exrcito. Alm do QOC, h ainda o Quadro de Oficiais de Sade (QOS), o
Quadro de Oficiais Capeles (QOCpl), o Quadro de Oficiais Administrativos (QOA)
e o Quadro de Oficiais Especialistas (QOE).

114

Isso no quer dizer que os que vm de praa no possam


tambm chegar ao oficialato. Mas, para isso eles tm de realizar uma formao especfica, cuja passagem social, por no
ser nem to longa, nem to marcada pelos rituais militares
como a dos cadetes na APM, faz com que esses oficiais que
vieram de praa sejam vistos pelos oficiais de academia,
ou oficiais combatentes, como oficiais de menor expresso.6
Existe um concurso interno para que praas, combatentes ou
especialistas,7 possam ascender ao Quadro de Oficiais Administrativos (QOA) e ao Quadro de Oficiais Especialistas (QOE)
respectivamente. No entanto, somente sargentos ou subtenentes
(critrio da antiguidade), aprovados neste concurso interno ou
indicados (critrio do mrito), fazem o Curso de Habilitao aos
Quadros de Oficiais Administrativos e Especialistas (CHQOA/
QOE). Aqui, eles j ingressam automaticamente no posto de
tenentes estagirios. Com o curso, que normalmente tem a durao de um ano letivo e se realiza no Centro de Qualificao dos
Profissionais de Segurana Pblica (CQPS) outra OAE localizada na Fazenda dos Affonsos , esses oficiais podem chegar ao
ltimo posto de seus respectivos quadros que, atualmente, o
de Major PM. Em ambos os casos, eles passam a ser chamados
costumeiramente de oficiais QOA, ou simplesmente QOA,
o que os diferencia do combatente, que pertence ao Quadro
de Oficiais Combatentes (QOC).
Apesar de haver essas outras possibilidades de se alcanar o
oficialato na PMERJ, a que ora nos interessa pelos objetivos
deste trabalho aquela em que o paisano socializado na
6

Existem ainda outros meios, alm desses dois, de o indivduo ingressar no oficialato
da PMERJ. Nesse sentido, h um concurso externo para graduados da rea de sade
realizar o Estgio Probatrio para Adaptao ao Quadro de Oficiais de Sade (EPAO/
QOS), e um concurso para o Estgio Probatrio de Adaptao ao Quadro de Oficiais
Capeles (EPAO/QOCpl).

O Decreto Estadual No 1.411, de 19 de agosto de 1977, classifica profissionalmente


os praas na PMERJ dentro do grupo chamado Qualificao Policial Militar Geral
(QPMG). Este se subdivide em Qualificaes Policiais Militares Particulares (QPMP).
A QPMG, ento, compreende dois grandes grupos de QPMP: o Combatente (QPMP
0) e o Especialista, este ltimo composto pelas demais qualificaes particulares:
Manuteno de Armamento (QPMP 1); Operador de Comunicaes (QPMP
2); Manuteno de Mecanizao (QPMP 3); Msico (QPMP 4); Manuteno de
Comunicaes (QPMP 5); Auxiliar de Sade (QPMP 6); e Corneteiro (QPMP 7).

115

APM, passando diretamente da rua para a caserna para se tornar oficial combatente, sem ter necessariamente sido praa.
O curso de Formao de Oficiais
O Curso de Formao de Oficiais (CFO) funciona em regime de
semi-internato por um perodo mnimo de trs anos.8 Em cada
ano letivo, novos alunos so incorporados e, assim, trs turmas
de cadetes coexistem num mesmo espao fsico. A cada ano, geraes so promovidas e substitudas por etapas consecutivas.
O Primeiro-ano a turma recm-chegada APM; o Segundo-ano se encontra num estgio intermedirio da passagem e o
Terceiro-ano a turma dos veteranos, que est na etapa final
do CFO se preparando para a consagrao no Aspirantado.
A classificao de cada indivduo no CFO, como disse, obtida
com a pontuao das provas intelectuais somada ao grau de
avaliao conceitual concedido pelos oficiais da APM. Essa
classificao determina a antiguidade do cadete para o ano
seguinte. Assim, ocorre uma disputa pela melhor classificao, o que representa direitos e prerrogativas regularmente
diferenciados, tais como melhores salrios no futuro, j que
no ranking da antiguidade, quem termina o CFO na frente, sai
na frente por ocasio das primeiras promoes no oficialato.9
Diz-se, portanto, que antiguidade posto, porque ela diferencia individualmente cada agente dentro do sistema hierrquico
militar. Por excelncia, a antiguidade um valor positivo do
mundo militar, que possibilita, nos mnimos detalhes, a previso
de relaes assimtricas com regras que privilegiam o superior.
Nesse sentido, entender os significados dessa categoria nativa
pode nos ajudar a entender melhor o saber prtico racionalizado
na caserna.10
8

A concluso do CFO poder se estender a, no mximo, quatro anos contnuos, uma


vez que s permitida uma nica reprovao. No entanto, em caso de trancamento
de matrcula o CFO poder se estender a at mais dois anos de afastamento,
completando-se, assim, o tempo mximo de concluso permitido ao cadete.

As promoes at o posto de capito na PMERJ, atendem somente ao critrio de


antiguidade. Aps essa fase, o critrio de merecimento passa tambm a ser includo.

10

Dois fatos que j vimos anteriormente como estratgias simblicas ilustram bem
como a antiguidade posicionada dentro do sistema de valores da cultura militar.
O primeiro diz respeito escolha do nome do patrono das Polcias Militares e o
segundo, escolha do nome da prpria APM.

116

A estrutura social da APM se modela por essas relaes formais.


As diferenas que elas estabelecem so perceptveis em funo
das diferentes parcelas de poder que a instituio confere assim
a cada um de seus indivduos de maneira controlada, isto ,
disciplinada. Essa estrutura se mantm ainda por meio de um
elaborado sistema de vigilncia e controle, em razo da hierarquia (militar) com que se organiza o espao social da APM.
Para analisar o cotidiano dos cadetes, optei por dividi-lo em
duas partes: rotina e momentos especiais festivos. A primeira
compreendendo as atividades do programa curricular formal,
como aulas, palestras e visitas e ainda aquelas atividades informais que, em razo do regime de semi-internato, so vivenciadas
internamente pelos cadetes fora dos horrios de aula nas demais
dependncias da APM. A segunda parte compreendendo eventos que alteram essa rotina, como as solenidades, que ocorrem
de acordo com o calendrio festivo da APM, evidenciando sua
dimenso simblica, ou outros eventos menos elaborados, mas
ainda assim especiais.
Verifiquei que a grade curricular do CFO estava dividida em
matrias do Ensino Profissional e do Ensino Fundamental. As
primeiras parecendo estar relacionadas s atividades especficas
da instituio policial militar, e as ltimas, aos conhecimentos
gerais necessrios para a realizao dessas atividades. Tal diviso foi estabelecida, como vimos anteriormente, no momento
em que a Corporao procurava atender demandas da ideologia
da segurana nacional. Na ocasio, a introduo de disciplinas
tipicamente militares, como Operaes de Defesa Interna e
Territorial (ODITE), Informaes e Contrainformaes e ainda
de um Estgio de Contraguerrilha Urbana para os alunos do
ltimo ano do CFO, fez com que o paradigma da caserna predominasse no CFO. Estas seguiam a linha traada pela IGPM
e tinham um claro objetivo de preparar o combatente militar
para lidar com o inimigo interno do momento, inclusive para
estourar seus aparelhos.
Com a redemocratizao, essas atividades foram aos poucos
substitudas. Dessa vez, a carga de matrias jurdicas, que j era
considervel, foi ainda acrescida de novos ttulos. Os Estgios
117

de Contraguerrilha Urbana foram substitudos pelos Estgios


de Operaes Especiais, administrados anualmente para os
cadetes pelo Batalho de Operaes Policiais Especiais (BOPE),
no entanto estes ainda pareciam guardar velhos elementos da
ideologia da segurana nacional. Com algumas pequenas
distines, tambm traziam algo da caserna: eram marcados
pela emoo e visavam, segundo os prprios nativos, a dar rusticidade ao policial para que assim pudesse encarar os perigos
da rua. Num sentido simblico, funcionavam como um rito de
passagem da caserna para a rua, usurpando da APM boa parte
do monoplio dessa atividade ritual.
A ideologia da segurana nacional, como vimos, marcaria profundamente a identidade institucional da PM, aproximando-a
ainda mais das instituies militares por intermdio da IGPM.
As normas publicadas naquela ocasio sugeriam um reforo dos
valores militares, garantindo maior presena verde-oliva na
PMERJ, principalmente em seus centros de formao como a
APM, na qual atividades tipicamente militares foram intensificadas na construo da identidade do policial militar, ressaltando
o drama identitrio da Corporao.11
No entanto, a atual distribuio da carga horria do CFO (tabelas 1, 2 e 3) revela uma predominncia das disciplinas jurdicas
em detrimento de outras, inclusive as de cunho militar.
provvel que esse desenho esteja mesmo reproduzindo o atual
momento democrtico da sociedade brasileira. Nessa tica, a
busca pela modernizao da PM teria feito com que matrias
de cunho eminentemente militar, ligadas prtica tradicional
que marcou aquele momento crtico de nossa histria poltica,12
cedessem espao s de cunho jurdico. Assim, o lado policial
da instituio, que havia sido preterido durante a ditadura militar, seria agora estimulado, o que representava uma tentativa
de formao moderna voltada para os interesses da cidadania.
Mas tambm provvel, e eu aposto nesta hiptese, que essas
mudanas tenham ocorrido em virtude da representao de
11

Para uma anlise mais detalhada desse drama de identidades sofrido pelo pessoal
da PMERJ, (MUNIZ,1999, p. 64).

12

O que no foi muito diferente da realidade de outros pases latino-americanos, como


podemos verificar em Huggins (1998).

118

uma prtica policial eminentemente atrelada a uma concepo


jurdica da realidade, resumindo-a quase que exclusivamente
mera aplicao da Lei. Nesse sentido, a matria Direitos Humanos, que seria inserida no CFO logo a seguir, numa segunda
atualizao do programa curricular, daria a falsa sensao de
que o saber prtico da instituio que revelava o seu lado rua,
isto , o fazer polcia, estava ali agora resolvido pelo direito.

N
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23

Tabela 1 Matrias do Ensino Fundamental


Ano: 2003
Carga Horria
Matrias Curriculares
1 ano 2 ano 3 ano
Administrao Geral
50
Criminologia
50
Direito Administrativo
60
Direito Civil
60
Direito Constitucional I
60
Direito Constitucional II
60
Direito da Criana e do
20
Adolescente
Direito do consumidor
30
Direitos Humanos
30
Direito Penal I
60
Direito Penal II
80
Direito Penal Militar
60
Direito Processual Penal
40
Direito Processual Penal Militar
40
tica
30
30
30
Expresso Oral e Escrita
40
40
40
Introduo ao Estudo do Direito
70
Medicina Legal
40
Metodologia da Pesquisa
40
Psicologia
30
Sociologia Geral
30
Tcnica de Pesquisa
30
Legislao Penal Especial
30

Fonte: Diviso de Ensino da APM

119

N
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26

Tabela 2 Matrias do Ensino Profissional


Ano: 2003
Carga Horria
Matrias Curriculares
1 ano 2 ano 3 ano
Administrao na PMERJ
120
Armamento
40
40
Atividades de Inteligncia
40
Chefia e Liderana
30
Comunicao Social
20
Comunicaes
30
Conhecimentos Gerais sobre o
20
RJ
Controle de Distrbios Civis
50
Defesa Pessoal
60
60
60
Didtica
40
Educao Fsica
125
125
125
Estatstica na PMERJ
30
tica Policial Militar
30
30
30
Evoluo Histrica da PMERJ
40
Informtica
30
30
30
Instruo Policial Cavalo
50
50
Instruo Ttica Individual
70
Investigao e Percia Criminal
44
70
Legislao bsica para a PMERJ
70
50
Negociao de Conflitos
30
Ordem Unida
54
40
20
Prtica Operacional
60
Prtica Processual
70
Sade, Higiene e Primeiros
30
Socorros
Segurana Pblica
70
80
Tiro Policial
50
60
6

Fonte: Diviso de Ensino da APM

120

Tabela 3 Total da carga horria do CFO


Total de Matrias
24
24
22
Carga Horria Parcial das Matrias 1.173 1.225 1.105
Matrias Complementares do Ensino
Carga horria
Estgios
-36
36
Palestras
64
64
64
Visitas
48
48
48
Atividades Extracurriculares
Carga horria
Frias Escolares
72
72
72
Feriados Escolares
36
36
36
Solenidades e Treinamentos
92
92
92
Eventos Esportivos
72
72
72
Verificaes Finais e Suplementares
36
36
72
Carga horria total por ano
1.593 1.681 1.597
4871
Carga horria total do CFO
Fonte: Diviso de Ensino da APM

Segundo um oficial, que na poca trabalhava na Diviso de Ensino da EsFO e diz ter testemunhado essa alterao naquele incio
de redemocratizao, essas mudanas comearam a ocorrer de
fato quando uma comisso instituda pelo Coronel Cerqueira13
modificou todos os currculos da PMERJ, no intuito de afast-la
dessa concepo ideolgica orientada pela Segurana Nacional. Na oportunidade, foram retiradas as matrias que mais lhe
pareciam relacionadas e, mais tarde, aps a promulgao da
Constituio de 1988, o currculo seria mais uma vez alterado,
dessa vez pelo comandante da academia que, poca, resolveu
aumentar ainda mais a carga jurdica do CFO.
Por outro lado, verifiquei no atual currculo do CFO alguma
carncia de assuntos e temas relacionados polcia ostensiva
de preservao da ordem, que, por fora constitucional, a
atividade da PM por excelncia. Nesse sentido, a matria Segurana Pblica, que mais se aproximava dessa da PM, onde
poderiam estar includos assuntos referentes a seu fazer pr13

Oriundo das fileiras da prpria PMERJ, o Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira
foi o primeiro comandante geral do atual perodo democrtico. Tomou posse em
1983, como Secretrio de Estado de Polcia Militar, nomeado pelo ento Governador
Leonel de Moura Brizola, que havia sido eleito diretamente pelo voto popular aps 21
anos de ditadura militar e criou aquela Secretaria. Cerqueira ficou muito conhecido
por seu perfil humanitrio e seu dilogo com organismos de Direitos Humanos.

121

tico, era ministrada somente nos dois primeiros anos do CFO,


perfazendo a carga horria de 150 horas-aula contra as 700
horas-aula das 14 matrias jurdicas ministradas em todo o CFO
(DireitoAdministrativo, Direito Civil, Direito Constitucional I,
Direito Constitucional II, Direito da Criana e do Adolescente,Direito do Consumidor, Direito Humanos, Direito Penal I,
Direito Penal II, Direito Penal Militar, Direito ProcessualPenal,
Direito Processual Penal Militar, Introduo ao Estudo do Direito, Legislao Penal Especial). Alm disso, essas matrias
jurdico-normativas preteriam outras que especificamente estudam fenmenos sociais, como a sociologia geral (30 horas, no 1o
ano) e a criminologia (50 horas, no 2o ano), cujos instrumentais
tericos fundamentariam, em tese, uma abordagem cientfica
prevencionista e, portanto, relacionada diretamente atribuio
constitucional da PM.
Chamou-me a ateno ainda o fato de uma matria tcnica
como a estatstica no possuir tpicos relacionados ao moderno
planejamento policial, como o georreferenciamento, por exemplo. E mais: de no se fazer qualquer aluso ao fluxo dos dados
criminais no estado, como tambm no haver, em qualquer matria do CFO, tpico abordando as chamadas reas Integradas
de Segurana Pblica (AISP),14 conceito utilizado desde 1999,
fundamental para o entendimento dos programas de segurana
pblica do Estado. Alis, os alunos do Terceiro-ano, prestes a
serem declarados Aspirantes, sequer sabiam o que realmente
constituam essas AISP.
Todavia, ao serem debatidas em sala de aula, essas questes
referentes realidade social contempornea elevavam a conscientizao do individualismo moderno a limites nunca vistos na
APM, aguando ainda mais o conflito ideolgico entre a caserna
e a rua. A priorizao das matrias jurdicas, trazidas agora com
maior nfase para as salas de aula, resultou, portanto, num
certo pragmatismo por parte dos cadetes, instrumentalizando
seus pleitos por garantias e liberdades civis, sobretudo quando
14

O conceito de AISP como unidade geogrfica para aplicao das polticas pblicas
de segurana est disponvel na pgina eletrnica do Instituto de Segurana Pblica
(ISP): <http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=45>.

122

acusados em algum Processo Administrativo Disciplinar,15 e


tinham que responder formalmente junto Administrao por
eventuais infraes cometidas.
Por no ser um sistema totalmente fechado, a APM torna-se
cada vez mais vulnervel s transformaes contemporneas.
As novidades chegavam tanto pelas salas de aula quanto pelas
eventuais liberaes do Corpo de Aluno, ou, ainda, pelas bandas largas da Internet, agora disponibilizada aos alunos pela
Sociedade Acadmica Tiradentes (SAT). Nesse sentido, esses
espaos informais e privativos dos cadetes, como os alojamentos ou o prdio anexo onde fica a SAT, tambm contrastavam
ideologicamente com o ambiente pblico da APM, de carter
coletivo e homogeneizante. Por tudo isso, o atual cadete passou
a ser visto pelo CA como um questionador das normas tradicionais e, na viso dos oficiais mais antigos, havia se tornado
um indisciplinado.
Essa representao de disciplina talvez explique o aumento
dos conflitos e o aumento do nmero de punies disciplinares
no CFO, o que parece prenunciar uma possvel crise do paradigma caserna na APM. evidente que esse pragmatismo no
era bem recebido pela burocracia tradicional da APM. Num
ambiente cunhado por regras de iniciao militar, parece haver
certo desconforto em ter de lidar com as transformaes con15

O Processo Administrativo Disciplinar (PAD), que diz respeito convenincia e


oportunidade de o funcionrio pblico permanecer na instituio, , como seu nome
sugere, de natureza administrativa. Nesse sentido, em razo do interesse pblico,
baseia-se, como todo o processo administrativo, numa presuno de desigualdade
formal entre o Estado e o indivduo, com predominncia do primeiro. Entretanto,
a Constituio de 1988 imps ao processo administrativo princpios do processo
acusatrio, de natureza igualitria (contraditrio e ampla defesa), ao que a doutrina
jurdica chamou de jurisdicionalizao do processo administrativo. Nesse sentido,
o inciso LV, do artigo 5o, da Constituio da Repblica determina que: aos litigantes,
em processo judicial e administrativo, e aos acusados em geral so assegurados o
contraditrio e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Os PAD a que esto sujeitos os cadetes so basicamente dois: o Documento de Razo


de Defesa (DRD, que at 2005 era chamado de Portaria), usado ou como contraponto
acusatrio, ao final de procedimentos de natureza inquisitiva a que eventualmente o
cadete pode responder, como a sindicncia e a averiguao, ou como o rito sumrio
que trata especificamente de deslizes disciplinares mais simples e corriqueiros que
no resultem em demisses; e o Conselho Escolar de Disciplina (CED), de rito
formal, utilizado para julgar os casos de indisciplina mais graves que podem resultar
na demisso do acusado.

123

temporneas e as regras democrticas de direito apresentadas


e discutidas nas salas de aula. Nesse caso, as regras de cunho
igualitrio que a rua representa, quando interiorizada pelos
cadetes por ocasio das aulas jurdicas, entravam em conflito
com as regras da desigualdade naturalizada na caserna com a
ajuda dos rituais. A entrevista seguinte, concedida pelo Chefe
da Diviso de Ensino em 2004, apontava essa possvel crise
de legitimidade da caserna, ao alegar que ela, a disciplina,
no estaria sendo bem introjetada pelos cadetes como antes.
Segundo o entrevistado, os cadetes de agora eram muito mais
indisciplinados que os de seu tempo, o que tornava cada vez
mais imprescindvel a presena externa e vigilante do agente
de punio disciplinar para que as regras da caserna fossem de
fato cumpridas. E mais: no seu entendimento, a igualdade democrtica que a rua representa estaria cerceando as regras
da APM que materializam a desigualdade liminar da caserna.
O cumprimento das normas est muito atrelado presena da
autoridade. Hoje em dia, os cadetes tm mais acesso Internet
e mais liberao, e esto no momento de questionamento das
autoridades, e ns somos a autoridade, e se o cadete no reconhece na autoridade a legitimidade, ele no vai cumprir. Isso
a tem uma consequncia imediata para a gente aqui: o oficial
antes no precisava lanar mo de certas formalidades, o trote;
hoje o trote formal e de fato proibido. Se o oficial desconfiar,
ele vai punir. O trote sempre foi formalmente proibido, mas
informalmente ele era tolerado. Antigamente, [havia] aquele
pavor que o aluno tinha de ficar de LS, hoje no tem, pois no
h trote dos aratacas,16 e os punidos chegam a encarar a punio quase como uma indiferena. A APM, hoje, tem um nvel
de conforto que a gente no tinha. Tem piscina, computador
com banda larga, Internet, TV por assinatura e at namorada,
se quiser namorar alguma cadete. (Major da PMERJ, com 16
anos de servio)

Evidentemente a alternncia que prioriza apenas um desses aspectos identitrios no programa curricular, quer seja a caserna,
16

Como havia mencionado antes, essa categoria nativa designa os alunos de outros
estados que vm realizar o CFO no Rio de Janeiro. Nesse caso, o entrevistado se refere
aos aratacas veteranos, que poderiam ainda aplicar o trote em momentos informais
dos finais de semana, ou em eventuais liberaes do CA, j que so residentes na
APM. No entanto, o trote vem sendo repudiado cada vez mais pela sociedade no atual
momento democrtico, o que, de certa forma, limita moralmente essa estratgica.

124

quer seja a rua, limita a compreenso da totalidade do universo


policial militar e de seu saber-fazer j por demais complexo.
Alis, essa complexidade da prtica policial militar j foi inclusive tema de uma etnografia focando o trabalho dos praas
(MUNIZ, 1999). Um dos argumentos era que as contingncias a
que o policial militar se submete na ponta da linha (blue line)
so tais, que os cdigos e categorias transmitidos de forma burocrtica em sua formao profissional estariam de tal forma
inadequados para que pudessem ser operados por ele de fato.
Quanto incluso dos estgios prtico-operacionais para os
cadetes do Terceiro-ano no atual currculo, creio que ela nos
revele uma outra representao do fazer policial militar. O
fato de uma unidade especial como o BOPE ser a responsvel
exclusiva por promover esses momentos simblicos da passagem do cadete, pode representar muita coisa na disputa pelo
monoplio do saber-fazer policial militar. Seno vejamos, o
BOPE uma unidade criada nos moldes das Foras Especiais
militares para realizar aes especiais e no as ordinrias do
universo policial militar. Vimos que dessa forma ele representa
um ideal da caserna dentro do universo institucional da PMERJ,
que tem invariavelmente invadido a rua, sobretudo por esse
vis simblico. muito provvel que assim se possa explicar
a representao do mundo prtico da rua sob o habitus da caserna, conforme a observamos nas respostas fornecidas pelo
Aspirante ao servio de psicologia da APM.17 Nesse caso, eu diria
que em sua socializao profissional a inculcao de esquemas
de percepo prprios da caserna teria sido mais eficaz. Foi
interessante verificar essa mesma representao construda
com a ajuda simblica dos caveiras18 nos discursos de alguns
oficiais recm-formados a quem perguntava sobre o estgio
prtico-operacional:
Meu estgio no teve marcha de 50Km. Foi muito interessante,
na [Favela] Tavares Bastos. Teve armamento, tiro, patrulha e
foi no terreno que historicamente ns teramos que trabalhar.
17

Ver o tpico 1.3: A Esttica Militar como Marca Paradigmtica.

18

Terminologia pela qual os integrantes do BOPE que possuem o Curso de Operaes


Especiais so conhecidos e chamados, numa estratgia poltica de criao de sua
identidade.

125

Teve conduta de patrulha na favela, treinamento com blindado.


No teve Ribeiro das Lages. Eu estava esperando essas sugas
todas, inclusive durante o estgio, o que no aconteceu. O final
foi uma situao real, no [Morro do] Pereiro; muito real, muito
prtico. Teve turma, no passado, que ficou acampada, usando
coisas que no usaramos hoje no dia a dia. (Segundo tenente
B., 1 ano de formado no CFO).

Aqui se percebe a legitimao de uma prtica policial militar em


substituio prtica exclusivamente militar dos antigos estgios de guerrilha e contra-guerrilha, que ocorriam em Ribeiro
das Lages, local adequadamente inspito para a realizao de
uma das fases mais difceis daqueles estgios, a sobrevivncia,
em moldes muito parecidos com os dos ritos do Exrcito para
a construo de seu guerreiro militar. interessante perceber
ainda que esses discursos naturalizam, no entanto, locais especficos para a prtica policial militar, isto , o morro e a favela.
Como outros tantos discursos, o de meu entrevistado acima
tambm legitimava tacitamente o BOPE como o detentor do
monoplio de um saber-fazer policial militar modelado pela
cosmoviso da caserna que institucionaliza a favela como o
locus privilegiado de sua praxis.
Assim, levando-se em considerao a posio ocupada por essa
unidade especial no continuum identitrio da PMERJ, podemos aqui inferir que o paradigma militar tenha preponderado
na disputa simblica pelo monoplio do saber-fazer policial
militar; em outras palavras, a caserna teria englobado a rua
nessa representao da prtica policial militar. No obstante,
percebe-se que o BOPE tem obtido xitos na transmisso desse
conhecimento, ajudado principalmente por um elaborado mecanismo de produo simblica e pelo vcuo deixado pela prpria
APM em seu papel de produtor oficial do saber policial militar.
Outro aspecto interessante que aqui vale ressaltar a valorizao positiva da repetio mimtica como forma de consagrao
e transmisso de conhecimento nas prticas do ambiente militar, conforme observei na APM. Esse mimetismo introjetado,
sobretudo por ocasio e com a ajuda dos rituais, se diferencia
das formas cultivadas em outras sedes de socializao secundria e de transmisso do conhecimento formal e sistematizado,
126

como a que ocorre no mundo acadmico, em que a oralidade


professoral predomina no contexto pedaggico (PINTO, 1999).
Na APM, a tradio prtica que valorizada, at mesmo na
transmisso ritual de uma hexis corporal caracterstica da
caserna. Nesse sentido, dificilmente os cadetes vo aprender
a hierarquia e a disciplina nos regulamentos e nas leis, porque
elas so apreendidas principalmente com a praxis ritual.
O BOPE j conta inclusive com autonomia pedaggica para
ministrar no s o estgio para os Alunos do CFO, mas tambm
vrios outros cursos e estgios para policiais militares, cujos
programas curriculares no passam pelo crivo da DEI, conforme
constatei junto a profissionais daquela Diretoria. Esses cursos
funcionam como verdadeiros rituais de passagem que ora complementam os ritos da APM, ora tem o condo simblico de
transformar o policial convencional em caveira (STORANI,
2008). Dentre esses cursos e estgios, o mais emblemtico
mesmo o Curso de Operaes Especiais que voluntrio para
soldados e cabos, na Categoria C; para graduados e oficiais at
o posto de Capito na Categoria B; e para oficiais superiores,
na Categoria A.
Do ponto de vista das prticas profissionais, esse continuum
identitrio se manifesta em diferentes momentos do campo
profissional. Por um lado, podemos ter um fazer policial com
decises racionais que valorizam a iniciativa individual e, por
outro, um fazer militar caracterizado pela emoo, sobretudo
a produzida nos rituais que edifica a esttica militar fabricando
corpos fortes e dceis, no qual o coletivo invoca um esprito de
corpo que o faz prevalecer sobre o individual.
As tcnicas corporais ali manifestadas por meio de metforas
que caracterizam a caserna revelam esse esprito coletivo de seu
fazer. So grupos de combate em condutas de patrulha, nos
quais o teatro de operaes tem local definido. Nesse sentido,
a existncia de um espao exclusivo para o treinamento desse
fazer caserna na APM de fato sintomtico, j que no existe
em contrapartida um espao equivalente para o exerccio do
fazer rua. Esse local de fato existe e seu nome oficial Pista
de Abordagem de Edificaes, mas ele mais conhecido pelo
127

grupo nativo como favelinha, o que, na prtica, serve de palco


para a consagrao do saber caserna na prtica policial.
A existncia de um local especfico para essas prticas policiais
sob os contornos da caserna, talvez nos indique uma representao do fazer policial militar no qual a rua se equivalha favela,
mas ao mesmo tempo, tambm, no qual a rua, com sua ideologia igualitria e cidad, esteja mesmo sendo simbolicamente
descartada como fazer prtico policial militar.

Figura 9 A "favelinha"

Uma pedagogia informal


Evidentemente, a rotina da APM no se resume apenas s
salas de aula ou a outras atividades curriculares. O regime de
internato parcial do CFO possibilita uma gama de atividades
alternativas que ajuda a completar a socializao dos cadetes.
Em regra, eles somente retornam a suas residncias nos finais
de semana. Assim, o perodo de passagem pela APM deve ser
observado sob o ponto de vista de uma totalidade que inclui,
alm do currculo formal, concretizado principalmente com as
aulas ministradas em sala de aula e outras atividades curricula128

res, uma intensa atividade paralela que ocorre nos interstcios


sociais da APM, operando uma espcie de pedagogia informal
para a introjeo de determinado habitus.
No obstante a tentativa de se priorizar a rua nas salas de
aula, os interstcios informais no cobertos pelo contedo
programtico oficial nos mostram a APM tradicional privilegiando aspectos militares da instituio. Quando h lacunas
imprevistas no Quadro de Trabalho Semanal19 (QTS), como a
falta de algum professor, por exemplo, bem provvel que os
cadetes recebam a instruo de ordem unida, aquela mesma
usada na parada militar, com exerccios que materializam os
valores da caserna no treinamento exaustivo e detalhado dos
corpos para a execuo racional de movimentos marciais. Esse
fato corrobora meu argumento de que, apesar de o currculo
formal do CFO vir, no atual perodo democrtico, tentando se
adequar s representaes do fazer policial caracterizado pela
rua, os interstcios da APM ainda priorizam, com sua pedagogia
informal e simblica, o fazer militar da caserna.
Outro dado que mostrou a priorizao da caserna nessa socializao intersticial da APM foram as canes de guerra20 que,
semelhantes quelas canes entoadas em diversas ocasies
rituais, so levadas para esses espaos por ocasio dos deslocamentos das turmas. Nesse sentido, elas funcionam como
ingrediente complementar na construo dos guerreiros. No
entanto, mais uma vez no se trata da oralidade professoral,
mas sim de uma espcie de ao performtica que, numa
arena de lutas simblicas, pe em jogo o poder mgico das
palavras (TAMBIAH, 1968). Assim se percebem resqucios da
ideologia da segurana nacional contradizendo ali o currculo
formal do CFO, na medida em que o discurso oficial do Estado
Democrtico simbolicamente desqualificado. Essa disputa,
portanto, vai nos mostrar mais uma vez que a APM mesmo
esse espao dicotmico em que, de um lado est a sala de aula
19

Confeccionado pela Diviso de Ensino da APM para informar ao Corpo de Alunosa


distribuio dos horrios e das disciplinas que sero ministradas naquela semana,
apartir do programa curricular do CFO.

20

Conforme tambm foi demonstrado por Pereira (2002) em relao formao dos
praas da PMERJ.

129

posicionada como o lugar de manifestaes individualizadas,


predominantemente jurdicas e, de outro, o ptio, que a ela se
ope como o lugar da rotina ritual, da pedagogia informal e da
manifestao do coletivo e de seus aspectos holsticos. Nesse
sentido, enquanto percebemos a presena da rua na sala de aula,
o ptio o espao da APM no qual mais se cultiva a caserna.
A individualidade da sala de aula , todavia, uma individualidade
controlada, pois, ao mesmo tempo que os cadetes ali podem
se munir dos princpios e garantias individuais da Constituio Cidad, percebe-se uma estratgia racional de controle e
vigilncia homogeneizante, partindo da instituio como um
processo semelhante ao esquadrinhamento observado como
ttica poltica por Foucault (2007). Nesse sentido, a liberdade inerente individualidade, ou ao individualismo moderno,
concedida gradativamente num processo controlado pela
instituio. Em sala, os cadetes ficam posicionados individual
mente em carteiras distribudas numa organizao matricial.
Em vez de nmeros, como ocorre no ptio, eles so chamados
e conhecidos pelos instrutores por seus nomes. Trata-se de um
processo semelhante ao que ocorria nas instituies de sequestro observadas por Foucault (2007), no qual se reproduziam
estratgias de poder que visavam a docilizar o corpo e, assim, a
afastar o perigo representado por grupos indisciplinados. Para
Foucault, a disciplina moderna, longe da liberdade apregoada
pela ideologia liberal, possibilitava a normalizao, isto , a
sujeio do indivduo a uma ttica de poder que objetiva canalizar racionalmente sua fora produtiva para o moderno sistema
de produo material.
Embora na APM ocorresse um processo similar de docilizao dos corpos, ele se manifestava de uma forma diferente,
mais intenso no ptio, onde indivduos so homogeneizados
em blocos annimos segundo os valores coletivos da caserna,
numa normalizao que refletia o prprio processo de socializao da APM. Ao contrrio do que Foucault havia observado
nas instituies de sequestro, o perigo na APM pareceu-me,
nesse sentido, estar localizado no indivduo questionador e
suas liberalidades, isto , no indisciplinado segundo as regras
130

nativas e no no coletivo disforme. Ou seja, na APM no havia


classes dangereuses, mas o indivduo com seu individualismo
dangereuse. Nesse sentido, o intuito no seria o de prioritariamente disciplinar a massa, uniformizando-a para controlar suas
foras segundo determinado propsito, mas sim o de controlar
a individualidade representada por uma ambiguidade perigosa
diante de objetivos institucionais confusos e at conflitantes.
Talvez isso explique a nfase na socializao coletiva e nos
rituais de passagem, com forte significado de controle social.
O trote
Dentro do que eu estou chamando de pedagogia informal,
observa-se o trote, uma prtica legitimada na iniciao do
militar. Peculiar tambm na iniciao dos nefitos da APM, o
trote existe ali de uma forma velada, j que sua prtica vista
como abusiva e inadequada no Estado Democrtico de Direito.
Nesse sentido, ele vem sendo cada vez mais questionado na
sociedade geral. Algumas vezes, dependendo do comandante, ele at autorizado na APM, desde que tenha regras claras,
mas evidentemente no expressas em nenhum regulamento.
Os oficiais sabem delas e, desde que no sejam consideradas
abusivas ou humilhantes, fazem vista grossa. Prefiro dizer que
as normas do trote estejam mesmo dentro de um conjunto
de regras ao que Turner (1974, p. 129) chamou de pedagogia
da liminaridade.
Para efeito do trote, o CFO possui trs turmas representando
os trs anos de sua durao. Os novatos do Primeiro-ano so
os bichos, ou seja, os calouros que acabaram de chegar
APM depois de terem sido aprovados no concurso vestibular.
Alunos do Segundo-ano so os contemporneos, enquanto
os veteranos formam, como vimos, a turma do Terceiro-ano.
Somente os veteranos e seus bichos participam de trote,
pois, dentro dessas regras informais, o trote no pode ser
praticado e nem recebido por contemporneos (alunos do
Segundo-ano), que so, como alegaram os prprios nativos, a
mortadela do po, isto , esto numa posio intermediria,
excludos dessas interaes sociais.
131

Vimos que os calouros passam por um perodo de adaptao


que dura desde o momento em que so aprovados definitivamente no certame at sua incorporao ao Corpo de Alunos,
antes do incio das atividades propriamente curriculares. Esse
treinamento promovido por alguns oficiais do CA encarregados por tal misso, bem como por veteranos do Terceiro-ano
escolhidos como seus auxiliares. J os trotes como ritos peculiares da iniciao militar duram em regra at o Espadim,
que ocorre no dia 13 de maio. Dependendo do tipo do trote
aplicado, poder nascer ali uma relao entre bicho e veterano
que perpassa todo o oficialato.
Na APM, percebem-se pelo menos duas categorias distintas
de trote: uma de significado positivo, legitimamente aceita
pelos prprios bichos que a chamam de brincadeira e que
tende a suavizar a rigidez das regras formais, aproximando os
dois polos da relao; e uma outra, com significado negativo
para os bichos, que por isso a chamam de babaquice ou
sacanagem, que no deixa de ser tambm uma brincadeira,
s que de mau gosto. Neste caso, em vez de aproximar bicho e
veterano, o trote os afasta, podendo at mesmo criar um conflito de dimenses maiores, o que vai depender do sentimento
de reprovao despertado, na medida em que as respectivas
turmas vo se envolvendo no processo. O descumprimento das
regras dessa pedagogia liminar pode ento ser interpretado
como uma ameaa ao esprito de corpo e, consequentemente,
coeso do grupo. Assim ocorre quando o desviante, ou sua
turma, desperta uma represso passional coletiva devido
reprovao social que seu comportamento ensejou, tal como
ocorreria em sistemas simples de solidariedade mecnica,
conforme sugeriu Durkheim (2008).
Alm dos bichos do Primeiro-ano, a quem de uma forma geral
pode dar trotes, cada veterano possui tambm seu prprio
bicho direto, ou seja, aquele nefito que entrou no CFO com
a mesma classificao obtida por ele no vestibular de dois anos
antes. Assim, por exemplo, o cadete 0416, que obteve a dcima-sexta colocao no concurso para o CFO de 2004, foi o bicho
direto do cadete 0216, que alcanou a mesma classificao no
132

concurso do CFO de 2002. Entretanto, em 2003, ao passar para


o Segundo-ano do CFO, ele deixou de ser bicho e, como no
era veterano ainda, passou a ser apenas contemporneo dos
cadetes das outras duas turmas. Dessa relao iniciada j nos
primeiros contatos do nefito com a Academia, nasce para o
veterano a responsabilidade de apresentar a nova realidade
a seus bichos, sobretudo a seu bicho direto, de quem o
iniciador. Os bichos, por sua vez, precisaro assimilar essa
realidade o mais rpido possvel para poderem conviver com
alguma tranquilidade no espao social da APM. Assim, torna-se compreensvel que nesses espaos e momentos informais
o veterano direto seja o principal responsvel pela formao
de seu bicho direto. Nesse caso, seu prestgio junto ao grupo
tende a aumentar conforme for sua capacidade de fazer um
bom bicho.
Portanto, nos momentos mais relaxados de suas rotinas, os
veteranos ensinam aos bichos as prticas da vida cotidiana
na APM, como, por exemplo, arrumar a cama, engraxar os coturnos, marchar na ordem unida, alm de poderem exigir deles
as pagaes de completas e sugas fsicas ou mentais quando
no corresponderem adequadamente. Aqui, o significado de sugar o de roubar as foras fsicas ou mentais do aluno, quando
este submetido a esforos extremos. Dentro da cultura desenvolvida nos ambientes militares, a suga uma ao valorizada
positivamente desde que percebida em seu sentido prtico, isto
, como necessria para a construo social e fsica do militar,
de seu habitus, de sua tcnica do corpo. Nesse sentido, tal
como ocorre no trote, ela tida como uma brincadeira e, do
contrrio, tambm poder ser percebida como babaquice ou
sacanagem.
Essas brincadeiras abrem espao para relaes jocosas, tudo
dentro do mesmo pacote pedaggico liminar em que se encontra
o trote. H tambm relaes de troca do tipo eu arrumo sua
cama e voc me trata bem e, ainda por cima, me ensina o caminho do milho, conforme me explicou uma cadete referindo-se
ironicamente ao sentido prtico que se encontra presente no
mimetismo rotineiro da APM. Aqui no basta saber e nem
133

ponderar nada, basta que os pintinhos sigam o caminho do


milho. E, nesse sentido, quem joga o milho , obviamente,
o veterano.
Na pauta dessa pedagogia informal, percebe-se que a caserna
priorizada como a nova realidade institucional a ser inculcada
pelos nefitos, pois at aquele momento no se aventavam assuntos relativos ao saber policial militar a ser praticado na rua.
Nesse sentido, o que mais uma vez se refora nesses momentos
o lado militar da instituio, em detrimento de seu lado policial,
o que, em termos dumontianos, faz com que a rua seja mais uma
vez englobada pela caserna (DUMONT, 2000).
Uma observao precipitada talvez fizesse com que as punies
aplicadas ali naqueles interstcios parecessem injustas quando
comparadas a um contexto de regras republicanas, mas no contexto liminar da APM, elas pareceram-me plenamente adequadas
s regras socialmente construdas para aquele momento de
passagem. Assim que, tanto as punies disciplinares, muitas
vezes interiorizadas pelos cadetes como justas e necessrias
para a sua formao, quanto os trotes e as sugas de significado positivo, eram percebidos dentro da cultura nativa como
ritos necessrios para o amadurecimento do nefito rumo a seu
novo status profissional.
No entanto, para que aqui tivesse ocorrido uma normalizao
nos termos de Foucault (2007), creio que deveria ter havido
algum consenso como em tese ocorreria num espao igualitrio, em que primeiramente se constri a igualdade consensual
para depois se naturalizar a desigualdade baseada num rank21
de desempenhos individuais diferenciados. A iniciao militar
na APM s permitia aos nefitos uma revelao gradativa das
informaes a partir da desigualdade estrutural construda liminarmente naquele espao, o que impedia o consenso necessrio
para haver a normalizao igualitria dessas regras. Por isso, o
mistrio, que uma das principais caractersticas desse tipo de
iniciao, fazia com que o consenso sobre as regras fosse intencionalmente afastado por uma estratgia de poder, como ficar
patente mais adiante quando o processo de punio disciplinar
21

Nesse sentido, ver o captulo 9, de (KANT DE LIMA, 2008, p. 261, 289).

