Tolstói - A Biografia - Rosamund Bartlett
Tolstói - A Biografia - Rosamund Bartlett
Tolstói - A Biografia - Rosamund Bartlett
Cronologia
Introduo
de 1870, ele comeou a ver a luz, e sua jornada espiritual ganhou a forma de um
livro de grande flego chamado Confisso. O escritor empreendeu tambm uma
investigao crtica da teologia ortodoxa russa e realizou uma nova e
aperfeioada traduo dos quatro Evangelhos. Ao longo da dcada de 1880,
Tolsti tornou-se um apstolo da doutrina crist que resultou de sua reviso
profunda e completa das fontes originais; ao mesmo tempo, sua f recmdescoberta o incitava a se manifestar contra a imoralidade que ele agora via em
todas as instituies estatais, da monarquia para baixo. A vida domstica de
Tolsti agora ficara bastante tensa, particularmente depois que ele renunciou aos
direitos autorais de todos os seus textos novos e distribuiu entre a famlia todas
as suas propriedades. Entre as diversas seitas no oficiais que proliferavam por
toda a Rssia, e cujos seguidores eram em sua maioria camponeses, Tolsti
encontrou espritos afins ao seu e, gradualmente, tornou-se ele prprio o lder de
uma nova seita, cujos seguidores, contudo, eram em sua maioria gente como o
prprio Tolsti: membros da pequena nobreza com peso na conscincia. Esses
tolstostas s vezes competiam entre si para ver quem levava a vida
moralmente mais pura, abrindo mo de dinheiro e propriedades, ganhando o po
com o suor do prprio rosto e tratando todas as pessoas como irmos. Foi
assim que, em certo vero, um tolstosta mais fervoroso chegou a abrir mo de
sua tnica, chapu e sapatos de palha, feliz por no ser mais escravo de seus bens
materiais.
No final da dcada de 1890, Tolsti j era o homem mais famoso da Rssia,
celebrado por diversos tratados e panfletos escritos em tom contundente e
explosivo que formulavam suas ideias e opinies sobre o cristianismo, a Igreja
Ortodoxa e o governo russo, textos que eram lidos com avidez ainda maior
justamente por terem sido censurados e proibidos: circulavam largamente no
esquema de samizdat.[2] Foi quando Tolsti encabeou uma campanha de ajuda
humanitria, durante a grande fome de 1892, que sua posio como a maior
autoridade moral russa tornou-se incontestvel. O resultado foi o afluxo
constante de uma multido de visitantes diante de sua porta em Moscou, muitos
deles querendo simplesmente apertar sua mo. Entre eles, estava um jovem de 23
anos, Sierguii Diaghilev, que um dia apareceu com caracterstica afronta,
acompanhado de seu primo e imediatamente notou a incongruncia entre os
trajes camponeses de Tolsti e suas maneiras cavalheirescas de falar e de se
portar. Tolsti tinha ido para casa descansar alguns dias, depois de um perodo
entender a si mesmo em sua escrita, fosse por meio da esfera pblica de seus
personagens ficcionais, fosse na esfera semiprivada das anotaes em seus
dirios. De fato, como sugeriu a estudiosa Irina Paperno, ele parece ter desejado
amplificar a extraordinria faanha levada a cabo em sua fico a de articular
processos latentes e ostensivamente psicolgicos ao se transformar em livro
em seus dirios. Se a tentativa de abarcar e descrever a evoluo de sua
conscincia era um projeto fadado ao fracasso, como tantos sonhos utpicos
russos, a prpria infinitude da empreitada , todavia, uma reafirmao da
humanidade de Tolsti.
A tarefa de mapear a jornada artstica e intelectual de Tolsti se mostrou um
empreendimento colossal tambm para os maiores especialistas russos no autor
de Anna Karinina. sintomtico que o portentoso catatau biogrfico de vrios
volumes que seu antigo secretrio Nikolai Gusev iniciou na dcada de 1950 seja
modestamente intitulado Materials for a Biography [Subsdios para uma biografia].
Gusev morreu aos 85 anos de idade, em 1967, sem concluir a obra, e sua pupila
Ldia Gromova-Opulskaia assumiu o basto. Embora tenha acrescentado dois
volumes aos quatro de Gusev, ela tambm morreu antes de completar a
empreitada, deixando ainda por escrever os ltimos dezoito anos de vida de
Tolsti (antes de falecer em 2003, a eminente acadmica lanou a edio
definitiva da obra completa reunida de Tolsti, em cem volumes). Embora sejam
escassas as fontes sobre os primeiros anos de vida de Tolsti, o que
eventualmente obriga o pesquisador a confiar nas memrias por vezes errticas e
incompletas do escritor, compiladas j na velhice, a abundncia de fontes acerca
dos ltimos anos cria problemas de outra ordem para o bigrafo. A fama de
Tolsti era to grande que muitos episdios de sua hagiografia foram
registrados e estabelecidos no somente enquanto ele ainda estava vivo, mas
relativamente jovem: a primeira biografia foi publicada em alemo quando
Tolsti tinha pouco mais de sessenta anos. Os inumerveis clichs atrelados
vita de Tolsti o grande escritor da terra Russa, o Ancio de Isnaia
Poliana tambm podem intimidar o pesquisador, bem como as muitas
contradies com que se debatia sua personalidade. A vida de Tolsti rica e
fascinante, mas tambm profundamente mitificada, inclusive por ele mesmo.
Nos primeiros anos de casamento, enquanto estava escrevendo Guerra e paz,
Tolsti insistia em ter sua jovem esposa por perto, e por isso Snia
invariavelmente se enrodilhava aos ps do marido no tapete de pele de urso
um trofu de caa junto sua mesa de trabalho. Mais tarde, ele passou a
trabalhar em recluso, mas, ao longo dos muitos anos em que foram marido e
mulher, os Tolsti liam os dirios um do outro, o que significa que suas
confisses jamais podiam ser realmente privadas. No caso de Snia, foi nas cartas
que escreveu irm Tnia que se expressou de forma mais sincera e espontnea;
a escrita de seu dirio era marcadamente insegura e artificial. J para Tolsti,
sempre ligado de maneira profunda sua terra e aos que nela trabalhavam, havia
desde o incio aquela nsia bastante russa de unidade, at o ponto em que as
fronteiras entre o pblico e o privado por fim se embaralhavam. Tolsti levou
uma vida russa.
A extraordinria beleza da primavera no campo este ano despertaria os mortos. A clida brisa noturna fazendo as folhas
jovens farfalhar nas rvores, o luar e as sombras, os rouxinis voando acima, abaixo, ao longe e mo, os sapos a distncia,
o silncio e o ar perfumado e aromtico tudo isso acontecendo de sbito, no hora habitual, muito estranho e bom.
Ainda h, pela manh, a brincadeira de luz e sombras na grama alta e j verde-escura junto s btulas na avenida, bem
como os miostis e as espessas urtigas, e tudo em especial o balano das btulas na avenida exatamente igual ao que
era no momento em que reparei pela primeira vez e comecei a amar essa beleza, sessenta anos atrs.
Carta a Sfia Tolstia, Isnaia Poliana, 3 de maio de 1897
anos de idade e j av, tinha demonstrado suficiente lealdade para ser enviado
pelo tsar Pedro para a Itlia com o propsito de estudar navegao e construo
naval, juntamente com muitos filhos de famlias nobres. Um deles era seu quase
contemporneo Bris Pietrvitch Cheremetev, que ocupava posio social
bastante superior e viajava com uma enorme comitiva, incluindo um escriba.
Piotr Tolsti, em contraste, estava acompanhado apenas de um soldado e um
servo e escrevia seu prprio dirio, o que propicia um relato bem mais
interessante e informativo da vida italiana vista por olhos russos.
Durante o perodo de um ano e quatro meses que passou longe de casa, Piotr
Andrievitch percorreu a Itlia de cabo a rabo, de Veneza a Bari, e pde estudar
com algum detalhe a vida e os costumes sociais italianos. Uma vez que viera da
Divina Me Moscou, onde a cultura secular era escassa, no surpreende que em
boa parte do seu dirio as atenes sejam voltadas para a Igreja. Entretanto, Piotr
Andrievitch retornou a Moscou erudito e sem barba, e a viso de um cristo
ortodoxo russo imberbe provavelmente deve ter chocado muitos de seus
contemporneos (a fundao de So Petersburgo ainda demoraria alguns anos).
Piotr Tolsti foi um dos primeiros russos a usar roupas ocidentais nos ltimos
anos da velha Moscvia. Anos antes de Pedro, o Grande, dar incio importao
por atacado da cultura ocidental, ele ostentava um impressionante conhecimento
das letras europeias, bem como maneiras requintadas e afetadas.
Em 1701, vendo em Piotr Andrievitch um brilhante potencial diplomtico,
Pedro nomeou-o o primeiro embaixador russo em Constantinopla. Era tarefa das
mais difceis ter a esperana de melhorar as relaes com a Sublime Porta , como
era conhecido o governo otomano, e que somente no reinado de Pedro, o
Grande, tinha travado trs guerras contra a Rssia. Piotr Tolsti passou os
ltimos anos de sua misso diplomtica definhando na Fortaleza Iiedikule (Sete
Torres) a masmorra onde os embaixadores cujos pases estavam em guerra
com o Imprio Otomano eram tradicionalmente encarcerados. Mas Tolsti era
um homem inquieto, que tinha a necessidade constante de se dedicar a alguma
tarefa. Antes ou depois de o sulto Ahmed ii declarar guerra em 1710, ele
recorreu a seus conhecimentos de latim, que tinha adquirido em sua temporada
italiana, para produzir a primeira traduo para o russo das Metamorfoses de
Ovdio.
Quando Piotr Tolsti retornou Rssia em 1714, Pedro, o Grande, tinha no
apenas fundado So Petersburgo, mas fizera da cidade a nova capital. Tolsti
tornasse um mrtir. Certa vez, Alexandre iii fez um comentrio que ficou famoso:
Tolsti quer que eu o mande para o exlio em Solovki, mas no vou dar a ele
tamanha publicidade. Depois da Revoluo de 1917, Solovki tornou-se um dos
mais famigerados campos de concentrao da Unio Sovitica, e irnico que
alguns dos seguidores de Tolsti l tenham ido parar em 1930 simplesmente por
se recusarem a abrir mo de suas crenas sobre a no resistncia violncia e a
abolio da propriedade privada.
Em seu longevo casamento com Sfia Andrievna Berhs, o autor de Guerra e
paz teve quatorze filhos, mas Liev Nikolievitch no foi o primeiro Tolsti a
gerar uma prole to numerosa. Ivan, o filho mais velho de Piotr Andrievitch,
teve cinco filhos e cinco filhas antes de morrer, em 1728, na priso de Solovetski
aos 43 anos de idade; seu segundo filho foi Andrei Ivnovitch (1721-1803),
bisav de Tolsti, do qual no se sabe muita coisa alm do fato de ter sido
apelidado Ninho Grande por ter tido 23 filhos, dos quais doze no atingiram a
maioridade. Uma tia de Tolsti contou-lhe que Andrei Ivnovitch se casara to
jovem que uma vez irrompeu em lgrimas quando sua igualmente jovem esposa
Alexandra saiu noite para ir a um baile sem se despedir dele.
Em 1741, Isabel, a filha de Catarina i, finalmente tornou-se imperatriz, como
Piotr tinha esperado, e em determinado momento de seu reinado ela devolveu
uma das propriedades da famlia Tolsti viva de Ivan Pietrvitch. Em 1760,
as demais propriedades e o ttulo de Piotr Andrievitch foram por fim restitudos.
Nesse perodo, teria sido criado o braso da famlia Tolsti, um escudo
sustentado por dois ces borzis, que significa lealdade e rapidez. O escudo,
dividido em sete segmentos, traz no centro uma espada dourada e uma flecha
prateada atravessando uma chave dourada, smbolo da longa histria da famlia.
No canto superior esquerdo aparece a metade da guia imperial russa, e a seu
lado, sobre um fundo prateado, uma cruz de santo Andr, com que Piotr fora
agraciado em 1722. Na extremidade inferior direita, as sete torres encimadas por
luas em quarto crescente relembram o encarceramento de Piotr Andrievitch na
Fortaleza Iedikule em Constantinopla e seu papel na vitria russa contra os
turcos.
Andrei Ivnovitch Tolsti, que se tornou conde aos 39 anos de idade, era um
leal servidor do Estado e tambm um homem bastante astuto em assuntos fiscais,
pois quando morreu, em 1803, a fortuna da famlia tinha comeado a prosperar.
Entretanto, por fora dos modos devassos e libertinos do av de Tolsti, Ilia
algumas das famlias mais importantes da Europa Ocidental. Por ser um Tolsti,
ostentava a condio de conde, mas esse era um ttulo importado da Alemanha
por Pedro, o Grande, como parte de seu programa de europeizao. Ademais,
esses ttulos, que eram uma recompensa por servios prestados, mantinham seus
nomes alemes, Graf e Baron. Por causa da tradio russa segundo a qual todos os
filhos, e no apenas os primognitos, herdavam o ttulo da famlia, em pouco
tempo centenas de condes e bares se misturavam aos prncipes e princesas da
velha Rssia.
As origens familiares da me de Tolsti, a princesa Mria Volkonskaia,
remontam pelo menos ao sculo xiii, quando um de seus ancestrais mais remotos
esteve envolvido em altercaes com senhores mongis do velho Rus. Um sculo
depois, a famlia adotou o sobrenome Volkonski, por causa do rio Volkona, na
rea prxima a Kaluga e Tula, onde tinham terras. Em 1763, quando deu baixa
no exrcito, o bisav materno de Tolsti, o major Sierguii Volkonski, comprou
uma parte de Isnaia Poliana, ao sul de Tula. Mais tarde, comprou as partes de
outros cinco proprietrios. Isnaia Poliana, que significa clara clareira ou
clareira lmpida, recebeu este nome por uma razo bastante especfica. No
sculo xvi, quando o Estado moscovita precisou rechaar ataques de invasores
nmades como os trtaros da Crimeia, beneficiou-se de uma srie de fortificaes
naturais ao longo de sua fronteira meridional, na forma de florestas e rios. As
reas vulnerveis da fronteira ganharam o reforo de rvores cortadas de modo a
formar uma slida barricada, conhecida como zaseka. A Kozlova Zaseka
(homenagem a um lder militar chamado Kozlov) se estendia por milhares de
quilmetros, com clareiras em vrios pontos, onde ficavam os portes e estradas
de acesso. Isnaia Poliana ficava em uma dessas clareiras. Originalmente, Isnaia
Poliana era chamada de Yasennaya Polyana, por causa dos freixos ( yaseni) ali
plantados.
O av materno de Tolsti, Nikolai Sergueievitch Volkonski (1753-1821)
herdou Iasnia Poliana em 1784; em 1799, ao se aposentar do exrcito, foi o
responsvel por transformar a propriedade, originalmente um pedao de terra
bastante comum, em uma bela fazenda de esmeradas paisagens, com lagos,
jardins, veredas e uma imponente manso senhorial. Nikolai Volkonski havia
sido capito da guarda do squito de Catarina, a Grande, quando ela se encontrou
com o imperador Jos ii em Moguilev em 1780, e lutou nas duas bem-sucedidas
guerras russo-turcas durante o reinado da monarca. Depois de atuar por um breve
O incio do sculo xix marcou a era de ouro das propriedades rurais russas, e
Nikolai Volkonski no foi o nico a colocar em prtica o desejo de se afastar do
mundo oficial associado a So Petersburgo e corte e de voltar para a natureza.
Os aristocratas russos vinham redescobrindo suas razes desde a dcada de 1760,
quando a nobreza comeou a progressivamente se libertar do servio pblico
compulsrio que Pedro, o Grande, tinha introduzido a fim de levar a cabo seu
ambicioso programa de reforma e europeizao. Com vastas pores de terras
agora em mos privadas, casas senhoriais comearam a surgir por toda a rea
rural da Rssia algumas eram imponentes manses clssicas, outras,
edificaes mais modestas, de madeira; a casa em que Tolsti nasceu ficava entre
um e outro tipo. Isnaia Poliana no era exatamente uma tabula rasa quando
Nikolai Volkonski l fixou residncia permanente. No incio do sculo xviii,
guiados pela moda das linhas retas e da preciso geomtrica ento em voga que
caracterizavam a nova cidade de So Petersburgo, os donos anteriores tinham
estabelecido a parte principal da propriedade em sua extremidade leste, e haviam
construdo duas fileiras de residncias de madeira e um jardim formal com
limoeiros. Mandaram abrir tambm uma comprida aleia em linha reta que ia da
casa principal entrada da propriedade, prxima estrada principal para Tula.
Volkonski tinha planos grandiosos para Isnaia Poliana, mas primeiro
precisava encontrar um arquiteto, e o trabalho mais importante de construo s
teve incio aps 1810. Ele decidiu que a casa principal devia ficar no ponto mais
elevado da propriedade, voltada para o sudeste, e seria flanqueada por duas alas
idnticas de dois andares, cada uma contendo dez cmodos. As alas foram
construdas primeiro e estavam ligadas casa principal por deques de madeira.
Volkonski s conseguiu concluir o primeiro andar da manso senhorial. O
segundo andar, construdo com madeira para poupar gastos, foi acrescentado pelo
pai de Tolsti em 1824. Era uma casa ao estilo imperial to apreciado na Rssia
no incio do sculo xix, com 32 quartos e a fachada ornada por um prtico
central de oito colunas.
Com o tempo, outros dezenove prdios foram erguidos no terreno, alguns de
alvenaria, caso do depsito de gelo e do celeiro, mas a maior parte de madeira. As
novas construes somaram-se a uma edificao de propores clssicas j
existente e que tinha sido usada para abrigar uma pequena fbrica de tapetes.
Mais tarde, essa parte serviu de acomodao dos servos da famlia e ficou
conhecida como Casa Volkonski. Nikolai Sergueievitch se manteve ocupado.
Alm da casa principal, ergueu estbulos, uma cocheira, mais acomodaes para
os servos, uma casa de banhos e um quiosque. Construiu tambm dois laranjais,
ligados por uma galeria, onde cultivava frutas exticas como meles e pssegos.
Essa galeria (destruda por um incndio em 1867) era o refgio favorito de
Tolsti na infncia. A julgar por uma passagem evocativa de um de seus
primeiros livros, Juventude, nas noites de vero ele gostava de dormir na galeria, de
onde podia ver as luzes da casa principal se apagando lentamente, ouvir os sons
noturnos e sentir-se parte da natureza.
Aparentemente, Nikolai Sergueievitch tinha um senso esttico bastante
refinado. Em suas memrias, Tolsti registra que aquilo que o av tinha
construdo era no apenas slido e confortvel, mas extremamente elegante.
Volkonski tambm empregou seu bom gosto e discernimento no projeto
paisagstico da propriedade. Em primeiro lugar, cercou de valados todo o
permetro, depois instalou portes de ferro na entrada principal, posicionada
entre duas grandes torres brancas arredondadas. As torres eram ocas, para que os
vigias pudessem se abrigar dentro delas quando o rigor do clima exigisse. Naquela
poca, como agora, os portes se abriam para uma aleia bordejada por btulas,
que se estende at a manso e suficientemente larga para ser percorrida por uma
troika[4] ou um coche de quatro cavalos. Era a famosa Preshpekt, e uma
entrada similar mencionada em Guerra e paz na descrio da propriedade dos
Bolkonski, que tem muitas semelhanas com Isnaia Poliana.
Volkonski colocou um gramado defronte casa principal, que delimitou por
duas trilhas paralelas aleia principal, com limoeiros podados em estilo francs.
As veredas transversais que o atravessam em forma de estrela, no dizer de
Tolsti criaram as formas de cunhas que deram ao parque seu nome. Em
pouco tempo, o canto dos rouxinis e papa-figos que gostavam de se apinhar nos
galhos das frondosas rvores plantadas no parque foi amplificado pela msica
tocada pelos servos de Volkonski, especialmente treinados para essa finalidade.
De acordo com Tolsti, Volkonski desprezava a caa, mas amava as plantas, as
flores e a msica e mantinha uma pequena orquestra para sua diverso e a da
filha. As ambies artsticas de Volkonski eram bastante modestas se comparadas
s do prncipe Sheremetev, que mantinha uma companhia de cantores,
danarinos e msicos e encenava representaes teatrais das ltimas novidades
da pera francesa, ou s do prncipe Narichkin, que tinha servos em nmero
suficiente para formar uma banda de sopro de quarenta integrantes em que cada
um tocava apenas uma nota. Contudo, entre os proprietrios de terras russos era
prtica comum educar os servos mais talentosos para que tocassem para eles. Um
dia, muito tempo depois da morte do av, Tolsti encontrou no bosque bancos
de madeira e suportes para partituras dispostos em volta de um enorme elmo: era
ali que Volkonski gostava de caminhar de manhzinha com o acompanhamento
de msica en plein air. Assim que ele saa do bosque, a orquestra silenciava e os
servos-msicos retomavam suas atividades cotidianas, como o cultivo do jardim
ou a alimentao dos porcos. Nas primeiras verses de Guerra e paz, Tolsti
descreve oito servos, usando perucas e rodeados de lilases e rosas, afinando seus
instrumentos s sete da manh, prontos para inundar o ambiente com uma
sinfonia de Haydn assim que recebessem a notcia de que seu senhor havia
acordado.
Conforme o sculo xix avanava, a paixo dos aristocratas russos pela
regularidade dos jardins formais ao estilo Lus xiv foi sendo sobrepujada por um
entusiasmo pelo paisagismo ingls, mais natural. Nikolai Sergueievitch
compartilhava esse entusiasmo. Seu projeto seguinte foi criar um parque ingls
bem mais selvagem, na superfcie em declive da parte inferior da propriedade,
junto s torres da entrada. Volkonski criou tambm uma cascata de lagos, em
cujas margens foram plantadas roseiras. Tolsti gostava de caminhar nessa parte
de Isnaia Poliana porque era ali que sua me mais gostava de passar seu tempo.
Foi em memria dela que em 1898 ele restaurou o pequeno gazebo sobre estacas,
de onde ela costumava olhar o movimento da estrada. Mais tarde, era ali que se
sentava para esperar o retorno do marido. A prpria Mria Volkonskaia plantou
os lamos prateados na margem do Lago do Meio, e os arbustos e abetos mais
abaixo. Do outro lado das torres de entrada ficava o Lago Grande, metade do
qual era tradicionalmente cedida para uso dos camponeses locais.
Em Isnaia Poliana faltava um elemento tradicional da paisagem tpica das
propriedades rurais russas: uma igreja. Possivelmente isso se explica pelo fato de
que Nikolai Sergueievitch acreditava que sua famlia podia contar com a igreja
que havia na estrada l perto, e para onde suas cinzas seriam transferidas em
1928. Contudo, estudioso de Voltaire e filho de sua poca, o mais provvel que
ele simplesmente no tinha interesse em construir uma igreja. Isso no o impedia
de ter em sua biblioteca dezenas de livros de teologia, sem mencionar uma edio
em 22 volumes da Bblia, acompanhados de exegese, que dividiam espao nas
prateleiras com nomes como Virglio, Racine, Montaigne, Rousseau, Homero e
Plutarco, para mencionar apenas alguns dos autores coligidos por Nikolai
Sergueievitch. Tambm havia muitos livros que ele comprava para a educao de
sua filha.
A propriedade rural russa era muitas coisas base familiar, arena de
apresentaes artsticas, refgio campestre , mas tambm um centro de
produo agrcola. Como tal, reforou os aspectos patriarcais que impediam a
modernizao do pas, uma vez que o idlio buclico s era possvel graas aos
camponeses que mantinham o funcionamento da propriedade. Em termos de
riqueza de recursos humanos, ou seja, servos, Volkonski era um aristocrata de
posio mediana, pois possua apenas 159 almas em Isnaia Poliana, mas fazia
parte da maioria. Na Rssia do incio do sculo xix, apenas 3% dos quase
novecentos mil membros da nobreza tinham mais de quinhentos servos. Todavia,
tratava-se de mo de obra livre, e os camponeses passavam maus bocados,
particularmente depois de 1762, quando a nobreza foi emancipada e se libertou
da obrigatoriedade do servio pblico. Os servos tiveram de esperar mais cem
anos para serem emancipados, em 1861. At ento no podiam ser donos de suas
prprias terras, no podiam se casar sem a permisso de seu dono, que tinha o
direito de submet-los a castigos corporais ou de mand-los para o exlio na
Sibria.
Havia proprietrios de terras que abusavam de seus poderes ilimitados e
lidavam com seus servos com crueldade inimaginvel. Nikolai Volkonski no era
um deles. Como outros aristocratas do meio rural russo, tratava Isnaia Poliana
como seu reino particular, mas ao que tudo indica era apenas suavemente
desptico. Podia at obrigar seus servos a fazerem as vezes de guardadores de
porcos, mas no os espancava. Pode at ter tido uma sucesso de filhos com sua
serva Alexandra, que depois enviava para o orfanato, mas no mantinha um
harm, como faziam tantos outros aristocratas. A relao de Volkonski com os
servos merece grande destaque nas memrias de Tolsti sobre o av, a quem
claramente idolatrava. Tolsti recorda, por exemplo, como o av construiu boas
acomodaes para os servos, e como fazia questo de garantir que no apenas se
alimentassem e vestissem bem, mas tambm se divertissem. Meu av era tido
como um senhor bastante rigoroso, escreveu Tolsti, baseado em conversas com
alguns dos camponeses mais velhos de Isnaia Poliana, mas jamais ouvi histria
alguma sobre comportamentos ou punies cruis, o que era to comum naquela
poca. Ao mesmo tempo, admitia que de vez em quando o av excedia os
envolventes que nos bailes os amigos preferiam ouvir suas narrativas a danar.
Ela chegou a escrever muitas dessas histrias, bem como poemas, odes e elegias.
Uma das narrativas, incompleta, intitulada A Pamela Russa ou No existem
regras sem excees. Inspirada pelo famoso romance Pamela (1740), de Samuel
Richardson, sobre uma criada cuja virtude recompensada por um casamento
com o filho de seu amante, a verso russa de Mria incorpora uma jovem serva a
quem concedida a liberdade antes de se casar com seu pretendente, o prncipe
Razumin. O personagem de Razumin (cujo nome significa razo) claramente
um retrato mal disfarado do pai. Ele descrito como um homem de mente
brilhante e esprito nobre, que impe regras bastante severas, mas tem um
corao bondoso, generoso e sensvel. um homem que sabe do prprio valor,
exige dos subordinados respeito e obedincia, e dos filhos, altos padres morais.
Considera-se superior aos outros e tem orgulho de seu nascimento em bero
nobre. Retrato semelhante veio tona quando Tolsti sentou-se para descrever o
personagem do velho conde Bolkonski de Guerra e paz, embora haja certas
diferenas fundamentais assim como a princesa Mria Bolkonskaia, Mria
Nikolievna era uma filha dedicada, mas no vivia em estado de discrdia com o
pai, at onde possvel apurar pelos dirios e por outras fontes.
Sabe-se muito pouco sobre a infncia e a adolescncia de Mria, e quase
nada sobre os primeiros anos de sua vida adulta. Quando a filha completou vinte
anos, Nikolai Volkonski levou-a para uma temporada de seis semanas em So
Petersburgo, de modo a apresent-la sociedade. Ela mantinha um dirio em que
registrou suas impresses sobre os tmulos dos Romanov na catedral de So
Pedro e So Paulo, as pinturas de Rafael e Rubens nas galerias do Hermitage e o
bal, mas de resto so escassas as informaes sobre sua vida nesse perodo. Na
capital, os Volkonski hospedaram-se na casa da recm-viva princesa
Varvra Golitsina, de cuja famlia Nikolai Sergueievitch Volkonski ficara
bastante amigo. Houve troca de retratos, e Mria Nikolievna foi prometida em
casamento para um dos dez filhos dos Golitsin, que, contudo, morreu de febre
antes que se realizasse o matrimnio. Tolsti acreditava que a me padecera de
uma profunda sensao de perda com a morte do noivo. (Supostamente o noivo
se chamava Liev, de quem Tolsti teria recebido o nome, mas trata-se de mais
um lenda da famlia, pois no existiu nenhum Liev Golitsin).
O segundo vnculo emocional mais importante da me de Tolsti parece ter
sido com sua aia francesa Louise Henissinne, que viveu em Isnaia Poliana de
Infncia aristocrtica
Embora mal se lembrasse da me, Livin mantinha um verdadeiro culto sagrado da sua memria.
Anna Karinina, Primeira Parte, Captulo 27
Alm da mesa de trabalho, o sof era uma pea permanente da moblia em cada
um dos quatro cmodos que Tolsti usou como estdio em Isnaia Poliana em
diferentes perodos da vida, e o sof tambm aparece em seus romances. Um sof
bastante parecido tirado do estdio do prncipe Andri para o nascimento de
seu filho em Guerra e paz, e, em uma das primeiras verses de Anna Karinina, o
sof tambm mencionado como pea de herana de Livin, com funo
semelhante.
Uma das primeiras lembranas de Tolsti era a de estar firmemente enrolado
em fraldas de pano, ainda beb, incapaz de esticar os braos. Sinto a injustia e
a crueldade, no das pessoas, que sentem pena de mim, mas do destino, e pena
de mim mesmo, escreveu na autobiografia que iniciou aos cinquenta anos de
idade. Ele no podia jurar que essa lembrana a complexidade e as
contradies de seus sentimentos, e no os gritos e o sofrimento no era, na
verdade, um compsito de muitas impresses, mas tinha a convico de que essa
era, de fato, a primeira e mais forte impresso de sua vida. Tolsti tambm
dizia lembrar-se (o que bastante improvvel) de seu corpo minsculo sendo
banhado em uma banheira de madeira por sua ama de leite Avdotia Nikifrovna,
camponesa contratada do vilarejo. Suas lembranas seguintes remontam aos
quatros anos de idade, deitado em um bero ao lado da irm mais nova Mria. A
essa altura sua me j tinha morrido. S nos resta lamentar que Minha vida, ttulo
provisrio desse relato memorialstico, tenha sido abandonado logo aps as
primeiras e intensas pginas de suas recordaes mais remotas. O mesmo
acontece com as memrias que ele iniciou mais de um quarto de sculo depois e
que descreviam sua primeira infncia.
Mria Nikolievna morreu em 1830, depois do nascimento de sua nica
filha, tambm chamada Mria. Estava casada havia oito anos, e tinha levado uma
vida bastante discreta em Isnaia Poliana. A julgar pelo relato de Tolsti em suas
memrias, foi, contudo, uma poca tranquila e feliz. Ela ocupava seus dias
cuidando da famlia e as noites lendo em voz alta para a sogra. O nico membro
da famlia que ela no via muito era o marido, sempre s voltas com infindveis
sesses de tribunal por conta dos desastrosos negcios do pai, e por isso quase
sempre ausente. A situao no era nada fcil para Mria, que passava horas
sentada no gazebo, afastado da propriedade, encarando a estrada enquanto
aguardava o retorno do marido, que por sua vez era obrigado a escrever esposa
cartas assegurando que no a tinha esquecido. Minha doce amiga, ele escreveu
couro em seu estdio, enquanto Nikolai fumava seu cachimbo. Certo dia, Nikolai
ficou particularmente impressionado com o pthos com que seu filho caula lia em
voz alta um poema de Pchkin, Para o mar, que o menino havia decorado. O
poema fora escrito em 1824, quando Pchkin estava regressando do sul da Rssia
aps seu perodo de exlio; quando o menino Tolsti recitou os versos, uma
dcada depois, faltavam poucos anos para o fatdico duelo que mataria o jovem
poeta em 1837. O oceano foi provavelmente o nico elemento que jamais atraiu
Tolsti. Ele passou a maior parte da vida no interior da Rssia, longe da gua
salgada, razo pela qual talvez no tenha se identificado, quando adulto, com os
sentimentos de Pchkin na ltima estrofe do poema, em que o poeta fala de
carregar os rochedos e angras do mar e o som de suas ondas para dentro da
floresta e o ermo silente da Rssia. Porm, como que para compensar, ao longo
da vida Tolsti verteu um oceano de lgrimas salgadas, pois se comovia
facilmente com a msica ou com histrias de sofrimento. A sensibilidade
emocional que o pai notou nele atestava que Tolsti era extremamente suscetvel
ao choro: no foi por outro motivo que um de seus apelidos de infncia era
Liova-Riova Liova, o uivador ou o pequeno Liev, o lamurioso.
Quando menino, Tolsti gostava de ver o pai vestido com elegncia,
envergando sobrecasaca e calas justas e preparando-se para incurses cidade,
mas as lembranas mais ntidas que tinha do pai estavam relacionadas caa.
Nikolai adorava caar com armas de fogo a cavalo, acompanhado de ces e
tinha especial afeio por dois servos, os irmos Petrucha e Matiucha, que via de
regra o acompanhavam. Como muitos de sua classe, Nikolai Tolsti considerava
que a caa s perdia para a guerra como arena para a demonstrao de bravura e
coragem, e por isso desde a mais tenra idade Tolsti e seus irmos tiveram aulas
de caa. Nikolai Ilitch julgava importante que os filhos comeassem a aprender o
quanto antes a ser homens de verdade, e todos eles ganharam pneis. Mesmo
idoso, Tolsti lembrava com prazer de suas caminhadas com o pai pela grama
alta das campinas, enquanto seus adorados filhotes de borzis corriam em volta
deles. O prprio Tolsti acabaria se tornando um caador apaixonado (as cenas
de caa em Guerra e paz esto entre as mais belas e ternas passagens do romance)
e levou bastante tempo para renunciar a uma atividade que claramente se
contrapunha aos princpios morais e religiosos que ele acabou adotando aps sua
crise espiritual. Todavia, jamais abandonaria o lombo dos cavalos, e seu amor por
esses animais pode ser visto tanto no requintado detalhismo com que descreve o
Nikolai Ilitch e os cinco filhos, sua me, as duas irms e a pupila da me,
Pchenka, Fidor Ivnovitch, o tutor dos filhos, e os mais recentes agregados da
casa, Evdokia (Dunechka) Tmiacheva, a sardenta filha ilegtima de um senhor
de terras vizinho, sua amante e serva, e a bab da menina, a alta e idosa
Evpraksia. Quando chegou a Isnaia Poliana, em 1833, Dunechka tinha cinco
anos (a mesma idade de Tolsti) e foi criada com o resto da famlia como parte
dos intrincados arranjos da negociao para a compra de Pirogovo. Mais tarde,
Tolsti a descreveu como uma menina franca e delicada, no muito inteligente e
extremamente chorona, mas que se dava muito bem com toda a famlia.
Em sua primeira infncia, Tolsti jamais ficava sozinho. Entre os adultos
que viviam em Isnaia Poliana, sua av e as duas tias foram figuras importantes
em seus primeiros anos de vida. Pelageia Nikolievna, sua babuchka (vov) tinha
levado uma vida luxuosa, de que no estava disposta a abrir mo, a despeito das
dificuldades financeiras da famlia. Depois de ter sido mimada pelo pai, pelo
marido e por fim pelo filho, ela tornou-se uma velha tirnica e inconstante. Em
deferncia sua idade, todos na casa se desdobravam para agrad-la, e ela no
poupava esforos para atormentar sua criada, Agfia Mikhilovna, que tolerava
os maus-tratos porque sentia orgulho de ser chamada de dama de companhia.
Agfia criou os prprios filhos em Isnaia Poliana e para sempre continuou sendo
uma pessoa muito querida na casa de Tolsti. Em suas memrias o escritor
observa, em tom bem-humorado, que a criada deve ter absorvido um pouco do
temperamento da av, pois com o passar dos anos ela tambm foi ficando cada
vez mais exigente e cheia de caprichos.
Tolsti se lembrava bem da av, que jamais se interessou muito por Mria
Nikolievna nem dela foi muito prxima, por consider-la indigna do filho que
ela idolatrava, mas era bastante afeioada aos netos, que achava muito
divertidos. Tolsti conservou poucas lembranas da av remontando a seus
primeiros anos de vida, mas so imagens bastante ntidas. A primeira lembrana
diz respeito s bolhas de sabo que a av fazia ao se lavar pela manh. Ele e os
irmos achavam a cena to fascinante que s vezes eram levados ao quarto da
av apenas para assistir ao espetculo de suas ablues. Na memria de Tolsti
ficou eternamente impressa a imagem da av usando blusa e saia branca, com os
braos brancos e o rosto branco e brilhante. Ele prprio ganhou o apelido de
Lievka, a Bolha, pois quando menino era bem gordinho.
Tolsti lembrava-se tambm de uma excurso mgica num dia quente, em
que a famlia foi para o bosque colher avels. A av foi transportada num
cabriol puxado no por cavalos, mas pelos servos do pai, Petrucha e Mariucha,
que abaixavam os galhos para que ela pudesse colher as nozes. Mais tarde a
mesma carruagem amarela seria usada para os passeios de vero at a pequena
casa de madeira com venezianas construda por Serguei Volkonski em Grumant,
onde havia uma vista pitoresca: de um lado, o rio Voronka serpenteando entre os
prados; do outro, florestas. Nas imediaes havia um pomar com uma nascente,
fonte de gua fresca usada pela famlia Tolsti; grandes quantidades de gua eram
transportadas diariamente para Isnaia Poliana. Havia tambm uma lagoa funda
repleta de tencas, bremas, carpas, percas e esturjes, onde os meninos e seu tutor
podiam pescar. A babuchka Pelageia Nikolievna, que no sentia grande
entusiasmo pela ideia de se distrair na companhia da vaqueira Matriona e seu
vestido esfarrapado, no se juntava aos netos nessas viagens, mas as crianas
adoravam as tardes que passavam com Matriona, sua filha e as crianas
camponesas, ocasies em que se regalavam com nacos de po preto e de leite
tirado diretamente da vaca. Elas gostavam de se ver cercadas pelas vacas e
galinhas e pelo bando de ces do vilarejo que se reuniam em volta de Bertha, a
setter do tutor.
As lembranas mais intensas que Tolsti guardava da av estavam
relacionadas alegria de passar a noite no quarto da babuchka na companhia de
Liev Stiepanitch, o contador de histrias cego. Na Rssia pr-emancipao,
servos contadores de histrias, que eram negociados pela nobreza como peas de
moblia, eram bastante comuns. Liev tinha sido comprado para Pelageia
Nikolievna por seu falecido marido, e por isso fora trazido para Isnaia Poliana
no seu squito de servos. Ele era totalmente cego, tinha uma memria
excepcional e era capaz de se lembrar de qualquer histria, desde que tivesse sido
lida para ele algumas vezes, palavra por palavra.
Na lembrana de Tolsti, o cego Liev vivia em algum lugar da casa principal,
mas s aparecia noite, quando subia as escadas para o quarto da av e se
preparava para a histria da noite. Usando uma comprida sobrecasaca azul com
mangas bufantes, Liev sentava-se no peitoril baixo da janela, e enquanto
aguardava Pelageia Nikolievna, algum trazia seu jantar. Uma vez que Liev era
cego, a av de Tolsti despia-se na frente dele sem o menor receio e, depois,
junto a algum dos netos, acomodava-se confortavelmente na cama para ouvir a
narrativa da noite. Tolsti lembrava-se com exatido do momento em que a vela
motivada pelo fato de ter crescido com uma tia que praticava os princpios
cristos que ele pregaria. Aline no apenas passava seu tempo rezando, jejuando,
lendo vidas dos santos e visitando mosteiros, mas, como a princesa Mria de
Guerra e paz, buscava a companhia de monges, freiras, peregrinos, mendigos e
loucos santos. Algumas dessas pessoas visitavam Isnaia Poliana, mas outras
virtualmente viviam na propriedade, incluindo Mria Gersimovna, uma louca
santa que passara a juventude peregrinando pela Rssia vestida com roupas de
homem, maneira de Ivan, o Tolo, conhecido personagem dos contos de fadas
russos. Quando a me de Tolsti estava prestes a dar luz pela quinta vez, pediu
a Mria Gersimovna que rezasse para que ela finalmente tivesse uma menina.
Assim que nasceu Macha, irm de Tolsti, Mria Gersimovna tornou-se
madrinha da menina e presena constante na casa da famlia. A f ingnua e
comovente do jardineiro Akim fazia com que os Tolsti o vissem quase como
outro louco santo morando em Isnaia Poliana. As crianas o flagravam rezando
no quiosque entre os dois pomares. Akim conversava em voz alta com Deus,
seu curandeiro, como se a divindade estivesse de p bem sua frente.
Prenunciando o caminho que mais tarde Tolsti trilharia, Aline distribua
sistematicamente seu dinheiro aos pobres, mantinha a mais simples das dietas e
no dava a menor ateno aparncia exterior, a ponto de ficar com o aspecto
extremamente desleixado e desgrenhado; em suas memrias, Tolsti fica
claramente aflito ao ter de comentar sobre o mau cheiro que a tia exalava. Ao
mesmo tempo, recorda a expresso radiante e a gargalhada agradvel de Aline. A
lembrana pueril da tia to generosa com todas as pessoas, de qualquer origem ou
classe social, penetrou fundo na conscincia de Tolsti. Talvez Aline tenha tido
um impacto muito maior no temperamento do sobrinho do que ele prprio
imaginava.
Aline foi uma pessoa importante na vida de Tolsti, mas ele no era to
prximo dela quanto de sua tia Toinette, rf que fora criada pelos avs do
escritor. Tolsti supunha que quando jovem ela devia ter sido bastante atraente,
com sua massa negra de cabelos encaracolados presos com firmeza por uma
grossa fita, olhos de gata e expresso animada. O menino Tolsti jamais parou
para ponderar se ela era bonita ou no, mas simplesmente adorava tudo nela
os olhos, o sorriso, as mos finas, a personalidade acalorada. Toinette falava
francs melhor do que russo, era excelente pianista e, como a tia Aline, tratava
todas as pessoas com bondade, inclusive os servos. De acordo com os textos
Serguievna, mais uma filha ilegtima que fora acolhida por piedade. Como
Pchenka e Dunechka, ela no teve vida fcil, mas os Tolsti fizeram de tudo por
ela, chegando inclusive a tentar (sem sucesso) arranjar seu casamento com Fidor
Ivnovitch, o tutor alemo das crianas. Fidor Ivnovitch foi outra pessoa que
parece ter tido presena constante na infncia de Tolsti. Ele chegou a Isnaia
Poliana no vero de 1829, para tomar conta de Nikolai, ento com seis anos de
idade.
Tutores estrangeiros eram uma obsesso da nobreza russa, particularmente
na primeira metade do sculo xix, antes da abolio do estatuto servil. Os filhos
das famlias aristocrticas no frequentavam escolas, o que de fato era
impraticvel, uma vez que muitas delas viviam em propriedades rurais remotas.
Em vez disso, tutores e governantas estrangeiros eram importados, especialmente
da Frana, Inglaterra e Alemanha, e em seu novo lar ocupavam uma posio
intermediria entre os patres e os criados domsticos, posio por vezes
complicada e incmoda. Era o que acontecia na casa da famlia Tolsti. Fidor
Ivnovitch era o nome russo que os Tolsti deram a Friedrich Rssel quando ele
comeou a trabalhar em Isnaia Poliana. Tolsti no diz muita coisa sobre Fidor
em suas memrias, mas aponta para o fato de que seu retrato do tutor alemo
Karl Ivnovitch em Infncia era bastante fiel ao modelo em foi inspirado (e certa
vez, em uma carta, Tolsti chegou a referir-se a Fidor Ivnovitch como Karl
Ivnovitch). O tutor era um homem bastante decente e bondoso, amado pelas
crianas, a quem era bastante dedicado, mas era um tanto ingnuo e no muito
culto. As crianas aprenderam a falar muito bem o alemo mas com um
perceptvel sotaque saxnio.
bvio que as outras pessoas importantes da vida de Tolsti em seus
primeiros anos de vida eram os criados babs, mordomos, pajens, cozinheiros,
despenseiros, cocheiros , figuras presentes em qualquer casa da nobreza russa
durante os anos da servido. Alguns criados viviam na casa principal, outros nos
arredores da propriedade. O beb Liev ficou aos cuidados primeiro da velha
nuchka, que tinha sido a bab de seu irmo Nikolai. Ele se lembrava de que ela
tinha olhos muito pretos e um nico dente, e as crianas da famlia ficaram ao
mesmo tempo encantadas e apavoradas quando souberam que ela tinha cem anos
de idade. Para Tolsti, a velha Anna Ivnovna e a respeitvel governanta
Praskvia Isievna tinham uma aura especial, por terem trabalhado para seu av,
Nikolai Volkonski. Praskvia Isievna seria imortalizada em Infncia. Mais tarde
o escritor declarou que o retrato era bastante fiel ao modelo que lhe servira de
inspirao.
Pequena e de pele morena, Tatiana Filppovna assumiu o lugar de nuchka e
passou a ser a bab das crianas. Ela retornou a Isnaia Poliana depois de ajudar
a cuidar das filhas da irm de Tolsti e mais tarde ajudou tambm a tomar conta
do primognito do escritor, Serguei. Anos depois ela morreria em Isnaia Poliana,
no mesmo quarto em que o j idoso Tolsti escrevia suas memrias. Tolsti
descreve Tatiana como uma alma simples, completamente devotada famlia de
seus senhores e continuamente explorada por seus prprios parentes: seu marido
imprestvel e seu filho intil viam nela uma fonte de dinheiro fcil. O irmo de
Tatiana, Nikolai Filpovitch, trabalhava como cocheiro em Isnaia Poliana e
tambm era uma figura amada e respeitada pelas crianas, que gostavam do
agradvel cheiro de esterco que ele exalava e de sua voz suave e melodiosa.
Todo proprietrio de terras russo tinha seus servos favoritos, e Tolsti
comentou que isso era particularmente verdadeiro para pessoas como seu pai,
apaixonado por caa. Por causa do tratamento preferencial que Nikolai Ilitch
dispensava aos irmos Petrucha e Matiucha, que eram inestimveis no campo e
serviam juntos mesa, os dois no eram muito populares entre os servos, pois os
presentes que recebiam e os privilgios que tinham despertavam o ressentimento
e a inveja. Como era comum nesses casos, quando ganharam a liberdade, os
irmos no lidaram muito bem com a sbita mudana e depois que deixaram de
estar sujeitos a um senhor jamais pareceram satisfeitos com sua nova situao.
Nenhum dos dois se casou. Em menino, Tolsti os admirava como homens
fortes, bonitos e sempre impecavelmente vestidos.
Alm de Petrucha e Matiucha, o pequeno Tikhon (que tinha olhos
acinzentados e, s escondidas, roubava tabaco de Nikolai Ilitch) servia mesa da
famlia, mas era bastante diferente. Tinha sido flautista na orquestra de Nikolai
Volkonski, e sua segunda incumbncia era varrer toda manh os sales de
recepo da casa; terminada a tarefa, ele se sentava no salo da frente e se punha
a cerzir meias. Era um cmico inato e fazia muito sucesso entre as crianas da
famlia, pois tinha o hbito de se postar atrs do pai ou da av e fazer caretas.
Assim que o adulto se virava para olhar ele imediatamente ficava imvel, o prato
ou bandeja erguido junto ao peito. Vassli Trbetskoi, despenseiro de sorriso
perverso, tambm era lembrado com afeio. Gostava de todas as crianas: os
meninos adoravam quando ele os punha em uma bandeja e zanzava com eles pela
despensa. Tolsti escreveu que aos seis anos de idade ficou atordoado ao receber
a notcia de que Vassli fora nomeado para administrar uma propriedade herdada
pela famlia. Mais tarde, Tolsti afirmou que naquele Natal experimentou pela
primeira vez a angstia de ter de enfrentar a mudana, no momento em que
Vassli, depois de ficar sabendo da promoo, foi beijar as crianas no ombro.
O Natal era uma poca em que as crianas da famlia Tolsti
tradicionalmente se misturavam aos servos na propriedade. Estendendo-se por
doze dias at a Epifania, o Iuletide na Rssia era um perodo particularmente
alegre, em que as regras da vida cotidiana normal eram temporariamente
suspensas e homens e mulheres mascarados e vestindo trajes coloridos e bizarros
saam para frenticos passeios de troika ou iam a p de casa em casa cantando
hinos de Natal. Em troca, ganhavam comida e bebida. Tambm era costume os
servos visitarem seus senhores. Todo Natal, cerca de trinta camponeses
pertencentes famlia Tolsti chegavam casa principal vestindo fantasias (havia
sempre um urso e um bode) ou roupas do sexo oposto. As crianas Tolsti
tambm se enfeitavam e, com a ajuda de uma rolha queimada, desenhavam
bigodes pretos umas nas outras. O velho Grgori, ex-violinista da orquestra de
servos de Nikolai Volkonski, fazia sua visita anual a Isnaia Poliana para
acompanhar a msica e os cantos. Lembranas felizes dessas festividades, que
seriam mantidas pelos filhos de Tolsti, mais tarde inspiraram a encantadora cena
de Guerra e paz em que certa noite os jovens Rostov, Natasha, Snia e Nikolai se
vestem com aprumo e vo de tren visitar seus vizinhos.
Foka Dmidich, o mordomo da famlia, tinha tocado o segundo violino na
orquestra, mas na dcada de 1830, poca em que Tolsti era criana, se limitava
a anunciar vestindo uma sobrecasaca azul e com o mximo de cerimnia
possvel que o almoo das duas da tarde estava servido. A bem da verdade, a
famlia Tolsti vivia com austeridade se comparada a muitas famlias nobres
exceo de um par de espelhos de moldura folheada a ouro, algumas poltronas
Voltaire e mesas de mrmore, a casa era decorada de maneira bastante espartana;
a moblia e as roupas de mesa eram fabricadas por seus prprios carpinteiros e
teceles. Mas em outros aspectos as velhas tradies patriarcais da aristocracia
russa eram zelosamente mantidas. Em suas memrias Tolsti comenta com
orgulho que o pai no teve de se submeter indignidade de se tornar funcionrio
pblico no governo de Nicolau i, e o escritor de fato no conseguia se lembrar de
sequer ter visto, durante sua infncia e juventude, um funcionrio pblico.
Tolsti era o primeiro a reconhecer que sua primeira infncia foi idlica e
privilegiada. Como tantas propriedades rurais russas do perodo, Isnaia Poliana
era um reino quase autossuficiente, com sua prpria populao de servos para
arar os campos, ordenhar as vacas, cortar madeira, tecer tapetes, remendar
sapatos, cuidar dos cavalos, criar ces de caa, desbastar caminhos, cuidar das
contas da casa, preparar refeies, buscar gua e lavar a roupa suja. Era tambm
um mundo completo, de que Tolsti jamais precisava sair. Isnaia Poliana
propiciava um ambiente protegido em que ele podia crescer cercado por parentes
e por uma numerosa segunda famlia de servos. Era tambm uma escola de elite
em que ele iniciou sua educao com um tutor particular, e um enorme parque de
diverses, cujos bosques, lagos e veredas sinuosas prometiam infindveis e
empolgantes aventuras. Por fim, era uma paisagem fisicamente linda de avenidas
margeadas de rvores, jardins elegantes e lagos tranquilos. Tolsti viveu nesse
paraso rural os primeiros oito anos de sua vida; de fato, durante esse perodo a
jornada mais importante que ele fez foi quando, aos cinco ou seis anos, desceu as
escadas, saindo do quarto das crianas menores para juntar-se a seus irmos mais
velhos e ficar sob os cuidados do tutor alemo.
Existem alguns preciosos relatos em terceira pessoa acerca do menino
Tolsti, mas mesmo nessas escassas fontes chama a ateno o nmero de
travessuras. Em uma carta que Aline escreveu a Toinette quando Liev tinha
cerca de seis anos, por exemplo, ela fez questo de dizer que j fazia algum
tempo que o pequeno Liev fora dispensado da mesa de jantar, sugerindo que
isso at ento tinha sido um fato frequente. Desde a mais tenra idade todos
notaram tambm a originalidade de Tolsti: seus parentes se lembravam de ter
achado muito engraada a ocasio em que o menino teve a ideia de entrar na sala
de visitas e fazer uma mesura para todos os presentes: s que de costas, jogando
a cabea para trs em vez de se inclinar, e dando uma pancadinha nos
calcanhares.
J perto do fim da vida, quando decidiu escrever suas memrias, Tolsti se
recusou a relatar todas as suas felizes lembranas de infncia, primeiro porque
eram infindveis e tambm porque temia que seria impossvel transmitir
adequadamente a outras pessoas as recordaes que ele estimava tanto e que
para ele eram to importantes. Lembrava-se de poucos eventos especficos de sua
primeira infncia, alm das idas e vindas do pai e das excitantes histrias que ele
contava acerca das aventuras que encontrava nas expedies e caadas. Tolsti
se lembrava de apenas trs ocasies que realmente haviam deixado nele uma
forte impresso, mas duas delas so intrigantes. Uma foi quando da visita de um
dos primos da me, um dos prncipes Volkonski, um cavaleiro hussardo. Liev
ainda era muito pequeno, e o homem colocou-o sentado em seu joelho. Tolsti
escreve que a experincia de se sentir preso e apertado impeliu-o a tentar se soltar
enquanto o jovem oficial entabulava conversa com os outros adultos. Isso fez
com que o hussardo o apertasse com mais fora. A sensao de priso, de no
estar livre, escreve Tolsti, deixou-o to exasperado que ele comeou a berrar e a
tentar escapar. Tolsti passaria a vida afirmando sua independncia e resistindo a
todas as tentativas de se sujeitar a regras ou agir em conformidade com o padro
geral.
A outra impresso digna de nota, deixada por um parente que tambm
visitou Isnaia Poliana, o famoso americano, conde Fidor Ivnovitch Tolsti,
seu tio, era bem mais positiva, e est relacionada ao que Tolsti definiu como o
principal trao caracterstico de sua famlia: dikost. Essa uma palavra com
muitos significados na lngua russa. Dikost significa literalmente estado
selvagem ou selvageria, mas tambm qualifica indivduos antissociais ou
tmidos. Em outros contextos, pode significar estranheza, excentricidade ou
absurdo. Quando aplicava o termo a membros de sua famlia, Tolsti gostava de
definir dikost como paixo e ousadia, ardor e veemncia. Em seu livro, no se
trata de um substantivo com conotaes negativas. Para ele, a palavra denotava
originalidade e independncia de pensamento, bem como a propenso para fazer
o contrrio do que fazem todas as outras pessoas. O Tolsti adulto certamente
nadou contra a corrente em quase tudo que fez, e chegou inclusive a usar a
palavra dikost para descrever as ideias radicais que desejava aplicar educao,
quando lanou seu boletim pedaggico em 1862. Tolsti via o dikost no apenas
em muitos de seus ancestrais ilustres, mas tambm em alguns de seus parentes
contemporneos mesmo em sua afetada e bem comportada prima distante,
Alexandra Andrievna, que era espirituosa, mas no obstante uma comedida
dama de companhia na corte imperial. Voc tem o dikost tolstoiano que todos
ns temos, escreveu ele em carta a Alexandra em 1865. No foi por outro
motivo que Fidor Ivnovitch tatuou o corpo. De fato, Fidor Ivnovitch
Tolsti era o mais desenfreado de todos os Tolsti: quando jovem, em visita a
uma ilha polinsia no Pacfico Sul, decidiu imitar os nativos cobrindo o corpo de
tatuagens. Por sua vez, Alexandra Andrievna chamava seu parente mais jovem
com uma cantora cigana por causa disso foi imediatamente relegado pela
sociedade moscovita ao ostracismo , com quem teve doze filhos, mas apenas
uma chegou idade adulta. Tolsti conheceu a viva (Avdotia) e a filha
(Praskvia) de Fidor em Moscou nas dcadas de 1840 e 1850. Na velhice,
Fidor Tolsti tornou-se um homem profundamente devoto, e muita gente pedia
para ver suas tatuagens; depois de tirar o enorme cone de santo Espiridio, santo
padroeiro da famlia Tolsti, que usava em volta do pescoo, exibia o pssaro de
cores brilhantes no meio do peito, rodeado de motivos azuis e vermelhos, e as
serpentes nos braos.
Fidor Ivnovitch teve uma vida pitoresca, e evidente que foi muito
significativo para Tolsti ter conhecido quando menino seu famoso ancestral. Em
suas memrias, Tolsti declara haver muita coisa que ele gostaria de dizer sobre
aquele homem atraente, extraordinrio e sem lei, cujo rosto bonito e bronzeado
com espessas suas at perto das laterais da boca deixaram nele uma impresso
extraordinariamente poderosa. No incio da dcada de 1830, quando visitou
Isnaia Poliana, Fidor Ivnovitch j tinha mais de cinquenta anos, e seu
temperamento abrandara; mesmo assim, ainda era um homem excntrico e
mostrou dois lenos bordados de cambraia que, segundo alegou, curariam
magneticamente as dores de dente do irmo mais velho de Tolsti, Serguei.