134

for analisado. Por outro lado, essa realidade diferenciada produzia tambm diferentes representaes acerca do militarismo,
percebidas de maneira variada pelos grupos que compunham
aquele espao sociocultural.
Todavia, h sinais de fadiga nessa estrutura de trotes. De um
lado isso ocorre por presses externas da opinio pblica e
de familiares que percebem neles um primitivismo anacrnico
para os padres democrticos da sociedade contempornea, de
outro, pelas crticas tcitas vindas de muitos dos prprios cadetes que resolveram rejeitar tanto o seu papel social de bicho,
quanto o tipo de tratamento liminar que lhes dispensado nessa
situao, o que ser visto mais adiante no teatro dos cadetes.
Assim, ao exigirem um tratamento pautado por regras formais
de direito encontradas de uma forma geral na Constituio
Federal, ou at mesmo nos regulamentos policiais militares,
muitos cadetes passaram a questionar o sistema e suas regras liminares, incrementando ainda mais os conflitos entre a caserna
e a rua. essa ameaa de um rompimento com a rotina instituda que faz surgir, nos termos de Berger e Luckmann (2003),
um problema para a instituio. Um fato ocorrido em 2003,
quando eu era subcomandante da APM, ilustra bem esse tipo de
conflito. Na poca, o comandante do CA havia encaminhado ao
comandante da APM um aluno do Primeiro-ano que se negava
peremptoriamente a receber uma vacina que naquela ocasio
estava sendo administrada a todo o CFO. Ele pleiteava assumir
o risco de no ser vacinado, alegando que tal interveno poder-lhe-ia provocar reaes alrgicas e que era ele, e no a APM,
quem deveria decidir sobre o que seu organismo necessitava.
O impasse foi tomado inicialmente como uma indisciplina
contra o comando, e talvez em outros tempos o recalcitrante
recebesse sanes morais dentro das regras da pedagogia informal do CFO: uma suga ou uma pagao, por exemplo.
No entanto, o problema j havia chegado ao conhecimento
do comandante da APM, que resolveu solicitar a opinio de seu
Estado Maior o que me inclua para solucion-lo. Foi quando
percebi a oportunidade de observ-lo etnograficamente.

135

Solicitei que o comandante no opinasse a priori, mas lhe sugeri que fossem convocados ainda o major Chefe da Subseo
de Justia e Disciplina, um reconhecido garantista, como se
referem os profissionais do Direito aos que defendem os direitos
e garantias individuais, e mais dois oficiais do CA, tidos como
escrotos do tipo disciplinado e disciplinador, ou seja, uns
caxias. Agora muito provavelmente a situao estaria um
pouco mais equilibrada, tornando interessante a discusso que
at aquela altura pendia para a punio do aluno em nome do
interesse coletivo.
Como bom militar, o Comandante no tolerava atitudes como
aquela do aluno que, para ele, soavam como uma afronta aos
preceitos da hierarquia e da disciplina. Cauteloso e atento
vigncia do Estado Democrtico, ele percebeu a importncia de
sua deciso, optando por deixar inicialmente a palavra com os
presentes. De um lado, os caxias iniciaram o debate pedindo
a punio sumria do indisciplinado, o que, pelo tamanho da
insolncia, poderia significar um arrocho adicional na forma
de trotes para todo o Primeiro-ano. Do outro lado, o major
garantista solicitava a admoestao do cadete, convencido
pelos princpios democrticos de que ele realmente no estava
obrigado a proceder daquela forma at ento rotineira na APM.
Nesse momento eu os provoquei lembrando que fato semelhante
j havia ocorrido em nossa recente histria poltica: a Revolta
da Vacina. Parecia que o conflito carioca, surgido com a polcia
sanitria do Professor Oswaldo Cruz havia ressurgido ali com
novos elementos do cotidiano do cadete. Em ambos os casos,
houve uma indefinio sobre os limites do poder do Estado
de dispor de direitos consagrados ao corpo do indivduo. No
caso da revolta da vacina da APM, o comandante decidiu fazer
com que o cadete compusesse uma redao cujo tema seria a
Revolta da Vacina histrica. Decidiu, tambm, que, caso no
quisesse, o cadete no precisaria ser vacinado, mas tambm no
receberia seu licenciamento do final de semana, que, segundo
ele, no seria um direito adquirido, mas mera concesso do
comando [!]. O aluno, bvio, muito prtico, optou por ser
vacinado, a fim de no receber aquela punio s avessas.
136

Imprio mpar versus Soberania Par


No CFO, a identidade das turmas comea a ser construda a
partir de uma estrutura de relaes que organiza de maneira
peculiar o espao social da APM. As posies so definidas por
meio de estratgias baseadas num simbolismo prprio que cria
pertencimentos diferenciados. Dentro do sistema de representaes nativo, cadetes de turma par (que entraram no CFO em
anos pares) so tidos como mais intelectuais e reflexivos que os
de turma mpar, fazendo jus a seu smbolo: a caneta. Porm,
so mais sem saco e menos vibradores, no possuindo a disposio fsica que tem um autntico turma-mpar, cujo smbolo
o capacete. Nesse sentido, enquanto os mpares ressaltam
suas qualidades fsicas e emocionais que os permite cumprir a
ordem recebida com o moral elevado, sem questionamentos e
sobretudo com muita disposio, os pares, em contrapartida,
ressaltariam suas qualidades racionais e pragmticas. Assim,
est lanada a disputa entre a caneta e o capacete.
Uma grande possibilidade de observamos tais disputas ocorre
quando as turmas se deparam durante suas atividades rotineiras
fora das salas de aula, se desafiando mtua e simbolicamente por
meio de brados (Anexo VII) e canes entoados com o fito de
elevarem o esprito de corpo e o moral da tropa. Muitas dessas
canes so compostas por seus integrantes como estratgia
para demarcar suas fronteiras simblicas. Nesses momentos,
as principais virtudes de um grupo so destacadas em detrimento das qualidades depreciadas no outsider (Cf. ELIAS &
SCOTSSON, 1994). Elas geralmente so entoadas durante os
deslocamentos coletivos das turmas pelo ptio, ou nas corridas de Educao Fsica pelas ruas da Sulacap. Ultimamente,
as companhias do CFO tm-se autodenominado com nomes
que lembram as mesmas qualidades das turmas utilizadas na
composio dessas canes. Assim, por exemplo, Soberania
par e Imprio mpar revelam grupos em posies contrrias
dentro do campo sociocultural da APM que, ao se classificarem
com tais denominaes-desafio, identificam geraes especficas que passaram pelo CFO, reforando suas identidades por
oposio complementar, mas, ao mesmo tempo, contribuindo
137

para perpetuar a disputa entre as futuras geraes. As turmas,


nesse sentido, se reconhecem como diferentes, embora num
contexto em que a comunidade de cadetes evocada, elas se
vejam como uma verdadeira communitas. Isso ocorre, por
exemplo, por ocasio dos jogos acadmicos, nas disputas desportivas com outras academias do pas.
A turma do Segundo-ano representa, assim, uma minoria social
que no pode piruar, porque as regras da liminaridade a desautoriza a dar palpites no aprendizado do bicharal. Por isso,
o Segundo-ano sempre lembrado como um perodo de esterilidade, tanto social quanto ritual. As relaes construdas a partir
do trote fazem com que os alunos, nesse perodo de margem em
que no so nem bichos e nem veteranos, fiquem excludos
da dinmica informal que caracteriza o espao social da APM,
notadamente os seus interstcios pedaggicos. A representao
a de que, nessa fase do curso, os cadetes so esquecidos e,
por isso mesmo, conseguem um melhor desempenho escolar. A
ideia a de que, ao serem socialmente obrigados a abrir mo de
uma participao mais efetiva na vida social da APM, eles tm
a oportunidade de se concentrar nas atividades formais cotidianas, inclusive dedicando mais tempo s estratgias de estudo.
Portanto, em relao a essa estrutura em que os indivduos e suas
turmas se encontram no CFO, observei que existem pelo menos
dois tipos de relao: uma alternada, entre contemporneos,
e outra direta, entre bichos e veteranos. Diferentemente
das relaes entre contemporneos, a relao entre bicho
e veterano permeada por uma aproximao que, como vimos, pode se estender para alm dos muros da APM. Da mesma
forma, comum que oficiais de turmas alternadas preservem a
mesma relao formalmente distanciada, como as mantinham
com seus contemporneos dos tempos de academia. Esse
distanciamento fica ainda mais explcito com os tratamentos
utilizados pelos cadetes no CFO. Ao mesmo tempo em que os
cadetes do Primeiro-ano tratam os do Terceiro por veterano,
chamam os do Segundo-ano por senhor aluno.
Creio que as observaes de Victor Turner (1974) possam mais
uma vez ilustrar essa estruturao que encontrei no espao
138

social da APM. Nesse sentido, as regras presentes no ambiente sociocultural da APM refletiriam a instabilidade de Estado
que caracteriza os sujeitos rituais em seu estgio liminar. Ao
mesmo tempo que sua dinmica cultural diferencia os cadetes
em turmas, a categoria aluno-oficial se apresenta de uma forma una e indivisa nas normas do Estatuto do Policial Militar.
Usando a terminologia de Turner, eu diria haver, nesse caso,
uma comunidade relativa ou rudimentarmente estruturada em
trs communitas representando as geraes concomitantes
em seus diferentes estgios do CFO. De uma maneira relativa,
tambm possvel dizer que a fase intermediria do CFO, isto
o Segundo-ano, trata-se de uma outra liminaridade, porque seu
cadete est em um estado intermedirio e transitrio dentro
da comunidade de cadetes. Seria como uma fenda que se abre
no seio da liminaridade maior que a APM significa no universo
social da PMERJ. O cadete no Segundo-ano do CFO, portanto,
seria duas vezes liminar, primeiro por pertencer a uma comunidade especial a de cadetes e, depois, por estar margem do
sistema social que a APM constri internamente. Por essa tica
referencial, poder-se-ia dizer que o Segundo-ano se encontra
numa liminaridade da liminaridade, ou seja, na antiestrutura
daquela fase interestrutural que representa o CFO, no qual em
tese devam prevalecer as regras da mesma impessoalidade
encontrada na sociedade geral, o que explica a valorizao
negativa do individualismo, considerado pelos nativos como
egosta e desagregador.
Com o bumbo no p direito
Vimos que, no regime de internato parcial do CFO, os cadetes
permanecem reclusos na APM durante toda a semana letiva, sendo liberados somente nos finais de semana. Vimos tambm que
a rotina dos cadetes apresenta atividades de controle numa temporalidade meticulosamente racionalizada, o que deixa a APM
com caractersticas parecidas com as de algumas instituies
disciplinares que, na sociedade industrial, se especializaram na
docilizao de corpos (FOUCAULT, 2007, p. 117-142).

139

Nesse sentido, a rotina dos cadetes, geralmente orientada por


toques de corneta que lhe ditam um ritmo escandido, tem sua
ordem mantida por normas e regulamentos especficos. As
Normas Gerais de Ao (NGA), por exemplo, definidas pelos
comandantes das unidades militares, tm o objetivo de regular
a rotina e as atividades coletivas internas. Como uma unidade
militar, a APM tambm possui suas NGA regulando condutas
cotidianas, dentro das quais h normas especficas para o Corpo
de Alunos. Qualquer alterao nessa rotina regularmente estabelecida deve ser publicada no Boletim Interno22 (BI) por meio
de notas instrutivas que so adicionadas s NGA. Assim, todos
podem, em tese, tomar conhecimento das mudanas ocorridas
nessa normatizao interna. No entanto, vimos que nas prticas que a maioria dos cadetes aprende como deve proceder.
Existem, ainda, outros regulamentos, dentre eles o Regulamento
Interno dos Servios Gerais (RISG) que trata dos servios do
aquartelamento e que, apesar de originrio das Foras Armadas,
adotado pela PM por ser comum a toda unidade militar, e o
Regulamento Disciplinar da Polcia Militar do Estado do Rio
de Janeiro (RDPM ou RD) que trata da justia e da disciplina
militar na PMERJ.
Aprovado pelo Decreto no 6.579, de 5 de maro de 1983, o RDPM
um seno o principal mecanismo formal de controle social
que prev sanes, tanto positivas (elogios e recompensas),
quanto negativas (punies), para os policiais militares, embora
sua representao seja a de um instrumento de punio apenas.
interessante ressaltar, no entanto, que ele define transgresses
policiais militares pelo vis do militarismo, pois a maior parte
delas se refere a condutas tpicas da caserna, numa transcrio
quase que literal do Regulamento Disciplinar do Exrcito (RDE).
As punies do RDPM tm como alvo originrio a PMERJ, s
sendo aplicadas na APM em casos especficos, j que as chama22

Documento informativo dirio oficial que toda unidade militar possui, onde esto
publicados os atos do Comando. Trata-se, portanto, de uma interessante fonte
para pesquisas da vida formal da Unidade e de seus integrantes. Existem ainda os
boletins da PM (BOL PM) onde so publicados atos do Comando Geral da PMERJ
que, normalmente, dependendo do interesse das Unidades e da determinao do
Comandante Geral, so transcritos no BI das Unidades.

140

das faltas de aluno requerem punies mais brandas, como o


Licenciamento Sustado (LS) que cerceia o cadete de sua liberao de fim de semana e que existe apenas nas Unidades de
Ensino. Apesar de esse tipo de sano mais branda estar prevista
nas NGA, observei que estas no definiam claramente em que situao tal sano deveria ser aplicada, o que me levou a concluir
que seu uso dependia de uma interpretao daquelas regras de
procedimento estabelecidas nas notas instrutivas23 conforme a
sensibilidade moral de quem as aplicasse no momento.
Outro regulamento importante para a ordenao do espao
social da APM , sem dvida, o Regulamento de Continncias
(RCONT), tambm comum a todas as instituies militares,
tanto estaduais quanto federais. Ele dispe sobre Continncias,
Honras, Sinais de Respeito e Cerimonial Militar das Foras
Armadas (BRASIL, 1997), padronizando, nesse sentido, os
procedimentos rituais e os cerimoniais militares promovidos
por essas instituies militares. Trata-se, portanto, de um
regulamento bastante usado na APM, sobretudo naquelas solenidades que marcam a passagem das diferentes geraes de
cadetes pelo CFO.
Essa preocupao com a manuteno da ordem interna fez com
que, mesmo com o passar dos anos, no ocorressem grandes
alteraes na rotina dos cadetes. Um ou outro procedimento
pode ter sido includo, suprimido ou substitudo, ou ainda pode
ter tido seu horrio alterado, mas certamente tais mudanas no
comprometeram a estrutura de rotinas da APM, de maneira que
um dia normal de atividades, o que exclui os momentos festivos,
continua apresentando mais ou menos o seguinte quadro:

23

Em 2003, eram 22 Notas Instrutivas que compunham as NGA da APM versando


sobre os seguintes assuntos: horrios e atividades do CA; parada diria CA; servios
atribudos aos cadetes; uso do uniforme; utilizao dos apartamentos; continncia
na academia; circulao nas dependncias da APM; procedimento no rancho; corte
de cabelo; atividades co-curriculares; enxoval e marcao de peas; visita mdicoodontolgica; visita aos cadetes / recepo; regalias e obrigaes do cadete padro;
penas disciplinares; utilizao do telefone; quadro de ordens e avisos; deslocamento;
limpeza e conservao do quartel; dispensas do CA; procedimento em sala de aula
e assuntos diversos. A maioria desses assuntos foi tratada neste trabalho, quando
observada a dinmica social da APM.

141

05h30min Alvorada
A corneta acorda o quartel no incio da manh com o toque de
alvorada, obrigando os cadetes a estar de p logo pela manh, o
que normalmente os deixa sempre irritadios e mal humorados.
Com poucas palavras, j includas as interjeies, os cadetes
so monossilbicos nesses momentos iniciais de sua rotina diria. A qualquer momento um cadete mais antigo da equipe de
servio pode entrar no alojamento anotando recalcitrantes que
ficaram mais tempo na cama. Alguns preferem mesmo correr
esse risco, a largar os braos onricos de Morfeu, o que lhes
poder render, como punio, um final de semana a mais na
Fazenda. Nesses momentos iniciais, os cadetes realizam sua
higiene pessoal os homens fazem ainda a chamada tricotomia
facial, ou seja, a barba e se aprontam para a educao fsica.
06h Educao fsica
O expediente previsto no QTS tem incio com a prtica da educao fsica. Ao observarmos a distribuio da carga horria no
programa curricular, percebemos a importncia dessa disciplina
para o CFO: so-lhe reservadas nada mais, nada menos do que
180 horas-aula em cada ano do curso. A forma como na maioria
das vezes ela praticada, com movimentos coletivos padronizados, muito parecida com a que se utilizava nas instituies
militares, a chamada calistnica. Normalmente a aula de educao fsica rene, de um lado, o desespero de quem est abaixo
das condies fsicas da mdia do grupo e, de outro, o prazer
daquele que est bem e interiorizou essa prtica como um valor.
No incio do curso h os infindveis corrides que parecem
fazer parte do mesmo pacote de provaes que marcam a iniciao do nefito. Geralmente os cadetes do a volta ao mundo
nas segundas e nas sextas-feiras, quando realizam um circuito
de aproximadamente dez quilmetros, saindo da APM, indo
at o bairro vizinho de Deodoro, atravessando a Vila Militar e,
depois, retornando Sulacap por Marechal Hermes.
Essas aulas preparam o aluno para as provas de educao fsica
que vo ocorrer durante todo o ano letivo. A parte fixa dessas
142

provas se constitui no chamado TAF (Teste de Aptido Fsica),


que contm barras, abdominais e uma corrida de 12 minutos.
A outra pode eventualmente conter a natao, a corrida cross
country, a ginstica localizada ou, ainda, as recreaes com
variadas prticas desportivas.
07h15min Desjejum
Aps a aula de educao fsica, os alunos se dirigem ao rancho
para o caf e depois se dirigem rapidamente a seus alojamentos
para o banho. Logo depois, ele se vestem rapidamente com uniformes de parada para o hasteamento da bandeira que ocorrer
s oito em ponto: a ela, todo o militar deve o seu preito ritual
como determina o RCONT. Portanto, antes das oito, a corneta
j chama as companhias para o posicionamento padronizado no
centro do ptio interno, reunindo os cadetes frente do saguo
da Ala Sul para o deslocamento de todo o CA em direo ao
ptio externo. Ali esto os mastros que sustentaro os pavilhes,
nacional e estadual, a serem hasteados durante o evento.
08h Parado
A parada diria um elemento essencial da cultura militar.
Ela apresenta aquele mesmo mecanismo bsico de reforo
que encontramos no ritual militar das comemoraes do Dia da
Ptria (DAMATTA, 1990). Na APM, um tipo especial desse ritual
se refere ao momento em que todo o aquartelamento se rene
para a chamada parada geral ou parado. um daqueles
momentos em que o tempo suspenso para que o Corpo passe
em continncia s autoridades, aos valores militares e aos smbolos nacionais. Noutras ocasies esse mesmo aparato tambm
vai emoldurar os principais cerimoniais da APM, ajudando a
reforar os valores militares da APM.
Outros quartis da PMERJ deveriam realizar a parada diria
como determina o RCONT, no entanto, devido ambiguidade do
fazer policial militar e aos objetivos institucionais da Corporao, que fazem com que o policial esteja, na maioria das vezes,
desempenhando o trabalho policial na rua, normal que esse
143

preito deixe de ser realizado, quer por falta de efetivo, quer por
falta de interesse. Mesmo quando promovido nos Batalhes de
Polcia Militar (BPM), ele quase sempre deixa de seguir, risca,
os detalhes exigidos no RCONT.
Na APM, dependendo do comando, pode haver perodos em que
ele seja realizado somente com a equipe de servio do dia. Normalmente isso ocorre nos finais de semanas e feriados, quando
a maioria dos cadetes no est presente. Entretanto, certo
que o parado ocorra nas sextas e/ou nas segundas-feiras.
Nessas ocasies, as companhias entram em forma por ordem de
antiguidade, uma aps a outra. A primeira CIA, composta pelos
veteranos, vem na frente; depois, a segunda e, por ltimo, a
terceira, formada pelos bichos do Primeiro-ano. O conjunto
forma um bloco compacto que representa a totalidade do CFO.
frente das CIAs vo seus comandantes-alunos que, segundo a Nota Instrutiva no 025, so os alunos do Terceiro-ano que
obtiveram as melhores mdias na passagem do segundo para
o Terceiro-ano (do 2o ao 10o colocados), adquirindo, assim, o
direito de comand-las e de comandar seus pelotes. Trata-se j
de um exerccio para a profisso, pois, como se pode concluir
da frase do General Pessoa, ali o cadete est justamente para
aprender a comandar. Assim, a parada avana com os cadetes
marchando ao som da corneta, ao passo de ordinrio, marche!
e com o bumbo no p direito!

Figura 10 O "parado" segue

144

Com movimentos sincronizados, quase sempre acompanhados pela melodia da marcha militar executada pela Banda de
Msicos que vai frente da formatura , ou mesmo de uma
cano entoada viva voz pelos prprios cadetes, o parado
segue firme at o local em que diariamente so hasteadas as
bandeiras nacional e estadual. Os alunos do Terceiro-ano o
comandam at a chegada dos oficiais. uma forma de eles
treinarem para a vida profissional, dizem os oficiais. Assim que
o oficial mais antigo assume o seu lugar na parada, reservado
bem de frente para o Corpo formado, o aluno mais antigo sai de
forma e se dirige at ele numa teatralidade marcial de passos
lentos e cadenciados, para lhe passar o comando do parado.
um momento tenso para o cadete que ali tem de se separar de
seu grupo, o que raro de ocorrer naquele espao estruturado
dentro de uma lgica holstica de individualizao regulada pelo
CA, mas que faz parte de um objetivo programado. A frequncia
desses momentos vai aumentando com o decorrer das etapas
do CFO, o que revela uma passagem gradativa do coletivo
individualizao: se o cadete representa o coletivo, o oficial de
estar individualizado no comando das fraes. Esse processo
guarda, portanto, alguma similitude com o que Foucault chamou
de individualizao controlada (FOUCAULT, 2007).

Figura 11 Apresentao do parado para o hasteamento da


Bandeira

145

As bandeiras so hasteadas s oito horas em ponto, ao mesmo


tempo em que executado o hino nacional. Todos prestam suas
continncias (individual ou coletiva) e, logo depois, os cadetes
se preparam para se deslocarem em direo ao palanque, no
ptio interno da APM. Ali, eles prestam mais uma vez a continncia de tropa, agora ao oficial mais antigo que se encontra
justamente naquele palanque construdo especialmente para
momentos solenes.
Todas as turmas passam em ordem de antiguidade e, aps
cada uma delas prestar sua continncia, se posicionam no lado
oposto do palanque, de onde, sem cessar a cadncia marcial,
continuam seus deslocamentos em filas indianas, seguindo na
direo de suas respectivas salas de aula na Ala Leste, logo
atrs do palanque.
08h10min Incio do 1 expediente em sala de aula
Geralmente, por volta das oito horas e dez minutos, os alunos j
esto em sala de aula esperando, at no mximo s 8h15min, o
professor ou instrutor que dar incio sequncia das aulas do
primeiro expediente. Antes isso, no entanto, os cadetes ficam
de p, na posio de sentido, prestando-lhe a devida reverncia
ritual. O primeiro expediente prossegue assim at por volta das
11h45, quando ocorre um intervalo para o almoo.
11h45min Almoo
Os alunos saem de suas salas para o almoo, marchando coletivamente pelo ptio em passo ordinrio at o rancho, da
mesma maneira que se deslocam para o auditrio, por ocasio
das reunies ou outros eventos extraordinrios. Quando no
h necessidade de deslocamento coletivo, apenas veteranos e
cadetes do Segundo-ano, ou os extropiados podem caminhar
enquanto os bichos, pelo menos at o Espadim, tm de atravessar o ptio sempre em passo acelerado, isto :
Correndo, bicho!.

146

Do rancho, onde almoam, os alunos so dispensados para um


pequeno descanso em seus apartamentos. evidente que os cadetes do Terceiro-ano tero um tempo maior, porque entram no
rancho na frente antiguidade posto e, consequentemente,
saem para seus apartamentos tambm na frente dos demais.
Neste sentido, o bicharal quase no tem tempo de subir e
descansar, ainda mais com esses efetivos `enormes. O atual
Primeiro-ano tem mais de cem alunos!, 24 como reclamou um
cadete do Terceiro-ano do CFO/2003. O bicho s consegue fazer,
no mximo, a higiene bucal e, com sorte, alguns outros atos que
a fisiologia humana, agora ritual e literalmente equiparada a de
bichos, eventualmente venha lhes exigir. Assim, para os ltimos:
Cagar e mijar luxo que a gente s consegue rapidinho nos
intervalos das aulas. Assim mesmo, somente no banheiro do
ptio. Muito concorrido. Os outros esto no [Prdio] Anexo, que
rea proibido para o bicharal [no incio de CFO]. (Cadete
do Primeiro-ano do CFO/2003).

13h Incio do 2 expediente em sala de aula


Por volta das 13h, os cadetes descem e entram novamente em
forma; ouvem a leitura do BI, que contm informaes especficas da APM, mais as informaes gerais transcritas do Boletim
da PMERJ. Depois disso, eles seguem mais uma vez para suas
salas.
O segundo expediente comea por volta das 13h20min, quando
os cadetes j devem estar prontos aguardando o professor para
a primeira aula, exceto nas sextas-feiras, dia de liberao em
que s acontece a primeira parte do expediente, e este termina
s quatro e quinze da tarde.
Aps o trmino do expediente, os cadetes esto liberados at o
jantar. Alguns aproveitam para participar das equipes desportivas, que normalmente treinam nesse intervalo. Alguns o fazem
pelo prazer, outros pelo prestgio ou para driblar a presso
daquela rotina; outros, ainda, por razes prticas, piruando
conceitos melhores como veremos adiante.
24

Ultimamente no tem sido raro as turmas terem efetivos com mais de cem alunos.

147

18h Jantar
Por volta das 18 horas, os cadetes entram em forma em frente
ao rancho para o jantar. Antes disso, so conferidos pelos mais
antigos da equipe de servio. S vai entrar quem botou o nome
no vale de rancho!, advertem. O rancho uma atividade entendida como servio e, por isso, o cadete cobrado a comparecer
devidamente uniformizado, mesmo quando fora do expediente,
como se estivesse de servio.
Depois do jantar, o Corpo de Alunos dispensado at o pernoite, ltima apurao (confere) do dia. Mas estar escalado de
pernoite nos finais de semana sem ser da equipe de servio
funciona tambm como uma punio informal: a Rev Rec, isto
, Revista do Recolher, que obriga o cadete a se deslocar at a
APM para essa nica finalidade.
Aps tudo isso, os horrios so flexveis na APM. Para o
bicharal vale, nesse caso, a seguinte mxima difundida pelos veteranos: bicho, a noite uma criana. o momento
tradicionalmente propcio para o trote. Para os alunos do
Segundo-ano, livres dessa relao, uma excelente oportunidade para colocar os estudos em dia.
22h Silncio
Ao toque do silncio, todas as luzes dos alojamentos, exceto
as do banheiro, devem ser apagadas e todos os cadetes devem,
em tese, estar na cama. No mundo militar, o silncio significa
descanso. Mas, como descanso para cadete relativo, na alvorada ele j tem de estar de p, s 05:30h, para a nova jornada.
Alm do mais, possvel que haja os trotes da madrugada. Contudo, o toque do Silncio, conhecida composio da lavra de
Nini Rosso, bem diferente do toque da alvorada. Sua melodia
melanclica a mesma que dali por diante preencher os momentos de dor na carreira policial militar, marcando a separao
do companheiro morto em servio, nos rituais fnebres.

148

Ordem, limpeza e controle


Como pudemos ver at aqui, controle a palavra-chave que d
coerncia ao ambiente social da APM. As condutas dos cadetes
so reguladas por meio do que foi previsto e planejado. Nesse
sentido, todas as atividades so cuidadosamente elaboradas. A
visita de uma autoridade, por exemplo, planejada nos mnimos
detalhes por documentos formais que foram elaborados pela
Diviso de Ensino, como ocorre com as chamadas ordens de
servio (OS).
Uma Ordem de Servio um documento formal elaborado
com base numa espcie de manual que se chama Trabalho de
Comando, construdo a partir de um TTP (Trabalho Tcnico Profissional) do Coronel Portela, quando ele fez o CSP25 e
adaptou, para a PMERJ, vrias normas das Foras Armadas.
As ordens formais so duas, e podem surgir de duas maneiras
distintas, a primeira a ordem de operaes (O/Op), que dizem
respeito mais especificamente aos servios das atividades-fim,
ou seja, das operaes policiais militares. A outra a O/S propriamente dita, mais genrica e que diz respeito ao servio de
uma maneira geral, seja ele de qualquer natureza. Elas podem
advir tanto de uma Diretriz que, no caso, pode ser determinada
pelo Comando Intermedirio ou pelo prprio Comando Geral,
quanto do prprio Comandante da Unidade. Uma diretriz de
operaes (Dtz Op) gera O/Op e uma Diretriz de Servio (Dtz
S.), gera O/S. (Oficial da Diviso de Ensino da APM).

a prpria Diviso de Ensino que, com pelo menos uma semana


de antecedncia, elabora tambm o QTS (Quadro de Trabalho
Semanal), no qual est estabelecida toda a rotina acadmica
da semana. Cabe ao comando do CA cobrar dos alunos o fiel
cumprimento dessas atividades rotineiras. Uma rotina assim,
to detalhada, indica preocupao com o controle dentro de um
ambiente regido por regras que compem a disciplina militar.
O aspecto fsico e os smbolos que permeiam o mundo objetivamente compartilhado da APM trazem esses significados de
controle coletivo. Nesse perodo de formao, os futuros oficiais so postos em contato com valores peculiares da caserna,
intrinsecamente associados ordem, ao mesmo tempo em que
25

Curso Superior de Polcia, requisito para que o oficial superior (majores e tenentescoronis) atinja o ltimo posto na carreira que o de coronel PM.

149

lhes exigido um comportamento assptico, com aes que


vo da limpeza do ambiente e do uniforme, ao asseio do prprio
corpo. Alguns momentos so reservados para essas atividades
de purificao fsica. O corte dos cabelos, por exemplo, ocorre
em dias especficos para cada uma das turmas do CFO e, nessas
oportunidades, a barbearia intensamente disputada. A tricotomia facial, embora no tendo um horrio preestabelecido na
NGA e a princpio apresente um carter individual, acaba sendo realizada num mesmo horrio pelos cadetes, ou seja, logo
quando acordam. Nesses momentos, os alojamentos masculinos, com cerca de cinco a oito cadetes em mdia, apresentam
contornos de um ritual coletivo, cuja coreografia assptica nos
mostra aqueles cadetes que mais bem interiorizaram a caserna
lustrando mais intensamente seus sapatos e coturnos. Outros
talvez os acompanhem mais pelo clculo da sobrevivncia social
do que pela vibrao, contudo faz-se a limpeza do ambiente,
do uniforme e do prprio corpo quase sempre em momentos
especficos e coletivos.
Da mesma forma, o uniforme alinhado logo depois da alvorada at um ltimo retoque na frente do espelho das alas; os
metais do espadim e os botes da tnica so polidos; as camas
arrumadas; o alojamento limpo; os objetos do armrio e das
camas alinhados; e, aps a educao fsica, o banho tomado.
Estes so, sem dvida, comportamentos socialmente exigidos
naquele contexto, o que configura uma coreografia repleta de
significados que relacionam ordem limpa a uma limpeza ordenada. Aqui, portanto, so inevitveis as consideraes de Douglas
(1991) para a anlise desses dados.
Em certas ocasies, como nas solenidades e nas liberaes dos
fins de semana, essa coreografia ainda praticada com mais
rigor em razo das diferentes temporalidades que pontuam o
cotidiano da APM. H todo um comportamento especial indicando o tempo das festas logo nas vsperas das solenidades de
maior envergadura, como o Espadim e o Aspirantado. Alm
disso, essas ocasies especiais se iniciam com um toque especial
de alvorada festiva, diferentemente daquele primeiro toque de
corneta cotidiano na APM, os uniformes de gala, indumentria
150

tambm especial para as cerimnias, so limpos e os metais so


polidos com mais nfase.
Nesse sentido, o caos que representa impureza e desordem
altamente negativo no ambiente institucional da APM. O desleixo na observncia dessas regras de asseio pode at mesmo ser
considerado falta de cadete, punvel com LS. De fato, uma
das causas mais frequentes desse tipo de punio a cama em
desalinho, conforme mostram os registros do CA.26 Assim, esses
smbolos, que indicam pureza e se identificam com a ordem
asctica do militarismo, podem, facilmente, ser observados nas
instalaes fsicas de uma APM que est dentro dos chamados
padres militares. Isso explica a imponncia das cores sbrias, porm discretas, que l encontramos e que vo desde
um plcido azul celeste a um branco pacfico. De uma maneira
geral, podemos dizer que elas indicam ordem, paz e pureza. Da
mesma forma, o padro retilneo das linhas arquitetnicas e o
corte aparado, tanto dos canteiros da APM, quanto dos cabelos
dos cadetes, revelam, nessa mesma continncia, que os smbolos
e valores militares que devem ser interiorizados e praticados
coletivamente pelo cadete da PM em seu cotidiano.
O controle, em termos militares, significa a previsibilidade pela
qual se garante a manuteno da ordem institucional. Em outras
palavras, essa previsibilidade representa a segurana institucionalmente almejada. Afinal, ali so socializados militares, que em
linhas gerais so profissionais de segurana pblica. Portanto,
ordem, segurana, planejamento e, principalmente, controle, categorias tpicas do universo militar, ou seja, da caserna,
so tambm recorrentes na APM.
Significados semelhantes tambm foram anotados em campo
por Leirner (1997), quando de sua etnografia realizada na Escola
de estado Maior do Exrcito (ECEME).
Se, por um lado, tudo havia se passado to rpido que a minha
presena mal pudesse ser notada, por outro, este mesmo fato,
talvez por causa da recepo absolutamente precisa e sincro26

Documentos de controle do CA, a que tive acesso em meu trabalho de campo, no


qual constam o processo punitivo do Corpo de Alunos, com as faltas observadas e
a respostas do cadete.

151

nizada na sua sequncia de atos, me passava a sensao de que


havia algum tipo de conhecimento prvio da minha pessoa. Foi
a que percebi que estava lidando com um grupo para o qual
no havia muito espao para o imprevisto, o desconhecido, o
aleatrio e o casual (LEIRNER, 1997, p. 33)

J Muniz (1999) observa as mesmas representaes tpicas no


comportamento de oficiais da PMERJ.
Toda vez que me encontro diante de um oficial da PM, imediatamente vem minha mente a seguinte questo: como eles
conseguem, aps um dia inteiro de trabalho, aparentar ter
acabado de sair do banho? At bem pouco tempo, essa minha
despretensiosa impresso estava somente dirigida aos padres
e pastores. Penso que os policiais militares buscam causar a
impresso de que nunca se encontram desprevenidos, largados
ao sabor do acaso, do imprevisto ou da deriva que, em boa
medida, conformam o ambiente de trabalho policial ostensivo.
De algum modo, isto operaria com uma espcie de contraponto
simblico experimentao da incerteza, e consequente
percepo ampliada do perigo. A disciplinarizao do corpo
e o seu requinte apresentam-se, portanto, como uma espcie
de testemunho da possibilidade de intervir e contornar aquilo
que se mostra arredio, inesperado ou contingente. Os PMs,
particularmente os oficiais, procuram estar sempre impecveis,
encenando um estado continuado de prontido, ou melhor, de
engajamento cerimonial. Seu visual, principalmente quando
fardados, estaria fazendo uso do prprio jargo policial, sempre
pronto para ser passado em revista pelo Comando e pela
sociedade. (MUNIZ, 1999, p. 93).

A entrevista abaixo, concedida por um oficial da APM, traz indcios dessa valorizao positiva da ordem e da previsibilidade
militar, ao tratar de um incidente ocorrido durante uma solenidade de entrega de espadins. Nela, ainda podemos perceber
os contornos da mesma teoria nativa que representa a PM, no
momento em que esses valores da caserna, de um militarismo
ideal ali representado pelo Exrcito, colocado diante de uma
PM com seu complexo de patinho feio que no saberia realizar
corretamente os ritos militares.
Uma vez o Comandante Militar do Leste tinha chegado e, a
princpio ele era a maior autoridade presente Se fosse seguir
o regulamento, s o primeiro oficial general ou, no caso, a
governadora, teria direito [ao toque do corneteiro]. Os demais

152

que fossem chegando no tinham, porque j gastou o toque de


oficial general. Ministro ou Chefe de Estado tem direito toque
em misso oficial. Se o Ministro da Educao visitar a Academia
sempre tem, porque o Ministro da Educao; como o governador tambm sempre tem. O problema que foi chegando o
Comandante Geral, o [Secretrio de Segurana Pblica] Josias
Quintal e a, por piscao,27o comandante da Academia mandou dar o toque pr todo mundo. Rasgou o regulamento. Todo
mundo que chegava recebia toque e a o general do Comando
Militar do Leste ficou puto, sem entender nada. Deu aquela
ideia de baguna. (Oficial da APM).