Quando Fidor Ivnovitch visitou Isnaia Poliana, Tolsti tinha cerca de
sete anos. Seu mais antigo manuscrito remanescente data desse perodo. As duas
pginas hoje preservadas em seu arquivo eram sua contribuio para um dirio
coproduzido pelos irmos:
Diverses infantis
Seo um
Histria natural
Escrito pelo C[onde] L.[iev] N. To[lsti]: 1835
1. A guia
A guia o rei das aves. Dizem que um menino comeou a provoc-la, e ela ficou furiosa com ele e
bicou-o at a morte.
2. O falco
O falco uma ave muito til, pois captura gazelas. A gazela um animal que corre muito rpido, tanto
que os ces no conseguem alcan-la; o falco ataca com uma arremetida e a mata.
3. A coruja
A coruja uma ave muito forte, e no pode ver a luz do sol. Uma coruja-guia tambm uma coruja. A
nica diferena est nos penachos.
4. O papagaio
O papagaio um pssaro muito bonito, tem o bico curvo como um gancho, e pode aprender a falar.
5. O pavo
O pavo tambm bonito, tem manchas azuis, e sua cauda maior do que o corpo.
6. O beija-flor
O beija-flor uma ave bem pequenininha, tem bico dourado e pode ser branco.
7. O galo
O galo uma bela ave, sua cauda colorida pende para baixo, o papo vermelho, azul e de todas as cores,
e sua barbela vermelha. Quando o galo-indiano canta, abaixa a cauda e o papo, que vermelho, preto e
de todas as cores, incha. A cauda do galo-indiano diferente, o galo indiano tem uma cauda frouxa.
Orfandade
Eu o parabenizo, meu querido Liova, e tambm ao seu irmo e a sua irm, desejo a vocs boa sade e diligncia nos estudos,
de modo que jamais causem desgostos querida titia Tatiana Alexndrovna, que trabalha tanto por ns. Mitia e Liova,
outro dia samos para dar um belo passeio, fomos at as Colinas do Pardal, e l tomamos ch. Como o tempo est to bom,
imagino que vocs estavam em Grumant. Espero que se divirtam muito. Meu amor para a querida Macha...
Carta de Nikolai Tolsti a Liev, Dmtri e Macha Tolsti, enviada de Moscou para Isnaia Poliana, por
ocasio do aniversrio de dez anos de Liev, em agosto de 1838
em nome da educao dos filhos mais velhos. Liev tinha apenas oito anos de
idade, mas seu irmo mais velho, Nikolai, estava com catorze e j se preparava
para ingressar na universidade. A mudana foi um tremendo empreendimento,
uma vez que a famlia era numerosa, consistindo dos cinco filhos, dois
apadrinhados, duas tias, Nikolai Ilitch e sua me, acompanhados de um
regimento completo de trinta servos. A jornada rumo ao norte, em uma caravana
de sete carruagens, mais um tren fechado especial para a av Pelageia
Nikolievna, durou dois dias. Para que a idosa se sentisse segura, ela foi
acompanhada por dois servos, obrigados a viajar a p ao lado do veculo e
enfrentando temperaturas congelantes ao longo de todo o trajeto. As crianas se
revezavam com o pai. Quando finalmente entraram em Moscou, Liev teve a sorte
de estar ao lado dele, que ia apontando as igrejas e edifcios proeminentes
entrevistos pelas janelas da carruagem.
Chegando pelo sul, os Tolsti teriam passado pelo pitoresco bairro dos
mercadores, o Zamoskvorechie (Alm do rio Moscou) e, assim, a primeira
coisa que teriam visto era uma profuso de igrejas com cpulas em formato de
cebola. Os mercadores eram tradicionalmente a parcela mais devota da
populao russa, e o Zamoskvorechie tinha a maior concentrao de igrejas de
Moscou, que poca j era conhecida pela profuso de tais edifcios. Nikolai
Ilitch alugara uma bela casa afastada da rua, com mezanino e um espaoso ptio,
e depois de passar pelo Zamoskvorechie a caravana da famlia Tolsti teria
seguido para o oeste e chegado a uma tranquila rea residencial junto ao rio
Moscou. Foi para essa parte de Moscou que Tolsti regressou com sua prpria
famlia na dcada de 1880.
Na velhice, Tolsti tinha apenas lembranas vagas desses primeiros meses na
antiga capital. A cidade, j plenamente recuperada dos traumticos eventos de
1821, passava por um intenso perodo de reconstruo, e o novo cenrio urbano
deve ter sido arrebatador para um menino que, acostumado ao ambiente rural, se
viu em meio a edifcios e gente desconhecida e deixou de ser o centro das
atenes. O irmo Nikolai estava ocupado preparando-se para a universidade, e
as crianas raramente viam o pai, que tinha contratado doze tutores (incluindo
um professor de dana) para entreter os filhos, a um custo de 83 mil rublos.
Enquanto isso, Nikolai Ilitch estava envolvido em um processo judicial
relacionado propriedade de Pirogovo, a ele vendida por Alexander Tmiachev,
o homem que lhe tinha implorado que criasse sua filha ilegtima Dunechka. Logo
os soldados da infantaria no podiam voltar para casa. Nesse caso, a situao foi
particularmente difcil. J idoso, o pai de Mitka precisava que ele retornasse para
arar os campos, e poucos meses depois o afvel e alegre cocheiro se viu obrigado
a deixar Moscou e voltar a ser um campons, usando andrajos e sapatos de palha.
Como servo, ele no tinha escolha, e mais tarde Tolsti explicaria que a placidez
com que Mitka aceitou sua sorte e a maneira humilde e resignada com que abriu
mo do trabalho que ele amava pela pesada labuta agrcola tiveram uma
influncia tremenda em seus ento incipientes sentimentos de afeio e respeito
pelo campesinato russo.
Embora tenha gostado um pouco da experincia de viver em Moscou e da
oportunidade de fazer novos amigos, Tolsti deve ter ficado aliviado quando,
aps a morte da av, escapou de seu tutor e retornou a Isnaia Poliana. Ele e
Dmtri agora puderam visitar a nova propriedade de Pirogovo, onde havia um
belo haras, e ambos foram presenteados com um pnei cada um. Somente depois
de dois anos os irmos todos voltariam a se reunir em Isnaia Poliana, mas nesse
nterim comearam a trocar cartas. Nesse perodo, a correspondncia entre eles
no era exatamente empolgante. Uma semana depois que Dmtri e Liev tinham
deixado Moscou, Serguei escreveu aos dois para dizer que tudo estava bem em
sua nova casa e que o cacto estava prestes a florescer. Liev respondeu contando a
Serguei e Nikolai sobre seu novo pnei. s vezes Nikolai escrevia, s vezes as
cartas eram escritas em francs e s vezes os irmos mais velhos condescendiam
em incluir a irm Macha como destinatria. Ocasionalmente, Dunechka tambm
era mencionada nas cartas, mas em maro de 1839 ela se separou da famlia para
estudar em um internato de Moscou e, pela primeira vez, Tolsti ficou mais
prximo de Macha.
Em agosto de 1839 os filhos mais novos da famlia Tolsti empreenderam
uma agradvel viagem de volta a Moscou para visitar os irmos e a tia. Era vero,
agora Tolsti j estava com onze anos e era um menino curioso acerca de tudo;
portanto, para ele a jornada foi uma grande aventura. A coisa mais emocionante,
contudo, era a expectativa de ver o tsar lanar a pedra fundamental da catedral de
Cristo Salvador. Era a igreja que, em 1812, Alexandre i tinha prometido construir
para homenagear as tropas russas que haviam derrotado e expulsado de Moscou o
exrcito de Napoleo e cujo intuito era preservar a eterna memria do fervor e
da lealdade inauditos em nome da F e da Ptria com os quais o povo russo se
engrandeceu naqueles dias difceis, e para marcar a nossa gratido para com a
Murom o nico bogatyr que se tornou santo da Igreja Ortodoxa Russa; asceta
que se recusou a se casar, sempre foi smbolo do poder espiritual.
O nico russo comparvel ao poderoso Ilia de Muromets foi Tolsti, que era
igualmente devotado sua terra natal e que chega ao ponto de ser identificado
com a Rssia, tanto por russos como por estrangeiros (repetido exausto, o
refro quando voc l os livros de Tolsti impossvel no sentir neles a alma
russa j se tornou um lugar-comum). Tolsti tinha 35 anos quando aprendeu a
andar, por assim dizer, e comeou a escrever Guerra e paz, seu prprio pico,
uma das mais extensas e mais extraordinrias obras de fico j escritas (e que ele
nunca considerou um romance no sentido convencional). Tolsti era clebre por
sua fora fsica e seu vigor, e quando serviu no exrcito russo era capaz de passar
horas a fio montado no cavalo, lutando com bravura. Tinha enorme riqueza e
uma famlia numerosa, e mais tarde abriu mo de tudo para viver de maneira
humilde e trabalhar em nome do campesinato, combatendo todo tipo de injustia
e
se tornando um dos mais influentes lderes espirituais da Rssia chegou
inclusive a pregar a castidade. Invariavelmente Tolsti era retratado em
desenhos, ilustraes, pinturas e cartuns como um gigante em meio aos pigmeus
da literatura russa contempornea, ou como um colosso fisicamente bastante
superior aos seus colegas escritores em uma pardia da famosa tela (de 1898)
de Vasnetsov dos trs bogatyrs, um caricaturista chegou a desenhar Tolsti como
Ilia de Murom montado em seu potente corcel (Korolenko faz o papel de
Dobrinia Niktitch e Tchekhov Aliocha Popovitch). No surpreende que
muitos visitantes que peregrinavam a Isnaia Poliana esperando encontrar um
gigante ficassem desconcertados ao constatar que Tolsti era um homem
consideravelmente baixinho.
Depois da morte do pai e da av, em 1837 e 1838, respectivamente, os
jovens Tolsti levaram anos para fixar residncia, e a famlia teve de enfrentar
outro grande revs. Em agosto de 1841, no aniversrio de treze anos de Liev, sua
devota tia Aline morreu aps uma prolongada temporada no mosteiro de Optina
Pustin. Sua j debilitada sade foi minada de vez pelo rigoroso jejum imposto
pelos religiosos ortodoxos. A tia de Tolsti tinha sido atrada pela profunda
sabedoria dos ancios de Optina. Depois da morte de Aline a guarda dos trs
sobrinhos e da sobrinha Macha, que legalmente ainda eram menores de idade
(somente Nikolai, o mais velho, tinha completado dezoito anos), passou para sua
irm mais nova Pelageia, que tinha o mesmo nome da me, mas em famlia era
chamada de Polina. Os jovens Tolsti mal conheciam essa outra tia, pois aps a
morte de Pelageia Nikolievna ela tinha permanecido em Kazan. Em 1818, aos
vinte anos de idade, Polina se casara com Vladimir Ivnovitch Iuchkov, coronel
hussardo reformado. Em nome dos irmos e da irm, Nikolai Tolsti escreveu,
em francs bastante polido, uma carta a Vladimir Iuchkov:
Ns todos eu, meus irmos e minha irm pedimos nossa titia que no nos desampare em
nosso luto e que se torne nossa guardi. O senhor precisa imaginar, tio, o horror da nossa situao. Por
favor, tio, no nos rejeite, pedimos em nome de Deus e da falecida [Tia Aline]. O senhor e a titia so
nossos nicos esteios no mundo.
Juventude
Li tudo de Rousseau, todos os vinte volumes, incluindo o Dicionrio de msica. Mais do que admir-lo, eu o idolatrava.
Quando tinha quinze anos de idade eu usava no peito um medalho com um retrato dele em vez de um crucifixo. Tenho
tanta intimidade com muitas de suas pginas que como se eu mesmo as tivesse escrito.
Tolsti, em conversa com Paul Boyer, 1901
tudo indica ela afogava suas mgoas em festas. O casal Iuchkov tinha a
reputao de oferecer festanas em grande estilo, e se gabava de ter um dos
melhores chefs da cidade. A principal contribuio de Polina na educao dos
Tolsti foi dar a cada um dos sobrinhos seu prprio servo, na esperana de que
com o tempo cada um deles se tornasse um criado leal e dedicado. Dmtri ganhou
Vaniusha, a quem maltratava, de acordo com o irmo mais novo. Liev no se
recordava de ter visto Dmtri efetivamente batendo em Vaniusha, mas guardava
ntidas lembranas de ver o servo pedindo perdo, contritamente. Logo Dmtri
mudou drasticamente de comportamento e se converteu em cristo fervoroso,
embora jamais tenha perdido seu temperamento irascvel.
Dmtri uma figura obscura na vida de Tolsti foi o primeiro dos irmos
a morrer, aos 29 anos, e no parece ter sido muito prximo dele , mas ocupa
lugar de destaque nas lembranas de Tolsti do perodo em que sua famlia viveu
em Kazan. A bem da verdade, somente em Kazan comeam de fato as
lembranas de Tolsti sobre Dmtri. Ao contrrio do irmo Liev, que era apenas
um ano mais novo que ele e que confessadamente gostava de se arrumar e cuidar
da aparncia antes mesmo da mudana para Kazan, Dmtri jamais teve qualquer
aspirao de ser comme il faut. Com raras excees, era srio e reservado,
especialmente depois que comeou a frequentar com regularidade a igreja e
observar todos os jejuns, como fizera a tia Aline antes dele. Caula, Liev tinha a
tendncia de invejar todos os irmos mais velhos, e o que invejava em Mitenka
era a indiferena com relao s opinies das outras pessoas sobre ele, trao de
personalidade que Liev acreditava ter sido herdado da me. De fato, era apenas
por causa de sua aparncia desleixada que Mitenka chamava a ateno de seus
irmos, que, bem mais preocupados com a imagem, ficavam constrangidos por
ele. Dmtri no tinha interesse em dana ou eventos sociais, tampouco passava
muito tempo com a famlia, e se aferrava rigidamente ao uniforme escolar.
Tolsti conservou uma imagem forte da figura alta e magra do irmo, seus olhos
grandes, amendoados e tristes, e do tique nervoso que ele desenvolveu durante
seu primeiro jejum srio e prolongado: ele dava uma sacudidela na cabea, como
se ela estivesse apertada demais. Tolsti se basearia fartamente neste e em outros
aspectos da vida de Dmtri ao criar o personagem Nikolai, irmo de Livin em
Anna Karinina.
Por serem netos do antigo governador de Kazan, os Tolsti recebiam
convites para frequentar todas as melhores casas da cidade e se deleitavam na
convivncia com a aristocracia local todos, exceto Dmtri, que s fez uma
amizade: um estudante pobre e maltrapilho que atendia pelo desafortunado nome
de Poluboiarinov (que alm de soar simplesmente canhestro, significa meio
nobre). Dmtri preferia passar seu tempo na igreja. Em vez de frequentar a
chique igreja da universidade, optava por uma anexa ao presdio defronte casa
da famlia, e na Pscoa provvel que passasse mais tempo ali do que em sua
prpria casa. Na Sexta-Feira Santa costume que as passagens dos quatro
Evangelhos referentes Paixo de Cristo sejam lidas em voz alta, mas o padre
dessa igreja era extremamente rgido e insistia que os quatro Evangelhos fossem
lidos na ntegra. Uma vez que a Igreja Ortodoxa exige que seus paroquianos
assistam de p toda a cerimnia, a congregao passava um bom tempo de p, o
que provavelmente era visto com bons olhos por Dmtri, que tinha a tendncia de
se aplicar com fervor quase masoquista s coisas de que realmente gostava.
Ao recordar os anos vividos em Kazan, Tolsti prontamente reconheceu que
na adolescncia ele e seus irmos eram obtusos demais para apreciar a invulgar
pureza moral de seu irmo. Como seus amigos chiques de Kazan, eles
continuamente submetiam Dmtri ao ridculo, relembra Tolsti em Confisso, e
chegaram inclusive a apelid-lo de No. Talvez a melhor evidncia do
extraordinrio altrusmo de Dmtri tenha sido sua relao com Liubov
Serguievna, a filha ilegtima que fora acolhida por piedade pela famlia Tolsti.
A tia Polina aceitou receber Liubov em Kazan, e as lembranas que Tolsti tinha
dela datam dessa poca. No so lembranas nada afetuosas. Mais tarde ele
escreveu que Liubov Serguievna era uma criatura estranha e pattica, que
sofria de alguma doena que fazia seu rosto inchar como se tivesse sido picado
por abelhas. Durante os meses de vero ela no se incomodava com as moscas
que pousavam sobre seu rosto, tomando aparncia ainda mais desagradvel. Na
recordao de Tolsti ela possua uma nica mecha de cabelos pretos, no tinha
sobrancelhas e s a duras penas conseguia articular a fala. Liev tambm se
lembrava de que ela sempre cheirava mal e ocupava um quarto sufocante e
igualmente malcheiroso, cujas janelas jamais eram abertas. A julgar pela
lembrana de Tolsti, Liubov Serguievna era no apenas lamentvel, mas
repulsiva, e a maior parte da famlia no disfarava sua repugnncia. Dmtri,
contudo, era gentil e se desdobrava para ouvi-la e conversar com Liubov e
tornou-se amigo dela, sem demonstrar o menor sinal de que considerava sua
atitude como um ato de filantropia. Indiferente s opinies que sua famlia tinha
dele, fazia o que julgava ser a coisa certa. Seu comportamento compassivo
tampouco foi passageiro. Dmtri continuou prximo de Liubov Serguievna at a
morte dela em agosto de 1844, quando ele concluiu o primeiro ano na
universidade.
Como o pai, Dmtri tinha dons artsticos. Muitos anos antes, nas brincadeiras
com os irmos mais novos, Nikolai prometia que os desejos deles seriam
realizados desde que cumprissem as condies que ele impunha. Serguei
costumava declarar sua vontade de moldar cavalos e galinhas de cera, ao passo
que Dmtri queria fazer grandes desenhos, como um artista. O Museu Tolsti de
Moscou guarda em seus arquivos inmeros desenhos a lpis de Dmtri, paisagens
rurais impressionantes para um menino de dez anos (Liev, por sua vez, no
conseguia se lembrar de quais eram seus desejos na meninice, exceto o de fazer
pequenos desenhos).
Na crnica oficial da vida e da obra de Tolsti, no consta nenhum registro
de eventos biogrficos nos anos de 1842 e 1843. Contudo, um trabalho de
investigao mais cuidadoso demonstra que depois que Tolsti completou
catorze anos, em agosto de 1842, seus irmos Nikolai e Serguei o levaram pela
primeira vez a um bordel. Muitos e muitos anos mais tarde, sua esposa o
repreendeu por causa de uma cena de seduo em seu ltimo romance,
Ressurreio, por acreditar que um velho (na ocasio ele estava com setenta anos)
devia se envergonhar de escrever aquela imundcie. Essa desagradvel
discusso induziu Tolsti a confessar a um amigo que, depois de consumar o
ato pela primeira vez naquele fatdico dia em Kazan, ele ficou de p ao lado da
cama da mulher e chorou. Mais tarde, ficou tremendamente abalado quando um
conhecido lhe disse que tinha sido novio no Mosteiro dos Mrtires de Cizicus,
localizado nos arredores de Kazan. Tolsti respondeu calmamente que fora
naquela parte da cidade que tinha tido sua primeira queda. Talvez o sentimento
de culpa tenha sido intensificado por saber que o av estava enterrado no
cemitrio do mosteiro, com outros dignitrios (a nica sepultura daquele perodo
que sobreviveu at os dias de hoje).
Mais tarde Tolsti lamentou a ausncia de orientao moral naqueles
primeiros anos em Kazan. Em 1 de janeiro de 1900 ele segredou a seu dirio que
na juventude tinha feito uma srie de coisas ruins motivado pelo desejo de imitar
os irmos mais velhos, que bebiam, fumavam e levavam uma vida dissoluta.
claro que Dmtri, que o irmo Nikolai definia como um rematado excntrico,
preciso dizer que nessa poca Tolsti no dava a impresso de ser uma
pessoa particularmente atraente; seu egocentrismo e sua santimnia prejudicavam
um pouco suas valiosas aspiraes e sua autodepreciao.
Em 17 de maro, seis dias depois de dar entrada na clnica da universidade,
onde recebeu tratamento para gonorreia, Tolsti comeou a escrever um dirio
propriamente dito. Ele viu com bons olhos esse perodo de completa solido,
longe de servos, pois permitiu que percebesse que a vida dissoluta que a maior
parte das pessoas de sua classe levava durante sua juventude era a consequncia
de uma corrupo precoce da alma. Ele estava falando de si mesmo, claro.
Ao condenar esse estilo de vida, contudo, Tolsti j reconhecia que era mais fcil
ler dez tomos de filosofia do que colocar em prtica um nico princpio. No dia
seguinte, na falta de algo melhor para fazer (ele passou quase um ms internado
na clnica), Tolsti se lanou tarefa de escrever um trabalho da faculdade: os
segundanistas do curso de direito deviam comparar o Nakaz (Instruo) de
Catarina, a Grande, cuja primeira verso fora redigida em 1765, e o De lesprit des
lois (Do esprito das leis, 1749), de Montesquieu. Embora no tenha conseguido
terminar o trabalho, para sua grande surpresa Tolsti se viu absorto nas propostas
de Catarina para a elaborao de um novo cdigo de leis e acabou passando mais
de uma semana debruado sobre elas, dissecando-as minuciosamente nas pginas
de seu dirio. Tolsti critica a autocracia como um regime desptico, uma vez
de Tula, juntamente com o haras e 316 servos homens. Mria recebeu terras no
mesmo vilarejo, um moinho de farinha e uma elevada soma em dinheiro. Dmtri
ficou com Cherbachevka, a propriedade da famlia na provncia de Kursk, e mais
de trezentos servos. Por sua vez, Liev herdou Iasnia Poliana e os vilarejos
adjacentes, e cerca de trezentos servos. Para equilibrar tudo e compensar
eventuais discrepncias, quantias em dinheiro foram trocadas entre os irmos. O
documento legal foi assinado por todas as partes em 11 de julho de 1847 em
Tula, e depois disso cada um partiu para suas respectivas novas propriedades
rurais. Em novembro, Macha, que nos anos anteriores tinha vivido longe dos
irmos, casou-se com um primo distante, Valerian Pietrvitch, sobrinho de
Fidor Ivnovitch Tolsti, o famoso americano (e da tia Toinette). Ela estava
com dezessete anos; ele, 34. Em agosto, Tolsti completou dezenove anos, e
agora tinha a liberdade para fazer o que bem quisesse.
Tolsti tinha planos grandiosos para sua nova vida como membro da nobreza
latifundiria. Ele queria usar seu tempo com sabedoria e para um propsito nobre
e louvvel; assim, em 17 de abril de 1847, Liev registrou em seu dirio o que
planejava fazer nos dois anos seguintes como proprietrio de Isnaia Poliana. Ele
estudaria francs, alemo, ingls, italiano, russo e latim e adquiriria um
moderado grau de perfeio em msica e pintura. Ele se dedicaria a aprender
histria, geografia, estatstica, matemtica e cincias naturais, medicina terica e
prtica e agricultura em todos os seus aspectos. Completaria seu programa de
estudos em direito, para que pudesse realizar as provas e exames finais.
Escreveria uma dissertao. Redigiria ensaios sobre todos os temas que ia
estudar. E estabeleceria regras. Mas todas essas boas intenes deram em nada.
J no dia seguinte, de modo um tanto encabulado, admitiu a si mesmo que no
era de fato capaz de satisfazer suas prprias expectativas, e ento reduziu o
escopo de suas ambies, decidindo que se limitaria a seguir uma regra de cada
vez. O primeiro princpio que ele resolveu seguir era o de levar a cabo toda e
qualquer tarefa que se propusesse a fazer o problema que sucumbiu logo
diante do primeiro empecilho. Em 19 de abril ele admitiu em seu dirio que
acordara bem tarde e s decidiu o que faria s duas da tarde. Havia uma sada
eram suficientes para mant-lo ocupado. Como Tolsti, Serguei era apaixonado
pela caa alvejou tantos lobos que acumulou uma quantidade de ossos
suficiente para construir uma cerca bastante original ao longo de uma das aleias
de sua propriedade. De resto, sua principal paixo na vida era uma cigana de
Tula.
Dmtri tinha se refugiado em sua propriedade de Cherbachevka, na provncia
de Kursk. Como a maioria de seus pares, no questionava a instituio da
servido, mas se sentia moralmente obrigado a demonstrar preocupao por seus
servos. Tambm julgava que, na condio de nobre russo, era sua obrigao
servir o exrcito, convico que talvez fosse um resqucio do reinado de Pedro, o
Grande, quando o servio militar vitalcio foi imposto pequena nobreza em
troca dos privilgios do status aristocrtico. A durao do servio pblico
compulsrio foi sendo progressivamente reduzida ao longo do sculo xviii, at
tornar-se, sob o reinado de Catarina, a Grande, uma mera questo de honra;
contudo, a ideia de servir as armas continuou sendo cara a jovens magnnimos
como Dmtri Tolsti. Assim, ele partiu para So Petersburgo, onde ingenuamente
apresentou-se a um dos mandarins do Ministrio da Justia e declarou que
desejava ser til. Contudo, uma vez que no conseguiu especificar o que
exatamente queria fazer, foi despachado para copiar documentos da chancelaria
e, em pouco tempo estava vivendo a vida de Akaki Akkievitch, o pobre
funcionrio do imortal conto O capote (1842), de Ggol. Nessa impiedosa
stira da burocracia de So Petersburgo, o humilde copista, homem que no d a
menor ateno a seu vesturio e usa roupas desbotadas e pudas, por fim
instigado a comprar um novo capote. Para economizar dinheiro a fim de pagar o
alfaiate, ele pratica o mais extremo despojamento e passa a viver em meio a uma
srie de privaes, mas seu capote roubado logo no primeiro dia de uso. Dmtri
tambm no dava a menor importncia a suas roupas, e para ele a ideia de se
vestir significava meramente cobrir o corpo, mas, de modo irnico, seu casaco era
praticamente tudo que ele tinha. De acordo com as memrias de Tolsti, um dia
seu irmo decidiu visitar um conhecido da famlia na esperana de que este o
ajudasse a encontrar um emprego melhor. Quando chegou datcha de Dmtri
Obolenski e foi convidado a tirar o casaco e se juntar aos outros convidados,
todos os presentes constataram, constrangidos, que ele no estava vestindo nada
por baixo, pois decidira que era desnecessrio usar uma camisa. Alm do fato de
que na verdade estava bem de vida, Dmtri distinguia-se de Akaki em outro
Dickens (uma regra que ele parece ter conseguido seguir risca). David Copperfield
(1850) foi o romance de Dickens de que Tolsti mais gostou na juventude, mas
tambm admirava imensamente Uma viagem sentimental atravs da Frana e da Itlia
(1768), de Laurence Sterne. Tanto Dickens quanto Sterne foram influncias
poderosas para Tolsti quando ele se aventurou pela primeira vez a escrever
fico. Contudo, ainda tinha um gosto bastante ecltico e era capaz de apreciar
tanto o pico Histria da conquista do Mxico (1843), de William Prescott, quanto a
pea Os salteadores (1781), de Schiller. Porm, seu autor favorito era mesmo
Rousseau. Obras como Confisses, Emlio e A nova Helosa foram instrumentais em
sua educao moral. Exceto por alguns livros em sua lista de leituras, pouca coisa
sabemos da vida de Tolsti no final da dcada de 1840, mas sabemos que levou
sua adorada tia Toinette para morar de novo em Isnaia Poliana. Durante algum
tempo, a irm de Toinette, Elizaveta, tambm viveu em Isnaia Poliana, mas
depois foi morar com o filho Valerian Pietrvitch e sua nova nora, Mria. O lugar
de Elizaveta em Isnaia Poliana foi ocupado permanentemente por Natlia
Ptrovna, viva empobrecida que se tornou a companheira de Toinette (nenhuma
propriedade rural russa era completa sem suas humildes e respeitosas prizhivaltsy,
que sempre tinham uma aguda conscincia de seu status de dependncia).
difcil superestimar a importncia que a tia Toinette teve para o Tolsti de vinte e
poucos anos. Ela era seu porto seguro, a destinatria mais frequente de suas
cartas quando ele viajava. Era ela quem o mantinha no prumo, e tambm foi ela
quem o incentivou a escrever. Ela acreditava em seu talento.
Em outubro de 1848, subitamente, Tolsti fez as malas e se mudou para
Moscou, a pretexto de se preparar para seus exames de direito, que ele por fim
tinha resolvido prestar. Alugou o anexo de um edifcio ocupado por alguns
amigos na rea de Arbat, no muito longe do lugar onde havia morado quando
menino. Uma vez que desde a infncia no visitava Moscou, estava empolgado
de voltar cidade, mas no chegou nem perto dos livros jurdicos. Em vez disso,
sentiu-se seduzido pelas luzes brilhantes da cidade e mergulhou de cabea na alta
sociedade moscovita. Tolsti tinha vinte anos de idade, uma boa educao, era
dono de uma linda propriedade rural, tinha um ttulo e renda em suma, era um
partido, um solteiro desejvel, bem-vindo em todos os melhores sales da
cidade. Tudo isso era muito lisonjeiro para o ego, embora a vaidade de Tolsti
fosse refreada pela timidez e pelo constrangimento acerca de sua aparncia fsica,
o que fazia com que se sentisse pouco vontade em meio sociedade chique.
vez os ares do campo: Fui completamente corrompido por este mundo social,
tudo me aborrece terrivelmente neste momento, e estou sonhando de novo com a
minha vida no campo, para onde espero retornar em breve (Je me suis tout fait
dbauch dans cette vie du monde, prsent tout cela membte affreusement et j rve de
nouveau ma vie de campagne que je compte reprendre bientt). Contudo, em vez de
regressar a Isnaia Poliana, Tolsti decidiu, num impulso caprichoso, ir a So
Petersburgo, em janeiro de 1849, simplesmente porque alguns amigos estavam
indo para l.
O jovem e impressionvel Tolsti jamais tinha estado na capital russa,
cidade que era bem mais sofisticada e aristocrtica do que a provinciana Moscou,
e de imediato decidiu se estabelecer l. Alugou um quarto no Hotel Napoleo, na
esquina das ruas Malaya Morskaya e Vosnesensky (onde hoje em dia fica o Hotel
Angleterre). Tivesse tido sorte, Tolsti teria ficado em um quarto defronte
maior igreja da Rssia a construo da neoclssica catedral de Santo Isaac
estava quase concluda. Assim que se instalou, Liev sentou-se e escreveu uma
longa carta ao irmo Serguei, contando que So Petersburgo estava tendo um
bom efeito sobre ele. Todo mundo vivia ocupado fazendo coisas, e a diligncia
das pessoas parecia t-lo contagiado: finalmente estava planejando prestar seus
exames de direito na universidade. Depois, continuava, tinha planos de arranjar
um emprego no funcionalismo pblico. Se necessrio, ele assegurava a Serguei,
estava preparado para comear no ponto mais baixo da Tabela de Posio Social
(tambm chamada de Tabela de Cargos ou Tabela de Graus) caso fosse
reprovado nos exames. Nenhum membro da nobreza podia evitar a classificao
hierrquica na tabela de catorze posies ou cargos que Pedro, o Grande, havia
institudo originalmente em 1722 para a corte, o funcionalismo pblico e as
foras armadas. Essa tabela de nveis levara a uma obsesso com o status oficial,
que Ggol exps ao ridculo de maneira magnfica no conto O nariz (1836).
Tolsti ia mais longe e dizia ter plena conscincia de que o irmo receberia com
algum ceticismo suas garantias de que tinha mudado, afinal j ouvira a mesma
histria muitas vezes antes. Ele se apressou em dizer que dessa vez havia
realmente mudado, de maneira diferente de suas prometidas e desmentidas
mudanas anteriores, e que j no se tratava apenas de uma mera questo de boas
intenes. Pela primeira vez, Tolsti declarou, ele tinha compreendido que no
podia viver s de filosofia e precisava realizar atividades prticas. Porm, estava
necessitado de algum dinheiro para quitar dvidas 1200 rublos, para ser exato
tinha publicado o conto Noites brancas e agora estava definhando em uma cela
de priso onde mal penetrava a luz. Uma semana antes de Tolsti enviar ao irmo
sua humilhante carta, a polcia secreta do tsar esteve no apartamento de
Dostoivski para prend-lo. Em uma coincidncia digna de suas posteriores
obras-primas, Fidor morava no prdio defronte ao Hotel Napoleo, logo do
outro lado da rua. Dostoivski era um dos 24 membros de um grupo da
intelligentsia esquerdista chamado Crculo de Petrachvksi, empenhados em maior
ou menor grau na luta em nome de liberdades polticas e de direitos civis e cujo
crime era organizar reunies nas noites de sexta-feira com o intuito de debater
temas incendirios como o socialismo, a abolio da servido e a censura. No
clima sufocante e paranoico da Rssia de Nicolau i, a mera discusso de tais
tpicos equivalia conspirao, particularmente aps as revolues de 1848. Na
ltima reunio do Crculo, em 15 de abril de 1849, algum tinha lido a clebre
carta a Ggol composta pelo crtico literrio radical Vissarion Bielnski. Era um
documento franco e destemido, escrito s vsperas da morte precoce de Bielnski,
e em que o crtico fustigava o escritor por sua defesa aparentemente inerme do
absolutismo russo e tudo que ele representava. Bielnski escrevera a carta na
Alemanha em 1847, enquanto agonizava doente de tuberculose, e cpias
manuscritas samizdat se alastraram feito um incndio entre a intelligentsia
progressista, depois de terem entrado clandestinamente na Rssia.
Dostoivski e seus camaradas foram confinados na Fortaleza de So Pedro e
So Paulo, a mesma famigerada e sombria priso onde haviam sido trancafiados o
filho de Pedro, o Grande, o ancestral de Tolsti, Piotr Andrievitch, e os
Dezembristas. Enquanto Tolsti ainda flanava por So Petersburgo envergando
ternos cortados pelo melhor alfaiate da cidade e jantando nos restaurantes mais
finos (no difcil adivinhar quem eram seus credores), Dostoivski estava s
voltas com pulgas, piolhos, baratas e ratos em uma cela escura e mida. No final
de 1849, foi agrilhoado e teve a pena comutada para quatro anos de trabalhos
forados na Sibria. Os dois gigantes da literatura passariam a vida prximos um
ao outro, mas jamais se encontrariam nem pessoal nem ideologicamente. Primeiro
porque, para comeo de conversa, Dostoivski era socialmente inferior a Tolsti,
e depois por ser seu principal rival. Acabaram adotando vises de mundo
radicalmente diferentes.
Assim que retornou de So Petersburgo em junho de 1849, Tolsti levou
para Isnaia Poliana um pianista alemo, e passou boa parte do vero aprendendo
rudimentos musicais. Acabou sendo um bom investimento, pois a msica tornouse uma parte importante de sua vida. Quando no estava dando aulas a Tolsti,
Rudolf, o pianista, se recolhia estufa para compor ou participava de sesses
musicais regadas a lcool com os velhos servos que tinham tocado na orquestra
do conde Volkonski. Um desses msicos era o antigo segundo violinista Foka
Demdich, que trabalhara como mordomo da famlia quando o pai de Tolsti
ainda estava vivo. Naquele outono, Tolsti cooptou-o para fazer as vezes de
professor da primeira escola que abriu em Isnaia Poliana para os filhos dos
camponeses 23 crianas que recebiam aulas de aritmtica e catecismo, alm
de aprender a ler e a escrever. Parece ter sido um experimento de curta durao,
sobre o qual quase no existe documentao, mas um dos primeiros sinais do
despertar da conscincia social de Tolsti. Ao longo das duas dcadas seguintes,
a educao popular se tornaria uma causa a que ele se afeioaria bastante.
Tolsti retomou seu dirio por uma semana em junho de 1850, mas de resto
foi mais um ano acerca do qual temos poucas informaes alm do fato de que
ele no arredou p de Isnaia Poliana. Tolsti tornou-se um orgulhoso tio e
padrinho em janeiro de 1850, quando sua irm Macha deu luz uma menina
chamada Vrvara (Vria). No era o primeiro filho de Mria. Seu primognito,
Piotr, morrera logo aps o nascimento em 1849, mas Vria sobreviveu (assim
como Nikolai e Liza, nascidos em 1851 e 1852, respectivamente). Assim que
Vria nasceu, Tolsti viajou imediatamente para Pokrvskoe a fim de
acompanhar seu batizado (a propriedade ficava a cerca de oitenta quilmetros de
Isnaia Poliana, e essa parece ter sido a jornada mais longa que empreendeu at o
fim do ano). Ao longo de 1850 Tolsti limitou-se a viajar para a vizinha Tula. No
final de 1849, o escritor assumiu um modesto cargo como funcionrio pblico no
governo local de Tula (ocupando o ponto mais baixo da tabela de nveis sociais),
mas era um trabalho bem pouco exigente, o que lhe propiciava uma boa desculpa
para conviver com a nobreza local da cidade e travar relaes com os ciganos.
Tolsti tinha suas beldades favoritas entre as jovens ciganas, mas o que mais
o atraa na cultura cigana eram a msica melanclica e excitante e as danas
frenticas. Os ciganos tinham aparecido no Imprio Russo no incio do sculo
xviii. Alguns fixaram residncia, outros continuaram levando uma vida
seminmade, alojando-se com os camponeses durante os meses de inverno e
ganhando a vida por meio do escambo de cavalos no vero. Desde sempre
tinham o hbito de cantar canes russas como forma de ganhar dinheiro. O
primeiro coro cigano foi formado na dcada de 1770 pelo conde OrlovChesmenski, que levou alguns de seus servos ciganos da famlia de Ivan Sokolov
para se apresentar em sua propriedade nos arredores de Moscou. Os ciganos
ganharam a liberdade em 1807, mas sua reputao s comeou a crescer aps o
trmino das Guerras Napolenicas, e logo passaram a receber convites para
apresentaes de fim de noite em restaurantes e tavernas de Moscou. No
demorou para que comeassem a pipocar corais ciganos tambm em outras
cidades russas, o que foi o pontap inicial de formidveis dinastias de artistas que
cantavam a cappella ou com o acompanhamento de violinos e do violo russo de
sete cordas. Os coros ciganos caram no gosto de ambas as pontas do espectro
social os comerciantes e a nobreza (particularmente oficiais do exrcito) e
preenchiam uma lacuna. Naquela poca, no havia msicos profissionais na
Rssia, exceto pela presena de virtuoses estrangeiros, e a principal virtude dos
coros ciganos estava no fato de que entoavam canes russas, salpicadas de
elementos de suas prprias tradies, inconfundveis e exticas. Os ciganos no
sofreram discriminao na Rssia fato que talvez seja nico , pelo menos
no das pessoas com quem conviviam. Os coros ciganos atingiram o auge da
popularidade na dcada de 1840, e o de Tula era tido com um dos melhores do
pas. A namorada de Serguei, Mria (Macha) Chchkina (ela prpria pertencente a
uma magnfica dinastia de msicos ciganos), era a melhor cantora do coro. Ouvir
as apresentaes de coros ciganos em Moscou e Njni Novgorod certamente foi
um dos pontos altos da viagem que o marqus de Custine empreendeu pela
Rssia em 1839. Ele ficou impressionado com as diferenas entre os ciganos
russos e os outros ciganos que tinha conhecido:
Sua cano frentica e apaixonada guarda alguma semelhana distante com os gitanos espanhis. As
melodias do norte so menos animadas, menos voluptuosas do que as da Andaluzia, mas produzem uma
impresso mais profunda e pesarosa [...] era quase meia-noite, mas a casa ainda estava lotada de pessoas,
de barulho e luz. Achei as mulheres muito bonitas; seus trajes, embora de aparncia igual aos de outras
mulheres russas, nelas adquirem um aspecto estrangeiro: em seus olhares furtivos h magia, suas feies e
atitudes so graciosas, e ao mesmo tempo imponentes. Em suma, elas so parecidas com as sibilas de
Michelangelo.
que as pessoas apreciavam a msica cigana mais do que qualquer outro tipo;
quando os ciganos cantavam as boas e velhas canes, escreve o narrador, que
em seguida assevera que a msica cigana na Rssia era o nico caminho que
possumos para passar da msica popular para a msica sria, sem esconder seu
amor pela msica cigana.
Tolsti combinava seu amor pelo cancioneiro popular russo a um entusiasmo
genuinamente srio pelo repertrio europeu clssico (particularmente Beethoven,
com obras como os trios de piano, Op. 70), com que se familiarizou e que sabia
tocar muito bem. Ele ainda estava firmemente decidido a levar adiante o absurdo
padro de vida que tinha estabelecido para si mesmo, mas a julgar pelas
anotaes em seu dirio em junho de 1850, via de regra naquele vero Tolsti
no conseguiu cumprir risca sua rgida programao, que inclua nadar,
supervisionar o trabalho dos servos, ler, escrever e tocar piano. Mesmo que se
lamentasse nos dias em que no tocava as 24 escalas e arpejos em duas oitavas,
Tolsti atingiu um respeitvel nvel de proficincia em termos de habilidade
musical, e continuaria tocando piano at a velhice, s vezes em duetos com sua
esposa Snia ou sua irm Macha.
Outra frustrao de Tolsti no vero de 1850 era sua incapacidade de
reprimir o desejo sexual que sentia pelas belas servas de sua propriedade. Como
tantos outros proprietrios de terras russos desse perodo, em sua juventude
Tolsti abusou de seu privilgio de nobre dono de servos e exerceu com
regularidade o droit de seigneur com as meninas camponesas. Em 19 de junho de
1850, confessou a seu dirio que era incapaz de se controlar, e que para piorar as
coisas a prtica de seduzir as meninas tinha se tornado um hbito. Naquele vero
Tolsti se sentiu particularmente atrado por Gacha Trubetskaia, serva de
Toinette, que foi trabalhar para Macha e a acompanhou ao exterior em 1859.
Mais tarde a conscincia de Tolsti seria profundamente atormentada por seu
comportamento abusivo. Na dcada de 1890, tentou expiar suas culpas
ficcionalizando e condenando suas fraquezas e falhas morais por meio das
experincias dos personagens centrais do conto O diabo e de seu ltimo
romance, Ressurreio. Em 1898, enquanto escrevia Ressurreio, Tolsti confessou
a sua esposa Snia que estava reciclando detalhes de sua prpria vida. Snia
ficou duplamente enojada, pela imagem do marido se aproveitando de uma
menina camponesa e pela recordao, j na velhice, de detalhes to lascivos (fato
que levou Tolsti a se confessar a um amigo acerca de sua primeira experincia
com uma prostituta). No final da vida, Tolsti confessou tambm que nutria
sentimentos amorosos por Avdotia (Duniacha) Bnnikova, a filha do servo que
fora seu primeiro tutor, Nikolai Dmtrievich. Mais tarde Duniacha se casou com
um servo de Tolsti, Alexei Orekhov, e trabalhou como criada em Isnaia
Poliana, mas Liev afirmava categoricamente que jamais tinha encostado um dedo
nela. Em termos gerais, o comportamento do jovem Tolsti era bastante
predatrio nessa poca passou a cultivar a paixo pela caa com ces borzis.
Apesar de todas as suas boas intenes, no outono de 1850 Tolsti mais uma
vez j tinha sucumbido bebida e jogatina, e passava cada vez mais tempo com
os ciganos em Tula. Nesse perodo perdeu altas somas no carteado: certa vez
chegou a perder quatro mil rublos de uma nica vez. Era urgente levar a cabo
outra mudana de rotina, por isso, em dezembro de 1850, ele partiu mais uma
vez para Moscou, onde sacou seu dirio e comeou a compilar regras. Algumas
delas eram bem pouco realistas (tocar piano quatro horas todos os dias),
algumas bastante prticas (exercitar-me diariamente, falar o mnimo possvel
de mim mesmo, falar em alto e bom som), outras eram idealistas (manter
distncia das mulheres), algumas eram esquisitas (antes de ir a um baile, pensar
e escrever bastante), e havia tambm as simplesmente tolas (no ler
romances). Tolsti tambm elaborou minuciosas regras a respeito do jogo de
cartas dessa vez pretendia jogar a srio, e s apostar dinheiro com pessoas
mais ricas que ele. Naquele inverno, foi a diversos bailes (escrevera regras sobre a
arte de danar tambm), pois queria se misturar ao haut monde de Moscou e
encontrar uma esposa. A bem da verdade, Tolsti demoraria um bom tempo para
encontrar a pessoa certa e se casar, mas sua intensa vida social evidencia-se pelo
fato de que estava por dentro das intrigas mais recentes, por isso podia enviar
tia Toinette longas cartas relatando todas as fofocas que ele ouvia ao percorrer os
sales moscovitas como o escndalo envolvendo provas que implicavam a
aristocrtica amante russa de Alexander Sukhovo-Kobylin no assassinato de sua
rival francesa.
Toinette adorava e lia com enorme prazer as cartas que recebia de seu
sobrinho favorito. Em 27 de janeiro de 1851, em uma de suas respostas a Tolsti,
ela disse que ele escrevia de maneira to atraente e to natural que era como se
estivesse ali, de p diante dela, contando-lhe tudo pessoalmente.
Mas Toinette se preocupava com a falta de rumo e propsito na vida de Tolsti e
seu inquietante hbito de apostar dinheiro. Em tom de reprimenda, ela fez
questo de lembrar que ele tinha voltado para se juntar famlia no Natal, mas
preferiu passar a noite jogando cartas em Tula em vez de ficar com o irmo
Nikolai, que estava de volta Rssia, como ele mesmo dizia, de licena do
Cucaso pela primeira vez em quase quatro anos. A tia Toinette tambm estava
desesperada com Serguei (Se ele tivesse um emprego com que se ocupar, no
teria cado de amores por aquela menina cigana) e esperava que Liev
encontrasse um rumo na vida em vez de optar por um casamento de
convenincia apenas para saldar suas dvidas. Ela suplicou a Tolsti que se
ajuizasse. Era o que ele estava comeando a fazer. Dolorosamente, j tinha se
dado conta do vazio da sociedade de Moscou e comeara a pensar seriamente em
escrever fico. Em dezembro de 1850, declarou em seu dirio que queria
escrever um conto sobre os ciganos.
Desde o incio, sua capacidade de encarar seus prprios defeitos (nessa
poca, culpava-se pelo costume de olhar-se no espelho com desmedida
frequncia) seria fundamental para desenvolver seu poder de anlise psicolgica.
Em 8 de maro de 1851 ele comeou a escrever um Dirio de Franklin, em que
pretendia monitorar seus lapsos morais. Em sua autobiografia Mmoires de la vie
prive, publicada em Paris em 1791, Benjamin Franklin descrevera sua tcnica de
elaborar uma tabela de virtudes, marcando aquelas que no lograva demonstrar a
cada dia. Talvez Tolsti tenha finalmente se encontrado, ou pode ser que a
chegada da primavera simplesmente lhe trouxe renovada energia; o fato que
Tolsti passou a obedecer com rigor sua determinao de escrever todo dia no
dirio, convencido de que reconhecer suas falhas morais era metade da batalha
para elimin-las. Ele foi bem-sucedido no que dizia respeito a seguir risca a
prtica de ginstica e as aulas de esgrima, mas seu comportamento quase sempre
deixou a desejar; palavras como preguia, covardia, gula, falsa modstia
e autoengano pontuam os registros em seu dirio durante esses meses, como
admoestao regular de sua falta de fibra moral.
medida que comeou a lidar pela primeira vez com fico, Tolsti se
tornou mais recluso, e tambm passou a dedicar mais tempo leitura. No incio
do ano enfrentara Montesquieu; agora lia o recm-publicado Histoire des Girondins
(Histria dos Girondinos, 1847), de Lamartine; Paulo e Virgnia (1787), de Bernardin
de Saint-Pierre; Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe; e A vida e as
opinies do cavalheiro Tristram Shandy (1759-1769), de Sterne. Durante a primavera
de 1851 Tolsti tornou-se mais atento aos turbulentos processos intelectuais de
sua mente, mas tambm um observador mais vigilante da vida ao seu redor. O
que Tolsti tinha em mente quando se debruou sobre o primeiro rascunho de
Infncia, que viria a se tornar a sua primeira obra publicada, era um tipo original
de Bildungsroman em quatro partes, a ser intitulado Quatro pocas de desenvolvimento.
Sob a clara influncia de David Copperfield e tambm de Sterne, entre muitas
outras obras e autores, o objetivo de Tolsti era explorar as experincias
psicolgicas de um menino a caminho da vida adulta. Como acontece com quase
todas as obras de fico que publicou, Tolsti usou a prpria vida como matriaprima, aqui para evocar cenas particulares de dois dias da infncia de seu
personagem, Nikolenka. importante reconhecer que sua prpria vida era o
meio e no o fim, mas, no dizer de Richard Gustafson, estudioso da obra
tolstoiana, essa distoro da experincia pessoal esconde apenas para revelar,
uma vez que a sinceridade e a verdade emocional sempre foram, em ltima
anlise, o objetivo essencial de Tolsti. Infncia enganosamente simples. Para
que o livro funcionasse, Tolsti tinha de lanar mo de uma voz narrativa
convincente, portanto um dos primeiros problemas que teve de contornar foi
decidir se seu narrador seria um adulto, com o risco de que sua histria ficasse
parecida com um livro de memrias, ou fazer com que o prprio Nikolenka
contasse a histria de sua vida, o que implicava dilemas de outra ordem. As
tcnicas artsticas de Tolsti j eram sofisticadas. O fato de que naquela
primavera ele escreveu a um amigo em So Petersburgo indagando-lhe se podia
ajudar a negociar com o censor literrio um sinal de que Tolsti estava levando
a srio a atividade de escritor.
Em maro Nikolai foi visitar Tolsti em Moscou. Sua licena estava
chegando ao fim, e ele sugeriu que o irmo o acompanhasse na jornada de volta
ao Cucaso. Tolsti aceitou imediatamente, e no incio de abril deixou Moscou e
retornou a Isnaia Poliana. O Cucaso propiciava a Tolsti a oportunidade de
comear de novo, do zero. Era a chance de deixar para trs suas dvidas e seus
maus hbitos e embarcar em uma vida de risco e aventura na mais perigosa
fronteira do Imprio Russo. O famoso daguerretipo tirado dos dois irmos
naquela primavera mostra o futuro escritor de rosto escanhoado, sentado em
postura tensa e vestindo roupas bastante surradas, as mos apoiadas em uma
bengala, encarando o observador com olhar fixo e penetrante, ao passo que
Nikolai, mais relaxado e fleumtico, est sentado ao seu lado vestindo uniforme
do exrcito, descansando indiferentemente o cotovelo no espaldar da cadeira do
irmo. No final do ms, os irmos estavam na estrada, decidindo seguir por uma
pitoresca rota via Kazan para se reunir com a famlia e os amigos. Como criados
pessoais eles levaram dois servos de Isnaia Poliana, Alexei Orekhov e Ivan
Suvorov (Aliocha e Vaniuchka).
Depois de uma agradvel semana em Kazan, durante a qual Tolsti ficou
completamente apaixonado pela acanhada e linda Zinaida Molostvova, os irmos
seguiram para o sul. Em 30 de maio, depois de uma semana gloriosa descendo de
barco o rio Volga, de Saratov a Astrakhan, e mais uma semana viajando a cavalo,
finalmente chegaram a Starogladkovskaia, na atual Chechnia. Naquela mesma
noite, Tolsti sacou seu dirio e escreveu Como vim parar aqui? No sei. E por
que estou aqui? Tambm no sei. No fim das contas, Starogladkovskaia seria
sua base ao longo dos dois anos e meio seguintes, e o tempo que l passou foi
literalmente um perodo de formao. Quando deixou o Cucaso, Tolsti era um
oficial de carreira do exrcito imperial e um autor publicado. Ademais, a
experincia em primeira mo da campanha militar no Cucaso teria valor
incalculvel quando, anos depois, escreveu as cenas de batalha de Guerra e paz.
Foi Catarina, a Grande, quem tinha levado a Rssia ao Cucaso, quando,
num gesto de benevolncia, foi ao auxlio dos cristos ortodoxos em apuros no
Reino da Gergia. A bem da verdade, o que ela realmente queria era manter
afastados a Prsia e o Imprio Otomano, com o motivo ulterior de dar um passo
adiante em seu Projeto Grego. Ela sonhava em derrotar os turcos e instalar um
regente russo no trono de uma recm-restaurada Constantinopla crist. Seu annus
mirabilis foi 1783, quando ela no apenas conquistou a Crimeia mas assinou o
Tratado de Georgievsk, que fez da Gergia um protetorado da Rssia. A agresso
por parte da ressurgente Prsia acabou favorecendo a Rssia. Em 1795, o ltimo
ano do reinado de Catarina, a Rssia no ofereceu assistncia quando os persas
invadiram a capital da Gergia, Tflis, e Alexandre i ento violou o Tratado de
Georgievsk simplesmente anexando a Gergia e abolindo sua monarquia. Como
resultado das subsequentes guerras com o Imprio Otomano e a Prsia ao longo
da dcada seguinte, o Imprio Russo anexou a seus territrios outras pequenas
naes caucasianas.
Em torno da fortaleza que havia sido erigida em 1784 no sop das
montanhas rapidamente surgiu e cresceu uma cidade que acabaria se tornando a
principal base militar russa na rea. Num arroubo de otimismo, a cidade foi
chamada de Vladikavkaz (regente do Cucaso), mas para conquistarem o
artria vital para o deslocamento das tropas russas nas montanhas. Era a nica
rota transitvel que atravessava a cordilheira caucasiana e uma das mais altas do
mundo mais alta do que a passagem de Simplon. Quando Pchkin registrou
suas impresses da rodovia em seu Jornada a Erzurum (1829), a estrada ainda era
extremamente perigosa: os viajantes eram obrigados a seguir um comboio de
quinhentos soldados e um canho, e s vezes s conseguiam percorrer dezesseis
quilmetros por dia. Na poca de Tolsti, essa viagem tinha se tornado mais
rpida e mais segura. Ele a percorreu pela primeira vez na companhia do irmo,
rumo a Tflis, em outubro de 1851, e por fim foi recompensado com paisagens
especulares e uma magnfica viso dos picos nevados, que, antes dele, Pchkin e
Lrmontov tinham achado to deslumbrantes.
O procedimento de demitir-se de seu cargo no funcionalismo pblico (o
servio cidado, como era chamado) e alistar-se no exrcito acabou sendo lento e
burocrtico, e Tolsti foi obrigado a permanecer por mais de dois meses em
Tflis, onde perdeu dinheiro em partidas de bilhar e adoeceu. Durante esse
perodo solitrio, em que continuou trabalhando em seu manuscrito de Infncia e
tentou deixar de ser mulherengo, Tolsti escreveu cartas afetuosas e saudosas
para a tia Toinette, que era sua correspondente regular. Liev relatou que estava
muito feliz por poder voltar a tocar piano, a nica coisa de que sentia falta em
sua nova vida no acampamento militar de Starogladkovskaia (a essa altura, j
sabendo que no voltaria to cedo para casa, ele tambm tinha decidido dar o
piano de cauda de Isnaia Poliana para a irm Macha). Tolsti tambm podia
ouvir msica na recm-inaugurada Casa de pera de Tflis. Pelo teatro lrico,
pelas ruas arborizadas da cidade e seu primeiro jornal em russo, Tolsti podia
agradecer ao prncipe Mikhail Vorontsov. Comandante em chefe do exrcito
caucasiano de 1844 a 1854, e primeiro vice-rei imperial da regio, Vorontsov,
educado na Gr-Bretanha, era um modernizador, que antes tinha transformado
Odessa e agora trouxera para Tflis suas avanadas ideias de planejamento
urbano.
Aps sua solicitao formal de ingresso no regimento de artilharia em que
servia seu irmo, Tolsti precisou se submeter a um exame escrito. A aprovao
granjeou-lhe o direito de se chamar cadete ou, para usar o termo russo, yunker
(corruptela do alemo Jung Herr, a designao dos jovens suboficiais da
nobreza). Em 3 de janeiro de 1852 Tolsti passou patente de Feierverker
(artilheiro), 4 classe, na 20 Brigada de Artilharia da 4a Bateria do exrcito russo
territrios (incluindo parte da Armnia). Para os aliados, era apenas uma questo
de tempo at que Nicolau chegasse ao Mediterrneo. As hostilidades entre
Turquia e Rssia tiveram incio em outubro de 1853, e em sua maior parte se
concentraram em torno da foz do Danbio. Quando Frana e Gr-Bretanha se
envolveram, em maro de 1854, e a Rssia foi forada a se retirar da Moldvia e
da Valquia, equivocadamente contando com o apoio austraco (em retribuio
por ter enviado tropas para esmagar a rebelio na Hungria em 1850), a pennsula
da Crimeia se converteu no principal teatro da guerra. Portanto, mais uma vez
Tolsti no teve sorte, j que trs meses aps sua chegada a Bucareste a ao foi
transferida para outro lugar.