O Cadete-Padro e a poltica do CA
Com a classificao obtida no vestibular, o primeiro colocado da
turma do Primeiro-ano o seu zero-um, ou seja, aquele cadete
que traz a primeira numrica da turma (01) logo depois do ano
de entrada no CFO e adquire, por isso, atribuies especiais.
Assim, cada turma tem o seu zero-um que, mais do que uma
numrica, representa o aluno mais antigo, elo entre a turma e
o comando do CA. Nessa funo, o cadete fica encarregado de
trazer e fazer com que sejam cumpridas pelos prprios companheiros de turma, as determinaes do CA.
Nos anos seguintes o zero-um pode deixar de caber ao mais
antigo de entrada (do vestibular), j que a disputa passa a envolver tambm as notas das provas curriculares de todo o perodo
letivo do CFO, que, juntamente com o grau do conceito individual atribudo pelos oficiais da APM, comporo a mdia final
dos cadetes naquele respectivo ano. Assim, a cada ano letivo,
bem provvel que a classificao do CFO seja alterada com o
balano final dos resultados obtidos no perodo.
O primeiro colocado do Terceiro-ano representa um caso especial, pois, alm de ser o zero-um da turma, tambm o cadete
mais antigo de toda a Academia. Nesse caso, o zero-um passar a
ser chamado de cadete-padro ou aluno-padro e, ao adquirir
essa posio, auxiliar os oficiais do CA na sua ao disciplinar
27

Piscar, uma categoria nativa que significa o medo do militar em contrariar a ordem
da autoridade hierarquicamente superior, dizendo-se, ento, que fulano piscou.
Segundo meu interlocutor o comandante da APM piscou ali, diante daquele dilema
institucional.

153

sobre os demais cadetes.28A cada ano a Academia tem seu cadete ou aluno-padro que, segundo as NGA, escolhido por um
conselho escolar entre os trs primeiros colocados do segundo
para o Terceiro-ano. No saguo que liga o ptio principal ao
Prdio Anexo, h um mural com as fotos de todos os cadetes
consagrados como aluno-padro da Academia.
A disputa para obter essa posio de destaque comea no final
do Segundo-ano letivo e envolve os nomes dos trs cadetes
mais bem classificados por nota, ou seja, pela mdia dos pontos que obtiveram nas matrias curriculares. Para almejar ser
cadete-padro, o aluno tambm deve ficar atento ao conceito
a ser inserido na Ficha de Avaliao Disciplinar29 (FAD) preenchida pelos oficias do CA pois, como vimos, esse grau entrar
no clculo de sua mdia final. O conceito, portanto, poder ser
fundamental nos momentos decisivos pois, dependendo da
situao individual do cadete, pode alterar sua ordem final de
classificao. O nome do cadete-padro da APM poder ainda
no ser o do primeiro colocado de nota, j que a escolha recai
sobre qualquer um dos trs primeiros colocados.
Segundo os cadetes mais antigos, antes havia o chamado conceito horizontal que eles prprios emitiam entre si e que era
somado ao conceito vertical emitido pelo CMT da Cia. Ao longo dos anos, o CA percebeu que havia nesse conceito horizontal
uma possibilidade de os alunos manipularem a escolha do zero-um, promovendo um movimento orquestrado para derrubar o
aluno-padro do CA. Houve, ento, segundo eles prprios, uma
correo desse mecanismo acabando com o conceito horizontal
e permanecendo com a FAD e seu conceito vertical.
interessante perceber que h por parte dos alunos uma grande
desconfiana de que ocorra mesmo uma manipulao do CA na
definio do nome dos trs que disputaro a posio de cadete28

Conforme constava na Nota Instrutiva n 014, da NGA do Corpo de Alunos.

29

A Ficha de Avaliao Disciplinar confeccionada pelos oficiais do CA e representa o


grau numrico baseado no conceito individual do aluno. Cada cadete possui, portanto,
a sua FAD, na qual consta o conceito recebido pelos oficiais da APM. A FAD entra no
cmputo final das notas dos alunos e pode mesmo, segundo a legislao interna da
APM, influenciar na mudana de classificao, para mais ou para menos, dependendo
do conceito que o aluno obtiver, embora essa possibilidade seja bem pequena.

154

-padro. Muitos me alegaram que a FAD teria sido a responsvel


por suas eventuais posies dentro do ranking hierrquico do
CFO, ou, mesmo, pelo fato de no terem conseguido ser um
zero de turma (classificado entre os nove primeiros).
Os momentos que antecedem a escolha do zero-um so envoltos por um clima de mistrio, principalmente quando os trs
concorrentes, um de cada vez, treinam na Guarda-Bandeira,
local tradicionalmente reservado para o cadete-padro, para a
solenidade do Aspirantado. Esse mistrio, que, na opinio dos
alunos intencionalmente institudo porque ningum sabe a
princpio quem ser o cadete-padro, parece ser um sinal claro
de que o CA detenha a ingerncia na classificao do CFO e de
que as posies meritocrticas, conquistadas por nota de acordo
com seus desempenhos individuais, possam ser alteradas. Tal
fato talvez reforce a representao de que o cadete-padro seja
mesmo o escolhido do CA e no o vencedor de um concurso
de regras claras e universais, como as estabelecidas no Regulamento Interno da APM (RIAPM) para a atividade acadmica.
Por esse prisma, no bastaria ser o melhor aluno no sentido eminentemente intelectual, mas tambm estar enquadrado naquela
espcie de tica institucional que os cadetes frequentemente
chamam de a poltica do CA.
Ser o cadete-padro significa, portanto, ter uma posio diferenciada no Corpo de Alunos, pois o escolhido vai conduzir
a escola frente do Terceiro-ano. Nesse sentido, apesar de
os veteranos mandarem na Escola, o cadete-padro, como
chefe da disciplina e representante da poltica do CA, quem
comanda a escola. Alm disso, essa condio de quase-oficial
o gabarita, caso consiga se manter como zero-um de sua turma
at o final do CFO, a deixar a APM j como segundo-tenente,
sem passar pelo posto de aspirante, j que o zero-um de sada o
nico cadete que ingressa no oficialato j como segundo-tenente.
Outro benefcio que destaca sua posio diferenciada o fato
de ele no concorrer escala de servios dos alunos,30 tirando
somente o primeiro e o ltimo servio de oficial-de-dia daquele
ano letivo, que ritualmente passado de cadete-padro que sai
30

Essas atividades sero mostradas num captulo mais adiante.

155

para cadete-padro que entra. Seu servio , nesse sentido, o


de conduzir disciplinarmente a Escola.
O cadete-padro institudo na mesma cerimnia em que
ocorre a entrega das espadas aos novos aspirantes (Aspirantado), num espao aberto para a sua consagrao como o novo
porta-estandarte da Escola. Ele, ento, recebe a faixa e o
estandarte da APM das mos de seu antecessor que, naquele
momento, estar deixando a escola. Dali por diante, toda vez
que o cadete-padro conduzir esse smbolo nas solenidades
mais importantes, lembrar a todos a sua posio social e que
ele o mais digno e competente para conduzir o Corpo de
Alunos em nome do CA.
Nas solenidades de maior vulto, a Bandeira Nacional incorporada por meio de um cerimonial parte, com toda a tropa
formada. O cadete-padro fica posicionado na Guarda-Bandeira,
empunhando o estandarte da APM como o seu porta-estandarte.
Nessa posio, ele acompanha mimeticamente os passos do oficial responsvel pela Guarda que, nesses momentos, empunha
a Bandeira. Assim, conduzindo o estandarte, o cadete-padro
j vai aprendendo com o oficial a maneira correta de conduzir
aquele smbolo nacional.
Tanto nas solenidades que ocorrem nos momentos festivos
da APM quanto em alguns de seus rituais rotineiros, o cadete-padro separado do restante do Corpo a mesma lgica da
separao militar que constri a desigualdade entre semelhantes
, ficando posicionado junto aos oficiais. Isso ocorre, por exemplo, na parada diria e na leitura das punies disciplinares.
Nesses momentos, sua posio simbolicamente reforada
perante o Corpo, da mesma maneira como ocorre com os
smbolos militares nos focos rituais. De certa forma, o cadete-padro representa um smbolo vivo do CA e, nesse sentido,
o bom cadete-padro para o CA o que pode manter a escola
disciplinada, isto , controlada e em ordem.
Aqui talvez seja interessante recuperar uma ideia de smbolos
rituais em DaMatta (1990) a partir das observaes de Turner
(2005), isto , como objetos ou papis sociais que, ao serem
156

deslocados estrategicamente de um domnio social para outro,


promovem uma aguda conscincia de passagens e interferncias de domnio uns nos outros (DaMatta, 1990, p. 78),
suficiente para produzir determinado discurso simblico. Nesse
sentido, na medida em que o cadete-padro (ou seu corpo)
estrategicamente deslocado do restante do Corpo para nortear o
comportamento dos cadetes por meio de um discurso corporal
construdo pela prpria instituio, ele se torna uma extenso
viva da poltica do CA e, assim, pode ser entendido como
um verdadeiro smbolo da disciplina militar na APM, o que vai
reforar a representao de que o cadete-padro aquele que
comanda a escola como porta-voz do CA.
evidente que nem todos os cadetes estaro ajustados a esse
padro ideal, talvez nem o prprio cadete-padro emprico.
Nesse caso, o processo cotidiano disciplinar da APM, ajudado
pelo sistema de valores impingido nesse corpo-smbolo, cujas
qualidades so fundamentais no processo de socializao dos
futuros oficiais, parece focar no ajuste dos que se desviam desse padro poltico. Creio podermos aqui tambm vislumbrar
um sistema de valores institucionais a partir da observao do
cadete-padro como uma personificao das qualidades idealizadas pela instituio para a construo de seu oficial. Comoj
discutimos antes, interessante entender aqui o corpo como
um objeto passvel da anlise antropolgica. Nesse sentido,
o corpo sempre um locus privilegiado de observaes; seja
como tcnica corporal, como props Marcel Mauss (2003); seja
como estratgias polticas e prticas discursivas que nele
se manifestam sob a forma das disciplinas, como pretendeu
Michel Foucault (2007); seja como o fez Pierre Bourdieu (1998),
observando e identificando o habitus a partir de uma hexis
corporal aprendida e praticada como estruturas estruturadas
e estruturantes que, por meio dele, se materializam.
Quanto a isso, tanto as minhas observaes quanto as de meus
interlocutores em campo indicaram algumas seno as principais qualidades que o cadete-padro deve ter. Uma boa voz
de comando, ser vibrador, disciplinado e disciplinador, alm de
ser bom em educao fsica. Essas seriam, portanto, algumas
157

das qualidades necessrias para se ser cadete-padro, conforme


me explicou um oficial do CA. fcil perceber que elas se assemelham s qualidades necessrias para a construo de lderes
guerreiros e, num certo sentido, so semelhantes s qualidades
observadas por Celso Castro (2002) na construo mitolgica
de Caxias como patrono do Exrcito Brasileiro. Nesse caso,
percebe-se a importncia da lealdade como valor militar, mas
a qualidade a ser destacada no cadete-padro pareceu-me
novamente ser mesmo a vibrao, ou seja, aqualidade de despertar nos outros a emoo necessria para a formao deum
esprito de corpo; o que se torna quase uma obrigaomoral
para o grupo militar.
A percepo dos sentimentos como uma obrigao moral,
parte dos fenmenos psicolgicos e individuais, portanto, j
havia sido identificada, sobretudo, em estudos de sociedades
simples por Mauss (2003). No que diz respeito especificamente
vibrao, DaMatta (1990) discutiu o significado dessa categoria, observando que:
No Brasil, a palavra vibrao denota tais aspectos de alto teor
emocional, indicativos talvez de um sentimento de communitas quando se pode ver virtualmente esse aspecto bsico do
sistema na sua representao atravs da parada militar, nas
continncias s autoridades e no momento em que se canta o
hino nacional. (DAMATTA, 1990, p. 56)

Portanto, a vibrao do cadete-padro esse sentimento


que aglutina o Corpo, incentivando a communitas que aqui
representada na caserna. Nesse particular, a categoria cadete-padro nos remete ao mito militar31 com seus valores da coeso
e da lealdade para com a sua instituio, o que mais uma vez nos
indica uma socializao preponderantemente militar na APM,
com os cadetes interiorizando a caserna. De fato, esse teor
31

interessante notar que as qualidades do cadete-padro no nos remetem ao mito


de Tiradentes, patrono das PMs, mas ao patrono do Exrcito. O que me pareceu uma
incoerncia, afinal, Tiradentes se contrape a Caxias em termos de disciplina, j que
representa um indivduo que questionou o sistema na luta por liberdade. Dessa forma,
para uma instituio que idealiza seus futuros oficiais disciplinados no sentido de
Caxias para a prpria manuteno do status quo, ter um patrono como Tiradentes
, no mnimo, intrigante. Mais: Tiradentes era alferes, algo talvez indesejvel de se
ver consagrado como padro num ritual militar brasileiro.

158

emocional, marca do habitus militar, se ope sistematicamente


ao pragmatismo da rua presente num possvel habitus policial.
Ao trazer essa hexis caracterstica como uma espcie de longa
manus militar, o cadete-padro carrega consigo, e para dentro
do Corpo de Alunos, a poltica do CA. Assim, caberia a ele conduzir a escola com boa voz de comando e muita vibrao,
dentro da disciplina da caserna orientada pelo CA. Em contrapartida o CA lhe retribui com considerao, refletindo a lgica
da honra e da distino do indivduo, tambm dentro de uma
dimenso moral. interessante perceber as semelhanas nos
significados dessa categoria nativa com os de uma categoria
homnima j definida por Luis Roberto Cardoso de Oliveira
(2002). Com efeito, Oliveira argumenta que a considerao
valorizada em ambientes sociais que apresentam uma viso
de mundo caracteristicamente hierarquizada, na qual os atores
encontram dificuldade para dissociar mrito de desempenho, o
que, por outro lado, no ocorreria em ambientes sociais em que
a ideologia moderna predomina com seus valores individuais
universalizveis. Por isso o autor conclui que os brasileiros
costumam valorizar muito mais expresses de considerao
pessoa de seus interlocutores do que aos direitos (universalizveis) do cidado genrico (OLIVEIRA, 2002, p. 105). Nesse
sentido, quando elegemos algum que no merece nossa considerao, negamos-lhe tambm seus direitos individuais. Ao
contrrio, a considerao depositada naqueles em que reconhecemos serem merecedores de tais direitos. Dessa forma,
categorias que refletem considerao s teriam eficcia em
ambientes relacionais, de acordo com DaMatta (1990), que naturalizam a desigualdade, j que o indivduo ideolgico rejeita,
em tese, essa lgica da honra e da distino.
Muitos companheiros de turma entendiam que o escolhido com
tal honraria havia mudado mesmo era de posio, isto , deixou
de ser pondero (questionador), de lutar pelos interesses da
turma, passando a fazer parte da poltica do CA. Nesse sentido,
o cadete-padro est numa posio contrria aos interesses dos
alunos naquele campo de disputas, como deixou transparecer
uma cadete do Terceiro-ano:
159

A zero-um do meu Primeiro-ano era a S.; ela era bem ponderona; mas ponderava tudo em benefcio da turma. Hoje ela bem
calada, tranquila; mudou bastante, at mais do que precisava.
(Cadete R., do Terceiro-ano do CFO/2003).

fcil perceber que, sendo o cadete mais antigo do CFO, o


cadete-padro considerado quase um oficial. Assim, ele pode
comandar a Escola em nome do CA, j que comandar a arte
do oficial, arte que aqui estar relacionada a seu poder de punir
ou de, pelo menos, iniciar o processo punitivo disciplinar, como
veremos adiante. Para alguns, a escolha do zero-um fruto do
reconhecimento de sua vibrao e da dedicao manifestada
no controle dos alunos, anotando e participando, ao CA, as
faltas cometidas por seus prprios companheiros. assim, nesse sentido, que o cadete-padro materializa a poltica do CA.
O Aluno-Padro tem legitimidade, mas mais pela caneta.
A participao dele punio certa. Ele tem usado [a caneta]
mais dentro da prpria turma que a mais difcil de controlar.
Ele o Zero-um de nota tambm. Admiro muito a dedicao
dele nos estudos. Em poca de prova, nem banho ele toma, s
estuda. Ele do meu apartamento. um preo a pagar, porque
a turma..., quando ele era do Primeiro-ano todo mundo gostava
dele. Hoje, tem muita gente que tem raiva... Ele teve que mandar
porque teve que cobrar. Ano passado ele esqueceu uma camisa
no apartamento e ningum quis guardar, para deix-lo ser anotado pelo Terceiro-ano. Ele o Zero-Um desde o Segundo-ano.
(Cadete I., do Terceiro- ano, CFO/2003).

Essa representao tambm ficou patente na entrevista que me


foi concedida pelo cadete M., zero-dois (02) do Terceiro-ano,
que havia perdido a disputa para o atual Cadete-Padro no ano
anterior. No entanto, a disputa entre ambos parecia continuar de
forma velada durante aquele ano. Na oportunidade em que me
concedeu a entrevista, M. havia sido punido com LS e tentava
justificar, tanto a punio, quanto sua classificao no CFO, por
no estar enquadrado nos moldes idealizados para um cadete-padro, segundo a poltica do CA.
Antes de vir para a APM, eu servi no CPOR,32 era intendente.
A diferena entre o CPOR e a APM que l a preocupao era
32

Centro de Preparao de Oficiais da Reserva, que forma o Oficial da Reserva (R/2)


do Exrcito Brasileiro, capacitando-o convocao temporria para o servio ativo.

160

com o aspecto tcnico e aqui com a rigidez disciplinar. Por


isso eu sou muito mais ponderado na anotao das faltas dos
cadetes; por isso tenho caractersticas diferentes do [atual]
Cadete-Padro, o que no agrada ao CA. Ele [o Cadete-Padro]
muito rgido e pouco flexvel. A orientao passa pelas noes
de Chefia e Liderana aprendidas nas aulas, mas a poltica do
CA destri isso tudo. A poltica de punir e punir. As aulas no
valem de nada, pois o que se aprende em relao liderana
assimilado nesse dia a dia. Em relao prtica, essas aulas
so uma utopia. Profissionais no se improvisam e o mando
cabe ao mais digno diz aquela frase [do General Pessoa], mas
o mais antigo quem manda e manda mesmo. a mxima do
boal e soberano. Hoje eu estou cumprindo uma punio, mas
acho que ela foi mais simblica, pois podia ter sido relevada
pelo CA, por tudo o que fao pela Escola. No o que o Capito
Peixoto disse no julgamento do cadete Vasconcelos? Que ele
teve considerao? A funo do Cadete-Padro punir. Dentro
da hierarquia e da disciplina, h um espao para o exerccio
do dilogo e da chefia e liderana. O que t sendo valorizado
a ausncia do dilogo. O oficial t chegando na tropa com
essa viso de disciplinador; de ser o exemplo. (Cadete M., do
Terceiro- ano, CFO/2003).

Quase sempre essas qualidades, que dizem respeito disciplina


e vibrao, faziam a diferena na hora da escolha do CA.
E a torcida aumentava mais ainda nas vsperas das notas finais.
Nesses momentos, o principal assunto nas poucas rodinhas
que havia durante o expediente na APM era a escolha do
cadete-padro; era ele quem, pela antiguidade alcanada, iria
comandar a escola. Agora, se ele seria o mais digno e competente, como pretendia o General Pessoa, os cadetes tinham
l suas dvidas.
Havia mesmo, na APM, aquela representao de que a FAD
tinha um valor muito maior do que ela realmente possui. Na
realidade, a possibilidade de alterao da nota para a escolha
do cadete-padro, era mnima; no nvel dos dcimos, ou mesmo,
dos centsimos de ponto. Mas, como de fato a FAD j havia alterado posies em disputas acirradas pelo primeiro lugar, isso
com certeza reforava a representao de que ela era mesmo a
vil manipuladora da ordem natural dos graus de desempenho
obtidos nas provas.

161

Foi interessante notar mais uma vez que havia uma disputa ideolgica entre caserna presente na poltica do CA, com sua lgica
da honra e da considerao, na qual a FAD era o seu maior
exemplo, e a ideologia liberal moderna presente nas disputas
pelo desempenho individual que ocorria nas salas de aula. Foi
interessante perceber, tambm, que as qualidades militares e os
valores coletivos que formam o padro do CA, por meio do
qual se pode mapear o sistema de valores do programa ideo
lgico institucional, quase sempre se manifestavam nas FAD.
Para tentar compreender o habitus que ali se constri, ou seja,
aquele arqutipo institucional vivido e corporificado (BOURDIEU, 1980), resolvi conversar com o prprio Cadete-Padro
de 2003, enquanto fazia minhas anotaes de campo. Com
uma estrela amarela no uniforme, do lado esquerdo do peito,
que o distinguia dos demais cadetes, o cadete G. me pareceu
um pouco preocupado com a conversa, fato que pude verificar
nas frases de palavras cuidadosamente colocadas. O clima s
ficou mais tranquilo quando, entendendo o valor que a lealdade
podia representar para ele naquele ambiente, informei-o de
que minha pesquisa estava autorizada pelo comando da APM,
fato que remontava mais uma vez ao mito de Caxias (CASTRO,
2002). Alis, foi interessante notar que a hexis corporal de G.
parecia ter como referncia o Exrcito. Ele confirmou essa
predileo aps a entrevista, na continuao da conversa sobre a pesquisa. Na oportunidade, mostrei-lhe alguns livros que
trazia comigo na linha antropolgica, para tentar descontrair o
ambiente e fazer com que minha presena no fosse confundida
com um servio de P/2, o que naquele ambiente de vigilncia
e controle era temido at pelo cadete-padro. Apresentei-lhe,
ento, aqueles livros que, se houvesse interessasse, poderiam
ser levados para uma rpida leitura naquele final de semana.
Dentre os livros apresentados, dois se referiam socializao
de cadetes. O primeiro tratava de uma etnografia realizada na
Academia da Polcia Militar do Cear (S, 2002). O segundo era
uma etnografia que tratava da construo de uma identidade
militar (CASTRO, 1990). Foi justamente este ltimo, a etnografia da AMAN, que G. resolveu levar emprestado.

162

No era a primeira vez, portanto, que a AMAN surgia como referncia para a APM. Em determinados momentos ela pareceu
mesmo ser um modelo ideal. Bastava ler aquela etnografia de
Castro (1990) para, ao compar-la com a realidade da APM, se
compreender isso. Evidentemente, o que havia me chamado
aateno naquela escolha no fra o fato de ela demonstrar a
curiosidade de G. em conhecer uma realidade diferente da sua,
mas sim o fato de o Exrcito surgir mais uma vez como uma
referncia para o policial militar.
Este comportamento tem-se reproduzido a fim de que haja
uma seleo na qual os mais adaptados continuam e os mais
fracos desistem. No entanto, os valores que orientam essa
adaptao na APM so, na verdade, parte de uma estratgia
demanuteno de suas estruturas sociais. O comportamentode
G., o cadete-padro e, em tese, o mais adaptado dos cadetes
naquele momento, reflete o mesmo comportamento dos oficiais
que idealizam a caserna como valor exclusivo e que, no caso da
APM, mantm a AMAN como referncia na construo social
dos futuros oficiais. Verificando as trajetrias das duas academias, podemos perceber certo paralelismo entre elas indicando
uma confuso referencial da PM com o Exrcito, pronta para
produzir a mesma crise identitria percebida por Muniz (2001).
G. parecia tenso, medindo cada palavra que dizia e cuidando
estrategicamente da manuteno simblica de sua imagem. Ao
mesmo tempo que aparentava orgulho, parecia preocupado ora
com a impostao da voz, ora com os movimentos corporais.
Tambm permeava a conversa com frases do tipo eu no gosto
de aparecer que condiziam com aquela hexis corporal idealizada, mas que, repetidas vrias vezes ao longo da entrevista,
pareciam convencer um comportamento corporal emprico em
constante manuteno. Isso tambm parecia aparentar uma
valorao negativa da autopromoo, mesmo que, inconscientemente, as palavras de G. proporcionassem, a contrario senso,
uma espcie de autopenitncia por esse desvio egocntrico.
Nesse sentido, fica fcil concluir que os homens, representados
em nossa sociedade por sua virilidade caracterstica, so os candidatos naturais a cadete-padro, o que a princpio descartava
163

as mulheres dessa torcida do CA. Quando alguma FEM era


zero-um, ou cadete-padro, as explicaes mais comuns eram
as de que a mdia de suas provas escritas foi alta demais para
que o CA, com o conceito da FAD, pudesse alterar sua classificao. A fim de entender melhor essas qualidades, perguntei a
uma cadete do Terceiro-ano se ela teria chance de ser a zero-um:
Eu? Com certeza, no. impossvel, porque o G. (Cadete Padro) muito cepo (estudioso). O M. (zero-dois) compete
com ele com relao nota, mas o M. tem a FAD mais baixa.
(Cadete FEM R., Terceiro-ano do CFO).

Ao insistir, perguntando a R. se, caso tivesse nota, ela seria


candidata posio de cadete-padro, ela respondeu, de um
modo ainda mais esclarecedor:
Certamente, no, porque j teve experincia [na APM] com FEM
e no foi muito boa, porque o pessoal achava que ela tinha que
dar mais bronca do que dava; tinha que ser mais rspida. Ela
era minha veterana direta, eu acho que ela era uma excelente
pessoa, e cadete tambm. Eu no acho que ela era rspida. Eu
acho que, se for com polidez, se consegue a mesma coisa. Se
eu fosse a Zero-Um, eu continuaria a mesma coisa, devido a
maioria ser masculina. Eles acham que as FEM no tm perfil,
mas eu acho que tm.33 (Cadete FEM R., 3o ano do CFO).

Aqui, a entrevistada parece querer separar o cadete-padro


de sua essncia humana, talvez para desumanizar a figura do
cadete-padro emprico. Por isso, sua veterana no havia sido
uma boa cadete-padro, j que, representando a sensibilidade
feminina, ela parecia fraca em face das qualidades do guerreiro
militar. Esse fato pareceu reforar a representao do cadete-padro ideal, caracterizado especialmente pela fora, rispidez e
insensibilidade, qualidades incompatveis com as caractersticas
culturalmente construdas para o gnero feminino na sociedade
ocidental.
O universo da APM , portanto, representado como um espao
social essencialmente masculino, no qual a mulher eventualmente sobrevive. Esta percepo tem gerado algumas estratgias
de comportamento por parte das cadetes femininas, como a
33

O fato de R. no acreditar que seria a zero-um bem sintomtico, pois ela sabe que
no tem o perfil mas, apesar de no aprov-lo, aceita com naturalidade o fato.

164

de tentar apresentar as mesmas expresses marciais com as


quais o cadete masculino representado naquele ambiente
sociocultural. Isso se torna mais fcil de observar, medida
que a FEM se apresenta com trejeitos masculinos, como, por
exemplo, a impostao grave da voz, a prestao automtica
da continncia, enfim, com as atitudes viris exigidas pelo militarismo. Nesse sentido, os ritos de iniciao da caserna tratam
originalmente da iniciao masculina e, especificamente, da
iniciao do guerreiro militar.
Entretanto, as regras da igualdade sexual formal na modernidade contempornea permitiram a atual realidade da APM.
S que esses fatos que observei na APM contrariavam aqueles
outros objetivos que orientaram o ingresso das mulheres nas
PMs brasileiras, inclusive na PMERJ, conforme vimos antes em
Soares (2001, p. 29), ou seja, o de modernizar as PMs e humanizar sua imagem social, fortemente marcada pelo envolvimento
com a ditadura.
Nesse sentido, percebi que as FEM vm, a exemplo dos homens,
se moldando ao padro espartano de conduta, seja por uma estratgia pragmtica, ou mesmo pela vibrao introjetada como
valor. Aqui, fica mais claro o sentido de obrigao moral que essa
categoria representa, quando leva indivduos a se emocionarem
na medida em que estes interiorizam os valores da caserna. No
descartei, portanto, a possibilidade de que essa vibrao no
passasse tambm de uma ttica com que os cadetes tiravam
proveito junto ao CA na construo de suas imagens pblicas.
Neste ltimo caso, poderamos falar numa falsa vibrao.
Essas observaes me levaram a crer que, por no ser um espao
culturalmente feminino, a APM, embora comportasse mulheres
em seu efetivo, no reforava de maneira til as qualidades
femininas pretendidas pela Corporao quando esta decidiu
aproveit-las na prestao de seus servios. Ao contrrio, h
um esforo maior das FEM em se empenhar cada vez mais nas
provas fsicas e nas qualidades guerreiras para, assim, conseguirem tambm a considerao do CA. Entretanto, como as
diferenas biolgicas entre os sexos so respeitadas nas provas
fsicas do CFO, os conflitos aumentavam quando o cadete mas165

culino percebia, ali, um privilgio que ludibriava a igualdade de


condies pleiteada pelas prprias FEM. A explicao de minha
informante ilustra essa situao:
Os meninos encaram as FEM como vagas roubadas. TAF34
diferente um absurdo para eles. Alguns se sentem roubados,
mas a mulher se destaca, no aspecto intelectual. Estou concorrendo para ser aluno-padro, mas no tenho as caractersticas
necessrias. Estou sendo a 1a colocada em nota. Acho que no
serei [cadete-padro], porque no tenho plus. Aqui dizem que
FEM no pode cometer crime propriamente militar,35 porque
no tem plus (aluso ao rgo genital masculino). No tenho
marcialidade, o Zero-Um aquilo que : caractersticas fsicas,
morais e intelectuais. A pessoa que mais se enquadrar nesse
tipo ter as condies de representar bem a Corporao. Sou
disciplinada, mas sou mais de dar suporte com caractersticas
mais administrativas, contrrias virilidade, coisa meio fsica;
aquela continncia padro, meia-volta barulhenta, parte de
ordem-unida, voz potente, n? No fim eu me acho fraca. preciso ser autoritria, no sentido da autoridade. Mandar. (Cadete
FEM D., Tereceiro-ano do CFO)

Esse conflito entre gneros ficou evidentemente reforado nos


discursos de outros cadetes masculinos. O discurso abaixo,
de um cadete masculino do Segundo-ano, condenava a determinao da cpula da PMERJ de transferir todos aspirantes
recm-promovidos da turma de 2001 para o Grupamento Especial Ttico Mvel (GETaM), com exceo das mulheres, o que
seu autor entendeu como um privilgio.
FEM na minha opinio eu odeio, por causa dos privilgiosque
elas [as FEM] tm atravs de vantagens... A boa FEM a queno
procura se valer de seus dotes femininos, pois existem privilgios. So duas medidas, mas na hora da promoo a mesma
coisa. Por exemplo, quando a maioria dos tenentes foi para o
GETaM, elas no foram. (Cadete J. do Segundo-ano do CFO)

34

Teste de Avaliao Fsica, contendo as provas de flexes na barra, corrida de 12


minutos e abdominais e que utilizado para avaliar periodicamente o militar. Na APM,
o TAF conta ponto para a classificao, dentro da matria curricular de Educao
Fsica.

35

Segundo a doutrina jurdica militar, crime propriamente militar o crime de soldado,


isto , s o militar pode cometer, pois s existe no Cdigo Penal Militar sem similar
no Cdigo Penal comum.

166

Grafico 1 APM D. JOO VI (Efetivo/2003) Relao


masculino/feminino Total: 341 cadetes

A percepo dos cadetes masculinos era a de que as qualidades


da FEM no serviam para fazer dela um bom cadete-padro. Ao
contrrio, poderiam lhes render privilgios e considerao dos
oficiais, desde que estrategicamente trabalhadas, o que para eles
burlava as regras de uma disputa igual. Nesse caso, entendiam
entre outras coisas que, apesar de fisicamente diferentes, todos
os cadetes, independentemente do gnero, deveriam concorrer
em igualdade de condies s promoes da carreira, a comear
por ali, na APM, j que todos estavam no mesmo quadro.36
Servios e alteraes
Alm das atividades acadmicas previstas no Quadro de Trabalho Semanal (QTS), os cadetes cumprem ainda uma escala de
servios internos na APM. Segundo os oficiais, tais servios tm
a finalidade de estimular-lhes a iniciativa, preparando-os para a
realidade que encontraro nos batalhes depois de formados.
como um treino para a prtica do oficialato, da mesma maneira
como ocorre com os futuros advogados nos escritrios-modelo
das faculdades de direito, revelou-me um oficial do CA. Em
36

Uma percepo muito similar tambm foi observada na Academia da Fora Area
Brasileira (AFA), a partir do ingresso da primeira turma de cadetes femininos, em
1996. Nesse sentido, (TAKAHASHI, 2007).

167

muitos aspectos, esses servios equivalem mesmo aos que j


esto sendo estabelecidos pelo Regulamento Interno dos Servios Gerais (RISG), que aplicado em toda unidade militar,
inclusive na APM.
No entanto, o servio de rua dos oficiais por excelncia, ou
seja, a superviso de oficiais, no possui um equivalente na
APM para o aprendizado dos cadetes. Esse primeiro contato
especfico com a rua, no servio de superviso, eles s tero
de fato depois de formados aspirantes, quando classificados em
suas novas Unidades.
A Escala de Servio dos cadetes, contendo a relao dos cadetes e dos servios em que estes esto escalados naquele dia,
publicada diariamente no Boletim Interno (BI) da APM. Trata-se
de um documento de planejamento formal que, diferentementede outros documentos desse tipo, como a ordem de servio
(OS), por exemplo, no elaborado pela Diviso de Ensino, mas
fica a cargo do prprio CA. Na verdade, essa uma atribuio
da companhia que o confecciona por meio de seu aluno P/1. O
CA, nesse caso, vai apenas conferi-lo depois de pronto.
Vale dizer que, alm de seu P/1, cada companhia tem outros
cadetes desempenhando funes equivalentes s funes de
Estado Maior das unidades policiais militares. Para cada funo, um cadete voluntrio ou escalado para auxiliar o CA.
por meio dessa diviso social do trabalho, portanto, que os
alunos da APM desenvolvem suas potencialidades e os oficiais
do CA adquirem mo de obra extra para a realizao de tarefas
demandadas pelas trs companhias do CFO.
Os alunos do Primeiro-ano so iniciados nessas atividades
laborais como sentinelas ou plantes, tirando (cumprindo)
os chamados quartos-de-hora. Nesse caso, h uma necessria rotatividade para que todos tirem a mesma quantidade de
servio e sejam rendidos (substitudos) de maneira equnime
pelos companheiros aps cumprirem suas etapas. As sentinelas (ou plantes) compem a chamada Guarda do Quartel e
devem zelar por determinados postos fsicos durante os seus
quartos-de-hora. So chamados de plantes de ala, da bomba
168

de gasolina, do saguo da Ala Norte, do Anexo etc. So essencialmente servios de execuo, equivalentes aos servios
tirados por praas nas unidades policiais militares. Esse fato
vai reforar as regras da liminaridade daquele espao de iniciao e preparao do futuro oficial que, antes de comandar,
deve aprender a obedecer (TURNER, 1974).
normal que os plantes tenham tambm que passar recados
aos moradores dos apartamentos daquela ala, ou prestar-lhes
algum servio personalizado chamado informalmente de
acordmetro. Isso ocorre geralmente durante a madrugada,
quando os mais antigos necessitam levantar-se para realizar
alguma tarefa, tais como: estudar, tomar remdios, ou mesmo
render seus companheiros de servio. Assim, eles solicitam
que os plantes os acordem. Nessas ocasies, o planto deve
anotar com esmero o horrio que dever acordar o solicitante.
Deixar de faz-lo, ou mesmo esquecer de faz-lo no horrio
solicitado um erro que, dentro do mesmo pacote pedaggico
das regras liminares da APM, passvel de punio. De fato,
foi esse o motivo que levou o cadete J., do Primeiro-ano, a ser
sancionado com dois dias de Licenciamento Sustado (LS) na
grade de punies do dia 26 de setembro, de 2003, cuja nota de
culpa dizia o seguinte: Realizar acordmetro do cadete PM
Italo, com 20 minutos de atraso, quando na funo de planto
da ala Oeste.37
Assim, dependendo da ala em que o planto estiver escalado,
seu servio se torna ainda mais difcil. Segundo os cadetes do
Primeiro-ano: a Ala Oeste, onde moram os veteranos, o servio mais puxado. Por isso, os mais modernos so geralmente os
escalados para tirarem o servio ali, onde a presso maior.
Nesse caso, a chance de sofrerem trotes aumenta consideravelmente, sobretudo durante a madrugada, cmplice silenciosa
nesses momentos velados. No dia seguinte, o cadete que tirou
servio de planto da Ala Oeste pode surgir como um verdadeiro
zumbi para assistir as suas aulas, ou seja, um morto-vivo que
foi sugado a noite inteira pelos veteranos. Nesse caso, seus
37

Conforme Portaria de no 353/2003, do Livro de Portarias do CA.