Tolsti ficou agradavelmente surpreso pela elegncia de Bucareste, e assim
que chegou deleitou-se indo pera italiana e ao teatro francs. To logo se
estabeleceu, deu continuidade a sua produo escrita. Concentrou as atenes no
trabalho de reviso e concluso de Adolescncia, e no final de maro foi
despachado para uma misso de duas semanas em Oltenita, ao norte do Danbio,
local onde em novembro do ano anterior fora travada uma batalha contra os
turcos. A seguir, atuou como adido do comandante da artilharia, o general
Serzhputovksi, o que significou patrulhar diferentes partes da Moldvia, da
Valquia e de Bessarbia. Em maio, Tolsti viu de perto os ltimos dias do cerco
russo fortaleza otomana de Silistra, situada na margem norte do Danbio, na
atual Bulgria. Para assegurar seu avano, a Rssia precisava tomar Silistra, e um
enorme contingente de soldados russos tinha sido deslocado para a rea em abril,
quando o cerco tivera incio. Tolsti no participou diretamente do bombardeio
da cidade, mas uma vez que estava trabalhando como ordenana, e para um
superior sdico, em mais de uma ocasio acabou indo parar nas trincheiras e se
viu exposto a risco efetivo de morte. Em carta tia Toinette, ele descreveu o
espetculo estranhamente grandioso de ver pessoas se matando toda manh e
toda noite. Quando no estava retransmitindo ordens, Tolsti ficava aquartelado
no acampamento russo, localizado nos jardins pertencentes ao governador de
Silistra, Mustaf Pax, que propiciavam uma vista formidvel do Danbio e da
cidadela sitiada (particularmente durante os bombardeios noturnos). Foi
estabelecida uma data limite em junho para o derradeiro ataque a Silistra, mas s
duas da manh, uma hora antes do incio previsto do assalto, o marechal de
campo Pachkevitch avisou que o tsar, sob presso da ustria, ordenara uma
retirada. Tolsti, como toda a companhia no lado russo, ficou extremamente
decepcionado.
As tropas russas iniciaram sua retirada, e de incio Tolsti retornou a
Bucareste, levando consigo impresses positivas acerca dos blgaros que havia
conhecido em Silistra. Em Bucareste, uma carta enviada por Nekrsov no final
de julho finalmente chegou s mos de Tolsti. Nekrsov cobria de elogios os
originais de Adolescncia, o que deixou Tolsti bastante animado. O bom nimo,
porm, no impediu que, em agosto, acabasse perdendo outros trs mil rublos no
jogo. No incio de setembro Tolsti voltou para a Rssia, e no caminho recebeu a
notcia de que fora promovido a subtenente. O escritor ficou alojado no novo
quartel-general do exrcito em Kishiniov, capital da Bessarbia, onde mais uma
vez contava com bastante tempo livre para dedicar leitura e msica: vivia em
um agradvel apartamento com piano. A essa altura estava lendo George Sand e
A cabana do Pai Toms, em traduo alem. Tambm teve tempo para elaborar,
com alguns colegas oficiais, uma proposta para um jornal semanal das foras
armadas. Tolsti ficou tremendamente empolgado com esse projeto, e assim que
teve a notcia de que seu cunhado vendera a casa de Isnaia Poliana, escreveu
pedindo-lhe que enviasse 1.500 rublos para levar adiante a ideia. Vendida por
cinco mil rublos a um proprietrio de terras local, a casa de Isnaia Poliana tinha
sido desmantelada e reconstruda na propriedade do comprador; com razo, o
cunhado de Tolsti tinha receio de enviar o dinheiro. Enquanto isso, a proposta
do semanrio do exrcito foi levada a So Petersburgo para a apreciao de
Nicolau.
Naquele outono a Rssia tinha sofrido pesadas baixas na guerra com as
foras aliadas. Os aliados tinham vencido importantes batalhas em Alma, e em
setembro de 1854 haviam deitado cerco a Sebastpol, a principal base naval
russa no mar Negro. Enquanto os russos comearam a afundar alguns de seus
prprios navios e a usar os canhes de outras embarcaes para apoiar sua
artilharia, os aliados construam trincheiras e redutos de canhes no sul da
cidade, e em meados de outubro estavam prontos para a batalha. No primeiro dia
de bombardeio, 17 de setembro, um ataque britnico mandou para os ares o paiol
no reduto de Malakoff, destruindo a munio russa e matando o almirante
Kornilov, mas a artilharia russa tambm destruiu um paiol francs. Quatro dias
antes, no final da Batalha de Balaclava, a Brigada Ligeira de Raglan havia
desferido um ataque no vale da morte, e os russos encararam como uma vitria
a captura de redutos britnicos. Entretanto, a Batalha de Inkerman, em 24 de
outubro, acabou com as esperanas russas e deixou claro que o restante da guerra
seria travado em Sebastpol.
Nesse nterim, em Kishiniov, dois gro-duques em visita cidade eram
homenageados com bailes, o que foi motivo de desgosto para Tolsti. Ele
comeou a solicitar sua transferncia para Sebastpol. Em primeiro lugar porque
queria ver de perto a ao, mas principalmente porque estava movido por
sentimentos de patriotismo, em especial aps saber que a 12 a Brigada de
Artilharia, em que servira brevemente, havia tomado parte da Batalha de
Balaclava. O quartel-general russo em So Petersburgo finalmente comeara a
despachar reforos para a Crimeia, e a chegada de Tolsti coincidiu com o
momento em que tambm chegaram a 10 a e a 11 a divises. No incio de
novembro, Tolsti estava em Odessa, e uma semana depois na Crimeia. At
podia ter chegado antes, mas aps beijar uma bela ucraniana que sara janela em
uma cidadezinha ao sul de Kherson, acabou passando a noite com a moa. Em
Sebastpol, Tolsti foi incorporado 3 a Bateria da 14 a Brigada Ligeira. Nesse
momento, Liev no foi mobilizado para o servio ativo, mas permaneceu na
cidade sitiada por nove dias, durante os quais teve tempo de avaliar com os
prprios olhos o que exatamente estava acontecendo, visitando fortificaes
russas e conversando com soldados e oficiais. Ele escreveu a Serguei relatando as
angustiantes histrias que ouvira de um soldado ferido sobre como a tomada de
um paiol francs em Inkerman se transformara em um desastroso pesadelo, pois
os reforos jamais chegaram, e de como 160 homens de uma brigada tinham
permanecido bravamente no front, mesmo gravemente feridos. E havia tambm a
histria dos marinheiros que tinham resistido a trinta dias de bombardeios
constantes e se recusaram a abandonar seus postos. Ele viu padres com crucifixos
caminhando pelos baluartes e rezando sob fogo cerrado, e ouviu sobre
demonstraes de herosmo maiores do que na Grcia Antiga quando o vicealmirante Kornilov perguntou a seus homens se estavam preparados para morrer.
Nesse momento havia cerca de 35 mil soldados russos aquartelados em
Sebastpol, e treze mil deles no voltariam para casa (as baixas britnicas e
francesas foram igualmente numerosas).
Tolsti ficou profundamente comovido pelo esprito combativo dos
soldados, mas agora era inevitvel ver por que o exrcito russo estava se saindo
to mal. Uma semana antes de deixar Sebastpol, em 15 de novembro, rumo ao
norte para o vilarejo trtaro nos arredores de Simferpol onde sua bateria
Em certo sentido, toda a futura carreira de Tolsti est aqui, uma vez que ele
sempre foi um escritor religioso, s voltas com a busca da verdade. Em seus
primeiros textos essa preocupao estava implcita, mas foi ficando
gradativamente mais patente medida que ele amadurecia como artista. As obras
literrias de Tolsti, no irresistvel argumento de Richard Gustafson, podem
inclusive ser vistas como cones verbais de seu ponto de vista religioso. At o
sculo xix o cone tinha exercido o papel de teologia na Igreja Ortodoxa. Na
Rssia simplesmente no existia tradio teolgica escrita, como era o caso na
Igreja Catlica Romana e na Igreja Protestante, e quando a arte da pintura de
cones entrou em decadncia no sculo xix, depois que a Igreja Ortodoxa foi
transformada em departamento de Estado, a literatura tomou seu lugar. De
acordo com o comentrio de Gustafson, as pessoas na Rssia instintivamente
comearam a compreender o papel da literatura enquanto teologia: as imagens
criadas por artistas eram encaradas seriamente como palavras que revelam a
Verdade. A obra de Tolsti exaltada por seu realismo, mas um tipo bastante
emblemtico e religioso de realismo.
No final de maro de 1855 Tolsti retomou firmemente o trabalho literrio.
Comeou a redigir Juventude, que acabaria sendo a terceira e ltima parte de um
projeto inicialmente concebido como uma tetralogia. Tambm comeou a revisar
o manuscrito de seu artigo sobre os eventos em Sebastpol. Contudo, no chegou
muito longe, pois foi convocado ao. Depois de longos meses de inverno
durante os quais os aliados construram uma ferrovia para acelerar a entrega de
armas e munio, as tropas francesas e britnicas estavam prontas para retomar
seus bombardeios s defesas russas em Sebastpol. A bateria de Tolsti foi
despachada para o quarto baluarte no sul da cidade, o mais perigoso devido
proximidade com a posio francesa. O novo bombardeio aliado cessou em 7 de
abril, exceto no caso da quarta fortificao, que continuou sendo fustigada por
mais cinco dias. Tolsti entrou em servio em 5 e 6 de abril, e depois a intervalos
de quatro dias, seguidos de oito dias de descanso, quando voltava para seu
apartamento e tocava piano. Em 19 de abril os aliados tomaram as trincheiras
entre o quarto e o quinto baluartes, e as foras russas comearam a ter dvidas
sobre suas chances de vitria.
Em 25 de abril Tolsti terminou Sebastpol em dezembro, sua primeira
reportagem, patritica e pungente, sobre a cruenta realidade dos combates na
cidade sitiada, e enviou-a imediatamente a So Petersburgo. Com os dois outros
relatos que a compem, os Contos de Sebastpol so sua obra mais sofisticada at
aquele momento. Nessa primeira histria, o narrador leva o leitor em um passeio
por Sebastpol no tempo presente, de modo que a experincia das hostilidades
ainda mais ntida no comeo e lembra a experincia de assistir a um filme:
Bem prximo, o zunido de um projtil ou bala de canho no exato momento em que voc comea a subir
a colina d uma sensao horrvel. De sbito voc compreende, de maneira inteiramente nova, o
verdadeiro significado daqueles sons de artilharia que tinha ouvido l da cidade. De repente uma
lembrana calma e feliz ganha vida, fugaz, em seu crebro; voc comea a pensar mais em si mesmo e
menos no que voc observa sua volta, e repentinamente dominado por um desagradvel sentimento de
indeciso [].
Quando me comparo a mim mesmo tendo em mente minhas antigas lembranas de Isnaia Poliana, posso sentir o quanto
me tornei mais liberal.
Anotao no dirio, 1856
Turguniev sentiu que estava se dirigindo a algum que ele j quase conhecia,
uma vez que de fato tinha conhecido a irm de Tolsti, Macha, no outono do ano
anterior (e a bem da verdade se apaixonara por ela). Acontece que a propriedade
do marido de Macha, Valerian Pietrvitch, ficava a menos de vinte quilmetros
da casa ancestral de Turguniev, e o amor pela caa levara os vizinhos a entrarem
em contato. Naturalmente, Turguniev era a primeira pessoa que Tolsti queria
encontrar quando chegou a So Petersburgo. Depois de se registrar em um hotel e
visitar uma casa de banhos, seguiu direto para o apartamento de Turguniev, e
deparou-se com o escritor saindo de sua casa na esperana de encontr-lo. Os
dois trocaram efusivos beijos e abraos, e imediatamente Turguniev insistiu que
Tolsti se hospedasse em seu apartamento junto ao rio Fontanka lugar que
seria a casa de Liev ao longo do ms seguinte, enquanto se readaptava vida
civil.
Na condio de autor celebrado e oficial recm-chegado da frente de batalha,
Tolsti foi recebido como heri pelos editores de O Contemporneo. Alm disso,
havia em torno dele uma aura de mistrio. Ali estava um jovem que, trs anos
antes, por iniciativa prpria, submetera um manuscrito do Cucaso, e ningum da
revista o conhecia pessoalmente. A bem da verdade, pouca gente era capaz
sequer de reconhecer seu nome, pois ele assinara todos os seus textos apenas com
as iniciais. Tolsti tambm estava ansioso para conhecer seus novos colegas, com
quem vinha se correspondendo, e esperava que tivessem espritos afins ao seu.
Da ltima vez que estivera em So Petersburgo, Tolsti era um rapaz imaturo e
impressionvel, mas agora era um autor publicado, um heri de guerra, uma
celebridade. No primeiro dia Turguniev levou-o para conhecer Nekrsov (os
escritrios de O Contemporneo estavam localizados em um edifcio do outro lado
do rio), e os dois almoaram, conversaram e jogaram xadrez at s oito da noite.
Em carta a um amigo, um extasiado Nekrsov descreveu Tolsti como melhor
do que seus textos, um falco, ou talvez uma guia. Depois disso vieram
reunies com crticos e editores, jantares com outros escritores, incluindo o
romancista Ivan Goncharov, ento trabalhando em sua obra-prima Oblomov
(1859), e o poeta Fidor Tutchev. Em pouco tempo Tolsti conheceu
pessoalmente todos os luminares da literatura russa, que no mediram esforos
para expressar o quanto estavam encantados com o jovem e talentoso oficial de
artilharia.
Tolsti achou inebriante estar de volta a um ambiente civilizado, onde havia
Alm da tia Toinette, Alexandrine foi uma das poucas mulheres na vida de
Tolsti que ele realmente respeitava. Ela no se casara nem tivera filhos, e por
isso Liev no a punha na categoria da mulher tpica, embora certamente
sentisse atrao por ela. Era claro que ela tambm sentia que havia um frisson
entre os dois. Mais tarde os dois primos acabariam tendo uma sria rusga
ocasionada por divergncias sobre religio, numa poca em que Tolsti rompeu
com todo mundo de quem era prximo, mas o fato que nutriam profundo
carinho um pelo outro. Alexandrine era uma mulher tremendamente franca e
inteligente, cuja companhia ele apreciava. Depois que Tolsti se refugiou em
Isnaia Poliana, o contato com a prima ficou mais espordico, mas a
correspondncia entre os dois sempre foi animada. Era a Alexandrine,
obviamente, que Tolsti recorria quando precisava de uma linha direta com o
tsar, pois ela era muito bem relacionada na corte. Escrever cartas pessoais ao tsar
tornou-se um hbito para Tolsti, e no incio Alexandrine atuava de bom grado
como intermediria, embora esse entusiasmo tenha arrefecido quando, no fim da
vida, seu primo tornou-se uma ameaa pblica, ao confrontar-se abertamente
com o governo russo.
No final de novembro Tolsti escreveu uma entusistica carta a sua irm
Macha, para contar sobre seu encontro com Turguniev (e para dizer que tinha
achado Nekrsov um sujeito bem pouco brilhante). Poucos dias depois recebeu a
resposta, em que ela o exortava a visitar o irmo Dmtri, gravemente doente.
Uma vez que tecnicamente Tolsti estava em servio ativo do exrcito, precisou
solicitar licena, e s pde sair da cidade em 1 o de janeiro. A essa altura tinha
sido transferido para uma unidade de munies navais em So Petersburgo, o que
efetivamente o deixava livre para cuidar de seus prprios interesses. Agora Dmtri
estava morando em Oriol, a sudeste de Tula, e nos ltimos dias de vida ficou sob
os cuidados de Macha e o marido, alm da tia Toinette e sua esposa por direito
consuetudinrio uma ex-prostituta chamada Macha. Tolsti chegou em 6 de
janeiro e encontrou o irmo devastado pela tuberculose, sofrendo atrozmente, o
rosto macilento dominado por olhos arregalados e fitos. Sem querer aceitar a
morte, Dmtri estava convencido de que poderia ser curado com a ajuda de um
cone milagreiro, para o qual ele orava constantemente. Tolsti achou a
experincia to desoladora que partiu no dia seguinte. Dmtri morreu nos braos
da esposa em 22 de janeiro de 1856.
Tolsti no falava com o irmo havia mais de um ano, nem sequer sabia que
Dmtri estava doente. Todos os Tolsti tinham sua dose de dikost,
particularmente Liev, mas Dmtri no ficava muito atrs. Ambos eram
intransigentes e exagerados. Depois do fiasco por que passou em So
Petersburgo, Dmtri retornara a sua propriedade na provncia de Kursk, onde
assumiu um cargo modesto no governo local. Em 1853 ele adoeceu gravemente
em Moscou, onde cultivou uma barba comprida e se tornou bastante recluso.
Quando constatou que no lhe restava muito tempo de vida, subitamente
abandonou sua antiga devoo e seus hbitos ascticos e se entregou a uma vida
dissoluta de bebedeira, jogatina e promiscuidade. Depois de comprar Macha do
bordel em que ela trabalhava, passou a trat-la muito mal, enxotando-a de casa e
chamando-a de volta seguidas vezes. Dmtri, o irmo mal amado, tinha escrito
sua ltima carta para Tolsti em outubro de 1854, contando que dissipara quase
sete mil rublos para pagar dvidas e agora estava trabalhando no jardim da
propriedade. Sem revelar ao irmo que estava morrendo, Dmtri confessou que se
sentia mais triste do que entediado: triste porque estou sozinho, e no sou o que
podia ter sido, e por fim triste porque nada deu muito certo. Tolsti, que no tinha
aprovado a sbita mudana de estilo de vida do irmo, no respondeu. Quando
foi visitar Dmtri em Oriol, anotou em seu dirio que todos os pensamentos ruins
sobre o irmo viraram p assim que o viu. Mas mesmo assim foi embora.
Do leito de morte de Dmtri, Tolsti viajou para Moscou, onde soube do
falecimento do irmo. Assim que a ex-prostituta Macha retornou cidade, ela
contou a Tolsti que Dmtri s tinha percebido a gravidade de sua situao
poucas horas antes de morrer, quando ento comeou a solicitar a presena de
um padre e de um mdico e implorou para ser levado a Isnaia Poliana, onde
poderia descansar em paz. De fato, Dmtri foi enterrado l. Mais tarde, Tolsti se
arrependeu amargamente de ser uma pessoa to absorta na prpria vida a ponto
de no ter reparado antes na gravidade da situao do irmo. E tambm sentiu
remorso pela maneira grosseira com que se comportara em relao a Dmtri. Em
Anna Karinina, Tolsti traz Dmtri de novo vida como o irmo de Livin,
Nikolai, personagem que tambm mantm um relacionamento com uma exprostituta. Uma vez que no havia presenciado o evento real, Tolsti foi
particularmente cuidadoso ao descrever a agonia final de Nikolai no nico
captulo do romance dotado de ttulo (Morte), em que tambm se valeu da
experincia de ter testemunhado a morte de seu irmo Nikolai. No fim da vida
pelo fogo ou pela gua... Seja qual for o caso, h o anncio em que se l: s dez da manh, por ordem da
corte do condado ou do magistrado da cidade, a propriedade do capito reformado T..., consistindo da
casa no X, em tal distrito, e seis homens e mulheres, ser vendida em leilo... Todos ficam interessados na
pechincha. Chegam o dia e hora marcados. Vindos de toda parte, os compradores se renem. No salo
onde ser realizado o leilo, os condenados esto de p, imveis. Um velho de 75 anos, amparado numa
bengala de olmo, est ansioso para descobrir em que mos estar seu destino, quem fechar seus olhos.
Ele serviu com o pai de seu senhor na campanha da Crimeia sob o comando do marechal de campo
Munnich. Na Batalha de Frankfurt, carregou nos ombros seu senhor ferido. Ao retornar para casa,
tornou-se o tutor de seu jovem senhor. Na infncia [do senhor], ele salvara o menino, que cara no rio
durante uma travessia de balsa; arriscando a prpria vida, pulou no rio e evitou o afogamento. Na
juventude [do senhor], pagou a fiana e tirou-o da priso, onde estava confinado por dvidas contradas
enquanto servia o exrcito na condio de oficial subalterno [].
quase se apaixonou, mas foi tudo elaborado demais com boa dose de inveno.
Ao mesmo tempo em que a cortejava naquele vero, ele achava impossvel
conter seu mpeto de correr atrs das camponesas, o que depois suscitava nele
sentimentos de culpa.
No incio do outono Tolsti tinha terminado de ditar Juventude a uma copista
e recebera exemplares de seus primeiros livros: Histrias de guerra (reunindo os
relatos de Sebastpol, A incurso e A derrubada do bosque), Infncia e
Adolescncia. Tambm tinha encaminhado ao exrcito uma carta solicitando
dispensa, alegando motivo de sade, e no final de novembro era de novo um
civil. Em 1 o de novembro partiu para Moscou, e de l para So Petersburgo,
ainda tendo Valria em mente como futura esposa. A pobre moa passou todo o
outono recebendo cartas paternalistas instruindo-a sobre qual seria seu papel, o
de ser uma me (mat), mas no uma abelha-rainha (matka), e perguntando se ela
entendia a diferena. Algumas das cartas eram longas e atenciosas, mas a maior
parte das arrogantes diretivas era de cair o queixo, tamanha sua hipocrisia
moralista, se consideramos o histrico do prprio remetente. Seu principal
defeito sua fraqueza de carter, e todas as suas outras pequenas falhas advm
da, ele escreveu numa das condescendentes cartas. Empenhe-se para melhorar
sua fora de vontade. Seja comedida e lute contra os velhos e maus hbitos.
Naquele outono o ardor j meio morno de Tolsti esfriou ainda mais, e em 1856
ele escreveu uma carta brusca rompendo relaes, o que deixou Valria
compreensivelmente magoada e confusa. Em janeiro ele enviou a ela uma
contrita carta de desculpas, mas mesmo ento admitiu sua culpa para si mesmo
antes de admiti-la para Valria.
Antes de assinar contrato com O Contemporneo Tolsti tinha prometido uma
histria para o peridico Notas da ptria, o principal rival da revista de Nekrsov,
e passou boa parte de sua estadia em So Petersburgo naquele vero trabalhando
numa narrativa que ele tinha extrado de seu inacabado Romance de um fazendeiro
russo, com que vinha pelejando desde o perodo em que estivera no Cucaso. Em
A manh de um fazendeiro, publicado em dezembro, ele ficcionalizou suas
prprias experincias na tentativa de melhorar a vida de seus servos. Sua
preocupao de tratar com seriedade os camponeses russos como personagens de
fico era semelhante encontrada em Notas de um caador, publicado dez anos
antes, mas, sob o novo tsar, agora era possvel dizer muito mais coisas. Fato
importante que A manh de um fazendeiro recebeu a aprovao do novo
estrangeiro para que pudesse empreender sua primeira viagem ao exterior. Depois
de um ms de tediosos trmites burocrticos, estava pronto para deixar Moscou a
fim de se preparar para a viagem, e em 9 de novembro (21 de novembro, de
acordo com o calendrio gregoriano usado na Europa Ocidental) chegou a Paris,
ao final de uma jornada de doze dias. Tinha decidido viajar sozinho, sem criados.
Na mesma noite, depois de desfazer as malas no Htel Maurice na Rue de Rivoli,
foi ao tradicional baile Samedi Gras na pera de Paris, onde se juntou a
Turguniev e Nekrsov.
As seis semanas de Tolsti em Paris ganharam um colorido especial por
conta de seus encontros com Turguniev; os dois se viam quase diariamente. De
modo geral, se deram bem. Turguniev vinha passando cada vez mais tempo em
Paris e conhecia a cidade como a palma da mo, portanto era um guia
maravilhoso. Tolsti se rendeu s visitas a pontos tursticos o Louvre, Notre
Dame, o Muse de Cluny, o tmulo de Napoleo no Htel des Invalides
(terrvel deificao), o Cemitrio Pre Lachaise e, depois, viagens a Versalhes,
Fontainebleau e, um pouco mais longe, Dijon. E tambm assistiu a diversos
espetculos. Foi ao Thtre Franais para ver Molire e Racine, ouviu Rigoletto, Il
Barbiere di Seviglia e La Fille du rgiment na pera Italiana, uma opereta na Bouffes
Parisiens, e assistiu a uma farsa no Thtre des Varits. Tambm ouviu palestras
na Sorbonne. E, na manh de 25 de maro, foi testemunhar uma execuo
pblica por guilhotina, experincia que o traumatizou de tal maneira que decidiu
deixar Paris. Embora tivesse planos de ir a Londres (vinha tendo aulas de ingls
em Paris), em vez disso seguiu para Genebra, para se encontrar com Alexandrine
e sua irm, ento de frias na companhia da gr-duquesa Mria Nikolievna. Por
carta, Tolsti disse irm que tinha chegado pouco antes do final da Grande
Quaresma, e que tinha jejuado para poder comungar.
Aliviado por escapar de Sodoma e Gomorra, como ele se referiu a Paris,
Tolsti passou trs meses e meio se revigorando na Sua. Tambm voltou a
empunhar a pena e aproveitou para colocar em dia suas eclticas leituras, que
incluram Vida de Charlotte Bront, de Elizabeth Gaskell, Tocqueville, Proudhon,
Balzac, as memrias de Napoleo ditadas a Las Cases (O Memorial de Santa
Helena) e Goethe. Turguniev continuava achando Tolsti uma figura bastante
confusa. Ele uma pessoa estranha, confidenciou em carta a um amigo.
Nunca conheci ningum parecido com ele, e no consigo entend-lo direito.
Uma mistura de poeta, calvinista, fantico, nobre algo que lembra um pouco
Rousseau, mas mais honesto que Rousseau altamente virtuoso, mas pouco
atraente. O fato que Turguniev entendia Tolsti muito bem e, sabendo que
se entediava facilmente, previu que logo o amigo se cansaria do lago Genebra. A
bem da verdade Tolsti gostou de sua estadia na Sua. verdade que ele no
parava muito tempo no mesmo lugar, mas a companhia de Alexandrine era
bastante agradvel. Depois de duas semanas, os dois atravessaram de balsa o lago
at Clarens, de onde Tolsti escreveu uma carta empolgadssima para a tia
Toinette dizendo que era o mesmo vilarejo onde tinha vivido a Julie de La
Nouvelle Heloise (A nova Helosa), de Rousseau. O cenrio era arrebatador. No
tentarei descrever a beleza deste lugar, particularmente neste momento, quando
tudo est coberto de folhas e florescendo (Je nessayerais pas de vous dpeindre la
beaut de ce pays surtout prsent quand tout est en feuilles et en fleurs), ele escreveu,
dizendo a ela que achava impossvel tirar os olhos do lago. Passava a maior parte
do tempo fazendo caminhadas ou simplesmente olhando pela janela do quarto.
De Clarens havia excurses para Lausanne, Vevey, Montreux e Chillon, com
caminhadas nas montanhas e piqueniques com outros turistas russos. No final de
maio, Alexandrine e sua irm voltaram para Genebra, e Tolsti partiu para uma
jornada a p pelos Alpes, levando consigo Sacha Polvanov, menino de onze anos
de idade que era filho de conhecidos russos; alm disso, em sua mochila
carregava seu dirio e um suprimento de papel. Era a primeira vez que Tolsti se
via nas montanhas desde sua temporada no Cucaso cinco anos antes, mas a
tranquilidade das pastagens alpinas, salpicadas de narcisos e vacas bem
alimentadas com sinetas penduradas no pescoo dignas de livros ilustrados
era profundamente diferente da Chechnia. Quando os viajantes chegaram a
Grindelwald, onde Tolsti desceu uma geleira, ele comeou a registrar suas notas
de viagem, pensando que poderiam ser publicadas de alguma forma em O
Contemporneo. Contudo, o foco principal da escrita de Tolsti na Sua era uma
narrativa que viria a se tornar Os cossacos.
Turguniev estava certo sobre a inquietude de Tolsti. Logo aps retornar de
sua caminhada alpina de onze dias, ele partiu novamente, agora para Berna e
Friburgo. Dias depois voltou para Genebra, e de l rumou para Chambry, na
Savoia, e muitos outros lugares que evocavam o vigrio de Emlio, de Rousseau.
Em Turim, Tolsti se encontrou com amigos, os Botkin e Alexander Druzhinin.
A jornada de regresso Sua levou Tolsti primeiro a Ivrea e depois a duas
subidas do monte Rosa. A seguir fez paradas em Pont Saint-Martin, Gressoney e
semana por exemplo, viu uma mulher espancando sua serva adolescente e um
funcionrio dando uma surra num idoso por achar, equivocadamente, que tinha
sido enganado. Tolsti mergulhou em Beethoven e na Ilada. E tambm renovou
seus esforos para chegar a um acordo com os servos. Por fim todos eles foram
transferidos do antigo sistema de corveia para o pagamento de um aluguel ou
imposto territorial (efetivamente um pagamento de resgate, eximindo-os de
sua obrigao de servir e dando-lhes autonomia para cultivar a terra para seu
prprio benefcio); mesmo assim, anos depois Tolsti continuaria sentindo culpa
por exigir de seus servos algum tipo de compensao financeira em troca do uso
de uma terra que pertencia a eles. No que restava de sua propriedade, Tolsti
agora passou a usar mo de obra contratada e libertou os servos domsticos.
Reminiscncias dessa experincia de negociao com os servos aparecem na
terceira parte de Anna Karinina, em que Tolsti descreve como a boa vontade de
Livin refutada por seus camponeses.
Em outubro de 1857 Tolsti partiu com Macha e os filhos dela para passar o
inverno em Moscou, e se estabeleceram no antiquado e nada glamoroso
quarteiro de comerciantes, onde o dramaturgo Ostrvski morava. Nikolai,
depois de dar baixa do exrcito pela segunda e ltima vez, se juntou a eles.
Naquele inverno Tolsti fez duas breves visitas a So Petersburgo. Durante os
nove dias em que passou na capital no final de outubro, compareceu a reunies
com o ministro da Propriedade Estatal para discutir um projeto de silvicultura e
se encontrou com Alexandrine. Tambm assistiu a uma apresentao de Il
Trovatore de Verdi ( poca a prestigiosa pera Italiana estava no auge da
popularidade), mas de resto foi uma visita comedida. A obra mais recente de
Tolsti no tinha sido recebida com o mesmo entusiasmo de seus primeiros
trabalhos, e ao criticar o mundo burgus ocidental em Lucerna estava se
indispondo com crticos como Tchernchevski, tremendamente influenciados por
ideologias ocidentais. Tolsti no tinha interesse em fazer dos comentrios
polticos e das questes sociais o tema de sua literatura, e chegou a brincar com a
ideia de fundar um jornal para se contrapor a essas tendncias. Ele virou as
costas para a nova corrente militante nas letras russas que brandia a literatura
como arma de reforma social e descartava as preocupaes estticas como
ultrapassadas.
Em fevereiro de 1858 Tolsti escreveu a Nekrsov para dizer que queria
encerrar seu contrato com O Contemporneo, e quando, em maro, visitou
Tolsti foi caar animais. No final de dezembro de 1858, Liev e seu irmo
Nikolai foram convidados por alguns amigos para caar ursos na Rssia era
costume caar os ursos quando ainda estavam hibernando. No primeiro dia,
armado com dois rifles e uma adaga, Tolsti matou um urso, mas no segundo dia
um urso se assustou com um tiro de espingarda e quase o matou. Ele ganhou uma
cicatriz permanente na testa e uma histria para contar mesa do jantar pelo
resto da vida (mais tarde ele transformaria o episdio em histria infantil).
Homem vigoroso e duro, Tolsti obviamente no se deixou deter pelo
ferimento, e semanas depois matou o urso que o atacara. A pele do animal
acabou virando tapete em Isnaia Poliana. Naquela primavera tambm caou
raposas e lobos. Depois de se fixar em Isnaia Poliana Tolsti no abandonara
completamente a literatura. Em janeiro de 1859 ele publicou uma histria
chamada Trs mortes. Parbola de arte e moralidade que compara as mortes de
um cocheiro, de uma rvore e de uma mal-humorada senhora nobre; da mesma
cepa de Lucerna e Albert, e tambm foi recebida com frieza e
incompreenso. Uma obra de maior flego publicada naquele ano foi o romance
curto Felicidade conjugal, cujo enredo (um homem mais velho se casa com uma
menina rf sob sua tutela) claramente calcado nas experincias de Tolsti com
Valria rseneva. Mais tarde ele ficaria bastante descontente com o livro, que
embora no tenha cado nas graas do pblico tem muitas qualidades, como o
fato de ser narrado por uma mulher. Nesse livro, Tolsti tambm parece estar
lutando contra a figura paterna de Turguniev como escritor, numa resoluta
tentativa de sair de sua sombra.
A popularidade de Tolsti junto aos leitores pode at ter cado um pouco,
mas sua fico estava comeando a merecer somas suntuosas. Por Felicidade
conjugal Tolsti recebeu 1.500 rublos de Mikhail Ktkov, editor do peridico em
que o texto veio a lume, Mensageiro Russo. Imediatamente Tolsti gastou todo o
dinheiro durante uma sesso de bilhar chins (jogo de tabuleiro semelhante
bagatela, e em que se impulsionam bolas para o alto, marcando pontos segundo
os lugares em que elas caem). Ele passaria quase trs anos sem publicar fico,
pois agora suas atenes tinham se voltado para as atividades educacionais com
os camponeses. Quando constatou que os mujiques tinham resistido s suas
tentativas de melhorar as condies em que viviam simplesmente porque eram
ignorantes demais para entender que sua inteno era benfica, Tolsti resolveu
ensinar-lhes a ler e escrever. Na dcada de 1850, menos de 6% da populao
rural era alfabetizada. Nas regies rurais no existiam escolas pblicas, nem
mesmo no nvel primrio ou fundamental, e a pouca instruo que havia
oferecida por algum padre de vilarejo ou um soldado reformado (aprender a ler e
escrever estava entre os poucos benefcios do servio militar) era primitiva e
paga. Os professores ensinavam de maneira mecnica e pouco imaginativa, sem
incentivar o pensamento, e aplicavam punies corporais. Os senhores
proprietrios de terras no tinham a obrigao de educar seus servos, e em um
pas onde os camponeses eram tratados como espcie subumana, no surpreende
que poucos o fizessem. Tolsti no entendia qual era o sentido de introduzir na
Rssia ferrovias, telgrafos e outras formas de modernizao se a grande massa
do pas no tinha acesso educao pblica.
Em outubro de 1859 reabriu sua escola para crianas camponesas em Isnaia
Poliana, agora com mais seriedade e em melhores condies que antes. A
princpio a iniciativa foi recebida com desconfiana pelos camponeses,
principalmente porque no era preciso pagar (Tolsti custeava tudo), mas em
maro de 1860 j havia cinquenta alunos matriculados meninos, meninas e
alguns adultos. A principal misso de Tolsti como educador era introduzir a
liberdade na experincia de aprendizagem: seus alunos tinham permisso para
frequentar as aulas quando bem quisessem, e no havia castigos fsicos. Havia
elaborado um slido programa curricular com doze matrias, mas dava
importncia flexibilidade, de modo que o professor se adequasse s
necessidades de seus alunos, e no o contrrio. Isso era extremamente inovador.
Foi a escola de Isnaia Poliana que deu a Tolsti uma noo daquilo que o
escritor julgava ser sua verdadeira vocao, uma vez que foi somente quando ele
executou medidas prticas para redimir a enorme dvida da Rssia para com seu
campesinato ignorante e incivilizado que a voz de sua conscincia se apaziguou.
Com o passar do tempo ele percebeu que seu destino era nadar contra a corrente,
mas agora estava comeando a se sentir mais confortvel consigo mesmo.
Em maio de 1860 os irmos de Tolsti Nikolai e Serguei fizeram uma
viagem ao exterior, mais especificamente para a Alemanha. Nikolai estava
padecendo de tuberculose, como Dmtri, e seu plano era se submeter a um
tratamento curativo na estncia de Soden. Macha, que era hipocondraca e
tambm no estava se sentindo bem, resolveu seguir para tratamento no
estrangeiro, levando consigo os trs filhos; Tolsti decidiu acompanhar a irm.
De qualquer forma, as aulas tinham mesmo de ser interrompidas no vero,
Matthew Arnold, inspetor escolar que em 1857 tinha sido nomeado para a
ctedra de poesia de Oxford, Tolsti visitou a Practising School do St. Marks
College em Chelsea, onde pediu aos alunos da classe 3b que escrevessem um
ensaio para ele. Liev levou as redaes para a Rssia. Arnold tomou providncias
para que Tolsti visitasse escolas primrias em Bethnal Green, Brentford,
Spitalfields, Hoxton, Westminster e Strattford, mas o escritor no manteve um
dirio durante sua visita Gr-Bretanha, por isso no fica claro se ele de fato as
visitou; sabemos, contudo, que fez diversas visitas proveitosas biblioteca anexa
ao South Kensington Museum, que continha material pedaggico bastante
interessante. O futuro Museu Victoria e Albert tinha aberto suas portas dois anos
antes.
Em 17 de maro (5 de maro na Rssia), dia em que Tolsti deixou Londres,
o Manifesto da Emancipao da Servido que tinha sido assinado em 3 de
maro (19 de fevereiro), no sexto aniversrio da ascenso de Alexandre ii ao
trono foi finalmente publicado. O manifesto tinha sido escrito pelo
metropolita Filaret em um estilo deliberadamente grandiloquente, adequado para
a leitura em igrejas, e foi impresso em todos os jornais; Tolsti ficou indignado
por constatar que os camponeses jamais entenderiam o documento. Tambm
ficou enfurecido pelo tom do texto, que parecia sugerir que o manifesto estava
concedendo aos servos um favor e no corrigindo uma grave injustia. Ele tinha
razo. Com o fim da servido em 1861 os camponeses deixaram de ser
propriedade dos senhores, mas os termos de sua libertao no atenuaram o
abismo social e em nada contriburam para melhorar a situao da massa
camponesa.
Prxima parada: Bruxelas. Tolsti se encontrou com o poltico socialista
Pierre-Joseph Proudhon, autor, entre outras obras, de Ideia geral de revoluo no
sculo xix (1851), e com o ex-poltico socialista Joachim Lelewel, que participara
do Levante de Novembro, tambm conhecido como a Revoluo dos Cadetes
(1830). Tambm visitou escolas belgas e se deixou fotografar. Seu ltimo retrato,
tirado em So Petersburgo, mostrava um oficial de expresso sria, de bigode e
cabelo bem curto. Em suas viagens europeias Tolsti vestia-se muito bem,
envergando sobrecasaca e cartola, mas agora j estava usando a barba que se
tornaria parte intrnseca de sua personalidade. Depois de Bruxelas se seguiram
seus ltimos meses de viagem para Anturpia, Frankfurt, Eisenache e Weimar,
onde havia mais escolas a inspecionar. A essa altura Tolsti j ansiava por voltar
para casa, mas enquanto estava na Europa ele queria fazer o mximo possvel de
coisas, por no saber quando retornaria (no final das contas, nunca mais). Parou
em Jena, Dresden e Weimar, onde se encontrou com Gustav Keller, jovem
professor de matemtica a quem convidou para dar aulas em sua escola de
Isnaia Poliana. Sua ltima parada foi em Berlim, onde procurou o escritor
Berthold Auerbach, cujo portentoso (e hoje em dia praticamente esquecido)
romance Neues Leben [Uma vida nova], de 1851, tinha sido bastante influente em
sua deciso de fundar a escola para os filhos dos camponeses. Claramente Tolsti
se identificava com o protagonista Eugen Baumann, aristocrata que se torna
professor de uma escola primria de vilarejo. Sem se identificar ou se apresentar,
Tolsti simplesmente marchou na direo de Auerbach e anunciou Ich bin
Eugen Bauchmann [Eu sou Eugen Bauchmann]. Liev ficou to empolgado de
conhecer pessoalmente Auerbach que marcou o evento em seu dirio com quinze
pontos de exclamao.
Em 13 de abril, Tolsti finalmente desembarcou em So Petersburgo. Antes
de voltar para casa, agendou reunies com o ministro da educao a fim de
solicitar permisso formal para fundar um peridico pedaggico, que foi
concedida (naquele momento ningum no ministrio podia prever o quanto as
ideias educacionais de Tolsti se tornariam subversivas). Em maio Liev j estava
de volta a Isnaia Poliana e dando aulas no pomar de mas, mas sentia a mesma
inquietao de sempre. No final do ms viajou para Spasskoie-Lutvinovo para
visitar Turguniev, que tinha acabado de escrever Pais e filhos, o romance que
explora o embate entre os novos niilistas radicais da dcada de 1860 e a
gerao conservadora dos velhos reacionrios da dcada de 1840. Turguniev
leu o livro em voz alta, e Tolsti achou to tedioso que pegou no sono.
Turguniev se sentiu mortalmente ofendido. Poucos dias depois, em visita a Fet
em sua propriedade recm-adquirida no campo, Tolsti e Turguniev tiveram
uma violenta discusso sobre uma questo trivial. Dessa vez Tolsti ficou to
insultado que desafiou o amigo para um duelo. Mandou inclusive buscar armas na
propriedade de Nikolskoie, que herdara do irmo Nikolai, e passou uma noite
insone, mas o duelo jamais foi travado. A amizade dos dois nunca mais foi a
mesma. Seguiu-se uma alvoroada enxurrada de acusaes, pedidos de desculpas
e cartas que ou chegavam na hora errada ou eram lidas tarde demais, e a situao
se exacerbou porque surgiram rumores de que cpias dessas missivas estavam
circulando em Moscou. Tolsti considerava Turguniev um covarde, desprezava
quis fazer mais. Valendo-se de sua posio de juiz de paz, no outono de 1861 ele
j conseguira abrir 21 escolas locais, todas funcionando a pleno vapor. As escolas
eram improvisadas em cabanas. No havia mesas nem carteiras nem lousas, e as
paredes eram to sujas que nelas se podia escrever com giz, portanto serviam
perfeitamente bem como quadro-negro. Entre os professores havia os usuais
padres ou ex-soldados, mas tambm ex-universitrios que precisavam de
emprego. Em outubro do ano anterior haviam eclodido manifestaes depois que
o governo introduziu uma srie de malfadadas reformas universitrias, incluindo a
frequncia obrigatria e o pagamento de taxas proibitivas para muitos estudantes.
Como resultado muitos deles acabaram expulsos. Cada estudante-professor
recebia cinquenta copeques por ms, portanto os salrios mensais variavam em
mdia dez rublos. Os professores tambm recebiam um honorrio por sua
contribuio com a revista Isnaia Poliana.
A primeira edio da revista foi publicada em janeiro de 1862, e teve outras
onze. Embora alguns artigos fossem escritos por professores, Tolsti era tambm
o colaborador mais prolfico do peridico. Na primeira edio ele fez um relato
do cotidiano da escola em Isnaia Poliana:
Ningum traz consigo coisa alguma, nem livros nem cadernos. Nenhum aluno obrigado a fazer dever de
casa. Alm de virem de mos vazias, os alunos no so obrigados a decorar lies, sequer a aula do dia
anterior. Eles no se atormentam com o pensamento da tarefa por fazer. Trazem apenas a si mesmos, sua
natureza receptiva, e a certeza de que hoje a escola ser to alegre quanto ontem []. Ningum jamais
repreendido por se atrasar. Eles se sentam onde querem: bancos, mesas, peitoris das janelas, poltronas. O
horrio prev quatro aulas antes do jantar, que s vezes na prtica se tornam trs ou duas, e que podem ser
sobre assuntos bastante diferentes []. Na minha opinio essa desordem externa til e necessria, por
mais estranha e inconveniente que possa parecer ao professor []. De incio essa desordem, ou ordem
livre, nos assusta, porque fomos educados de outra maneira e estamos acostumados a algo bem diferente.
Em segundo lugar, neste como em muitos casos semelhantes, a coero s usada por causa de pressa ou
falta de respeito pela natureza humana [].
com outras questes. A tenso causada por outros juzes de paz, que obstruam
todas as suas iniciativas, e as montanhas de papelada que seu trabalho gerava
eram debilitantes, e Liev comeou a adoecer. Para regozijo dos outros senhores
de terra, vidos por se vingarem do homem que arruinara seu corrupto sustento,
Tolsti pediu demisso do cargo em abril de 1862. Pouco depois partiu para as
estepes alm de Samara, levando consigo dois de seus pupilos favoritos e o servo
Alexei. Liev planejava um tratamento curativo base de cmis (leite de gua
fermentado), na esperana de revigorar seus nervos debilitados. Os vizinhos
hostis de Tolsti descarregaram seu dio e levaram a cabo sua maior vingana
naquele mesmo vero. Em julho de 1862, logo depois que o governo havia
determinado o fechamento da revista O Contemporneo, Tchernchevski foi preso
por disseminar propaganda revolucionria e exilado na Sibria. No mesmo ms a
polcia secreta tsarista deu uma batida em Isnaia Poliana, onde conduziu uma
minuciosa busca que se estendeu por dois dias inteiros, na esperana de encontrar
material sedicioso. Tia Toinette ficou to traumatizada pela invaso
tranquilidade de seu lar que adoeceu. Macha, ento hospedada em Isnaia
Poliana e dormindo no estdio do irmo, teve de aturar gendarmes russos
vasculhando os papis do irmo e lendo tudo que ele j tinha escrito na vida. Os
policiais reviraram a casa de cabo a rabo, incluindo o banheiro, celeiros e pores,
mas foram embora de mos vazias. Quando retornou de Samara e descobriu o
ocorrido, Tolsti ficou lvido, e destilou sua fria e sua angstia em uma carta
veemente a Alexandrine: Era minha vida toda, meu mosteiro, minha igreja, onde
eu encontrava a salvao, e me refugiava de todas as preocupaes, dvidas e
tentaes da vida, Liev escreveu, descrevendo o quanto seu trabalho na escola
era importante para ele. Temendo que a ao policial tivesse maculado de
maneira irreparvel sua reputao de probidade junto aos camponeses, Tolsti
decidiu fechar suas escolas, e na primavera seguinte todos os professores j
tinham ido embora (Gustav Keller, o jovem professor de matemtica alemo,
tornou-se tutor do filho de Tolsti, Gricha). Mas havia outro motivo pelo qual
Tolsti perdeu seu interesse nas escolas: finalmente tinha encontrado a mulher
com quem se casaria.
idade, Liev tinha plena conscincia de que sua noiva era apenas uma criana, e
em seus dirios chega a se referir a ela assim. Alm disso Tolsti era apenas dois
anos mais jovem que sua sogra, Lubov Alexndrovna, que ele conhecia desde
criana os pais de ambos tinham sido bons amigos. Quando Liev se casou com
Snia, o irmo caula dela, Viacheslav, tinha apenas um ano de idade.
Entretanto, era conveniente que Tolsti tivesse como noiva uma menina. Como
mais tarde comentaria seu filho Serguei, quando se casou Tolsti estava
profundamente apaixonado, mas tambm queria algum que ele pudesse moldar e
educar de acordo com seus prprios gostos. Desde o incio Snia aceitou de bom
grado a autoridade moral do marido, e em cartas escritas a Liev nos primeiros
anos de casamento se refere a si mesma como sua filha mais velha. Numa
dessas cartas, Snia assegura a Tolsti que no se esquecera de seu conselho
paternal.
E havia a questo da diferena de origem social. Logo no incio de suas
memrias Serguei aponta que o pai no queria se casar com uma aristocrata como
ele. Filha de um mdico descendente de um imigrante alemo e de uma nobre
russa ilegtima, Snia certamente no podia se orgulhar de uma genealogia muito
impressionante. Ao se casar ela encampou no apenas o ttulo como as opinies
do marido, e gostava de ser a condessa Tolsti. Mais tarde Tolsti renunciaria ao
ttulo, mas ela continuaria assinando Grafinia S. A. Tolstia ( grafinia era a forma
russa do original alemo Grfin). Snia jamais teve tempo de ruminar sobre as
ideias religiosas e filosficas que inspiraram a radical mudana de estilo de vida
de Liev estava ocupada demais criando sua famlia , por isso para ela era
ainda mais difcil adotar um tipo de vida totalmente diferente e renunciar aos
valores que ele cuidadosamente inculcara nela durante as primeiras dcadas de
casamento.
O bisav de Snia era Johann Brs (ou Berhs), oficial da Guarda da
Cavalaria da Saxnia, cujo braso mostra um urso rechaando um enxame de
abelhas, o que condiz com um sobrenome derivado da palavra alem para urso.
Em meados do sculo xviii Ivan Berhs, como se tornou conhecido em sua
encarnao russificada, foi despachado pela imperatriz Maria Teresa para So
Petersburgo a fim de dar assistncia imperatriz Elizabeth no treinamento militar
de suas tropas. Antes de ser morto em combate em 1758 na Batalha de Zorndorf,
Ivan se casou e teve um filho, Evstafi (Gustav), que foi criado em Moscou,
tornou-se qumico e se casou com a filha de outra famlia alem russificada.
Evstafi Berhs perdeu toda a sua riqueza e seus bens no grande incndio de
Moscou em 1812, mas graas a suas relaes alems conseguiu propiciar aos dois
filhos uma educao refinada. Ambos ingressaram na Universidade de Moscou
em 1822 e se formaram em medicina com o mais renomado clnico geral russo do
sculo xix, Nikolai Pirogov. Um dos dois irmos, Andrei, nascido em 1808, era o
pai de Snia.
A medicina no era uma profisso das mais prestigiadas na Rssia do incio
do sculo xix, e certamente no era um ofcio almejado pelos aristocratas.
Quando os irmos Berhs se formaram, com cerca de vinte anos de idade, os
mdicos mais respeitados ainda eram os estrangeiros, embora fossem tidos como
socialmente inferiores. No final da dcada de 1820, Andrei Berhs tornou-se
mdico da famlia Turguniev (o futuro escritor ainda era menino), e a
acompanhou a Paris. Ao longo dos dois anos seguintes ele se dedicou ao
aprofundamento dos estudos, pera italiana e, ao que parece, formidvel e
infeliz me de Turguniev, com quem teve uma filha ilegtima, Vrvara, que
acabou criando como sua pupila (o que faz de Snia meia-irm de Turguniev).
Depois de regressar a Moscou, Andrei comeou a trabalhar como mdico do
senado, que ficava localizado no interior do Krmlin, e no reinado de Nicolau foi
nomeado mdico da corte. O cargo lhe deu o direito de ocupar um apartamento
acanhado de teto baixo anexo ao Palcio do Krmlin, a imponente residncia de
setecentos cmodos do tsar em Moscou. Ali nasceu Snia em 1844.
A famlia nunca foi abastada. Tinham criados em seu apartamento do
Krmlin, claro, mas jamais foram donos de uma propriedade no campo ou
possuram servos. Para o dr. Berhs, trabalhar para o Estado russo significou
ingressar no servio pblico e na Tabela de Cargos ou Posies Sociais, assim
obtendo maior respeitabilidade social. De fato, ao finalmente chegar oitava
posio de assessor colegiado em 1842, Andrei Estfevitch ganhou o direito de
adquirir nobreza hereditria, mas ainda assim era considerado um pretendente
bastante inadequado para se casar com Lubov Islvina, a quem pediu em
casamento depois de cuidar dela como sua paciente. Alm do fato de que a
famlia dela tinha origem aristocrtica, da Rssia antiga, embora de um ramo
ilegtimo, que considerava Berhs pouco mais que um comerciante, a essa altura
ele j estava com 34 anos, e alm disso era luterano. Apesar de tudo o casamento
seguiu em frente, e Andrei e Lubov tiveram oito filhos. Snia e suas duas irms
(ela era a do meio) receberam educao domiciliar, primeiro a cargo de
Por acaso Alexandre ii estava visitando Moscou, o que quer dizer que a carta
pde ser entregue em mos. O tsar no se deu ao trabalho de responder
diretamente a Tolsti, mas em vez disso instruiu o prncipe Dolgorukov, chefe da
polcia secreta, a enviar uma carta hipcrita prestando contas ao governador de
Tula para que ele ento a passasse adiante.
Felizmente Tolsti tinha outras coisas com que se ocupar. Em vez de
regressar a Isnaia Poliana, ele tinha ficado em Moscou quando os Berhs
retornaram para seu apartamento no Krmlin no incio de setembro, e pelo menos
uma vez a fora de seus sentimentos romnticos o impediu de se tornar
pelo menos uma hora e meia. Na pressa de fazer as malas e empacotar tudo
em preparao para a jornada rumo a Isnaia Poliana logo aps o casamento ,
o criado de Tolsti tinha se esquecido de separar uma camisa limpa para o noivo.
Assim, se no apartamento dos Berhs esperava-se que o padrinho do noivo
chegasse para anunciar que Tolsti estava aguardando no altar, quem apareceu
foi um constrangido Alexei Stepnovitch, a fim de revirar as malas empilhadas
fazendo uma busca minuciosa procura de uma camisa. A cerimnia foi realizada
na Igreja da Natividade de Nossa Senhora, no corao do Krmlin, a minutos do
apartamento dos Berhs. Construda no final do sculo xiv, essa pequena igreja o
mais antigo entre todos os edifcios do Krmlin, e no sculo xix passou a fazer
parte do grande palcio construdo por Nicolau i (hoje em dia tudo que se v
seu tambor branco e sua cpula dourada acima do telhado verde do palcio
no foi devolvida Igreja Ortodoxa, nem aberta ao pblico). Ao contrrio das
majestosas catedrais vizinhas, onde havia celebraes de Estado, esta era uma
igreja frequentada por quem vivia e trabalhava no Krmlin, e na noite do
casamento de Tolsti estava abarrotada de penetras e curiosos funcionrios da
corte que trabalhavam no palcio , bem como um pequeno nmero de
convidados. Nenhum familiar de Tolsti compareceu cerimnia, a no ser tia
Polina, que acompanhou Snia na carruagem no trajeto at a igreja, juntamente
com seu irmo Vlodia, de dezenove anos, que carregava o cone de Santa Sofia,
a mrtir com que ela tinha acabado de ser abenoada pela me e o tio. Serguei, o
irmo de Tolsti, estivera em Moscou, mas j tinha partido a fim de organizar
uma recepo adequada para o casal em Isnaia Poliana. Sua irm Macha estava
em Marselha.
No final da noite, depois do champanhe comemorativo e depois de observar
o costume russo de se sentar e fazer as oraes antes de iniciar uma viagem, os
recm-casados partiram na dormeuse novinha em folha que Tolsti tinha comprado
especialmente para a ocasio: uma carruagem particularmente espaosa, adaptada
para permitir que uma cama fosse montada para os ocupantes. O veculo tinha
seis cavalos e era conduzido por um cocheiro e um postilho. Para Snia foi
difcil abandonar seus familiares, uma vez que ela jamais havia se apartado deles
e nunca tinha viajado no outono ou inverno, muito menos noite. Assim que a
carruagem deixou para trs a cidade, a luz dos lampies das ruas de Moscou deu
lugar mais completa escurido. Alm disso, chovia torrencialmente. Ainda
incapaz de criar coragem para se dirigir ao marido substituindo a forma de
tratamento vy pelo mais ntimo ty, Snia estava tambm aterrorizada: ela e Tolsti
jamais tinham ficado a ss. O casal mal trocou duas palavras antes de parar em
uma estalagem de beira de estrada em Biriulevo, 24 quilmetros ao sul de
Moscou, onde passaram a noite de npcias. Ela sabe tudo, O pavor dela,
Algo de doloroso estavam entre os incisivos e telegrficos comentrios que
Tolsti registrou em seu dirio depois que finalmente chegaram a Isnaia Poliana
na noite seguinte. Algumas semanas depois era evidente que Snia ainda pelejava
para aprender a lidar com as manifestaes fsicas do marido, que ela achava
apavorantes, mas que descobriu serem bastante importantes para ele.
Tolsti e Snia foram recebidos por Serguei, que lhes ofereceu po e gua, o
tpico sinal de boas-vindas da Rssia tradicional, e pela tia Toinette, que segurava
nas mos o cone da famlia, a Me de Deus do Sinal. Snia curvou-se em
profunda reverncia diante deles, persignou-se, beijou primeiro o cone, depois a
tia Toinette. Tolsti fez o mesmo. Ao longo dos dias seguintes Snia conheceu os
vrios membros da casa, medida que vinham apresentar seus cumprimentos ao
feliz casal; entre eles estavam o cozinheiro Nikolai Mikhilovitch, a vaqueira
Anna Ptrovna, acompanhada de suas filhas Annuchka e Duchka, a velha criada
da av, Agfia Mikhilovna, sempre cerzindo meias, mesmo enquanto
perambulava pela casa, a alegre lavadeira Aksnia Maxmovna e suas lindas filhas
Plia e Marfa, bem como o cocheiro, o confeiteiro e diversos outros criados e
camponeses da propriedade e de vilarejos vizinhos. Em um gesto atencioso, a
me de Snia tinha dado a ela trezentos rublos, para que de incio ela no tivesse
que depender do marido, mas em pouco tempo o dinheiro desapareceu,
convertido em presentes para os que vinham felicitar os recm-casados. Da por
diante Snia ficou totalmente dependente do marido em questes financeiras, e
detestava ter de pedir dinheiro a ele. Contudo, a prpria Snia aponta em sua
autobiografia que Tolsti jamais fez com que ela se sentisse uma noiva pobretona
sem dote, nem que sua fortuna pertencesse apenas a ele.
Isnaia Poliana agora era domnio tambm de Snia, e durante os primeiros
dezoito anos de casamento ela praticamente no arredou p de sua nova casa. De
imediato a tia Toinette incumbiu a esposa de Tolsti de administrar a
propriedade, entregando-lhe um enorme molho de chaves em uma argola, que
mais tarde ela usaria pendurada no cinto. Snia no fora criada em meio ao luxo,
mas ficou perplexa pela austeridade (quase pobreza) de seu novo lar. O marido
costumava dormir com um travesseiro velho, todo surrado, de couro vermelho,
sem fronha, e no havia sequer uma banheira na casa. Snia estava determinada a
mudar essa situao. Assim que chegou seu enxoval, sua prataria substituiu os
antiquados talheres de metal da casa, e um edredom de seda substituiu o de
algodo, que, para espanto de Tolsti, ela forrou com um lenol. Snia bordou as
iniciais L. T. em vermelho nas roupas de baixo de Tolsti. Depois de encontrar
um bicho na sopa, Snia decidiu cuidar da higiene na cozinha. No demorou para
que o cozinheiro comeasse a usar aventais e chapus brancos, e ela assumiu
tambm a responsabilidade pelo cardpio dirio. Com o tempo, Snia elaborou
um livro culinrio de Isnaia Poliana, consistindo de 162 receitas variadas, que
iam de Perdiz em molho de arenque e Pato com cogumelos a Como
preparar lcio assado. Havia tambm receitas tradicionais dos Tolsti, como
sufl de amndoas e pudim de po preto, ou a receita especial dos Berhs de torta
de ma, e o kvass de limo de Marusia Mklakova (comentrio: muito bom).
Snia acabou criando um slido lao de amizade com o cozinheiro, de quem
gostava muito, embora muitas vezes Nikolai Mikhilovitch ficasse to bbado
que sequer aparecia para trabalhar e era substitudo por sua alegre esposa. No
passado ele havia tocado flauta na orquestra de servos de Volkonski, e assumiu a
cozinha da casa depois de perder o bocal de seu instrumento, relato que ele
mesmo fez a Snia, com um sorriso triste e amarelo no rosto.
Os primeiros dias e semanas, enquanto Snia e Liev organizavam juntos a
casa, foram uma mistura de alegria incontida e de inevitvel atrito causado pelo
choque de hbitos e expectativas diferentes de duas pessoas que na realidade mal
se conheciam. Logo aps o regresso a Isnaia Poliana Tolsti escreveu a
Alexandrine para dizer que sequer sabia que era possvel ser to feliz, e que
amava sua esposa mais do que qualquer outra coisa no mundo. Tambm
comentou em seu dirio sobre a sensao de experimentar uma inacreditvel
alegria, mas poucos dias depois anotou que tivera uma discusso com Snia e
expressou sua tristeza por constatar que seu relacionamento com ela em nada
diferia da relao de qualquer outro casal. A essa altura Snia tinha retomado seu
dirio, que ela comeara a manter dois anos antes, e ao qual agora se voltava toda
vez que sentia estar perdendo a afeio do marido. Certamente ela estava
comeando a deixar de ser o centro exclusivo das atenes de Tolsti. At certo
ponto, o escritor conseguiu se ocupar de questes domsticas e da felicidade
conjugal, mas mais tarde, o prolongado afastamento de seus interesses
intelectuais comeou a parecer enfadonho. Trs semanas depois de casado ele
confidenciou a seu dirio: Todo esse tempo me mantive ocupado com questes
chamadas de prticas. Mas estou achando muito difcil essa ociosidade. No
consigo ter respeito por mim mesmo. Por isso no estou satisfeito comigo nem
muito seguro acerca de meus relacionamentos com os outros []. Eu tenho que
trabalhar....
Em primeiro lugar, Tolsti estava atrasado com as edies de agosto e
setembro de sua revista Isnaia Poliana. Seu entusiasmo pelo peridico j no era
o mesmo, mas havia dois artigos para a revista que ele precisava terminar um
deles formulava a ideia tipicamente tolstosta de que as crianas camponesas
tinham mais a ensinar aos professores do que o contrrio. No final de setembro, a
irm mais velha de Snia, Liza a que tinha sido preterida , encaminhou um
breve artigo sobre Lutero que lhe fra encomendado por Tolsti. O texto foi
concebido como um dos breves relatos histricos que ele esperava que
despertassem o interesse das crianas. Fosse pelo fato de ter sido alada
condio de condessa, fosse pelo puro cime de toda e qualquer coisa que
afastasse dela o marido, Snia se ressentia e no gostava do envolvimento de
Tolsti com o campesinato. Moa criada na cidade, para ela os camponeses eram
criaturas aliengenas, e nem no incio do casamento nem mais tarde ela foi capaz
de compreender a profunda devoo do marido por eles. No h dvida de que
Snia jamais compartilhou o amor de Tolsti pelos mujiques, o que mortificava
Liev. Mas havia uma razo adicional para o amargo e ciumento ressentimento de
Snia: ela lera, horrorizada, as anotaes no dirio de Tolsti sobre seu
envolvimento amoroso com a camponesa Aksnia Bazkina por exemplo, a
afirmao de que ele estava amando como nunca amei antes!. Snia sabia que
mais cedo ou mais tarde poderia acabar encontrando a ex-amante do marido,
porque claro que Aksnia no tinha ido embora e continuava trabalhando na
propriedade. Eu andei lendo o incio de alguns dos textos dele, ela anotou no
prprio dirio em 16 de dezembro de 1862, e a mera meno ao amor de outras
mulheres me faz sentir to enojada e deprimida que eu gostaria de queimar tudo,
absolutamente tudo. Assim eu no teria de ser lembrada de seu passado
novamente.
O problema que o envolvimento de Tolsti com o campesinato era
tambm de ordem lingustica e criativa. Ter combatido na Guerra da Crimeia
serviu para revelar a ele o abismo entre as classes instrudas e o campesinato.
Relutante em continuar a escrever somente para a nobreza, Tolsti tinha
mudanas medida que ele lia e absorvia obras como a Ilada. Por fim, o que
acabou sendo publicado na edio de janeiro de 1863 de Mensageiro Russo foi uma
novela intitulada Os cossacos, mas uma vez que Tolsti demorou muito para
entregar o manuscrito, a revista s apareceu de fato no final de fevereiro. Ele
tinha planejado escrever uma continuao, ideia que continuou cogitando, mas a
bem da verdade sua mente j estava ocupada por outras coisas. Os cossacos uma
espcie de metfora de inspirao rousseaniana da jornada espiritual empreendida
por Tolsti na dcada anterior ao seu casamento. Conta a histria de Olinin,
jovem aspirante a oficial de Moscou, que fica alojado em um vilarejo cossaco
durante o perodo em que se engaja nos exrcitos do Cucaso. Ele inveja a
liberdade dos aldees cossacos, percebendo que neles havia dignidade e nobreza
naturais, e se apaixona perdidamente por uma jovem cossaca particularmente
fascinante. Olinin acaba constatando que no capaz de sobrepujar sua origem
social aristocrtica e cosmopolita de modo a tornar-se uma criatura integrada
natureza como os cossacos, e conclui que precisa voltar sua antiga vida. Algo
semelhante aconteceu com o prprio Tolsti assim que se casou; em cartas a sua
confidente mais ntima, Alexandrine, ele prprio reconheceu abertamente o fato
de que sua maneira de encarar a vida tinha mudado. Agora ele estava pronto para
voltar a escrever fico sobre os membros de sua prpria classe, para um pblico
letrado.
Em janeiro de 1863 Tolsti anunciou imprensa moscovita que sua revista
Isnaia Poliana deixaria de ser publicada. No mesmo ano suas escolas tambm
seriam fechadas, o que fez com que os professores-alunos se dispersassem. Snia
no lamentou a debandada: grvida, ela compareceu a algumas reunies
realizadas na acanhada sala de estar da casa, e a densa fumaa do tabaco a
deixara nauseada. Assim que comeou a se sentir em casa em Isnaia Poliana
Snia passou a detestar a presena dos alunos na propriedade, uma vez que
vinham de origem social diferente da sua e afastavam dela seu marido. Em todo
caso Tolsti ainda precisava publicar a edio de dezembro de 1862 da revista
Isnaia Poliana, e concluiu seu derradeiro artigo para o peridico em 23 fevereiro
de 1863. Dois dias depois Snia escreveu irm Tnia para contar que o marido
dera incio a um novo romance. Era Guerra e paz. O livro s seria concludo
depois de seis anos de trabalho, mais de cinco mil pginas manuscritas, inmeros
comeos em falso e diversos ttulos diferentes. Na empolgao que tomou conta
de Tolsti logo aps seu casamento, ele declarou que gostaria de ter a liberdade
de trabalhar em um projeto de longo prazo (de longue haleine), mas nem mesmo
ele podia ter imaginado que seria preciso dedicar tamanho flego a esse novo
romance.
Assim como os recm-casados precisaram de vrios meses para se aclimatar
um ao outro, Tolsti precisou de boa parte do ano para encontrar o foco de seu
novo romance, mas no restava dvida de que queria aproveitar essa energia
criativa para compor uma obra de fico substancial. Primeiro ele revisitou uma
ideia com a qual vinha lidando desde 1856, sobre o destino de um capo malhado
famoso por sua velocidade. Kholstomr: a histria de um cavalo uma de suas
narrativas mais extraordinrias. Mais tarde Tolsti reescreveu a histria e criou
um narrador em terceira pessoa, mas grande parte da histria contada do ponto
de vista do cavalo. Certo vero, Tolsti foi visitar Turguniev, e quando os dois
voltavam para casa aps uma caminhada noturna encontraram um velho e
macilento cavalo parado em um pasto; definhando, o cavalo s tinha foras para
abanar o rabo a fim de afugentar as moscas. Tolsti foi afagar o cavalo e fez
comentrios sobre o que o animal devia estar pensando, o que levou Turguniev
a observar que em outra vida o amigo devia ter sido cavalo. Kholstomr foi
escrito entre 1860 e 1863, mas Tolsti no ficou contente com o resultado e
deixou a histria de lado, retomando-a apenas cerca de vinte anos depois,
instigado pela esposa.
De incio o trabalho na propriedade tambm distraiu Tolsti de seu
propsito, especialmente com a aproximao da primavera. Cheio de energia
renovada, Liev comprou gado, ovelhas, pssaros e porcos e tentou, em vo, fazer
com que Snia se interessasse por atividades como a ordenha e a fabricao de
manteiga. Alm de estar grvida, Snia era uma mulher da cidade e achava
insuportvel o cheiro de esterco nos estbulos. Durante certo perodo, Tolsti se
interessou por uma destilaria que ele construiu com seu vizinho e amigo
Alexander Bbikov. Movida por argumentos morais, Snia tentou dissuadir o
marido de levar adiante tal projeto, mas ele alegou que tambm precisava de
gros para sua criao de porcos. Em todo caso a destilaria funcionou por apenas
dezoito meses. Bem mais recompensadora foi a plantao de mil macieiras na
propriedade de Niklskoie e um pomar de cerca de 6.500 rvores em Isnaia
Poliana. A cada primavera as rvores produziam nuvens de flores cor-de-rosa e
brancas, que aos olhos de Tolsti sempre pareciam prestes a sair flutuando cu
afora. O pomar sempre superou em escala a criao de gado de Tolsti, que
inestimvel publicando fontes primrias sobre a histria russa dos sculos xviii e
xix, muitas delas vitais para Tolsti durante a elaborao de Guerra e paz.
Brteniev tambm se desdobrou para ajudar Tolsti na feitura de seu novo
romance, fornecendo uma formidvel quantidade de material histrico indito.
No final de 1864 Tolsti entregou no escritrio da revista Mensageiro Russo
em Moscou o que ele acreditava ser a primeira parte de seu novo romance,
intitulado O ano de 1865. Os 38 captulos que submeteu ao peridico
correspondem aproximadamente s primeiras duas partes do que hoje o
primeiro volume de Guerra e paz, e foram publicados nas edies de janeiro e
fevereiro de 1865 da revista. Um dia depois que a edio de fevereiro veio a lume
(na verdade em maro), Andrei Estfevitch escreveu aos Tolsti para comunicar
que acabara de comparecer a uma recepo oferecida pelo governador-general
militar, e que a ltima obra de Tolsti tinha sido muito comentada. Era o
primeiro evento social a que o dr. Berhs comparecia aps uma longa
convalescena recuperando-se de uma traqueostomia (como funcionrio da corte
ele teve de pedir permisso especial ao tsar para deixar a barba crescer).
Obviamente ele estava contente por poder sair para passear novamente, e
informou que o tema das prolongadas negociaes de Tolsti acerca de seus
direitos autorais eram a fofoca do momento em Moscou. Por julgar que estava em
melhor posio para atuar a favor do genro, Andrei Estfevitch ofereceu seus
servios a Tolsti, mas o acordo j tinha sido firmado.
Foram duras as negociaes entre Tolsti e seu editor Mikhail Ktkov. No
incio de sua carreira, ainda em 1852, Tolsti tinha recebido cinquenta rublos por
folha impressa, mas agora achava que podia pedir mais bem mais. Nikolai
Lubimov, professor de fsica aposentado da Universidade de Moscou e o editorassociado mais prximo de Ktkov (ou seu burro de carga favorito, como era
maldosamente conhecido em alguns crculos), foi incumbido de atuar como
intermedirio, e em novembro de 1864 passou duas horas tentando persuadir
Tolsti a voltar atrs e aceitar por sua nova obra a mesma paga de cinquenta
rublos por folha impressa. Mas Tolsti sabia do prprio valor, insistiu em
trezentos rublos, e conseguiu. Isso significa que Ktkov pagou a seu principal
autor trs mil rublos pela primeira parte do romance (dez folhas impressas). Era
muito dinheiro. Em contrapartida, o editor conseguiu persuadir Tolsti a
concordar em publicar em um livro separado os captulos que compunham O
ano de 1805 depois que j tivessem sado no Mensageiro Russo, que na poca
tinha por volta de trs mil assinantes. Editor e autor chegaram a um consenso e
decidiram imprimir uma tiragem de quinhentos exemplares, dos quais Ktkov
seria o beneficirio, e o livro comeou a ser vendido em junho de 1866, pelo
preo de 2,5 rublos. Seria tarefa difcil e infrutfera tentar calcular com exatido
essas cifras em valores de hoje, mas possvel chegar a uma boa noo do valor
relativo comparando os honorrios de Tolsti ao salrio anual mdio de um
trabalhador braal no perodo, cerca de dez rublos por ms o preo de Guerra e
paz quando foi por fim publicado em forma de livro. Um professor de escola de
vilarejo ganhava cerca de 25 rublos por ms, mesmo salrio que Tolsti pagava s
governantas que ensinavam seus filhos ele oferecia tambm moradia e
alimentao.
O ano de 1866 foi uma espcie de annus mirabilis para Mikhail Ktkov, j
que nas pginas de sua revista foram publicados, ao mesmo tempo, Guerra e paz e
Crime e castigo. Dostoivski no era o mais fcil dos escritores, mas nessa poca
era bem mais responsvel que Tolsti. Embora tenha pelejado para cumprir os
prazos do envio de captulos mensais de Crime e castigo, Dostoivski conseguiu
honrar seu compromisso e o romance foi concludo em dezembro de 1866. (Se
Tolsti leu o livro, o que improvvel, no registrou suas impresses.) Com
Guerra e paz as coisas foram bem mais complicadas. A essa altura Tolsti tinha
um novo ttulo, Bem est o que bem acaba, projetando um final feliz diferente
do que ele havia concebido de incio, e diferente tambm da verso definitiva do
romance. Tolsti ainda acreditava que conseguiria terminar o romance no ano
seguinte, e naquela primavera deu incio a prolongadas e no fim das contas,
decepcionantes discusses com um artista a quem havia encomendado
ilustraes para a publicao do livro.
Ktkov queria continuar publicando em forma de folhetim as partes
seguintes do romance de Tolsti em 1867, antes de dar obra a forma de
volume. Assim, uma nova rodada de negociaes teve incio em novembro de
1866; uma vez que na primavera seguinte editor e autor ainda no haviam
chegado a um acordo, em junho de 1867 Tolsti assumiu a empreitada por conta
prpria. Optando por nadar contra a corrente primeiro publicar o restante do
romance em captulos mensais em uma revista, no tradicional estilo russo , ele
decidiu editar a obra em volumes separados, medida que fossem sendo
concludos. Tolsti pediu ajuda a Piotr Brteniev. Como resultado, a forma final
de Guerra e paz mudou radicalmente, e para se ter uma ideia aproximada acerca da
ambiguidades etc. Eu costumava apontar todas essas coisas para Liev Nikolievitch. s vezes ele ficava
contente com meus comentrios e observaes; s vezes ele me explicava por que motivo a frase ou
trecho devia ficar do jeito que estava; ele dizia que os detalhes no tm importncia, mas que o mais
importante o mbito geral.
A crer nas memrias de seu irmo Stepan, ao todo Snia passou a limpo o
manuscrito inteiro de Guerra e paz sete vezes. Infelizmente essa suposio por
demais otimista parece uma quimera de sua parte: em uma nota de rodap de seu
estudo biogrfico da vida e da obra de Tolsti entre 1855 e 1869 um
calhamao de 900 pginas Nikolai Gusev descarta essa hiptese, que no
passaria de mito. Admitindo que alguns captulos de Tolsti eram de fato
retrabalhados e copiados muitas vezes, ele aponta que muitos outros seguiam
direto para impresso. Por outro lado, havia inmeros captulos que Tolsti
reescrevia incessantemente, portanto a contribuio de Snia no deve ser
subestimada. Decifrar a caligrafia execrvel de Tolsti e preparar uma verso
final legvel do manuscrito era uma tarefa herclea, e em 1866, durante um
perodo particularmente intenso da composio do romance, uma copista foi
contratada para ajudar no trabalho.
Tolsti sabia que s vezes precisava de uma pausa em suas atividades
literrias, e de maneira geral seu costume era se concentrar na escrita do outono
at a primavera, e ento se dedicar a atividades ao ar livre como caa e cavalgada
durante os meses quentes de vero, quando Tnia e outros parentes se
hospedavam em Isnaia Poliana. Em 1865 ele descobriu seu entusiasmo por
Anthony Trollope, cujo romance, The Bertrams, propiciou uma leitura leve, que
serviu como alvio e distrao de sua imerso na histria russa. E durante sua
estadia em Moscou, no ano seguinte, por um breve perodo Tolsti dedicou-se
escultura (no surpreende que a figura de um cavalo tenha sido seu primeiro tema
de estudo). Mesmo na velhice Tolsti jamais perdeu a disposio para
experimentar novos passatempos. E assim que teve chance comeou a usar o
meio de transporte da ltima moda, o trem: a construo de uma extensa rede
ferroviria na dcada de 1860 tambm legado da era das Grandes Reformas. A
ferrovia Moscou-Kursk foi concluda em 1867, enquanto Tolsti estava
trabalhando em Guerra e paz, e diminuiu pela metade o tempo de durao de suas
viagens.
Dcadas depois, quando Isnaia Poliana tornou-se local de peregrinao para
milhares de devotos de Tolsti, o fcil acesso propriedade se deveu em grande
caindo [...] distinguir entre os rudos dos pssaros, especular sobre o ponto de origem de sons
desconhecidos, e concentrar toda a ateno nos passos rpidos e midos da lebre.
passou por muitos perodos de sade debilitada. Especialmente mais para perto
do fim do livro, houve ocasies em que Tolsti sofreu terrveis enxaquecas, e em
outros momentos seu mal-estar generalizado era to grande que precisava viajar a
Moscou para se consultar com Grgori Zkharin, um dos mais renomados clnicos
moscovitas.
Imediatamente aps sua publicao Guerra e paz caiu nas graas do pblico
leitor e desfrutou de tremenda popularidade, mas tambm suscitou uma onda de
controvrsia. Ningum tinha dvida de que Tolsti produzira algo excepcional, e
o escritor Ivan Goncharov no exagerou ao proclamar que Tolsti agora havia se
tornado um verdadeiro leo da literatura. Contudo, por julgarem que ele tinha
distorcido a histria da Rssia, muitas pessoas da gerao mais velha se sentiram
afrontadas. Por outro lado, os crticos mais jovens, movidos por motivaes
polticas e desesperados para que a Rssia seguisse trilhando o caminho das
reformas, atacaram os conservadores valores familiares que Tolsti defende no
romance, e em particular sua celebrao da nobreza. Mesmo quem no tomava
partido nem dos velhos nem dos jovens achou desconcertantes as longas
digresses de Tolsti. Por sua vez, muitos prosadores russos simplesmente se
corroeram de inveja e menosprezaram Guerra e paz com comentrios destruidores.
Entre os primeiros crticos do romance estava Turguniev, que ademais tinha
motivos pessoais para se irritar e sofrer com o sucesso que seu contemporneo
mais jovem tinha alcanado aparentemente sem muito esforo. Mas no fundo
Turguniev era um homem modesto e generoso, e quando em 1879 a editora
francesa Hachette publicou a primeira traduo para o francs de Guerra e paz as
diferenas entre os dois escritores j tinham sido resolvidas. Agora Turguniev
aproveitava toda oportunidade que tinha para promover Tolsti ao pblico leitor
francfono, que praticamente desconhecia sua obra. O lanamento da traduo
francesa de Guerra e paz assinada de forma annima por Une dame russe (a
princesa Irina Pskevitch, nascida Vorontsova-Dachkova, uma refinada dama de
So Petersburgo) deu a Turguniev o ensejo de escrever a Edmond About,
editor do jornal parisiense xixe Sicle. Em sua carta, publicada em 23 de janeiro de
1880, Turguniev propicia aos leitores franceses uma introduo ao romance e ao
seu autor, em um texto que superlativo em sua conciso e objetividade, e que
merece figurar na ntegra como a ltima palavra acerca deste captulo da vida de
Tolsti:
Caro monsieur About,
O senhor teve a gentileza de reproduzir no xixe Sicle minha carta sobre a abertura da exposio de
pinturas de Verechchagin. O sucesso que ousei prever para a exibio, e que inclusive superou minhas
expectativas, deu-me coragem de voltar a lhe escrever. Agora escrevo sobre a obra de um artista, mas um
artista que cria com a pena na mo.
Tenho em mente o romance histrico de meu colega compatriota, o conde Liev Tolsti, Guerra e paz,
do qual uma traduo acaba de ser publicada pela Hachette. Liev Tolsti o mais popular entre os
modernos escritores russos, e Guerra e paz, se me permite a ousadia, um dos livros mais extraordinrios
do nosso tempo. Essa extensa obra eivada de um esprito pico; nela a vida pblica e privada da Rssia
nos primeiros anos do nosso sculo so recriadas por uma mo magistral. Diante dos olhos do leitor
desfila toda uma poca, rica de grandes eventos e figuras formidveis (a histria comea no muito antes
da derrota em Austerlitz e se estende at Borodino); um mundo inteiro se revela, com uma multido de
personagens de todos os nveis da sociedade, tirados diretamente da vida. A maneira pela qual o conde
Tolsti desenvolve seu tema to nova quanto original; no se trata de Walter Scott e, nem preciso
dizer, tampouco de Alexandre Dumas. O conde Tolsti um escritor russo at o mago de seu ser; os
leitores franceses que no se deixarem desconcertar por certas passagens longas e montonas e pela
estranheza de certos juzos tero razo ao afirmar, ao final da leitura, que Guerra e paz lhes propiciou uma
representao mais direta e fiel do carter e do temperamento do povo russo e sobre a vida russa em geral
do que teriam obtido lendo centenas de obras de etnografia e histria. Aqui h captulos inteiros em que
nada precisa ser mudado; e h figuras histricas (como Ktuzov, Rstopchin e outros) cujas caractersticas
ficaro gravadas na nossa memria para todo o sempre; jamais morrero.
Como o senhor v, caro monsieur About, estou me expressando de maneira extravagante, e ainda assim
minhas palavras no conseguem exprimir por completo meus pensamentos. possvel que a profunda
originalidade do conde Liev Tolsti impea que o leitor estrangeiro compreenda com empatia e rapidez o
romance, por conta de seu prprio poder, mas eu repito e eu ficaria feliz se as pessoas acreditassem no
que eu digo que se trata de uma grande obra de um grande escritor, e a genuna Rssia.
Por favor, monsieur About, aceite a sinceridade da minha devoo.
Ivan Turguniev.
A poesia o fogo que arde dentro da alma de uma pessoa. Esse fogo queima, aquece e ilumina []. H algumas pessoas que
sentem o calor, outras que sentem tepidez, outras que apenas veem a luz, e outras que sequer conseguem enxergar a luz [].
Mas o verdadeiro poeta no consegue evitar: queima dolorosamente, e queima os outros.
disso que se trata.
Anotao no dirio, 28 de outubro de 1870
inverno e eram sinal de que ele estava relaxando (em geral, sempre que iniciava
uma nova obra ele preferia jogar compulsivamente partidas de pacincia), mas do
que ele realmente gostava era praticar esqui cross-country nos bosques nevados e
esquiar na lagoa. Ele ensinava o filho Serguei, ento com seis anos de idade, e
passava horas executando complicadas manobras. Quando chegava o vero,
Tolsti ia trabalhar no jardim, lidando com urtigas e bardanas e arrumando os
canteiros de flores. Tambm ia para os campos e passava dias inteiros ceifando
junto dos camponeses. No sou capaz sequer de descrever a alegria que sinto ao
fazer isso, ele escreveu a Serguei rusov, a quem tinha conhecido e de quem se
tornara amigo durante a defesa de Sebstopol. Contudo, mais tarde, nas pginas
de Anna Karinina, ele conseguiu descrever essa sensao de xtase: as passagens
mais lricas do romance so dedicadas aos xtases da sega e no ao desabrochar
da histria de amor. Com o retorno do outono, retomou a caa, como de hbito,
especialmente de lebres e galinholas, mas no ano seguinte, numa expedio com
amigos, matou dois lobos.
Quando estava entretido em atividades fsicas Tolsti conseguia afugentar os
pensamentos sombrios que ameaavam invadi-lo durante o que ele chamava de
zona morta na transio entre um projeto literrio e outro. Era um perodo de
terrvel incerteza, ele escreveu na primeira carta que enviou a Nikolai Strkhov,
crtico e filsofo baseado em So Petersburgo e que viria a tornar-se um de seus
amigos e confidentes mais ntimos. Homem de formidvel intelecto, filho de um
padre de provncia, Strkhov passara a primeira parte da carreira lecionando
matemtica e cincias naturais, mas agora era funcionrio da Biblioteca Pblica
de So Petersburgo, onde permaneceu at se aposentar em 1885. Ele e Tolsti, a
quem o crtico idolatrava, tinham exatamente a mesma idade. Strkhov fora o
primeiro a reconhecer a magnitude da realizao de Tolsti, nos trs artigos que
tinha escrito sobre Guerra e paz. Depois que o ltimo desses textos foi publicado,
em janeiro de 1870, na nova revista eslavfila A Alvorada, Strkhov escreveu a
Tolsti convidando-o a se tornar colaborador do peridico. Tolsti recusou,
explicando que se encontrava em situao lamentvel, num minuto concebendo
planos ambiciosos e no instante seguinte sucumbindo s dvidas a respeito de si
prprio. Talvez esse fosse o preldio necessrio para um perodo de trabalho feliz
e autoconfiante como o que tinha acabado de terminar, mas talvez fosse sinal de
que ele jamais conseguisse voltar a escrever.
Tolsti sempre considerou que iniciar uma nova obra de fico era uma
sua prpria mortalidade, era porque durante o processo de escrita do livro ele
tinha comeado a enfrentar com seriedade o tema. O primeiro confronto
indesejado com a morte se deu por conta de seu envolvimento no julgamento do
soldado raso Vassli Shabunin, submetido corte marcial em 1866. Esse
incidente isolado teve sobre Tolsti um efeito bem maior do que na poca ele
estava preparado para admitir. Naquele vero os Tolsti tinham recebido a visita
de um amigo da famlia Berhs, Grgori Kolokoltsov, oficial servindo em um
regimento de infantaria moscovita aquartelado a poucos quilmetros de Isnaia
Poliana. Em visitas posteriores casa de Tolsti ele levou consigo seu coronel,
Piotr Iunocha, e outro oficial, Alexander Stsiulevitch, e Tolsti gostava de sair
para cavalgar com o grupo de militares. Um dia os oficiais perguntaram ao
escritor se ele defenderia um dos soldados regulares do regimento que em breve
enfrentaria a corte marcial: o soldado raso Shabunin havia agredido seu superior,
infrao que de acordo com a lei russa era passvel de punio com a morte.
Ferrenho adversrio da pena capital desde que testemunhara uma execuo
pblica em Paris, Tolsti aceitou.
Apesar da apelao de Tolsti, Shabunin foi condenado e sentenciado
morte por fuzilamento. Horrorizado ao ver que uma infrao de pouca gravidade
pudesse acarretar uma punio to drstica e inadequada, Tolsti recorreu
imediatamente a instncias superiores, por meio de sua influente prima
Alexandrine, mas foi em vo. Talvez isso se devesse em parte histeria que havia
tomado conta da corte em decorrncia da tentativa de assassinato de Alexandre ii
ocorrida meses antes em So Petersburgo. O homem que empunhava a arma,
Dmtri Karakozov, um dos primeiros revolucionrios russos, tambm foi
sentenciado morte. Em setembro, poucas semanas depois da execuo de
Shabunin, Tolsti pediu que o grupo de oficiais que se sentia em dvida com
ele fosse a Isnaia Poliana para tocar, em uma homenagem-surpresa ao dia do
onomstico de Snia. Era uma noite quente de vero, e depois do jantar na
varanda, servido numa comprida mesa decorada com flores, os convidados
danaram madrugada adentro Snia anotou em seu dirio que tinha sido uma
ocasio bastante alegre, e que o marido estava particularmente animado. Depois
disso Tolsti retomou Guerra e paz. O suicdio de Stsiulevitch, no ano seguinte,
que, ao que parece, deixou Tolsti profundamente abalado, no teve relao
direta com a morte do soldado raso Shabunin, mas era um deprimente ps-escrito
para um evento que, como mais tarde ficou claro, assolaria sua conscincia.
sujeio das mulheres, veio a lume poucos meses depois de sua publicao
original na Inglaterra em 1870. John Stuart Mill, famoso por ser o primeiro
membro do parlamento britnico a reivindicar o sufrgio feminino e defender os
direitos da mulher, tinha um sem-nmero de seguidores, mas os conservadores
Strkhov e Tolsti no estavam entre eles. O erudito e reservado Strkhov, um
rematado solteiro, tinha celebrado Guerra e paz por ser uma crnica familiar, e
em seu artigo argumentava que o lugar da mulher era no seio da famlia. Tolsti
concordava de todo corao, e s divergia da viso negativa de Strkhov acerca
das prostitutas, argumentando que elas tinham um importante papel a
desempenhar na preservao da instituio da famlia. Imaginem Londres sem
suas oitenta mil madalenas o que aconteceria com as famlias?
Snia tinha apenas 27 anos quando Macha nasceu, por isso deve ter ficado
apavorada diante da perspectiva de ser obrigada a se sujeitar s vontades do
marido: a intransigncia das ideias de Tolsti a levaria a ter mais oito filhos, dos
quais apenas trs chegaram maioridade. Alm dos riscos de sade, cada nova
gravidez a prendia ainda mais a Isnaia Poliana, e significava que ela tinha de
adiar mais uma vez suas esperanas de uma vida longe do quarto das crianas. A
cada filho que nasce preciso desistir ainda mais da vida para si mesma, e
conformar-se com o fardo de cuidados, preocupaes, doenas e anos que
passam, ela anotou em seu dirio em junho de 1870. Snia era uma me
dedicada e adorava viver em Isnaia Poliana, mas era uma moa criada na cidade,
e depois de algum tempo comeou a ansiar por uma mudana de ares, a desejar
uma companhia e a chance de frequentar ao menos de vez em quando uma soire.
Ela achava deprimente a solido. As famlias russas do milieu dos Tolsti tinham
o costume de passar o inverno na cidade e se recolherem para a propriedade de
campo ou datcha nos meses de vero, mas os Tolsti viviam no campo o ano
inteiro. No comeo de seu casamento, Tolsti tinha sonhado em ter um pied-terre em Moscou um apartamento na Sivtsev-Vrazhek, tranquila rua secundria
no corao da cidade, onde seu primo Fidor Ivnovitch, o americano, tinha
vivido. Ele confidenciou ao pai de Snia que imaginava transferir sua vida em
Isnaia Poliana para Moscou por trs ou quatro meses no inverno, incluindo o
mesmo Alexei, a mesma bab, o mesmo samovar, a fim de poder desfrutar de
conversas estimulantes com pessoas novas, visitar bibliotecas e ir ao teatro.
Entretanto, o plano foi adiado pela falta de dinheiro, mas quando a renda
proveniente de Guerra e paz fez de Tolsti um homem rico ele j no tinha mais
esse desejo. medida que foi ficando mais velho, Tolsti se tornou cada vez
mais recluso, e preferia passar longos perodos em casa, onde podia trabalhar sem
ser incomodado. Na cidade, ele logo se irritava e por isso ficava feliz quando
partia, mas tinha a liberdade de ir e vir mais ou menos quando quisesse. Ele no
era exatamente grande f de programas como ouvir peras como Moiss no Egito,
de Rossini, e o Fausto, de Gounod, mas pelo menos teve a oportunidade de ir ao
teatro enquanto escrevia Guerra e paz. A pera era a grande paixo de Snia o
que ela no teria dado pela oportunidade de ocasionalmente se vestir com
aprumo para uma noite no Teatro Bolshoi? Durante esses anos Snia foi diversas
vezes a Moscou, mas na maior parte do tempo ficava em casa, no campo: para ela
o ponto alto do ano era o vero, quando sua irm Tnia e outros parentes se
hospedavam em sua casa. Se todas as minhas capacidades intelectuais e
emocionais despertassem, e acima de tudo os meus desejos, eu choraria at o fim
do mundo, ela escreveu a Tnia em novembro de 1871, e meses depois escreveu
novamente para falar da vida solitria e monstica em Isnaia Poliana.
Tolsti tambm tinha a liberdade de viajar para outros lugares. Malgrado sua
terrvel experincia em Arzamas, ele tinha gostado de contemplar os topos dos
altos pinheiros enquanto viajava pelas densas florestas da regio de Penza no
outono de 1869. Depois de cruzar o rio Sura, que fervilhava de esturjes, ele
tambm apreciou a inconfundvel terra preta coberta de seixos da regio. Como a
populao local, o lugar fez Tolsti se lembrar do poderoso Mikula
Selininovitch, o tradicional campons smbolo da fora russa e heri dos picos
medievais que ele vinha lendo. No vero de 1871, Tolsti foi ainda mais longe e
viveu como nmade bachkir nas estepes ao leste de Samara. O plano era que
Snia se juntasse a ele no ano seguinte, mas no outono ela descobriu que estava
grvida novamente. Em outubro, Snia, desanimada, escreveu irm Tnia para
relatar o fato e falou da lama e da monotonia, e de como ter um sexto filho
significava que ela teria de ficar em casa no vero vindouro: vai ser impossvel ir
a Samara, vai ser impossvel visitar voc, teremos de arranjar outra bab, e assim
por diante etc. etc. Passar a limpo os manuscritos de Guerra e paz dera a Snia a
sensao de estar envolvida com o marido, contribuindo para seu trabalho
criativo, ainda que de maneira lateral ou secundria, por isso compreensvel que
ela quisesse avidamente que Tolsti comeasse um livro novo. Mas uma cartilha
de setecentas pginas no era exatamente o que ela tinha em mente.
Em seu livro seguinte Tolsti literalmente voltou ao bsico. Da sofisticada
a Isnaia Poliana a fim de lhe dar aulas, e no final do ms j passava dias inteiros
lendo literatura grega no original. Comeou com Anbasis, de Xenofonte, relato
da campanha liderada por Ciro e seu exrcito de dez mil mercenrios gregos
contra o persa Artaxerxes ii no sculo v a.C. Tolsti achava empolgante e
sensacional conseguir ler e entender sozinho, e o grego se tornou sua mais nova
obsesso. Estou vivendo completamente em Atenas, escreveu a seu amigo Fet.
Em meus sonhos, falo grego. To logo Snia se recuperou da febre puerperal,
em maro de 1871, Tolsti mudou para Plato e Homero, e arriscou suas prprias
tradues de trechos da Ilada, que ele comparou verso russa mais conhecida,
concluda por Nikolai Gnedich em 1829. Meses depois, a caminho da estepe
naquele vero, estava lendo textos gregos livre ouvert com Pavel Leontiev,
professor de filologia clssica na Universidade de Moscou em algumas
ocasies Tolsti chegava a se exibir, gabando-se de seu domnio da lngua.
Enquanto Tolsti vivia base de uma dieta de leite de gua fermentado em
uma tenda de feltro bachkir, a notcia de que o conde havia aprendido grego em
apenas trs meses tornou-se a bola da vez em Moscou. A essa altura Tolsti
estava lendo Herdoto, que, como anotou, descrevera em detalhes e com grande
preciso os citas entre o quais ele estava vivendo. De fato, havia uma
similaridade entre o estilo de vida dos bachkires e o dos nmades citas, que
tambm se alimentavam de leite de gua. Assim como ocorrera com a apicultura,
durante algum tempo a nova paixo de Tolsti pelo grego foi obsessiva e
monopolizadora, tanto que Snia e os amigos do escritor temeram por sua sade
mental (Serguei rusov preferia que ele lesse hagiografias). evidente que nada
no mundo o encanta e lhe interessa mais do que cada palavra ou expresso grega
que ele aprende, escreveu Snia em seu dirio, mas logo a mente mercurial e
hiperativa de Tolsti entrou em nova ebulio. A leitura dos clssicos da
literatura grega antiga suscitou nele um interesse pelos clssicos da literatura
russa antiga, o que por sua vez o levou a sonhar em escrever algo sobre a vida da
antiga Rus.
Obviamente no havia entre os clssicos russos nada que fosse
comparvel aos picos gregos Ilada e Odisseia, mesmo porque sequer existia
literatura russa antes de 988, quando a cristianizao do Rssia trouxe a reboque
a necessidade de uma lngua escrita que ajudasse a espalhar a palavra de Deus.
Com o enorme surto de interesse no passado pr-petrino que teve incio na
dcada de 1860 como ramificao das Grandes Reformas, pela primeira vez os
que mais o atraa era o poderoso Ilia de Murom, cujas faanhas ele tinha lido na
infncia. Tolsti cogitou escrever um romance ou drama popular em que criaria
um personagem com traos dos grandes bogatyrs. Ilia continuaria sendo filho de
campons, mas em vez de derrotar sozinho exrcitos inteiros depois de passar 33
anos deitado junto ao fogo de sua casa, Tolsti queria retrat-lo como um jovem
e inteligente universitrio.
Um dos maiores objetivos de Tolsti era inculcar em seus jovens leitores o
amor pela Rssia sua paisagem, sua histria, seu estilo de vida e, bvio, sua
lngua. Um de seus passatempos favoritos era caminhar pela estrada que passava
junto a Isnaia Poliana a fim de coletar ditados e provrbios dos muitos
peregrinos e andarilhos que faziam a jornada a p at o Mosteiro das Cavernas,
em Kiev. Ditos e expresses como Um corvo no pode ser falco o ajudavam a
explicar para as crianas, de maneira simples e atraente, as idiossincrasias da
pronncia do russo. Em sua Cartilha, Tolsti queria tambm instigar nos
pequenos leitores a curiosidade pelas cincias, mas para responder de maneira
atraente e compreensvel a perguntas como Para onde vai a gua do mar? e
Para que serve o vento?, ele sentiu a necessidade de ter uma profunda
compreenso acerca desses fenmenos, por isso se lanou a um intenso e
abrangente estudo de praticamente todos os ramos da cincia, da zoologia
fsica. Sempre que possvel Tolsti realizava pesquisas prticas, o que certa vez
fez com que passasse uma noite inteira no jardim contemplando as estrelas a fim
de recapitular seus conhecimentos de astronomia. Contudo, o esforo para
compreender e depois explicar processos como o galvanismo e a formao dos
cristais exigia que Tolsti passasse horas sentado sua mesa de trabalho,
extremamente concentrado: seus dirios do perodo esto abarrotados de
referncias a cientistas como Michael Faraday, Humphry Davy e John Tyndall.
Por fim, Tolsti tambm queria instilar nas crianas a apreciao de valores
como verdade e honestidade e a importncia do trabalho rduo, mas no de
maneira seca e didtica, como todos os manuais escolares e livros de leitura
estrangeiros que ele tinha diligentemente estudado e anotado. No ficou nem um
pouco impressionado com os livros ingleses que consultou, incluindo Principles of
Elocution, de Thomas Ewing, a seu ver um modelo de despropsito ao
demonstrar como ficar em silncio, e Abbotts Second Reader , que era por demais
abstrato. Como os livros russos disponveis, tudo parecia distante da vida real.
Naturalmente, as histrias e fbulas ocupavam o lugar central da Cartilha. Depois
Embora Esopo ocupasse o lugar de honra, Tolsti usou uma ampla gama de
escritores, incluindo no apenas autores mais recentes como La Fontaine e
Grimm, mas alguns realmente atuais, como Sfia Tolstia (Algumas meninas
visitam Macha) e Vassli Rumiantsev, ex-aluno da escola de Isnaia Poliana
(Um menino conta como foi surpreendido por uma tempestade enquanto estava
no bosque). O escritor tambm adaptou minicontos do folclore russo e
contribuiu com histrias verdadeiras sobre as aventuras de seus ces Milton e
Bulka no Cucaso, bem como com histrias sobre a vida de pssaros e animais da
zona rural russa (Pardais, Como os lobos ensinam seus filhotes). Nem todas
as histrias e vinhetas se passam em mundo com que as crianas russas estavam
familiarizadas. Tolsti justaps cuidadosamente histrias como A menina e os
cogumelos com textos sobre esquims, elefantes e bichos-da-seda. Juntamente
com o amor pela terra nativa, ele queria incutir nas crianas o respeito pelas
culturas estrangeiras, por isso oferecia aos seus pequenos leitores trechos de
Herdoto e Plutarco e histrias de pases distantes e variados como China,
Estados Unidos, Frana e Turquia. Tambm incluiu histrias de lavra prpria,
Para seus leitores mais avanados Tolsti escreveu dois de seus melhores e
mais refinados textos ficcionais, Deus diz a verdade, mas no a diz logo e
Cativo no Cucaso, cuja fora est precisamente em sua simplicidade, forjada
com extremo cuidado. Desde o incio Tolsti tencionou que o nvel artstico de
sua Cartilha em nada ficasse devendo qualidade de Guerra e paz, e ambas as
histrias so bons exemplos dos recursos e da linguagem que ele declarou que
dali por diante empregaria em sua fico adulta, conforme explicou em carta a
Nikolai Strkhov.
O trabalho de compilao final comeou de fato em setembro de 1871, e
Tolsti recrutou como copistas no apenas Snia, mas tambm seu tio Kstia e
sua sobrinha Vria. O escritor era to exigente e minucioso com suas histrias
para crianas quanto com sua fico adulta, segundo comentou Snia em carta a
sua irm. Em dezembro de 1871 finalmente o primeiro dos quatro livros ficou
pronto e Tolsti seguiu para Moscou a fim de encontrar um editor. A tarefa se
revelou difcil, em parte por causa da grande quantidade de textos em eslavo
eclesistico no manuscrito, o que obrigou Tolsti a lanar mo de um contrato
com seu antigo editor, Theodor Ries. Mas assim que sua Cartilha por fim seguiu
para o prelo ele ficou claramente empolgado. Em carta a Alexandrine, em janeiro
de 1872, Liev diz que se apenas duas geraes de crianas russas, dos Romanov
aos camponeses, aprendessem a ler com a Cartilha e por meio dela tivessem seu
primeiro contato com a arte, ele morreria feliz. Tolsti estava convencido de que
era sua melhor obra, aquela pela qual seria lembrado, e a seu ver superior a Guerra
e paz.
A seguir Tolsti mergulhou em um perodo de trabalho intenso para terminar
Strkhov, que tinha feito sua primeira visita a Isnaia Poliana no vero do ano
anterior, j tinha ajudado o amigo cuidando das tradues dos textos em eslavo
antigo, e agora Tolsti pediu tambm que ele avaliasse e classificasse as histrias
do livro de leitura, dizendo quais eram aquelas de que gostava ou no. A Cartilha
de 758 pginas foi finalmente publicada em novembro de 1872, mas sua tiragem
inicial de 3600 exemplares foi a primeira e ltima. O livro s viria a lume
novamente em 1957, quando uma edio fac-similar constituiu o volume 22 da
edio Jubileu das Obras completas de Tolsti.
Apesar do alto preo de cinquenta copeques para cada parte da Cartilha,
Tolsti tinha grandes expectativas de sucesso e comeou a pensar na segunda
edio antes mesmo que a primeira fosse publicada. Ele ficaria tremendamente
decepcionado. Em primeiro lugar, o livro no recebeu aprovao oficial para uso
em escolas, embora Tolsti tivesse enviado uma carta explicando as virtudes da
cartilha a seu parente distante, o conde Dmtri Tolsti, ministro da Educao.
Em segundo lugar, o desejo de Tolsti de ganhar algum dinheiro com a
publicao falou mais alto. Ele ofereceu a livreiros um desconto de 20%, mas
insistia para que pagassem em dinheiro e vista, e assim perdeu a boa vontade
dos vendedores de livros e um valioso mercado potencial. O irmo caula de
Snia, Piotr Berhs, que morava em So Petersburgo, tinha sido encarregado das
vendas, e no acreditava que a tentativa de Tolsti de minar o poder dos livreiros
no controle da distribuio teria sucesso. Seu apartamento servia como depsito,
e ele acabou estocando em casa centenas de exemplares encalhados. A enxurrada
quase unnime de crticas negativas que comeou a aparecer em nada contribuiu
para alavancar as vendas da Cartilha. Alguns crticos desaprovaram o papel
cinzento e escuro em que o livro foi impresso e a escassez das ilustraes (28, ao
todo) ao passo que outros se queixaram da falta de uma introduo que
explicasse qual era o pblico-alvo do livro. Todos desconfiaram dos mtodos
modernos de Tolsti.
Sensvel e suscetvel, era inevitvel que o autor da Cartilha sofresse com as
crticas, mas sua crena nela jamais esmoreceu. Assim que fez publicar na Gazeta
de Moscou em junho de 1873 uma carta aberta explicitando quais eram a seu ver as
deficincias dos mtodos de ensino ento em uso, Tolsti se acalmou. Primeiro,
decidiu desmembrar os 1.500 exemplares encalhados e reencadern-los em doze
pequenos volumes individuais que foram postos venda por um preo entre
dez e 25 copeques cada. A seguir, em outubro, um grupo de dez jovens
professores de escolas rurais da regio foi passar uma semana em Isnaia Poliana
a fim de estudar seus mtodos. Em janeiro de 1874 Tolsti teve a oportunidade
de defender suas ideias pedaggicas perante o Comit Literrio de Moscou, que
aceitou sua proposta de realizar um experimento comparando seus mtodos
pedaggicos aos procedimentos adotados pela rede oficial de ensino. To logo os
resultados da experincia foram considerados inconclusivos, ele publicou no
respeitvel peridico Notas da ptria, que contava com um grande pblico leitor
uma profession de foi de cinquenta pginas acerca de seus mtodos, o que por
fim suscitou um amplo debate pblico. Sobre educao popular o sincero
manifesto pedaggico de Tolsti.
Nele, Tolsti discute com extraordinria quantidade de detalhes suas ideias
pedaggicas e demonstra profundo conhecimento da educao disponvel em sua
regio. Ele resumiu assim as falhas da educao elementar na Rssia: 1. falta de
conhecimento do povo; 2. o fascnio por ensinar coisas que os alunos j sabem; 3.
a tendncia de emular os alemes; 4. a crtica aos velhos princpios sem o
estabelecimento de novos. Tolsti tinha ideias fortes acerca de como as crianas
russas deviam ser ensinadas a formar letras e slabas, e argumentava com
veemncia que o mtodo fontico adotado a partir do modelo alemo no era
praticvel na Rssia, e certamente no era adequado para os despossudos
camponeses russos. Em certo sentido, Tolsti estava frente de seu tempo, na
medida em que defendia o que mais tarde viria a se tornar um axioma na
educao remedial do sculo xxi. Em setembro de 1874, a Cartilha de Tolsti foi
aprovada pelo governo russo. Mesmo em nova roupagem as vendas continuaram
fracas, e Tolsti se queixou de ter perdido dois mil rublos, mas agora estava
disposto a revisar o projeto.
De incio os planos de reviso eram modestos, mas, como era tpico dele,
acabou produzindo um livro quase inteiramente novo. Algo semelhante tinha
acontecido com Guerra e paz, que em 1873 ele revisou para uma nova e terceira
edio. Seu novo estado de esprito levou-o a reduzir para quatro os seis volumes
iniciais, traduzir para o russo todo o texto em francs do romance e deslocar para
um eplogo separado todas as digresses histricas. Strkhov teve papel
fundamental tambm nesse projeto. Para sua Nova cartilha, como passou a ser
chamada, Tolsti deu ateno s crticas providenciando uma introduo e
reduzindo o preo. Escreveu mais de cem novas historietas, mas, separando a
seo de alfabetizao dos livros de leitura, reduziu a extenso total do livro
Rssia com a irm Jenny, que foi trabalhar na casa de outra famlia. Hannah tinha
dezenove anos, apenas trs anos mais nova que Snia. No incio a comunicao
entre as duas no foi das mais fceis, mas Hannah era trabalhadora e afvel, e
acabou se tornando um membro muito querido da famlia. Logo a governanta
disciplinou as crianas em um regime de banhos regulares, e apresentou famlia
o pudim de Natal e o costume de flamb-lo (receita no 26 no livro de receitas de
Snia: Pudim de passas). Hannah obviamente sentia saudade dos assados de
domingo em sua terra natal, Berkshire, uma vez que na casa dos Tolsti tentou
fazer tambm o pudim de Yorkshire (Receita n o 132: Pudim para servir com
rosbife). Hannah mergulhou de corpo e alma na vida russa e ficou com os
Tolsti por seis anos, mas por causa de sua sade debilitada foi embora no vero
de 1872, para trabalhar como governanta dos filhos da irm de Snia, Tnia, no
Cucaso. No clima mais temperado do sul, sua sade melhorou, e dois anos
depois ela passou a integrar a empobrecida realeza georgiana ao se casar com o
prncipe Dmtri Machutadze (e conquistou a simpatia dos parentes ao transformar
em um lucrativo e bem-sucedido empreendimento comercial o negcio de
produo de queijo de ovelha da famlia). Depois que Hannah foi embora, Fidor
(Theodor) Kaufmann assumiu o papel de tutor das crianas, a quem dava aulas
de alemo. Apaixonou-se pela bela e loira Dora, que substituiu Hannah como
governanta das meninas, mas ela no durou muito porque se mostrou incapaz de
exercer qualquer autoridade, o que em parte se deve ao fato de que Tolsti tinha
uma setter irlandesa de pelos dourados de mesmo nome (ele gostava de dar a seus
ces nomes de personagens dos romances de Dickens). Por causa disso, era ainda
mais difcil levar Dora a srio. A seguir veio Emily, que era quieta, sria e
chorava muito.
Os filhos de Tolsti viam mais os tutores e governantas do que seu pai e
inclusive sua me, sempre ocupada cerzindo ou tratando de questes domsticas,
quando no estava passando a limpo manuscritos do marido. A educao das
crianas tambm foi influenciada pela numerosa populao da casa que
contava com alguns personagens excntricos. Em primeiro lugar havia a idosa tia
Toinette, sempre enfiada em sua touca e seu xale e cujo quarto era atravancado
de cones em molduras de prata que eram polidas pela criada Aksnia
Maxmovna, igualmente senil. As crianas associavam a tia ao cheiro de cipreste
e s gavetas de sua cmoda cheias de bolo de gengibre, com que ela s vezes os
presenteava. Toinette era bondosa, mas as crianas achavam sua companhia
viviam entre os rios Kama e Urail, a leste de Samara. Povo muulmano de lngua
turca, os bachkires foram obrigados a reconhecer a supremacia russa aps a
conquista de Kazan em meados do sculo xvi, mas aos poucos foram se
transformando em uma minoria medida que russos e outros grupos tnicos da
regio do Volga se fixavam nas terras das quais durante sculos acreditaram ser
donos. Era territrio de fronteira para os russos, que no sculo xviii construram
uma linha de fortes de Samara at a nova cidade de Orenburg, em preparao
para o avano Cazaquisto adentro e alm (Samarkand foi conquistada para a
nova provncia do grande Tsar Branco, o Turquisto, em 1868). Se por um lado
em meados do sculo xviii os bachkires j tinham sido brutalmente subjugados,
por outro receberam status tributrio especial e tentaram manter seu estilo de
vida tradicional em meio aos russos, que seguiram colonizando de maneira
implacvel suas frteis pastagens. Um desses russos era Tolsti.
Embora tivesse aplicado uma boa soma de seu prprio dinheiro na
publicao da primeira edio de sua Cartilha, Tolsti tinha boas reservas, graas
s vendas de Guerra e paz, e nessa etapa da vida estava vido para incrementar
sua fortuna. As terras dos bachkires eram muito baratas, e Tolsti tinha um bom
olho para fechar bons negcios comprando terras e lucrando com o cultivo
agrcola. Duas semanas depois de sua chegada, ele comprou 2.832 hectares ao
custo total de 17,5 mil rublos. Por carta, explicou a Snia que duas boas colheitas
bastariam para recuperar o investimento, mas para que isso fosse possvel
precisariam passar na estepe o vero do ano seguinte. Ele descreveu como
pitoresca a paisagem montanhosa, embora admitisse que no havia rvores,
tampouco nenhum tipo de sombra, mas em compensao havia o ar da estepe,
banhos, cmis e cavalgada. Tolsti assegurou a Snia que primeiro queria a
aprovao dela, mas seguiu em frente mesmo antes de receber a resposta da
esposa. Acontece que Snia no ficou to entusiasmada: Se um negcio
lucrativo, isso problema seu, e eu no tenho opinio a respeito. Mas teria de ser
um caso de extrema necessidade obrigar uma pessoa a viver na estepe sem uma
nica rvore por centenas de quilmetros a fio, pois para um lugar assim pessoa
alguma iria de bom grado, especialmente com cinco crianas.
No vero de 1871 Tolsti e seus dois companheiros se instalaram em uma
enorme kibitka (tenda bachkir), pertencente ao mul local e com o cho forrado de
estipa. A tenda servira como mesquita e tinha uma mesa e uma cadeira, aveia
para os cavalos, um cachorro preto e dezenas de galinhas, que faziam uma
tremenda baguna mas garantiam uma boa proviso de ovos. Tolsti acordava ao
raiar do dia, escrevia para Snia e depois de tomar trs copos de ch saa para ver
os bandos de cavalos voltando sobre as colinas (cerca de mil, segundo seu
clculo). Depois era hora de beber cmis, produzido em odres de couro, longe da
vista, pelas mulheres bachkires, mas sempre servido pelos homens. Mais tarde,
como relatou a Snia, geralmente ia a p at o vilarejo a fim de encontrar pessoas
que tinham vindo da Rssia em busca do tratamento curativo base de cmis,
incluindo um professor grego que o ajudou a ler Herdoto. Ocasionalmente,
Tolsti saa para caar (aves, como abetardas e combatentes e, de vez em
quando, lobos). Por ser nobre, Tolsti era sempre muito bem recebido por todos
o s bachkires que visitava. No final de junho, viajou com Stepan oitenta
quilmetros a leste, em uma carroa puxada pelo cavalo que ele havia comprado
por sessenta rublos assim que chegou, at Buzuluk, cidade que tinha diversas
igrejas, casas em sua maioria de madeira e um movimentado e barulhento
comrcio de gros, sebo e couro cru. Depois de passar uma noite horrvel e
desconfortvel em um ponto de parada na estrada em meio exaustiva jornada
pelas estepes, quando chegaram Tolsti dormiu a sono solto a bem da
verdade, dormiu to profundamente que sequer percebeu os percevejos
caminhando sobre seu corpo , mas logo voltou as atenes para a ruidosa e
pitoresca feira que tinham ido ver. Pessoas de uma dezena de nacionalidades
diferentes l se reuniam para negociar cavalos quirguistaneses, cossacos e
siberianos.
Naquele ano Tolsti retornou a Isnaia Poliana com o nimo e a sade
renovados, depois de se refestelar no calor seco da estepe, com seu ar lmpido e
cu radiante. Voltaria a Samara no vero do ano seguinte sem Snia, que tinha
acabado de dar luz Piotr (Ptia), sexto filho do casal, e dessa vez levou Timofei
Fkanov, campons de Isnaia Poliana que se tornaria o primeiro administrador
da nova propriedade. Em muitos sentidos essa viagem foi mais difcil. A colheita
de 1871 tinha sido bastante ruim, mas a colheita de 1872 foi a pior em muitas
dcadas, causando problemas que se agravariam no ano seguinte. Dessa vez
Tolsti preferiu se hospedar em uma casa, no em uma tenda a casa de sua
nova khutor (propriedade rural), que, porm, deixava a desejar. A primeira
impresso foi muito agradvel, ele escreveu a Snia, embora o lago estivesse
seco. Tolsti tambm admitiu que a casa era velha e sem graa e tinha apenas
dois quartos, mas que acomodaria muito bem a famlia toda, ele assegurou em
tom alegre. Naquele vero Tolsti estava muito preocupado com sua primeira
Cartilha, que agora finalmente estava no prelo, por isso voltou para casa mais
cedo, depois de apenas trs semanas.