169

muitos e inevitveis cochilos em sala, ainda que passveis de


punio, quase sempre so relevados.
No Segundo-ano, os alunos cumprem um servio eminentemente intermedirio entre o comando (Terceiro-ano) e a execuo
(Primeiro-ano). So servios que equivalem aos desempenhados
por graduados nas unidades militares. Nessa ocasio, os cadetes
so escalados por ordem de antiguidade, de Auxiliar do Aluno
Oficial de Dia (Aux OF Dia), Adjunto do Aluno de Dia ao CA
(ADJAL) e Comandantes da Guarda do Quartel. Nesses casos,
ficam subordinados aos alunos do Terceiro-ano. O Comandante
da Guarda cuida da segurana de todo o aquartelamento por
meio das sentinelas. Muitas vezes a arribao do planto (ausncia deliberada do posto) outra falta passvel de punio
anotada pelo comandante da Guarda em sua superviso aos
postos de servio da APM. Essa fiscalizao, no entanto, deve
ser realizada com certo cuidado e, assim mesmo, sob o controle dos cadetes do Terceiro-ano que estiverem de servio pois,
como vimos, as regras morais da iniciao na APM probem uma
maior aproximao do Segundo com o Primeiro-ano, mesmo
que seja para orientaes ou cobranas regulamentares, j que
esta seria uma atribuio tpica do veterano.
Os cadetes do Terceiro-ano tiram servios de Aluno Oficial de
Dia e de Aluno (ou Cadete) de Dia ao CA que, dentro do sistema de representaes nativo, so os servios mais valorizados.
Pelo fato de necessitarem exercitar cada vez mais o comando
e a liderana durante o perodo de formao, eles tm nessa
oportunidade a chance de experimentar provisoriamente um
status de oficial. Pareceu-me que, aliado a esse treinamento,
havia tambm a vontade de obterem antecipadamente o poder
que tm os oficiais para que, assim, pudessem punir potenciais
concorrentes naquele campo de disputas, como veremos a
seguir.
Seguindo a ordem de valorizao nativa desses servios, os
cadetes do Terceiro-ano so escalados de acordo com sua antiguidade. Primeiramente como Oficial de Dia e, depois, como
Aluno de Dia. Existe ainda um terceiro tipo de servio do Terceiro-ano, menos valorizado que os anteriores, que o de Aluno
170

de Dia ao Anexo, surgido com a inaugurao do Prdio Anexo,


em meados dos anos 1990. Nessa condio, o cadete funciona
como um Oficial de Dia descentralizado que, no entanto, no
conta com a mesma estrutura que tem o cadete escalado como
Oficial de Dia, frente de todos os servios da APM. Por isso
mesmo, entende-se que o Aluno de Dia ao Anexo tenha menos
poder que os demais cadetes de servio do Terceiro-ano.
Como afirmei anteriormente, o Aluno Oficial de Dia o responsvel por todo o aquartelamento. Seu servio equivale ao
mesmo servio de Oficial de Dia regulado pelo RISG para toda a
unidade militar. Pode-se dizer, ento, que o AL OF de Dia uma
espcie de aprendiz de Oficial de Dia, servio tpico da caserna
encontrado tambm nos quartis da PM. O Oficial de Dia quem
fiscaliza o funcionamento e a segurana interna do quartel, o
efetivo de servio, o uso dos recursos logsticos, o armamento,
o rancho etc. Para isso, ele deve tomar conhecimento de todas
as ordens de servio (OS) que devero ser executadas durante
o seu servio. Ele tem autonomia relativa do comandante
da unidade, principalmente depois que este e seus oficiais j
tiverem se ausentado do quartel. Antes, havia na APM um oficial escalado especificamente como Oficial de Dia durante as
24 horas do servio, mas agora o prprio cadete que cumpre
esse servio.38 Nesse caso, h um oficial de Permanncia que
acionado apenas na eventualidade de ocorrer algo que demande
uma providncia mais elaborada e que o cadete no seja ainda
capacitado para tomar. O Permanncia no , portanto, o encarregado direto pelo aquartelamento, porque essa tarefa ficava
a cargo do Al Of de Dia, mas, como vimos, ele podia ser eventualmente acionado para auxili-lo, o que era raro ocorrer. Caso
ocorresse, isto seria visto por todos como uma interferncia
indesejvel: pelos cadetes, porque tiraria sua autonomia e poder,
38

bom frisar que essa era a escala vigente no momento em que realizei minhas
observaes de campo em 2003. Como no se trata de um documento rgido, como um
regulamento, por exemplo, a escala de servio dos cadetes depender do comando.
Dessa forma, o servio de Oficial de Permanncia pode ou no existir, ou, ainda, pode
ser tirado tanto em casa quanto na APM; pode at inexistir por ser considerado
suprfluo, quando h a determinao do comando para que o servio de Oficial de
Dia seja executado exclusivamente pelo oficial, em vez de pelo cadete. Atualmente,
em 2008, ele havia sido extinto, deixando o servio de Oficial de dia de ser tirado por
cadete, passando a ser executado exclusivamente por oficial.

171

e pelos oficiais, porque eles, como Permanncia, detestariam ser


acionados precipitadamente por razes de menor importncia,
principalmente durante o repouso noturno.
Havia uma percepo clara dos cadetes do Terceiro-ano de
que, com esse tipo de servio sem a presena direta do oficial,
eles tinham adquirido maior autonomia em seus servios, pois
anteriormente sua iniciativa era constantemente tolhida pela
presena do oficial. Na verdade, essa justificativa pareceu-me
trazer embutida uma necessidade do status momentneo que
o servio conferia ao cadete, aumentando provisoriamente seu
poder naquele campo. Foi o que pareceu indicar a informao
abaixo, fornecida por um cadete do Terceiro-ano que tirava o
seu servio de Al Of Dia:
Antigamente a gente no tava com tanta autonomia para trabalhar no. Tinha o Oficial de Dia. Agora melhorou. bom porque
a gente vai treinando. Quando assumimos o servio, temos que
procurar saber as alteraes daquele dia. Por exemplo, se tem
algum aluno fora da APM. Uma vez eu tirei servio quando
havia um surto de conjuntivite39 por aqui. Foi uma trabalheira
danada, porque tive que saber tudo onde os cadetes estavam,
encaminhar para o hospital e dar [lanar] as alteraes deles [no
LPD]. (Cadete E., do Terceiro-ano, de servio de Al Of de Dia)

Como se v, tirar um servio tpico de oficial consagra um


status diferenciado ao cadete perante o grupo; uma maneira
de exibir a confiana concedida pelo CA que, naquele momento,
lhes legitima o poder de mando na forma de considerao.
A entrevista acima pode justamente ser lida nesse sentido, ou
seja, de que, por trs de tais atos consagradores existia mesmo
toda uma estratgia para o acmulo de poder numa estrutura
marcada por disputas simblicas (BOURDIEU, 1998, 2005).
O pleito tcito por um tratamento individualizado, num grupo
que valoriza a uniformizao, surge em virtude do mrito de
terem galgado posies durante as etapas da passagem pelo
CFO, em sua trajetria de individualizao controlada. Essas
diferentes posies que, no entanto, no so contempladas no
39

Em caso de doena infecto-contagiosa, como a conjuntivite, os cadetes no podem


permanecer na escola. So dispensados para suas residncias, mas quem estiver de
servio deve anotar todas essas alteraes.

172

instrumento legal no qual se definem as posies sociais na


estrutura hierrquica da PMERJ, formam uma antiestrutura
caracterizada pela desigualdade liminar. A rigor, o Estatuto dos
Policiais Militares, como j havamos visto, no faz nenhuma
distino entre os alunos da APM, quer sejam eles do Primeiro, Segundo ou Terceiro-ano, porque os classifica igualmente
numa mesma categoria profissional: Aluno-Oficial. Essa categoria , portanto, uma s e se encontra alocada no crculo das
Praas-Especiais. O Estatuto apenas chama a ateno para
que, nesse caso, a antiguidade deva ser observada individualmente. Cumpre-me esclarecer que aqui existe, em tese, o que
ns nativos chamamos de precedncia e no a superioridade
hierrquica que de fato se constri entre os Alunos da APM.
Lembro mais uma vez que isso talvez possa ser explicado sob
o prisma da liminaridade construda naquele ambiente cultural
da APM, com sua antiestrutura relativamente diferenciada, pelo
fato de os cadetes serem iniciados coletivamente, mas em etapas
consecutivas, o que cria diferentes pertencimentos.
O Cadete de Dia ao CA o responsvel pela disciplina e pelo
controle de todo o Corpo de Alunos. Ele se encarrega mais
especificamente das atividades cotidianas dos cadetes, principalmente durante as aulas, quando, em geral, cuida de fiscalizar
se esto todos nos lugares onde devem estar. Ao contrrio do
servio de Al Of de Dia, que mais abrangente por estar previsto
no RISG para todos os quartis militares, o servio de Cadete
de Dia um servio peculiar das unidades de ensino.
Considera-se falta quase injustificvel o fato de o cadete ser
observado em lugares indevidos, ou apresentar comportamento
imprprio nos locais em que estiverem sendo desenvolvidas as
atividades coletivas do expediente acadmico. Corroborando
esse argumento, os registros de controle disciplinar que observei no CA continham um grande nmero de notas de punio
com expresses do tipo fora-do-lugar, fora-dos-padres,
em desalinho, em local imprprio etc. Outra atribuio do
Cadete de Dia ao CA a fiscalizao do Rancho. Alm de ser
um espao fsico reservado para alimentar os militares, esse
local representa ainda toda uma atividade logstica estrutu173

rada para que o aprovisionamento do aquartelamento seja


corretamente desempenhado. Podemos perceber, pela extensa
escriturao especfica que regula essa atividade logstica, a
mesma preocupao peculiar do modelo militar com a ordem
e a previsibilidade. A alegao de que assim se evitam desperdcios e eventuais desvios de material, explica por que o erro
na escriturao, incluindo a dos documentos de controle do
Rancho, tambm considerado falta passvel de sano. Nesse
caso, o alvo da vez o chefe de turma (ou xerife) que, entre
outras tantas atribuies, o responsvel pelo preenchimento
do vale de rancho, documento de apurao dos que realizaro
determinada refeio na unidade. Vez ou outra, no entanto, a
mo punitiva do CA alcana tambm o espertinho que tentou
ludibriar a fiscalizao da equipe de servio, por ter esquecido
de dar o nome para o vale de rancho. Como se pode ver, o
valede rancho tambm documento de controle e conferncia
que serve para apurar se os cadetes vo ou no faltar s refeies
previstas como servio.
Nesse sentido, os vales de rancho devem ser preenchidos com
cautela, pois um nmero equivocado implica desperdcio de
alimentos ou necessidade de se confeccionar um nmero a
mais de refeies do que o previsto, o que destri a lgica da
previsibilidade da ordem militar. Para cobrir o dficit, o lacre
da dispensa do rancho aberto e uma quantidade de gneros
alimentcios a mais do que a planejada sacada. Pelo prejuzo
causado ordem militar, essa alterao do servio tambm
objeto de punio disciplinar.
O chefe, ou xerife da turma, o cadete responsvel pela conduo de sua turma nas atividades pedaggicas dirias, naquela
semana. ele quem faz a apurao do efetivo e prepara a sala
para as instrues. Por isso, deve de imediato tomar cincia de
qualquer ausncia para poder repass-la como alterao ao CA,
ou por meio da equipe de servio, ou por meio dos instrutores.
Na eventual falta de algum instrutor, o xerife deve imediatamente procurar a Diviso de Ensino para saber da programao
alternativa.

174

Nos curtos intervalos entre as aulas, ele tem de comparecer ao


CA para obter, junto aos oficiais de sua CIA, as determinaes
militares que devam repassar a seus companheiros. Cada semana um novo chefe de turma assume e, devido a essa rotatividade,
que ocorre tambm dentro daquela mesma lgica do treinamento, nem sempre os chefes de turma so os mais antigos; todos,
de uma maneira geral, devem ser avaliados nessa funo. Para
os alunos, esses tambm so momentos delicados de exposio
individual dentro daquela rotina coletivizada.
Alm do vale de rancho, o chefe de turma confecciona um
outro documento de controle, o pernoite, que utilizado na
Revista do Recolher como ltimo confere programado do dia.
Este documento serve para apurar quem est escalado para
dormir no quartel. Na prtica, ele serve para saber se algum
arribou, isto , se algum cadete se ausentou clandestinamente
do aquartelamento.
Geralmente, a Revista do Recolher ocorre por volta das 21 horas,
com um toque de corneta caracterstico. Nesse momento, cada
turma toma sua posio de antiguidade no ptio para ser apurada pela equipe de servio. Normalmente, a Revista do Recolher
comandada pelo Al Of de Dia. Quando se trata da tradicional
revista no horrio previsto, o xerife tem tempo de apurar sua
turma com antecedncia e tranquilidade mas, se o caso for de
uma revista inopinada, vital que ele j tenha adquirido certa
agilidade para no se expor a possveis sanes.
Depois de a turma ter sido apurada, os chefes de turma passam as alteraes (ausncias) a seus superiores at que essas
cheguem ao cadete mais antigo da equipe de servio ou ao
cadete-padro, caso ele esteja comandando a revista. Caso haja
oficiais presentes, o cadete que recebeu as alteraes por ltimo
deve apresentar todo o efetivo formado, de uma maneira solene,
ao oficial mais antigo, informando-lhe todas as alteraes, caso
estas sejam por ele solicitadas.
Aps essa formalidade, o mais antigo da equipe pede a permisso para encerrar a revista. Como nesses casos a presena de
todos os cadetes obrigatria, o macete que o documento de
175

apurao (pernoite) seja preenchido com uma certa margemde


tempo de, pelo menos, vinte minutos antes do trmino da ltima
aula no ltimo expediente. Caso contrrio, aumenta o risco de
o cadete se atrapalhar.
Muitas vezes ocorre de algum chefe de turma negligente terde
sair, em desespero, atrs de informaes sobre o paradeiro
deseus companheiros de turma. Para facilitar a vida de quem,
no momento, for o responsvel pela apurao, j existem formulrios prprios que os cadetes confeccionam antecipadamente
e nos quais constam os nomes de todos os componentes de sua
companhia ou peloto. Depois, s destacar as alteraes dos
ausentes, como, por exemplo, os estropiados por motivos de
sade, ou os da equipe de servio daquele dia, e colocar seus
destinos, parte, para melhor informar ao superior.
Normalmente, o servio na APM dura 24 horas; sendo assim,
os cadetes que integram a equipe de servio do dia j esto
escalados desde as oito da manh. H, no entanto, excees,
tais como a dos sentinelas que assumem efetivamente seus
postos somente aps o trmino das aulas, pois, em tese, apenas
a justia poderia preterir a instruo. Por isso mesmo que os
cadetes do Terceiro-ano e do segundo, logo aps assumirem seus
servios na parada diria, so eventualmente substitudos por
graduados escalados pela Diviso de Comando (P/1) no horrio
das aulas. So esses que ficam frente do servio, quando os
cadetes esto em sala de aula. Todavia, nem sempre essa regra
respeitada, pois, quando os oficiais do CA empenham cadetes
em misses militares, eles quase sempre deixam as salas de
aula. Essa interferncia de assuntos militares no campo acadmico s no vai ocorrer se o status de quem estiver frente da
instruo ou da aula40 for superior ao do posto do oficial do CA
que empenhou o aluno.
Assim, podemos perceber novamente uma disputa velada entre a caserna, representada pelo CA, e a rua, que a Diviso de
Ensino representa; entre o poder militar, presente no espao
40

Nas Unidades de Ensino da APM, o termo instruo se refere aula ministrada por
militares e, nesse sentido, se diferencia de aula que ministrada por professores
civis.

176

coletivo da APM, e a autoridade acadmica do professor em


sala de aula. Na verdade, essa uma das muitas lutas simblicas
travadas entre aquelas diferentes ideologias que estruturam o
domnio social da PM.
O Chefe de Apartamento, da mesma maneira que o Chefe de
Turma, tambm escalado dentro do esprito da rotatividade.
Cada semana um dos alunos que integra determinado apartamento atuar como o seu chefe e primeiro responsvel pela
ordem e apurao das alteraes de apartamento. Falhando
nas apuraes, na arrumao e na limpeza, eles tambm so
passveis de punio, desde que o erro tenha sido detectado
por meio de alguma revista de apartamento que, em regra,
realizada pelo menos uma vez por dia pela equipe de servio
do Terceiro-ano.
Essas alteraes geralmente acontecem por motivos alheios
vontade do prprio Chefe de Apartamento e, por isso, vo depender mais da colaborao dos demais integrantes do que da
prpria iniciativa do chefe. Quase sempre, quando algum cadete
deixa um apartamento desarrumado, o chefe torna-se tambm
seu responsvel solidrio nessa alterao, por se entender que
ele no fiscalizou corretamente o apartamento. Por isso, o
chefe sabe bem o risco que representa ter como companheiros
de apartamento os desajustados, relapsos e atrapalhados.
Ao incriminar o comportamento mal ajustado e individualista
do cadete, com a punio do Chefe, o CA visa estimular o esprito de corpo de uma maneira coercitiva nos cadetes, visando
a promover um constrangimento no grupo. H, inclusive, uma
expresso nativa que demonstra a eficcia de tal estratgia: a
merda une.
Os cadetes, em geral, quando em sua funo de mantenedores
da ordem, buscam detectar eventuais alteraes de servios,
mas tambm esto preocupados em acumular poder dentro do
campo de disputas simblicas que representa a APM. Poder
esse adquirido com o status diferenciado que se produziu com
passar dos anos e, tambm, por ocasio do servio. Neste caso,
o CA lhes concede esse poder para faz-los funcionar como uma
177

engrenagem dessa estrutura de vigilncia e controle. O status


vem acompanhado, portanto, desse poder que se materializa no
ato de apontar as alteraes de outros alunos e, numa dimenso simblica, revertido em capital reputacional junto ao CA.
Assim, alteraes podem ser definidas em linhas gerais como
coisas ou condutas fora de ordem ou de lugar que, ao serem
observadas pelos cadetes ou oficiais e informadas ao escalo
superior, iniciam um processo de incriminao. Nesse sentido,
alteraes so consideradas condutas desviantes dentro do
sistema representacional nativo e, quando no so justificadas,
arquivadas ou anuladas pelo CA, resultam em punies de
aluno ou, se consideradas mais graves, em punies de RD.
Enquanto as transgresses disciplinares esto previstas no Regulamento Disciplinar (RD), as faltas de aluno so de natureza
escolar, mais amenas e, portanto, punidas com LS. A rigor, essas
faltas de aluno no tm uma previsibilidade normativa. Tudo o
que est fora de lugar ou da ordem pode ser, a priori, considerado uma alterao. A deciso que diz se ela vai ou no resultar
numa punio, seja de qual tipo for, ser estabelecida na hora do
julgamento pelos oficiais. Os motivos apresentados nas notas
de punio dos cadetes espcie de libelo acusatrio que
pude verificar no CA apresentavam os mais variados motivos.
Raramente se aproveitava a redao de um deles para se relatar
literalmente uma outra falta, a no ser nas alteraes coletivas,
quando vrios cadetes envolvidos eram anotados pelo mesmo
fato. No h, portanto, a anterioridade, princpio penal que
estabelece a previsibilidade da conduta desviante. No difcil
supor que, devido a essa indefinio, o cadete vai aprendendo
o comportamento adequado por tradio oral, ou observando,
na prtica, as condutas inadequadas sendo punidas em rituais
punitivos que marcam sujeitos e comportamentos desviantes
de maneira teatralizada nas liberaes do Corpo de Alunos.
Nesse sentido, existe uma sensibilidade moral que, com alguma
insistncia, pode ser percebida por meio de uma anlise mais
acurada desses variados motivos. Assim, pude observar que
eles quase sempre se referiam esttica militar, isto , ao pa178

dro que eventualmente era ofendido no momento por algum


comportamento displicente. Neste caso, esses comportamentos
reprovveis quase sempre se resumiam ao descumprimento
de uma ordem superior qualquer, a alguma eventual falta de
asseio com equipamentos, uniformes ou materiais, ou ainda,
falta de asseio com o prprio corpo, por exemplo. O significado
dessas alteraes, portanto, pareceu-me estar intrinsecamente
relacionando a algo fora da ordem, ou de lugar, isto , uma impureza, como j foi observado antes por Mary Douglas (1991).
As faltas de RD (transgresses disciplinares) so consideradas
de maior gravidade por extrapolarem o ambiente da aprendizagem, atingindo tambm, dessa forma, o universo de todo o
efetivo da Polcia Militar. Assim, elas esto tipificadas no Anexo
1 do Regulamento Disciplinar da PMERJ. As sanes que lhes
so aplicveis so de natureza administrativa e vo desde a
advertncia, passando pela repreenso e priso em separado,
at o Licenciamento a Bem da Disciplina.
O balano da quantidade e da qualidade dessas punies reflete a vida disciplinar do policial militar, contabilizada num
documento chamado Ficha Disciplinar, no qual est regulado
o comportamento policial militar. O nmero acumulado de
punies faz com que esse comportamento varie de excelente
a mau, podendo, nesse ltimo caso, culminar num processo
demissionrio daquele transgressor que chegar a ferir a tica e
o pundonor policial militar.
Ao contrrio da transgresso disciplinar, o LS no altera as
anotaes comportamentais formalizadas em ficha disciplinar
profissional, mas, entendendo que a punio de aluno no seja
mais capaz de corrigir seu comportamento ftico, bastante
provvel que o CA passe a utilizar o RD para punir o recalcitrante. Os oficiais alegam que isso geralmente ocorre quando
os alunos do Terceiro-ano j esto mais prximos de sua formatura, pois se entende que agora, o tratamento de oficial e
no mais de cadete. Atualmente, porm, os cadetes so cada
vez mais precoce nas punies de RD, o que revela um aumento da litigiosidade desses conflitos na APM, ou pelo menos a

179

percepo de que sejam mais indisciplinados, como eu j havia


mencionado anteriormente.
Muitas vezes, os servios representam momentos tensos, com
provveis constrangimentos para aqueles que os executam.
o que ocorre, por exemplo, com os cadetes do Segundo-ano,
que nessas oportunidades esto mais expostos fiscalizao do
Terceiro-ano. Embora sejam os cadetes do Segundo-ano que,
no servio, escrituram os Livros de Partes Dirias (LPD), mais
conhecidos como brochuras, eles no tm o poder definitivo
de canetar seus pares nessas mesmas brochuras sem que
a observao passe antes pelo crivo dos cadetes do Terceiro-ano, pois aqueles que, como se diz na APM, tm o poder da
brochura, isto , o poder de canetar.
Canetar dar parte, ou seja, cientificar oficialmente o comando
de que ocorreu uma alterao que tenha fugido ao controle
da situao. Dentro do militarismo policial militar, trata-se
mesmo de uma obrigao formalmente prevista no artigo 11 do
RDPMERJ para casos de transgresso disciplinar (ver Anexo
VIII). Alis, tal prtica de fato reconhecida mais como uma
prerrogativa do oficial do que uma obrigao do policial militar;
inclusive h uma expresso nativa que ilustra bem essa percepo: A caneta a arma do oficial e, dessa forma, os cadetes vo
pleiteando esse poder de iniciar a punio disciplinar, medida
que se sentem mais prximos do oficialato. Os do Terceiro-ano
so, portanto, os que tm uma maior quantidade desse poder, por
estarem mais frente nesse processo de passagem que representa o CFO, e, entre eles, o mais poderoso seria o cadete-padro.

180

Um duelo simblico

O ritual punitivo
Tratarei aqui dos ritos de punio disciplinar, que ocorrem como
forma de ajuste constante do comportamento dos nefitos que
porventura no tenham se enquadrado na poltica do CA.
Antes de tudo, preciso esclarecer que o que eu chamo aqui
de ritual punitivo ou ritual da punio disciplinar, ao contrrio
das solenidades analisadas at agora, no tem ordenao, esquema, ou qualquer estrutura expressamente estabelecida nos
regulamentos militares, notadamente o RCONT, nem reduzido
a um planejamento nativo como as ordens de servio elaboradas
pela Diviso de Ensino, mas se reproduz com um formato muito
similar, h anos, nas prticas da APM. Desde o meu CFO, eu j
o conhecia daquela maneira. Essa foi, portanto, uma das caractersticas que me fizeram atentar para esse evento coletivo, cujo
material cultural passado de gerao para gerao no CFO.
Geralmente, esses eventos ocorrem nos momentos que antecedem uma grande liberao do Corpo de Alunos, quando
os cadetes se preparam para deixar a APM no final de semana,
cumprindo o regime de internato parcial do CFO. Trata-se de
um ritual que, periodicamente, expe coletividade os cadetes
que foram flagrados pelo sistema de vigilncia e sancionados
num processo disciplinar conduzido pelo CA.
Em sntese, esses ritos dramatizam um conflito especfico
existente entre o comportamento do cadete e o programa estabelecido como padro na poltica do CA. Sob essa perspectiva,

uma outra possibilidade se torna bastante interessante de ser


analisada: o seu carter antittico, isto , o de comunicar valores
negativos com relao ao ethos que ali se produz; valores que de
alguma forma representam uma ameaa ordem institucional
estabelecida. Por isso que, ao contrrio da maioria dos ritos
militares que reforavam os valores institucionais positivos e
normalmente comunicados no programa oficial, como a hierarquia e a disciplina militares, aqueles ritos evidenciavam os
antivalores nativos, numa pedagogia dramtica de purificao
moral, como veremos adiante. Era meu entendimento que, ao
observar esses ritos punitivos na APM, eu obtivesse acesso, a
contrario senso, ao prprio sistema de valores nativo.
Dadas essas caractersticas obtidas inicialmente em minhas
observaes sobre a punio disciplinar dos cadetes da APM,
optei por abordar esses ritos punitivos sob a perspectiva processualista, o que tornava a APM um campo sociocultural no
sentido de Turner (2008), para tentar compreender seu carter
simblico e comunicativo. Alm da comunicao e dos cdigos
transmitidos nesses momentos, incluo ainda as observaes sobre as diversas maneiras pelas quais os nativos os incorporam.
Assim, para analisar todos esses significados, a punio disciplinar ser tratada como um todo, visto que procuro observar o
drama da punio disciplinar dos cadetes e suas consequncias
como um todo, a partir das pr-liminares encontradas na dinmica social da APM.
Enquanto isso, a naba voava
[...] complicado porque eu no sabia que tinha errado...,
eu no lembrava que tinha deixado os meus culos em cima
da cama. Uma veterana minha chegou para mim e falou: ,
voc foi lanada [na brochura] e eu ali, sem nem o que fazer.
Chegou a portaria para eu responder e o que veio escrito dava
a impresso que eu fui desleixada; relaxada no material, e eu
fiquei... pxa, no foi assim. S que na verdade fui injustiada,
pois por uma coisa to simples eu estou sendo tachada como
uma relaxada e eu justifiquei que tava com pressa e aquilo tudo,
mas mesmo assim fui punida com LS 2. Foram dois dias que
tiraram da minha liberdade e eu no entendia de jeito nenhum.

182

Fiquei revoltada, sabe? (Cadete Feminino. M., do Terceiro-ano


do CFO, falando de sua primeira punio)

Pode-se dizer que essas pr-liminares comeam com a extrao


da portaria, documento pelo qual o cadete toma cincia de
que est sendo formalmente acusado, aps a administrao
ter sido informada sobre alguma alterao em que ele esteve
recentemente envolvido.1 Os dados sobre o fato que originou a
acusao formal so geralmente extrados das brochuras do
Oficial de Dia ou do Cadete de Dia ao CA, ou ainda, so oriundos
de alguma parte especial, que a informao (participao)
por escrito, apartada do LPD.
Com os dados e relatos extrados das brochuras, as portarias
so confeccionadas pelo comandante da CIA a que pertence o
cadete anotado, auxiliado nesse mister por seus oficiais subalternos (tenentes). Em sntese, os dados da portaria so: o nome,
o nmero interno e a CIA do anotado, acompanhados ainda por
um relato sucinto da dinmica do fato observado. H tambm,
no mesmo documento, um espao reservado para que o cadete
possa se defender por escrito. Diz-se: responder a portaria.
Logo depois de confeccionadas, as portarias so enviadas aos
Chefes de Turma que, por sua vez, as distribuem aos anotados.
Isso ocorre geralmente em sala de aula. Toda essa tramitao
controlada por meio de um livro de controle e registro, cuja
responsabilidade do graduado auxiliar do CA.
Os alunos cometem a falta, ou so anotados, ou vem do LPD,
ou o prprio oficial que participa. No CA, quando toma conhecimento, o Comandante de Companhia extrai a portaria
que respondida e depois retorna para o prprio Comandante
da Cia; que a remete para o subcomandante e depois vai para
o major Comandante do CA. Existem trs livros de controle
de portarias: um para cada Cia. Os resultados podem ser: RD
(Regulamento Disciplinar), LS (Licenciamento Sustado) ou
pernoite, ou pode ser justificada a portaria. (Sargento V., graduado auxiliar do CA)

Pelo Boletim da PM no 156, de 24 de agosto de 2005, o termo portaria foi alterado


para Documento de Razes de Defesa (DRD). Em linhas gerais, no mudou muita
coisa para o cadete, pois s padronizou o documento de defesa para todos os policiais
militares, oficiais e praas.

183

Em 2003, foram extradas 445 portarias para o Terceiro-ano (1a


CIA), 796 para o Segundo-ano (2 CIA) e 513 para o Primeiro-ano (3 CIA), perfazendo um total de 1.754 portarias. Esse
nmero considervel talvez possa ser explicado pelo disperso
poder de lanamento existente no sistema de controle social
da APM. Como vimos, no s oficiais canetam, mas cadetes
mais antigos tambm o fazem, sobretudo os do Terceiro-ano. A
pretexto de no futuro se tornarem bons oficiais, esses cadetes
eram incentivados pelos oficiais do CA a produzirem participaes dentro do processo punitivo da APM (punio de LS),
o que servia como treinamento para a realidade que, em tese,
encontrariam na PMERJ, aps se formarem (punio de RD).
Vimos antes que o artigo 11 do Regulamento Disciplinar da
PMERJ impe a todo o policial militar a obrigao de participar
ao comando de qualquer transgresso da disciplina militar com a
qual se depare, mas as prticas sociais da APM impedem o mais
moderno de canetar o mais antigo. Isso ocorre principalmente
porque, como vimos, so criadas diferenciaes para a categoria
aluno-oficial na realidade sociocultural da APM, mesmo que
estas no sejam previstas no Estatuto dos Policiais Militares.
Muito embora o RDPM no fale em participar pessoas, mas fatos,
aquela realidade naturaliza a desigualdade com base numa viso
de mundo hierrquica,2 possibilitando, assim, a existncia de
uma antiestrutura com relaes assimtricas, nas quais essas
diferentes coletividades so ritualmente legitimadas sobretudo
nas solenidades.
Na medida em que essa assimetria estrutural naturalizada,
surge na APM um sistema de vigilncia e controle que produz
um nmero cada vez maior de conflitos. Devido a esse nmero, quase impossvel um julgamento acurado que garanta a
imparcialidade ao sistema. Em alguns momentos, possvel
que esse sistema seja mesmo usado de forma privada pelos
prprios cadetes em suas pequenas polticas cotidianas, em
que tratam de aliana, competio e cooperao entre eles,
2

Nesse sentido, interessante conferir, com Kant de Lima (2008, p. 261-289), as


diferenas entre uma realidade social igualitria, que naturaliza valores universais
da ideologia moderna, e a realidade social hierrquica, que naturaliza a desigualdade,
na distribuio particularizada dos recursos coletivos.

184

almejando para si ou para suas turmas o acmulo de reputao.3 Meus dados apontavam para essas possveis estratgias
orquestradas com certa autonomia pela faco4 que tinhao
maior poder da caneta dentro daquele campo, ou seja,
o Terceiro-ano. Eles tambm no descartavam a existncia
dessas disputas dentro de uma mesma faco. Nessa dimenso, o sistema de controle social da APM estrategicamente
manipulado, com os cadetes visando ao prejuzo moral de
seus potenciais adversrios. Era provvel que verdadeiros
processos de estigmatizao se iniciassem a partir dessas
estratgias, em que os mais poderosos se valiam do aparelho
institucional repressivo para ajudar na construo das carreiras desviantes5 de seus adversrios.
Contudo, os cadetes do Terceiro-ano sabiam tambm que no
estavam soberanos nesse sistema. Eventualmente, eles contavam com a ajuda de oficiais do CA, quando no de oficiais da
prpria APM, nesse controle. Normalmente, o processo punitivo se iniciava na parte superior da cadeia hierrquica, com os
oficiais indicando ao Terceiro-ano o seu papel dentro daquela
estrutura de vigilncia e controle. Nesse sentido, percebi que ao
Terceiro-ano caberia fiscalizar as demais turmas que compunham o sistema, sendo que seu prestgio junto ao CA aumentava
na medida em que tal ao fiscalizadora era exercida com eficcia. Por outro lado, os oficiais tambm deixavam claro que
o prprio Terceiro-ano poderia ser vtima do mesmo processo,
j que ele tambm era vigiado pelo CA.
O desviante revelado, efetivamente apontado e punido pelo
sistema, sofria, por sua vez, um desfalque em seu estoque de
capital reputacional. Assim, o alvo preferencial do Terceiro3

Recorro, aqui, small politics, como foi utilizado por Bailey (1971, p. 3), por entender
nessas atividades aparentemente corriqueiras, que tratam de assuntos aparentemente
pequenos ocorridos em comunidades midas, caractersticas similares s das
atividades que tratam dos grandes temas presentes na grande poltica. Para Bailey,
ambas merecem a mesma ateno intelectual, porque: the same principles serve
for political competition and political alliance alike in great issues and small.

Aqui, utilizo o termo com o sentido de Bourdieu (1989), visando a trazer tambm
a noo poltica simblica desse autor para ampliar as discusses sobre a APM, a
partir das categorias de Bailey.

Confira essa categoria de anlise em Becker (1977).

185

-ano, seu potencial adversrio nessa disputa pelo poder


disciplinar, parecia ser, sobretudo, o Segundo-ano, que, em
tese, teria um estoque de reputao prximo do seu. Seguindo essa mesma lgica, o Primeiro-ano seria o alvo potencial
do Segundo, com quem, de acordo com as regras morais da
APM, no mantinha uma relao cotidiana de proximidade.
Alm disso, poderia ocorrer ainda uma disputa interna entre
cadetes da mesma turma, como a que pareceu existir entre o
cadete-padro da APM e o cadete M., Zero-Dois do Terceiro-ano, segundo transpareceu a entrevista deste ltimo, h
algumas pginas atrs.
Como muitas vezes os resultados dessas disputas eram reproduzidos nas FAD, plausvel que esse exerccio de autoridade
e controle sobre as turmas do CFO fosse mesmo incentivado
pelo CA, o que mais uma vez corroboraria meu argumento
sobre a existncia dessa disputa estratgica entre as turmas.
De qualquer forma, ela tambm foi sugerida pelas lacunas
deixadas na explicao abaixo, fornecida por um cadete do
Terceiro-ano que, na oportunidade, tirava servio de Aluno
Oficial de Dia.
[...] de vez em quando tem um rano que ..., ..., coisa
de turma para turma, sabe? Mas confesso que quando fui
Segundo-ano eu nunca sofri isso [perseguio] e tambm nem
fiz isso agora que sou Terceiro-ano. (Cadete S. do Terceiro-ano do CFO)

Apesar da flagrante esquiva do entrevistado, o Segundo-ano, com


um efetivo de 132 alunos e 400 punies, foi proporcionalmente
a turma mais punida com LS naquele ano, apresentando uma
taxa de 3,03 punies por aluno.6 Entre essas punies, havia
um nmero significativo aplicado aos cadetes do Segundo-ano
em servio, notadamente por rasurarem tpicos do LPD, o que
significa um risco maior de punio para o Segundo-ano nessas
ocasies. Enquanto isso, o Terceiro-ano, com um efetivo de cem
alunos e 233 punies sofridas, foi proporcionalmente a turma
6

Aqui, eu s me ative s punies de LS tidas pelos nativos como sanes de aluno


e, portanto, mais prximas do que eu estou chamando de pequenas polticas dos
cadetes.

186

menos punida, com taxa de 1,33 punio por aluno,7 fato que
pode ser explicado pelo maior poder de caneta que seus cadetes tinham no campo, em comparao a seus concorrentes.
O servio, portanto, revela-se uma tima oportunidade para o
Terceiro-ano alcanar seus objetivos pequeno-polticos, uma
vez que seus adversrios imediatos ficam merc de suas participaes, como adjuntos de seus servios e responsveis pela
escriturao dos documentos. Se no fosse a perspectiva das
pequenas polticas, essa alterao seria mesmo interpretada
como uma falta imperdovel dentro do sistema nativo, atingindo
um valor consagrado para o grupo, dada apenas a sua quantidade
de punio. Mas meus dados, sob a perspectiva qualitativa, iam
indicando algo a mais, conforme mostra a entrevista concedida
num tom irnico por um cadete do Segundo-ano.
Engraado que as punies da minha turma, na maioria, so de
erros na brochura. Isso parece ser uma tradio na APM, que

No h, no CA, um controle estatstico sistemtico das punies dos alunos. Para


analisar meus dados, portanto, tive de confront-los com as informaes sobre as
punies sofridas pelos cadetes em 2003, que obtive junto aos Livros de Controle de
Portarias do CA. Neles constam o nmero das portarias extradas, a data dos fatos,
os nomes e a companhia dos acusados, os motivos das alteraes que ensejaram
a extrao e o acompanhamento do resultado do processo punitivo disciplinar, que
ali se inicia. A partir dali, eram confeccionadas grades semanais com o nome dos
efetivamente punidos, para serem lidas por ocasio da liberao do Corpo de Alunos.
Os motivos eram, no entanto, os mais variados e, quase sempre, no se repetiam para
que deles se pudesse extrair algum padro literal, porquanto no havia tipificao
sistemtica das condutas desviantes. Nesse sentido, precisei criar categorias que
melhor classificassem todas essas alteraes. Os critrios de classificao foram
adotados com a ajuda dos dados colhidos no momento em que esses motivos se
materializavam, como aes, em meus sujeitos observados. Assim, tanto o lugar
quanto a situao em que o cadete se encontrava no momento da alterao
foram relevantes. Nesse sentido, foi interessante observar, ainda, que o fato dessas
alteraes se orientarem de acordo com a percepo nativa de desordem fazia com
que os registros se referissem geralmente a algo fora do lugar, incluindo como tal a
impureza (DOUGLAS, 1991), ali traduzida pela falta de asseio pessoal, de limpeza do
ambiente, de limpeza do equipamento, de limpeza do uniforme, entre outros, o que
confirmava meus dados. Embora o objetivo desse trabalho no fosse, a priori, uma
anlise em termos quantitativos, pois que ele trata de representaes, a metodologia
que me valho nesse momento, mesmo sob o risco da arbitrariedade da escolha de
critrios que foram baseados em categorias de anlise e no em categorias nativas,
serviu para checar a coerncia dos dados colhidos nas observaes de campo. Assim,
pude criar 12 categorias para agrupar, da forma mais adequada, as 766 alteraes
observadas e efetivamente punidas pelo CA, no ano de 2003.