Fossem quais fossem suas apreenses acerca da perspectiva de viver na
estepe, no vero do ano seguinte Snia conseguiu abafar seus temores, e a famlia
inteira seguiu para o leste. Em junho de 1873, os dezesseis membros da famlia
Tolsti se reuniram na sala de estar, fecharam as portas e permaneceram sentados
em silncio por alguns momentos, preparando-se para a jornada que teriam pela
frente; a seguir completaram o ritual levantando-se e persignando-se. Uma
caravana de carruagens e carroas transportou a famlia at Tula, onde pegaram o
trem, e em Njni Novgorod embarcaram no vapor para Samara. Assim que
entraram no barco, comearam a se sentir na sia ao ver os exticos chapus e as
tnicas dos vrios trtaros e persas viajando na terceira classe, e particularmente
quando ouviam essas pessoas falando. Durante uma parada para reabastecimento
em Kazan, Tolsti desceu com os meninos mais velhos, Serguei e Ilia, para
mostrar-lhes onde ele tinha morado; somente depois que o barco j tinha
avanado vrios quilmetros Volga abaixo que Snia percebeu que o marido e
os filhos no tinham embarcado de volta. Como registra Snia em sua
autobiografia, o capito no teria dado meia-volta caso se tratasse de um mero
mortal, mas uma vez que Tolsti era um conde, a coisa era diferente. De
Samara, a famlia viajou em uma velha e enorme carruagem puxada por seis
cavalos, presente do amigo de Tolsti, rusov, que tinham sido trazidos de
Isnaia Poliana. Foi uma jornada longa, quente e poeirenta, entremeada por uma
noite numa estalagem camponesa de beira de estrada. Para os filhos mais velhos,
que dormiam ao relento no feno sob as estrelas e jamais tinham visto paisagem
to desconhecida, era tudo uma grande novidade.
Quando por fim chegaram, os Tolsti tiveram de se espremer na pequena e
extremamente precria residncia de sua nova propriedade. Tolsti e Stepan
acabaram se instalando em uma kibitka, e os meninos e seu tutor alemo foram
dormir no celeiro. Os temores de Snia se mostraram plenamente justificados. O
esterco seco usado como combustvel no queimava direito e exalava um odor
repugnante; durante o dia havia nuvens de moscas por toda parte, e assim que as
velas eram acesas enormes besouros pretos caam do teto sobre a toalha de mesa.
Os nicos vizinhos estavam a quilmetros de distncia e eram todos camponeses
e bachkires. Snia enfrentou a situao com bravura e fez o melhor que pde para
garantir que todos aproveitassem a estadia. Consciente de que todos estavam ali
por sua causa, Tolsti tambm fez o melhor que pde para que se divertissem.
Naquele vero ele convidou um velho bachkir para fornecer o cmis. Muhammed
Shah trouxe consigo suas esposas e enteadas, alm de dez guas, e montou sua
kibitka junto casa de Tolsti. Toda manh, vrios membros da famlia, alm de
Hannah, que tinha vindo do Cucaso para se juntar a eles, sentavam-se de pernas
cruzadas sobre os tapetes na kibitka e bebiam das tigelas de madeira oferecidas
por Muhammed. Os bachkires no tinham se adaptado muito bem vida
sedentria, como os colonos russos, e Muhammed falava com saudade das terras
que tinham perdido para camponeses de Tambov ou Ryazan, que eram
inconfundveis por causa da cor e estilo de suas roupas.
Certamente a sade de Tolsti se beneficiava com a ingesto de at oito
tigelas de cmis a cada sentada. O escritor adorava ir a Orenburg e a Buzuluk
para as feiras de cavalos, e certa vez comprou de uma s tacada um bando inteiro
de cavalos selvagens da estepe. Mas naquele vero ele estava preocupado com a
seca e a fome na rea, em vias de sofrer os efeitos da terceira colheita malfadada
consecutiva. Agora no havia nenhuma perspectiva de reaver seu investimento
em dois anos. Snia instigou-o a fazer alguma coisa, e a hesitante indiferena do
novo governador levou Tolsti a agir. De fato, a nica ao do novo governador
foi pressionar os camponeses que tinham impostos em atraso com a
administrao. Tolsti passou duas semanas percorrendo cada um dos distritos,
em um raio de cerca de noventa quilmetros de sua propriedade, a fim de avaliar
o problema, e depois elaborou um detalhado inventrio das 23 propriedades em
Gavrilovka, o vilarejo mais prximo. O relatrio inclua informaes sobre o
nmero de cabeas de gado que cada famlia possua, o tamanho de cada
propriedade, o quanto haviam semeado e colhido naquele ano e as dvidas.
Depois se sentou e escreveu uma carta aos editores da Gazeta de Moscou para que
o jornal solicitasse a mobilizao do governo e da populao no sentido de ajudar
a regio. Tambm escreveu a Alexandrine para que ela levasse a questo corte.
No havia em toda a Rssia rea to dependente do resultado das colheitas
anuais como a provncia de Samara, Tolsti escreveu em sua carta. Em todos os
lugares a que ele tinha ido, encontrara a mesma situao: sinais da fome iminente,
que ameaava engolir 90% da populao na provncia. No h homens em parte
alguma, pois todos se foram em busca de trabalho, deixando em casa velhos,
mulheres magras e seus filhos franzinos e doentes. Ainda h gros, mas esto
acabando; ces, gatos, gado e galinhas esto magros e famintos, ao passo que os
mendigos que batem s portas e janelas recebem migalhas ou so enxotados.
Ciente de que o programa de ao preferido das autoridades era simplesmente
ignorar o desastre (os governantes j tinham tentado atribuir a culpa aos
camponeses, argumentando que a causa da penria era a bebedeira e a preguia),
Tolsti incluiu em sua carta todos os dados coletados, autenticados por escrito
pelo padre local e endossados com um selo do ancio do vilarejo, que
obviamente era analfabeto. Sua pesquisa tinha sido bastante minuciosa e
completa:
1. Svinkin [famlia]. Homem idoso de 65 anos e senhora idosa, dois filhos, um casado, duas meninas.
Sete bocas para alimentar, dois trabalhadores. No h animais: nem cavalo, nem vaca, nem ovelha. Os
ltimos cavalos foram roubados, a vaca morreu no ano passado, as ovelhas foram vendidas. A famlia
semeou 4,5 hectares [ano passado]. Nada cresceu, portanto no houve o que colher [este ano]. No h
estoque de gros. Imposto de capitao de trinta rublos em atraso para os dois ltimos perodos; juros de
emprstimos do ano passado: 10,5 rublos; dvida particular referente ao emprstimo de trem: treze rublos;
total de 53,5 rublos [].
19. Krmov [casa]. Seis bocas para alimentar e um recm-nascido, um trabalhador. Animais: dois cavalos,
trs vacas, cinco ovelhas. Foram semeados 3,8 hectares e nada cresceu. Dvida: 28 rublos e 48 copeques
[...].
1860, mas foi somente na dcada de 1880 que funcionrios extremamente mal
remunerados da intelligentsia comearam a realizar recenseamentos nos vilarejos
em nome do zemstvo (governo local), e o primeiro censo nacional s foi levado a
cabo em 1897. A carta de Tolsti sobre a grande fome em 1873 causou comoo
nacional e resultou em uma campanha de doaes que arrecadou dois milhes de
rublos e 344 mil quilos de gros. Por meio dessas doaes, que vieram tanto do
governo central como da populao em geral, boa parte do sofrimento foi evitado
ou aliviado. Foi o primeiro grito de alerta que Tolsti ouviu para a realidade da
vida de muitos camponeses russos e que o mobilizou para a ao e no seria o
ltimo.
Romancista
Naquela poca ele lia muitos romances familiares ingleses e s vezes fazia piada sobre eles, dizendo, Esses romances sempre
terminam com o homem colocando o brao em volta da cintura da mulher, depois eles se casam e ele herda uma propriedade e
um ttulo de nobreza. Esses romancistas sempre terminam o romance com o casamento dos protagonistas. Mas o romance no
deveria tratar do que acontece antes de se casarem, mas sim do que acontece depois que se casam.
Memrias de Serguei, filho de Tolsti
uma vez que no mesmo ano o compositor Mssorgski comeou a planejar uma
nova e ambiciosa pera histrica ambientada na poca da ascenso de Pedro.
Havia uma razo especial para que Pedro ocupasse o centro das atenes
pblicas: era o bicentenrio de seu nascimento. Durante seu reinado, Nicolau i
tinha incentivado ativamente o culto da personalidade de Pedro, e o aniversrio
foi celebrado com pompa e circunstncia. Um novo couraado de batalha
recebeu o nome de Pedro, uma esttua foi erguida em Petrzavodski (So
Petersburgo no era a nica cidade fundada pelo tsar a levar seu nome), e
Tchaikvski escreveu uma cantata em sua homenagem, para citar apenas alguns
dos eventos que marcaram a ocasio do bicentenrio. Houve tambm uma
enxurrada de novas publicaes 1.049, para ser mais exato e uma grande
quantidade de tributos por parte de historiadores russos, alguns dos quais ainda
inclinados a ver Alexandre ii, o outro grande reformador do pas, como um
novo Pedro. Entre os que idolatravam Pedro, o Grande, estava o mais importante
historiador do pas, o professor Serguei Soloviov, recm-nomeado reitor da
Universidade de Moscou. Duzentos anos se passaram desde o dia em que o
grande homem nasceu, ele entoou na primeira de suas doze palestras pblicas
sobre Pedro, o Grande, em 1872. Por toda parte ouvem-se as palavras: devemos
celebrar o bicentenrio desse grande homem; nosso dever, dever patritico,
porque esse grande homem um de ns, um homem russo.
Soloviov era um acadmico dotado do mesmo esprito laborioso de Tolsti, e
que tambm publicou em escala tolstoiana. Aos treze anos de idade j tinha lido
pelo menos uma dezena de vezes os doze volumes da Histria do Estado russo,
obra pioneira de Karamzin, e em 1851 comeou a publicar sua prpria verso da
histria do pas projeto que o absorveria at sua morte em 1879. Karamzin
tinha mapeado a histria russa at a ascenso do primeiro tsar Romanov em
1613, mas os 29 volumes da Histria da Rssia desde os primrdios estendiam a
pesquisa at 1774, ano da Rebelio Pugatchev (brutalmente massacrada pela
tsarina Catarina, a Grande). Tolsti, bvio, leu com extrema ateno esse
magistral trabalho de historiografia, particularmente os volumes acerca do
reinado de Pedro. Soloviov buscava apresentar uma viso unificada da evoluo
da Rssia como nao. Veemente ocidentalista que acreditava no progresso
histrico, ele via as reformas de Pedro como desdobramento natural e inevitvel,
que tinha colocado a Rssia no caminho da lei e da ordem e que aproximou o
pas da civilizao europeia. Para Tolsti, contudo, a obra de Soloviov revelava a
projeto jamais alou voo, uma vez que quanto mais ele lia sobre Pedro, menos
atraente o tsar se tornava como potencial personagem de um romance. O escritor
ficou decepcionado pela personalidade do primeiro imperador da Rssia, que
mais tarde definiria em termos depreciativos como um bufo bbado.
O alcoolismo de Mssorgski tambm contribuiu significativamente para
diminuir qualquer interesse que Tolsti pudesse ter por sua msica (o consumo
de lcool levou o compositor a uma morte precoce em 1881, com apenas 42 anos
de idade). Ainda que mais tarde tenha ficado surpreso ao constatar o quanto
gostou das canes de Mssorgski tocadas para ele em 1903, via de regra Tolsti
tinha pouco interesse pela msica russa contempornea, a que permanecia alheio
e indiferente. Tolsti e Mssorgski tinham, surpreendentemente, muita coisa em
comum, embora nunca tenham entrado em contato. Ambos nutriam a mesma
paixo pela Rssia e sua histria, um profundo interesse pelas ricas texturas da
lngua russa (enquanto Tolsti elaborava sua Cartilha, Mssorgski reproduzia a
fala infantil em seu extraordinrio ciclo de canes O quarto das crianas), e uma
preocupao com a autenticidade, em nome da qual se debruavam sobre os
mnimos detalhes de cada objeto de estudo. Ao tentar conceber uma maneira de
escrever sobre as campanhas de Pedro, o Grande, contra os turcos em Azov, em
janeiro de 1873 Tolsti escreveu a um conhecido da famlia que vivia no sul da
Rssia com perguntas bastante especficas sobre a paisagem junto ao rio Don.
Como eram as margens? Que tipo de grama crescia ali? Havia arbustos? Seixos?
Certamente Tolsti alimentava altas expectativas com relao a seu romance
sobre Pedro, o Grande, mas acabou constatando que por mais que forasse a
mo, no conseguia insuflar vida aos inmeros esboos que, obstinadamente,
tentava iniciar. um tanto quanto irnico que, em fevereiro de 1873, no exato
momento em que o pblico era informado por meio de uma coluna de jornal
sobre sua mais recente obra em progresso, o escritor estivesse em vias de desistir
da empreitada. Semanas depois ele seria tomado pelo desejo de escrever sobre
temas contemporneos, ambientando seu novo romance na era turbulenta em que
ele mesmo vivia.
medida que os historiadores davam consistncia a um retrato mais bemacabado de Pedro na atmosfera mais permissiva sob Alexandre ii, um nmero
cada vez maior de pessoas comeou a questionar a viso oficial do reinado do
tsar, incluindo o amigo norte-americano de Tolsti, Eugene Schuyler, cuja
prpria biografia histrica foi publicada em 1884. Em algum momento da
com cinquenta e poucos anos de idade anos antes Bbikov fora seu scio no
projeto de destilaria, que teve vida curta. Bbikov disse a Anna que planejava se
casar com a nova preceptora de seus filhos, uma bela e jovem alem. Em um
acesso de fria e cime, antes de tirar a prpria vida, Pirogova enviou a Bbikov
um bilhete em que o acusava de ser seu assassino. Tolsti foi ver de perto o
inqurito judicial e presenciou a autpsia da suicida, que tinha sido levada para
um galpo da estao. O conde ficou profundamente abalado ao ver o cadver
mutilado da mulher que ele conhecera to bem Anna era uma bela mulher, de
corpo bem talhado e olhos cinza. Foi um dos primeiros suicdios ferrovirios na
Rssia, cuja ainda incipiente malha ferroviria estava em franca e rpida
expanso dos cerca de oitocentos quilmetros da poca de Nicolau i, j tinha
aumentado para mais de dezesseis mil quilmetros em 1870. Sem sombra de
dvida foi o primeiro suicdio da estao local de Tolsti. claro que o escritor
tambm usava a estrada de ferro, mas repugnava essa invaso da modernidade
a seu santurio rural, e reforaria tematicamente a complexa estrutura
arquitetnica de Anna Karinina associando eventos ligados ferrovia morte e
destruio.
Outro estmulo imediato para Anna Karinina veio da Frana. Em maro de
1873 Tolsti escreveu para sua cunhada Tnia perguntando se ela tinha lido o
livro LHomme-femme [O homem-mulher], ensaio de Alexandre Dumas Filho que
causara alvoroo em Paris no ano anterior e j tinha sido reimpresso dezenas de
vezes. Dumas escreveu seu ensaio como uma reao cobertura feita pela
imprensa francesa do julgamento de um homem que assassinara a esposa infiel,
de quem j tinha se separado. O texto era uma resposta especfica a um artigo
que deplorava as leis francesas que praticamente fechavam os olhos para tais
crimes (o homem foi condenado a meros cinco anos de priso) e propunha como
soluo o divrcio. Nesse caso essa jamais teria sido uma opo. Depois de um
breve perodo imediatamente seguinte Revoluo Francesa em que a Frana
teve as leis mais liberais do mundo, em 1816 o divrcio foi declarado ilegal e
assim permaneceria at 1884. Para Dumas, o casamento era uma cruel e
irreconcilivel batalha entre os sexos em que a mulher levava a melhor, mas
argumentava que nesse caso o marido era em ltima instncia o rbitro moral,
portanto tinha o direito de assassinar uma esposa infiel que continuasse a ser
recalcitrante. Tolsti ficou tremendamente impressionado com a anlise que
Dumas fazia do casamento. Alm de introduzir em uma das primeiras verses de
Anna Karinina uma discusso sobre o ensaio do autor de A dama das Camlias,
tambm discordaria de muitos de seus pontos fundamentais no retrato que fez do
matrimnio de Livin e Kitty. Ademais, bvio que o russo tambm se veria s
voltas com toda a tradio do romance francs de adultrio, que tinha sido criada
por autores como Flaubert, Zola e Dumas.
Por sua vez, a vida do prprio Dumas, ou melhor, a de sua esposa, propicia
um interessante comentrio aos temas de Anna Karinina, pois o escritor era
casado com Nadeja Nrichkina, aristocrata russa que cometera adultrio e dera
luz um filho ilegtimo. Nrichkina tambm se envolvera em um famoso caso de
assassinato ocorrido em Moscou em 1850 e que chocou e causou frisson na
sociedade elegante da Rssia, incluindo Tolsti. Nrichkina era uma mulher
fascinante, que ainda muito jovem tinha se casado com Alexander Nrichkin,
herdeiro de uma das mais ilustres famlias aristocrticas da Rssia, com quem
teve um filho. Depois de dar luz ela retomou sua carreira como uma das
grandes damas da alta sociedade moscovita, famosa por chegar tarde s festas e
ocasies sociais, de preferncia nunca antes da meia-noite. Tolsti, que era
contemporneo de Nrichkina e tambm estava morando em Moscou no perodo,
descreveu-a como trs la mode em carta tia Toinette. Em 1850, aos 25 anos
de idade, Nrichkina comeou a ter um caso com uma espcie de Vrnski um
belo e abastado aristocrata chamado Alexander Sukhovo-Kobilin, talentoso
dramaturgo que tinha a reputao de Don Juan. Mais tarde o romance de
Nrichkina foi descoberto e ela se viu envolvida no assassinato da amante
francesa de Sukhovo-Kobilin, crime pelo qual o dramaturgo foi (ao que parece,
injustamente) detido e acabou na priso, com dois servos que foram condenados
e despachados para a Sibria. Grvida de seu filho adulterino, a femme fatale de
cabelos ruivos fugiu s pressas e na surdina com a filha para Paris, onde
imediatamente ficou famosa nos sales mais chiques da cidade. Na capital
francesa ela conheceu Dumas, o filho ilegtimo de Dumas, pre, e que ganhara
fama aps a publicao, em 1848, do romance A dama das camlias, inspirado em
seu relacionamento com uma clebre cortes parisiense (mais tarde o enredo
daria origem pera La Traviata, de Verdi). O marido de Nrichkina se recusou a
dar-lhe o divrcio, ameaando tambm tomar a guarda de sua filha; somente aps
a morte de Nrichkin, em 1864, que ela pde se casar com Dumas.
Tolsti escreveu tia Toinette para coloc-la a par do escandaloso
assassinato que por muitos anos alimentou o circuito de fofocas de Moscou, e
Blachov (o futuro Vrnski), que enceta uma conversa ntima e animada com
Tatiana, escandalizando os presentes. Stvrovitch agora percebe o infortnio que
se abateu sobre ele, e da por diante sua esposa deixa de ser convidada para
eventos da sociedade. uma cena que guarda ligeira semelhana com a soire na
casa da princesa Ielisavieta Fidorovna Tvirskaia (Betsy), na segunda parte de
Anna Karinina.
Em sua primeira verso Tolsti esboou mais onze captulos. Tatiana
(Tnia) engravida e Blachov perde uma corrida de cavalos quando sua gua cai
no ltimo obstculo. Stvrovitch abandona Tatiana e se muda para Moscou; ela
d luz e o marido concorda em se divorciar. Contudo, o segundo casamento de
Tatiana no feliz, e depois que Stvrovitch a informa de que o casamento de
ambos jamais ser desfeito e que todo mundo sofreu, ela se afoga no rio Neva.
Blachov parte para se juntar s fileiras envolvidas na campanha de Khiva
(tropas russas atacaram a cidade e tomaram o controle do canado de Khiva em
1873, no exato momento em que Tolsti escrevia).
Na primeira verso Tatiana tem um irmo (um prottipo de Oblnski), ao
passo que seu marido tem uma irm chamada Kitty, mas no h nem sinal de
Livin e seus irmos, tampouco de membros da famlia Cherbtski. Stvrovitch
retratado de maneira simptica, ao passo que sua esposa definida de modo
intrigante como uma mulher ao mesmo tempo provocativa e meiga. Tolsti
nunca tinha esboado de antemo a sinopse de uma obra ficcional, mas em todo
caso esse material bruto logo foi significativamente modificado. Em verses
futuras ele desenvolveu e expandiu drasticamente cada uma das partes desse
argumento inicial, exceto sua evocao do estado de esprito do cavalo de
Blachov durante a corrida, que depois decidiu cortar. O cavalario ingls de
Blachov chamado de Kord, como na verso final do romance, mas o nome da
gua ainda no Fru-Fru. De incio ela tem o nome ingls de Tiny [pequenina]
e chamada de Tani (que como fica o nome ao ser transliterado), e tambm
Tnia, criando assim uma indelvel ligao com sua amante, o que permanece
na verso final, embora a associao no seja declarada.
Tolsti ainda estava longe de entregar esse material a Snia para que ela o
passasse a limpo. Em vez disso, iniciou uma nova verso do incio de seu
romance:
Depois da pera, os convidados rumaram para a casa da jovem princesa Vrsskaia. A princesa Mika,
como era conhecida na sociedade, chegara do teatro e at ento s tinha tirado o casaco de pele no
vestbulo fartamente iluminado, defronte ao espelho adornado de flores; com sua pequena mo enluvada
ela ainda tentava soltar a renda que se prendera em seu casaco de pele [...].
Dessa vez Tolsti deu a sua herona o nome de Anastcia (Nana) Arcdievna
Karinina. E substituiu seu vestido de renda amarelo pelo veludo preto que ela
usar no baile na verso final. O marido j chamado definitivamente de
Aleksiei Aleksndrovitch, mas o nome do amante de Anna mudou de Blachov
para Gagin. Tolsti acabou descartando essa verso, mas manteve na verso final
do romance o detalhe de Anna soltando a renda da manga que se prendera no
colchete da capa de peles, quando ela vai embora da soire da princesa Betsy
depois do fatdico encontro com Vrnski.
Tolsti escreveu diversas outras pginas, mas j estava comeando a ficar
um pouco irritado. Queria um romance de adultrio, mas no queria se restringir
a escrever apenas sobre a alta sociedade de So Petersburgo, embora sua atitude
sobre a aristocracia fosse categoricamente crtica. Com algumas excees
(Stvrovitch, por exemplo, tem uma conversa com um niilista a bordo de um
trem), at ento seu meio social era inflexivelmente restrito, por isso ele decidiu
introduzir em sua terceira verso o personagem Kstia Nradov, prottipo de
Livin. Dono de terras, Nradov amigo de Gagin (o futuro Vrnski) e seu rival
no amor por Kitty Cherbtskaia, que tambm faz sua primeira apario. Alm
disso, a ao se desloca para Moscou.
Aos poucos Tolsti estava encontrando o rumo de seu novo romance. Sua
quarta tentativa de incio recebeu o ttulo Anna Karinina, seguido da epigrafe
A vingana minha. O esboo se inicia com uma cena domstica: um marido
acorda depois de ter brigado com a esposa na noite da vspera, pois ela
descobrira sua infidelidade. Stepan Arkditch Alabin quase Oblnski. Anna
chega a Moscou como apaziguadora, e encontra Gagin no baile. Mas Tolsti
ainda no estava satisfeito: no havia tenso na relao entre os prottipos de
Livin e Vrnski, pois os dois eram amigos. Ele decidiu mudar os nomes para
Ordintsev e Udchev, e agora rivalizavam pelo amor de Kitty. Era hora de tentar
outro comeo. Tolsti pegou uma folha de papel em branco e escreveu uma
quinta verso do pargrafo de abertura do romance:
Havia uma exposio de gado em Moscou. O Jardim Zoolgico estava apinhado de gente. Radiante, o
rosto franco e agradvel e os lbios rubros, usando o chapu ligeiramente tombado para um dos lados de
sua cabeleira castanho-clara e encaracolada que j comeava a rarear, o cinza de seu colarinho de pele de
castor mesclando-se a suas vistosas suas grisalhas, Stepan Arkditch Alabin, conhecido de toda a
Ordintsev, que est prestes a encontrar por acaso seu amigo Albin, fora a
Moscou para exibir seus bezerros e seu touro.
Dessa vez Tolsti seguiu adiante e escreveu ininterruptamente durante um
bom tempo, mas logo mudaria de rumo de novo. Agora tinha construdo uma
slida base para seu romance ao criar o fio condutor da histria de Livin para
servir de contraponto ao enredo de Karinin, e os Oblnski eram o arco que
unia os dois personagens. Por razes de equilbrio estrutural, ele agora decidiu
no mostrar j no primeiro captulo o protagonista Livin, por isso reservou o
Jardim Zoolgico para uma cena de patinao mais tarde e retomou sua ideia
original de abrir o romance no momento em que Oblnski acorda depois da
rusga com a esposa na noite anterior. Ele retrabalhou quatro vezes as cruciais
cenas de abertura, para que ficassem perfeitamente a seu gosto, e esses foram os
primeiros captulos que deu a Snia para que os passasse a limpo. Todo o resto
permaneceu na forma de rascunho. Ao todo Tolsti produziu dez verses da
primeira parte de Anna Karinina, 2.500 pginas manuscritas, antes que o
romance fosse concludo. Quase um sculo se passaria at que a histria de Anna
Karinina pudesse ser contada com exatido. Os manuscritos foram parcialmente
deslindados para publicao no volume vinte das Obras completas de Tolsti,
lanado em 1939, mas a primeira edio crtica s veio a lume em 1970, e agora
parece que aquela contm erros.
Em 11 de maro de 1873 Tolsti respirou fundo e finalmente escreveu a
Strkhov avisando que tinha passado mais de um ms trabalhando em um
romance que nada tinha a ver com Pedro, o Grande. Ele enfatizou que estava
escrevendo um romance propriamente dito o primeiro em sua vida. De fato,
Tolsti vinha anotando a palavra roman (romance) no topo da pgina de cada
tentativa de captulo de abertura. Nesse estgio inicial, o conde ainda estava
bastante empolgado com seu novo projeto que, segundo escreveu na carta a
Strkhov, o deixava encantado. Mas antes de partir com a famlia no incio de
junho para sua viagem de vero a Samara, onde no pretendia escrever muito,
alguns eventos refrearam o andamento do romance e lanaram as primeiras
sombras sobre um livro cuja concluso se mostraria cada vez mais difcil.
Primeiro veio a inesperada notcia da morte de sua sobrinha de cinco anos de
idade, Dacha Kuzminskaia, a filha mais velha da irm de Snia, Tnia, que todo
vero levava os filhos para uma temporada em Isnaia Poliana. Dacha era
adorada por todos, e sua morte trouxe a reboque a aterrorizante constatao, por
parte de Tolsti, de que podia muito bem ter sido um de seus prprios filhos.
Snia ficou devastada pelo luto. Tolsti escreveu uma longa carta de consolo
para Tnia, recomendando que decorasse e recitasse todo dia o Salmo 30
(Senhor meu Deus, clamei a ti, e tu me saraste. Senhor, fizeste subir a minha
alma da sepultura; conservaste-me a vida para que no descesse ao abismo).
No ms de maio Tolsti teve outros motivos de aborrecimento ao saber que
um campons de Isnaia Poliana fora morto a chifradas por um touro. A notcia
era particularmente perturbadora, j que se tratava da segunda morte nas mesmas
circunstncias em um intervalo de doze meses. Quando do primeiro incidente, no
vero de 1872, Tolsti sequer estava em Isnaia Poliana tinha viajado para
Samara , mas apesar disso foi responsabilizado pelo juiz encarregado de
investigar o caso, que determinou que o escritor ficasse sob priso domiciliar
enquanto a morte suspeita era apurada. Tolsti se enfureceu, por dois motivos:
ter de se submeter autoridade de um jovem insignificante e pretensioso que
cerceava suas liberdades, e as novas leis que introduziam esses procedimentos.
Temeu pelo pior ao se lembrar do caso do campons que fora mantido um ano e
meio encarcerado no presdio de Tula sob suspeita de ter roubado uma vaca, at
que as autoridades por fim conclussem que era inocente. Bizarramente, ao
mesmo tempo Tolsti foi convocado para atuar como jurado de outro caso, e
recebeu multa pesada por no comparecer ao tribunal. No calor do momento ele
cogitou seriamente levar Snia e os filhos para a Inglaterra, onde acreditava que
as liberdades civis eram respeitadas. Em 15 de setembro de 1872 Tolsti chegou
a escrever a Alexandrine pedindo que ela o colocasse em contato com boas
famlias aristocrticas, para que assim pudesse dar sua famlia condies de
levar uma vida agradvel na Inglaterra. Embora admitisse que considerava
repugnante a vida na Europa, o escritor afirmava que se vendesse tudo que tinha
na Rssia conseguiria levantar 200 mil rublos, quantia a seu ver suficiente para
comprar uma casa e um pedao de terra junto ao mar. O novo sistema legal que
tinha sido introduzido na Rssia em 1864 criara tribunais de estilo ocidental e a
necessidade de advogados e outros profissionais da rea jurdica tambm de estilo
ocidental. A outra ao impetuosa de Tolsti foi comear a escrever um
magnnimo artigo intitulado As novas leis e sua aplicao. No devido tempo
Tolsti expressaria seu desprezo pelas novas instituies, por meio de seu alter ego
do jovem Werther, de Goethe, e um aluno que tinha se matado por causa de sua
dificuldade em aprender latim confirma que o suicdio era um tema que vinha
ocupando a mente de Tolsti. Tampouco seu interesse era puramente acadmico,
pois em pouco tempo ele mesmo comearia a contemplar a sua prpria despedida
voluntria da vida. Em certo sentido Tolsti estava apenas seguindo uma
tendncia, uma vez que nesse perodo a incidncia de suicdios na Rssia atingira
o que foi descrito como propores epidmicas. Em parte isso talvez se
explicasse por uma reao de histeria coletiva ampla e praticamente diria
cobertura no incio da dcada de 1870 de casos de suicdio na imprensa
russa, que na dcada de 1860 tinha conquistado a liberdade de expresso e agora
cobria tambm os recm-institudos julgamentos pblicos.
A duras penas Tolsti seguiu trabalhando em Anna Karinina em outubro e
novembro de 1873, mas houve novas interrupes. Assim que Kramski guardou
seu cavalete e retornou a So Petersburgo, Tolsti recebeu um grupo de
estudantes que ele mesmo tinha convidado para discutir seus mtodos de ensino.
O grupo permaneceu hospedado em Isnaia Poliana por uma semana. Em 9 de
novembro os Tolsti sofreram a primeira morte na famlia em onze anos: o sbito
falecimento de seu filho caula, Piotr (Ptia), aos dezoito meses de vida. Pouco
depois disso a irm de Snia, Tnia Kuzminskaia, deu luz um natimorto. A
famlia ficou devastada, em especial Snia (que meses depois perderia seu irmo
Vladimir, de dezenove anos, que morreu logo aps se alistar na cavalaria
hussarda). Na lmpida e gelada manh em que a famlia enterrou o pequeno Ptia
junto ao tmulo dos avs, pela primeira vez Tolsti comeou a imaginar onde ele
prprio seria enterrado. A essa altura ainda era um homem confiante e otimista, e
em cartas que escreveu no perodo explicou que de certa maneira a morte de seu
irmo Nikolai o havia endurecido e deixado imune dor da perda. Ele
argumentou que havia algum consolo no fato de que dos cinco filhos a morte de
Ptia certamente nos foi a mais fcil de suportar. E teve a franqueza de afirmar
que aquele beb choro ainda no tinha sido uma fonte de alegria para ele.
Mas Snia, que estava grvida de quatro meses quando Ptia morreu,
afundou na tristeza. Nenhum dos outros filhos era to ligado a ela ou irradiava
tanta alegria e bondade, ela escreveu a Tnia. Arrasada, ainda imaginava ouvir a
voz de seu alegre e rechonchudo caula chamando seu nome. Seu luto era to
grande que ela tambm passou a temer pelo filho que estava esperando Snia
sentiu o beb se mexer no ventre pela primeira vez justamente quando Ptia
morreu. Sua ltima lembrana do filho morto foi luz do sol, que resplandecia
atravs da janela da igreja, iluminando o cadver no pequeno caixo e dourando
seus cabelos. Naquele ano o Natal em Isnaia Poliana foi uma ocasio triste.
Enquanto as crianas brincavam na neve l fora, Snia ficou sentada dentro de
casa, passando manuscritos a limpo ou cuidando de tarefas domsticas e
aguardando com ansiedade os passeios noturnos de troica que a famlia
organizava para se divertir, mas ela disse a Tnia que as mortes recentes haviam
minado quase totalmente sua tranquilidade e felicidade.
A essa altura Tolsti j completara nove meses de trabalho intermitente em
seu romance. No final de 1873 ele confidenciou a Nikolai Strkhov que at ali o
trabalho em Anna Karinina tinha sido bom, at mesmo muito bom. Ele calculou
que j tinha sete folhas de impresso prontas para composio, e decidiu que
seguiria em frente e as imprimiria como a primeira parte do romance em forma de
livro, sem publicao prvia em peridicos. Consequentemente, em janeiro de
1874 Tolsti seguiu para Moscou a fim de firmar um acordo com a tipografia de
Mikhail Ktkov para a publicao de Anna Karinina. Ktkov acabara de imprimir
uma tiragem de 3600 exemplares das obras reunidas de Tolsti, em oito volumes
(cerca de mil foram vendidos no primeiro ano, ao preo de doze rublos).
Tecnicamente aquela constitua a terceira edio dos textos de Tolsti, uma vez
que ele considerava que a publicao em peridicos tinha sido a primeira. A
segunda edio em dois volumes, que tinha sido publicada em 1864, agora foi
incrementada por Guerra e paz, mas em novo formato: quatro partes, em vez de
seis, todo o texto em francs vertido para o russo e as reflexes histricas do
autor deslocadas para um novo eplogo. Em parte, as revises de Guerra e paz
tinham sido ditadas pelas significativas mudanas que se operaram no
pensamento de Tolsti por conta de seu trabalho com as Cartilhas; suas novas
ideias sobre uma reforma em sua maneira de escrever tambm teriam impacto em
Anna Karinina. Obviamente Tolsti ainda estava muito preocupado com seu
trabalho educacional. Foi durante essa breve visita a Moscou em janeiro de 1871
que ele compareceu diante do Comit Literrio, que aceitou sua proposta de
colocar prova seus mtodos de ensino comparando-os aos mtodos pedaggicos
oficiais.
Tolsti trabalhou freneticamente para terminar a primeira parte de Anna
Karinina em Isnaia Poliana enquanto o experimento de avaliao dos mtodos
de ensino era realizado em Moscou ao longo de seis semanas. Ainda estava
captulos iniciais, portanto a princpio podia ganhar algum tempo, mas o grosso
do romance agora que ele j no queria que fosse apenas a histria de um caso
de infidelidade conjugal na alta sociedade ainda estava por ser escrito. O
problema que em 1874 e ao longo de boa parte de 1875 o corao de Tolsti
ainda estava na pedagogia. Ele assumiu pessoalmente a direo de setenta
escolas em seu distrito, vinha trabalhando na reviso das provas de sua Nova
cartilha e estava elaborando propostas de formao e aperfeioamento de
professores. Comparada ao trabalho educacional, a fico lhe parecia trivial,
ainda mais em se tratando de uma histria espalhafatosa narrando um caso de
infidelidade amorosa. Por julgar que era impossvel manter seu interesse na
escrita de um romance de adultrio nos moldes franceses, Tolsti tinha
encontrado uma maneira de ampliar o escopo do livro e introduzir um
personagem autobiogrfico por meio do qual poderia explorar tpicos de seu
prprio interesse, tais como tcnicas de lavoura, mas mesmo assim escrever Anna
Karinina continuava sendo profundamente enfadonho. Em dezembro de 1874
Tolsti escreveu a Alexandrine para dizer que mais uma vez se sentia encantado
com as milhares de criancinhas com cuja educao estava envolvido, assim como
tinha acontecido quinze anos antes, quando abrira sua primeira escola. O escritor
afirmou que toda vez que entrava em uma de suas escolas e via uma multido
de crianas sujas e esfarrapadas, com olhos brilhantes e expresso angelical,
sentia-se como se estivesse salvando algum do afogamento. Ele queria salvar
todos os pequenos Pchkins e Lomonosovs, que, no fosse sua interveno,
morreriam ou se perderiam. A seu editor Ktkov Tolsti chegou a declarar com
todas as letras que uma nica pgina de sua Cartilha lhe custara mais esforo e era
mais importante do que todos os textos ficcionais pelos quais recebera elogios
imerecidos.
Snia no compartilhava a opinio: ela se perguntava se valia a pena investir
todas as suas energias em um remoto rinco da Rssia o distrito na provncia
de Tula onde viviam. Em carta sua irm Tnia ela no escondeu o fato de que
desprezava do fundo do corao todo o trabalho do marido com aritmtica e
gramtica, e que desejava ansiosamente que Tolsti voltasse a escrever
romances, atividade que ela a um s tempo respeitava e amava:
Dou aulas, amamento feito uma mquina, desde o amanhecer at a noite, e noite adentro at o amanhecer.
Eu estava passando a limpo a Cartilha, mas quando percebi que no acabaria to cedo, me enfadei tanto
com aquelas palavrinhas e expresses como Macha comeu kasha[9] que desisti que algum copista
faa isso. Meu trabalho era passar a limpo os imortais Guerra e paz ou Anna, mas aquilo era entediante.
Tolsti tinha optado por um vestido preto, mas foi Snia quem sugeriu que o
tecido fosse veludo, e acentuou a impresso de sensualidade acrescentando o
detalhe da renda branca em torno da cintura.
Na segunda parte da srie, publicada na edio de fevereiro de Mensageiro
segurana passou a sair para caar sem levar armas, para que assim no casse na
tentao de atirar na prpria cabea, e se gabava para o irmo Serguei de que
voltava para casa com os ces trazendo um saco com seis lebres dentro, sem ter
disparado um nico tiro.
Snia no tinha o luxo de parar para meditar sobre o sentido da vida.
Geralmente vivia ocupada com as tarefas domsticas, e agora e no era a
primeira vez estava literalmente beira da morte. No demorou para que sua
longa convalescena fosse agravada por novos problemas. A irm de Jules Rey
no era exatamente um primor de preceptora, e logo houve atritos: Snia
concluiu que no a suportava. Depois, em dezembro de 1875, veio a longa e
dolorosa agonia da tiotuchka Polina. Foi Snia quem teve de cuidar dela nos
estgios finais da doena, quando a idosa ficou confinada cama. Era Snia
quem tinha de trocar a roupa de cama suja de fezes e suportar as ofensas e berros
da doente por causa da dor causada pelo menor movimento. Polina, que at seus
ltimos momentos de vida conversou em francs com o sobrinho, estava
aterrorizada diante da morte, e por fim expirou em 22 de dezembro. Foi enterrada
dois dias depois. Foi outro Natal de silncio.
Tolsti ficou tremendamente entristecido, pois agora o ltimo elo com seus
pais tinha desaparecido para sempre. A julgar pelo que escreveu em carta a
Alexandrine, a morte da tia Polina mais do que qualquer outra abalou-o
profundamente. Apesar de se sentir enfastiado com Anna Karinina como se
fosse um rabanete amargo , ele tinha de seguir em frente. Outro tero do
romance foi publicado nas primeiras quatro edies de Mensageiro Russo em 1876.
A edio de abril da revista continha uma substancial poro da quinta parte,
terminando com um captulo que descreve os ltimos dias de Nikolai, irmo de
Livin. Assim como ocorre com muitos outros trechos de Anna Karinina, Tolsti
baseou-se em aspectos de sua experincia para escrever. Para criar o personagem
de Nikolai, por exemplo, ele evocou seu falecido irmo, o excntrico Dmtri, e
tambm recordou os ltimos dias de seu querido irmo de mesmo nome, que
morrera em seus braos. A morte parecia estar por toda parte. Em fevereiro,
Tolsti disse a seu nico irmo ainda vivo, Serguei, que assim como o
personagem Livin, estava achando impossvel afugentar os pensamentos
mrbidos e a noo de que nada mais lhe restava na vida. Serguei, ele prprio um
homem depressivo, conhecia de perto essa sensao, que tambm afligia a irm
Mria, que em maro de 1876 escreveu a Tolsti (desde Heildelberg) para dizer
A constante preocupao era Elena, a filha ilegtima que ela dera luz em
setembro de 1863, meses depois de nascer o primognito de Tolsti, Serguei. Em
1876 Elena completou treze anos, e a jovem viva ainda estava envergonhada
demais para lev-la para a Rssia.
A sociedade russa comeara a mudar rapidamente na dcada de 1860, mas as
estruturas patriarcais mantidas como relquia sagrada pelo Estado se
perpetuavam. Ao escrever Anna Karinina, Tolsti mexeu com os sentimentos de
milhares de leitores presos a casamentos infelizes. Embora poucos tivessem a
coragem de Anna Arcdievna, os leitores se identificavam com ela. O paradoxo
de Tolsti escrever com tamanha simpatia e compaixo por Anna em um livro
que ao mesmo tempo claramente condena o adultrio em parte explicado pelo
destino da irm do escritor, Macha, cujo casamento infeliz foi uma das muitas
histrias de vida que serviram de matria-prima para seu romance familiar.
quase como se Macha lesse a mente do irmo, pois na carta que enviou a ele em
maro de 1876 ela tambm fala das amargas lies de vida que tinha aprendido e
se identifica diretamente com a herona do romance. Se todas as Annas
Karininas soubessem o que as aguarda, ela escreveu, fugiriam dos prazeres
efmeros, que jamais so nem podem de fato ser prazeres, porque nada que
ilegal chega a constituir a felicidade. Tolsti, obviamente, tinha a mesma
opinio.
At a publicao, em 1990, da correspondncia de Tolsti com os irmos e
irm, Macha era uma figura um tanto quanto nebulosa na biografia do escritor,
mas teve papel importante na vida pessoal do conde, e os dois continuaram
prximos (as cartas de Tolsti para ela esto entre as mais tocantes que ele
escreveu). Macha lamentava seu casamento com Valerian Pietrvitch e afogava
as mgoas em viagens ao exterior, levando consigo seus filhos para spas onde se
submetia a tratamentos para as diversas doenas que acreditava portar. Foi em
Aix-le-Bains, em 1861, que conheceu o belo visconde sueco Hector Victor de
Kleen, com quem passou os dois invernos seguintes em Algiers. Os irmos
ficaram sabendo que Macha e o visconde estavam vivendo juntos quando ela
voltou Rssia no vero de 1862, s vsperas do casamento de Tolsti. No
outono seguinte, temendo a reprovao da famlia, ela escreveu de Genebra para
comunicar que dera luz uma menina. Tolsti e o irmo Serguei, ambos pais de
filhos ilegtimos, foram compreensivos. Tolsti se apressou em asseverar seu
apoio irm e resolveu tentar ajud-la. Em janeiro de 1864 ele e Serguei se
reuniram com Valerian Pietrvitch, que reconheceu sua responsabilidade no
fracasso do casamento e concordou em conceder o divrcio. Tolsti obteve a
necessria autorizao do bispo e encaminhou os documentos para que Macha os
assinasse e os enviasse de volta. Contudo, ela ficou receosa de dar andamento ao
processo, pois Valerian lhe escreveu uma carta ameaadora alegando que o
divrcio mancharia sua posio e lhe traria uma srie de dissabores. Em carta a
Toinette, ela perguntou em tom lamentoso se tinha o direito de levar aquilo
adiante, embora Valerian a tivesse feito sofrer muito.
Era compreensvel que Macha hesitasse. O rompimento legal do vnculo de
matrimnio era algo extremamente raro na Rssia, e o risco de desgraa social
realmente existia. Em 1857, ano em que a Inglaterra aboliu a jurisdio
matrimonial dos tribunais eclesisticos (substitudos por um tribunal civil) e pela
primeira vez admitiu o divrcio, a santidade do casamento como instituio
religiosa na Rssia foi mantida pela publicao da terceira edio do Cdigo Civil
Imperial. Na Rssia, o divrcio s poderia ser obtido por meio da Igreja, que via
o casamento como sacramento sagrado e indissolvel e no dava aos filhos
ilegtimos direitos legais. O Artigo 103 do Volume 1 do Cdigo proibia
especificamente os casais unidos pelos laos do matrimnio de viver separados,
exceto em casos de exlio na Sibria, ao passo que os artigos 106 e 108
confirmavam a autoridade masculina no mbito do matrimnio:
O marido dever amar sua esposa como seu prprio corpo e viver com ela em harmonia; seu dever
respeit-la e proteg-la, perdoar suas falhas e minorar suas enfermidades. Dever prover o sustento da
esposa e a manuteno da famlia da melhor forma possvel []. esposa cabe obedecer ao marido como
chefe da famlia, com ele coabitar em amor, respeito e ilimitada obedincia e a ele oferecer todas as
satisfaes e afetos como a senhora da casa [].
da esposa do conde e era apenas dois anos mais velha que Tnia. Depois que
Serguei finalmente se casou com Mria, o casal se mudou para a propriedade de
Pirogovo. Teriam ao todo onze filhos, dos quais quatro sobreviveram, mas seu
casamento no foi feliz. Mria Mikhilovna tinha a dolorosa conscincia acerca
das suas diferenas de origem social, e na companhia da famlia do marido sentiase tmida e retrada. Tolsti sempre demonstrou por ela o mais profundo respeito,
e repetidamente a convidava para acompanhar Serguei a Isnaia Poliana, mas ela
sempre relutava em aceitar, mesmo quando Snia teve a ideia de convid-la para
ser a madrinha de seu filho Andri, nascido em dezembro de 1877.
O fato de que Tolsti praticamente tinha parado de manter um dirio
enquanto escrevia Anna Karinina se explica em parte por seu desejo de dar voz,
nas pginas do romance, s questes que lhe interessava abordar. Por meio do
relacionamento de Livin e Kitty, ele quis mapear uma terceira via entre o
casamento de estilo europeu de que Anna toma partido, caracterizado pelo
reduzido nmero de filhos, e o casamento tradicional, de estilo campons, de
Dolly, que cria um grande nmero de filhos embora tenha a mesma origem nobre
de Anna. Ao longo do romance Tolsti tinha entremeado diversos detalhes
autobiogrficos disfarados na histria do namoro e do casamento de Livin e
Kitty (a comunicao via cartas escritas com giz, o descuido na hora de separar
uma camisa limpa para Livin no dia do casamento e assim por diante), mas na
segunda metade da sexta parte o conde comeou a dar voz, por meio de Dolly, a
seu horror contracepo.
Depois da morte de Vrvara em novembro de 1875, a sade de Snia
continuou abalada, e em janeiro de 1877 ela fez sua primeira visita a So
Petersburgo para ficar por uma semana com a me (que havia passado trs anos
sem ver) e consultar-se com famoso dr. Botkin, mdico do tsar. Tambm
conheceu pessoalmente Alexandrine, que imediatamente se apressou em escrever
a Tolsti para dizer o quanto havia gostado de sua esposa. Ela disse que achou
Sophie sincera, cordial, inteligente e franca, e que se afeioou a ela na mesma
hora. Alexandrine tambm se encarregou de transmitir a Tolsti uma mensagem
eufemstica do dr. Botkin sobre a sade de Snia, resultado de uma nova
gravidez iniciada semanas depois de dar luz. Desde a morte de Vrvara, Snia
estava to apavorada com a ideia de ter outro filho que fizera de tudo ao seu
alcance para evitar uma nova gravidez, cogitando inclusive recorrer
contracepo, o que teve impacto em seu casamento. Foi justamente nessa
ocasio que Tolsti escreveu o captulo de Anna Karinina em que Dolly reage
com extremo horror revelao de Anna de que vinha usando contracepo. Para
Dolly, e para Tolsti, a contracepo era imoral.
Enquanto Snia estava em So Petersburgo, Tolsti seguiu escrevendo Anna
Karinina, disposto a terminar o livro. Para se distrair, lia The Prime Minister, de
Trollope, o ltimo dos seis romances de Palliser, que recomendou vivamente ao
irmo Serguei. Anna Karinina reflete o empenho de Tolsti frente ao romance
francs de adultrio, mas tambm seu entusiasmo pela fico inglesa, que ele
tinha na mais alta conta certa feita, o conde exclamou sem rodeios que os
livros ingleses eram os melhores e que neles sempre encontrava algo novo e cheio
de frescor. bem provvel que o romance ingls que Anna l no trem no incio
d e Anna Karinina seja de Trollope, j que o livro menciona membros do
Parlamento, caa raposa e ttulos de nobreza. Trollope j tinha decidido que sua
herona, lady Glencora, acabaria amando seu honesto e enfadonho marido
Plantagenet Palliser, mais bondoso do que seu homlogo russo Karinin. E, sem
o fardo de uma tradio didtica para oprimi-lo, a opo por um final feliz no
era problema para um escritor devotado ao seu emprego de tempo integral nos
correios. Trollope era misericordiosamente imune ao tipo de dvida acerca de si
prprio que tanto atormentava Tolsti enquanto ele pelejava para terminar Anna
Karinina.
Tolsti finalmente concluiu Anna Karinina em 1877. Certamente os leitores
russos tinham sido pacientes. Afinal de contas, tinham comeado a ler o romance
dois anos antes, e provavelmente ficaram to desconcertados quanto o editor de
Tolsti quando a publicao seriada foi subitamente interrompida em abril de
1875, depois de um tero do romance e novamente em 1876. Ktkov tinha
inclusive se sentido obrigado a publicar uma nota explicando que os hiatos no se
deviam aos editores do peridico, mas sim a circunstncias que impediam o
autor de concluir seu romance, cuja publicao, ele esperava, agora continuaria
sem interrupo. Os leitores de Tolsti, contudo, continuavam entusiasmados.
Mais tarde, um jovem conhecido de Tolsti relembrou que ele e seus colegas
estudantes aguardavam com a respirao suspensa de tanta expectativa cada
nova edio de Mensageiro Russo, e depois imediatamente devoravam todas as
pginas sempre que havia novos captulos de Anna Karinina. Mas Tolsti ficou
completamente perplexo quando Strkhov lhe escreveu de So Petersburgo em
maio de 1877 para dizer que as resenhas mais recentes o saudavam como um
bvio que Tolsti ficou ainda mais enfurecido quando leu essa declarao,
e imediatamente se ps a rascunhar uma carta a Aleksiei Suvorin, agora editor do
jornal Novos Tempos, de So Petersburgo, em que protestava contra a maneira com
que seu eplogo fora descartado como algo de pouco valor e negligentemente
resumido. Que tal resumir o restante do romance em dez linhas?, ele
esbravejou: Uma mulher abandona seu marido. Depois de se apaixonar pelo Sr.
Vrnski, ela vai se enfurecendo com vrias coisas em Moscou e se joga debaixo
de um trem. Tolsti tambm refutava as instrues dadas por Ktkov aos
leitores sobre como interpretar Anna Karinina, ou seja, como um romance sobre
a alta sociedade, e se ressentia amargamente de ter recebido ordens efetivas
sobre como terminar o livro. Mas foi Snia, assinando como C[ondessa] S[fia]
*** e citando a carta do marido, que por fim anunciou aos leitores que o eplogo
no seria publicado no Mensageiro Russo.
Sem sombra de dvida o pblico russo ficou agradecido pela explicao, mas
nem todos os leitores apreciaram o eplogo. Os comentrios depreciativos de
Livin sobre a Questo Balcnica e o Movimento Voluntarista Russo eram
extremamente controversos e diametralmente opostos aos pontos de vista do
grande rival de Tolsti, Dostoivski, cujo nacionalismo messinico (ou
megalomania jingosta ortodoxa, dependendo do ponto de vista) tinha como
ponto central o papel da Rssia como paladino salvador dos Blcs. Embora
10
Se dependesse de mim, eu no seria um monge, seria um tolo santo ou seja, no apreciaria coisa alguma na vida, e no
faria mal a ningum.
Carta a Nikolai Strkhov, 6 de novembro de 1877
Uma vez que Tolsti acabou acreditando fervorosamente na ideia de que nossa
vida constituda de ciclos de sete anos e que, alm disso, era tambm um
homem extremamente supersticioso, estava fadado a atribuir especial significado
a seu 49 o ano de vida particularmente porque esse aniversrio caiu no stimo
ano da stima dcada do sculo. E assim se deu: em outubro de 1884, quando
outros sete anos haviam se passado, Tolsti olhou para trs e constatou que a
mais radical mudana de sua vida tinha de fato sido, como ele mesmo ps em
forma numrica em carta esposa, 7 x 7 = 49. Foi em 1877 que Tolsti
comeou a trilhar com mais firmeza o caminho que ele tinha tentado iniciar
quando abriu sua escola em Isnaia Poliana o caminho para viver de acordo
com a tica crist. Por duas vezes ele tinha se desviado quando se casou e
novamente quando se comprometeu a escrever Anna Karinina. Mas dessa vez
no haveria desvios, e quanto mais ele avanava ao longo da trilha que o afastava
de sua vocao artstica de romancista, e que tambm o afastava de sua esposa,
mais leve ficava o passo. Ele no parou por completo de escrever fico, mas a
produo ficcional se tornou secundria diante da tarefa mais premente de
denunciar a hipocrisia que ele via ao redor.
Talvez fosse inevitvel que um homem pouco afeito a meias-medidas
passasse por algo que ia muito alm da tpica crise de meia-idade. A dcada que
Ambrsio. As tias do conde haviam contado a ele e aos irmos muitas histrias
sobre Ambrsio, insuflando nas crianas um profundo respeito por Optina
Pustin. L estava enterrada sua devota tia Polina, que fazia peregrinaes anuais
ao mosteiro. O escritor tambm ouvira relatos dos camponeses sobre Ambrsio.
Depois de um dia inteiro de viagem, ele e Strkhov chegaram s trs da manh
em sua tarantass. Como no quisessem receber tratamento especial, alojaram-se
em um espartano e lotado albergue. Acontece que o padre Feoktist, monge
encarregado da administrao do albergue do mosteiro, era um dos ex-servos da
famlia de Tolsti, e assim que a identidade do conde foi descoberta houve
presso para que ele se transferisse para as mais luxuosas acomodaes
disponveis, o que ele recusou.
Havia razes para que Tolsti escolhesse Optina Pustin. Apesar de ter sido
fundado no sculo xvi, as reformas anticlericais iniciadas por Pedro, o Grande, e
continuadas por Catarina, a Grande, quase haviam forado o mosteiro a fechar as
portas no sculo xviii; quela altura o estabelecimento tinha sido reduzido a trs
monges, um deles cego. Contudo, desse estado moribundo o mosteiro se reergueu
e tornou-se o centro de um extraordinrio ressurgimento religioso no sculo xix.
Isso se deveu a seus carismticos ancios. Um ancio (starets) era um monge
que por meio da prtica do ascetismo, oraes constantes e cultivo da solido
tinha se tornado um lder no oficial da vida espiritual de seu mosteiro.
Acreditando que os monges possuam poderes de cura e de clarividncia, alm de
descomunal sabedoria, milhares de visitantes leigos de todas as partes da Rssia
vinham anualmente a fim de buscar orientao e aconselhamento dos ancios
acerca dos mais variados problemas. Muitos dos peregrinos eram camponeses,
mas Optina Pustin atraa tambm inmeros membros da intelligentsia russa,
incluindo escritores de renome.
A ancestral tradio dos ancios foi levada para a Rssia por discpulos de
um lder espiritual do sculo xviii, o Ancio Pasio Velichkvski. Aos dezessete
anos, depois de fazer votos monsticos, ele se mudou de terra natal, Poltava, para
o monte Atos, onde fundou um eremitrio e mergulhou em uma das mais antigas
prticas do cristianismo oriental, o hesicasmo (paz e quietude interior). Em
1764, depois de duas dcadas e meia tentando alcanar um estado de orao
perptua e se reconectar aos Pais da Igreja, ele foi convidado para renovar a vida
espiritual na Moldvia. Por ocasio de sua morte, em 1794, o mosteiro que havia
fundado em Neamt tinha por volta de setecentos monges. Alm de introduzir no
Embora ele sempre tenha sido modesto e complacente em todos os seus hbitos, agora est se tornando
ainda mais modesto, humilde e paciente. E essa luta eterna que comeou em sua juventude, e cujo intuito
alcanar a perfeio moral, est chegando ao fim com completo sucesso.