187

o Segundo-ano tem que ser cobrado com mais rigor. (Cadete


FEM D., Segundo-ano do CFO)

A possibilidade de uma disputa simblica novamente vinha


tona nas palavras de um capito do CA, comandante de CIA.
Para ele: a perseguio do Terceiro-ano [ao Segundo-ano]
maior [do que ao Primeiro-ano], por uma questo de turma par
e de turma mpar. Seu discurso refletia, portanto, a forma como
o poder era utilizado, em funo da maneira da representao
de cada grupo naquele contexto sociocultural.
Eram os cadetes do Terceiro-ano que detinham, nessas oportunidades, o poder da caneta, portanto eram eles que decidiam
quem ia ou no entrar naquele index disciplinar chamado
brochura. Alm dos oficiais, s eles que podiam faz-lo a
qualquer tempo. Nesse sentido, muitos cadetes do Segundo-ano
me disseram j ter recebido a temida ordem de Terceiro-ano,
quando de servio: aproveita e se lana, aluno!. Segundo eles,
isso ocorria especialmente quando um erro de escriturao era
detectado, o menor que fosse, o que talvez possa explicar o
fato de a cadete D., do Segundo-ano do CFO/2003, ter achado
engraado o fato de a maior parte das punies de sua turma
ter sido causada devido aos erros cometidos na brochura.
Por coincidncia ou no, esses fatos ocorriam exatamente
quando os cadetes do Segundo-ano estavam naquele momento
de invisibilidade social em seu estgio intermedirio do CFO,
quando so percebidos marginalmente como indivduos,
nesse caso na communitas que o CFO representa. Isso, com
certeza, fazia com que o Segundo-ano fosse cobrado com mais
rigor no que diz respeito a esses aspectos formais. Ainda nesse
sentido, os livros de controle de portarias do CA mostravam
que, das 400 punies sofridas pelo Segundo-ano, o uso equivocado do uniforme havia sido a alterao mais punida, com
72 punies, representando 18% desse total. A segunda causa
foi desrespeito e desobedincia, com 67 punies, representando 16,75 % (Tabela 4). interessante ressaltar que os dados
que mostravam os dois tipos de alterao, que, na maioria das
vezes, eram detectados por alunos do Terceiro-ano. De certa
forma, isso revela a maneira pela qual os alunos do Terceiro-ano
188

representavam os do Segundo, isto , como desenquadrados e


individualistas intempestivos, cujos comportamentos afrontavam as regras morais construdas naquele contexto holstico.
Tabela 4 Controle de punies
TIPO DE
ALTERAO
Em forma

3 Ano
(1 CIA)
1

0,75%

2 Ano
(2 CIA)
5

1,25%

1 Ano
(3 CIA)
15

No apartamento

37

27,82%

65

6,44%

16,25%

27

11,59%

Asseio Pessoal
Balbrdia

6,77%

14

4,51%

10

3,50%

1,72%

2,50%

16

Comando e Chefia
Desobedincia e
Desrespeito
Displicncia

10

7,52%

6,87%

42

10,50%

38

16,31%

17

12,78%

67

16,75%

25

10,73%

Dissimulao

23
0

17,29%

2,00%

13

5,58%

0,00%

13

3,25%

Dormir na instruo

0,43%

10

7,52%

23

5,75%

11

4,72%

Em servio

5,26%

43

10,75%

10

4,29%

Faltas / Atrasos

12

9,02%

38

9,50%

52

22,32%

Uniforme

0,75%

72

18,00%

21

9,01%

133

100%

400

100%

233

100%

TOTAL

Fonte: CA/APM

Os mesmos livros tambm revelavam um Terceiro-ano bastante


punido em servio por no fiscalizar corretamente as alteraes cometidas pelo Segundo-ano em servio (No fiscalizar
a confeco do Tpico no 18 do LPD Impar, No fiscalizar a
confeco do tpico que tratava do corretivo de Praa Especial
etc.). Aqui, havia o fato de os oficiais do CA entrarem no sistema,
considerando como alterao no s a rasura na brochura,
mas tambm a falha pela no observao dessa alterao por
parte de quem tinha moralmente o dever de fiscaliz-la, ou seja,
o Terceiro-ano. Tal fato levou-me a concluir que essa devia ser
mesmo uma obrigao moral do Terceiro-ano na APM, isto ,
a de, em servio, iniciar o processo coletivo de incriminao,
apontando o dedo disciplinar do sistema para o elemento desviante, o que, pelo visto, no ocorreu naqueles casos.
A perspectiva de tais estratgias compondo o mecanismo de
controle social da APM certamente ajudou-me a revelar a lgica
189

com que esse campo de lutas morais se estruturava dentro do


espao social da APM. Nesse sentido, as tomadas de posio
em que os cadetes tiravam seus servios tentando aumentar
seus estoques de poder e reputao junto ao CA, fiscalizando
outros cadetes, traziam tona um dilema: nesses momentos, a
maior exposio individual aumentava tambm o risco de eles
prprios serem punidos.
Por outro lado, ocorrendo a punio do cadete que agiu dentro da lgica do campo, seguindo os padres de conduta
sinalizados pelo CA, provavelmente no houve a esperada
considerao como contrapartida do CA, sendo que essa honra somente concedida aos considerados e por quem tem
o poder institucional para tal. Esses comportamentos morais
ficavam ainda mais claros sob a perspectiva das trocas maussianas quando a obrigao elemento estrutural em sistemas
de prestaes totais:
Mesmo em tribos realmente primitivas como as australianas, o
ponto de honra to melindroso como nas nossas, e as pessoas
se satisfazem por prestaes, oferendas de alimentos, precedncias e ritos, assim como por ddivas. Os homens souberam
empenhar sua honra e seu nome bem antes de saberem assinar.
(MAUSS, 2003, p. 241)

Embora indesejvel, o rompimento desse pacto tcito entre


os cadetes e o CA podia ser compreendido como um efeito
colateral por aquele que, eventualmente, tivesse optado por
construir estrategicamente sua honra, mas tal atitude era
geralmente entendida como uma desconsiderao, isto ,
como um insulto moral, nos termos de Luis Roberto Cardoso
de Oliveira, que embora no seja contemplado na dimenso
jurdica do direito legal, capaz de produzir uma retrica do
ressentimento (OLIVEIRA 2002).
Como peas fundamentais do sistema de controle do CA, os
cadetes se tornam geralmente vigilantes uns com os outros e
at com eles mesmos. Muitas vezes, esto tensos, preocupados
com suas imagens; noutras, so dissimulados e irnicos, mesmo
no emitindo palavras. plausvel que aqueles que apoiavam o
CA nessa empreitada controladora o fizessem porque realmente
haviam interiorizado os esquemas de percepo da caserna,
produzidos ali naquele contexto. Contudo, verifiquei que havia
tambm aqueles que cumpriam a poltica do CA por algum
190

interesse pragmtico, esperando pelo prestgio necessrio e,


consequentemente, pela aquisio de uma maior parcela de
poder, o que garantia a manuteno do sistema. Entretanto,
muitas vezes, quando no havia interesse do CA, ou quando o
cadete no fazia parte do rol de considerados, o que no foi
raro, eles tomavam posies contrrias naquele jogo simblico.
Quando as faltas observadas diziam respeito aos momentos em
que o canetado estava no Comando de alguma frao de tropa,
ou desempenhava funes de Chefia (turma ou apartamento), os
alunos do Primeiro-ano em geral foram mais punidos na chefia
de turma. Isso ocorreu, provavelmente, porque a exposio
do xerife era muito maior nesses casos, principalmente nos
primeiros meses da adaptao, quando tinham de conduzir
suas turmas marchando pelo ptio, sem ainda terem adquirido
a confiana necessria para faz-lo nos moldes desejados. Por
isso, esse padro no se repetiu nas outras turmas (Grfico 2),
muito provavelmente porque seus cadetes j estivessem mais
acostumados a tais atribuies, e portanto, menos propensos a
erros nessas ocasies. No entanto, pareceu-me que o problema
para as outras turmas era especificamente o da chefia de apartamento, pois a chefia de turma, sobretudo no que concerne s
apuraes, j no era naquela altura mais nenhuma novidade.
Nesses casos, tanto o Segundo, quanto o Terceiro-ano, j teriam
aperfeioado suas tcnicas de apurao com a rotatividade
na funo
40
35
30
25

25

10

20
15
10

17

12

0
1 CIA

2 CIA

3 CIA

APTO

Fonte CA/APM

TURMA

Grfico 2 Chefia

191

Alis, no foram as punies ocorridas na chefia de apartamento


que me chamaram a ateno no Terceiro-ano, mas as alteraes
lanadas por ocasio das revistas No apartamento. Essa foi, sem
dvida, a maior causa de punio no Terceiro-ano, com 37 punies de um total de 133, o que representou 27,8% das sanes
sofridas pela turma. No Segundo-ano, ela foi a terceira causa
mais punida, com 65 punies que representaram 16, 25% de suas
punies; e, no Primeiro-ano, apesar de no ter aparecido entre
as trs alteraes mais punidas, teve uma frequncia de 11,75%.
Uniforme
Faltas / Atrasos
Em servio
Dormir na instruo
Dissimulao
Displicncia
Desobedincia e Desrespeito
Comando e chefia
Balbrdia
Asseio Pessoal
No apartamento
Em forma
0,0%
Fonte:CA/APM

5,0%

10,0%

15,0%
1 CIA

20,0%
2 CIA

25,0%

30,0%

3 CIA

Grfico 3 Alteraes por turma

O fato de o Terceiro-ano ter sido bastante punido nesses casos,


mesmo sendo a faco de maior poder em relao s outras
turmas, pode ser explicado pela interferncia ttica utilizada
pelos prprios oficiais do CA, que lanam mo daquela quando
pressentem a Academia largada. Assim, eles se valem de sua
discricionariedade para revistarem, eles prprios, os apartamentos do Terceiro-ano. Sabem que, com esse estmulo inicial, todo
o sistema ser imediatamente afetado. Isso provavelmente foi o
que produziu as anotaes que resultaram naquele nmero de
punies para o Terceiro-ano. Existe, alis, uma mxima nativa
muito utilizada nesses momentos que nos ajuda a entender essa
lgica: parafuso se aperta pela cabea!.

192

Grfico 4 No apartamento

Os prprios oficiais tambm orientavam diretamente o Terceiro-ano sobre a maneira correta de se realizar uma revista de
apartamento; sobre o que se deve e o que no se deve observar
nessas ocasies. Assim, tradicionalmente, vai surgindo uma
padronizao tanto da fiscalizao, quanto das atitudes autorizadas. dessa forma, inclusive, que se obtm a ordem do material
da sapateira, das roupas do varal do banheiro, da arrumao
e da identificao das camas. Mas essa ordem frgil, j que
uma mudana repentina pode ser guardada pelos oficiais do CA
como estratgia poltica a ser usada nesses momentos em que
seja preciso equilibrar o sistema, o que poder alterar tudo isso.
Os oficiais fazem as revistas nos apartamentos do Terceiro-ano
que para ensinar como que se faz; geralmente no incio do
ano, e da o Terceiro-ano faz nos apartamentos do Segundo-ano
e assim vai. Geralmente, Terceiro-ano no anota Terceiro-ano.
Pode at acontecer, mas raro. Na maioria das vezes, quando
o Terceiro-ano anota apartamento do Terceiro-ano porque t
com o oficial do lado. (Cadete S. Terceiro-ano CFO)
Quem geralmente faz a revista nos apartamentos o Aluno
de Dia [ao CA]. Elas geralmente ocorrem no intervalo das
aulas. Os oficiais tambm fazem quando querem apertar o
Terceiro-ano. Subimos, entramos nos apartamentos e vemos
se as camas esto alinhadas, as luzes apagadas e se o cho e
o banheiro esto limpos; se os sapatos esto na ordem, nas

193

sapateiras. A ordem a seguinte: coturno, sapato, bananada,8


tnis e chinelo. Tem que estar no padro, se no tiver a gente
anota. Vemos tambm se o varal no est arriado, se as nossas
fotos esto nas camas e nos armrios. Depois o Aluno de Dia
informa ao CA, quando ele for se reunir no ptio para o segundo
expediente. Essas coisas, isso , o padro em que elas tm que
estar, a gente aprende na fase de adaptao, com o manual do
cadete. (Cadete E. Terceiro-ano CFO)

Embora um ou outro aluno tenha dito que aprendeu a revistar


[apartamento] no Manual do Cadete, no constatei a existncia
desse tipo de material e nem sua consulta de fato por parte dos
cadetes no dia a dia. Mas h, nas NGA, alguma padronizao,
demonstrando que os alunos no sabiam exatamente onde
aquilo tudo estava regulado. Tais procedimentos, assim como
outros tantos, eram na verdade repassados tradicionalmente
de veterano para bicho.
No obstante a portaria ser definida formalmente como um
meio de o acusado exercer, dentro do processo administrativo
disciplinar, seus consagrados direitos da ampla defesa e do
contraditrio, nem sempre ela era vista pelos cadetes como
um mecanismo isento para assegurar esse fim. Muitas vezes,
era representada como um instrumento das tticas polticas
que oportunizam a manifestao das estruturas do poder institucional (FOUCAULT, 2007). Nesse caso especfico, trata-se
do poder que informa a lgica hierrquica daquele sistema
de vigilncia, mostrando a todo o Corpo de Alunos que ali o
discurso do superior tem peso maior para a descoberta da
verdade processual.
Tem aquele cadete que est pr-determinado em lanar um
aluno e aproveita o servio para lanar. Por exemplo, est na
funo de cadete de dia, a ele vem aqui nesse ap aqui para
fazer revista de apartamento, a tem aquele cadete pr-determinado que ele quer lanar. Ele vem aqui, entra no apartamento,
por exemplo, v a cama, olha, por exemplo, a fronha, ah,
t lanado porque a fronha t suja, ou t lanado porque a
8

Trata-se de uma espcie de tnis-padro fornecido pela PMERJ, que, por sua cor,
espessura e baixa qualidade, os alunos os comparam aos doces de banana que so
vendidos na cantina da APM. J tnis, propriamente dito, significa o calado mais
sofisticado e de melhor qualidade que os prprios cadetes adquirem para a realizao
da corrida, na prtica da educao fsica.

194

sapateira t em desalinho, ou t lanado porque a cama t


amassada, ou, se a pessoa for chefe de apartamento, porque
cada semana tem um chefe de apartamento, ele liga o ventilador, fala que a luz t acesa, que o cho t sujo. Por exemplo,
vai e anota e isso vai l pro comandante de CIA, ele v o que
t escrito ele, no sei assim se obviamente acredita no cadete,
extrai a portaria pr gente. A gente tenta se justificar, fala que
no tava que no sei o qu, que o apartamento tava padro, mas
99% no adianta: a gente fica punido. Mesmo porque a gente
no tem nem como provar se realmente a luz estava acesa, a
sua palavra contra a do cadete mais antigo. Vale a palavra do
cadete do Terceiro-ano que tem essa funo de fiscalizador.
(Cadete L. do Primeiro-ano, punido com LS)
Outra coisa que fica muito difcil de, como que se diz? De
quebrar a portaria a falta de contato que a gente tem com
o prprio oficial. Ento um comandante de CIA para 110
cadetes, ou seja, para a gente ter acesso para conversar com
o oficial e para o oficial saber a nvel de cada um, como cada
um pensa, do Primeiro e do Terceiro-ano muito difcil a gente
conseguir provar no papel aquilo que realmente aconteceu ou
argumentar melhor. Tem gente que tem mais facilidade para
falar do que para escrever e outra coisa, essa parte emocional
e essa parte at para poder se justificar, ajuda voc a no ficar
punido e passar mais a verdade. (Cadete T. do Primeiro-ano,
punido com LS)

Assim, essa representao se reforava com o efetivo reduzido


de oficiais do CA9 para o julgamento de todas as portarias respondidas pelos acusados, o que impossibilitava um julgamento
isento, nos moldes jurdicos de um Estado Democrtico de
Direito. Alm disso, os conflitos eram administrados por meio
de uma maneira peculiar de se ver o mundo como vimos, em
que a verdade se define com base na autoridade hierrquica do
discurso do mais antigo.
Dentro dessa lgica, a contestao da verdade por parte do
mais moderno pode ser interpretada como indisciplina
hierarquia estabelecida, mesmo sob o argumento de terem
sido concedidos o contraditrio e ampla defesa. Nesse caso,
tal afronta pode at gerar a retronaba, ou seja, uma outra
portaria para aquele que resolveu se comportar com base nas
9

Em 2003, eram cinco oficiais no CA: um major comandante, trs capites comandantes
de CIA e dois tenentes, comandantes de peloto, para um efetivo de 341 cadetes.

195

normas universais, questionando o discurso da autoridade


local, como tem ocorrido frequentemente, segundo uma aluna
do Primeiro-ano.
Se voc citar um cadete do Terceiro-ano nessa portaria, volta
outra. Foi o que aconteceu com o nosso amigo aqui [apontando para um par]. Ele falou que foi culpa do veterano, que foi
lanado..., realmente voltou outra portaria para ele. Ele ficou
doze dias [LS 12]! Ficou um ms aqui dentro! Tudo comeou
por causa disso, porque ele citou um cadete do Terceiro-ano.
O que acontece? Gerou uma revolta de outros que comearam
a perseguir ele e que s parou com a interferncia do cadete-padro que viu que ele tava sendo perseguido e mandou parar.
(Cadete L., Primeiro-ano CFO)

Percebem-se, aqui, caractersticas de uma realidade social tpica


das sociedades simples, mencionadas por Durkheim, cuja solidariedade mecnica deriva das semelhanas, e onde o direito
repressivo prevalece sobre as normas que regulam as relaes
privadas (DURKHEIM, 2008, p. 40-83). Como j vimos, a ordem
social na APM consagrada coletivamente em detrimento da
individualidade e, em contextos como esses, a ao ofensiva
contra algum indivduo ganha dimenso holstica, passando a
ser encarada e reprimida como uma ameaa coeso social.
aqui que a representao da irreversibilidade da portaria ganha
fora. Nessas horas em que se espera o pior, o chefe de turma
a ave agourenta, ou o mensageiro do mal, e a portaria
representada por uma metfora flica: a naba. Assim, ela
percebida como uma violncia similar do estupro. Com a expresso nativa a naba est voando, esse instrumento de poder
ganha tambm alm das asas um significado de onipresena
vigilante, caracterstico do sistema panptico, cuja tenso gerada similar que antecede o ataque de uma ave de rapina. Por
esse prisma ainda h esperanas de o cadete escapar da punio
at aquele momento crtico; depois do bote, s por um milagre.
Quando voc responde portaria e ainda no tem resposta..., voc fica naquela.., LS 1 ou 2? O cadete sempre est
errado. Quando a gente est certo sempre..., s vezes, d
pra quebrar. Na minha opinio, o LS sempre vem, [a
portaria] mera formalidade. Explica, mas no justifica

196

(entre risos discretos). Essa a melhor frase que j ouvi


sobre isso. (Cadete P. do Primeiro-ano do CFO)

Invente uma historinha, aluno


Como se pode concluir, no h uma definio prvia do que
sejam as faltas de cadete punveis com LS; as NGA s falam muito rapidamente em sua possibilidade. Na verdade, se
o LS estivesse numa dimenso jurdica, certamente feriria um
princpio clssico do direito penal moderno: o da anterioridade,
que veda a pena sem prvia definio legal. Mas como no est,
tanto o enquadramento do fato como uma alterao, quanto a
aplicao da respectiva punio, so frutos de subjetividades:
primeiro a de quem o observa e o anota, depois a do oficial que o
julga. Nesse sentido, tentar entender o que seria um fato punvel
com LS pode se tornar um drama kafkaniano.
Para Kant de Lima (2008), o processo de normalizao implica
consenso de normas num ambiente social igualitrio, o que no
ocorria no CFO. Como pude observar, ali no se legitimava e
nem se naturalizava relaes de igualdade, seno de assimetria.
Nessa perspectiva, no ocorria tambm a interiorizao de regras, j que daquela forma elas no eram claramente definidas,
no podendo, portanto, ser partilhadas universalmente por
todos e para todos.
Na verdade, a imprevisibilidade era a tnica do poder que o
tipo de vigilncia hierrquica da APM produzia. Ao contrrio
do que predispe Kant de Lima (2008), ali a opacidade das normas parecia ser mesmo uma estratgia, na qual a incerteza que
ela gerava era geralmente aproveitada contra pretensos transgressores nos processos punitivos disciplinares instaurados
depois das portarias. Nesse caso, havia, como diria Foucault,
um poder difuso de vigiar e punir com a pretenso do controle
mximo, em que tudo deveria ser interrogado, indo contra o
dever de tudo se dizer, o que configurava lgica da confisso
(FOUCAULT, 2009).
Geralmente o cadete tinha at o final do expediente para responder a portaria por escrito e devolv-la ao chefe de turma,
197

que, por seu turno, deveria faz-la chegar ao CA, onde ela era
finalmente julgada. Entretanto a punio parecia ser mesmo
algo irreversvel no entendimento dos cadetes, sobretudo, para
os mais modernos:
A gente j vai ligando pra casa avisando e preparando o esprito:
olha, no vou pra casa esse fim de semana porque vou ficar
de LS. Porque a gente j sabe. (Cadete L., do Primeiro-ano
do CFO)

Nesse sentido, a portaria funcionava como mera formalidade


no processo da punio j dada como certa, mesmo que de fato
ela no ocorresse:
Recebi a portaria,..., a gente fica meio apreensiva..., fica naquela
expectativa quando o Corpo de Alunos se rene para ler a grade
de punidos na sexta-feira. Dependendo da portaria, o cadete
responde j sabendo que vai ficar punido. Eu tinha certeza que
ia ficar punida, quando o tenente Coronel G. [Comandante do
GETAM que estava realizando uma palestra na APM] me anotou por no ter prestado uma continncia para ele, mas no
fui [punida] por sorte. (Cadete FEM. D., Primeiro-ano CFO)

Vimos antes que o modelo nativo tentava explicar essa percepo como uma disfuno do sistema de controle da APM,
que, pelo alto nmero de portarias extradas, impossibilitava o
surgimento da verdade real, como se essa verdade fosse de
fato desvelada pelo processo de litgio entre aquilo que havia
sido anotado e o que os cadetes tinham a dizer. Nas provveis
causas dessa disfuno, inclua-se ainda o nmero reduzido de
oficiais para realizar um julgamento justo das portarias, fazendo com que, muitas vezes, os cadetes se sentissem frustrados
tentando expressar suas verdades.
O que falta um processo dialtico com o oficial de argumentar
e contra-argumentar. Voc escreve ali, o oficial vai ler, se aquilo
no tiver condizente ele no vai..., voc no vai ter esse direito
de contra-argumentar. Ele no vai te dizer , voc escreveu
isso aqui, mas voc t punido por causa disso. Ah, mas voc:
isso no isso, aquilo; foi desse jeito. Voc no tem esse
contato; uma coisa absolutamente formal. Tem um jeito certo
de escrever at impessoal que na terceira pessoa, carimba
assim e envia. Se foi, foi. (Cadete L., do Primeiro-ano do CFO,
punido com LS)

198

Eu acho que no caso da minha punio tinha muito cadete


anotado, so quase 400 na APM, e como tinham poucos oficiais
eu acho que no d para apurar tudo. Eu acho que a portaria
vlida, mas o oficial no a avalia 100%. (Cadete P., Segundo-ano do CFO)

Dessa forma, justificar uma portaria era quase sempre visto pelos cadetes como uma tentativa v. Geralmente, os mais cticos
entendiam que podiam at se prejudicar com uma resposta mal
colocada. Sendo assim, alguns se antecipavam ao provvel prejuzo com um clculo prtico: resolviam confirmar a acusao
de suas faltas, mesmo quando convictos de terem agido corretamente. Outros ainda, talvez os que j houvessem de alguma
forma interiorizado a desigualdade estrutural do militarismo,
entendiam que seriam vistos como indisciplinados por seus
superiores, caso tentassem justificar as faltas apontadas por
eles, e tambm as confirmavam. Assim, muitos dos que acabavam concordando com a acusao e, por conseguinte, com
o erro cometido, respondiam a portaria com uma conhecida
expresso: ciente do fato.
Quando eu respondo a portaria procuro me respaldar em algum
regulamento, mas se tiver errada: ciente do fato. T errada
mesmo, n? (Cadete FEM D., do Segundo-ano CFO)
Coloquei exatamente o que ocorreu. Foi a primeira vez que
fiquei punido com RD. J havia respondido portarias outras
vezes, mas s no 1 ano. Nunca justifiquei ou tentei justificar.
Sempre coloquei: ciente do fato, porque eu reconhecia que
havia errado. Barba mal feita, por exemplo. (Cadete B, do
Terceiro-ano do CFO)

Todavia, o ciente do fato havia sido censurado por um oficial


do CA que, segundo os cadetes, os orientava a sempre tentar
justificar suas faltas. Foi a partir dali que essa resposta resignada
foi praticamente abolida no CFO. Na portaria no pode colocar
ciente do fato por determinao do nosso capito comandante
de CIA; tem que justificar de alguma forma, disse-me uma cadete. Provavelmente, esse tipo de resposta suscitava uma provvel
redefinio dos papis objetivados (BERGER e LUCKMANN,
2003), o que punha em xeque a lgica punitiva do sistema que,
como se viu, era baseada na confisso ou, como ns nativos

199

mesmos dizemos, na busca da verdade real. Talvez, os oficiais


tivessem pressentido que a ausncia de litgio no produzia a
necessria eficcia para que as instituies de poder e controle
do militarismo pudessem cumprir o seu papel.
Tal postura lembrou novamente a ttica adotada pela sociedade ocidental para tratar do sexo no sculo XIX. De acordo
com Michel Foucault (2009), no obstante aos que alegavam ter
existido naquele momento uma proibio do assunto a hiptese repressiva , o que teria havido mesmo foi uma vontade
de saber que colocava o sexo em discurso, possibilitando a
construo de uma verdadeira scientia sexualis com a manipulao poltica do discurso sexual. nesse contexto que a lgica
da confisso passa a ganhar destaque.
Na minha poca j tinha. Eu acho que o aluno, at com medo
de piorar a situao dele, resolve no mexer mais. Mas quando
chega alguma [portaria] assim, a gente manda voltar para explicar, mesmo que invente uma historinha, geralmente quando
a gente observa que no tem jeito... (tenente, comandante de
peloto do CA)

Nesse sentido, o processo punitivo da APM parecia-me tambm


apresentar uma vontade de saber, na qual tudo deveria ser
dito, tudo o que tinha ou no relao com o fato-alterao, ainda
que fosse para inventar uma historinha. Apesar de os oficiais
ressaltarem que as regras formais do processo administrativo
disciplinar os obrigavam a conceder direitos e garantias individuais aos cadetes, como o contraditrio e a ampla defesa,
eles tambm sinalizavam que o que prevalecia, na prtica, eram
as regras inquisitoriais baseadas na desigualdade com que se
constri a realidade institucional da APM. Essa assimetria se
revelava quase sempre nas punies sofridas pelos cadetes,
sobretudo nos LS. Em outros contextos, essas punies talvez
at fossem consideradas arbitrrias. Contudo, ali dentro daquele
ambiente sociocultural em que o nefito devia sofr-las para que
sua iniciao tivesse eficcia, elas eram legitimadas.
No direito administrativo brasileiro, a administrao pblica,
ou Estado-Administrao, como dizem os juristas, parece estar sempre posicionado num nvel acima dos indivduos. Os
200

prprios princpios do Direito Administrativo indicam essa


assimetria. Um exemplo clssico em que ela se d o inqurito policial, que, no Cdigo de Processo Penal Brasileiro, alis,
est localizado na chamada fase administrativa da persecuo
penal.10 Ali, guisa da investigao dos delitos, toma-se sempre
a iniciativa de se cercear direitos individuais que, em tese, sero
resguardados na prxima fase processual e acusatria , em
nome do interesse pblico. Assim, o inqurito muitas vezes
percebido como um instrumento de poder do Estado contra o
cidado. Todavia, ele parece estar perfeitamente conforme a
lgica assimtrica que estrutura o campo jurdico-administrativo
brasileiro. Esta primeira fase persecutria traz caractersticas
de um sistema inquisitorial que marca das sociedades hierrquicas e cuja burocracia jurdica, segundo Kant de Lima, se
especializou a partir de um modelo catlico de produo da
verdade (KANT DE LIMA, 1992).
J em sua segunda fase, a persecuo penal traz caractersticas
do sistema acusatrio presente em sociedades representadas
pela ideologia moderna que tm, no indivduo e seus atributos
da igualdade e da liberdade, a base de seu sistema de valores
(DUMONT, 2000). A lgica dessa fase acusatria, portanto,
diferentemente do que ocorre na fase inquisitorial, encontra-se baseada na igualdade de condies entre as partes, ou seja,
numa relao simtrica entre Estado e indivduo. Por isso, o
contraditrio e a ampla defesa so os mais importantes
princpios processuais do processo acusatrio. Eles permitem
igualdade de condies processuais aos litigantes11 para que
estes possam compor seus argumentos com provas admissveis
10

A persecuo penal o caminho tomado pelo Estado com o objetivo de identificar,


processar e aplicar penas queles que cometerem delitos penais. No Brasil, a
persecuo penal dividida em duas fases. A primeira, que administrativa e
inquisitorial e est a cargo do Executivo, visa identificao do criminoso e do fato
(apurao de autoria e materialidade); e a segunda, que processual e acusatria e fica
a cargo do Judicirio, visa ao julgamento do acusado. So duas fases completamente
distintas no que se refere relao Estado versus indivduo. Na fase inquisitorial,
a relao assimtrica, com a supremacia do Estado e do interesse pblico, e na
segunda prevalece a representao da igualdade entre as partes.

11

Esta noo se baseia na de igualdade formal ou legal, ou seja igualdade perante a lei,
ausncia de barreiras ou incompetncias jurdicas e legais na busca pelos objetivos
de cada um (BARBOSA , 2002).

201

em direito, o que vale tambm para o prprio Estado. Nesse sentido, o sistema jurdico-criminal brasileiro classificado como
um sistema misto pela doutrina jurdica brasileira, exatamente
por reunir traos desses dois sistemas distintos de produo
da verdade jurdica. Segundo Kant de Lima (1992), isso representaria uma esquizofrenia caracterstica do sincretismo de um
sistema de Justia Criminal que rene, num mesmo contexto, o
moderno sistema acusatrio americano e o tradicional modelo
inquisitorial ibrico.
A constituio cidad de 1988, em seu compromisso de resgatar direitos e garantias individuais, importou esses dois mais
importantes princpios do sistema acusatrio para a cultura
administrativa e, notadamente, para o processo administrativo
disciplinar. At ento, eles eram estranhos lgica da desigualdade que estrutura o campo jurdico-administrativo brasileiro.
No que se refere realidade policial militar, hierarquizada e
construda a partir da mesma noo de desigualdade estrutural entre a administrao militar e os indivduos militares,
esses valores inseridos de forma arbitrria naquele contexto
jurdico-cultural certamente rivalizaram com os valores da
prpria cultura nativa. Desse modo, tal como ocorreu na sociedade brasileira, foi inevitvel uma exploso de litigiosidade
que cada dia tem aumentado na APM, na qual a cultura local
da desigualdade hierrquica ainda resiste a esses princpios
igualitrios trazidos pelo texto constitucional de 1988. Essas
consideraes talvez expliquem o fato j mencionado de que as
aulas jurdicas ofertadas na APM,12 trazendo baila questes do
processo administrativo disciplinar, ainda que estranhas s desigualdades histricas e estruturais do militarismo, passaram a
expor contradies no prprio sistema interno. Quando servem
de subsdios para os cadetes responderem suas portarias, fazem
com que alguns passem a ser vistos como questionadores e
indisciplinados.
12

Do total de 3503 horas-aula das matrias do CFO, isto , levando-se em conta os


dois mdulos de ensino (Profissional e Fundamental), aproximadamente 20% so
destinados s matrias jurdicas. Quando considerado somente esse mdulo do
Ensino Fundamental, das 23 matrias, 14 so jurdicas, sendo que 71% das horas-aula
so destinados a elas.

202

Conforme havamos visto, tais conflitos se desenvolvem em razo de uma assimetria estrutural que produzida naquele campo
e cujo equilbrio pode ocorrer quando o indivduo questionador, aps ter sido derrotado no campo jurdico administrativo
militar interno, busca proteo para seus direitos na justia
comum. Cumpre observar que tais novidades podero, num
futuro prximo, trazer mudanas na forma de se administrar
os conflitos internos, o que provavelmente afetaria as prprias
estruturas sociais da APM.
Com relao ao resultado desses processos administrativos
disciplinares, o cadete geralmente pega um LS, quando, dentro
da dimenso liminar da considerao, sua falta entendida
como uma falta de aluno. Do contrrio, isto , quando a falta
percebida como uma transgresso mais grave, ele poder pegar
uma punio de RD, como ocorre, por exemplo, no caso de
ser detectada alguma falha de carter do cadete.
Alm das NGA e do RDPM, o Licenciamento Sustado est previsto ainda no Regulamento Interno da Academia de Polcia Militar
D. Joo VI RIAPM. Portanto, ele s aplicado aos cadetes que,
nesses casos, ficam impedidos de serem liberados nos finais de
semana juntamente com o restante do Corpo de Alunos. A quantidade de dias que o punido extraordinariamente obrigado a
ficar na Academia varia de acordo com a classificao numrica
do LS, decidida por ocasio do julgamento da falta. O LS1, por
exemplo, o impede de sair por mais um dia depois da liberao
normal; o LS2, por dois dias, e assim por diante.
J as punies do RD, por serem aplicveis no s a alunos
(nos casos mais graves), mas tambm a todo o policial militar,
so consideradas mais graves e, por isso, se diz que elas so
faltas de policial e no faltas de aluno. O que, alm da maior
gravidade do fato, pressupe-se uma maior experincia e, consequentemente, uma sensibilidade jurdica mais amadurecida.
Por isso a sano tende a ser mais grave, nesses casos.
Como disse anteriormente, no existia nenhuma regra padronizando a modulao entre a gravidade das transgresses
cometidas e as punies a elas aplicadas. Apesar de o militaris203

mo pressupor previsibilidade, o que prevalecia nesses casos era


a subjetividade do julgador. No entanto, pareceu surgir algum
consenso em torno dos discursos de oficiais e alunos. Para
uma cadete do Terceiro-ano do CFO, por exemplo, o tempo era
pressuposto pelo amadurecimento do cadete, no momento em
que a punio lhe era aplicada:
Vai depender do ano que a pessoa t na Escola, ou exatamente
da falta que ela cometeu. Uma falta que eu cometia no 1o ano,
por exemplo, se um [cadete do] 1o ano deixa de cortar o cabelo
ele punido com LS, um LS pequeno. Se no 2o ano ele comete
o mesmo erro, ele punido com LS, mas um nmero maior de
dias que ele vai ficar aqui. J no 3o ano, uma falta que j no se
admite mais, ento a ele j pega uma punio de RDPM, uma
punio baixa de RDPM e a gradao feita assim. Ou em casos
graves que independem do ano, como crimes..., crimes no,
eu no t sabendo me expressar..., casos graves que envolvam
aqueles desvios de carter maior que no significam um simples
corte de cabelo. O LS uma falta branda, mais uma falta de
aluno, uma coisa comum. (R., Cadete do Terceiro-ano do CFO)

Para um comandante-aluno do Terceiro-ano,13 as punies so


padronizadas conforme a subjetividade do comandante do CA,
que quem determina o que deve ou no ser observado como
falta, e que, de certa forma, orientaria o sistema:
Isso [as anotaes das alteraes] depende da diretriz
do Corpo de Alunos. Por qu? Determinados oficiais
tm essa diretriz mais severa, ento eles vo pedir que
esses cadetes [comandantes de companhia] observem o
cabelo grande, o papel jogado fora da lixeira e o brao
cruzado. Outros vo pedir para esses cadetes olharem
os fatos mais graves, tipo: o atraso ao servio, o atraso
para a instruo, o desempenho na educao fsica, n;
o fardamento completo, se est em desacordo. Ento,
isso depende do oficial. Outra linha diz que, por exemplo,
... que querem s as faltas do Terceiro-ano: o atraso do
Primeiro-ano punido com LS e o atraso do Terceiro-ano
punido com RD. Outros j adotam essa postura para
13

Os comandantes-alunos so os zeros de turma do Terceiro-ano, com exceo do


cadete-padro, que adquirem o direito e a obrigao de treinarem o comando das
turmas do CFO. Nesse sentido, cada turma tem o seu comandante-aluno que o
responsvel pela disciplina da turma comandada, a quem seus alunos procuram
primeiro, antes de se dirigirem, por algum problema, ao cadete-padro, ou mesmo
aos oficiais do CA.

204

todos os anos, se um dos cadetes cometerem alguma


falta de regulamento n? Faltou ao servio, mesmo se
for do Primeiro-ano, vai ser punido com Regulamento
Disciplinar. (Cadete V., Terceiro-ano do CFO)

At que enfim sexta-feira


A alvorada das sextas-feiras diferente. O corneteiro pode
fazer o diabo que no irrita a gente, porque tudo festa. Afinal
dia de liberao. Hoje sexta-feira! (Cadete I., do Terceiro-ano do CFO)

Existem vrias possibilidades de liberao do Corpo de Alunos


durante a semana, momento em que o regime de semi-internato
excepcionalmente suspenso. Uma delas ocorre com a chegada
dos ltimos cem dias que antecedem o Aspirantado, o almoo
dos cem dias, no qual ocorre uma espcie de comunho especial entre os cadetes do Terceiro-ano e seus possveis futuros
comandantes de unidade. Outra ocorre ainda no perodo das
provas finais, quando o regime do CFO passa a ser o do externato, com os cadetes sendo liberados diariamente aps o trmino
do expediente letivo e regressando APM no dia seguinte. Mas
a principal liberao, a mais significativa, sem dvida a do
final de semana que, alm de significar um perodo maior de
liberao, tambm representa o tradicional licenciamento do
Corpo de Alunos.
Nos dias que o antecedem, h uma excitao que vai aumentando ante a iminncia desse perodo maior de liberdade. Com
o passar do tempo, ocorre um verdadeiro frenesi no Corpo de
Alunos. Muitos demonstram impacincia com seus prprios
companheiros de apartamento ou com qualquer fato que atrase
ainda mais a esperada liberao, revelando o alto nvel de estresse acumulado durante toda a semana. Esse um momento
especial na APM, pois ao mesmo tempo em que para os cadetes
representa a possibilidade do reencontro com suas famlias e
amigos, para os oficiais do CA, ele representa tambm o risco
de contgio do cadete pelo mundo de fora, ou seja, a rua,
mundo do caos e da indisciplina. Um contato mais longo como
ele pode pr a perder todo o trabalho de interiorizao disciplinar realizado durante a semana. Creio que deva ser por isso
205

que os ritos punitivos ocorram normalmente nesses momentos


que antecedem a liberao. Aqueles ritos vo desde simples e
enfadonhas orientaes, at a uma elaborada comunicao
simblica que refora os valores da caserna com a dramatizao
punitiva do cadete.
O que eu chamo de ritual da punio disciplinar acontece
normalmente nesse contexto emocionalmente especial, j que
o dia da liberao de fim de semana ocorre aps um intenso
perodo em que os cadetes estiveram mergulhados na rotina
da caserna. Assim, os cadetes tm a chance de se despirem
das amarras da ordem militar, pelo menos enquanto durar o
final de semana letivo, que vai do meio-dia de sexta-feira at
oamanhecer da segunda.
O nico perodo de expediente das sextas-feiras normalmente
reservado pela Diviso de Ensino para alguma matria atrasada,
ou para atividades extras, como as palestras, por exemplo. s
vezes aqui tem essas palestras sobre algum assunto. A maioria,
papo furado, dizia um cadete com quem eu conversava no
auditrio enquanto aguardava a palestra daquele dia. Ele parecia querer me mostrar toda a sua indignao, denunciando a
palestra prestes a ser proferida por um Coronel da reserva. Era
um dia em que eu fazia minhas observaes de campo e resolvi
assistir tal palestra do Coronel, enquanto aguardava, juntamente com meus sujeitos observados, pelo ritual da punio
que tambm ocorreria ali a qualquer momento.
Como de hbito, eu estava posicionado estrategicamente nas
ltimas fileiras para iniciar minhas anotaes. Em suas palavras,
o palestrante afirmou que havia entrado para a PM em 1966,
onde permaneceu at 1999, por 33 anos, portanto. Os alunos
ainda no sabiam qual seria o tema da palestra. Alis, pelo que
me disseram, eles nunca sabiam Somos os ltimos a saber.
Ento, empatou disse a eles pois tambm no sei de nada
e estou aqui, como vocs, para assistir palestra.
Na verdade, a palestra se tratava da apresentao de um livro
de autoria do prprio Coronel sobre Rock and Roll: suas origens e mitos. Propaganda pura. Palestra imprpria...! Livro de
206

Rock? Putz... resmungava em voz baixa um cadete sentado na


poltrona atrs da minha e que, at ento, no havia percebido
a minha a minha presena.
Antes de a palestra comear, resolvi arriscar uma conversa com
o resmungo e com outros cadetes a sua volta, no intuito de
saber a percepo deles naquele momento:
E o que seria uma palestra interessante?, perguntei.
As que so voltadas para a vida profissional so interessantes. Por exemplo: trazer policiais militares condenados
para mostrar o exemplo negativo Exemplificou-me o Cadete
S., do Segundo-ano.
O que vocs esto pensando nesse momento?
A noo a de esperar a liberao, mas a gente nunca sabe
o que vai fazer, o que vai realmente acontecer com a gente.
Normalmente, a gente espera ler a grade de presos. Vm os
comandantes de CIA, do as recomendaes, regresso, horrios
de regresso, grade de punidos, depois leem o boletim, se tiver,
depois libera. Quando No internato a ansiedade era ainda
maior..., medo de ficar punido..., se tiver com uma portaria
voando, como o pessoal diz. Mas se no tiver, no tem como
voc ficar punido. quando voc responde a portaria e ainda
no tem resposta..., voc fica naquela..., LS 1 ou LS 2? O cadete
sempre est errado. Quando a gente est certo sempre..., s
vezes, d pra quebrar. Na minha opinio, o LS sempre vem,
[a portaria] mera formalidade. Explica, mas no justifica
(entre risos discretos) a melhor frase que j ouvi sobre isso
Explicava-me o Cadete P., do Primeiro-ano, momento em que
era auxiliado pela Cadete B. do Segundo:
Injustia foi a da sirene14 que tocou de madrugada e eu no
levantei: fui punida com 4 dias de deteno.
Tem uma diferena das portarias de oficial para as de cadete.
Nunca vi um aluno que tenha tomado uma portaria de oficial
que se justificou. (Cadete D., do Primeiro-ano do CFO)

Enquanto isso, na palestra: Eu no estou dando ordens, estou


explanando, dizia o palestrante. Eu estou mostrando uma
pessoa que trabalhou na Polcia Militar durante 33 anos..., seningum comprar o livro, eu vou fazer a palestra assim mesmo.
Ningum comprou um livro e a palestra do Coronel acabou
14

Toque de reunio determinado pelo aluno mais antigo que estiver de servio.