Mais tarde ela deve ter se assustado com a prpria ingenuidade. O empenho
religioso de Tolsti certamente trouxe a Isnaia Poliana um pouco de paz e
harmonia, mas o conde tinha comeado a caminhar sozinho, pois ningum na sua
famlia estava inclinado a levar a religio to a srio quanto ele.
A maior fonte de inspirao de Tolsti nesse perodo veio de uma figura
improvvel. Vassli Aleksieiv, um rapaz franzino e bastante frgil de barba ruiva
rala e cndidos olhos azuis, era o mais recente tutor encarregado de cuidar da
educao dos filhos mais velhos do conde, e teria influncia surpreendentemente
poderosa na evoluo de sua filosofia religiosa nos anos seguintes. Em muitos
sentidos, Vassli era um tolstosta avant la lettre. Ele chegou a Isnaia Poliana em
outubro de 1877, depois de ter sido recomendado pela parteira de Tolsti, Mria
Abrmovitch (a essa altura Snia estava a dois meses de dar luz Andri, o nono
filho do casal), e ficaria por quatro anos na casa dos Tolsti. Dado seu passado
de envolvimento com o radicalismo poltico, no surpreende que Snia o tenha
mandado embora, mas sim que o tenha deixado ficar tanto tempo. Aleksieiv era
declaradamente socialista e ateu, e mesmo assim um modelo de tica crist em
sua conduta pessoal. Nesse perodo crtico da vida de Tolsti o jovem propiciou
ao escritor o apoio moral de que ele tanto necessitava, e o conde o defendia com
unhas e dentes toda vez que seu devoto amigo rusov atacava o rapaz
chamando-o de niilista e filho do demnio. Conheo pouqussimas outras
pessoas que, como ele, so no apenas boas, mas profundamente generosas e
dotadas de sentimento religioso, Tolsti assegurou a rusov, mais uma vez
salientando que Vassli era humilde e se dedicava a servir ao prximo.
Vassli Alexieiv era filho de um oficial reformado e pequeno proprietrio de
terras que se casara com uma de suas prprias servas, a quem sabidamente tinha
o hbito de espancar. Cresceu na provncia ocidental de Pskov, a centenas de
quilmetros de Moscou. Tinha sete irmos e desde criana sempre se destacou
como excelente aluno, o que lhe granjeou uma bolsa de estudos para cursar
matemtica na Universidade de So Petersburgo, onde acabou se envolvendo
com grupos polticos de inclinao esquerdista. Isso se deu no auge no
movimento populista no incio da dcada de 1870, e Aleksieiv conheceu o
revolucionrio Nikolai Tchaikvski, lder de um crculo responsvel pela
por servos usando luvas brancas. Porm, assim que ouviu isso Tolsti se
interessou imediatamente por Aleksieiv e o convenceu a fazer uma visita a
Isnaia Poliana. As dvidas de Aleksieiv se dissiparam assim que os dois saram
para uma caminhada, durante a qual o conde fez inmeras perguntas sobre sua
viso da vida. Tolsti era um bom ouvinte, e em pouco tempo Aleksieiv estava
abrindo o corao. Sentiu-se to vontade que entrou no modo propaganda e
inclusive mostrou a Tolsti as mos calejadas que tinha adquirido graas a todo o
trabalho braal nos Estados Unidos, imaginando que seu interlocutor era um
escritor aristocrtico que jamais tinha empunhado uma ferramenta. Para sua
surpresa, Tolsti declarou que aqueles calos valiam muito mais que os altos
salrios recebidos pelos funcionrios pblicos, e tambm comeou a se abrir,
confidenciando seus prprios ideais e compartilhando seu desespero por no
conseguir encontrar respostas para as perguntas que o atormentavam. O conde
chegou a mostrar o arbusto no jardim em que tinha cogitado a ideia se enforcar
para dar fim a suas aflies. Tolsti passou o resto do dia conversando com
Aleksieiv em seu estdio, e ao anoitecer Vassli j tinha aceitado o trabalho,
acatando a sugesto do conde de alugar o chal junto aos portes de Isnaia
Poliana para viver com sua famlia. Pouco tempo depois Aleksieiv j chegava
todo dia s oito em ponto para tomar caf com as crianas antes de iniciar as
lies de russo e matemtica com Serguei, Tnia e Ilia. Um ano depois, mudou-se
com a famlia para a ala de hspedes, onde a irm de Snia se hospedava nos
meses de vero. O fato de que Aleksieiv e Elizaveta no eram formalmente
casados (o que Snia nunca aprovou) foi deixado de lado.
Aleksieiv era um professor talentoso e muito querido. Era particularmente
prximo de Srguei, ento com catorze anos, que se afeioou sobremaneira ao
tutor. Serguei era o mais musical dos filhos de Tolsti, e em suas memrias
Aleksieiv discorre sobre as ocasies em que o pupilo tocava especialmente para
ele o Preldio em r bemol de Chopin. Ilia, ao contrrio, parecia interessado
apenas em ces e caadas, e se deleitava em levar seu violino ao jardim e tocar
notas melanclicas que atraam os cachorros de toda a redondeza, que se reuniam
e comeavam a uivar em unssono. Durante o perodo em que Aleksieiv foi o
tutor das crianas houve, porm, uma ocasio em que Ilia tambm tocou de
maneira bastante vigorosa uma pea de Chopin. Tolsti adorava Chopin, e ao
ouvir uma de suas composies executada num ritmo insano e com uma torrente
de erros, saiu de seu estdio e espiou por uma porta para ver o que estava
acontecendo. Percebeu que Ilia estava tocando para uma plateia. O estilo
fortissimo do filho, com os ps martelando violentamente no cho, era um
espetculo para o deleite do carpinteiro da famlia, Prkhor, que estava na sala de
visitas instalando painis de revestimento secundrios para o inverno. A
expresso para Prkhor entrou no folclore da famlia, e depois disso passou a
ser usada carinhosamente toda vez que algum membro parecia estar se exibindo.
O carinho de Tolsti por Vassli tinha origem no fato de que o conde
compartilhava com ele o mesmo impulso filantrpico bsico de melhorar a vida
do campesinato. Essa prioridade tipicamente russa foi muito bem resumida pelo
positivista ingls Edward Spencer Beesly, quando descreveu o ex-parceiro de
Aleksieiv, William Frey, aps sua morte:
Nele abundava aquele extraordinrio entusiasmo que impele tantos russos da classe abastada e bemnascida a se despirem de todos os seus privilgios e tomarem parte da sorte dos mais pobres, mais
humildes e miserveis. No sei onde possvel encontrar algo parecido, exceto no esprito que tantas
vezes levava muitas pessoas de alta posio e estirpe na Idade Mdia a se apartarem do mundo a fim de
adotar as privaes e a humildade da vida monstica. Mas entre esses indivduos a motivao era
antissocial o desejo egosta de salvar a prpria alma. Os russos so movidos pelo desejo ardente de
melhoria social. Para alguns deles a desigualdade em si mesma algo chocante a raiz e a essncia de
todas as mazelas sociais. Eles mergulham de cabea na mais humilde das vidas de modo a se livrarem
dessa mcula. No conseguem se sentir felizes enquanto no se libertarem dessa ndoa. Outros talvez
adotem uma vida de pobreza e trabalho braal por razes um pouco diferentes. Desejam disseminar suas
aspiraes polticas e sociais entre a massa de seus conterrneos mais pobres. Constatam que so
impedidos de faz-lo por questes de distino de classe e riqueza. Seu ardor propagandista tamanho,
to intensa sua f em seus prprios princpios, que toda espcie de riqueza, conforto e vantagens materiais
lhes parecem de pouco valor e desprezveis, conquanto possam, sacrificando tudo isso, obter a
oportunidade que desejam de ganhar os ouvidos do povo. Qualquer que seja a nossa opinio acerca dos
princpios e argumentos que os levam a tal conduta impossvel no admirar a sinceridade e o entusiasmo
daqueles que a praticam. Eles lograram subjugar alguns dos mais vigorosos e egostas impulsos humanos,
fazendo ou no bom uso dessa vitria.
ouvisse por acaso as constantes conversas sobre religio e tica. Seu desejo era
voltar a ouvir o marido falando de literatura. Escrever sobre religio jamais seria
uma boa fonte de renda, mesmo para um escritor com a fama de Tolsti. Em sua
autobiografia, Snia no poupou elogios s qualidades de Aleksieiv como
professor, e de bom grado afirmou com todas as letras que Tnia jamais aprendeu
tanto. A julgar pelo que Snia escreveu, Aleksieiv era afeito ao trabalho rduo e
tinha uma natureza simples e afetuosa, mas com o tempo ela passou a encar-lo
como uma ameaa estabilidade emocional e financeira da famlia.
Todo dia, por volta das onze da manh Tolsti descia para o andar trreo
com uma xcara de ch e ia trabalhar em seu estdio, e s vezes pegava o
primeiro pedao de papel que lhe caa s mos, mesmo que fosse um envelope, a
fim de anotar o mais rapidamente possvel qualquer ideia ou pensamento que lhe
ocorresse. O conde s se levantava de sua mesa de trabalho s quatro da tarde,
hora de passear a cavalo ou de fazer uma caminhada; nos meses de vero, de vez
em quando parava ao lado da casa para quebrar um talo de ervilha-de-cheiro e
sentir o adorado aroma. Em certo momento comeou a fazer seus exerccios
dirios com Aleksieiv, que tinha dificuldade de acompanhar o ritmo do conde.
Mas Tolsti precisava de Vassli ao seu lado, como no dia em que confessou a
seu jovem amigo que estava loucamente apaixonado por uma bela e alta moa
chamada Domna, que trabalhava na cozinha dos criados. O marido de Domna
tinha sido convocado pelo exrcito, e Tolsti a vinha seguindo por toda parte,
assoviando discretamente para chamar sua ateno. Por fim o conde encetou
conversa com ela e marcou um encontro numa trilha debaixo de nogueiras, numa
parte distante do jardim. Tolsti confessou a Aleksieiv que, na hora marcada,
quando j se afastava da casa para seu rendez-vous, foi chamado de volta por Ilia,
que sara janela e, aos berros, lembrou o pai da aula de grego. Depois desse
revigorante choque de realidade, Tolsti fez questo de nunca mais sair sem a
companhia de Aleksieiv, e tambm tomou providncias para que Domna
desaparecesse de sua vista. Ele julgava que quando se tratava de lutar contra
seus impulsos de luxria as oraes no tinham muita valia, mas certamente se
arrependeu. O incidente ecoa em um conto escrito em 1889 intitulado O
demnio, calcado tambm em suas experincias com sua esposa camponesa
Aksnia. Por razes bvias, Tolsti enfiou o manuscrito no encosto de uma
poltrona para escond-lo de Snia, e a histria s foi publicada aps sua morte.
Um novo tutor francs escondido sob a identidade falsa de Monsieur
deve ter fervido quando se viu obrigado a esperar at que a figura macilenta do
filsofo de 24 anos decidisse fazer uma entrada sublime e teatral, envergando um
cachecol de seda branco. Certamente Tolsti no teria pacincia para ficar
sentado ouvindo um meninote, cuja enorme cabea consistia de cabelos e
olhos, declamando com linguagem empolada uma torrente de disparates
pretensiosos e pseudoprofundos. Depois da primeira srie de citaes em alemo
e referncias a querubins e serafins, Tolsti se levantou e foi embora do
auditrio, deixando Strkhov sozinho para seguir ouvindo os delrios de um
luntico. No restante do tempo que passou em So Petersburgo concluiu um
negcio de compra de terras e se reuniu com historiadores, inclusive Mikhail
Semevski, editor da importante revista Antiguidade Russa, que prometeu enviar ao
conde relatos memorialsticos inditos de dezembristas encontrados em seus
vastos arquivos. De resto Tolsti ficou com familiares. Alm dos irmos mais
novos de Snia, Piotr, Stepan e Vicheslav, a nica pessoa que o conde quis ver
foi Alexandrine, com quem no se encontrava desde 1860. Os dois tiveram
longas e (para ela) tranquilizadoras conversas sobre religio, e Alexandrine
registrou em seu dirio a alegria de rever o amigo depois de tantos anos. A bem
da verdade, de to empolgada, ela de incio receara morrer sob o peso de todas as
coisas que queria compartilhar com ele. A julgar pelo relato de Alexandrine,
nunca antes Tolsti lhe parecera to gentil, e no dia em que o conde foi embora
de So Petersburgo ela anotou no dirio as conversas que tiveram sobre religio:
Depois de tantos anos buscando a verdade, ele finalmente chegou ao porto. bvio que ele foi
edificando esse porto sua prpria maneira, mas ainda assim Aquele que o guiou o mesmo e nico
Confortador. Liev agora est no incio de uma nova obra, e estou certa de que a confisso de sua f, ou
melhor, a confisso de sua nova f, nela estar refletida.
voz alta para a pequena audincia ali reunida, e que todos os presentes riram s
gargalhadas da impiedosa caricatura dos seguidores de Radstock.
Se Tolsti tinha pouco tempo para dissidentes religiosos aristocratas que se
tornaram evangelistas cristos sem mudar uma s vrgula de seu estilo de vida
privilegiado (e a seu ver corrupto), os sectrios camponeses eram algo
completamente diferente. O conde devia ter tomado conhecimento dos Molokni
de Samara j desde sua primeira viagem estepe, mas somente agora demonstrou
interesse de encontr-los e conversar sobre suas crenas. As trocas de ideias
sobre religio com os Molokni foram o ponto alto da temporada de Tolsti em
Samara no vero de 1878. Ao que parece os Molokni eram assim chamados por
causa de sua recusa em beber leite durante os duzentos dias de jejum do
calendrio ortodoxo, mas havia quem alegasse que o nome deriva de um rio no
sul da Rssia. Como muitas outras seitas russas racionais, os Molokni se
distinguiam da populao camponesa em geral pelo fato de que se abstinham de
lcool e levavam uma vida modesta e laboriosa. Rejeitavam no apenas todos os
rituais (da realizao de cerimnias e cultos prtica de fazer o sinal da cruz),
mas dispensavam tambm o clero, os prdios sagrados e artefatos como cones;
em vez disso, empenhavam-se no estudo da Bblia.
Donald Mackenzie Wallace, correspondente do jornal britnico The times, que
no incio da dcada de 1870 visitou a estepe alm de Samara onde Tolsti era
dono de uma propriedade, ficou tremendamente intrigado com os Molokni, mas
constatou que por meio de perguntas diretas era bastante difcil e frustrante
investigar a exata natureza das crenas dos sectrios. Durante uma conversa com
um campons Molokane, o jornalista s conseguiu fazer algum progresso em sua
investigao sobre religio depois de um demorado processo em que
inocentemente comparou o clima e as lavouras da estepe ao clima e s colheitas
da Esccia. Mackenzie chegou concluso de que havia fortes semelhanas entre
os bebedores de leite e a Igreja Presbiteriana:
Quando o campons me ouviu dizer que h um pas onde no h bispos e onde as pessoas interpretam por
si mesmas as Escrituras e consideram idolatria a venerao de cones, ele prestou profunda ateno a
minhas palavras, e quando ficou sabendo que nesse maravilhoso pas as parquias enviam todo ano
representantes para uma assembleia em que so discutidas publicamente todas as questes pertinentes
Igreja, no conteve seu espanto, e ento tive de responder a uma batelada de perguntas: Onde fica esse
pas?, no leste ou no oeste?, muito longe daqui?, Se nosso presbtero ouvisse essas coisas!
s vezes minha vida de cativa to dura! Imagine s, Tnia, desde setembro no saio de casa. A mesma
priso, embora as coisas estejam radiantes no sentido material e moral. Mas s vezes ainda tenho a
sensao de que algum me trancafiou e me mantm aqui, e quero quebrar tudo minha volta, abrir
caminho e escapar, no importa para onde assim que eu puder!
Mais do que nunca, agora Snia vivia em funo dos meses de vero, quando
Tnia e sua famlia se hospedavam em Isnaia Poliana. Invariavelmente a esposa
de Tolsti sentia-se solitria e ansiava por diverso em meio s luzes brilhantes
da cidade grande. De incio ela viu com bons olhos o entusiasmo do marido pela
Igreja Ortodoxa Russa, mas agora Tolsti parecia estar perdendo sua exuberante
joie de vivre. Ele parecia cada vez menos interessado na prpria famlia e tambm
na administrao de sua propriedade e seu patrimnio. Snia no estava
enganada. Em outubro de 1880 Tolsti escreveu a Strkhov afirmando que
durante boa parte de sua vida tinha sido um homem desorientado, primeiro
porque julgara que o bem maior eram suas aspiraes de ser condecorado com a
medalha de So Jorge, depois porque equiparou a felicidade escrita de romances
e posse de terras e por fim construo de uma famlia, mas agora sabia que o
verdadeiro bem s podia ser encontrado nos Evangelhos.
Em 1880 Tolsti comeou a cortar laos com parentes e velhos amigos,
rompimento que os deixou magoados e confusos. Em janeiro, foi a So
Petersburgo entregar a ltima parcela do pagamento das terras que havia
comprado, e um dia depois foi ver Alexandrine. Assim que disse a ela que agora
rejeitava a santidade de Jesus Cristo, teve incio uma violenta discusso, que se
estendeu por toda a manh Tolsti voltou noite para continuar o debate, e
Alexandrine ficou to agitada que sentiu o corao martelando no peito. Depois
de passar a noite em claro, Tolsti foi embora ao amanhecer, sem sequer se
despedir de Alexandrine, que ficou profundamente magoada. Nesse perodo sua
irm Macha tambm se tornou fervorosamente religiosa, mas sua jornada
espiritual a levou na direo oposta, mergulhando no seio da Igreja Ortodoxa.
Seu nico filho, Nikolai, tinha se casado em outubro de 1878, tendo Tolsti
como padrinho; porm, no vero seguinte, justamente no momento em que
Macha cuidava dos preparativos com a inteno de trazer para viver na Rssia
sua filha ilegtima Elena (em vias de terminar os estudos na Sua), Nikolai
morreu de febre tifoide, terrvel golpe de que Macha jamais se recuperou. Sob a
orientao do Ancio Ambrsio em Optina Pustin, e cada vez mais devota, por
fim Macha decidiu tornar-se freira, em 1888. Depois de um breve perodo em
Tula, foi morar em um convento nas cercanias de Optina Pustin, onde ficou pelo
resto da vida. Macha continuou prxima do irmo, mas em matria religiosa
divergiam.
Demorou para que os amigos de Tolsti se acostumassem ao novo estado de
esprito do conde. Nada parecia capaz de abalar Strkhov, mas o profundamente
religioso Serguei rusov no aceitou as novas ideias de Tolsti, que ele
considerava herticas, e a amizade dos dois naufragou. A amizade com Afanssi
Fet tambm desintegrou-se. Ironicamente, no exato momento em que Tolsti,
sob a influncia de sua nova crena religiosa, resolveu que queria abandonar as
belas-letras, sua fico comeou a ser publicada no mundo de lngua inglesa e
francesa. Uma edio reunindo Infncia e Juventude veio a lume em ingls em 1862,
mas depois disso os leitores de lngua inglesa esperariam at 1878, com a
publicao da traduo de Eugene Schuyler de Os cossacos, para lerem outra obra
do conde. Em 1878, o tradutor e especialista em russo William Ralston, amigo de
Turguniev, foi rechaado por Tolsti quando escreveu-lhe solicitando
informaes biogrficas para um artigo que estava preparando. No posso
compartilhar da iluso temporria de alguns de meus amigos, que parecem
convictos de que minhas obras devem ocupar algum lugar na literatura russa,
Tolsti respondeu em ingls decoroso, mas nitidamente russo , em carta
endereada casa do sr. Ralston em Bedford Square. Sinceramente, sem saber
se minhas obras sero lidas daqui a cem anos ou se tero sido esquecidas daqui a
cem dias, ele continuou, no desejo descer ao ridculo de tomar parte do quase
certo erro de avaliao dos meus amigos. Com a ajuda de Turguniev, Ralston
preencheu as lacunas e publicou em 1879 seu pioneiro artigo, Os romances do
conde Liev Tolsti. Acerca do tema de Anna Karinina, Ralston escreveu que
Tolsti escolhera a sociedade tal qual ela existe nos dias atuais nos crculos
aristocrticos da Rssia, combinando a suas detalhadas e realistas descries da
vida das classes superiores uma srie de estudos sutis de um errtico corao de
mulher.
Ralston tinha razo ao afirmar que Anna Karinina rendera ao seu autor mais
dinheiro do que qualquer outra obra anterior da literatura russa, mas errou feio
quando especulou que era pouco provvel que Anna Karinina e Guerra e paz
fossem traduzidos para o ingls. A bem da verdade, a primeira traduo para o
francs j tinha sido publicada no mesmo ano do artigo e esse evento
significativo estimulara Turguniev a promover Tolsti como um grande
quando ela lhe mostrou algumas das cartas recentes de Tolsti tratando de
religio.
Em maro de 1880 Snia escreveu a Strkhov relatando que o marido vinha
trabalhando at a exausto, sentindo terrveis dores de cabea, mas nada era
capaz de afast-lo de sua mesa de trabalho. O fato que ele estava to
empolgado pelo desafio de confrontar a Igreja Ortodoxa que seguiu trabalhando
por toda a primavera e vero adentro, contrariando sua rotina usual. Em 1880
Tolsti no foi descansar em Samara, mas fez breves viagens a Moscou a fim de
encontrar novos professores para os filhos. Um a um, os onze volumes da mais
recente edio de suas obras completas foram sendo postos venda, mas outro
ano se passou sem que se aventurasse a lanar textos novos. O conde tinha
conscincia de que no seria fcil conseguir publicar os trs projetos em que
estava trabalhando, mas do ponto de vista pessoal conclu-los era questo de
vital importncia. A publicao dessas obras no exterior ratificaria
definitivamente seu antagonismo Igreja Ortodoxa, e a partir da no haveria
mais volta.
Assim que terminou de examinar as mais de mil pginas da Teologia dogmtica
ortodoxa, bem como outras interpretaes fundamentais da doutrina do
cristianismo oriental de autores que iam de So Joo de Damasco (ou So Joo
Damasceno) a outros metropolitas de Moscou recentes , Tolsti deu incio a
sua exegese crtica, expondo meticulosa e detalhadamente o que considerava suas
principais falhas. Padre Alexander, o sacerdote de Tula que recomendara a
Tolsti a leitura de Makari, ficou sobressaltado ao receber, um ano depois, uma
segunda visita do conde. Tolsti declarou que tinha lido de cabo a rabo a Teologia
dogmtica ortodoxa , e com grande satisfao informou tambm que seu ano de
estudos servira no apenas para no convenc-lo da verdade do dogma ortodoxo,
mas tambm para comprovar justamente o contrrio. Ele agora compreendera
que na verdade os apstolos tinham distorcido os ensinamentos de Jesus. De
fato, assim que Tolsti constatou que a doutrina ortodoxa no passava de um
amlgama artificial de expresses invariavelmente opacas e contraditrias de f, o
conde comeou a entender por que razo os seminrios russos produziam tantos
ateus. Aqui Tolsti aludia aos muitos seminaristas que haviam se tornado
revolucionrios. Tchernchevski, que ainda definhava no exlio siberiano, era um
exemplo; na dcada de 1890, Ossip (em georgiano) ou Iosif (em russo)
Vissarinovitch Djugatchvili (Josef Stlin) seria mais um.
eventos e pessoas para que se adequassem viso particular da histria que ele
desejava propor. Agora queria que os apstolos de Jesus Cristo confirmassem
suas prprias opinies e pontos de vista preconcebidos:
s vezes ele vinha correndo do estdio com o Evangelho grego e me pedia para traduzir um ou outro
trecho. Eu fazia a traduo, e em geral o resultado era muito parecido com a traduo oficial aceita pela
Igreja. Mas ser que voc no poderia dar este ou aquele significado?, ele perguntava e fazia questo de
enfatizar o quanto desejava e esperava que isso fosse possvel.
de que ambos comeriam de bom grado qualquer coisa que ela lhes servisse. Alm
disso, assim que percebeu que a f do marido dava sinais de hesitao, Snia
passou a incentivar na famlia o respeito aos jejuns. Na Sexta-Feira Santa, o dia
mais rgido de jejum, Tolsti sucumbiu tentao e desistiu para sempre de
comer comida quaresmal depois de devorar um pouco da carne que tinha sido
preparada para os dois tutores. Snia tambm parou de passar a limpo os novos
manuscritos do marido. Ela tinha achado o material pedaggico trgido, mas os
textos teolgicos eram bem piores. Em carta irm Tnia ela confidenciou que
naquela primavera chegara a cogitar a ideia de deixar Tolsti. E admitiu que a
vida em Isnaia Poliana tinha sido bem melhor sem o cristianismo. Alm disso,
mais uma vez estava grvida.
Agora os atritos do casal eram cada vez mais escancarados e resultavam em
rusgas em pblico cada vez mais frequentes. Certa manh, mesa do caf, Snia
ouviu por acaso Vassli Aleksieiv demonstrando apoio ao pedido de clemncia
de Tolsti para os assassinos do tsar e explodiu, aterrorizada com as repercusses
que a carta do marido poderia ter. Aleksieiv percebeu que era hora de ir embora
de Isnaia Poliana e pediu permisso para fazer uma cpia pessoal das tradues
tolstoianas dos Evangelhos a fim de lev-las consigo, por saber que talvez jamais
fossem publicadas na Rssia. Uma vez que no dispunha de muito tempo,
limitou-se a copiar excertos dos Evangelhos e os sumrios gerais de cada
captulo. Mais tarde esse texto foi prefaciado por uma introduo de Tolsti e
intitulado Evangelho resumido. Seria a primeira de suas obras religiosas publicadas
no exterior. Durante a Primeira Guerra Mundial, o evangelho de Tolsti deixou
uma profunda impresso em Ludwig Wittgenstein, que por acaso encontrou-o em
uma livraria na Galcia. Mais tarde o filsofo diria que o texto praticamente o
mantivera vivo.
Os amigos e parentes que visitaram Isnaia Poliana na primavera de 1881 se
viram enredados em violentas discusses sobre a pena capital e a Igreja, e Snia
comeou a ficar preocupada com a faceta caridosa do cristianismo do marido,
que ameaava dissipar todos os bens da famlia distribuindo-os para os
pauprrimos camponeses que rumavam para Isnaia Poliana em nmero cada vez
maior, sabedores de que de l no sairiam de mos vazias. No incio Tolsti fazia
em seu dirio uma breve anotao sobre cada pedinte, registrando, por exemplo,
as lgrimas de uma velha senhora caindo na poeira e o sorriso desdentado de
outro campons (a essa altura o prprio Tolsti estava banguela). Desnecessrio
volta, algo que faria com voz cada vez mais estridente pelo resto da vida.
11
Existe uma maneira de viver com alegria, e esta maneira ser um apstolo. No apenas no sentido de sair por a pregando,
mas no sentido de que seus braos, suas pernas, e seu estmago, e seus quadris e sua lngua estejam a servio da verdade...
Carta a Vassli Aleksieiv
Fiel ao esprito anarquista que se tornaria cada vez mais evidente em seu
iderio ao longo da dcada seguinte, Tolsti rejeitava a ideia de envolvimento
institucional, fosse do governo ou em nvel filantrpico, e igualmente de
entidades ou eventos de caridade, tais como bailes de arrecadao de recursos,
bazares e espetculos teatrais. O dinheiro, insistia Tolsti, era em si mesmo um
mal, por isso no deveria haver proclamaes pblicas das somas doadas por
indivduos abastados. A seu ver, injetar dinheiro numa causa era apenas uma
soluo paliativa e jamais substituiria o auxlio de ordem prtica. Tolsti buscou
inspirao direta no Novo Testamento, parafraseando a parbola da ovelha e
das cabras do Evangelho de So Mateus: Pois eu tive fome, e vocs me deram
de comer; tive sede, e vocs me deram de beber; fui estrangeiro, e vocs me
acolheram; necessitei de roupas, e vocs me vestiram; estive enfermo, e vocs
cuidaram de mim; estive preso, e vocs me visitaram. Tolsti instigou os
moscovitas a superar seu medo dos percevejos, das pulgas, da febre tifoide, da
difteria e da varola que se alastravam em meio s condies imundas e aviltantes
em que os pobres eram obrigados a viver. Ele recomendou com insistncia aos
jovens recenseadores que conversassem com os necessitados e mostrassem amor
e respeito dispondo-se a ouvir sua histria de vida.
Infelizmente para Tolsti, alguns dos recenseadores eram to pobres que sem
dvida ficaram confusos diante da exortao do escritor para que praticassem a
caridade crist. Um deles era um jovem estudante de medicina chamado Anton
Tchekhov, que ento vivia no distrito da luz vermelha de Moscou, na parte norte
da cidade. Seu pai era um ex-comerciante de segunda categoria que depois de ir
bem maior do que teria alcanado caso tivesse sido distribudo pelos meios
legtimos a revista Pensamento Russo tinha uma tiragem de trs mil exemplares.
A notcia chegou inclusive a Paris, de onde Turguniev escreveu a Tolsti
solicitando uma cpia. Embora tenha achado uma leitura bastante deprimente
(em sua opinio o argumento do texto se baseava em falsos princpios, que
levavam a um tipo de negao niilista de toda forma de vida humana),
Turguniev ainda considerava Tolsti o indivduo mais extraordinrio da Rssia.
Tolsti via Uma confisso como a primeira parte de uma tetralogia, das quais a
segunda e terceira partes Crtica da teologia dogmtica e Juno e traduo dos quatro
Evangelhos continuavam inditas. No vero de 1882 o conde debruou-se
sobre a tarefa de concluir uma primeira verso da quarta parte, Em que acredito. Se
as trs primeiras partes de seu novo e ambicioso projeto tinham o propsito de
desmascarar a falsidade da doutrina da Igreja, o objetivo de Em que acredito era
revelar o verdadeiro significado do cristianismo, conforme mostrado nos
Evangelhos. Para Tolsti, esse significado estava contido essencialmente no
Sermo da Montanha (Mateus 5-7), que em sua opinio oferecia a possibilidade
de se criar o Paraso na Terra. O conde tambm estava convencido de que os
prprios ensinamentos da Igreja que impossibilitavam as pessoas de seguir ao
p da letra os preceitos do Sermo da Montanha.
Concluir o primeiro esboo de Em que acredito produziu em Tolsti um estado
de euforia espiritual e reacendeu um desejo que estava adormecido desde que o
escritor dera incio tentativa de levar uma vida em consonncia com os
princpios religiosos e morais que ele vinha dolorosamente forjando para si
mesmo. Tolsti queria abandonar sua famlia e romper por completo com sua
vida anterior. Contudo, quando o conde anunciou a Snia esse desejo, o
resultado foi a primeira ciso sria entre os dois. A violenta discusso em uma
noite quente de agosto, que os levou a dormirem separados, no foi facilmente
esquecida. Snia tinha devotado sua vida a Tolsti, aos textos do marido e
criao dos filhos. Ela j estava furiosa com a negligncia do conde desde a
mudana para Moscou, e a ideia de que Tolsti sairia de casa era devastadora. A
verdade que ele estava s voltas com um profundo conflito interior. Repudiava
o estilo de vida aristocrtico da famlia, mas ainda amava Snia profundamente
nos turbulentos anos seguintes, teriam mais dois filhos e tinha plena
conscincia de suas obrigaes. Na primavera de 1882, depois de se resignar ao
fato de que sua famlia se mudaria de qualquer maneira para Moscou, querendo
ele ou no, Tolsti saiu procura de uma casa. Dias depois de despachar as
provas de Uma confisso ao escritrio do Pensamento Russo, o conde finalmente
decidiu comprar uma velha casa de madeira em uma rua tranquila nos arredores
do centro da cidade. Ele j tinha visitado a casa diversas vezes e fechou o
negcio por 36 mil rublos. A seguir passou parte do vero supervisionando
reformas e melhorias para que a famlia pudesse se mudar no incio do outono.
Construda em 1808, a casa pertencera a um casal de comerciantes criadores
de ces, e estava situada em uma rea residencial no muito elegante. Snia ficou
desanimada quando foi pela primeira vez alameda Dolgo-Khamovnicheski e viu
a casa de aparncia banal e em frangalhos, que tinha como vizinhos imediatos um
hospcio e uma cervejaria e ficava defronte a uma tecelagem. Em compensao,
tinha um jardim vioso e tranquilo que lhe dava o aspecto mais de propriedade
rural do que de residncia urbana. O que convenceu Tolsti a comprar a casa foi
a profuso de rosas, groselheiras-espinhentas e rvores frutferas do jardim.
Naquele vero Tolsti trabalhou diligentemente: alm de caiar e rebocar paredes,
o conde consertou fornos, instalou papis de parede, forrou com tacos o assoalho
e comprou moblia. A famlia se mudou em 8 de outubro, feliz por finalmente se
acomodar naquele que seria seu lar durante os meses de inverno. Enquanto Snia
se viu enredada em um frenesi de atividades, procurando manter os filhos sob
controle e ao mesmo tempo distra-los, naquele outono Tolsti se consolou
estudando hebraico com um rabino de Moscou, que ficou boquiaberto quando,
depois de poucas aulas, seu pupilo comeou a discutir com ele sobre o significado
de certas passagens do Antigo Testamento.
medida que o tempo passava, Tolsti buscava cada vez mais ajustar
aspectos de sua vida a seus ideais religiosos, e nesse sentido 1883 foi um ano
crucial. Agora o conde usava roupas de campons na cidade e em sua casa de
campo, dispensava seu ttulo sempre que possvel e tentava no ser servido por
criados, mas tinha conscincia de que podia fazer muito mais. Em visita a Isnaia
Poliana em maio, depois de tentar extinguir as chamas de um incndio que
destruiu 22 casas de camponeses, Tolsti deu os primeiros passos no sentido de
abrir mo de suas posses, incluindo suas obras literrias, dando a Snia o poder
de procurao para administrar suas propriedades e publicar seus livros.
Imediatamente depois viajou pela ltima vez para Samara, onde vendeu seus
cavalos e suas cabeas de gado e tambm dividiu suas terras em cinco lotes, a
serem distribudos aos camponeses. Durante o ms que passou na estepe, Tolsti
Tolsti ficou profundamente comovido pela carta (ainda que mais tarde
provvel que tenha ficado bastante aborrecido com a expresso o grande escritor
da Rssia, que acabou se tornando um clich invariavelmente atrelado ao seu
nome). Turguniev morreu no ms seguinte, sem saber que o amigo retornara
parcialmente literatura. Em 1881 Tolsti tinha comeado a escrever uma nova
novela que mais tarde receberia o ttulo de A morte de Ivan Ilitch. Ele deixou o
texto de lado em 1883, mas retomou-o no ano seguinte, apaziguando Snia, que
tambm ansiava que o marido retomasse a fico de modo que ela mais uma vez
pudesse voltar a fazer parte de seu trabalho criativo, atuando como copista.
Embora no tivesse retornado literatura da maneira como Turguniev
gostaria (a fico nunca mais voltou a ser o centro de suas atenes), mesmo
assim Tolsti queria homenagear o amigo. Portanto, aceitou de bom grado o
convite para discursar na reunio comemorativa da veneranda Sociedade de
Literatura Russa de Moscou planejada para o final de outubro de 1883 ,
talvez porque estivesse com a conscincia pesada, depois de ter arrogantemente
se recusado a tomar parte das celebraes de Pchkin em 1880. A notcia de que
Tolsti faria uma leitura pblica se espalhou rapidamente pela cidade, e era um
fato importante a ponto de ser veiculado pela imprensa. O chefe da censura
A vida familiar na casa dos Tolsti em Moscou nos primeiros meses de 1884
era surreal. Em uma parte da casa, vigiado de perto pelo governador-geral,
Tolsti estava restringindo ao mnimo suas pegadas na terra e condenando
atividades depravadas tais como uso de adornos fsicos e a dana nos bailes. Em
outra parte da casa, Snia e Tnia se vestiam com aprumo em tule e veludo para
ir a bailes de gala da sociedade, onde conviviam com o governador-geral, que se
desdobrava para ser amigvel e cair nas graas das duas. Embora estivesse
grvida mais uma vez e ainda amamentando seu filho Aliocha, ento com dois
anos, Snia agora estava determinada a se divertir. Tolsti deplorava o dinheiro
que a esposa vinha gastando para introduzir Tnia na sociedade moscovita
naquele ano. Cada vestido chegava a custar 250 rublos, quantia que Tolsti sabia
ser suficiente para comprar 25 cavalos. O conde se desgastava tambm por
pensar nos cocheiros tremendo de frio do lado de fora das grandes manses
enquanto seus patres festejavam, por isso teve de fugir para Isnaia Poliana a
fim de descansar seus nervos em frangalhos. Por sua vez, Snia tambm sofria ao
pensar no marido sentado em casa usando suas velhas meias de l e costurando
botas mal-ajambradas para a velha criada, Agfia Mikhilovna, enquanto seus
filhos adolescentes Ilia e Liev agiam como delinquentes e negligenciavam os
estudos. Snia se queixava com a irm de que estava farta de ter como marido
um tolo santo, que negligenciava suas funes de pai e j no demonstrava o
menor interesse em tomar parte da vida familiar. Enquanto Snia escrevia cartas
para a irm, Tolsti registrava em seu dirio e em cartas a Tchertkov a discrdia
com a esposa, o que o impedia de alinhar sua vida familiar s suas convices.
Ele sentia que era a nica pessoa s vivendo em um hospcio dirigido por loucos.
Mas o louco era Tolsti, a julgar pela opinio de seu irmo Serguei, que, como
Snia, no se compadecia pelo sofrimento do conde.
As relaes continuaram tensas naquele vero depois que a famlia regressou
a Isnaia Poliana e, como sempre, Tnia chegou com os filhos para se hospedar
na outra casa (via de regra, o marido de Tnia, Alexander Kuzminski, no os
acompanhava). Os dias de vero que Snia passava com a irm ainda eram a
poca mais feliz do ano, porm o abismo entre ela e o marido aumentava cada
vez mais. Tolsti agora acordava cada dia mais cedo, para que assim pudesse
fazer mais atividades fsicas, e passava longos dias ceifando com os camponeses.
Agora tambm havia parado de comer carne e de beber vinho, e tentou
abandonar o hbito de fumar. Contudo, sua autodisciplina no era suficiente para
insistindo em vender tudo e dispensar os criados, mas que pelo menos agora
estava mais solcito. Durante esses anos tensos uma das raras fontes de alegria
era a caixa postal de Isnaia Poliana. Todos os membros da famlia eram
convidados a colocar histrias, contos, poemas, anedotas e notcias annimos
dentro de uma caixa trancada e colocada junto ao relgio de pndulo para as
leituras de domingo em volta do samovar. Em 22 de agosto de 1884, aniversrio
de Snia, Tolsti compilou 23 histrias mdicas para os doentes mentais
internados na ala psiquitrica do hospital de Isnaia Poliana, cada qual acometido
de alguma mania particular. Ele comeou descrevendo a si mesmo, definindo sua
prpria mania como um caso de Weltverbesserungswahn (desejo de melhorar o
mundo), cujos sintomas eram a insatisfao com o status quo, a reprovao e
condenao de todos menos de si mesmo, uma loquacidade irritante, sem a
menor considerao pelos ouvintes, e frequentes variaes de humor, que iam de
arroubos de fria e irritabilidade a uma sensibilidade anormal e lacrimosa. Como
cura, Tolsti prescreveu a completa indiferena de todos ao seu redor por
qualquer coisa que ele dissesse.
Tolsti diagnosticou sua esposa como um caso de petulantia toropigis maxima
(pressa ingovernvel), condio que faz com que o paciente acredite que tudo
depende dele, e sinta, ao mesmo tempo, o temor de que no ser capaz de de
fazer tudo. Em sua autobiografia, Snia registra alguns dos Ideais de Isnaia
Poliana que foram postados:
Liev Nikolievitch: pobreza, paz e harmonia. Queimar tudo aquilo por que tinha reverncia, e ter
reverncia por tudo aquilo que ele queimou.
Sfia Andrievna: Sneca. Ter 150 bebezinhos que nunca crescero.
Tatiana Andrievna: juventude eterna, emancipao feminina.
Ilia Lievitch: Esconder cuidadosamente de todos o fato de que tem corao e dar a impresso de que
matou cem lobos.
Snia no tinha muito tempo para dedicar leitura, mas adorava folhear a
edio francesa das obras completas do filsofo estoico, que seu amigo Leonid
rusov tinha emprestado, juntamente com textos de Marco Aurlio, Plato e
Epiteto. Nessa poca Tolsti estava debruado sobre a filosofia
transcendentalista de Ralph Waldo Emerson.
No outono de 1884 as relaes familiares estavam bem melhores, em parte
porque Tolsti ficou por mais algumas semanas em Isnaia Poliana depois que
todos partiram para Moscou, e assim ele pde viver de acordo com os prprios
ideais. Depois de dispensar o cozinheiro e o zelador, Tolsti cozinhava os
prprios pratos simples como nabo assado , acendia sozinho o samovar,
parou de usar cavalos e toda noite caminhava sozinho at a estao ferroviria
para pegar a correspondncia e postar as cartas que escrevia a Snia. O conde
tambm fazia suas caminhadas durante o dia: descia at a estrada para retomar
sua conversa com os peregrinos. Tolsti relatou a Snia seu encontro com dois
velhos Stranniks da Sibria que tinham dedicado a vida peregrinao
permanente e estavam retornando de Jerusalm at o monte Atos, jornada que
haviam feito sem um nico copeque. No outro dia Tolsti encontrou dois
cavalheiros do extremo norte da Rssia e convidou-os para tomar um ch em
Isnaia Poliana os dois secaram completamente o samovar. Naquele outono
Tolsti decidiu por fim abandonar o hbito de caar, tendo descoberto, alm de
uma sensao de vergonha, que agora, quando saa montado a cavalo
acompanhado de seus ces, torcia para que a caa escapasse. Isso acarretou uma
mudana significativa em sua rotina (sua filha Tnia j tinha anotado em seu
dirio que alguns anos antes o pai havia matado 55 coelhos e dez raposas em um
nico outono). Abrindo mo dos servios do administrador da propriedade, agora
Tolsti tambm decidiu assumir pessoalmente o controle de todo o trabalho de
cultivo agrcola em Isnaia Poliana, e ficou animado ao saber que Snia decidiu
que no levaria Tnia para uma segunda temporada na alta sociedade moscovita,
e que ela prpria no participaria dos eventos sociais mais prestigiosos. A
dinmica no mbito da famlia estava comeando a mudar, o que dava alento a
Tolsti. Embora a relao do escritor com os filhos tenha em larga medida
continuado bastante fria, suas filhas mais velhas especialmente Macha
estavam aos poucos debandando para o lado do pai e encampando seus pontos
de vista.
Em novembro de 1884 Tolsti publicou duas das verses de captulos
iniciais que escrevera para seu romance (abandonado) sobre os dezembristas.
Eram os primeiros textos ficcionais que ele publicava para uma plateia instruda
desde Anna Karinina, mas agora estava empenhado de corpo e alma em um
projeto concebido por Vladmir Tchertkov. Tolsti e Tchertkov vinham
mantendo uma intensa correspondncia (o escritor j tinha enviado 36 cartas
desde seu primeiro encontro com o discpulo no ano anterior), e entre os tpicos
de discusso estava um plano para a produo de literatura de qualidade para as
massas. Tchertkov queria emular os panfletos que haviam sido publicados sob os
auspcios da (agora banida) Sociedade para o Encorajamento da Leitura
Espiritual e tica por Vassli Pachkov, que a essa altura tinha sido exilado em
definitivo pelo governo. Tchertkov tinha se encontrado com Vassli na Inglaterra
naquele vero, e constatou que a publicao de livros baratos para as massas era
um excelente meio para a promoo do novo credo de Tolsti. O conde ficou
empolgado e se disps de bom grado a colaborar, e os dois amigos discutiram
mais a fundo esses planos quando Tchertkov foi a Moscou em novembro. Depois
de uma produtiva reunio com Ivan Sitin, jovem editor de gravuras e xilogravuras
que subira na vida depois de comear como aprendiz em uma livraria, Tchertkov
estava pronto para assinar um contrato. A nova casa editorial recebeu o nome de
Posrednick (O intermedirio), e seu projeto era publicar literatura russa e
estrangeira, em traduo de alta qualidade, acessvel e com ilustraes,
vendida por alguns copeques. Isso s se tornou possvel graa polpuda mesada
que a me de Tchertkov dava ao filho vinte mil rublos anuais, mais do que a
soma de todos os gastos da famlia de Tolsti em um ano. A riqueza de
Tchertkov era um raro mas duradouro pomo da discrdia entre os dois amigos.
Em abril de 1885 Tchertkov abriu uma livraria em Moscou, comprou um
depsito e contratou uma jovem assistente, com quem mais tarde se casaria, e um
coeditor, Pvel Briukov, que se tornaria outro devotado amigo e discpulo de
Tolsti (mais tarde ele escreveria uma volumosa e reverente biografia do
escritor). Formado pela Academia Naval, Briukov vinha trabalhando como fsico
do mais importante observatrio de So Petersburgo. Tinha origem nobre, mas
em termos hierrquicos ocupava lugar mais baixo do que Tchertkov e Tolsti, o
que foi um obstculo quando, anos mais tarde, tentou se casar com a filha do
conde, Macha.
O intermedirio foi um estrondoso sucesso nos primeiros quatro anos de
existncia, vendeu doze milhes de seus livrinhos. A editora preencheu uma
verdadeira lacuna no mercado, em que alm de hagiografias e histrias de mau
gosto e pssima qualidade havia pouqussima oferta de ttulos para o crescente
pblico leitor formado por camponeses alfabetizados e trabalhadores urbanos.
Tolsti aconselhava Tchertkov sobre os autores que a editora deveria publicar
(incluindo Dickens e Eliot), mas tambm fez valiosas contribuies com textos
de sua autoria. Para Tolsti, O Intermedirio representava a oportunidade de
continuar o trabalho que iniciara com seus livros de leitura elementar exatamente
do ponto em que tinha parado; de fato, uma das publicaes da editora foi seu
conto O prisioneiro do Cucaso, escrito na dcada de 1870 para sua Cartilha.
Ao longo dos anos seguintes, Tolsti tambm escreveu novas e primorosas
histrias tanto para O Intermedirio como para um grupo seleto de revistas.
Essas historietas eram consideravelmente mais elegantes e bem trabalhadas do
que as botas que ele fazia e que descrevia orgulhosamente para Snia como
un bijou. Tolsti era especialista em recriar fbulas e contos folclricos de
maneira simples e cheia de vida, lanando mo de humor e de um admirvel
toque de leveza na moral contida em cada histria.
Enquanto estava ocupado escrevendo histrias para as massas, sua esposa
aprendia os truques de uma rea diferente do setor editorial. As ansiedades de
Snia por causa da diminuio da renda da famlia levaram Tolsti a sugerir que
ela mesma se incumbisse de supervisionar a edio seguinte de suas obras
reunidas e suas Cartilhas. At ento as vendas das obras completas eram
gerenciadas pelo marido de sua sobrinha Vria (filha de Macha). Agora Snia
decidiu se encarregar dos direitos de publicao dos livros do marido, e converteu
em armazm o anexo de sua casa de Moscou. Em janeiro de 1885 Snia ps
mos obra, e no ms seguinte comearam a chegar as provas da quinta e nova
edio. Entre os novos textos concludos a partir de 1881 e destinados a aparecer
no novo dcimo segundo volume dessa edio incluam-se sua novela A morte de
Ivan Ilitch, o conto Kholstomr: a histria de um cavalo e algumas histrias que
ele tinha escrito para O Intermedirio, incluindo O conto de Ivan, o tolo. Em
fevereiro, Snia foi a So Petersburgo a fim de obter permisso para a publicao
do volume e tambm para consultar a viva de Dostoivski sobre uma maneira
de tornar mais lucrativo seu novo projeto editorial. Um dos conselhos mais
valiosos de Anna Grigrievna foi dar aos livreiros apenas 5% de desconto. Ela
recomendou tambm que Snia no insistisse na publicao de cada volume em
ordem cronolgica. Snia se revelou uma astuta mulher de negcios. A
publicao do dcimo segundo volume foi proibida, mas em novembro de 1885
ela voltou a So Petersburgo e fez lobby para revogar a proibio (a edio acabou
saindo em 1866), e iniciar o processo de publicao da sexta edio das obras de
Tolsti. Em 1889 ela lanaria a oitava edio.
Deixar nas mos de Snia a publicao de todos os textos que ele havia
escrito antes de sua crise espiritual (mais os ocasionais novos textos de fico) foi
a concesso de Tolsti esposa; ele inclusive a ajudava com as provas, mas
Havia tambm uma verso com creme azedo, em que se devia misturar dez
ovos com vinte colheres de sobremesa de creme azedo, uma xcara de acar e
duas colheres de sobremesa de farinha, untar uma forma com geleia, despejar a
mistura e levar ao forno. O puritano Frey teria considerado imoral tomar parte de
algo to calrico, lauto e indulgente, e agora Tolsti era da mesma opinio. Frey
teve outra reunio com Tolsti em Moscou em dezembro, mas foi obrigado a ir
embora da Rssia em maro de 1886 sem persuadir Tolsti a aderir a sua igreja
da humanidade de resto, no conseguiu convencer mais ningum. Voltou a
Londres, onde morreu de tuberculose, na extrema pobreza, aos 49 anos de idade.
Tolsti escreveu que foi uma das melhores pessoas que conhecera na vida.
Na primeira metade da dcada de 1880 Tolsti tinha concentrado suas
energias na articulao e disseminao de sua nova viso de mundo. Em 1886,
depois de formular as propostas prticas de Ento, o que devemos fazer?, ele se
voltou ao reino abstrato das ideias. Seu novo projeto foi inicialmente concebido
como um tratado sobre a vida e a morte, em que pretendia esboar a filosofia
subjacente a seu iderio. Embora aparentemente tivesse se livrado dos impulsos
suicidas, os pensamentos mrbidos jamais abandonaram completamente Tolsti,
o que fica patente em trs de suas obras artsticas mais bem realizadas e mais
famosas da dcada de 1880: A morte de Ivan Ilitch, O poder das trevas e A sonata a
Kreutzer as duas ltimas lidam com mortes violentas, por assassinato. A morte
jamais se distanciou da vida pessoal de Tolsti, mas agora ele a via sob um novo
vis. No final do vero de 1885 o conde recebeu com grande pesar a notcia da
morte de seu fiel amigo e incentivador Leonid rusov, que o acompanhara a uma
viagem Crimeia naquela primavera (era a primeira vez que voltava a Sebastpol
desde a guerra). Mais penosa, contudo, era a experincia das mortes na famlia.
Em janeiro, morreu o pequeno Aliocha, de apenas quatro anos de idade. Tolsti
descobriu que agora era capaz de encarar com serenidade a morte de seu filho
caula. Em carta a Tchertkov afirmou que outrora tinha considerado a morte de
uma criana algo cruel e incompreensvel, mas agora conseguia ver o
acontecimento trgico sob luz positiva.
A nica reao de Snia foi o luto; embora devastada pela dor, ela se recusou
a pagar os 250 rublos exigidos para enterrar o filho no prestigioso cemitrio junto
ao Convento de Novodevitchi, perto de sua casa. Em vez disso, ela e a bab da
famlia colocaram o caixo no tren que at pouco tempo antes tinham usado
para levar Aliocha ao zoolgico e viajaram at o norte de Moscou para enterrar o
menino em Pokrvskoe, onde a famlia Berhs tinha alugado uma datcha quando
Snia era menina. Em novembro de 1866 Snia teve de suportar o fardo de outra
morte quando sua me, aos sessenta anos de idade, adoeceu gravemente. Ela
viajou para a Crimeia e ficou em Ialta durante os ltimos dias de vida de Lubov
Alexndrovna. Aparentemente Tolsti mal registrou a morte de sua velha amiga
de infncia, talvez porque ele prprio tenha adoecido gravemente naquele
outono. A morte era tema onipresente em suas conversas e em sua
correspondncia.
Os 35 captulos do volumoso tratado de Tolsti sobre a vida e a morte, que
mais tarde receberia o ttulo de Sobre a vida, apresentam os alicerces filosficos
que do sustentao sua viso de mundo. Ele investiu grande dose de energia
mental na exposio de suas ideias, escrevendo mais de duas mil pginas antes de
concluir o manuscrito. Snia concordou em passar o texto a limpo, o que
contribuiu para criar uma atmosfera pacfica entre os dois durante a redao.
Embora ainda no conseguisse aceitar a proposio fundamental de que era
preciso rejeitar a vida material e pessoal em favor da vida espiritual e do amor
universal, conforme ela registrou em seu dirio, Snia gostou do fato de que no
se tratava de uma obra tendenciosa como os textos religiosos anteriores de
Tolsti. No obstante, uma obra que substitua a doutrina religiosa pela razo e a
conscincia pessoal jamais teria a menor chance de ser aprovada pelo censor. O
plano era imprimir seiscentos exemplares do texto, que constituiria o dcimo
terceiro volume das obras completas de Tolsti em 1888, mas o Santo Snodo
ordenou seu confisco. Todos os exemplares, exceto trs, foram incinerados, e a
primeira edio publicada de Sobre a vida foi a traduo francesa, que veio a lume
em 1889. O arcebispo de Kherson, que examinou o tratado, confidenciou em
carta a um conhecido de Tolsti que o Santo Snodo estava cogitando seriamente
Imperiais. Contudo, logo se viu obrigado a voltar atrs, depois de ser repreendido
por Konstantin Pobednostsev. O procurador-chefe ficou horrorizado ao saber
da atitude irresponsvel do tsar diante do realismo cru e da denegrao do
sentimento moral naquela pea horrorosa ele disse ao tsar que jamais vira
coisa parecida.
O pior estava por vir. A sonata a Kreutzer, respeitvel sucessor de Anna
Karinina em termos de sua associao de amor carnal e violncia extrema, seria a
mais escandalosa de suas obras. So mltiplas as fontes de inspirao da novela.
A primeira a carta de uma correspondente annima, que em fevereiro de 1886
escreveu a Tolsti para se queixar da lastimvel situao da mulher na sociedade
contempornea e da aviltante humilhao imposta pelos homens. Havia tambm
o relato de um conhecido de Tolsti, que, certa vez, viajando de trem, se sentara
em uma cabine defronte para um homem que lhe segredou ter sido infiel com a
esposa. E havia tambm um estmulo pessoal direto: em diversas ocasies ao
longo de 1887, tanto em Moscou como em Isnaia Poliana, o filho de Tolsti,
Serguei, excelente pianista, acompanhara Liev e Iuli Liasotta, professor de violino
de Micha, em execues da Sonata para violino n o 9 de Beethoven, a Sonata a
Kreutzer. Certamente Tolsti conhecia muito bem a pea de Beethoven, que
figurou na lista de suas composies musicais favoritas, compilada anos depois
por Serguei. o primeiro dos trs movimentos da sonata que tem mais paralelos
com a histria. Quando a sonata tocada pela esposa de Pzdnichev ao piano e
seu parceiro violinista, o frentico dilogo entre violino e piano na seo central
da composio de andamento presto sugere para o enciumado marido uma
espcie diferente de dilogo, o que provoca um ataque de cime que ele por fim
no consegue controlar.
Numa das ocasies em que a sonata foi tocada na casa dos Tolsti, o pintor
Repin estava presente, e Tolsti chegou inclusive a pensar em pedir ao amigo que
contribusse com uma pintura para ilustrar a novela. Certamente Tolsti discutiu
com Repin suas ideias para a histria, uma vez que se viu posando para outro
retrato no vero de 1887, durante a estadia do pintor em Isnaia Poliana. A essa
altura os dois j se conheciam havia sete anos, mas Repin ganhou tempo e
esperou pacientemente, pois era evidente que queria conhecer melhor Tolsti
antes de imortaliz-lo na tela. Muitos viram no retrato de Repin que mostra o
escritor sentado calmamente numa cadeira com um livro nas mos, vestido de
preto semelhanas com algum profeta do Antigo Testamento.
Outra fonte de inspirao para A sonata a Kreutzer foi certamente uma srie
de eventos familiares que, por assim dizer, puseram o dedo na ferida. No
outono de 1887, o segundo filho de Tolsti, Ilia, pediu em casamento sua
namorada, Sfia Filosofova. Tolsti ficou preocupado, pois o casal no tinha
boas perspectivas e era muito jovem: Ilia tinha 21 anos e Sfia, apenas vinte. Por
ter sido reprovado nos exames do liceu, Ilia era inelegvel para ingressar na
universidade e, depois de passar dois anos servindo o exrcito, voltara para casa
sem planejar como ganharia a vida. Os Tolsti eram amigos da famlia da noiva,
mas sabiam que ela no era abastada: o pai trabalhava na escola de arte de
Moscou em que Tnia havia estudado. Tolsti escreveu ao filho diversas cartas
implorando que ele pensasse bem no passo que estava prestes a dar, mas o
corao de Ilia estava decidido. Havia ainda outra razo pela qual as relaes
conjugais estavam em primeiro plano na mente de Tolsti. Em setembro de 1887
ele e Snia celebraram seu aniversrio de 25 anos de casamento, e sua esposa
engravidou novamente. O menino Ivan (Vanechka) nasceu em 31 de maro de
1888, um ms depois do casamento de Ilia. Na vspera de Natal daquele ano
nasceu Anna, a primeira neta dos Tolsti.