207

assim, meio sem graa. Mas, pelo menos, ela serviu para eu
sentir o clima dos cadetes no momento imediatamente anterior
ao ritual, quando nem todos gozam do benefcio da liberao.
Alguns, no se sabe quem, continuaro retidos na caserna cumprindo seu LS, ou mesmo sua punio disciplinar (RD), enquanto
o restante do CA liberado. Nesse aspecto, aquele momento me
pareceu taticamente bastante adequado para que a pedagogia
disciplinar operasse numa dimenso simblica.
O ritual da punio disciplinar, nesse sentido, pode ser observado sob o prisma da performance como um drama teatral. Ali, a
emoo dos cadetes canalizada para reforar os valores institucionais num discurso em que o corpo simblico daqueles que
trazem consigo os antivalores institucionais serve de metfora,
quando da marcao do desviante. Os que, durante a semana, j
haviam sido considerados culpados no processo administrativo
disciplinar eram, finalmente, anunciados e punidos s vistas do
coletivo. Aps serem separados e marcados simbolicamente
perante todo o corpo de alunos, os punidos entravam numa
liminaridade marginal que se materializava com o confinamento
fsico que ocorria durante os dias em que cumpriam seu LS ou
RD. De certa forma, esse ritual lembrava as flagelaes corporais
observadas na Europa pr-moderna por Foucault (2007), quando
o corpo do condenado era fisicamente empossado pelo poder
absoluto do monarca. S que, no ritual da APM, num contexto
moderno, no era o corpo fsico do cadete que era marcado
como ocorria com o condenado em contextos pr-modernos,15
mas sim, o seu corpo simblico, supliciado naquele festival
punitivo em que lhe sangravam a reputao.
Nesse sentido, a carga emocional parecia aumentar durante a
performance que seguia em direo ao clmax. Ao serem chamados pelos nmeros internos, os acusados se destacavam de
15

Num passado recente, os militares ainda eram punidos fisicamente com a chibata.
Seus ltimos resqucios foram apagados com a Revolta da Chibata, que amotinou
praas da marinha brasileira em novembro de 1910. Dessa forma, a lgica da disciplina
militar, mais incrementada ainda com esses contornos dramticos, diferenciava os
militares, distanciando-os mais ainda da realidade do mundo de fora. Parece que,
no entanto, esse assunto carece de um estudo mais detalhado sobre uma possvel
histria das penas disciplinares abordando essas mudanas, o que complementaria
o que foi realizado por Foucault com relao s penas na sociedade europeia.

208

seu grupo e, de p, respondiam, em voz alta, o nome de guerra e


a numrica. Era um daqueles raros momentos em que ocorre a
individualizao controlada do sujeito na APM. Nesse sentido, o
ritual da punio parecia servir de controle simblico de foras
desconhecidas e ameaadoras da ordem, ganhando significados
muito parecidos com os dos ritos de aflio (TURNER, 2005).

Figura 12 A punio ritual do cadete no CFO

Hora da porrada: o drama da punio


Em meus trabalhos de campo na APM, observei ao todo cinco
eventos como aqueles. Por sinal, todos muito parecidos. Mudava uma coisa ou outra na forma, mas a estrutura permanecia
praticamente a mesma, inclusive quando comparada com a dos
rituais do meu tempo de cadete da EsFO. s vezes, mudava
o lugar ou o uniforme, mas de uma maneira geral eles quase
sempre apresentavam a mesma forma que eu havia encontrado
por ocasio de meu CFO. Por isso, optei por tomar como base
um daqueles rituais que eu havia observado, mais precisamente
o que ocorrera numa sexta-feira de novembro de 2003, para, a
partir de sua descrio, fazer minhas anlises.
No ltimo dia da semana, terminado o expediente com todas as
aulas j finalizadas, os Chefes de Turma se dirigem ao CA para

209

alguma determinao de ltima hora. Enquanto isso, os demais


cadetes aguardam ansiosos em sala. O momento de excitao,
afinal, dia de liberao e os cadetes sabem que alguns deles no
iro para casa rever amigos e parentes que j no viam desde
a noite do ltimo domingo, quando regressaram Academia.
Talvez com a exceo dos aratacas e outros residentes, todos tenham motivos para estarem ansiosos, principalmente os
anotados, que aguardam a soluo de suas portarias.
Os Chefes de Turma recebem determinaes do CA para deslocarem suas respectivas turmas at o auditrio, onde devero
assistir a leitura das punies e compartilhar o drama da
punio. O deslocamento, como sempre, ocorre de forma coletiva, com cada turma seguindo o mesmo destino em passo
ordinrio. Todas elas, uma aps a outra, atravessam o ptio da
APM, obedecendo hierarquia que ordena seu rumo e, depois,
se posicionam lado a lado, em frente ao auditrio, onde fazem
o alto. Seus chefes finalizam suas respectivas apuraes,
passando-as em pequenos formulrios padronizados ao cadete-padro, que em poucos minutos tem nas mos a localizao de
todo o Corpo de Alunos.
Depois disso, as turmas so autorizadas a entrar no auditrio,
tambm em ordem hierrquica as mais antigas sempre na
frente , onde aguardam sentadas a chegada dos oficiais para
o incio do evento. Os donos do ritual ainda esto no CA,
aguardando o pronto do cadete-padro para se dirigirem ao
auditrio. Tais procedimentos so naturalizados pelos oficiais
como uma verdadeira obrigao moral. Eles largam seus afazeres materializados nos vrios documentos dispostos em suas
mesas, para se dirigirem, um ao lado do outro, ao auditrio onde
os cadetes os aguardam impacientes; uns, por no saberem se
esto ou no punidos, e outros, por j terem essa informao
obtida por meio de mecanismos relacionais, querem apenas
saber a quantidade extra de dias que ainda tero de permanecer
na APM. Contudo, a grande maioria est louca para ir logo para
casa e se livrar daquelas regras, nem que seja para contar aos
familiares as bravatas da semana.

210

Ali, durante o trajeto para o auditrio, j se percebe um ar solene


nos oficiais. Seus movimentos so marcados; os passos firmes,
lentos e bem cadenciados; as mos quase sempre esto unidas
e para trs; as palavras, quando ocorrem, so curtas e num tom
baixo. Assim, o comandante do CA chega ao auditrio com seu
squito, onde sua presena anunciada em voz alta pelo cadete-padro. Este ordena que os cadetes fiquem de p para que a
reverncia regulamentar ao mais antigo seja prestada. Com os
cadetes na posio de sentido, o cadete-padro apresenta o
Corpo de Alunos ao reverenciado, que autoriza o vontade.
Todos ento voltam a seus lugares. Geralmente, o prprio
comandante do CA quem preside o evento, mas, no caso de sua
ausncia, o oficial mais antigo quem normalmente o conduz.
O comandante do Corpo de Alunos j sabia de minha presena
e dos objetivos da pesquisa. Ao me receber, disse-me que eu
estava com sorte, pois naquela sexta-feira, dia de liberao e de
leitura da grade de punidos, havia tambm alguns elogios. Entre
os que acompanhavam o Comandante do CA, havia conhecidos
meus: dois capites e uma sargento que h anos auxiliava o CA
e que, daquela vez, seria elogiada. Antes de entrar, falei com o
Comandante do CA de minha inteno em permanecer discreto,
num canto, para poder observar melhor o evento, no que fui
atendido. De cara, notei uma diferena na forma geral do ritual
e, nesse caso, pareceu-me que o motivo havia sido logstico. Em
tempos de conteno de despesas, a APM no havia conseguido
fornecer a tnica azul petrleo16 para todos os cadetes. Assim,
nem todos possuam o uniforme tradicionalmente exigido na
revista de fardamento que ocorria no ptio, antes do ritual punitivo, por ocasio das liberaes de fim de semana. Por isso
aqueles eventos vinham sendo realizados no auditrio, antes de
os cadetes colocarem seus (trajes) paisanos, com que agora
deixavam a APM. Dessa forma, o ritual havia passado a se rea
lizar com os cadetes trajando o uniforme utilizado na ltima
aula da semana.
16

A tnica azul-petrleo um uniforme militar usado em situaes especiais, equivalente


ao passeio completo do mundo civil, cujo nome oficial 3o Uniforme do RUPMERJ
(Regulamento de Uniformes da PMERJ).

211

Antigamente a gente tinha que entrar rapidamente em forma,


em cerca de dez minutos, quando havia a tnica para todos.
Os punidos no entravam em forma, ou entravam em forma de
uniforme, mas separado do restante do grupamento. Mas cada
comandante lia as punies para sua Companhia em separado.
(Cadete M., do Terceiro-ano do CFO/2003).
Com a tnica era um rigor danado. Todo mundo fazendo revista, olhando os botes, os sapatos, se a saia estava passada.
Os oficiais, os veteranos... Com o tempo a gente se acostuma,
incorpora, mas no comeo saa olhando pros lados para ver se
tava tudo certo. Era um horror, eu queria sair correndo dali.
(Cadete V., do Terceiro-ano do CFO/2003).

Naquele dia, como de costume, o ritual tambm teve incio com


a leitura das notas de culpa da grade de punidos que constam
da 4a parte (justia e disciplina) do Boletim Interno da APM.
Suas sequncias progrediram mais ou menos da seguinte forma:
1. O Comandante do C.A. proferiu algumas palavras, em tom
instrutivo, informando a essncia do Regulamento Disciplinar (RDPMERJ) e o seu entendimento acerca da punio;
que no gostava de fazer aquilo, mas que era necessrio e,
como que para demonstrar que no somente punia, falou
sobre os elogios que tambm seriam lidos naquele dia.
Pareceu-me, pela nfase dada ao assunto e por uma quase
imperceptvel reao dos alunos, que o elogio, ou sano
positiva, no era a praxe naqueles eventos semanais, mas
uma exceo regra de informar somente sanes negativas
da semana. O Comandante do CA deu ainda orientaes
gerais, falando sobre algumas amenidades, mas, em sntese,
reforou expresses como anestesia antes da porrada;
filosofia da porrada e da goiabada etc.
2. Logo depois, a palavra foi passada ao Capito P., Comandante da 3a CIA, que funcionou como uma espcie de mestre
de cerimnia do ritual, passando a ler, primeiramente, as
punies de LS do Primeiro-ano (3a CIA). Depois, foram lidas
as punies dos alunos do Segundo-ano (2 CIA). Naquele
evento no houve LS para os do Terceiro-ano (1a CIA), somente RD. Quase no fim do ano letivo, no podem mais
ser tratados como alunos e sim como oficiais, explicou212

-me um cadete. Ao ouvirem seus nomes e nmeros em voz


alta, os alunos citados se levantavam, tomavam a posio
de sentido, permanecendo assim durante toda a leitura da
dinmica das punies aplicadas a cada caso. A casa est
cheia, comentou comigo um oficial, agora comum, aqui
na APM, ter um nmero enorme de punidos.
3. O momento posterior o de ler as punies mais graves, as
de RD. Um fato fugiu normalidade: o cadete 0247 J., do
Segundo-ano, depois de ouvir o relato de sua punio, tentou
contest-la por entender que o que havia sido informado na
leitura de sua punio no coincidia com a sua verso da verdade. Ele foi repreendido no ato pelo prprio Capito que,
em linhas gerais, o advertiu, dizendo que aquele momento
no era propcio para contestaes, pois tudo j havia sido
apurado e julgado anteriormente. O oficial ento mandou
que o punido se sentasse: os fatos j foram apurados...;
J ponderou o que tinha para ponderar? Senta!.
4. Passou-se ento fase dos elogios. Primeiramente, foi lido
o elogio para a sargento V.: [...]pela forma prestimosa com
que se houve durante todo o tempo em que trabalhou no C.A
[...]. curioso que, nesse momento, a sequncia dos elogios
tenha deixado de seguir a hierarquia, pois o da sargento V.
precedeu aos dos demais cadetes elogiados [?]. Foi dada
ento a palavra V., que agradeceu dizendo ao microfone
acreditar que isso [o elogio] foi o reconhecimento porque
fao [ o meu trabalho] como se fosse para meus filhos, eu
me sinto mesmo como me de todos no C.A., independentemente de hierarquia.
5. A seguir, vieram mais elogios, mas esses pareciam ter
sempre um carter coletivo, diferentemente das punies.
Primeiro, foram elogiados todos os alunos que competiram
a tradicional Corrida Sargento Cear, realizada anualmente
pela APM. Nesse caso, no houve individualizao; todos
foram chamados de uma s vez e, dessa forma, tomaram
juntos a posio de sentido. Ouviu-se, em seguida, uma
salva de palmas. Apesar de as palavras iniciais do comandante do CA terem enfatizado os elogios, no houve, como
213

disse, elogio individual para os alunos, apenas coletivos.


Com exceo do elogio da Sargento V. e de um elogio dado
individualmente ao Cadete-padro, todos os demais elogios foram coletivos: um para os comandantes-alunos das
CIAs do CA (cadetes 02, 03 e 04 do Terceiro-ano, responsveis respectivamente pelas 1a, 2a e 3a CIAs), e o outro, para
os cadetes diretores da Sociedade Acadmica Tiradentes
(SAT). Entendi o do cadete-padro como uma estratgia de
consagrao contnua do smbolo que personificava a tica
do CA, num conflito simblico com os valores negativos
que deveriam ser expurgados naquele palco ritual. Saberia
depois, com outras observaes de campo, que os elogios
individuais ao cadete-padro eram recorrentes naquelas
oportunidades.
6. Depois, foi a vez de ser lido o elogio sempre coletivo das
comisses de cadetes que receberam delegaes de outras
academias militares do Brasil, para a realizao dos Jogos
Acadmicos na APM. Novamente, foram lidos todos os nomes, sem pausa, com todos tomando a posio de sentido
numa s vez.
7. A palavra voltou ao CMT do Corpo de Alunos que pareceu
tentar justificar as punies com os elogios, como se a justia ocorresse nessa economia de compensaes punio
versus elogio / porrada versus goiabada: Ningum quer
ser verdugo de ningum; Os exemplos positivos devem ser
realados; todos os que foram elogiados, o foram por seus
prprios mritos, referindo-se aos elogios mencionados
acima. Na oportunidade, o Comandante do CA fez questo
de tambm destacar as qualidades do cadete-padro. Aps
isso, todo o Corpo de Alunos foi apresentado pelo cadete-padro ao Comandante do CA que autorizou sua liberao,
com a exceo dos punidos.
H aspectos interessantes a serem destacados nesses dados que
do conta de que o ritual punitivo uma espcie de dramatizao performtica da realidade social, ou mesmo, de como ela
representada. O esquema das sequncias gennepianas (VAN
GENNEP, 1974) nos moldes de Turner (1974, 2005) pode servir
214

de parmetro para meus argumentos. Nesse sentido, a primeira


fase do ritual retrataria o momento em que o punido separado
do restante do grupo, gritando o seu nmero interno. Depois,
j de p, numa posio de destaque, ele permanece assim at o
trmino da leitura de sua punio, quando finalmente reagregado ao restante do Corpo.
Essa , portanto, a histria ritual do processo de punio
disciplinar dos cadetes, ou de como ela deveria ser aos olhos
da instituio. Dessa forma, o punido no s fica de p, mas
permanece assim retido na APM durante todo o tempo em que
durar aquele perodo liminar de recluso, ao passo que o restante do Corpo de Alunos licenciado. Sobre a percepo desse
aspecto da punio disciplinar, a cadete V., do Terceiro-ano do
CFO, falou-me que:
O momento mais crtico no o momento que se toma cincia
[da punio], pois, na maioria das vezes o cadete toma cincia antes. A angstia maior quando a turma vai embora. A
punio coletiva no sente muito. A separao o momento
mais dolorido. No ritual d constrangimento. Todo mundo te
olhando. Aquele ali marginal. Daqui a 5 minutos passa; mas
h a estigmatizao: o cadete fica marcado. Injustia. (Cadete
V. do Terceiro-ano do CFO)

Percebi tambm que, embora houvesse punies coletivas, com


grupos de alunos ou at mesmo toda uma turma recebendo
sanes negativas de uma s vez na grade havia descries
de um mesmo fato para vrios cadetes ao mesmo tempo , essa
no me pareceu ser a regra geral, pois os cadetes sempre eram
individualizados para ouvirem suas punies, ao contrrio do
que ocorria no caso dos elogios sanes positivas , em que
todo o grupo elogiado era destacado de uma nica vez. Tal fato
me levou a concluir que o tema daquele ritual era o mesmo da
punio sano negativa , na qual as sanes positivas, ao
contrrio do que pretendeu demonstrar o comandante do CA,
eram moralmente excludas.
Foi interessante tambm perceber uma certa confisso ritual
do punido que ouve sua nota de culpa, impassvel, diante de
estruturas que se apoderam de seu corpo simblico visando
a purificar o restante do Corpo. Por sua vez, o punido parecia
215

realmente admitir sua culpa com aquela expresso corporal resignada. Concluo, ento, que essa confisso corporal do punido
no ritual seja a condio para a eficcia simblica do ritual, o
que me pareceu mais claro depois da celeuma criada em torno
da inesperada atitude do cadete J., causando um curto-circuito
na ordem ritual.
A finalidade daqueles encontros coletivos, portanto, parecia ser
mesmo a de expor, em sacrifcio, o corpo simblico do punido
para que este recebesse uma sano negativa, reforando, a
contrario senso, os valores preconizados no discurso oficial das
solenidades. A gramaticalidade ritual daquele discurso, ou seja,
a forma como os elementos do cotidiano eram ali arranjados,
mostrou-me uma maneira de as foras liminares serem contidas
pela instituio.
Outro dado interessante foi perceber que o cadete padro, como
o campeo do CA, personificava o habitus institucional diante
de todos com sua presena, adicionada disputa simblica no
clmax ritual. E, muito embora o Comandante do CA afirmasse e talvez acreditasse que a finalidade do encontro no
era somente a de expor as punies sanes negativas em
destaque, mas tambm exibir as sanes positivas na forma de
elogios, a representao dos cadetes era mesmo a de que ele
servia apenas para expor individualmente os punidos e suas
alteraes individualistas que, ali, eram sacrificadas por meio de
uma linguagem simblica que reforava os valores da caserna
com a presena do padro vivo.
Nesse sentido, procurei saber do prprio Comandante do CA,
o significado de alguns elementos que encontrei nos seus discursos, por ocasio daqueles rituais punitivos:
O principal objetivo da punio, t at dentro do regulamento,
mas ningum entende isso, a grande maioria no entende,
que o motivo principal da punio a educao. A gente no
tem que punir por punir. Ningum aqui verdugo de ningum
n? A gente no gosta de ser verdugo e eu costumo falar pro
CFO quando eu vou ler uma grade de punio, que eu no
gosto de ler punio, o que eu mais gosto de chegar frente
do CFO e de dizer para eles boa tarde, tenham um bom final
de semana. Hoje ns no temos nenhum punido. Era isso que

216

eu gostaria de fazer toda a sexta-feira, porque aqui a gente no


gosta de ser verdugo. No gosta de punir e tem muito cuidado
e critrio na punio pra no cometer injustia. Eu at disse
isso, n? Eu at usei essas palavras pra eles, porque aqui a
gente no quer ser verdugo de ningum, mas a nossa funo
a nossa tarefa. Eles, como oficiais, vo vivenciar isso, ao ter
a tarefa de fiscalizar e at de punir. Punir com orientao e a
orientao tambm uma forma de punio. Eles no podem
esquecer isso que a gente fala que punio, quando voc faz a
demonstrao verbal voc est punindo, ento, at o chamar
a ateno de uma maneira verbal tambm uma punio que
tambm vlida; que, s vezes corrige um ato errado. No s
punir tirando o dia do cara, tirando a liberdade do cara. (Major
Comandante do CA)

Por fim, eu quis saber a que ele se referiu quando utilizou a


metfora porrada versus goiabada.
Eu sempre fiz questo de colocar isso pblico. No s elogiar
o cara, legal, meus parabns, mas elogiar atravs de boletim,
publicar o elogio em boletim para que toda a Unidade veja
tambm aquele aspecto positivo e que isso possa ser de uma
maneira que se irradie: , legal, o cara fez o correto, extrapolou nas suas funes, fez mais ainda e foi elogiado por isso!
P legal. Quer dizer que no to aqui s pra dar cacetada na
cabea da gente. Usando um termo vulgar: No to aqui s
pra dar porrada no, quando a gente faz alguma coisa certa,
a gente elogiado, ganha goiabada entendeu? Ento, um
aspecto que eu, fico at muito feliz que o meu Subcomandante
[do CA] pensa assim tambm; n? Um aspecto que ele tambm
vislumbra; que ele tambm comunga desse meu pensamento de
que a gente acha que a gente no pode s punir. A gente tem que
elogiar, quando o cara merece. No s o cadete, at o praa. At
engraado, voc at participou de um dia que tiveram vrios
elogios, porque foram acumulando, acumulando e no publicava e, quando publicou... a gente acabou fazendo tudo junto ali
no auditrio, mas foi rotineiro, no foi naquele dia s. Outros
elogios tambm aconteceram. (Major Comandante do CA)

Quanto aos valores em jogo naquela disputa simblica, percebi


que as alteraes perseguidas na vigilncia panptica da APM,
e agora sancionadas simbolicamente na do ritual punitivo, faziam referncia a possveis resqucios de uma vida anterior
caserna, percebidos no comportamento do punido como uma
falha em sua adaptao. Nessa situao, alguns punidos contu217

mazes muitas vezes eram chamados de largados, mulambos,


questionadores, imundos, indisciplinados, entre outros
tantos apelidos que apontavam para aquelas caractersticas j
reveladas na dinmica social da APM como antteses dos valores
da caserna. Portanto, estava claro que, naqueles eventos, o
foco do ritual era o indivduo fora de controle, isto , o cadete
que fugia da individualidade controlada pretendida pelo CA.
Era esse indivduo desviante, ou melhor, seu comportamento
catico, que ameaava a caserna. Esta, por sua vez, de posse
dos mecanismos oficiais de produo simblica e pretendendo
reorientar tais impulsos em prol da ordem institucional, o submetia quela espcie de ortopedia ritual.
Sob o ponto de vista da performance ritual, a rua era ali representada como um paradoxo da caserna e, assim, ela era
percebida pelo sistema cultural, ou seja, como uma ambiguidade, da mesma forma como pareceu ocorrer na dinmica social
da APM. Sob esse aspecto, interessante lembrar as diferentes
maneiras como alguns grupos sociais buscam resolver seus
dilemas a partir de suas prprias cosmovises. Turner (1974),
por exemplo, observou como o fenmeno da gemelaridade era
tratado ritualmente por algumas tribos africanas, em que as
solues apresentadas pendiam ou para a destruio, ou para a
sacralizao de um ou de todos os gmeos, o que tinha a ver com
as foras que esses elementos pareciam evocar nas diferentes
culturas, ora percebidas como criativas, ora como destrutivas.
Turner (1974, p. 63 et seq.) no descartava ainda o sentido prtico dos nativos s voltas com o problema da racionalizao
alimentar que, de alguma maneira, era levado dimenso simblica da cultura para ser resolvido ritualmente. Creio que, de
forma parecida, o ritual punitivo dos cadetes nos mostra como
o paradoxo do pato resolvido na APM. Neste caso, descarta-se um dos gmeos que formam a ambiguidade identitria da
Polcia Militar. Pareceu-me, assim, que, ali no altar da caserna,
e, portanto, sob o seu ponto de vista, a rua era sistematicamente
sacrificada para a coerncia cultural do sistema. Nesse sentido,
o ritual estava ali para controlar simbolicamente o processo de
individualizao, conforme a temporalidade peculiar do militarismo, isto , por meio das sucessivas etapas hierrquicas que
218

so construdas a partir dessa viso de mundo. Esses valores


sacrificados do pato, em nome da ordem hierrquica do militarismo, ficaram patentes no episdio em que o cadete J. tentou,
em vo, contestar a acusao imputada pelo oficial porta-voz
do CA. Tal atitude pareceu contrariar as regras culturais bsicas que ordenam o ritual, pois, como sugeriu a reprimenda do
Capito P., os cadetes, mesmo quando individualizados naquele
estado liminar do processo punitivo, no estavam autorizados
a falar; s a ouvir, resignados, suas punies que eram assim
confessadas corporalmente. Portanto, o punido no tinha voz
naquele espao como ocorreria num espao construdo sob
a ideologia igualitria. Essas regras pareciam inclusive terem
sido naturalizadas pelos prprios companheiros de turma de
J., que o classificavam como piruo ou pondero, ou seja,
um questionador inoportuno, o que, de certa forma, revelava a
eficcia simblica do ritual. J. teria afrontado, portanto, a lgica
da confisso resignada, que parecia perpassar o ambiente sociocultural da APM. A punio ritual tinha, ali, apenas o carter
de dramatizar elementos percebidos como importantes sob o
ponto de vista da poltica do CA, que, devidamente arranjados,
serviam para a construo de sua mensagem ritual.
Geralmente o CMT do CA, que o primeiro a falar, faz um
extrato da semana, mais especificamente sobre os aspectos
positivos e negativos. Ele d, ento, a palavra a seus oficiais,
mas nunca ao auditrio (plateia de cadetes), o auditrio nunca
fala, ele fica em silncio e esttico. Mas o J. uma exceo
o J. piruo... l muito sobre aspectos filosficos, mas no
militarismo no existe isso no... essa oportunidade..., mesmo
no caso de haver uma injustia. Ali no o momento de ponderao, pois isto j foi feito na portaria,... o pice. (Cadete
D. Segundo-ano do CFO/2003)

Creio que seja por isso que o ritual seja promovido naqueles
limites simblicos representado pela liberao ante iminncia
do contato com a rua. Nesse sentido, ela, com sua ideologia
moderna, junto com o indivduo e seus atributos ideolgicos
igualdade e liberdade , tornam-se potenciais perigos para a
caserna. A entrevista a seguir ilustra esse ponto de vista, por
confirmar que o internato permitia Academia vigiar e punir os
alunos com mais eficcia, pois as falhas eram mais detectadas na
219

APM. No que houvesse, nesse caso, uma maior oportunidade


dessas faltas serem cometidas, mas que os comportamentos
perigosos tornavam-se mais perceptveis diante do sistema de
vigilncia pantica da caserna. Na rua, portanto, o controle das
individualidades no seria assim to eficaz.
A mensagem ritual nesses momentos de passagem entre um
domnio e outro era, nesse sentido, bastante sugestiva:
Esse ano teve muito mais punio que no ano passado, e um nmero parecido com o do ano retrasado, porque no ano passado
houve externato desde o incio do ano, e o externato impede que
os alunos sejam anotados. (Cadete M. Terceiro-ano CFO/2003)

A punio, entretanto, no marcava a todos com a mesma


eficcia, provavelmente porque isso dependesse da medida
em que a caserna havia sido interiorizada naquele processo de
normalizao.
Para as pessoas certinhas um momento impactante, mas
para os outros que j banalizaram a punio, isso no quer dizer
nada, apenas uma informao do que no se deve fazer para
no ficar mais tempo na Academia. A pessoa, no se consegue
formar..., j . (Cadete D. Segundo-ano CFO/2003)

Isso tudo um teatro: estigmas e estratgias na


ilha da fantasia
A eficcia da ao simblica que comunica o programa monoltico da APM, baseado em seu poder institucional era relativa,
pois, como eu disse, dependia da forma como esse programa
era assimilado pelos cadetes em sua socializao. Apesar de
o ingresso no CFO ter sido voluntrio, cada um tinha o seu
motivo para permanecer ali. Nesse sentido, a construo da
identidade do futuro oficial, com a inculcao do novo habitus
ali produzido, era, portanto, negociada entre os indivduos e a
instituio. Ela resultava de um processo envolvendo inmeros
arranjos, estratgias, assimilaes, cooperaes e conflitos no
cotidiano dos cadetes.
A estrutura social da APM tem propiciado uma realidade dinmica em que, como acabamos de ver, os conflitos so dramatizados
ritualmente. Isso vai produzir tipos diversos que vo, desde o
220

enquadrado, ou seja, aquele que se adequou perfeitamente ao


programa oficial, at o seu extremo oposto com uma gama de
inadaptados, excludos da pretensa normalidade estabelecida pelo sistema.
Devido ao poder difuso do CA, que a tudo pretende controlar,
esse padro muitas vezes algo difcil de definir. Nesse sentido, apesar de no haver regras claras, algo pode ser percebido
nas categorias de pensamento produzidas e reproduzidas no
contexto da caserna e ativadas pelo sentido esttico da ordem.
Num sentido prtico, at o cadete inadaptado pode criar
estratgias de sobrevivncia social naquele campo, desde
que esteja atento a essa dinmica, mesmo que para isso tenha
de utilizar algum disfarce simblico. Sutilmente, o olhar etnogrfico pode perceber com os rituais essas posturas imitadas,
em vez daquela tcnica corporal realmente adquirida como
hexis da caserna (BOURDIEU, 1980). Certa vez, conversando
com cadetes que haviam acabado de ter seus corpos simblicos
sacrificados naqueles rituais punitivos, ouvi um deles dizendo
que: agora vou ter que seguir os conselhos do meu veterano:
Bicho, sai da janela! Desaparece! Isso aqui tudo um teatro,
uma ilha da fantasia. Tem que representar, entendeu?. Era interessante observar o sentido prtico nesse tipo de orientao
recebida por meu informante. De certa forma, aquela era uma
velha receita para o indivduo j detectado e marcado pelo sistema de vigilncia da APM, mas que no pretendia iniciar uma
carreira desviante.
Tais palavras me levaram s seguintes questes: ser que, num
campo de estruturas rgidas e com pouca margem para a manobra individual, haveria momentos ou espaos no cobertos por
sua vigilncia panptica, onde o desvio pudesse de fato desaparecer, ou aquele seria um sentido figurado? Haveria mesmo
essas brechas ou pontos cegos do sistema, mesmo que de um
ponto de vista simblico? Conclu que, de fato, esses interstcios
existiam. Um deles parecia ocorrer no alojamento dos cadetes,
representado como lugar de descompresso da ordem disciplinar. Apesar de, a todo o momento, o sistema tentar invadi-lo
com suas indefectveis revistas, era ali que os cadetes podiam
221

se manifestar com alguma liberdade, o que, de certa forma, o


tornava imprevisvel para a pretenso controladora do sistema.
Decidi, ento, procurar meus sujeitos nesses contextos para tentar convenc-los a conceder algum depoimento. No incio, eles
se mostravam tensos, desconfiados de uma possvel invaso,
ou mesmo pensando se tratar de mais uma revista punitiva,
mas, depois de descobrirem que aquele no era de fato o meu
intuito, comeavam a falar sobre essas brechas simblicas.
Foi a que pude descobrir alguns tipos excntricos, resultantes
da dinmica social da APM. Assim me foram apresentados, por
exemplo, o landro (malandro) e o jonsem (joo-sem-brao),
de comportamentos bem parecidos, que nunca so flagrados
pelo sistema de vigilncia do CA e com habilidade suficiente para
conseguirem at uma boa FAD. Os cadetes mais enquadrados
normalmente no aprovam esse tipo de comportamento por
consider-lo individualista e, nesse sentido, desagregador, mas
tambm no os entregavam ao sistema, por entenderem que essa
tarefa de detect-los e puni-los fosse mesmo exclusiva do CA,
o que revelava as diferentes posies adotadas naquele campo.
Alis, com relao s FAD, soube tambm que havia os caa-FAD, cadetes que fazem de tudo para aparecer bem aos olhos
dos atarefados oficiais do CA. Eles emprestam estrategicamente
seus servios, esperando ser recompensados nos conceitos.
Trata-se, como havia dito anteriormente, de uma troca maussiana onde o cadete espera sua retribuio no momento em que as
FAD so definidas. No entanto, se isso no ocorre o que, pelo
que vimos, no raro de acontecer , o desconsiderado pode
at mesmo adotar uma posio contrria do CA, numa clara
afronta ao padro estabelecido naquele campo.
Existem ainda os pisces, que so os amedrontados diante das
aes do CA, e os moitas, que, ao contrrio dos caa-FAD,
preferem o anonimato ao risco de uma maior exposio sanha
punitiva do sistema. O moita o apagado, que tem boca e
no fala. Assim, tm mais tempo para estudar e conseguir,
por meio das notas, o que no conseguiram quando estrategicamente deixaram de caar conceitos. Aos olhos do CA, ele
um inadaptado que no possui a valorizada vibrao, mas,
222

como os landros, tambm passam batido pelo sistema, mas


por conseguirem se ocultar estratgica e sistematicamente da
vigilncia panptica da APM. A seguinte entrevista nos d uma
boa ideia dessa dinmica:
Pisco aquele que fica pesquisando o que se deve e o que no
se deve fazer; se caga todo na hora da [leitura da] grade [de
punidos]. Presta a continncia toda padro. o militar certo.
o mais disciplinado por cagao. A gente comea a inventar
apelidos para eles, por exemplo: piscolino, piscolildo. O
moita, tem gente que gosta de se voltar pra si mesmo, no gosta
de conversar. O moita pra mim o apagado. Existe o esperto
que quer se passar por moita quando tem a situao de ficar
muito se expondo e ser punido. O rano o estigma: FEM,
arataca, ex-praa e vai por a. (Cadete D., Segundo-ano do CFO)

Os marcados simbolicamente pelos ritos punitivos e que continuam prosseguindo com suas carreiras desviantes criam,
muitas vezes, verdadeiras liminaridades crnicas dentro do
Corpo. Uns geram tipos que podem ser percebidos por meio de
algumas categorias nativas, como, por exemplo, caga-pau, que
bastante sintomtica por se referir ao cadete sempre punido
por suas bisonhices, o que corresponderia, nos termos de
Becker (1977), a um contumaz desviante revelado. Embora
tenha cautela suficiente para tentar evitar o cometimento de
alguma alterao, o caga-pau no consegue fugir do sistema
panptico do CA como o jonsem, porque, por serem mais
bisonhos, fazem tudo errado por pura incompetncia adaptativa. So, como diria Geertz, tolos, inaptos que no usam o
senso comum com bom senso (GEERTZ, 2001, p. 114-115).
Nesse sentido, bem interessante a seguinte informao de um
cadete classificado como caga-pau naquele contexto, tentando
justificar seu processo de estigmatizao como uma injustia
ou possvel falta de legitimidade do sistema:
Fui bastante punido, acho que foi azar. Perseguio no, no
foi ... [pausa, parecendo temer falar algo que provoque alguma
retaliao]. mais cagao de pau. Estava errado mesmo. O
problema no s a perda do fim de semana, mas pelo aspecto
profissional um mau exemplo. Perde a credibilidade com os
seus comandados. Uma vez o veterano com o coturno todo sujo
veio querendo cobrar sapato limpo, depois todo mundo comentou aquilo. No tem moral. (Cadete I., Terceiro-ano do CFO)

223

No entanto, de todos esses tipos, os mais estigmatizados pelos ritos punitivos talvez sejam mesmo os seis por cento, que erram
por dolo, e no pela bisonhice do caga-pau. Entretanto, por
no terem a habilidade do jonsem para escaparem do sistema,
quase sempre ficam de LS como os caricatos caga-paus. Reza
a lenda que tal apelido se refere ao percentual que esses cadetes
sempre representam dentro do universo de cada turma. Por isso,
num sentido contaminador da liminaridade que representam,
tanto os caga-paus, quanto os seis por cento so um risco a
mais para aqueles que ainda insistem em t-los como companhia
nos lugares pblicos da APM, (DOUGLAS, 1991; TURNER, 1974).
Aonde vo, trazem consigo o foco punitivo do CA, que, como
os cadetes bem sabem, no possui nenhuma preciso cirrgica.
Percebe-se, nesses tipos marginais, que a rua novamente
descartada como ambiguidade classificatria da identidade que
ali se pretende construir. Um exemplo claro dessa percepo
de impureza o do cadete que foi praa da Corporao antes deter ingressado na APM, que tem suas ambiguidades de
ex-praa identificadas como um rano pelo grupo. Quando
comparado com o cadete ex-militar, valorizado positivamente
dentro do sistema nativo, esse ex-PM era, a contrario senso,
desvalorizado numa percepo binria. Creio que o fato de o
cadete J. ter vindo de praa talvez tenha contribudo de alguma forma para a sua tipificao de piruo por parte de seus
prprios companheiros de turma.
Dessa dinmica, surgem tambm os especialistas, ou seja, os
prticos que sabem responder s portarias como ningum, com
sua habilidade legitimada por j terem conseguido quebrar
algumas delas. Esses quase sempre so procurados para ajudar
algum a contar sua historinha na portaria. Segundo meus
entrevistados, os especialistas no recebiam pelo servio, mas
trabalhavam pelo prazer de serem, cada vez mais, reconhecidos
pelas voltas que davam no CA.
Foi gratificante para o etngrafo perceber que, mesmo num sistema rigidamente controlado como o da APM, havia espaos para
o escapismo. Esses pontos cegos do sistema se expunham com
mais facilidade na semana cultural, que era promovida pelos
224

prprios cadetes por meio da Sociedade Acadmica Tiradentes


(SAT) e fiscalizada pelo CA. Era ali, na forma de peas teatrais,
msicas e poesias, entre outras atividades mais descontradas,
que os cadetes revelavam seu desconforto com a ordem controladora do sistema. Sabia-se que eles aproveitavam aquele
momento para manifestarem suas crticas at ento veladas,
sobretudo contra os oficiais do CA, seus alvos preferidos. Apesar
de uma aparente descontrao, comparei a semana cultural
com os ritos punitivos, tambm sob o aspecto da dramaturgia
ritual (TURNER, 2008), por ambos apresentarem um confronto
entre diferentes representaes. Ademais, tal como os ritos punitivos, a semana cultural tambm se voltava para o pblico
interno, pois seu tema geralmente tratava de algo que tambm
no se pretendia revelar ao pblico externo, ao contrrio do que
ocorria nas solenidades. Nesse sentido, ambos apresentavam
uma lgica da roupa suja que se lava em casa.
Apesar de os eventos da semana cultural terem o seu momento certo e autorizado, eles no estavam padronizados em
regulamentos ou ordens de servio, da mesma forma como
ocorria com os ritos punitivos. Assim, os cadetes colocavam
em prtica ritual toda uma habilidade cnica que aprendiam
de gerao para gerao nos bastidores da APM, mas de uma
maneira controlada pelo CA.
Por outro lado, pareceu-me que a organizao da semana
cultural, como um espao para a revelao daqueles assuntos
escondidos, pudesse ainda ser parte de uma ttica do prprio CA
de tentar trazer luz do sistema as brechas e os pontos-cegos
da APM. Essa ttica do CA parecia estar baseada em seu poder
difuso que, como vimos, apresentava uma espcie de vontade
de saber num contexto onde a lgica da confisso perpassava todo o ambiente sociocultural da APM e se manifestava,
sobretudo nos rituais. Creio, portanto, que os assuntos tratados
de forma velada nos bastidores da APM eram colocados em
discurso por meio dessa ttica poltica para serem, como
veremos a seguir, tambm controlados pelo prprio CA, mas de
uma maneira estrategicamente indireta (FOUCALT, 2009, 2007).

225

A revanche dos cadetes


Semana cultural
divertido ver os alunos se divertindo. A maioria participa
dos jogos, do teatro. Pode variar, mas o que sempre tem so
os jogos, o teatro. para divertir os oficiais. Os oficiais ficam
sabendo na hora. O Terceiro-ano quem gerencia esse teatro
atravs da SAT. Esse ano no teve por causa dos Jogos Pan-americanos; no teve tempo. Nos anos em que trabalhei aqui,
ocorreu em setembro, em agosto. o chefe da Educao Fsica
quem determina a data que no pode coincidir com a corrida
Sargento Cear. (Capito; poca, oficial do CA)

A semana cultural acontece na virada do primeiro para o


segundo semestre letivo. Nessa oportunidade, o CA convida
cadetes que possuam alguma aptido artstica para divertirem
uma plateia formada por oficiais e cadetes. Na ocasio, so
organizados eventos competitivos e culturais que, apesar de
no terem uma data certa para acontecer, ocorrem geralmente
na semana que antecede o incio das frias escolares, quando
as provas (verificaes) j terminaram. Nesse sentido, o oficial
Chefe da Educao Fsica marca as datas de suas provas de
maneira que elas no coincidam com os jogos esportivos acadmicos17 e nem com a tradicional Corrida Rstica Sargento
Cear.18 Seus eventos, apesar de organizados pela SAT, passam
pela aprovao do Comandante do CA, podendo variar de ano
para ano, mas tem sempre a gincana, a banda dos alunos e o
teatro dos cadetes.
A gincana um jogo de perguntas e respostas em que as trs
turmas do CFO disputam, com seus conhecimentos, as diversas modalidades. As perguntas so retiradas da internet pelos
oficiais e dirigidas aos cadetes escolhidos como representantes
das turmas. Segundo um oficial do CA, essas perguntas servem
para medir a capacidade intelectual das turmas e saber qual
17

Trata-se da competio desportiva em que a APM representa a PMERJ contra outras


academias militares brasileiras.

18

A Sargento Cear uma corrida rstica, promovida anualmente pela APM, em


homenagem ao sargento da reserva da PMERJ que teve o nome homenageado
em reconhecimento ao seu passado de exmio competidor da modalidade. Dela
participam corredores civis e militares, da PMERJ e de outras corporaes.

226

delas a mais forte. Aps a contagem dos pontos obtidos em


todas essas modalidades, obtm-se a turma vencedora. muito
comum, nesses momentos, as torcidas mais uma vez manifestarem a disputa entre capacetes e canetas, remontando a
rivalidade entre os pares e os mpares, inclusive quando seus
competidores trazem os smbolos de suas identidades internas
desenhados em seus trajes de disputa.
A banda dos cadetes, que ultimamente vem se apresentando com
o nome de Banda LS, toca msicas modernas e descontradas
na Semana Cultural, num claro contraste com a sobriedade
musical apresentada pela Banda de Msicos nas Solenidades da
APM. A pea teatral preparada com antecedncia pelos prprios alunos, sob a coordenao do Terceiro-ano. Antigamente,
cada turma escrevia sua prpria pea; agora, h somente uma
pea organizada e escrita pelos alunos do Terceiro-ano, que
contam, ainda, com a participao dos cadetes de outras turmas
para o desempenho do restante dos papis. S os moitas no
participam da semana cultural, porque ali lugar de visibilidade revelou-me um cadete organizador.
Apesar de algumas poucas mudanas, a semana cultural tem
forma muito semelhante com a que vem sendo promovida h
anos. Nesses momentos, a rotina dos alunos se inverte para dar
vazo aos pontos cegos do sistema, num palco ritual alternativo montado dentro do auditrio com a autorizao do prprio
comando. Ora, num ambiente onde a crtica ao superior hierrquico proibida, pelo menos nas formas tradicionais verbal e
escrita , esse o momento ideal para que algumas coisas sejam
ditas. atravs daquela gramaticalidade simblica, produzida
ali pelos cadetes, que os oficiais tomam conhecimento de como
suas imagens so percebidas. Ora, se os oficiais tm a parte e
a caneta como instrumentos de poder, os cadetes tm, aqui, o
teatro como um contraponto criativo desse poder.
Entretanto, h regras nesses procedimentos; no escritas, mas
h. As crticas no devem ser acintosas, ou, pelo menos, no
to claramente acintosas. necessrio um comportamento
adequado para tratar de um assunto delicado dentro da cultura nativa. So permitidos a crtica sutil, a ironia fina e algum
227

humor ambguo, que vai da galhofa controlada reverncia


sarcstica. Afinal, o teatro formado, a princpio, para que
cadetes e oficiais se divirtam sem constrangimentos. Ou seja,
diz-se o quese tem para dizer, ouve-se o que se tem para ouvir,
v-se o que setempara ver e, no dia seguinte, a vida continua
como numa quarta-feira de cinzas. Com alguns ajustes nos
papis aqui, com a alma lavada acol, com algumas diferenas
expostas, verdade, mas com o sistema renovado. Vejamos o
que me comentou um cadete a respeito disso:
A gente percebeu que a postura de alguns oficiais mudava.
Aquela postura exagerada que a gente botou na pea para
brincar com o oficial, sabe? Por exemplo, os oficiais deixavam de se comportar assim e tal porque sabiam que a gente
estava reparando neles. (Segundo tenente; poca, cadete do
Terceiro-ano do CFO)

Dessa forma, as estratgias de parte a parte pareciam funcionar


normalmente at que, no teatro de 2006, as regras foram quebradas. Muito provavelmente, esse havia sido o motivo para que a
semana cultural at hoje no fosse mais realizada. Em 2008,
o pretexto foram os Jogos Pan-americanos e, por isso, quando
retornei ao campo na segunda parte de minha pesquisa, no
consegui mais observar nenhum evento daqueles. Entretanto,
o teatro de 2006 chamava-me a ateno, visto que se tratava de
um drama social, um divisor de guas que permanecia vivo
na lembrana daqueles que o testemunharam e que a ele se referiam como um momento emblemtico da semana cultural.
Pareceu-me que l, naquela oportunidade, o teatro dos cadetes
teria apresentado conflitos que muito provavelmente deixaram
mais expostos tanto a lgica do sistema, quanto os valores e
representaes nativas. Uma pena eu no t-lo testemunhado.
Mas, antes de me lamentar, decidi remont-lo com a ajuda de
relatos de algumas de suas testemunhas oculares e de um vdeo
produzido por ocasio daquele evento.
Alguns oficiais, que na poca eram cadetes, foram os que me
concederam informaes valiosas a respeito da pea daquele
ano, cedendo-me, inclusive, o vdeo que assisti junto deles. Sobre
a pea, a maioria de meus informantes reconhecia ter havido um
excesso, o que naquele momento significou um risco sabido e
228

calculado. Mas, por outro lado, eles tambm tentaram justificar


esse excesso pelo fato de os oficiais alfinetados atacados
simbolicamente na pea virem, por sua vez, extrapolando
os limites.
Cad a minha goiabada. Dorothy no Show da
Virada
Foi dentro desse clima que os alunos elaboraram a semana
cultural de 2006. A pea teatral foi baseada no Mgico de Oz,
filme simbolicamente sofisticado de Victor Fleming, cujo tema
principal trata do desejo da garotinha Dorothy de conhecer o
mundo que havia atrs do arco-ris. Por um toque de mgica, ela
chega ao fantstico mundo de Oz, mas, ao tentar retornar, no
consegue, iniciando assim a sua saga pelo caminho dos tijolos
amarelos, procura de um mgico que pudesse lhe ajudar.
No caminho, ela se depara com personagens fantsticos: um
espantalho maluco que quer um crebro; um homem de lata
procura de um corao; e um leo covarde que deseja adquirir
coragem. Esse foi o mote para que os criadores do teatro de
2006 colocassem em prtica um plano de ataque a seu principal
alvo. Havia, ali, ingredientes suficientes para isso: um mundo
fantasioso; uma menininha ingnua; e personagens caricatos,
cujas idiossincrasias, desde que bem trabalhadas, certamente
serviriam para esses seus objetivos.
Assim, os mentores resolveram reduzir o espao das brincadeiras entre cadetes para aumentar o que chamavam de
alfinetadas nos oficiais. O vdeo mostra o Show da virada,
nome que parece ter sido sugerido pelo prprio subcomandante
da Academia para marcar o momento de passagem do semestre letivo, mas que os cadetes, por sua vez, utilizaram com um
significado velado de revanche. O show contou com uma pea
secundria, apresentada antes e rapidamente pelo Segundo-ano.
Um de meus informantes dizia tratar-se de uma piada interna,
no compartilhada pelas demais turmas. Antes, o teatro tinha
essa conotao hermtica, em que a gente contava nossas histrias de bastidores. Isso veio mudando com o tempo, e o teatro

229

passou a abranger questes gerais com o objetivo aparente de


divertir a todos.
A pea principal, e mais esperada daquela noite, foi iniciada
por dois duendes anes alunos agachados e orelhudos que
narravam a introduo. Eles indiretamente comparavam Oz
Academia. O duende mais baixo soprava partes do texto no
ouvido do outro. Segundo o autor da pea, aquilo era uma forma de representar o antigo zero-um mandando na escola por
meio do atual cadete-padro. A introduo sugeria comparaes
entre Dorothy e o Terceiro-ano, aproveitando para apresentar
ainda o Mago dos Affonsos, cujo nome trazia uma aluso direta
Fazenda dos Affonsos.

Figura 13 Os duendes (Zero-um e Zero-dois)

Logo na primeira cena surge Dorothy. O aluno que a representa


traja um vestido rosa, coturnos e uma longa peruca preta. O ator
traz tambm um coldre de perna,19 contrastando fortemente com
o resto de seu vesturio. Segundo meus informantes, aquilo era
um protesto velado a uma determinao do CA, que proibia o
uso desse tipo de coldre para os cadetes. Proibio, alis, que,
19

Equipamento de uso proibido pelo CA por ferir a padronizao estabelecida pelo


RUPERJ, mas que, apesar disso, preferido pelos que alegam ser um equipamento
tecnicamente mais eficiente que o coldre de cintura, usado como padro na PMERJ.

230

por no ter uma explicao tecnicamente razovel, os decepcionava por partir de quem eles esperavam ter conhecimento
capaz de melhor orient-los, ou seja, o oficial.
Dorothy conversa com o Mago dos Affonsos Comandante da
APM ou do CA, o que no fica claro e lhe diz que est ali em
Oz, buscando sua goiabada. Aqui, esse smbolo traz referncias
de temas presentes nos ritos oficiais analisados anteriormente.
No ritual da punio disciplinar, a goiabada se contrapunha
porrada, cuja imprevisibilidade d ao processo punitivo
um carter de imparcialidade: Se hoje foi a porrada, amanh
poder ser a goiabada. Essa goiabada tambm pode ter
sido representada como aqueles privilgios que vo sendo alcanados pelos cadetes na medida em que as turmas cumprem
corretamente suas etapas no processo, ou ainda como mrito
individual, dentro do sistema de valores nativo. Em ambos os
casos, ela representa o gozo aps a dor, isto , o sofrimento
prazeroso do vencedor. Aqui, Dorothy, ou melhor, os cadetes
parecem reivindicar esse prazer na forma de direitos, ou expectativas de direito no concretizadas, mesmo aps eles terem
passado por todas as provaes previstas no que chamei, com
base em Turner (1974), de pedagogia da liminaridade na APM.

Figura 14 O Mago dos Affonsos

231

E quais seriam esses direitos? A resposta para essa pergunta


parece estar em outros signos que vo sendo mostrados na pea.
Creio mesmo que os cadetes se referiam a direitos inerentes
s diferentes posies das turmas, ou seja, a smbolos de poder
do novo status a ser adquirido gradativamente nos estgios do
ritual de passagem do CFO. Por j serem quase oficiais, os
cadetes do Terceiro-ano entendiam que devessem ser tratados
com mais considerao com relao aos demais alunos do
CFO e os do segundo, por sua vez, achavam que deveriam ter
mais privilgios que os do primeiro. Pelo visto, a percepo
deles indicava que, de fato, isso no havia acontecido naquela
ocasio, seno, vejamos.
A cena seguinte mostra Dorothy segurando uma enorme espinha
de peixe modelada em cartolina branca. Segundo os criadores
da pea, aquilo significava o estacionamento, exclusivo para os
veculos dos oficiais que havia, com esse formato, ao lado do
prdio principal da APM.
A tal da espinha de peixe era o estacionamento externo ali da
bomba de gasolina, que sempre foi assim. Enquanto a gente foi
Primeiro e Segundo-ano, o Terceiro-ano sempre utilizou aquele
estacionamento. Essa era uma reivindicao razoavelmente
at boba. A gente s queria colocar o carro mais prximo.
Uma coisa de certa forma de tradio na Academia e isso foi
vetado pra gente. E isso no foi dado. A gente s usou aquele
do ginsio. Na pea a gente comenta sobre a espinha de peixe,
porque naquela altura, no meio do ano, no tinham concedido
ainda. [...] A espinha de peixe era um smbolo da conquista
do Terceiro-ano, uma forma de quem est abaixo ver que o
Terceiro-ano realmente o dono da escola poxa o Terceiro-ano coloca o carro aqui, a gente tem que colocar l atrs; quero
ser Terceiro-ano. E outras coisas que a gente no teve direito.
Pelo contrrio, teve vezes de o Segundo-ano por o carro l,
porque o comandante de companhia dele era bom com eles
e o nosso comandante no queria. E isso vivia acontecendo.
(Segundo tenente; poca, cadete do Terceiro-ano e um dos
escritores da pea de 2006)

Aps negar a espinha de peixe a Dorothy, o Mago dos Affonsos


aconselha a menina a continuar trilhando seu caminho para tentar conquistar a to almejada goiabada. Para isso, lhe sugere
ainda que busque a ajuda de trs personagens. Nesse momento,
232

surge Espantalhoso, com sua extica cabeleira vermelha, no


falando coisa com coisa, e se exasperando a todo o instante
por meio de gestos histricos. Depois, vem o Leo, medroso e
indeciso. Por ltimo, vinha o Homem de Lata, comandando sugas e ralaes, insensvel, e, s vezes, estpido no massacre
da lngua ptria. Se, no filme, o leo era vital para o Homem de
Lata que precisava ser lubrificado constantemente para no ser
imobilizado por uma ferrugem voraz, na pea teatral, a coca-cola
foi o substituto ideal, porque revelava o oficial alfinetado, em
sua conhecida afico por esse refrigerante na vida real.

Figura 15 O Homem de Lata e Espantalhoso

Creio que a cumplicidade entre o Homem de Lata e Dorothy


Terceiro-ano , revelada pelos momentos em que ele era
abastecido com o seu refrigerante predileto pela garotinha, reforava a maneira como as caractersticas daquele personagem
encontravam-se marcadas positivamente no sistema de valores
nativo. Essa parece ter sido, inclusive, a percepo do prprio
alfinetado. Assim, tanto o trote-brincadeira, quanto a suga
positiva se legitimavam.

233

Nesses trs oficiais, a gente queria dar uma alfinetada maior;


sendo que num deles ficou bem light, porque a gente usou coisas
que ele no se incomoda. Seria algo que para ele no seria nenhuma ofensa. J os outros dois foi um pouquinho mais pesado,
n? O homem de lata no se incomodou, mas o espantalhoso
e o leo, alis, o leo nem tanto, mas a espantalhoso... foi a
que mais se incomodou. (Segundo tenente; poca, cadete do
Terceiro-ano e um dos autores da pea de 2006)

Havia um uso diferenciado das estratgias simblicas: contra


uns, usava-se a alfinetadinha de significado positivo, semelhante ao trote-brincadeira; contra outros, a alfinetada
intencionalmente mais contundente, com o mesmo sentido da
sacanagem que afasta por seu carter negativo e conflituoso.
Em outras palavras, a sacanagem era entendida como uma
intencional piada de mau gosto.
O sentido original da semana cultural era, de fato, o da brincadeira. Porm, naquele ano, prevaleceu a sacanagem contra
os oficiais em resposta s sacanagens que os cadetes sofriam
por causa daqueles. Apesar disso, os prprios organizadores
reconheceram que, em alguns momentos da pea, a estratgia
teria fugido de seu controle, fazendo com que a brincadeira
pudesse ser percebida como uma sacanagem. Uma delas,
inclusive, pareceu ter carregado o tom da pea, transformando
seu riso festivo do passado no humor negativo que a stira
daquele ano passou a revelar (BAKHTIN, 1999, p. 10-11).
A gente pegou mais pesado at com oficiais que talvez at no
merecessem. Analisando friamente depois, a gente percebeu
que nem de longe ele merecia ser sacaneado como se fosse um
abobado mental. Ao mesmo tempo, nesse aspecto a gente no
queria zoar ele no, foi que o cara que imitava ele tinha esse
trejeito de falar e ele s sabia interpretar daquele jeito. Acho
que at pela empolgao do momento, ele exagerou na interpretao. Foi uma coisa que no foi combinada, foi meio que
sem querer. A gente no falou: , faz um dbil mental, a gente
quer comparar ele com um doente. No foi. No foi programado.
Saiu na hora, ele s sabia interpretar daquele jeito, e a ficou
com esse carter que pareceu que a gente quis pegar muito no
p, mas no foi. O que a gente quis foi zoar ele foi com outras
situaes engraadas. (Segundo tenente; poca, cadete do
Terceiro-ano e um dos autores da pea de 2006)

234

E parece que o resultado tambm no foi o esperado:


O aluno que imitou o Capito B. foi perseguido. A gente via que
a fiscalizao passou a ser maior. Ns acabvamos pegando um
LSzinho. O Comandante [da APM] falou que tinha gostado, mas
acho que no gostou muito no. (Segundo tenente; poca,
cadete do Terceiro-ano)
Teve uma cena no Mgico de Oz, acho que foi do Capito B., e
houve uma perseguio do CA. Tentaram pegar o aluno [ator
que representou o capito] no coturno sujo. Eu entendi que
o Terceiro-ano passou dos limites. (Segundo tenente; poca,
cadete do Segundo-ano)

Os oficiais perceberam-se como alvo da afronta e, ao compararem o teatro daquele ano com os dos anos anteriores,
identificaram uma perigosa ameaa s regras do militarismo.
Em 2005 foi divertido. Falava de Um dia no CA e comeava
com o Capito J. S. jogando um jogo fictcio com as portarias;
quem tinha mais punio. Pagode nos intervalos. Era como se
o CA fosse uma grande festa e quando os alunos entravam aqui,
virava uma formalidade. Confetes. J no mgico de Oz havia
crticas desnecessrias. Um oficial abobado, como se fosse
desconectado do mundo. No havia crtica aos alunos, eram
vrios personagens, mas todos se relacionavam aos oficiais da
APM. Dava para perceber quem era quem. Quem no conseguia
perceber eles colocavam nomes grandes, insgnias grandes que,
s vezes, nem existiam, para identificar os oficiais. Teve gente
que gostou, mas os que foram citados de forma acintosa no
gostaram, mas no disseram. Achei que no deveria ser feito
daquela forma. Cada oficial tinha seu personagem especfico.
Leo, sem coragem; Marlin, era o mago, no era do CA; Homem
de Lata, sem corao; Espantalho, ... A meninha Dorothy era o
Terceiro-ano. Eu era a nica mulher do CA, por isso, era notrio
quem estava sendo representado. Tinham nomes engraados,
mas no lembro. (Capito; poca, comandante de peloto
no CA)

A pea segue satirizando as caractersticas de vrios oficiais


da APM e, para muitos, aquilo j passava dos limites. Tendo
deixado de lado o esprito do riso festivo de antes quando os
prprios alunos brincavam entre si para humanizar o sistema
, a semana cultural entrava agora numa fase mais agressiva,
a da sacanagem contra os oficiais. Um risco calculado que,

235

segundo os cadetes organizadores, significava o seu grito de


liberdade.
A cena final traz os personagens principais reunidos em torno
do Mago dos Affonsos, aguardando que seus pedidos sejam
atendidos. O primeiro a falar o Espantalhoso:
Preciso de um crebro diz ele.
Eu vou falar s uma vez: voc no precisa de um crebro;
voc j tem um retruca o Mago.
T, t resigna-se Espantalhoso.
Eu vou te dar uma coisa muito melhor, e pelo que eu sei,
muito do seu agrado: uuumaaaaa.... CHAPINHA! grita o
Mago, segurando um aparelho de alisar cabelos que, segundo
os autores, significava um ataque alusivo s madeixas desalinhadas e sempre fora do padro da escola, que era uma das
caractersticas da oficial alfinetada.

Agora, era a vez de o Leo receber sua coragem, simbolizada


nas trs medalhas que o Mago lhe oferece. Tal como ocorre nas
solenidades da APM, o Leo condecorado com a Sangue de
Heri, a Nossos Bravos e a medalha do Mrito D. Joo VI.
Porm, quando fica sabendo o preo delas, resolve devolv-las:
O qu? Setenta reais? No quero. Toma elas de volta, Mago.

Figura 16 Dorothy, Espantalhoso, Homem de Lata, com o Leo


frente
236

Aqui, h uma crtica direta ao fato de os cadetes terem tomado


conhecimento de que algumas medalhas ofertadas na PM, e
usadas por muitos de seus oficiais, so compradas pelos condecorados. Esse talvez seja o caso da medalha Sangue de Heris,
cujo valor revertido em receita para uma associao de ex-pracinhas do Exrcito. Parece que, aqui, prevaleceu tambm a
crtica, tanto a uma honra meio que comprada, quanto busca
estratgica e articulada por sua outorga, o que conflita com os
fundamentos do verdadeiro mrito pelo desempenho individual.
Nesse momento, o Homem de Lata se aproxima e pergunta ao
Mago dos Affonsos:
Eu no tenho corao, mas o que voc tem para me arrumar?
O Mago ento lhe oferece um enorme corao cortado em
cartolina vermelha.
Para que isso? Eu no quero isso grita, irritado, o Homem
de Lata, arremessando longe o corao de cartolina vermelha
que acabara de receber e passando a procurar algo que o substitua dentre os objetos que compem a cena.

Nesse momento, o Mago pega alguma coisa dentro da caixa de


ofertas, para e se vira para plateia a quem mostra uma enorme
insgnia do Curso de Operaes Especiais do BOPE, com a
caveira e as pistolas que a caracterizam.
Ah! Isso aqui voc vai quereeeer diz ele.

E o Homem de Lata, parecendo ter ficado satisfeito com seu


novo presente, o cola com toda a fora no peito, gritando o brado
do BOPE, acompanhado de um sonoro palavro:
C A V E I R A, Pooorrra!

A plateia vai ao delrio.


Agora a vez de Dorothy perguntar:
E agora Mago? Cad a minha goiabada?

Dessa vez, o Homem de Lata substitui o Mago na conduo da


cena, mostrando novamente uma proximidade com a menina
que representa o Terceiro-ano. Com seu jeito bronco, ele entrega
o desejo de Dorothy:

237

Calma, minha pequena. Voc vai ganhar a sua goiabada. Ela


estava com voc o tempo todo diz ele.
Ah, comigo no rebate ela.
verdade. Eu a havia guardado para quem a MERECESSE.
Hum ..., deixa eu ver (olhando para os dois duendes) ... Um
certo duende Zero-um?
Sim, senhor respondem juntos os duendes.
Vocs merecem a goiabada? pergunta o Mago, parecendo
duvidar da legitimidade da escolha do cadete padro.
, concordo que no resigna-se o duende Zero-um.
Viu? Como eu disse, voc vai ganhar a sua goiabada. Dirigindo-se novamente a Dorothy.

O Homem de Lata entrega ento uma imensa lata menininha,


cujo rtulo traz a palavra G O I A B A D A escrita em letras
garrafais. No incio, Dorothy parece feliz, mas, medida que
procura por algo que no encontra, vai ficando cada vez mais
preocupada.
Mas, Homem de Lata, essa lata est fechada. Onde est o
abridor para eu abrir minha goiabada?
Ah-r! Isso vocs vo ter que conquistar!
???

E assim termina o Teatro dos Cadetes de 2006, com uma estrondosa gargalhada da plateia e alguns oficiais nitidamente
constrangidos.

Figura 17 Dorothy recebe sua "goiabada"


238

Resumo da pera
Fica evidente nesse confronto entre diferentes percepes
acerca do discurso ritual da APM a existncia de algum consenso que ratifica as regras liminares do CFO. O prprio tema
da goiabada no Teatro dos Cadetes parece guardar, na verdade,
semelhanas com o significado da espada nos ritos de passagem
que compem o universo cultural nativo. Tanto uma quanto a
outra deveriam ser conquistadas por meio de um sofrimento
transformador capaz de despertar no indivduo a quantidade
necessria de vibrao, elemento essencial daquela alquimia
ritual. A fala dos personagens que representavam os oficiais
no Teatro de 2006, alegando sempre que a goiabada devia ser
conquistada e no simplesmente adquirida, serve para evidenciar esse argumento.
Creio que a percepo dos oficiais sobre o fato de os cadetes
do Terceiro-ano no terem obtido seus direitos de vencedor,
como esperavam ao final daquele estgio da passagem, era a de
que a cota de sacrifcio necessria para a eficcia do processo
no havia sido desprendida. Aquela simples falta de vibrao,
portanto, pode ter sido suficiente para comprometer a eficcia
do ritual, fazendo com que a transformao social de seus status
no tenha ocorrido como deveria.
Pareceu-me que os cadetes, por sua vez, sentiram-se injustiados
por entenderem que, apesar de at ento terem sido disciplinados, aguardando pacientemente pelo incremento gradativo do
poder, como manda o figurino da hierarquia militar, no haviam
ainda adquirido seus direitos naquela passagem. Por retratar
essa insatisfao dos cadetes como uma espcie de revanche
ritual, a pea revelou-se como contraponto simblico aos ritos
punitivos promovidos pelo CA. Penso que, nesses dois espaos, se pretendesse atingir o estoque de reputao no corpo
simblico do outro que, naquele momento, era o adversrio
poltico desprovido de poder sobre os mecanismos de produo
simblica do ritual.
Aquilo [no Primeiro-ano] dava uma sensao de igualdade;
no havia privilgios. Minha turma era tudo filho de z; no
tinha filho de coronel como em outras turmas. Por causa dis-

239

so, nosso Primeiro-ano foi exemplar. Ento, no tinha o que


protestar no teatro do Primeiro-ano (2004), no havia nenhum
sentimento de vingana. Era s uma forma de se expressar, de
mandar um recado, de brincar com o veterano. Era tanto, que
a gente brincava s com quem a gente gostava. A pea daquele
ano foi feita assim, para que ningum se aborrecesse depois,
mas mesmo que tivesse algum aborrecido, ns estvamos
autorizados. Sabamos que poderamos contar com os oficiais
se algum veterano nos perseguisse, pois a misso foi dada por
eles. A gente percebia que alguns mudavam a postura s porque
a gente tinha brincado com eles no teatro. Uma caricatura exagerada na pea, por exemplo, o cara ia l e no se comportava
mais assim, porque sabiam que a gente tava reparando neles.
(Segundo tenente, poca, cadete do Terceiro-ano)

Em 2004, quando os organizadores da pea ainda estavam no


Primeiro-ano do CFO, no havia razo para destilar nos adversrios o que Bakhtin (1999) chamaria de humor negativo.
Naquele momento, o teatro ainda tratava da relao entre bicho
e veterano, sem promover grandes alfinetadas, pois, segundo
esses mesmos organizadores, havia cooperao entre os grupos
que compunham o campo poltico da APM. Isso me levou a
crer que, na poca, o ritual de passagem vinha funcionando de
acordo com o esperado por todos aqueles grupos posicionados.
Para a pea [de 2004] a gente foi incrementando as caricaturas
das pessoas, a nossa e a dos nossos veteranos; alguns trejeitos,
o que um tinha de mais engraado. Mas, dava uma exagerada
claro. O tema era a rotina da APM, desde que o cadete era
candidato e fazia o vestibular da UERJ. Canes militares,
sendo vividas de forma caricata pelo aluno. O contemplando
o horizonte do hino Nacional, por exemplo, mostrando o bicho
bem apaisanado, com o olhar perdido no horizonte. Era aquele
choque que tem at o momento do espadim. Na pea tinha um
ET [extraterrestre] que fazia uma comparao do filme com
o aluno da APM, que representava o contato do bicho como
veterano. O bicho ali, todo assustado, mas tocando o dedo
do veterano, com cumplicidade. Eles ali, n, meio que no se
entendiam, mas ao mesmo tempo, havia cumplicidade, tinham
uma relao de amizade. (Segundo tenente; poca cadete do
Terceiro-ano e um dos escritores da pea de 2006)

No Segundo-ano, todavia, isto , em 2005, algo pareceu no ter


sado conforme o socialmente esperado no curso da passagem
240

que representa o CFO. Assim, os cadetes pressentiram que algo


deveria ser feito, ou melhor, ser dito queles oficiais alheios a
tudo. Era necessrio um ajuste e, pelo que parece, o teatro foi
visto como uma boa oportunidade para a renovao do sistema.
Aqui, portanto, o teatro dos cadetes guarda alguma semelhana
com aqueles rituais de rebelio, observados por Max Gluckman (1974), no sudeste africano. Primeiro, a prpria ordem
estabelecida a da caserna era quem reservava esse espao,
ou seja, o teatro, para a sua renovao controlada; depois, o alvo
do ataque no era a ordem em si, mas o desempenho inadequado
de alguns papis sociais, cujos modelos eram informados pelos
rituais que compunham as solenidades militares da APM. Por
isso, da mesma forma que ocorreu a Gluckman, o teatro no me
pareceu ter um sentido revolucionrio, mas de rebelio.
A pea era importante para turma, porque tudo de ruim que
acontecia com a turma, vinha algum aluno e perguntava: isso
a vai entrar na pea n? Vai botar aquilo na pea n? Porque
era um anseio da turma em ver aquilo explodindo; de ver os
outros oficiais, os bons oficiais, que no sabiam que aquilo
acontecia, tomando conhecimento daquela forma. A ponto de
depois ter discusso entre os oficiais. Mas isso? Voc no faz
e voc cobra? Era uma forma de se expressar, era o famoso
chutar o balde, era a forma de se tomar conhecimento de
tudo o que acontecia no CFO at aquele momento, inclusive as
coisas mais srdidas. Cada um reagia da forma que sua ndole
julgasse. (Segundo tenente; poca, cadete do Terceiro-ano e
um dos autores da pea de 2006)

Desde que foram convocados pela primeira vez pelo ento


Comandante do CA para, junto com os cadetes das demais
companhias, elaborarem as peas teatrais de suas turmas,
esses organizadores j vinham se especializando para, naquele
Segundo-ano, se tornarem, j num tom incipiente de rebelio,
os renovadores da ordem social estabelecida. Foi, portanto,
por um descuido do prprio sistema de vigilncia da APM
que o teatro passou a se transformar num espao de exploso
criativa do indivduo e suas liberdades dentro de uma estrutura
rigidamente controlada.
Naquele ano [2005] tivemos a primeira grande mentira do
CFO; o primeiro grande mito havia sido quebrado: o de que o

241

Segundo-ano est na escola para s descansar, malhar e se preparar intelectualmente para ser um Terceiro-ano ainda melhor.
Mentira! O outro Segundo-ano na nossa frente j tinha sofrido
isso tambm. Ns no tivemos isso no Primeiro-ano, porque
nosso comandante de CIA era uma pessoa muito justa, o que
no ocorria com o deles. No se respeitava o militarismo, a
hierarquia. A liberao, por exemplo, enquanto o Segundo-ano
estivesse sendo sugado: sobe, troca de roupa!, enquanto
no fosse liberado, o nosso comandante de companhia no
liberava nossa turma. Muita gente da minha prpria turma
achava aquilo certo, mas eu achava que era errado e que era
uma tradio. Ento no fazia sentido o Segundo-ano no estar
liberado e o Primeiro-ano sim. S se fosse alguma coisa extra,
algum servio extra que o Primeiro-ano no pudesse fazer, ou
prever, algo assim. Principalmente quem est novo na Academia isso importante. (Segundo tenente; poca, cadete do
Terceiro-ano e um dos escritores da pea de 2006)

Havia um consenso nos discursos de cadetes e oficiais de que


as peas dos anos anteriores haviam sido menos acintosas do
que a do ltimo. Creio, portanto, que esse clima apotetico s
pde enfim ser atingido em 2006, devido ao ensaio inicial dos
organizadores que se especializaram enquanto observavam sua
prpria gerao seguindo normal o fluxo controlado de sua
passagem. Mas, como vimos antes, por algum motivo esse fluxo
pareceu ter se desgovernado.
No Terceiro-ano (2006), a pea foi, portanto, uma alfinetada maior e, segundo os componentes de todos os grupos
posicionados naquele campo, ela havia mesmo excedido os
limites preestabelecidos pelas regras nativas. Alguns oficiais
entenderam que o comportamento dos cadetes organizadores
confirmava, de fato, a percepo que tinham do Terceiro-ano,
isto , de que aquela era uma turma indisciplinada. Segundo
esses mesmos oficiais, o grupo mentor monopolizou o teatro
com esse propsito de afrontar o militarismo. Apesar disso,
esses oficiais se resignavam diante da fora da hierarquia por
entenderem que aquele espao, apesar de perigoso, havia sido
criado e autorizado pelo prprio escalo superior da APM, a
quem no convinham contestar:
Nunca ningum foi preso ou punido; acabaram se relevando
porque se abriu essa lacuna. Mas ela foi autorizada. Entendem

242

que uma festa, que no precisa superviso. Depois de feito,


... Eu acho que no tem que ter mais, mas acho que se fosse
de outra forma seria mais divertido; se fosse separado [cada
turma fazendo o seu teatro] no haveria esse monoplio de
informaes. O Terceiro-ano que est querendo bagunar.
Hoje inventam umas histrias [...] (Primeiro tenente, poca,
comandante de peloto da 1 CIA)

Como disse, aquele pareceu mesmo ter sido o grito de liberdade dos cadetes, j que seus direitos no vinham sendo
concedidos, mesmo depois de ele terem sido devidamente sugados no Primeiro-ano e de no terem ficado esquecidos no
segundo, conforme obrigava a tradio. Nesse sentido, como
os privilgios inerentes aos estgios alcanados no surgiam, a
percepo foi a de que o pacto havia mesmo sido quebrado.
No Terceiro-ano, a gente viveu a segunda grande mentira da
Academia: foi dito gente que o Terceiro-ano mandava na escola. A gente no mandou em nada. Pelo contrrio, o Segundo-ano
mandava mais do que a gente em alguns aspectos, n? Porque
eles [os oficiais do CA] queriam que a gente punisse o Segundo-ano e o Primeiro-ano, mas principalmente o Segundo-ano. Para
isso, eles comeavam a cortar alguns direitos nossos sem dar
justificativa, tipo: inventavam um deslize da turma e cortavam
um benefcio nosso. E diziam que a gente tinha que conquistar,
que tnhamos que merecer e que aquele no era o momento daquele benefcio. Era o que diziam para a gente: que a gente tinha
que conquistar, que tinha que aguardar, que no era o momento.
Davam como justificativa de que a gente no punia o Segundo-ano suficientemente para que os direitos deles fossem vetados,
para que eles pudessem brigar[...], porque era uma inverso
de valores, que dizer, os oficiais da nossa companhia queriam
brigar para que o Primeiro-ano e o segundo fossem muito ruins,
para que o Terceiro-ano pudesse gozar desses privilgios, quando na verdade tinha que ser exatamente o oposto. No havia
uma preocupao em querer realar o nosso lado positivo.
E a a gente viu a terceira grande mentira da Academia, que
durante os trs anos do CFO a gente ouviu que a nossa turma
uma das melhores turmas que todo mundo j viu. E essa tal
melhor turma que todo mundo j viu nunca ganhou nada, s
foi punida, s sofreu, s teve o licenciamento sustado, estudo
obrigatrio. E os direitos, que era uma tradio da academia,
tinham de ser conquistados, quando esses ritos fossem sendo
cumpridos, a gente no conseguia, e foi assim durante todo o
ano. A a pea, pela proximidade de estar saindo da Academia,

243

foi aloprao total. A foram piadas pesadssimas, jogando na


cara dos oficiais todas as podrides que j foram feitas. Tudo
que a gente detectou no CA. (Segundo tenente; poca, cadete
do Terceiro-ano e um dos escritores da pea de 2006)

Para os oficiais, aquele comportamento inadequado do Terceiro-ano se deu porque seus componentes piruavam muito, eram
melindrados demais e no tinham vibrao alguma. Aqui,
ao evidenciar a falta de controle da ordem estabelecida e
creio ter sido isso o que os organizadores tambm pretendiam
, o teatro pareceu ter perdido finalmente aqui a referncia de
um rito de rebelio (GLUCKMAN, 1974), no entanto, vrios
outros aspectos do ataque mostravam que ele ainda continuava
no contestando a estrutura em si, mas o comportamento de
algumas pessoas especficas do grupo adversrio.
Nesse sentido, apesar de ambos os grupos terem percebido uma
quebra do pacto, segundo suas prprias representaes, o
sistema parecia no ter sido o alvo principal do ataque, o que de
certa forma ainda o ratificava. Dessa maneira, as alfinetadas
de maior intensidade, que pareciam fugir ao controle do CA, se
dirigiam quelas pessoas cujos comportamentos eram percebidos como no adequados. No se respeitava o militarismo, a
hierarquia. Era exatamente isso que a contrario senso ocorria
nos ritos punitivos, nos quais o sistema se atualizava quando os
punidos eram simbolicamente atingidos. Ali, os cadetes tambm
eram punidos depois de terem sido julgados como no cumpridores de seu papel social estabelecido, segundo a percepo
dos dominantes, que, naquele momento, tinham poder sobre os
mecanismos da produo ritual.
No teatro, alguns oficiais tambm eram simbolicamente atacados
depois de terem seus comportamentos julgados inadequados,
agora, pelos dominados. E tudo isso sem que a ordem fosse
colocada em questo; ao contrrio, ela era confirmada. Creio
que, por isso, os cadetes aceitavam aquele sofrimento como algo
necessrio construo social de suas identidades de oficiais,
contanto que esse sofrimento ocorresse sob regras universais
do ponto de vista do militarismo, e no sob regrascasusticas
e particularizadas.
244

Nesse sentido, o Homem de Lata, que apesar de ter sido um


dos alfinetados na pea, apresentava caractersticas positivas
para os cadetes. Seu jeito bronco de infante, sua racionalidade
tmida e o brev do curso de operaes especiais condensavam
significados emocionais que caracterizam a caserna, ao mesmo
tempo em que revelavam a posio que esses valores ocupavam
no sistema cultural nativo.
Nossa turma nunca reclamou por mais que a gente visse que
a suga era exagerada; a gente entendia o propsito. E a gente
tinha em mente que no bastava s querer ser oficial, a gentetinha que sofrer na pele as dificuldades da profisso. Ningum ali
era cego. Tinha muito ex-praa na minha turma que falava que
a realidade na favela era aquela. Tem certos momentos que no
se pode vacilar, que no pode ter nojo, pois nesse momento
que o policial militar acaba sendo ferido. Nesse aspecto at
a suga ajudava, porque a gente acabou perdendo muitos dos
receios da vida civil. No animalizar o homem, prepar-lo
para, se necessrio for, ele agir daquela forma, o instinto de
sobrevivncia dele no se limitar por algum melindre. (Segundo
tenente; poca, cadete do Terceiro-ano do CFO)

Tanto o sofrimento, quanto a igualdade hierarquicamente


relativizada e alegada por eles como um dos seus direitos,
pareciam mesmo estar dentro desse propsito da formao
profissional militar. Dessa forma, os cadetes pareciam no
concordar com o tratamento privilegiado que o CA dispensava
aos considerados, sem um critrio hierrquico e com a falta
de critrio nas punies, que acreditavam extrapolar o esprito
da formao militar estabelecido no pacto ritual. Para eles,
tanto a punio educativa, quanto a suga do tipo brincadeira, percebidas positivamente como elementos necessrios
construo do novo status, eram bem aceitas, ao contrrio
da punio banalizada, que j havia perdido o seu sentido de
ajuste devido aos desvios do sistema. Essas injustias, pelo
visto, haviam sido o principal motivo da rebelio simblica do
Terceiro-ano.
A gente j estava num nvel que no se importava se ia vir punio ou no. A gente s queria era dar esse grito de liberdade,
porque no Primeiro-ano a gente deu umas alfinetadas em certos
veteranos e viu que a postura deles mudou, e a gente tentou

245

fazer a mesma coisa com os oficiais. (Segundo tenente; poca,


cadete do Terceiro-ano do CFO e escritor da pea)
Eu ajudei a montar o cenrio do ltimo teatro. A ideia surgiu
com a vontade de afrontar os oficiais. Pensamos que iramos
ser tratados como oficiais no Terceiro-ano, mas houve mesmo
foi muita punio. Minha turma tinha mais de 600 DRD.20 A
nossa revanche foi mostrar as caractersticas dos oficiais. O
pessoal se exaltou e parece que passou dos limites. Antes no
passvamos, s alfinetvamos. (Segundo tenente; poca,
cadete do Terceiro-ano do CFO)

Porm, como eu disse, essa igualdade pleiteada pelos cadetes


tambm tinha um significado de privilgio quando confrontada com a universalidade democrtica que encontramos na
ideologia da rua. Nesse sentido, o pleito dos cadetes estava
mais para uma reao contra o que eles acreditavam ser um
insulto moral por parte do CA, isto , uma experincia de
injustia vivenciada em razo de uma desconsiderao numa
dimenso moral, do que uma reao contra alguma regra estabelecida oficialmente (OLIVEIRA, 2002). Aquele pleito, que
poderia parecer a princpio um comportamento tpico da rua,
posicionava-se, portanto, segundo as regras da caserna e seu
contexto hierrquico. A igualdade pleiteada era, ento, relativa
e se referia aos privilgios naturais concedidos igualmente,
mas dentro do critrio militar da antiguidade que as turmas
adquirem medida que vo ultrapassando os diferentes estgios
de seu processo de formao. Essas diferenas talvez ocorram
por um efeito da temporalidade interestrutural do ritual que
existe especialmente naquele espao liminar. Nesse sentido,
vale lembrar que o Estatuto Policial Militar no estabelece
diferenas legais e estatutrias para categoria de Aluno-Oficial
PM na estrutura organizacional da PMERJ. Elas so criadas,
portanto, pela prpria dinmica do campo.
P, revista de cabelo e de fardamento a gente tinha solicitado
que fosse no alojamento, at para no expor o Terceiro-ano,
para no ficar fazendo a mesma coisa que o segundo e o primeiro. A gente no queria deixar de fazer a revista, mas que fosse
realizada no alojamento. Isso era plenamente possvel e j que
20

Vale lembrar que o DRD Documento de Razes de Defesa havia substitudo a


portaria, desde 2005.