Exceto pelo primognito Serguei (que j tinha deixado a Universidade de
Moscou e agora trabalhava para o banco campons de Tula), somente Ilia tinha
ido morar fora de casa. Na primavera de 1889 Tolsti foi visit-lo e ficou
horrorizado ao encontrar cocheiros, carruagens, cavalos e outras pompas do estilo
de vida luxuoso e confortvel a que, a seu ver, sua famlia deveria renunciar. Ilia
no era o nico filho com quem Tolsti tinha srios desentendimentos nesse
perodo. Seu terceiro filho, Liev, ento cursando o ltimo ano da escola, vivia s
turras com o pai. Tolsti tambm corria o risco de acabar brigando com sua filha
Macha, a quem seu ajudante e seguidor Pvel Briukov props casamento no final
de 1888. Snia no estava preparada para permitir que sua filha se casasse com
um tolstosta, ainda que de origem nobre, e vetou o casamento. Briukov foi
embora lamber as feridas, mas reapareceu na vida de Tolsti em 1891, depois de
navegar at o Japo com o futuro Nicolau ii em seu grand tour de nove meses.
Em seu ntimo Tolsti ficou secretamente feliz com a proibio do casamento de
Macha, uma vez que ela era sua filha favorita, em quem ele confiava e com quem
contava quando precisava de apoio moral e ajuda inclusive como secretria.
Mais tarde ele frustraria os sonhos romnticos de Macha em mais de uma ocasio,
numa tentativa egosta de mant-la perto de si. Macha aceitou mansamente seu
das Obras completas, ao passo que Tolsti agora s se preocupava em renunciar aos
direitos autorais e evitar discusses. Nessa ocasio, a novela comeou a circular
em cpias samizdat mesmo antes que o texto fosse submetido ao crivo do censor.
O manuscrito foi levado a So Petersburgo pela sobrinha de Tolsti, Macha
Kuzminskaia, que organizou uma leitura para trinta amigos, incluindo
Alexandrine e Nikolai Strkhov. Depois de uma leitura noturna nos escritrios de
O Intermedirio, o manuscrito foi dividido entre os membros do estafe da
editora, que passaram a noite em claro copiando-o antes de devolv-lo aos
Kuzminski na manh seguinte. Para desapontamento de Tolsti que s ficava
contente de disseminar seus textos depois da etapa de reviso das provas, o que
sempre envolvia uma mirade de correes , em poucos dias apareceram trinta
cpias litografadas, que por sua vez foram recopiadas e distribudas. Logo a
novela tornou-se uma coqueluche, um item cobiadssimo em So Petersburgo,
onde era vendida pela exorbitante soma de dez, s vezes quinze rublos (Snia
vendia a coleo inteira das Obras completas por oito rublos).
Por fim chegou-se ao consenso de que A sonata a Kreutzer seria publicada
primeiro em uma revista semanal de vida efmera, que no era alvo de censura
muito rigorosa, e depois cedida a Snia, mas no incio de dezembro de 1889
comearam a correr boatos de que mesmo nesse peridico a novela seria
proibida. No final do ms os rumores se confirmaram. Na detalhada resenha que
Pobednostsev enviou a seu colega Evguini Feoktistkov em fevereiro de 1890,
o procurador-chefe do Santo Snodo admitia tratar-se de uma obra poderosa, e
que ele no poderia, em s conscincia, banir uma histria que promovia a
castidade em nome da moral, mas por causa da mensagem desoladora sobre o
futuro da raa humana contida no texto, sua publicao era inaceitvel.
Alexandre iii gostou da novela tanto quanto tinha gostado de O poder das trevas
quando a pea foi lida para ele no Palcio de Inverno , mas sua esposa ficou
chocada. Escandalizado ficou tambm Theodore Roosevelt, quando tradues
chegaram aos Estados Unidos no final do ano. Na condio de procurador-geral
dos Estados Unidos, Roosevelt proibiu a distribuio de jornais e revistas em que
o texto fosse reproduzido. Em fevereiro de 1890 pipocavam por toda Moscou
cpias ilegais da novela, que era lida avidamente, como fica evidente pelos
depoimentos de Anton Tchekhov, que havia deixado para trs sua carreira na
medicina e agora era um escritor celebrado. A essa altura j fazia doze anos que
Tchekhov vinha publicando sob o prprio nome nos mais prestigiosos peridicos
comida onde os pobres famintos dos vilarejos eram alimentados. Para pagar por tudo isso, eu recebia
dinheiro, que me era enviado em somas considerveis. Com o material doado pelos fabricantes de tecidos
eu contratava senhoras pobres que em troca de um pagamento irrisrio faziam roupas de cama, que depois
eu encaminhava para os lugares mais necessitados, especialmente os que eram assolados pela febre tifoide.
vez que Alexandrine fora obrigada a intervir junto corte em nome de seu
parente, sua proximidade com o tsar era a garantia da segurana de Tolsti. O
escritor, que ansiava pelo martrio, ficou enfurecido com o fato de que
continuava impune. Mas como observou Suvorin em uma carta, Tolsti era a
nica pessoa que podia fazer qualquer coisa, ao passo que todas as outras
precisavam disfarar suas ideias antes de fazer o que quer que fosse: Eles o
esto perseguindo, mas em vo. Ele intocvel, e, mesmo se for punido, ficar
contente, pois muitas vezes me disse, Por que no me prendem, por que no me
pem na priso? uma sorte invejvel.
Preocupada por julgar que toda a sua famlia estava beira da runa, Snia se
perguntava o que tinha acontecido com a doutrina de amor e pacifismo alardeada
por Tolsti. Contudo, o envolvimento de Snia com a causa tinha servido para
aproxim-la do marido, o que o deixara bastante feliz. No final de janeiro de 1892
ela foi pessoalmente a Begichevka para uma visita de dez dias. Vinha recolhendo
doaes e publicando boletins, e agora via com os prprios olhos a multido de
camponeses esfarrapados, trmulos e macilentos, cujo rosto entristecido estava
marcado pela expresso de humilhao que sentiam por receber caridade. Ela
tambm viu em primeira mo como era difcil e exaustivo o trabalho do marido e
das filhas (s vezes Tolsti ficava acordado at as trs da manh para tentar
escrever). Alm do desafio fsico de trabalhar durante os glaciais meses de
inverno em vilarejos onde as pessoas no tinham condies de se alimentar ou de
aquecer a prpria casa, a escala do desastre era por vezes desalentadora e
desmoralizante era simplesmente impossvel ajudar todos os necessitados.
Quando regressou a Moscou em fevereiro, Snia teve de se desdobrar para cuidar
de Vanechka (que estava prestes a completar quatro anos e mais uma vez havia
adoecido gravemente) e tomar providncias para evitar uma retaliao
campanha do marido. As repercusses da traduo de Dillon do artigo de Tolsti
publicada no jornal Daily Telegraph foram to danosas entre ministros e altos
funcionrios da corte, que Snia teve de escrever uma srie de cartas
apaziguadoras, alm de fazer repetidas visitas ao governador-geral, o gro-duque
Serguei Aleksndrovitch, e sua esposa Elizaveta Fidorovna.
O trabalho de Tolsti na campanha contra a fome contagiou outras pessoas,
logo ganhando a adeso de amigos e parentes dispostos a ajudar, e depois de
voluntrios como o sueco Jonas Stadling, que chegou em fevereiro de 1892. No
livro em que relatou suas experincias, Stadling descreveu a ocasio em que
contradio tornou-se particularmente aguda e expressa com toda fora no arsenal blico universal e no
servio militar obrigatrio; 3. a soluo necessria dessa crucial contradio, que atingiu um absurdo grau
de hipocrisia, s pode se dar por meio do sincero esforo de cada indivduo para conciliar sua vida e suas
aes com os alicerces morais que considerar verdadeiros, a despeito das exigncias da famlia, da
sociedade e do governo.
Em maro de 1893, assim que concluiu O reino de Deus est em vs, Tolsti
comeou a despachar seu manuscrito para o exterior, a fim de que o texto fosse
traduzido e publicado. Tradues francesas e italianas surgiram no final daquele
ano. Em carta ao autor datada de 29 de outubro Nikolai Strkhov escreveu de
So Petersburgo para informar que o censor religioso havia considerado a
traduo francesa de O reino de Deus est em vs o livro estrangeiro mais perigoso
que ele j tivera a oportunidade de banir da Rssia. No incio de 1894, apareceu
uma traduo para o alemo e trs para o ingls, duas publicadas em Londres e
uma nos Estados Unidos. Uma dessas edies caiu nas mos de um advogado
indiano de 25 anos de idade, que ento trabalhava na frica do Sul, chamado
Mohandas Gandhi. Ele j vinha praticando a no violncia, mas sucumbira a
dvidas que imediatamente se dissiparam por completo assim que leu o livro.
Gandhi ficou particularmente impressionado com o fato de que Tolsti praticava
o que ele tinha pregado e no estava disposto a fazer concesses em sua busca da
verdade.
A primeira edio em russo de O reino de Deus est em vs foi publicada na
Alemanha no incio de 1894, mas at mesmo essa edio estrangeira foi
expurgada tiveram de ser removidas as duas pginas sobre o ciser Guilherme,
bem como as referncias depreciativas a Catarina ii, nascida naquele pas. A essa
altura o texto tinha circulado amplamente na Rssia em cpias samizdat, mas
exemplares da edio russa publicada na Alemanha tambm foram
contrabandeados. Em maio de 1894, um memorando secreto do governo
expressava inquietao diante do nmero de cpias que j tinham sido
importadas ilegalmente para a Rssia, e avisou que todos os tipgrafos, litgrafos
e demais indivduos de posse de mquinas de escrever seriam colocados sob
vigilncia estrita. Por alguma razo, cpias datilografadas se espalharam
particularmente nas provncias do sul. A primeira edio integral em russo de O
reino de Deus est em vs foi publicada em 1896 em Genebra por Mikhail Elpidin.
Antes disso, Alexandre iii tinha declarado que, uma vez que no queria contribuir
com a fama de Tolsti concedendo-lhe a coroa de mrtir, no exilaria o escritor.
Contudo, o tsar ficou horrorizado com o novo livro, que leu meses antes de sua
morte precoce no outono de 1894. Agora at mesmo o tsar ansiava repreender
Tolsti dando a seu sdito rebelde uma dura lio.
12
Algum disse que cada pessoa tem seu prprio cheiro especfico. Por mais estranho que possa parecer, acho que Tolsti tem um
cheiro bastante devoto, de igreja: ciprestes, vestimentas, hstias...
Valentin Blgakov, anotao no dirio, 12 de fevereiro de 1910
Tolsti, cujo romance Guerra e paz, recentemente traduzido, suscitou a admirao dos parisienses; Tolsti,
um conde, um homem abastado, soldado condecorado de batalhas em Sebastpol; escritor brilhante,
rompeu com a sociedade, deu as costas escrita de textos literrios e nas polmicas obras Uma confisso e
Em que acredito debandou para o lado de Rousseau; declarou guerra cultura e colocou em prtica seus
ensinamentos transformando-se em campons.
imprensa russa recebeu ordens de no publicar uma linha sequer sobre Drojijin.
No obstante, Popv conseguiu recompor seu livro a partir de esboos que ele
tinha escondido em outro lugar, e Tolsti completou o texto escrevendo um
prefcio. Sem ter a menor chance de passar pelo crivo do censor russo, o livro
acabou sendo publicado em Berlim em 1895.
Filho de um nobre empobrecido da provncia de Perm, Popv juntou-se s
crescentes fileiras tolstostas em 1886, aos 22 aos de idade. Convencido de que
Tolsti era capaz de lhe dizer qual era o sentido da vida, certo dia embarcou em
um trem rumo a Isnaia Poliana a fim de falar com o conde. Quase
imediatamente se converteu ao vegetarianismo e comeou a lavrar a terra. Depois
de se divorciar de sua jovem e abastada esposa, passou a levar uma existncia
bastante peripattica, mudando-se de uma colnia tolstosta para outra, at que
por fim comeou a trabalhar para a editora O Intermedirio em Moscou. Em
1889 Popv teve a oportunidade de conhecer Tolsti mais a fundo quando, no
incio do vero, acompanhou o escritor em sua jornada anual de Moscou a
Isnaia Poliana trs dias a p. Era a terceira vez que Tolsti fazia a
peregrinao percorrendo 190 quilmetros. Levava consigo uma pequena trouxa,
alm de um caderninho e um lpis para anotar ideias e as histrias que ia ouvindo
pelo caminho, e pernoitava na casa de mujiques hospitaleiros. Era sua maneira de
protestar contra a invaso das ferrovias na Rssia rural, que trouxera a reboque a
migrao de massas dos camponeses para as cidades.
Alm de trabalhar para O Intermedirio, Popv tambm frequentava o
quartel-general do movimento tolstosta na propriedade de Tchertkv na
provncia de Voronej. Em 1892, atuou brevemente como copista de Tolsti em
Isnaia Poliana e tomou parte da campanha contra a fome em Begichevka.
Depois de escrever o livro sobre Drojijin, colaborou com Tolsti na elaborao
de uma verso russa do Tao Te Ching, de Lao Ts, para O Intermedirio. Era um
projeto pelo qual Tolsti nutria carinho especial. Em 1870, Victor von Strauss
tinha publicado a primeira traduo do Tao Te Ching para o alemo, texto que
Popv verteu para o russo. Tolsti revisou a traduo e acrescentou um prefcio,
explicando que o ensinamento bsico contido no Tao Te Ching era o mesmo de
todas as grandes religies. Na dcada de 1870 Tolsti poliu suas tradues das j
concisas fbulas de Esopo procurando eliminar o excessivo ou suprfluo, de
modo a extrair sua essncia, e no difcil ver por que o escritor se sentiu atrado
pelos lapidares pensamentos e ideias de Lao Ts, que a seu ver estavam em
slidas, embora por vezes o tom de muitas das cartas que Tolsti escreveu ao
jovem amigo logo que Tchertkv foi deportado para a Inglaterra seja o de
um adolescente apaixonado; alm disso o afeto do escritor era retribudo com
devoo obsessiva da parte de Tchertkv.
A dependncia que Snia desenvolveu pela msica aps a morte de
Vanechka estimulou Tolsti a refletir de maneira mais profunda sobre questes
de esttica, ideias que seriam plenamente articuladas anos mais tarde no tratado
O que arte?, mas na dcada de 1890 sua misso central era a de um soldado
cristo pacifista combatendo em nome da verdade e da justia. Julgava
extremamente gratificante o fato de que suas ideias agora comeavam a dar frutos
no exterior. Em 1890, um empresrio britnico chamado John Kenworthy estava
nos Estados Unidos quando encontrou por acaso textos de Tolsti, leitura que
mudou sua vida por completo. Ele abandonou o desejo de fixar residncia na
Amrica do Norte e ganhar dinheiro e voltou para a Inglaterra a fim de viver
entre os pobres do East End londrino. Em 1893 Kenworthy publicou um livro
intitulado Anatomy of Misery: Plain Lectures on Economics [Anatomia da misria:
prelees francas sobre economia]. Para o pacifista vegetariano Ernest Howard
Crosby, advogado norte-americano reformista e tolstosta, Kenworthy descreveu
o dia de maro de 1894, em que recebeu sua primeira carta de Tolsti, como o
mais feliz de sua vida. De sua parte, Tolsti disse a Kenworthy que era uma
alegria comunicar-se com ele, e que tinha no apenas lido seu livro, mas
tambm encomendado uma traduo para o russo.
Em maio de 1894 Kenworthy tornou-se pastor honorrio da recm-fundada
Igreja da Irmandade de Croydon, organizao de inspirao tolstosta cuja
congregao, de acordo com um dos membros de sua comisso administrativa,
inclua todo tipo de excntricos, ateus, espiritualistas, individualistas,
comunistas, anarquistas, polticos comuns, vegetarianos, antivivisseccionistas e
antivacinistas. Em outubro daquele ano Tolsti soube que tinha arregimentado
outro seguidor britnico ao receber uma carta de Arthur St. John, ex-oficial dos
Fuzileiros Reais de Inniskilling. St. John, que tinha pouco mais de trinta anos,
escreveu a Tolsti para dizer que depois de ler O reino de Deus est em vs
quando retornava de Burma em licena mdica , abandonou o exrcito e foi
viver em uma comunidade agrcola. Mais tarde ele comentou sobre a fora da
inspirao de Tolsti:
Teve sobre mim efeito to tremendo que dois ou trs meses depois deixei meu regimento de infantaria e
me vi lanado no mundo, sem emprego e sem outras habilidades e competncias de trabalho a no ser
servir como soldado. Eu tinha poucas certezas na vida, mas uma dessas poucas certezas era a mxima de
Tolsti de que quem quer trabalhar pela paz no deve se preparar para a guerra.
pas que ele adorava. Biriukv e Tregubov tambm foram tratados com lenincia:
acabaram exilados em vilarejos nos territrios blticos do Imprio.
Acompanhado de Snia, Tolsti foi a So Petersburgo despedir-se dos
amigos desde 1880 no punha os ps na cidade, e essa seria a ltima visita que
faria. A polcia secreta saiu a campo, preenchendo detalhados relatrios sobre
cada movimento do escritor, incluindo uma ida barbearia na rua Panteleimon.
Os policiais-espies chegavam a embelezar seus informes incluindo detalhes
carinhosos sobre as roupas de Tolsti (um casaco curto amarrado com um cinto
cinza, calas escuras e um gorro de tric cinza-escuro no primeiro dia, e no dia
seguinte um casaco pesado com gola de l de carneiro). Tolsti era cercado por
uma multido aonde quer que fosse, e no dia em que embarcou no trem de volta
a Moscou recebeu uma calorosa ovao na estao ferroviria. Somente duas
pessoas ele no gostou de ver. Uma era a indomvel me de Tchertkv, Elizaveta
Ivnovna, que o desprezava por ter desviado seu nico filho (ela tambm julgava
que ele estava impregnado do esprito do Anticristo por no reconhecer a
ressurreio de Jesus). A outra era uma velha parenta, a implacavelmente devota
Alexandra Andrievna, que j no era mais sua querida confidente Alexandrine.
Tolsti foi abandonado por outra de suas seguidoras mais fiis em 1897: seis
meses aps a partida de Tchertkv, sua filha Macha repentinamente anunciou
que ia se casar. Tinha 26 anos de idade e por fim decidira conquistar alguma
independncia, depois que diversos noivados potenciais haviam sido frustrados
pelo pai. Tolsti no ficou feliz ao saber que Macha se casaria com Nikolai
Obolenski, filho de sua sobrinha Liza, um jovem imprestvel e sem renda. Ele
anotou em seu dirio que ver Macha se casar com algum como Obolenski era
como ver um cavalo puro-sangue se arruinar sendo usado para carregar gua.
Tolsti ficou desgostoso tambm com o fato de que Macha agora renegava os
princpios que outrora professava e exigia a parte que lhe cabia das propriedades
da famlia. Acima de tudo, Macha tinha sido sua colaboradora mais fiel: meiga,
humilde, obediente e sempre disposta a ajudar. Por isso, sua partida de Isnaia
Poliana embora ela no tenha ido para longe abriu um enorme vazio na
vida do pai. De todos os seus filhos e filhas, Macha era a que Tolsti mais amava.
Logo aps a partida de Tchertkv, a irm mais velha de Macha, Tnia,
tambm comeou a afrouxar os laos paternos, iniciando um caso amoroso com
Mikhail Sukhotin, catorze anos mais velho que ela, casado e pai de seis filhos.
Tnia lidou com uma violenta sensao de culpa, por julgar que havia se
mais uma vez e ele vivia s voltas com dificuldades financeiras. Recuperado do
colapso nervoso sofrido aps seu intenso trabalho de assistncia s vtimas da
fome em Samara, Liev tinha se casado com a filha do mdico sueco com quem se
tratara em Estocolmo. Entretanto, como a maior parte de seus irmos, opunha-se
ferrenhamente s ideias e posturas do pai. Depois de se mudar com a esposa para
uma ala de Isnaia Poliana, travou muitas e violentas discusses com Tolsti. A
situao dos trs filhos mais novos no era muito melhor. Andrei, que em 1897
completara vinte anos, tinha sido expulso da escola por rasgar uma fotografia de
Nicolau ii e levava uma vida desregrada e libertina. J era um mulherengo
contumaz e enfureceu Tolsti em duas ocasies: primeiro por seu desejo de se
casar com uma menina camponesa de Isnaia Poliana com quem se envolvera aos
quinze anos de idade, depois quando fugiu para o Cucaso, onde se apaixonou
por uma princesa georgiana que mais tarde foi devidamente descartada. Andrei
vivia endividado e sempre contava com a interveno da me para pagar suas
contas e livr-lo dos apuros e do risco de ser preso. Aos dezoito anos, Micha
ainda estava na escola em Moscou e sofria de angstia adolescente, ao passo que
a caula Alexandra (Sacha) se transformara em uma menina levada que se vestia
e se portava como menino e tratava a me com inabalvel hostilidade, o que no
chega a surpreender, j que desde seu nascimento tinha sofrido a rejeio de
Snia.
Tambm havia problemas em Pirogovo. Para o horror do irmo de Tolsti,
Serguei, cujo antiquado estilo de vida era bastante Ancien Rgime a despeito do
casamento nada convencional , suas duas filhas tinham se tornado tolstostas
ardorosas. Em 1897, Vria tornou-se esposa por direito consuetudinrio de
Vladmir Vassliev, um dos camponeses de Tolsti, e foi embora de casa. A filha
mais velha de Serguei, Vera, tambm era um esprito livre e indmito e anos
depois chocou o pai ao ter um filho (sem que tivesse casado) com Abdurachid
Sarafov, um bachkir que tinha ido a Porogovo levar uma proviso de cmis para a
famlia. Tolsti sentiu-se tremendamente culpado. Em 1897, a estranha obsesso
de Snia por Taniev e sua msica no deu sinais de arrefecimento, e Tolsti
mais uma vez sentiu o mpeto de fugir de casa. A certa altura chegou a escrever
uma carta de despedida para a esposa, mas depois os dois fizeram as pazes, e ele
acabou escondendo o texto no estofo de uma poltrona. Snia concordou em
nunca mais convidar Taniev para se hospedar em Isnaia Poliana, e Tolsti se
concentrou em pr no papel seus sentimentos sobre a msica que a seu ver era
comentrios sutis sua prpria resposta para a pergunta O que arte?, mas, como
era de seu feitio, se recusa a tomar partido. Assim como os contos de Tchekhov,
suas grandes peas esto no vrtice de uma nova sensibilidade esttica, que por
um lado tributria do legado de Tolsti, mas ao mesmo tempo anuncia coisas
novas. Tolsti ainda estava vivo quando os artistas russos comearam a assumir a
dianteira da vanguarda europeia, e morreu apenas trs anos antes que os
futuristas declarassem em seu manifesto, Um tapa na cara do gosto pblico,
que queriam descartar autores como Pchkin, Dostoivski, Tolsti etc. etc.,
que a seu ver no tinham lugar no navio da modernidade.
Os caticos hbitos de publicao de Tolsti no melhoraram ao longo de
sua carreira. Na verdade tornaram-se ainda mais desordenados em seus ltimos
anos, quando diferentes verses de suas obras vieram a lume na Rssia e na
Inglaterra. Alm dos problemas envolvendo negociaes com censores, Tolsti
revisava continuamente seus manuscritos, depois as provas, e vivia mudando de
ideia sobre onde queria publicar seus textos. No era nada fcil a vida de editores
e tradutores, e foi o caso da primeira traduo inglesa de O que arte?, preparada
por Aylmer Maude, importante figura dos estudos tolstoianos em lngua inglesa.
Filho de um vigrio de Ipswich e de me quacre, Maude se mudara para Moscou
no incio da dcada de 1870, aos dezesseis anos. Quando trabalhava como
gerente da Companhia Russa de Tapetes, casou-se com Louise Shanks, inglesa
nascida na Rssia, e mais tarde ambos uniram esforos e seus conhecimentos
lingusticos e se destacaram como tradutores dos textos de Tolsti. Maude tinha
se encantado por Tolsti ao conhec-lo pessoalmente em 1888, e as conversas
com o escritor ao longo da dcada de 1890 o levaram concluso de que no
podia passar o resto da vida vendendo tapetes. Em 1897, quando os Maude
regressaram a Londres, primeiro fixaram residncia na Igreja da Irmandade, em
Croydon, como havia feito a famlia de Tchertkv no mesmo ano; depois
seguiram os passos de Tchertkv e rumaram para Purleigh, perto de Maldon, em
Essex, onde um ano antes havia sido fundada a primeira colnia tolstosta.
Em 1896 a colnia consistia de apenas trs homens, todos vidos para levar
adiante o sonho utpico de viver do quinho de terra que tinha sido comprado
por membros mais abastados da Igreja da Irmandade, mas no final de 1897 o
nmero j tinha aumentado para quinze pessoas alm disso, havia cerca de 35
outras pessoas de mesma inclinao ideolgica vivendo nos arredores. Os Maude
contriburam generosamente doando duas vacas, fornecendo refeies e
organizando concertos em sua casa de fazenda. Foi em Essex que Aylmer Maude
concluiu sua traduo de O que arte?, tarefa que no foi nada fcil, como ele
mesmo descreveu na biografia de Tolsti que comeou a publicar em 1908:
As provas iam se acumulando, uma aps a outra, cada qual coberta de novas alteraes, emendas, cortes e
acrscimos, invariavelmente em caligrafia ilegvel, o que exigia de mim a mais absoluta ateno para
discriminar entre as mudanas feitas voluntariamente e as mudanas para o censor, e que eu tinha de
desconsiderar [para a edio inglesa].
contraindo seus princpios, negociaria os direitos autorais pelo valor mais alto
possvel de modo a arrecadar dinheiro para custear a viagem dos Dukhobors para
suas novas terras. O dinheiro serviria para pagar o transporte e a instalao dos
sectrios no Canad, pas que se mostrou disposto a receb-los oferecendo uma
rea despovoada.
A ideia para Ressurreio, ttulo do novo romance, surgiu em uma conversa de
Tolsti com um amigo, o jurista Anatli Fidorovitch Kni. Convocado para
integrar um jri, um jovem aristocrata espanta-se ao reconhecer na r a pobre
criada a quem anos antes havia seduzido e engravidado. Abandonada por ele e
expulsa da casa pela patroa, a moa havia se tornado prostituta at ser presa sob
a acusao de roubo. Quando a jovem condenada a uma pena de trabalhos
forados na Sibria, o nobre, corrodo de remorso, se oferece para ajud-la e lhe
prope casamento. Contudo, a moa morre de tifo no presdio, antes que o rapaz
tivesse a chance de pagar por seus prprios pecados. Ao ouvir o relato do amigo,
Tolsti emocionou-se e no pde evitar a sensao de culpa ao se lembrar de que
quando jovem ele mesmo havia seduzido a jovem criada Gacha Trubetskaia na
fazenda de sua irm. Em Ressurreio Tolsti combinou a histria que ouviu do
amigo Kni sua prpria jornada espiritual. Assim, o personagem central, o
prncipe Nekhlidov, rompe com sua vida pregressa to logo reconhece no
tribunal a antiga criada de sua tia, a camponesa Katiucha Mslova, a quem um
dia seduzira e abandonara perfidamente. Logo que, por causa de um erro judicial,
a r recebe a condenao de trabalhos forados em uma priso siberiana, o
prncipe distribui suas terras entre os camponeses e segue Mslova at a Sibria,
na esperana de expiar seus pecados. Em 1889 Snia j tinha achado bastante
difcil lidar com a hipcrita defesa da castidade preconizada por Tolsti em A
sonata a Kreutzer ao mesmo tempo em que era obrigada a satisfazer o
aparentemente insacivel apetite sexual do marido. Uma dcada depois, quando o
desejo sexual de Tolsti parecia dar sinais de arrefecimento (depois que Macha
morreu, em 1897, Snia passou a dormir no antigo quarto da filha em Isnaia
Poliana), ela leu, indignada e com desgosto, a sensual descrio da violao de
Mslova. Mas Ressurreio era mais que uma histria de amor ou um Bildungsroman,
pois Tolsti refreou os ditames de sua conscincia artstica para tirar proveito de
outra oportunidade de fustigar seus alvos favoritos, a saber, o governo, a Igreja e
o sistema judicial, bem como a propriedade privada e os costumes das classes
abastadas. Nem todos os seus leitores acharam irresistivelmente atraente a
O tolstosmo era tido como ainda mais pernicioso por seu potencial de atrair
simultaneamente a elite culta e o campesinato, como mostra a influncia das
ideias de Tolsti sobre Piotr Verigin e aos Dukhobors.
Konstantin Pobedonstsev, que em 1880 tornou-se procurador-chefe do
Santo Snodo, cargo que ocupou por 25 anos, considerava Tolsti seu arquiinimigo. O antagonismo surgiu em 1881, quando Tolsti solicitou ao procuradorchefe que encaminhasse ao tsar Alexandre iii a carta em que pedia clemncia para
os assassinos do pai do monarca. Convencido, ao ler a carta (que se recusou a
passar s mos do tsar), de que Tolsti tinha a inteno de derrubar o governo,
Pobedonstsev encabeou uma vigorosa campanha para silenciar seu oponente.
Isso resultou em uma srie de ataques regulares de figuras eminentes da Igreja
aos ensinamentos de Tolsti e em uma constante e muitas vezes invasiva
vigilncia da vida privada do escritor (at mesmo o sacerdote de Isnaia Poliana
era obrigado a despachar relatrios para o bispo de Tula). Ambicioso filho de um
sacerdote moscovita e que atuou como professor de direito antes de assumir o
Novas da Igreja (a publicao oficial do Santo Snodo desde 1888) seguido de uma
carta explicativa. O dito no 577, datado de 20-22 fevereiro, foi assinado por trs
metropolitas, um arcebispo e trs bispos, e nenhum deles alimentava a iluso de
que o anncio assustaria Tolsti. Contudo, por meio da publicao do dito na
primeira pgina de todos os principais jornais do pas em 25 de fevereiro e da
proclamao de um decreto governamental proibindo a imprensa de mencionar
qualquer coisa que se relacionasse a Tolsti e ao dito, o Snodo esperava minar
o apoio pblico a Tolsti, que crescia exponencialmente em todos os setores da
populao russa. A inteno era provocar uma onda de hostilidade e descrdito
contra o escritor, diminuindo sua autoridade em um perodo crtico de grande
inquietao poltica e social, ao mesmo tempo aumentando o poder da Igreja
Ortodoxa. Na realidade, ocorreu justamente o contrrio foi um retumbante
fracasso. Ningum, exceto as autoridades eclesisticas, levou a srio a
excomunho, mas o evento teria amplas consequncias e repercusses.
Tolsti estava em Moscou no incio de 1901. Como de praxe, suas
preocupaes eram de ordem intelectual. Ele tinha comeado o ano lendo Os seis
sistemas da filosofia indiana, de Max Mller, e, alm de se debruar sobre a filosofia
hindu e as obras de Nietzsche, continuava estudando alemo. As preocupaes
de Snia, como sempre, eram mais mundanas. Ela estava ocupada como nunca.
Viajou a Isnaia Poliana para cuidar de sua filha Tnia, que dera luz uma
criana natimorta, e voltou a Moscou a fim de supervisionar os preparativos do
casamento do filho Micha com Aleksandra Glebova em 31 de janeiro: Snia
costurou saquinhos que mais tarde foram recheados de doces e distribudos aos
convidados. A festa de casamento foi um evento da alta sociedade que contou
com a presena de gros-duques (um deles veio especialmente de So
Petersburgo), mas ao qual Tolsti fez questo de no comparecer. Em 12 de
fevereiro Snia voltou a Isnaia Poliana quando recebeu a notcia de que a
esposa de Micha sofrera um aborto espontneo, e depois regressou a Moscou para
cuidar da casa e de um marido melanclico que vinha expressando seu receio de
morrer. As sete semanas da Grande Quaresma tiveram incio e com elas o jejum,
por isso em 16 de fevereiro Snia foi ao mercado de cogumelos acompanhada do
cozinheiro, Semion Nikolievitch, e de l para a igreja. No dia seguinte ela saiu
para comprar brinquedos para as crianas do orfanato de Moscou, que tinha
passado a apoiar.
No dia em que a excomunho tornou-se pblica, Tolsti declarou em carta
filha Macha que o nico tema sobre o qual realmente queria escrever agora era a
falta de religio do povo, a seu ver a causa de todos os horrores do mundo. Mais
do que qualquer outra pessoa de sua classe social, Tolsti levava a srio a ideia
de viver em conformidade com princpios cristos, e sua f em Deus era de fato
genuna, portanto era uma ironia que a Igreja excomungasse algum que defendia
com tanta veemncia suas concepes crists ainda que heterodoxas. Uma vez
que havia se mantido alheio a todas as maquinaes anteriores, Tolsti
simplesmente seguiu em frente escrevendo artigos francos e polmicos e cartas de
protesto atacando a corrupo da Igreja e do governo, cujas diretrizes militaristas
o clero apoiava. Graas ao dirio de Snia, sabemos que, por ocasio da
excomunho de Tolsti, o tempo estava esplndido: dias lmpidos e noites de
luar. Ela registrou que, depois que o dito foi publicado, o marido tornou-se
subitamente afetuoso e apaixonado, e que a sade e o estado de esprito de
Tolsti melhoraram bastante em meio atmosfera singularmente festiva do
perodo. Snia no hesitou em escrever uma carta endereada a Pobedonstsev e
ao metropolita Antnio para protestar contra o dito; depois voltou rotina de
tricotar gorros de l para o orfanato. Surpreendentemente, a carta de Snia e a
resposta do metropolita foram publicadas na revista Novas da Igreja.
To logo a excomunho foi anunciada, o Santo Snodo conclamou seus
sequazes a enviar cartas ofensivas e ameaas de morte a Tolsti; porm, muito
mais numerosas foram as manifestaes, ovaes e peties de apoio ao escritor.
A casa de Tolsti em Moscou foi imediatamente invadida por um sem-nmero de
visitantes vidos para entrar em ao, e a polcia montada teve de intervir quando
Tolsti foi cercado por uma multido de milhares de entusiasmados estudantes
que o viram passeando pelo centro da cidade no dia do anncio da excomunho.
Longe de diminuir a estatura de Tolsti, a anatematizao serviu apenas para
aumentar seu prestgio, particularmente por conta da deciso governamental de
proibir todos os telegramas e expresses de apoio ao escritor. A excomunho
tambm intensificou o interesse pela obra literria de Tolsti. Pessoas que jamais
haviam se interessado comearam a procurar seus livros nas bibliotecas, e muitos
russos que viviam no exterior quiseram saber mais sobre ele. Funcionrios da
fbrica de vidro Maltsev, nos arredores de Moscou, enviaram a Tolsti um bloco
de vidro verde com uma mensagem entalhada em dourado:
Estimado Liev Nikolievitch, tu compartilhas o mesmo destino de muitos grandes homens frente de teu
tempo, que outrora foram queimados em estacas ou abandonados prpria sorte para apodrecer em celas
de priso ou no exlio. Que os sacerdotes hipcritas te excomunguem o quanto quiserem. O povo russo
sempre se sentir orgulho de ti e sempre o ter como um dos seus, uma figura imensamente amada.
popularidade. Um ano mais novo que Tolsti e filho de um pobre sacristo, Joo
nasceu na provncia de Arkhangelsk em 1829, casou-se em 1855 e foi ordenado
na catedral de Santo Andr Apstolo, em Kronstadt, da qual seu sogro era o
sacerdote residente. Durante os cinquenta anos em que serviu na cidade porturia
de Kronstadt, a cerca de trinta quilmetros de So Petersburgo e base da frota
imperial do Bltico, adquiriu renome por seu estilo populista e informal, e pelas
confisses em massa realizadas em sua igreja. Joo incentivava a caridade e a
devoo e depois que deu a extrema-uno a Alexandre iii no leito de morte do
tsar em 1894, ganhou fama em toda a Rssia. Nicolau ii e sua esposa tambm
reverenciavam o padre Joo: tinham um retrato dele pendurado na parede do
quarto do Palcio de Livadia, na Crimeia.
Na dcada de 1880 o padre Joo comeou a condenar Tolsti por pregar que
Jesus no era divino, que Maria era apenas uma mulher solteira e que a Igreja
Ortodoxa era pag e idlatra. Que amarrem uma pedra no teu pescoo e com ela
tu sejas jogado nas profundezas do mar. No deve haver lugar na Terra para ti
foi nesses termos que Joo de Kronstadt atacou Tolsti, e uma compilao de
suas diatribes contra o escritor foi publicada em 1902. O padre Joo talvez tenha
sido o inimigo pblico mais famoso de Tolsti e seu oposto polar. De fato, na
opinio do escritor Nikolai Leskov, Tolsti e Joo de Kronstadt representavam as
duas foras diametralmente contrrias lutando pelo futuro da Rssia. Joo era
visto como o pastor do povo, ao passo que Tolsti era idolatrado mais por sua
inteligncia; contudo, havia extraordinrias semelhanas entre os dois. Como
Tolsti, padre Joo tambm aspirava a um ideal asctico. Ao manter um
casamento celibatrio (sua esposa Elizaveta teria gostado de ter filhos), Joo foi
mais bem-sucedido que Tolsti no que tangia a refrear a libido. Tambm fazia
severas restries ao consumo de comida, que, como Tolsti, ele associava
sensualidade: kacha de trigo-mouro bom, creme de leite ruim; Nada de
rbano com vinagre!, Jamais jantar!. O padre Joo via a habilidade culinria da
esposa como uma ameaa a sua espiritualidade. Tanto Tolsti como Joo eram
puritanos que atacavam a desigualdade social, o materialismo excessivo e a
devassido moral, e ambos tornaram-se objeto de culto da personalidade os
correios tinham de trabalhar em um esquema especial para tratar do grande
volume de cartas que Joo recebia de seus paroquianos e admiradores. Joo de
Kronstadt tambm inspirou o surgimento de uma espcie de religio sectria, o
que Pobedonstsev informou com alarme em 1901, ano da excomunho de
Tolsti. Seus seguidores, chamados de ioanitas ou joanitas, viam Joo ora como
Deus, ora como Jesus ou Joo Batista, e tratavam como um cone sua fotografia
(Joo fazia sucesso especialmente entre as mulheres). O controle sobre o clero
era prioridade absoluta do Santo Snodo, e houve inquietao quando Joo
comeou a dar mostras de que estava se tornando perigosamente independente.
Como Tolsti, Joo desfrutava de maior popularidade na corte do que nos
gabinetes do governo, mas mesmo alguns de seus seguidores julgavam que por
vezes seu tom era veemente demais. Depois de ler as palavras de acusao
dirigidas contra o conde Liev Tolsti, uma pessoa escreveu ao padre Joo
dizendo que agora j no conseguia mais encontrar sua paz interior, pois no
sabia como conciliar suas diatribes, to alheias ao esprito cristo de gentileza,
tolerncia e perdo a seus primeiros textos sobre espiritualidade.
Tolsti e o padre Joo faziam parte do extraordinrio renascimento religioso
do incio do sculo xx que afetou todas as classes da sociedade russa, com um
nmero cada vez maior de peregrinos fazendo visitas a mosteiros e tomando
parte em procisses como aquela da romaria de Kursk imortalizada na famosa
pintura de Repin. Tambm houve um reflorescimento religioso entre a
intelligentsia, cujo incio coincidiu com a publicao, em 1880, do ltimo romance
de Dostoivski, Os irmos Karamzov livro que havia sido inspirado pelo
encontro do escritor com os ancios de Optina Pustin. digno de nota que esse
era o livro que Tolsti estava lendo quando no final da vida finalmente fugiu de
sua casa em Isnaia Poliana para fazer a ltima das suas muitas visitas ao
mosteiro, lugar pelo qual aparentemente sentia ao mesmo tempo atrao e
repulsa. Mesmo antes da excomunho, Tolsti era tido por muitos como o
ancio de Isnaia Poliana, e em suas ltimas dcadas de vida recebia no apenas
multides de visitantes que o procuravam em busca de orientao e
aconselhamento, mas tambm enxurradas de cartas com pedidos de ajuda.
Tolsti tentava diligentemente responder a todas com a ajuda de secretrios, que
atuavam como os irmos leigos que tradicionalmente auxiliavam os ancios. Um
sinal ainda mais evidente do renascimento religioso se deu em novembro de
1901, com a realizao do primeiro de uma srie de histricos encontros no
saguo da Sociedade Geogrfica Imperial em So Petersburgo. Esses encontros
marcaram o primeiro contato construtivo entre a intelligentsia e o clero na Rssia.
A iniciativa foi encabeada por modernistas como Dmtri Merjovski, que queriam
abolir o abismo que separava as classes instrudas da Igreja, com o objetivo de
apenas de uma turba de gente curiosa, que sairia correndo atrs de qualquer espetculo singular.
e sobre tantas outras coisas no verdade. Como que ento tm a coragem de pregar esses ensinamentos
s criancinhas e aos adultos ignorantes que procuram vocs em busca de esclarecimento? [...] Sejam vocs
quem forem papas, cardeais, bispos, arcebispos, superintendentes, sacerdotes ou pastores pensem
nisso. Se vocs pertencem ao clero (que em nossos dias infelizmente numeroso, e cujas fileiras no
cessam de engrossar), que sabem claramente o quanto os ensinamentos da Igreja so obsoletos, irracionais
e imorais, mas que, mesmo sem de fato acreditar neles, continuam a preg-los por motivos pessoais (seu
salrio de sacerdotes e bispos), no se consolem com a suposio de que suas atividades se justificam por
qualquer tipo de utilidade para as massas, que ainda no compreendem o que vocs compreendem.
Tolsti certamente estava bem informado acerca do padre Joo, mas nunca
lhe deu muita ateno.
Talvez seja sintomtico que a publicao de Apelo ao clero tenha ocorrido no
mesmo ano da canonizao de Serafim de Sarov (1759-1833), o primeiro e mais
famoso ancio eremita da Rssia. As celebraes contaram com a presena de
Nicolau ii, da imperatriz Alexandra e de meio milho de peregrinos. O fato de
que subitamente houve muitas outras canonizaes no reinado de Nicolau
corrobora a teoria de que estava em curso um programa de ao com o intuito de
inspirar patriotismo e lealdade monarquia. Tambm em 1902 foram proibidas as
reunies da Sociedade Religiosa Filosfica, pela mesma razo. A Igreja e o
governo estavam tendo dificuldades para unir a populao em meio ao crescente
que bastariam uma bandeira e uma sentinela para assegurar o domnio de Port
Arthur: o prestgio russo faria o resto. Mas a equivocada percepo do poderio
russo estava prestes a cair por terra. Semanas depois de chegar a Port Arthur, o
almirante Makarov e toda a sua tripulao morreram quando a nau capitnia
Petropavloski colidiu com uma mina japonesa. Quando a guerra eclodiu, Tolsti
ficou aflito pela irrupo de sentimentos de patriotismo que ele no foi capaz de
debelar, e comeou a ir diversas vezes por semana a Tula a fim de ler os
telegramas recm-chegados. Naturalmente, o escritor no demorou a pr suas
ideias no papel. No artigo Reflitam sobre isto!, Tolsti exortou seus
conterrneos e se lembrar de passagens bblicas, como Lucas 13:5 (Mas se no
vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo). Insistindo na tese de que
a guerra contradizia e violava os ensinamentos de Jesus e de Buda, ele deplorou a
desumana violncia do conflito:
Dizemos que as guerras de hoje no so como as do passado, e que estamos longe do antigo canibalismo
nas lutas da nao, mas ele ainda existe sob outras formas. Que outra coisa se pode dizer acerca da
destruio da esquadra e do cerco a Port Arthur? Quando a humanidade testemunhou tamanho horror? O
que se pode comparar a essa medonha carnificina? Agora mais de duzentas mil vidas j foram perdidas
nesta insensata batalha [].
seu casamento com uma mulher de origem social totalmente diferente, e passou
seus ltimos dias em agonia. Tolsti foi trs vezes a Pirogovo no vero de 1904,
e teve papel decisivo no cumprimento do desejo de sua irm e de sua cunhada de
que Serguei recebesse a comunho antes de morrer. Para surpresa de todos,
Serguei concordou, apesar de sua notria indiferena religiosa.
Em dezembro de 1904, quando Port Arthur finalmente caiu em mos
japonesas, Tolsti ficou desesperado. Nesse nterim, a viagem de 33 mil
quilmetros (dezoito mil milhas nuticas) da frota imperial do Bltico, sob o
comando do almirante Rojdestevenski, foi marcada por repetidas demonstraes
de incompetncia. Logo aps a partida da esquadra de So Petersburgo, em
outubro, um capito embriagado abriu fogo contra traineiras britnicas no Mar do
Norte, depois de confundir as embarcaes com torpedeiros japoneses, ao passo
que outra fragata em um episdio que ficou conhecido como a esquadra
russa do cachorro louco constatou que, por um erro de navegao, fora parar
nas guas do rio Tmisa. Um dia depois de chegarem por fim ao Pacfico em maio
de 1905, as belonaves russas foram sumariamente destrudas por foras japonesas
na Batalha de Tsushima. Esse derradeiro e humilhante confronto marcou o fim
da guerra. Em Isnaia Poliana, um horrorizado Tolsti acompanhava todos esses
fatos e ficou ainda mais consternado quando a violncia assolou a prpria Rssia.
A situao domstica do pas era to grave e problemtica que a guerra contra o
Japo no angariou apoio popular, o que ficou claro com o assassinato, em julho
de 1904, do ministro dos Assuntos Internos. O pouco empenho e a indiferena
de Nicolau ii em responder aos anseios por reformas levou ecloso da revoluo
no infame Domingo sangrento, de 9 de janeiro de 1905, quando tropas tsaristas
abriram fogo contra uma procisso de trabalhadores desarmados que levavam ao
Palcio de Inverno uma petio com uma lista de reivindicaes. A revolta
pblica ganhou a forma de uma srie de greves em massa por todo o pas e foi
seguida pelo assassinato, em 22 de janeiro, do governador-geral de Moscou, o
gro-duque Serguei Aleksndrovitch, que tinha recebido Snia em audincia
durante a fome de 1892. Tolsti ficou perplexo e confessou que a notcia
provocara nele sofrimento fsico. Entre os distrbios e rebelies de 1905, incluise o motim do encouraado Potemkin, em Odessa. Talvez lamentando no ter
dado ouvidos ao atrevido apelo pessoal de Tolsti em 1902, Nicolau ii agora foi
forado a abrandar o jugo autocrtico. Em outubro, lanou o histrico manifesto
em que prometia direitos civis, a criao de uma assembleia legislativa nacional
parede: Henry George, seu irmo Serguei, William Lloyd Garrison, Sutaiev, alm
de reprodues da Madonna Sistina, de Rafael, dividida em quatro painis,
presente de sua irm Mria. Antes de se despedirem, Tolsti mostrou a Tokutomi
seu adorado Ciclo de leitura um imenso compndio de pensamentos lapidares de
pessoas sbias que ele vinha compilando para todos os dias do ano a partir de um
sem-nmero de fontes, incluindo suas prprias palavras.
Os problemas em Isnaia Poliana tiveram incio pouco depois da partida de
Tokutomi. Primeiro Andrei e Liev disseram com todas as letras ao pai que eram
favorveis pena de morte, o que acarretou uma violentssima discusso,
inclusive com portas estrondeando. Tolsti ficou aborrecido por dois dias.
Algumas semanas depois o escritor voltou a se irritar quando Snia insistiu em
levar justia dois camponeses que haviam derrubado dois carvalhos na floresta.
Mais uma vez Tolsti ameaou ir embora de casa. Em agosto, ao completar 62
anos, Snia adoeceu gravemente e quase morreu. Em 2 de setembro, sob os
cuidados de pelo menos quatro mdicos, ela foi submetida a uma cirurgia para
remover a fibroide que lhe causara peritonite. Surpreendentemente, sua
constituio fsica era to vigorosa quanto a do marido, e ela se recuperou.
Entretanto, Macha, aos 35 anos, no teve tanta sorte. Depois de contrair gripe
em novembro, ela morreu nos braos do pai. De todos os filhos e filhas de
Tolsti, Macha era a mais prxima do pai, e sua morte foi uma perda
devastadora.
No vero de 1906 Tchertkv tinha passado vrias semanas nas imediaes
de Isnaia Poliana, e no ano seguinte retornou com a famlia para passar todo o
vero. Dessa vez Snia no ficou to empolgada quanto o marido, tampouco fez
questo de esconder sua falta de entusiasmo. Ela acirrou ainda mais as tenses ao
insistir em contratar guardas para fazer a segurana de Isnaia Poliana depois
que, certa noite, alguns camponeses invadiram a horta e roubaram repolhos. Os
circassianos armados incumbidos de proteger a propriedade eram extremamente
impopulares entre os aldees, e Tolsti sofreu muito. Assim, o outono de 1907
foi to infeliz quanto o de 1906, e o abismo entre Snia e Tolsti s fez aumentar
quando o metdico e eficiente Tchertkv encontrou um prestativo jovem de 25
anos chamado Nikolai Gusev, para atuar como secretrio de Tolsti. Tchertkv
pagava a Gusev cinquenta rublos por ms para que ajudasse o escritor com sua
volumosa correspondncia, mas, para Snia, sua presena foi entendida como a
de mais um estranho com acesso privilegiado aos pensamentos do marido. Gusev
tradues para o ingls dos textos de Tolsti. Nos primeiros trs anos, antes de se
desentender com seu gerente Arthur Fifield, que havia sido secretrio da
Igreja da Irmandade , a editora publicou 43 ttulos, com uma tiragem total de
duzentos mil exemplares. A produtividade de ttulos em lngua russa tambm era
impressionante: em 1902, Tchertkv comeou a publicar a primeira edio russa
da s Obras completas reunidas de Tolsti banidas da Rssia, com o selo da editora
Palavra livre.
Tchertkv tambm construiu um cofre de ltima gerao, com controle de
temperatura, para arquivar e conservar todos os manuscritos que Tolsti vinha
lhe enviando, e que agora incluam os preciosos dirios do escritor. Um dos
responsveis pela salvaguarda do acervo era Ludwig Perno, revolucionrio
estoniano exilado que residia na vizinha Boscombe, e que foi obrigado a prometer
que jamais deixaria a casa sem a proteo de um guarda. Ao contrrio de muitos
outros exilados polticos que eram seguidos por enxames de espies, Tchertkv
levava uma vida extraordinariamente livre de interferncias do governo russo.
Durante seus anos de exlio, manteve uma intensa correspondncia com Tolsti e
pde percorrer toda a Inglaterra dando palestras sobre o escritor e tomando parte
das semanais Reunies para a considerao dos problemas da vida, em
Bournemouth. Chegou inclusive a jogar futebol em times locais de Christchurch.
Antes de retornar em definitivo para a Rssia, Tchertkv coordenou a
publicao, tanto na Rssia como no exterior, de um dos artigos mais importantes
e influentes de Tolsti. Escrito imediatamente depois que soube da notcia de
que vinte camponeses haviam sido enforcados por tentativa de roubo, No
posso me calar um dos mais bem articulados e sinceros apelos de Tolsti ao
governo para que desse fim ao seu programa sistemtico de violncia organizada,
que ele definiu como pior do que o terrorismo revolucionrio. Quando o artigo
veio a lume, em julho, Tolsti recebeu de imediato sessenta cartas de apoio
para o povo ainda era uma novidade ler seus violentos libelos. Contudo, muitos
jornais foram multados por reproduzir o texto. O jornal liberal Gazeta russa teve
de pagar multa de trs mil rublos, e o editor de um jornal de Sebastpol foi preso
por afixar cpias do artigo por toda a cidade. Os pensamentos sobre a pena
capital levaram Tolsti de volta a um episdio de 1866, quando o escritor
fracassou na tentativa de evitar que o soldado raso Vassli Chabunin fosse
executado. No final da dcada de 1880, um ex-cadete do regimento que havia
testemunhado em primeira mo os eventos procurou Tolsti, pois queria discutir
o relato que ele prprio havia escrito e tinha esperana de ver publicado. Tolsti
se recusou a receb-lo, o que aparentemente serviu apenas para aumentar sua
sensao de culpa. Em 1908, indagado por Biriukv a pretexto da biografia
que estava escrevendo , ele resolveu finalmente falar sobre os acontecimentos
de 1866. Enquanto ditava sua verso dos fatos ao secretrio Gusev, Tolsti
irrompeu em lgrimas pelo menos trs vezes e declarou que a execuo de
Chabunin tinha exercido sobre sua vida uma influncia maior do que todos os
eventos convencionalmente tidos como significativos, tais como a dor do luto
pela morte de entes queridos, o empobrecimento, reveses na carreira e assim por
diante. Ele confessou sentir vergonha da defesa que fez de Chabunin, que em
retrospecto julgava perfunctria e mais preocupada com detalhes legais do que
com imperativos de ordem moral, o que certamente contrastava violentamente
com a veemente e apaixonada posio tomada no tribunal por seu alter ego
ficcional Nekhlidov em Ressurreio, romance escrito em parte para amenizar sua
culpa com relao a Chabunin.
Um quarto de sculo aps seu primeiro encontro com Tolsti a vida de
Tchertkv ainda era caracterizada por sua inabalvel devoo ao escritor, e em
1908 o tolstosta e sua famlia fixaram residncia permanente em uma casa
recm-construda em terras herdadas pela filha caula de Tolsti, Sacha, em
Teliatinki, a cerca de cinco quilmetros de Isnaia Poliana. Pouco depois do
retorno de Tchertkv, Tolsti completou oitenta anos de idade. Por todo o pas
eram to arrebatadoras as manifestaes de apoio a Tolsti que a Igreja se viu
compelida a fazer circular uma nota de apelo conclamando os verdadeiros fiis a
no celebrarem a ocasio. O clero tambm tentou processar Tolsti e lev-lo a
julgamento por blasfmia contra a personalidade sagrada de Jesus Cristo e
providenciou a pintura de cones retratando o escritor como um pecador ardendo
nas chamas do inferno. O padre Joo de Kronstadt, implacvel inimigo de
Tolsti, chegou a escrever uma orao rogando que o conde morresse logo, mas
foi Joo quem morreu em 1908, no Tolsti. Finalmente, as poucas vozes
dissidentes do governo tsarista reacionrio e da Igreja Ortodoxa foram sufocadas
pelas muito mais numerosas vozes das pessoas que queriam bem a Tolsti. No
dia 28 de agosto, dois mil telegramas de felicitaes foram entregues em Isnaia
Poliana, e Charles Wright, bibliotecrio do Museu Britnico, chegou casa de
Tolsti com cartes de aniversrio assinados por oitocentos escritores, artistas e
figuras pblicas ingleses, incluindo George Bernard Shaw, H. G. Wells e Edmund
Goose.
To logo recebeu seu primeiro presente de aniversrio um fongrafo,
enviado por Thomas Edison , Tolsti repudiou a ideia dos comits especiais
que haviam sido criados em So Petersburgo e Moscou para organizar as
celebraes, e em janeiro de 1908 solicitou que essas comisses fossem
dissolvidas e insistiu na interrupo dos preparativos para a comemorao de seu
jubileu. Assim, no houve festividades oficiais, o que no impediu a imprensa de
publicar uma enxurrada de artigos extasiados. Em tom efusivo, os jornalistas
alardearam que jamais ocorrera na Rssia uma celebrao cultural como aquela, e
que embora os festejos de inaugurao da esttua de Pchkin tivessem
arrebatado a imaginao nacional na dcada de 1880, agora se tratava de um
evento de escala internacional. Merejkovski proclamou que a celebrao do
octogsimo aniversrio de Tolsti era a celebrao da Revoluo Russa, e
declarou que, mesmo contra sua prpria vontade, Tolsti se convertera no
radiante ponto fulcral da liberdade russa.
Havia muito tempo que Liev Nikolievitch se transformara em um nome
conhecidssimo e incontornvel na Rssia, e era bastante comum entreouvir
passageiros nos trens falando sobre o escritor como um amigo ntimo, um velho
conhecido. As legendas que acompanhavam a cronologia fotogrfica no
suplemento especial publicado pelo jornal Palavra Russa para marcar o
octogsimo aniversrio diziam tudo das primeiras fotos, em que se lia Conde
L. N. Tolsti, quando ele era apenas um autor desconhecido, a Liev Tolsti e
por fim o familiar Liev Nikolievitch. Houve pouqussimas notas de crtica em
meio aos milhares de tributos e homenagens pelo aniversrio. Uma dessas
mensagens elogiosas foi escrita por Lnin, cujo primeiro e mais famoso artigo
sobre Tolsti, Liev Tolsti como um espelho da Revoluo Russa, apareceu em
O proletrio. Se por um lado Lnin enaltecia os ataques de Tolsti ao regime
tsarista, por outro condenava sua filosofia de resistncia no violenta, que
considerava responsvel pelo fracasso da Revoluo de 1905.