246

era realizado assim na poca dos meus veteranos. A revista de


farda do Terceiro-ano era sempre feita no alojamento, reservada. Para o Terceiro-ano ter imponncia, porque ele precisa ser
o brao direito dos oficiais. Ningum melhor para conhecer e
identificar as sementes podres no CFO, do que o Terceiro-ano.
E essa ferramenta, a meu ver, s foi utilizada corretamente
na poca do meu Primeiro-ano, em que o Terceiro-ano foi
realmente utilizado como um brao gigante de um polvo que
abraava ali o CFO, fiscalizava e via tudo e se reportava aos
oficiais. No houve isso; meu Terceiro-ano ficou ali reles no
mundo. O importante que o Terceiro-ano uma ferramenta
de muito poder para os oficiais. uma questo de lgica; o que
mais fcil, 140 fiscalizar 140, ou trs fiscalizarem todo o CFO.
at um desperdcio no utilizarem o Terceiro-ano. (Segundo
tenente; poca, cadete do Terceiro-ano)

Assim, o teatro dos cadetes apresentava uma lgica similar a


do ritual punitivo, s que produzida a partir de diferentes posies e percepes dentro do campo. Ele atacava, por seu
turno, a usurpao do papel de veterano por parte do oficial
que, extrapolando suas funes, se imiscua nas sacanagens
e brincadeiras tpicas do adaptador. Assim, ficava claro o
que os cadetes esperavam do oficial, isto , um comportamento
tpico de orientador, talvez o do guru em sua incumbncia de ter
de lhes apresentar os sacra da profisso, e no o do indivduo
inoportuno que se intromete nas pequenas polticas do CFO.
Naquela altura, j no cabia mais ao oficial participar diretamente do processo de adaptao dos cadetes e, nesse sentido,
as alfinetadas dos cadetes funcionavam como um ajuste para
aqueles que, eventualmente, havia se desviado do curso de seu
papel social. Mas aquelas s eram eficazes no momento em que
os oficiais alfinetados realmente interiorizavam essa punio s
avessas, retornando ao comportamento socialmente esperado
dentro daquela representao das regras de iniciao militar.
V-se, com isso, que os cadetes tambm desenvolveram, de
forma criativa, seus prprios mecanismos simblicos para
dramatizarem sua representao de punio contra oficiais
desviantes, tal como eles prprios eram ajustados nos ritos
punitivos da APM.

247

Sobre os rituais da APM


Observando atentamente todos esses rituais na APM, tanto os
que ocorriam por ocasio das solenidades para tratar da grande poltica da PMERJ, quanto os que ocorriam na margem da
passagem dos cadetes pelo CFO, tratando daquelas pequenas
polticas elaboradas em seu campo sociocultural, pude verificar
que, como aes sociais, eles formavam um sistema de comunicao simblica por meio do qual a cultura nativa transmitia
significados (LEACH, 1978; GEERTZ, 1973). Nesse sentido, era
curioso que uma instituio extremamente preocupada com a
transmisso literal de seu programa oficial ordens de servios,
regulamentos etc. ainda se fazia valer to intensamente desses
mecanismos de comunicao no escrita.
Analisar essa dimenso simblica me permitiu, sem dvida,
concluir que, apesar de a representao militar da APM sugerir
um ambiente extremamente harmnico e controlado, ela na
verdade apresentava conflitos interessantes para se entender
a lgica da construo de sua identidade institucional. Dessa
forma, tambm pude perceber que, apesar de os significados
transmitidos nessas comunicaes rituais serem compartilhados
pelos nativos, o modo como eles eram apreendidos dependia
tanto do posicionamento do indivduo, ou do grupo em que
naquele momento ele estava integrando, quanto da maneira
pela qual seus esquemas de percepo eram interiorizados. Por
isso que, para entender esse processo, tive de estender minhas
observaes at a dinmica do campo, ritualmente dramatizada
naqueles eventos.
Semelhante s constataes de Castro na construo do que
este autor havia chamado de esprito militar (CASTRO, 1990),
a caserna tambm se manifestava na APM com uma lgica
contrastiva de separao simblica, inclusive na construo
das identidades desses grupos internos. Essas identidades devem, portanto, ser observadas de uma maneira dinmica por
conformarem totalidades relativas. Seus indivduos que ora so
policiais, ora militares e, ora, policiais militares, internamente
tambm so bichos, veteranos, mpares, pares e, numa
totalidade mais ampla, so cadetes da APM, ou ainda oficiais
248

da PMERJ. Essas diferenas tm se reproduzido, de gerao


para gerao, dentro de uma dinmica que proporciona interpretaes diferentemente posicionadas acerca do militarismo
e das regras da iniciao do cadete. Aqui, fica evidente a grande
riqueza simblica que d vida a uma intensa atividade ritual, tal
como observamos na APM. Ao informarem diferentes vises
de um mesmo mundo em conflito, esses rituais, que aparentemente se conservariam dentro de uma ordem militar esttica,
apresentam um dinamismo prprio capaz de dramatizar, por
exemplo, as relaes alternadas entre as turmas. Para que seus
significados fossem observados, foi necessrio, primeiramente,
tentar entender essa dinmica social.
Creio que a maneira peculiar de cada grupo se apropriar do contedo cultural na APM se deva, em grande parte, vibrao que
alimenta os rituais. Esse elemento alqumico, ou melhor, a parte
dele que de maneira particularizada se manifesta no indivduo
, sem dvida, fundamental para a eficcia simblica daqueles
rituais. Nesse sentido, eles, isto , os rituais da APM, assemelhavam-se de fato aos ritos militares observados por DaMatta
(1990). A vibrao ou, como diria Turner (2005), a emoo
praticada era estimulada coletivamente pelos adaptadores
na APM, mas, por outro lado, ela tambm se manifestava de
uma maneira diversa nos indivduos, ou mesmo nos diferentes
grupos que participavam da socializao promovida pelo CFO;
quando no, ela era uma emoo fingida, utilizada num sentido
prtico pelo indivduo em sua luta pela sobrevivncia social
naquele ambiente dinmico.
A relatividade dessa eficcia foi evidenciada pelos diferentes
discursos da APM que, quando vistos dentro de uma mesma
mensagem ritual, apesar de seus momentos distintos,21 proporcionavam um interessante duelo simblico a partir de um
cdigo comum. De um lado, havia a maneira pela qual o CA
representava a caserna; e, de outro, o discurso alternativo dos
cadetes acerca dessa mesma caserna. Em ambos os domnios,
alguns papis sociais eram atacados pelos diferentes grupos
com suas diferentes representaes. Os alvos se diferenciavam,
21

Possibilidade que j vimos anteriormente em Leach (1978).

249

mas a lgica punitiva era a mesma, ou seja, o que se pretendia


era o ajuste do comportamento inadequado, o que me levou a
crer que, em ambos os momentos, havia de fato uma purificao
renovadora da caserna.
O fato de vrios cadetes legitimarem, com o teatro, o que
entendiam ser a disciplina e a hierarquia militares vai nos
mostrar exatamente essa ratificao da caserna. As caractersticas do Homem de Lata legitimavam a suga positiva como
fundamental na docilizao do corpo, que, ali valorizada,
ajudava a interiorizar a caserna. Essa docilizao do corpo,
contudo, atendia somente aos propsitos da caserna, com a
construo de seus guerreiros, em detrimento da rua, o que ficou
patente com a reao da plateia aplaudindo o Homem de Lata
quando este recebia a insgnia da caveira das mos do Mago.
Outro dado que tambm me pareceu importante foi a ausncia
de uma comunicao verbal que informasse as regras de comportamento de uma forma clara e universal. Creio que essa
ausncia fosse intencional e fizesse parte da mesma estratgia
poltica que perpassava toda a dinmica social da APM, onde era
necessria uma aura de mistrio capaz de gerar a imprevisibilidade suficiente para o estabelecimento de uma diferenciao
hierrquica entre as turmas naquela socializao parcializada
do CFO. Talvez, essa fosse mesmo mais uma das tticas de
um poder-saber difuso, de acordo com Foucault (2007, 2009).
Assim, ao mesmo tempo em que os critrios hierrquicos estabeleciam o poder na APM, ou, em tese, deveriam estabelec-lo,
eles tambm orientavam a frmula diferenciada de se distribuir
o conhecimento queles que ascendiam no sistema. Nesse
aspecto, a socializao dos cadetes da APM guardava alguma
semelhana com a dos Baktaman da Nova Guin, observada
por Fredrik Barth (1975).

250

Consideraes finais
O fato de pretender pesquisar meu prprio grupo nativo com
certeza me exigiu um esforo maior de estranhamento, mas, por
outro lado, permitiu-me tambm enxergar minha prpria corporao profissional de um ngulo mais esclarecedor. Diria que
passei a v-la com outros olhos. Se antes optei por um objeto
clssico da antropologia, que eu sabia existir em profuso na
APM o ritual , pensando em, com ele, testar teorias antropolgicas que me ajudassem a entender e a mapear significados da
cultura nativa, como faria qualquer iniciante da disciplina, aps
esse exerccio maior de estranhamento, eu j problematizava a
prpria presena daquele elemento na cultura nativa.
Problematizando aqueles ritos militares promovidos na APM, eu
pude detectar em mim mesmo essas naturalizaes a respeito
da PMERJ, o que me fez cogitar as seguintes questes: Porque
esses ritos, entre outras tantas equivalncias militares na APM,
estariam assim to presentes numa instituio que tambm
policial? Afinal de contas, por que razo a APM se representava
como uma unidade de ensino militar, tal qual as que existem
nas instituies genuinamente militares, se ela um rgo da
polcia militar, instituio que, como o prprio nome sugere,
deveria abrigar, num mesmo arcabouo institucional, aspectos
identitrios de duas outras instituies j existentes de forma
autnoma na sociedade brasileira? E, se ela assim to naturalmente militar, em que momento da carreira os nativos
incorporariam sua parte policial? Creio ter sido a partir dessas

questes que eu deixei de aceitar naturalmente a APM como


uma academia militar.
O termo caserna, com que os cadetes frequentemente se
referiam APM, bem como os smbolos trazidos do universo
militar, pareciam-me fortes indcios de que apenas uma parte da
instituio era privilegiada na socializao que ali se realizava.
De fato era. Em campo, verifiquei a prevalncia da ideologia
militar na socializao dos cadetes, o que foi possvel constatar, inclusive na observao de uma dimenso simblica, cujos
rituais evidenciavam conflitos com fins no confessos antagonizando os dois paradigmas que, em tese, deveriam compor o
habitus policial militar. Restava, ento, a terceira questo: em
que momento da carreira policial militar o oficial incorporava
a parte policial de seu habitus?
Estas questes se tornaram mais relevantes medida que a
APM me foi sendo apresentada pelos prprios cadetes como
um espao diferente, isto , como uma ilha da fantasia, como
eles prprios diziam. Diante disso, entendi que para compreender sociologicamente a APM e suas diferenas deveria faz-lo
com relao ao universo maior em que est inserida. Em outras
palavras, para entender melhor a ilha, eu deveria conhecer
um pouco mais do oceano que a cerca. S sabemos o que a
ilha figura e, consequentemente, o que seria essa representao nativa, quando a comparamos com o oceano institucional
que significa a PMERJ. Foi observando a dimenso simblica
da APM, com toda aquela sua intensa atividade ritual, que eu
cheguei concluso de que os conflitos existentes entre os
dois polos de um continuum identitrio geravam uma gama de
tipos institucionais e de habitus peculiares que eventualmente
encontramos tambm na PM.
Depois de interromper minha aventura etnogrfica, tendo de
me retirar do campo por motivos de fora maior, pude refletir
mais detidamente sobre aquilo, inclusive nas conversas que travei com policiais militares de outras unidades. Nesse momento,
tambm percebi uma representao externa que em parte se
adequava interna na qual a APM tambm era vista como um
espao diferente, sobretudo porque priorizava a caserna. Ao
252

contrrio dos discursos internos, os discursos externos, no por


acaso, apresentavam as categorias polcia e rua agrupadas
num mesmo feixe de significados positivos, que geralmente se
opunham caserna e militar, numa percepo que parecia
corroborar o sentido adquirido pelo termo polcia no Ocidente. Os romanos o latinizaram do grego politeia, que significava
tanto a res publica (coisa pblica) quanto a civitas, isto , os
negcios da cidade. Assim, ele havia se tornado politia em
referncia polis e, com esse sentido, se aproximou de imperium que, em outras palavras, significava o poder coercitivo
do Estado. Polcia e Estado ento se confundem, quando um
a extenso do outro. Dessa forma, polcia passa a fazer parte
de uma conscincia coletiva ocidental como materializao do
poder do Estado (imperium) na administrao da coisa pblica e do territrio interno. Apesar de cada sociedade construir
organizaes policiais a partir de suas peculiaridades, h certo
consenso em torno desse conceito de polcia, ou seja, de que
seus agentes operariam internamente o monoplio da violncia
legtima do Estado.
Atualmente, a representao de uma polcia-cidad tenta afastar a instituio policial do Estado tradicional para adequ-la a
uma concepo de ordem burguesa. Embora Martha Huggins
(1998, p. 12-14) observe que essa tentativa pode, na verdade,
estar ocultando estratgias similares s que encontramos na
tradicional hiptese da particularizao do Estado por parte
de faces politicamente dominantes, o fato que a polcia
atua agora nos burgos modernos junto a seus sditos. Ento,
seja por meio de aes ou estratgias visveis, seja por meio
de uma agenda oculta, como se referiu Huggins, seu habitat
institucional o espao pblico representado pela vida citadina, ou seja, a rua. ali que presumivelmente a encontramos
como uma instituio moderna e, nesse aspecto, os discursos
de fora da APM, como o do policial militar que me dizia que [os
cadetes] s aprendem mesmo a ser policiais na rua, ganham
coerncia. Em outras palavras, ele parecia dizer que, se a APM
era mais militarizada o que fazia dela o espao onde o cadete
aprende a marchar era na rua que se aprendia mesmo a ser
policial, indicando esse espao institucionalmente consagrado
253

para a prtica cotidiana da polcia, como o complemento de sua


socializao profissional.
Por esse prisma, os conflitos entre a caserna e a rua, deflagrados
na socializao do cadete, no terminariam com Aspirantado.
provvel que eles continuem numa segunda, terceira, ou,
quem sabe, quantas socializaes forem necessrias para que a
rua seja incorporada em seu habitus. Entretanto, a instituio
policial militar no reserva um espao oficial para a socializao eminentemente policial como a que existe de forma to
elaborada para a interiorizao da caserna. Poderamos ento
dizer que no h uma sistematizao da rua sob o controle
da corporao, porque ali, na APM, a rua ainda descartada
sistematicamente como uma perigosa ameaa para a ordem
institucional. Os rituais analisados neste trabalho mostravam
que, naquele momento institucional, havia mesmo essa opo
pelo descarte ideolgico da rua como elemento perigoso da
identidade policial militar, em nome da manuteno e da coerncia de sua ordem simblica. De fato, esse mesmo elemento
era tambm rechaado na dinmica social que proporcionava
a iniciao e a formao dos cadetes, sobretudo porque os nefitos no o tinham em seus programas e prticas curriculares.
Contudo, seria preciso conhecer mais dessa socializao no
sistematizada da rua, onde creio que tal hiptese pudesse de
alguma forma se inverter. Nesse caso, a rua quem englobaria a
caserna no momento em que a posio do indivduo com relao
ao Estado fosse invertida. Muito provavelmente, l tambm h
ritos, mas com uma gramaticalidade invertida, conquanto os
discursos partam predominantemente desse segundo polo do
continuum identitrio policial militar. Mas esse um objeto
para futuras pesquisas. Por enquanto, basta entender que os
discursos e comportamentos nativos observados j apontavam
para essa direo dicotmica.
Observar a APM como um ritual de passagem, maneira de
Turner (1974), ajudou-me tambm a entender esses valores
praticados na prpria dinmica de seu campo sociocultural,
notadamente quando os cadetes esto entre um estado e outro, na fase liminar de sua transio, na qual sabemos que as
254

caractersticas dos sujeitos so ambguas. Entre outras tantas


coisas, ritos de passagem ou de transio podem servir para
controlar foras desprendidas nessa fase crtica que, dependendo da percepo dos que os promovem, so vistas como
criativas ou destrutivas.
Na APM, no foi diferente: havia um sistema de vigilncia e controle com esse intuito na fase liminar da passagem dos cadetes
pelo CFO. Por isso, observar seus processos punitivos, inclusive
ajudado por uma anlise quantitativa das punies disciplinares
sofridas pelos cadetes, foi importante para entender o conflito
latente entre esses valores, bem como as posies que os grupos
tomavam de uma forma dinmica em suas pequenas polticas.
A anlise quantitativa sozinha, no entanto, no seria suficiente
para perceber essas dinmicas. Nesse sentido, os ritos militares
sempre diziam alguma coisa a respeito das representaes de
cada um desses grupos dominantes e dominados no sistema
de vigilncia e controle da APM; os ltimos o faziam buscando,
de uma maneira alternativa, manifestar seu grito subversivo
contra o discurso oficial produzido nos ritos punitivos que os primeiros promoviam. De uma maneira bastante criativa, por sinal,
os cadetes utilizavam mecanismos de comunicao simblica
semelhantes aos utilizados por seus adversrios para projetarem
a voz num espao em que so ideolgica e tradicionalmente
silenciados como indivduos.
Nesse sentido, foi interessante perceber que os ritos militares
produzidos na APM guardavam objetivos simblicos muito
parecidos com os dos ritos que remontavam s origens do Estado nacional, com sua ideologia holstica e coletiva que, em
determinados momentos da histria ocidental, travou combates ideolgicos com outras cosmovises, como o liberalismo
burgus, ou mesmo o socialismo e o comunismo. Todavia,
tanto o discurso oficial da APM, quanto o discurso alternativo
que partia de suas camadas subalternas convergiam para
uma representao muito parecida acerca do militarismo.
Num certo sentido, ambos reproduziam o mesmo processo de
individualizao gradativo, controlado pela instituio para a
aquisio de reputao e poder. Esse protesto institucional dos
255

cadetes no se dirigia ordem da caserna em si, e nem a essa


representao da disciplina militar, mas a papis sociais que
percebiam como inadequados para a hierarquia militar. De certa
forma, esse fato mostrava uma certa eficcia desses mecanismos
rituais, na medida em que a caserna era ali tambm reforada
em detrimento da rua, mesmo que de uma tica diversa.
Foi interessante observar tambm que o ritual militar como
mecanismo de produo e reproduo simblica da ideologia
nacionalista foi reforado na PMERJ principalmente durante
a e pela ditadura militar. E foi, no mnimo, intrigante perceber que ele, no obstante os esforos da pedagogia formal,
pautada no individualismo moderno que se materializava nos
currculos do CFO, ainda permanecia ali, vivo e pulsante, como
um dispositivo de retardo reproduzindo a caserna no corao
da APM. Dessa forma, no haveria por que se falar em reforma
da polcia, inclusive com a criao de uma matriz curricular
moderna e democrtica para a PM, como ultimamente vem
sendo discutido, sem que esses mecanismos, que continuam
produzindo um discurso ideologicamente diferente, sejam
desativados.
Dentro dessa perspectiva simblica, creio que os argumentos
que identificam no ritual militar um mecanismo de controle
eficaz para melhor controlar policiais militares, acabem se tornando contraditrios, na medida em que apontam o militarismo
como anacrnico para a funo policial. Na verdade, observei
que esses ritos controlavam sim e descartavam comportamentos percebidos ideologicamente como inadequados para
a instituio militar, mas no para os objetivos da instituio
policial numa sociedade democrtica. Creio que tais argumentos
poderiam ento ser robustecidos com a incluso dessas hipteses simblicas, pois, para que de fato haja qualquer mudana
de ordem poltica e institucional na PM, talvez fosse necessrio
primeiro uma interveno de ordem cultural, de modo que propiciasse a inverso das posies ocupadas por esses elementos
ideolgicos no sistema de valores nativo.
Num momento em que a sociedade brasileira clama pela adequao de suas instituies ao atual panorama poltico o
256

que vale tambm para as instituies policiais , a opo pelo


descarte de foras consideradas destrutivas, sob um enfoque
ideologicamente anacrnico, pode representar um desperdcio
considervel numa eventual necessidade de mudanas. Nesse
sentido, o controle exagerado muitas vezes focado numa
esttica adequada instituio militar que, nesses processos
de transio, iniciao e socializao, tem orientado a manuteno de um status quo descontextualizado pode significar
uma perigosa represa para a criatividade individual, dentro de
uma concepo ensimesmada do militarismo, como me pareceu
ocorrer na APM. Para todos os efeitos, a disciplina, mesmo a
militar, como caracterstica da racionalidade moderna, pode
perder seu carter pragmtico no momento em que lida com
objetivos que se confundem em meio a essa dualidade identitria
existente na PM, entre a caserna e a rua.
Creio que os rituais militares possam, nesse sentido, apresentar
a eficincia que tiveram no passado, quando se procurou intensificar a caserna, sobretudo na ditadura militar, mas, agora,
operando a naturalizao de uma eventual soluo encontrada
para o aparente dilema institucional da PM, o que poderia dar
coerncia lgica para a existncia do pato no atual contexto
democrtico. Assim, talvez se possa construir, j a partir de
seus espaos de iniciao e socializao, uma gramaticalidade
simblica devidamente ajustada aos princpios exigidos pela
modernidade contempornea.
A despeito dessas disputas simblicas e do continuum que
varia desde a caserna at rua, no haveria propriamente um
dilema, mas um processo geracional que, devidamente institucionalizado, pode fornecer solues que no apontem para
o descarte, mas para a incluso de fato, se o pato for aceito
como um todo nessa lgica conciliatria. Talvez, nessa reflexo
residam alternativas para esse aparente dilema institucional
do pato: ou ele permanece o patinho feio com todos os
complexos que sua ambiguidade lhe suscita, ou encontra nessa
prpria ambiguidade o propsito que o transforme no belo cisne
do final da fbula.

257

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266

Anexo

Anexo I

Anexo II
Cano do policial militar
Letra: Coronel PM Jorge Ismael Ferreira Horsae Arranjo:
Subtenente PM Msico Mrio Jos da Silva

Em cada momento vivido uma verdade vamos encontrar Em cada fato esquecido uma certeza nos far
lembrar Em cada minuto passado mais um caminho
que se descobriu Em cada soldado tombado Mais um
sol que nasce no cu do Brasil
Aqui ns todos aprendemos a viver demonstrando
valor, pois o nosso ideal algo que nem todos podem
entender na luta contra o mal!
Ser Policial , sobretudo, uma razo de ser , enfrentar
a morte, mostrar-se um forte no que acontecer
Em cada pessoa encontrada mais um amigo para
defender Em cada ao realizada um corao pronto
a agradecer Em cada ideal alcanado uma esperana
para outras misses Em cada exemplo deixado mais
um gesto inscrito em nossas tradies
Em cada instante da vida nossa polcia Militar ser
sempre enaltecida em sua glria secular ! Em cada
recanto do Estado deste amado Rio de Janeiro, faremos ouvir nosso brado, o grito eterno de um bravo
guerreiro !
Ser Policial , sobretudo, uma razo de ser , enfrentar
a morte, mostrar-se um forte no que acontecer.

269

Anexo III

270

Anexo IV

271

Anexo V

BRASO DA PMERJ

272

Anexo VI
CAPTULO III DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA
Art. 12 - A hierarquia e a disciplina so a base institucional
da Polcia Militar. A autoridade e a responsabilidade crescem
com o grau hierrquico.
1 - A hierarquia policial-militar a ordenao da autoridade
em nveis diferentes, dentro da estrutura da Polcia Militar. A
ordenao se faz por postos ou graduaes; dentro de uma mesmo posto ou de uma mesma graduao se faz pela antiguidade
no posto ou na graduao. O respeito hierarquia consubstanciado no esprito de acatamento sequncia de autoridade.
2 - Disciplina a rigorosa observncia e o acatamento integral
das leis, regulamentos, normas e disposies que fundamentam
o organismo policial-militar e coordenam seu funcionamento
regular e harmnico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento
do dever por parte de todos e de cada um dos componentes
desse organismo.
3 - A disciplina e o respeito hierarquia devem ser mantidos
em todas as circunstncias da vida, entre policiais-militares da
ativa, da reserva remunerada e reformados.
Art. 13 - Crculos hierrquicos so mbitos de convivncia
entre os policiais-militares da mesma categoria e tm a finalidade de desenvolver o esprito de camaradagem em ambiente
de estima e confiana, sem prejuzo do respeito mtuo.
Art. 14 - Os crculos hierrquicos e a escala hierrquica na
Polcia Militar so fixados no Quadro e pargrafo seguintes:

273

CRCULO DE OFICIAIS
Superiores

POSTOS
Coronel PM
tenente-Coronel PM
Major PM

Intermedirios

Capito PM

Subalternos

Primeiro-tenente PM
Segundo-tenente PM

CRCULO DE PRAAS

GRADUAES

Subtenentes e Sargentos

Subtenente PM
Primeiro-Sargento PM
Segundo-Sargento PM
Terceiro-Sargento PM

Cabos e Soldados

Cabo
Soldado

PRAAS ESPECIAIS
Frequentam o Crculo de Oficiais
Subalternos

Aspirante-a-Oficial

Excepcionalmente ou em reunies sociais


tm acesso ao crculo de Oficiais

Aluno-Oficial PM

1 - Posto o grau hierrquico do oficial, conferido por ato do


Governador do Estado e confirmado em Carta Patente.
2 - Graduao o grau hierrquico da praa, conferido pelo
Comandante Geral da Polcia Militar.
3 - Os Aspirantes-a-Oficial PM e os Alunos-Oficiais PM so
denominados praas especiais.

274

Anexo VII
Brados das Companhias do CFO/2003
3 ano, do CFO/2003
Sem medo da morte nossa turma vibrao
Estamos sempre prontos a cumprir qualquer misso
Com fria, com raa e determinao
Somos imprio mpar o melhor da ralao

2 ano, do CFO/2003
raa, fibra, determinao
Ocupa o espao defende o cidado
Um rolo compressor estremece a Academia
Ns somos turma par, somos a Soberania

1 ano, do CFO/2003
Rugindo pelo cu ecoa um trovo
Ombreando fogo, ao, coragem e ao
Altivez e valentia, heris da tradio
Guarnecendo o Estado cumprimos a misso

Anexo VIII
Obrigao de Participar Fato Contrrio Disciplina
Art 11 - Todo Policial Militar que tiver conhecimento
de fato contrrio disciplina, dever participar ao seu
Chefe Imediato, por escrito ou verbalmente. Neste ltimo
caso, deve confirmar a participao, por escrito, no prazo
mximo de 48 horas:
1- A parte de que trata este artigo deve ser clara, concisa e precisa, conter os dados capazes de identificar
as pessoas e coisas envolvidas, o local a data e hora da

275

ocorrncia e caracterizar as circunstncias do fato, sem


tecer comentrios ou opinies pessoais.
2- Quando, para a preservao da disciplina e do
decoro da Corporao, a ocorrncia exigir uma pronta
interveno do Policial Militar de maior antiguidade que
presenciar ou tiver conhecimento do fato, mesmo sem
que possua ascendncia funcional sobre o transgressor,
dever tomar imediatas e
enrgicas providncias, podendo, se for o caso, prende-lo
em nome da autoridade competente, qual, pelo meio
mais rpido, dar cincia da ocorrncia e das providncias em seu nome tomadas.
3- Nos casos de participao de ocorrncia com Policial
Militar de OPM diversa daquela a que pertence o signatrio da parte, ser este direta ou indiretamente notificado
da soluo dada, no prazo
mximo de 6 ( seis ) dias teis. Expirando este prazo,
deve o signatrio da parte, comunicar a citada ocorrncia
autoridade a que estiver subordinado.
4- A autoridade a quem a parte disciplinar dirigida
deve dar soluo no prazo mximo de quatro dias teis,
podendo, se necessrio, ouvir as pessoas envolvidas,
obedecidas as dema is prescries regulamentares. Na
impossibilidade de solucion-la nesse prazo, o motivo
dever ser publicado em boletim e, desse modo, o prazo
poder ser prorrogado por at 20 ( vinte ) dias.
5- A autoridade que receber a parte, no sendo competente para solucion-la, deve encaminh-la a seu superior
imediato.

276

COLEO ANTROPOLOGIA E CINCIA POLTICA


1. Os fornecedores de cana e o Estado
intervencionista
Delma Pessanha Neves
2. Devastao e preservao ambiental
no Rio de Janeiro
Jos Augusto Drummond
3. A predao do social
Ari de Abreu e Silva
4. Assentamento rural: reforma agrria
em migalhas Delma Pessanha Neves
5. A antropologia da academia: quando
os ndios somos ns
Roberto Kant de Lima
6. Jogo de corpo Simoni Lahud Guedes
7. A qualidade de vida no Estado do Rio
de Janeiro
Alberto Carlos Almeida
8. Pescadores de Itaipu
Roberto Kant de Lima
9. Sendas da transio
Sylvia Frana Schiavo
10. O pastor peregrino
Arno Vogel
11. Presidencialismo, parlamentarismo e
crise poltica no Brasil
Alberto Carlos Almeida
12. Um abrao para todos os amigos: algumas consideraes sobre o trfico de
drogas no Rio de Janeiro
Antnio Carlos Rafael Barbosa
13. Antropologia - escritos exumados 1: espaos circunscritos tempos
soltos
L. de Castro Faria
14. Violncia e racismo no Rio de Janeiro
Jorge da Silva
15. Novela e sociedade no Brasil
Laura Graziela Figueiredo F. Gomes
16. O Brasil no campo de futebol: estudos
antropolgicos sobre os significados
do futebol brasileiro
Simoni Lahud Guedes
17. Modernidade e tradio: construo
da identidade social dos pescadores
de Arraial do Cabo (RJ)
Rosyan Campos de Caldas Britto

18. As redes do suor a reproduo social dos trabalhadores da pesca em


Jurujuba
Luiz Fernando Dias Duarte
19. Escritos exumados 2: dimenses do
conhecimento antropolgico
L. de Castro Faria
20. Seringueiros da Amaznia: dramas
sociais e o olhar antropolgico
Eliane Cantarino ODwyer
21. Prticas acadmicas e o ensino universitrio
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
22. Dom, Iluminados e Figures:
um estudo sobre a representao da
oratria no tribunal do Jri do Rio
de Janeiro
Alessandra de Andrade Rinaldi
23. Angra I e a melancolia de uma era
Glucia Oliveira da Silva
24. Mudana ideolgica para a qualidade
Miguel Pedro Alves Cardoso
25. Trabalho e residncia: estudo das
ocupaes de empregada domstica
e empregado de edifcio a partir de
migrantes nordestinos
Fernando Cordeiro Barbosa
26. Um percurso da pintura: a produo
de identidades de artista
Lgia Dabul
27. A Sociologia de Talcott Parsons
Jos Maurcio Domingues
28. Da anchova ao salrio mnimo: uma etnografia sobre injunes de mudana
social em Arraial do Cabo/RJ
Simone Moutinho Prado
29. Centrais sindicais e sindicatos no
Brasil dos anos 90: o caso Niteri
Fernando Costa
30. Antropologia e direitos humanos
Regina Reyes Novaes e Roberto Kant
de Lima
31. Os companheiros trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu/RJ
Elina Gonalves da Fonte Pessanha
32. Festa do Rosrio: iconografia e potica de um rito
Patrcia de Arajo Brando Couto
33. Antropologia e direitos humanos 2
Roberto Kant de Lima

277

34. Em tempo de conciliao


Angela Moreira-Leite
35. Floresta de Smbolos aspectos do
ritual Ndembu
Victor Tuner
36. A produo da verdade nas prticas
judicirias criminais brasileiras:
uma perspectiva antropolgica de
um processo criminal
Luiz Figueira
37. Ser polcia, ser militar: o curso de
formao na socializao do policial
militar
38. Antropologia e Direitos Humanos 3
(Prmio ABA/FORD)
Roberto Kant de Lima (Organizador)
39. Os caminhos do leo: uma etnografia
do processo de cobrana do imposto
de renda
Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto
40. Antropologia escritos exumados 3
Lies de um praticante
Luiz de Castro Faria
41. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva social
Arjun Appadurai
42. Dramas, campos e metforas: ao
simblica na sociedade humana
Victor Turner
43. Polticas Pblicas de Segurana, Informao e Anlise Criminal
Ana Paula Mendes de Miranda e Lana
Lage da Gama Lima (Orgs.)
44. O caminho do mundo mobilidade
espacial e condio camponesa numa
regio da Amaznia Oriental
Gil Almeida Felix
45. Polticas Pblicas de Segurana e Prticas Policiais no Brasil v. 2
Lenin Pires e Lucia Eilbaum (Orgs.)
46. Notcias da violncia urbana um
estudo antropolgico
Elthon Mrcio Almeida da Silva
47. Polticas Pblicas de Segurana
Prticas Punitivas, Sistema Prisional
e Justia V. 3
Ana Paula Mendes de Miranda e Fbio
Reis Mota (Orgs.)

48. Cosmologias polticas do neocolo


nialismo: como uma poltica pblica
pode se transformar em uma poltica
do ressentimento
Ronaldo Lobo
49. Antropologia da academia: quando os
ndios somos ns (3 ed.)
Roberto Kant de Lima
50. Esculhamba mas no esculacha: uma
etnografia dos usos urbanos dos
trens da Central do Brasil
Lenin Pires
51. Arenas pblicas: por uma etnografia
da vida associativa
Daniel Cefa, Marcos Antonio da Silva
Mello, Fbio Reis Mota e Felipe Berocan Veiga (Organizadores)

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PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL


Ttulo conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)
aps a implementao de um Programa Socioambiental
com vistas ecoeficincia e ao plantio de rvores referentes
neutralizao das emisses dos GEE's Gases do Efeito Estufa.

Este livro foi composto na fonte ITC Century Std, corpo 11.
Impresso na Grfica Editora Stamppa,
em Papel Poln Soft 80g (miolo) e Carto Supremo 250 gramas (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edio foi impressa em outubro de 2011.

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