Alm de todos os cartes e telegramas de aniversrio, Tolsti ganhou
presentes, alguns dos quais de gosto bastante duvidoso, como uma caixa de
cigarros em que cada invlucro trazia estampado um retrato do escritor. A bem
da verdade, na opinio de Tolsti no restava dvida de que o melhor presente
de aniversrio que podia ter recebido era o fato de que agora Tchertkv estava
morando bem perto dele. Os Tchertkv e os tolstostas locais, tais como Mria
marido, mas este se recusou a acatar suas exigncias. Por fim, depois de violentos
conflitos, ele concordou em pedir de volta os dirios e entreg-los a Tnia, que os
depositaria no banco de Tula. Snia e o marido sempre haviam lido os dirios um
do outro, mas agora Tolsti comeou a manter um dirio secreto, e em junho
esboou outro testamento, transferindo os direitos sobre suas obras a Sacha
caso ela morresse, ficariam com Tnia. Snia no teve acesso ao testamento, mas
Tolsti acabaria se arrependendo de no ter feito tudo s claras.
A fim de evitar mais hostilidades com Snia, Tolsti decidiu interromper as
visitas a Tchertkv e retomar sua amizade com o discpulo por meio de cartas.
Em setembro Snia convidou um padre para ir a Isnaia Poliana a fim de
conduzir um exorcismo e expulsar o esprito maligno de Tchertkv. No final de
outubro, depois de descobrir que Snia havia vasculhado seu estdio, Tolsti
decidiu finalmente fugir de casa. Havia muito ele ansiava ir embora, a p,
levando consigo algumas roupas numa mochila, como um andarilho. Em 1910
Tolsti por fim tomou a deciso de realizar seu desejo. Supersticiosamente, saiu
de Isnaia Poliana aos 82 anos no dia 28 de outubro, acompanhado do dr.
Makovick, para que no fosse perseguido por Snia. Apesar de suas relaes de
antagonismo com a Igreja Ortodoxa, est em perfeita consonncia com a
natureza contraditria de Tolsti o fato de que seu primeiro destino tenha sido o
Mosteiro Optina Pustin. Julgando-se incapaz de receber orientao espiritual dos
ancios do monastrio, visitou a irm no convento onde residia e depois
embarcou em um trem rumo ao sul do Cucaso. Assim que soube da fuga do
marido, Snia tentou se afogar no lago.
Tolsti jamais chegou a seu destino. Em 31 de outubro, acompanhado do dr.
Makovick e de Sacha (que a essa altura se juntara aos dois), o escritor embarcou
em um trem para Rostov-on-Don, no sul do pas, mas adoeceu e teve de descer
no vilarejo de Astpovo. Foi acolhido pelo agente da estao ferroviria, que
levou o escritor para sua humilde casa e colocou-o na cama. Sacha chamou
Tchertkv, que chegou com seu secretrio em 2 de novembro, seguido por
Serguei e depois Snia, que fretara um trem com Tnia, Andrei e Micha. No dia
seguinte chegaram Ilia, Gorbunov-Posadov e Goldenweiser. Em 5 de novembro,
cinquenta oficiais do exrcito engrossaram as fileiras dos oficiais da polcia
secreta j devidamente posicionados. Assim que a notcia chegou imprensa, a
histria ganhou as manchetes e s primeiras pginas. Logo o mundo inteiro ficou
sabendo do que estava acontecendo em uma remota estao ferroviria da
Eplogo
Acredito que o exemplo e a vida deles fornecem uma resposta pergunta que fiz a mim mesmo e aos meus leitores em meus
livros anteriores: possvel manter e preservar intacta a integridade vivendo em meio a um regime totalitrio? Os tolstostas
responderam a essa pergunta com sua vida, de maneira trgica e heroica.
Mark Popvski
Tchertkv tinham se agravado. Por causa disso, Sacha vendeu sua residncia em
Teliatinki a fim de comprar uma pequena casa de fazenda nos arredores de
Isnaia Poliana (que ela chamou de Nova Poliana). Sacha props a ideia de usar
os lucros provenientes das vendas de uma edio em trs volumes das obras
completas publicada por Tchertkv para comprar da famlia a poro mais
ocidental da propriedade, a parte mais prxima do vilarejo de Isnaia Poliana, e
d-la aos camponeses. Snia e os filhos concordaram de imediato e receberam
quatrocentos mil rublos. Os camponeses tambm se comprometeram a cumprir a
vontade expressa de Tolsti, a saber, que no venderiam nem alugariam suas
recm-adquiridas terras. Do total de 902 hectares, agora 655 pertenciam aos
camponeses. A seguir Snia vendeu para Sacha as terras remanescentes, de modo
que tambm fossem repassadas aos camponeses, e depois comprou dos prprios
filhos suas respectivas partes da casa de Isnaia Poliana. Snia comeou a passar
para Sacha o controle de suas operaes editoriais, e foi com muita alegria que
comemorou o aniversrio de trinta anos da filha em junho de 1914. Entretanto,
essa coexistncia pacfica no durou muito tempo, porque em 1 o de agosto a
Rssia entrou na Primeira Guerra Mundial. Micha foi convocado pelo exrcito,
Liev foi atuar na Cruz Vermelha e Sacha foi servir no front como enfermeira.
Bulgkov e outros 26 opositores de conscincia foram presos e passaram treze
meses trancafiados no presdio de Tula (por fim, seu caso foi levado ao tribunal
militar em Moscou e acabaram ganhando a liberdade).
Snia passou seus ltimos anos de vida essencialmente examinando seu
passado e, como sempre, empenhando-se para garantir o sustento dos
descendentes. Em preparao para a publicao de textos do marido, fez cpias
dos velhos dirios de Tolsti e das cartas que ele lhe escrevera, bem como de
vrias das obras artsticas do conde. Snia tambm seguiu elaborando sua
autobiografia e cumprindo a rotina de mostrar a casa aos visitantes (em certa
noite de vero apareceram onze ciclistas vindos de So Petersburgo), mas viveu
poucas alegrias. Quando seus filhos mais uma vez exigiram dinheiro, ela escreveu
uma nova carta ao tsar propondo a venda de Isnaia Poliana, mas no governo
russo ainda havia muitos altos funcionrios que se opunham ideia de converter
o lar de um notrio e infame herege em parte do patrimnio nacional. Por fim,
Nicolau ii concedeu a Snia uma penso anual de dez mil rublos, mas se manteve
firme em sua recusa de comprar Isnaia Poliana. Nos ltimos anos de vida Snia
teve de lidar com diversas perdas: a morte de sua cunhada, Mria Nikolievna, de
seu cunhado Mikhail Sukhotin e, a mais dolorosa de todas, a de seu filho Andrei,
vtima de pleurisia, em fevereiro de 1916. Liev acompanhou a me a Petrogrado
(nome com que So Petersburgo foi rebatizada assim que a guerra teve incio) em
um trem abarrotado, e eles s conseguiram chegar pouco antes do falecimento de
Andrei. Aps retornar, Snia foi progressivamente perdendo o interesse pela vida,
e passava horas a fio sentada na velha poltrona Voltaire pela qual Tolsti tinha
especial adorao, uma vez que pertencia famlia desde muito antes de seu
nascimento.
Se agora a vida de Snia estava vazia e sem movimento, a de Tchertkv
estava agitada e frentica. Ele era um homem imbudo de uma misso, e aps a
morte de Tolsti se viu ainda mais atarefado. Durante os ltimos dias de vida do
amigo Tchertkv j tinha assumido o controle da situao, e aps a morte de
Tolsti foi a ele que as pessoas recorreram. Havia entrevistas e palestras a dar e
uma mixrdia de manuscritos a serem colocados em ordem e preparados para
publicao. Tchertkv publicou em 1911 seu primeiro livro sobre os ltimos dias
de vida de Tolsti, e no ano seguinte lanou um volume dos dirios do escritor. A
seguir editou trs volumes da fico pstuma de Tolsti, cuja venda rendeu
lucros que permitiram a Sacha comprar de sua famlia as terras de Isnaia Poliana
e d-las aos camponeses. Mas a principal tarefa a que Tchertkv se dedicaria
agora era produzir uma edio cannica da obra de Tolsti, o que, ele bem sabia,
seria um projeto de largo flego. A Tchertkv tinham sido confiados todos os
manuscritos tardios, e em 1913 ele os tirou de um depsito na Inglaterra e levouos temporariamente para a Academia de Cincias em So Petersburgo, onde
ficaram guardados em segurana.
Quando a Rssia se viu enredada na Primeira Guerra Mundial, os tolstostas
ficaram em posio difcil. Apesar das terrveis previses de Tolsti acerca do
banho de sangue e da violncia em larga escala, e a despeito de seus alertas sobre
o enganoso fascnio do patriotismo, Tchertkv apoiou o esforo de guerra. Ele
tomou providncias para que seu artigo sobre pacifismo escrito em 1909 fosse
republicado em 1914 e 1917, mas naquela situao extrema seu pacifismo foi
incapaz de fazer frente a seu patriotismo (afinal de contas, Tchertkv tinha sido
oficial da Guarda Imperial). O discpulo de Tolsti tambm sentia uma profunda
lealdade pela Inglaterra, que ele declarou ser sua segunda ptria, inclusive
porque l passara onze anos de sua vida. A essa altura Biriukv estava na Sua,
por isso coube a Bulgkov assumir o papel de principal porta-voz dos tolstostas.
demais aps a Revoluo de Fevereiro, e ela voltou para casa. Uma vez que
Snia estava aflita e adoentada, foi Sacha, ou Aleksandra, nome mais apropriado
agora que ela estava abandonando o papel de filha, quem assumiu o controle da
administrao de Isnaia Poliana no final de 1917. Ela voltou a residir na velha
casa da famlia com sua tia Tnia, a irm Tnia (ambas agora vivas) e a sobrinha
Tnia, e agora passou a voltar as atenes para o legado do pai. Foi nesse
momento que Snia finalmente entregou a Aleksandra as chaves dos doze bas
contendo os manuscritos de Tolsti sob sua tutela, pondo fim ao ltimo pomo da
discrdia entre as duas. Assim, finalmente o mais velho e o mais jovem dos filhos
de Snia (Serguei estava com 55 anos, Aleksandra com 34) estavam em
condies de dar incio ao trabalho srio de preparao dos manuscritos do pai
para a projetada edio acadmica completa.
Foi graas iniciativa pessoal de Lnin que o hercleo projeto das obras
completas de Tolsti ganhou prioridade e figurou em primeiro plano na esfera
cultural, sendo encarado como importante questo de Estado. No final de janeiro
de 1918 um artigo foi publicado no jornal bolchevique Sovetskaia pravda,
mencionando o nmero de sessenta volumes (foi tambm por ordem pessoal de
Lnin que a penso paga a Snia pelo Estado foi restabelecida em maro de
1918, depois de ter sido reduzida em 1917). Os arquivos do Museu Rumiantsev,
que mais uma vez passaram a ser o repositrio dos primeiros manuscritos de
Tolsti, tornaram-se um viveiro de atividades no inverno de 1918. A Casa
Pchkov, a elegante manso que abrigava o Museu Rumiantsev e se localizava
distncia de uma curta caminhada do Krmlin, ainda era a sede da mais
importante biblioteca de Moscou, e mais tarde seria o ncleo da Biblioteca Lnin.
Porm, nas duras condies ps-revolucionrias de 1918, ningum se importava
muito com um ambiente de trabalho bem equipado ou instalado, particularmente
nos meses de inverno, quando no havia aquecimento. Aleksandra, Serguei e seus
colegas eram obrigados a trabalhar usando gorros e pesados casacos, e de tempos
em tempos tinham de fazer ginstica para sobreviver s temperaturas
congelantes. Eles tinham criado a Sociedade para o Estudo e Disseminao das
Obras de L. N. Tolsti, presidida por Aleksandra, mas logo ficou claro que
Tchertkv e outros discpulos seriam fundamentais para a preparao de uma
edio abalizada e respeitada. Tchertkv era no apenas membro da sociedade
como tambm estava preparando uma edio rival. Autonomeado editor-chefe
das Obras completas reunidas, ele iniciou negociaes com Lnin e Anatoli
Poliana. Contudo, dias depois ela foi presa novamente pela Cheka, e dessa vez
sob a acusao de atividades contrarrevolucionrias. Ainda em 1905 seu pai tinha
antevisto a revoluo, e Tolsti no tivera iluses quanto violncia que seria
usada para levar a cabo a inevitvel insurreio, embora deplorasse
veementemente sua aplicao. Mas nem Tolsti teria sido capaz de prever que,
dez anos depois de sua morte, sua adorada filha e devotada seguidora,
Aleksandra, estaria sentada em uma cela infestada de ratos na infame Lubianka
aguardando o interrogatrio da polcia secreta.
Aleksandra passou dois meses em Lubianka at que seus companheiros
tolstostas apresentassem uma petio para sua soltura, sob pagamento de fiana;
o caso foi levado a julgamento em agosto de 1920. No resta dvida de que seu
pai teria ficado orgulhoso de suas declaraes finais no tribunal:
No usarei minhas consideraes finais para me defender, porque no me considero culpada de coisa
alguma. Mas eu gostaria apenas de dizer aos cidados que me julgam que no reconheo o julgamento
humano e considero um equvoco que uma pessoa tenha o direito de julgar outrem. A meu ver, somos,
todos, pessoas livres, e essa liberdade est dentro de mim mesma ningum pode me privar dela, nem as
paredes da Diviso Especial, tampouco a internao em um campo de prisioneiros. Esse esprito livre no
a liberdade cercada por baionetas na Rssia livre, mas a liberdade do meu esprito, e ele permanecer
comigo...
A bem da verdade, Aleksandra foi solta depois de cumprir apenas dois meses
de pena, sob a condio de que no frequentasse eventos pblicos; porm, voltou
a ser presa quase que imediatamente, depois que assistiu palestra que Bulgkov
ministrou para marcar o dcimo aniversrio da morte de seu pai. Foi libertada
meses depois, em fevereiro de 1921, em parte graas interveno de amigos,
pelo fato de que ainda no tinha sido contaminado pela civilizao europeia,
que estava em posio de primazia para compreender e apreciar os ensinamentos
de Cristo na maneira pura e imaculada em que so explicados por Tolsti.
Em muitos sentidos, o perodo de guerra civil foi de fato a era de ouro do
tolstosmo, quando as ideias de Tolsti foram postas em prtica nas novas
comunas tolstostas que comearam a surgir e tambm debatidas com vigor e
entusiasmo como questo de importncia fundamental. Os tolstostas tomaram
parte de uma srie de acalorados debates com Lunacharski e outros luminares
diante de numerosas plateias no Museu Politcnico em Moscou. Em 5 de maro
de 1920, por exemplo, Bulgkov exps seus argumentos com o erudito poeta
simbolista, Viacheslav Ivanv, um rabino e um sacerdote ortodoxo. Em
novembro de 1920, duas mil pessoas lotaram o Grande Salo do Conservatrio
de Moscou para participar de um evento comemorativo em homenagem ao
dcimo aniversrio da morte de Tolsti. Bulgkov, que a essa altura j se
convertera em um crtico ferrenho dos bolcheviques, sequer conseguiu terminar
seu discurso em meio saraivada de ruidosos aplausos e assovios. O nome de
Tolsti ainda era corrente em meio enorme comunidade de emigrados que se
formara em Paris imediatamente depois da revoluo, e ainda havia muita gente
disposta a atribuir a vitria dos bolcheviques diretamente influncia de Tolsti.
No discurso que proferiu em Paris para marcar o dcimo aniversrio da morte de
Tolsti, em vo o ex-estadista Vassli Maklakov insistiu que Tolsti nada tinha
em comum com o bolchevismo muita gente estava pronta para argumentar
que as ideias de Tolsti sobre a resistncia no violenta tinham produzido um
efeito profundamente pernicioso, que devia ser anulado com uma demonstrao
de fora.
Figura de proa nesses anos foi Vladmir Bonch-Bruevitch, que tinha
trabalhado ao lado de Tolsti e Tchertkv no projeto de emigrao dos Dukhobors
antes da revoluo. Agora, ele ocupava um alto cargo no governo bolchevique, e
nos primeiros anos ajudou Tchertkv a conseguir audincias com Lnin. A fome
generalizada durante a guerra civil fez com que os bolcheviques se lembrassem de
que os Dukhobors e outros sectrios eram bons lavradores, e em 1921 Lnin
respondeu com entusiasmo ao pedido feito por alguns Dukhobors que ento
estavam vivendo no Canad e agora solicitavam autorizao para regressar
Rssia de modo a contribuir para o reaquecimento da economia nacional.
Animados com esses fatos e confiando no respeito que Tchertkv detinha, os
governo. Mas se ouso escrever-lhe, estimado Iosif Vissrionovitch, na condio de camarada cuja ao
essencialmente encetou esse projeto sob a iniciativa do falecido V. I. Lnin, porque creio que uma nica
palavra sua seria suficiente para dar uma soluo imediata e definitiva no que tange aos aspectos formais
de minhas reiteradas solicitaes, conforme demonstrado em minha carta de 23 de fevereiro de 1934 ao
Camarada Molotv [].
Mais uma vez Tchertkv ficou a ver navios; tampouco recebeu resposta para
a carta que escreveu em julho de 1934, ocasio em que se encontrava to
adoentado que j no estava no pleno domnio de suas faculdades; porm, em
agosto daquele ano o dinheiro por fim comeou a ser lentamente liberado.
Supostamente Lnin havia estipulado de maneira expressa que a edio
deveria incluir tudo que Tolsti escrevera na vida, sem qualquer tipo de
mudana, inclusive restaurando os textos verso original, sem os cortes feitos
por censores tsaristas. A palavra de Lnin era a lei, mas o governo stalinista logo
se deu conta do quanto o material era subversivo. Nos textos tardios de Tolsti
havia de fato uma boa dose de crticas ao movimento revolucionrio, e o prprio
Tchertkv, em sua funo de editor-chefe, foi alvo de crticas dos bolcheviques
por no compilar os comentrios aos textos de Tolsti de um ponto de vista
marxista. claro que Tchertkv como Tolsti, um irremedivel aristocrata
nunca fez concesses e jamais se permitiu curvar desprezvel ideologia
bolchevique, e sua postura persistentemente apoltica ainda mais extraordinria
e corajosa face retrica militante e s polticas coercitivas do perodo.
Certamente o governo sovitico acabou se arrependendo de dar a Tchertkv
tamanha autonomia.
A grande ironia da Edio do Jubileu de Tolsti est no fato de que no
tornou mais acessveis suas obras. Cada volume era no apenas extremamente
caro, como temia Aleksandra, mas as tiragens eram nfimas: cinco mil, no
mximo dez mil exemplares. Quando Nikolai Rodionv assumiu a funo de
editor-chefe em substituio a Tchertkv, que faleceu em 1936 aos 82 anos, a
mesma idade com que Tolsti tinha morrido , 72 volumes estavam prontos e
no prelo, mas apenas vinte tinham vindo a lume. Alm disso, a ordem de
publicao era estranha. O volume 59 saiu em 1935, mas o volume 34 s sairia
em 1952. Oito volumes foram publicados em 1937, um ano depois da morte de
Tchertkv, mas era o auge dos expurgos, e Solomon Lozvski, o novo diretor da
editora estatal, agora renomeada sob o acrnimo Goslitizdat, literalmente temia
por sua vida ele tinha sido nomeado em 1936, depois de j ter sido preso uma
vez por ordem de Stlin. A equipe da editora, cujo escritrio, em uma estranha
ironia do destino, se localizava bem prximo de Lubianka, agora perdeu sua
independncia e foi forada a acatar ordens da Goslitizdat. Em uma poca to
terrvel e temerria, no havia a menor possibilidade de Lozvski sequer sonhar
com a aprovao dos volumes contendo os principais textos religiosos de Tolsti
(os volumes 23, 28, 48 e 49, por exemplo).
Entre 1939 e 1949 a publicao foi suspensa por completo; a equipe
editorial trabalhava sem salrio, enquanto Rodionv corajosamente buscava
novas maneiras de dar continuidade ao projeto tentando jogar o jogo dos
apparatchicks e enfatizando o imprimtur que Lnin dera empreitada. No final da
dcada de 1930, sob constante ameaa de priso, a equipe preparou
obstinadamente mais volumes incuos, como os que continham as cartas de
Tolsti para sua esposa (83, 84), recheando os textos de citaes de Lnin em
detrimento de seus prprios comentrios. Inessa Medjibovskaia, estudiosa da
obra de Tolsti, tem razo ao comparar literatura do absurdo s tratativas de
Rodionv com a burocracia sovitica durante os expurgos. Em resenha de um
livro publicado em 2002 por Liev Osterman, uma das muitas e importantes
fontes ps-soviticas a implodir o mito do status sagrado de Tolsti aps 1917,
ela apresenta uma divertida verso resumida da transcrio feita por Osterman do
encontro, em 1939, de Rodionv com Piotr Pospelv, vice-diretor do
Departamento de Propaganda e Agitao do Comit Central:
Rodionv: Venho com reiterada insistncia tentando obter a oportunidade de me encontrar pessoalmente
com o senhor a fim de pedir seu conselho e receber sua orientao de modo a resolver essa dolorosa
situao sem violar o testamento e a vontade de L. N. Tolsti, e ao mesmo tempo agir de acordo com as
diretrizes que o Comit Central tem em mente.
Pospelv: O senhor cometeu diversos erros graves. O primeiro a extenso dos comentrios. As Obras
completas de Tolsti esto dando lugar s obras completas de seus comentadores. O segundo erro seu
mtodo de comentrio. O senhor no observa o contrato, e o contrato enfatiza a necessidade de
objetividade. E quem pode ser mais objetivo que Lnin? Por que o senhor simplesmente no transcreve
esta que a mais objetiva das fontes? Por que escreve longas biografias sobre as pessoas mais
insignificantes, mesmo as que acabaram sendo contrarrevolucionrias?
com a prpria vida. Morgatchv declarou que ainda compartilhava das ideias e
concepes de Tolsti sobre a vida e que desejava ser reabilitado antes de
morrer. No preciso de reabilitao agora, ele escreveu mo em um adendo
carta, mas os jovens promotores e procuradores precisam saber o que foi feito
com os amigos e seguidores de Liev Tolsti. Morgatchv foi oficialmente
reabilitado em dezembro de 1976. Em tom custico, Popvski observou que a
Suprema Corte Sovitica agora tinha oficialmente isentado os seguidores de
Tolsti da acusao anterior de que eram tolstostas.
Popvski ficou abismado ao descobrir que os tolstostas no somente ainda
existiam na Rssia como tambm continuavam fiis s suas crenas. Como todo
cidado sovitico, Popvski era lembrado todo dia do culto a Tolsti em seu
pas pela profuso de ruas e praas com o nome do escritor, pelo fato de que sua
fico figurava permanentemente nos currculos e programas de ensino das
escolas e universidades, pelos diversos museus dedicados a ele em diferentes
partes do pas. Porm, tambm como todo cidado sovitico, Popvski s tivera
acesso s obras literrias de Tolsti. Para formar uma opinio acerca das ideias
filosficas do escritor, bvio que ele fora obrigado a recorrer ao ensaio de Lnin
Liev Tolsti como um espelho da Revoluo Russa, que era leitura obrigatria
antes mesmo de Anna Karinina. Assim, Popvski cresceu com a noo de que
Tolsti no tinha o menor talento como pensador, que certamente no era um
profeta, que suas concepes filosficas eram danosas, que seus seguidores eram
patticos e que o autoaperfeioamento e o vegetarianismo eram bobagens
ridculas. Todas essas ideias foram reforadas por meio de artigos, comentrios e
enciclopdias. Alm disso, dias depois da reabilitao de Morgatchv, o
presidente sovitico Leonid Brejnev escreveu uma longa divagao no livro de
visitas clebres em Isnaia Poliana, mais tarde reproduzida no Pravda, em que
discutia Tolsti exclusivamente como o autor de Guerra e paz.
Quando questionou alguns de seus amigos de Moscou (todos eles tpicos
membros da intelligentsia russa), Popvski descobriu que nenhum deles sabia coisa
alguma sobre os tolstostas. Isso aguou sua curiosidade, e ele ento deu incio a
uma pesquisa. O que no era tarefa simples no clima da Guerra Fria, em meio a
telefones grampeados, escutas nos quartos e violao de correspondncia pessoal.
claro que no era possvel falar publicamente sobre o tolstosmo ou escrever
abertamente sobre o tema. Contudo, com a ajuda de muitas pessoas solidrias
que se desdobraram para oferecer ajuda, Popvski por fim obteve endereos de
importantes, depois que este publicou um livro sobre sectarismo religioso em que
alegava, por exemplo, que os tolstostas tinham se recusado a se juntar s
fazendas coletivas porque eram essencialmente kulaks.
Quando, no incio da dcada de 1980, James Billington, bibliotecrio da
Biblioteca do Congresso, perguntou a Mark Popvski por que razo ele decidira
pesquisar a histria de um pequeno grupo cuja influncia era insignificante,
Popvski respondeu que ficara impressionado pela maneira inteligente com que
os tolstostas tinham protestado contra o status quo: simplesmente vivendo vidas
individuais de acordo com seus princpios morais. A pacincia e a determinao
dos tolstostas em dar seu testemunho foram finalmente recompensadas alguns
anos depois. Os estudos acadmicos sobre Tolsti entraram em uma nova fase
com a publicao, em maio de 1988, do artigo O retorno de Tolsti, o
pensador, de Vladmir Lkchin. Era bvio que Tolsti j no podia ser visto
apenas como um espelho que refletia as contradies da Revoluo de 1905, ele
escreveu, uma vez que ele era um raio laser um laser da humanidade. Com o
incio da perestroika e da glasnost, a histria da obstinada luta dos tolstostas para
estabelecer comunas e trabalhar a terra no den comunista da Unio Sovitica
pde finalmente ser contada tanto na Rssia como no ocidente. Tudo mudou na
Rssia no final da dcada de 1980, com a chegada das reformas de Gorbachev e
o fim da censura. Mazurin, aos 87 anos de idade, viveu para testemunhar o
entusiasmo provocado pela publicao de suas memrias na mais prestigiosa
revista literria do pas, a Novy mir, que em 1988 tinha mais de um milho de
assinantes. Depois disso, seguiram-se muitos outros livros e artigos.
Tolsti no acreditava na ideia de uma vida aps a morte no sentido cristo;
a bem da verdade, a perspectiva de que a morte daria fim a sua existncia e a
conscincia de que no tinha controle sobre quando isso ocorreria foi o maior
problema contra o qual lutou. Ele no acreditava que suas obras seriam
lembradas por muito tempo depois que morresse, tampouco julgava que tinha
tantos seguidores assim. Desde o colapso da Unio Sovitica em 1991 e a partir
do momento em que os historiadores literrios e culturais se viram livres dos
grilhes da ideologia, uma importante posio na mirade de novas publicaes
sobre o legado de Tolsti na Rssia foi ocupada por um conjunto de materiais
inditos que vm lanando luz sobre a vida dos que buscaram colocar em prtica
as ideas de Tolsti aps a morte do escritor. Esses materiais possibilitaram no
apenas a montagem do quebra-cabea da complexa e fascinante histria da vida
Caderno de imagens
A casa da rua Pliushchikha, em Moscou, para onde Nikolai Ilitch levou a me, a irm e os cinco filhos em 1837.
Tolsti em seu uniforme do exrcito, recm-promovido a oficial de carreira na patente de alferes em Moscou, em 1854, pouco antes
de se transferir para o servio ativo em Bucareste. Ele decidiu fazer a jornada desde o Cucaso, onde estava aquartelado, via
Isnaia Poliana, o que implicou um desvio de mais de 960 quilmetros.
Tolsti com seu irmo Nikolai, em Moscou, pouco antes de viajar para o Cucaso, onde se alistaria no exrcito, 1851.
Serguei, Nikolai, Dmtri e Liev Tolsti em Moscou, fevereiro de 1854. Foi a ltima vez que os quatro irmos estiveram todos
juntos. O encontro foi durante o ms de licena de Tolsti antes de rumar para o sul a fim de se juntar a sua nova brigada de
artilharia na guerra contra a Turquia.
Caricatura mostrando Tolsti como um imponente gigante ao lado da figura diminuta do tsar Nicolau ii, 1901.
Escritores ligados revista literria O Contemporneo, So Petersburgo, 1856. Da esquerda para a direita: Goncharov,
Turguniev, Grgorovitch, Druzhinin e Ostrvski. O retrato do grupo foi tirado pelo clebre patriarca da fotografia russa,
Serguei Levitski; mais tarde, Tolsti emoldurou e pendurou a foto em seu estdio em Isnaia Poliana.
Tolsti em Bruxelas, maro de 1861. A essa altura, Tolsti estava em vias de concluir sua segunda e ltima viagem ao exterior,
numa jornada que durou nove meses. Nesse perodo, o escritor estudou mtodos educacionais como preparao para desenvolver suas
prprias atividades pedaggicas; na mesma poca, seu irmo Nikolai morreu no sul da Frana.
Alexandra Andrievna Tolstia (Alexandrine), dcada de 1860. Durante boa parte da vida, Tolsti manteve uma estreita
amizade com a prima de seu pai, uma mulher atraente e de formidvel intelecto. Dama de companhia na corte, mais tarde
Alexandrine teve papel bastante til atuando como intermediria e se incumbindo de encaminhar as cartas de apelo que Tolsti
escreveu ao tsar depois que encampou a causa da injustia religiosa; contudo, houve atritos, e a amizade entre os dois ficou
estremecida to logo Tolsti abandonou suas crenas ortodoxas.
A futura Sfia (Snia) Tolstia e sua irm mais nova Tatiana (Tnia) Berhs, Moscou, 1861. Essa fotografia foi tirada um
ano antes do casamento de Tolsti e Snia. As irms continuaram muito prximas, e foi nas cartas que enviou a Tnia que Snia
escreveu os relatos mais honestos acerca de sua vida em Isnaia Poliana.
Snia na sala de visitas em Isnaia Poliana, 1902. Era neste canto da espaosa sala que tradicionalmente a famlia e seus
convidados se reuniam para o ch da tarde. Acima da cabea de Snia est o retrato do av libertino de Tolsti, Ilia Andrievitch.
A manso ancestral de Isnaia Poliana, erguida por Serguei Volkonski, onde Tolsti nasceu em 1828; por causa de pesadas
dvidas de jogo, em 1854, a casa principal teve de ser vendida a um senhor de terras das vizinhanas, que desmontou a manso
tijolo por tijolo e depois a reergueu em sua propriedade, a cerca de 32 quilmetros estrada abaixo, onde essa fotografia foi tirada
em 1892.
A casa de Tolsti em Isnaia Poliana antes da adio de uma ltima ala na dcada de 1890. Originalmente, o projeto visava
reproduzir uma das duas alas idnticas que flanqueavam a antiga manso. Embora jamais tivesse a finalidade de ser a casa
principal, Tolsti instalou-se nessa ala depois de dar baixa do exrcito aps a Guerra da Crimeia. Nas dcadas de 1860, 1870 e
1890, foram acrescentadas novas extenses na casa de modo a acomodar a famlia cada vez maior e o squito de tutores, preceptores
e governantas.
Ivan Kramski, Retrato de Tolsti, Isnaia Poliana, 1873. O retrato foi adquirido por Pvel Trtiakov para sua coleo de arte
russa. De incio, Tolsti recusara os pedidos de Kramski para posar, mas o escritor foi persuadido a mudar de ideia, graas ao
charme pessoal do principal pintor da Rssia, que estava passando o vero na provncia de Tula em uma datcha bem prxima a
Isnaia Poliana.
Pgina 8 da edio de 1872 da Cartilha de Tolsti, mostrando as letras k de kolokol (sino), l de lozhka (colher) e m de
medved (urso).
Tolsti arando, Isnaia Poliana, 1887. Tolsti comeou a trabalhar nos campos ainda na juventude, na dcada de 1840, e
progressivamente passou a atuar cada vez mais tempo ao lado dos camponeses, medida que se exacerbavam seus sentimentos de
culpa em relao explorao dos mujiques. Depois de dar as costas produo ficcional para as classes abastadas, pregou que
cada pessoa deveria viver com o suor do prprio rosto, lavrando a terra. Estava prestes a completar sessenta anos quando este retrato
foi pintado.
Tolsti lendo em sua poltrona favorita em Isnaia Poliana, 1887; desenho a lpis de Repin.
O primeiro retrato de Tolsti pintado por Repin, 1887. Repin se encontrara pessoalmente com Tolsti em 1880, mas antes de
tentar seu primeiro retrato quis conhecer melhor o escritor. A essa altura, Tolsti j tinha passado por sua crise espiritual e
alcanara fama internacional graas a obras como Uma confisso e Em que acredito, ambas banidas da Rssia.
Repin, Tolsti em seu estdio em Isnaia Poliana, 1891. Tolsti deslocou diversas vezes seu estdio em Isnaia Poliana,
mas foi ali no mesmo cmodo abobadado que fazia as vezes de despensa e onde o velho prncipe Volkonski pendurava carne
defumada que Tolsti trabalhou no incio da dcada de 1860 e de 1887 a 1902. Ali, Tolsti escreveu os primeiros captulos
de Guerra e paz e mais tarde redigiu A sonata a Kreutzer e Ressurreio.
Snia de p junto ao retrato de seu filho Ivan (Vanechka), Isnaia Poliana, 1897. Snia ficou devastada pela morte de seu caula
Ivan, cujo retrato aqui aparece pendurado acima de um pequeno altar informal em sua memria. Aps a morte do menino, Snia
entusiasmou-se pela fotografia e gostava de compor fotos em cenrios como este, improvisado na varanda de Isnaia Poliana.
Tolsti e sua bicicleta Starley Rover, 1895. Tolsti tinha um irreprimvel apetite e entusiasmo por novas atividades e, aos 64
anos, aps a morte de seu filho Vanechka, comeou a praticar ciclismo. Depois de comprar uma bicicleta de fabricao inglesa,
tomou aulas e obteve a licena para circular por Moscou.
Tolsti e Snia, agosto de 1895. Vanechka, o caula do casal, tinha morrido seis meses antes, por isso os dois ainda estavam de
luto.
Os filhos de Tolsti com a me em Gaspra, Crimeia, 1902. Da esquerda para a direita: Ilia, Andrei, Tnia, Liev, Snia,
Micha, Macha, Serguei, Aleksandra. A partir de 1901, Tolsti passou um longo perodo adoentado e esteve beira da morte,
depois de ter sido excomungado. Apesar de odiar o luxo, aceitou o convite para passar o inverno em uma villa palaciana no clima
mais temperado da Crimeia. Todos os seus familiares mais prximos foram visit-lo, crentes de que estavam ali para se despedir e
tomar parte do funeral do escritor. Em 1902, o filho mais velho de Tolsti, Serguei, tinha quarenta anos, ao passo que sua filha
mais nova, Aleksandra, tinha dezoito.
Tolsti e sua irm Mria (Macha), 1908. Apesar de Mria ter se tornado freira, Tolsti manteve com ela uma relao muito
prxima. Antes de entrar para a vida religiosa, Mria passara por maus bocados e tivera uma vida infeliz: casou-se com um
marido abusivo e sofreu o estigma de ter uma filha ilegtima.
Tolsti a cavalo nos arredores de Isnaia Poliana, 1908. Desde a infncia fora apaixonado pela montaria. No fim da vida,
passou a considerar que at mesmo andar a cavalo era uma atividade autoindulgente, uma vez que ao seu redor havia milhares de
camponeses morrendo de fome; chegou a cogitar a ideia de abandonar o lombo dos cavalos. Contudo, argumentou que seu cavalo
estava velho, e continuou cavalgando.
Tolsti na inaugurao da Biblioteca do Povo no vilarejo de Isnaia Poliana, 31 de janeiro de 1910. Na juventude, ele encampou
ardorosamente a iniciativa de abrir escolas, pois inexistiam condies para que os camponeses recebessem educao formal. Essa
biblioteca do vilarejo, organizada pela Sociedade Literria de Moscou, consistia de uma pequena sala com duas estantes de livros.
Na fotografia, Tolsti est rodeado de alunos de sua primeira escola em Isnaia Poliana.
Repin, Liev Tolsti descalo, 1901. Este famoso retrato de Tolsti orando no bosque nos arredores de Isnaia Poliana foi
exposto em uma galeria de So Petersburgo pouco depois do anncio da excomunho do escritor, e atraiu centenas de admiradores
que instantaneamente o adornaram com flores, como se fosse um cone popular. A fim de evitar distrbios pblicos, as autoridades
decidiram retirar a pintura da exposio quando a mostra itinerante seguiu para Moscou e outras cidades nas provncias.
Denise Bottmann
Liev Tolsti passou a ser conhecido no Brasil nos lustros finais do sculo xix,
tanto em tradues francesas e portuguesas quanto em matrias e artigos
culturais.[15]
Quanto a tradues e edies propriamente brasileiras de sua obra, a
primeira, ao que tudo indica, foi A sonata de Kreutzer, em traduo de Visconti
Coaracy, por volta de 1895. No que a partir da Tolsti adquirisse voo prprio
nos catlogos nacionais: desde sua estreia em traduo brasileira, durante trinta e
cinco anos as publicaes de sua obra no Brasil sero ralas, tmidas e repetitivas.
Basta dizer que, at 1930, teremos apenas cinco outros lanamentos em livro,
entre eles mais trs Sonatas!
Tal escassez, porm, no significava que no houvesse grande difuso da
obra de Tolsti entre nosso pblico leitor. Desde o comeo do sculo, vrias
editoras lusitanas, em especial a Viva Tavares Cardoso, a Fluminense e a
Guimares, publicavam seus escritos, que chegavam ao Brasil com expressiva
circulao entre ns.
A partir de 1930, devido depresso econmica mundial e forte
desvalorizao do mil-ris, tornam-se proibitivos os custos da importao livreira.
Em vista disso, o setor editorial brasileiro passa a proceder a uma substituio
de importaes, com o que se tem um decisivo arranque na produo nacional
de livros com tradues prprias. Desde ento, consolidando-se uma indstria
editorial no pas, haver, tambm no que concerne a nosso autor, um fluxo
constante de novas tradues e edies, bem como vrias reedies at a data
presente.
Primrdios
A sonata de Kreutzer, trad. Visconti Coaracy. Rio de Janeiro: B.-L. Garnier, c.1895
A sonata a Kreutzer, trad. annima. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1905.
A sonata a Kreutzer, trad. annima. Rio de Janeiro: Empreza Romantica, 1909.
O que eu penso da guerra, trad. annima. Rio de Janeiro: H. Antunes, 1909.[16]
A sonata de Kreutzer, trad. annima. So Paulo: Livraria Teixeira, 1913.
Amo e creado, trad. A. F.. Rio de Janeiro: Livraria Joo do Rio, 1926.
Dcada de 1930
Anna Karenine, trad. ann. So Paulo: Sociedade Impressora Paulista, 1930 [Companhia Editora Nacional,
1930]
Sonata de Kreutzer, trad. ann. So Paulo: Sociedade Impressora Paulista, c.1930
A palavra de Jesus, trad. ann. Rio de Janeiro: H. Antunes, 1931 (vide nota 2)
Resurreio, romance celebre, trad. Carlos Cintra. Rio de Janeiro: Americana, 1931 [Waissmann/Guanabara, 1935]
Khadji-Murat, trad. Georges Selzoff e Allyrio M. Wanderley. Coleo Bibliotheca de Auctores Russos. So
Paulo: Cultura, 1931 (direto do russo)
Padre Sergio, trad. Georges Selzoff e Allyrio M. Wanderley. Coleo Bibliotheca de Auctores Russos. So
Paulo: Cultura, 1931 (direto do russo)
Os cossacos, trad. Srgio Azevedo. Rio de Janeiro: Livraria Marisa, 1931
Os cossacos, trad. ann. So Paulo: Sociedade Impressora Paulista, 1932
O trabalho (com Timoteo Bondareff), trad. Joo Cabral. Rio de Janeiro: Livraria Marisa, 1934
O diabo branco (Khadji-Murat), trad. Antnio Srgio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1934
Ressurreio, trad. ann. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1936
Dcada de 1940
Duas novelas: O Prncipe Kassatsky e O diabo, trad. Caio Jardim. Rio de Janeiro: Universitria, 1940
O quinho da mulher, impressionante relato da prpria herona, trad. Joo Cabral. Rio de Janeiro: Brasilica, 1940
A sonata a Kreutzer, trad. Amando Fontes. Coleo Fogos Cruzados. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1941
Guerra e paz, trad. Gustavo Nonnenberg. Coleo Biblioteca dos Sculos. Porto Alegre: Globo, 1942
[Tecnoprint, 1987; Ediouro, 1992; Prestgio, 2002]
Os cossacos, trad. Almir de Andrade. Coleo Fogos Cruzados. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1942
Ana Karnina, trad. Lcio Cardoso. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1943 [Tecnoprint, 1985; Ediouro, 1992]
Ana Karenina, traduo revista por Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Irmos Pongetti, 1943[17]
Homens e escravos, trad. Cira Neri. Coleo As 100 Obras-Primas da Literatura Universal. Rio de Janeiro:
Irmos Pongetti, 1943 [In Trs novelas russas, Pongetti, 1961; Edies de Ouro, 1965]
Dirios ntimos (com Sofia Tolstoi), trad. Frederico dos Reys Coutinho. Rio de Janeiro: Vecchi, 1943.
Ressurreio, trad. Waldemar Cavalcanti. Coleo Fogos Cruzados. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1944
Memrias (infncia, adolescncia e juventude), trad. Rachel de Queiroz. Coleo Memrias, Dirios, Confisses.
Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1944 [Global, 1983]
Polikuchka, trad. Henrique Cordeiro. Rio de Janeiro: Vitria, 1944.
Sebastopol, trad. F. J. da Silva Ramos. Coleo Excelsior. So Paulo: Livraria Martins, 1944
Trs novelas da Rssia, com O violinista Alberto, Um animal como poucos e Romance inacabado, trad.
ann. So Paulo: Nosso Livro, 1944
O drama do padre Srgio, trad. ann. So Paulo: Nosso Livro, c.1944
A carta extraviada in Os colossos do conto da velha e da nova Rssia, trad. Frederico dos Reys Coutinho. Rio de
Janeiro: Mundo Latino, 1944 [Reed. como Os mais belos contos russos dos mais famosos autores, Segunda Srie.
Rio de Janeiro: Vecchi, 1945]
A morte de Ivan Ilitch, trad. Marques Rebelo; Alexis o pote, trad. Joracy Camargo; Os trs staretzi,
trad. Alfredo Mesquita, in Os russos: antigos e modernos, org. Rubem Braga. Coleo Contos do Mundo. Rio
de Janeiro: Leitura, 1944[18]
Katia, trad. Ldo Ivo. Rio de Janeiro: Panamericana, c.1944
Os cossacos, trad. ann. So Paulo: Clube do Livro, 1944[19]
O diabo branco, traduo revista. So Paulo: Publicaes Brasil, c.1944 [trata-se da traduo de
Selzoff/Wanderley, Cultura, 1931]
A tortura da carne [De onde viria o castigo?], trad. ann. So Paulo: A Bolsa do Livro, 1945
Senhor e servo, trad. ann. Coleo Azul. Rio de Janeiro: Aurora, c.1946
A verdadeira vida, trad. Rossini Tavares de Lima. Coleo Os Grandes Pensadores. Rio de Janeiro: Vecchi,
1947
Ivan, o imbecil in Trs novelas russas, trad. Lcio Cardoso. Rio de Janeiro: A Noite, 1947
Khadji-Murat in Trs novelas russas, traduo revista. Coleo Grandes Romances Universais. So Paulo:
W. M. Jackson, 1947 [trata-se da traduo de Selzoff/ Wanderley, Cultura, 1931]
A morte de Ivan Ilitch e Amo e servidor, trad. Gulnara Lobato de Morais. So Paulo: Saraiva, 1948 [Martin Claret,
2005]
A sonata a Kreutzer (romance), trad. Vicente Vaz. Rio de Janeiro: Miniatura, 1948
O diabo branco, trad. Boris Solomonov [pseud. de Boris Schnaiderman]. Coleo Os maiores xitos da tela.
Rio de Janeiro: Vecchi, 1949 [Refundida em Novelas russas, Cultrix, 1963] (direto do russo)
Ressurreio, traduo revista por Marina Salles Goulart de Andrade. Rio de Janeiro: Cia. Brasil, s/d [anos 40]
Dcada de 1950
Ana Karnina, trad. Rui Lemos de Brito. Rio de Janeiro: Lux, 1950 (direto do russo)
As trs palavras divinas, in Obras-Primas do Conto Universal, trad. Almiro Rolmes e Edgard Cavalheiro. So
Paulo: Livraria Martins, 1950
O pensamento vivo de Tolsti, org. Stefan Zweig, trad. Lgia Autran Rodrigues Pereira. Coleo Biblioteca do
Pensamento Vivo. So Paulo: Livraria Martins, 1952
Senhor e servo, trad. ann. So Paulo: Clube do Livro, 1953 (ver nota 4)
O enforcado, trad. Glia e Otto Schneider. Coleo Novelas do Mundo. So Paulo: Melhoramentos, 1956
Ressurreio, trad. Ilza das Neves e Helosa Penteado. So Paulo: Livraria Martins, 1957
Guerra e paz, trad. Oscar Mendes. So Paulo: Livraria Martins, 1957 [Itatiaia, 1957 em diante]
Guerra e paz, trad. Alberto Denis. So Paulo: Edies e Publicaes Brasil, 1957 [Edigraf, 1958] (apresentada
como direta do russo)
Depois do baile, in Tits do Amor, trad. Silvia de Assis Falco. So Paulo: El Ateneo do Brasil, 1957
Deus v a verdade, mas espera, traduo revista por T. Booker Washington, in Maravilhas do conto russo. So
Paulo: Cultrix, 1958[20]
Os trs ancios e Depois do baile, in Mar de histrias, v. 3, org. e trad. Aurlio Buarque de Hollanda e Paulo
Rnai. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1958 [Edies de Ouro, c.1974; Nova Fronteira, 1981; Ediouro,
1987]
Trs novelas, a saber, A felicidade conjugal, A morte de Iv Ilitch e Sonata a Kreutzer, trad. Boris
Schnaiderman. So Paulo: Boa Leitura, 1959 [reed. em vrios ttulos e/ou volumes independentes pela
Tecnoprint, Crculo do Livro, Ediouro e 34] (direto do russo)
Dcada de 1960
Obra completa, trad. Natlia Nunes, Joo Gaspar Simes, Lygia Azevedo, Oscar Mendes, Milton Amado. Rio de
Janeiro: Jos Aguilar, 1960-61 [Nova Aguilar, 1976][21]
Guerra e Paz, trad. Lucinda Martins. Rio de Janeiro: Lux, 1960 [Crculo do Livro, 1974]
Antologia do Conto Russo, vol. IV (dedicado a Tolsti). Contm: A morte de Ivan Iltch, trad. Ana Weinberg e
Ary de Andrade [bup, 1963]; Manh de um fazendeiro, trad. Ana Weinberg e Augusto Souza Meyer; Os
cossacos, trad. Zinaida Zilberman e Augusto Souza Meyer; Dos apontamentos do prncipe D.
Niekhlidov, trad. Rebeca Elkind e Augusto Souza Meyer; Alberto, trad. Clio Bustamante e Augusto
Souza Meyer; O diabo, trad. Zina Zilberman e Ouvar Davet; Depois do baile, trad. Tatiana Belinky
[Paulinas, 1988]. Rio de Janeiro: Lux, 1962 (direto do russo)
A tempestade de neve, in Contos russos, sel. Jacob Penteado. Coleo Primores do Conto Universal. So
Paulo: Edigraf, 1962
Polikushka, trad. Francisco Bittencourt. Coleo Os Maiores xitos da Tela. Rio de Janeiro: Vecchi, 1962
Khadji-Murat in Novelas russas, trad. Boris Schnaiderman. So Paulo: Cultrix, 1963 [Reed. em volume
independente, Cultrix, 1985; Cosac Naify, 2009] (direto do russo)
Senhores e Servos, in A morte de Ivan Ilitch e Senhores e Servos, apres. Paulo Rnai, trad. Ana Weinberg e Ary de
Andrade. Rio de Janeiro: bup, 1963 (direto do russo)
Alexis, o pote, in Obras-primas do conto russo, org. Homero Silveira, no identificamos o tradutor. So Paulo:
Livraria Martins, 1964
O diabo branco, traduo especial de Jos Maria Machado. So Paulo: Clube do Livro, 1969 (ver nota 5)
Dcada de 1970
A manh de um senhor, trad. Joo Gaspar Simes. Coleo Biblioteca de Ouro da Literatura Universal. Chile:
Lord Cochrane/Minha, 1971[22]
As estrelas da felicidade. A verdadeira felicidade, no identificamos o tradutor. So Paulo: Paulinas, 1975
Guerra e paz, trad. ann. Coleo Os Grandes Romances Histricos. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1978
[subsidiria da Amigos do Livro, Portugal]
Onde h amor, Deus a est, no identificamos o tradutor. So Paulo: Paulinas, 1978
Dcada de 1980
A morte de Ivan Ilitch, trad. Joaquim Campelo Marques e Manuel Borges. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981 (direto
do russo)
Babine, o tolo, trad. Fernando Sabino. Coleo Abre-te Ssamo. Rio de Janeiro: Record, c.1983
As palavras de Jesus, trad. Paulo Silveira. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1984
A violncia das leis in Os grandes escritos anarquistas, org. G. Woodcock, trad. Jlia Tettamanzi e Betina Becker.
Porto Alegre: l&pm, 1985.
Dcada de 1990
O patinho que pescou a lua, no identificamos o tradutor. Coleo Fbulas do Mundo Todo. Belo Horizonte:
Villa Rica, c.1990
A morte de Ivan Ilitch e outras histrias, a saber, Senhor e servo, O prisioneiro do Cucaso e Deus v a
verdade, mas custa a revelar, trad. Tatiana Belinky. So Paulo: Pauliceia, 1991 [ l&pm, 2009; Amarilys,
2011] (direto do russo)
O Reino de Deus est em vs, trad. Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994 [BestBolso, 2011]
Ana Karnina, trad. Mirtes Ugeda. So Paulo: Crculo do Livro, 1995 [em verdade, traduo de Joo Gaspar
Simes com algumas alteraes de superfcie; Nova Cultural, 2003]
As trs visitas de Deus, com Onde est o amor, Deus est tambm, Os trs eremitas e De que vivem os
homens, trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995 [Onde est o amor, Deus est tambm
reed. in As obras-primas de Leon Tolstoi, Ediouro, 2000]
A aposta, trad. Tatiana Belinky. So Paulo: Paulinas, 1996 (direto do russo)
A morte de Ivan Ilitch, trad. Carlos Lacerda. Rio de Janeiro: Lacerda, 1997
A insubmisso, trad. Plnio Augusto Coelho. So Paulo: Imaginrio, 1998
Calendrio da sabedoria, trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999 [Reed. como Pensamentos para
uma vida feliz, Prestgio, 2005]
Dcada de 2000
O diabo e outras histrias, coord. Paulo Bezerra, com O diabo, trad. Beatriz Ricci; Trs mortes, trad. Beatriz
Morabito e Beatriz Ricci; Kholstomr, a histria de um cavalo, trad. Beatriz Morabito e Maira Pinto;
Falso cupom, trad. Beatriz Morabito; Depois do baile, trad. Beatriz Ricci. Coleo Prosa do Mundo.
So Paulo: Cosac Naify, 2000 (direto do russo)
Padre Srgui, in Trs gigantes da novela russa, trad. Pedro Srgio Lozar. Belo Horizonte: Armazm de Ideias,
2000 (direto do russo)
O salto, in Clssicos russos para jovens, trad. Tatiana Belinky. Rio de Janeiro: Thex, 2000 (direto do russo)
Padre Srgio, trad. Beatriz Morabito. Coleo Prosa do Mundo. So Paulo: Cosac Naify, 2001 (direto do
russo)
Onde existe amor, Deus a est, contendo tambm Os trs eremitas, Os dois ancios, De quanta terra precisa o
homem, trad. Victor E. Selin (direto do russo), e Trabalho, morte e enfermidade, trad. urea G. T.
Vasconcelos. Campinas: Verus, 2001
A morte de Ivan Ilitch, trad. Vera Karam. Porto Alegre: l&pm, 2002
O que arte, trad. Bete Torii. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002
Sonata a Kreutzer, trad. Jorge Reis. So Paulo: Planeta DeAgostini, 2003 [licenciada da portuguesa Guimares]
Contos da nova cartilha Primeiro livro de leitura, trad. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Cotia: Ateli
Editorial, 2005 (direto do russo)
Anna Karinina, trad. Rubens Figueiredo. So Paulo: Cosac Naify, 2005 (direto do russo)
Uma histria verdadeira in Contos de mistrio e morte, trad. Joo Armando Nicotti. Coleo Leitura Jovem.
Porto Alegre: Leitura xxi, 2006
Histrias de Bulka, trad. Tatiana Belinky. Coleo Infanto-Juvenil. So Paulo: 34, 2007 (direto do russo)
O cadver vivo, trad. Elena Vssina e Graziela Schneider. Coleo Grandes Dramaturgos. So Paulo: Peixoto
Neto, 2007 (direto do russo)
A felicidade conjugal / O diabo, trad. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre: l&pm, 2008 (direto
do russo)
Cristianismo e anarquismo, com Sobre a Revoluo, Os acontecimentos atuais na Rssia, Carta a Nicolau ii,
A importncia de se negar ao servio militar e Aos homens polticos, trad. Railton S. Guedes. Rio de
Janeiro: Achiam, 2008
O prisioneiro do Cucaso in Os melhores contos de aventura, org. Flvio M. da Costa, trad. Rubens Figueiredo.
Rio de Janeiro: Agir, 2008 (direto do russo)
De quanta terra precisa o homem?, trad. CrcamO. So Paulo: Companhia das Letrinhas, 2009
Fbulas, trad. Tatiana Mariz e Ana Sofia Mariz. So Paulo: Companhia das Letrinhas, 2009
Dcada de 2010
Ressurreio, trad. Rubens Figueiredo. So Paulo: Cosac Naify, 2010 (direto do russo)
A insubmisso e outros escritos, contendo tambm Aos polticos e Sobre a Revoluo, trad. Plnio Augusto
Coelho. Cotia: Ateli Editorial, 2010
Nota falsa, trad. Tatiana Zabanova. Curitiba: Arte & Letra, 2010 (direto do russo)
Guerra e paz, trad. Rubens Figueiredo. So Paulo, Cosac Naify, 2011 (direto do russo)
Os ltimos dias de Tolsti, org. Jay Parini, trad. Anastassia Bytsenko. So Paulo: Penguin/Companhia, 2011
Patriotismo e governo: e outros escritos, trad. Plnio Augusto Coelho. So Paulo: Imaginrio : Expresso & Arte, 2011
Contos de Sebastopol, trad. Sonia Branco. So Paulo: Hedra, 2011 (direto do russo)
Minha religio, trad. Dinah de Abreu Azevedo. So Paulo: A Girafa, 2011
Depois do baile in Nova antologia do conto russo (1792-1998), org. Bruno B. Gomide, trad. Graziela Schneider.
Coleo Leste. So Paulo: 34, 2011 (direto do russo)
Os cossacos, trad. Sonia Branco. So Paulo: Iluminuras, 2012 [Livros da Matriz, 2012] (direto do russo)
Os cossacos, trad. Klara Gourianova. So Paulo: Amarilys, 2012 (direto do russo)
Infncia, adolescncia, juventude, trad. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre: l&pm, 2013 (direto
do russo)
[1]. Povo turcomano que habita algumas regies da Rssia. (n. do t.)
[2]. A samizdat era uma prtica russa de difuso e publicao de ideias de matiz poltico, subversivo e
revolucionrio, na forma de material impresso copiado, que passava de mo em mo, fugindo assim
censura. (n. do t.)
[3] Em russo, lutadores do esprito. (n. do t.)
[4]. Conjunto de trs cavalos atrelados a um tren ou a uma carruagem; a forma aportuguesada troica. (n. do
t.)
[5]. 9 de setembro, pelo calendrio atual. (n. do t.)
[6]. Do russo boyrin, senhor feudal da aristocracia da Rssia e dos pases eslavos cujo ttulo, na hierarquia
nobilirquica, era inferior apenas ao dos prncipes reinantes. (n. do t.)
[7]. Antiga festa religiosa eslava celebrada durante a ltima semana antes da Grande Quaresma a stima
semana antes da Pscoa e que marca a despedida do inverno e a esperana do calor e da renovao
primaveril da natureza. (n. do t.)
[8]. O elemento essencial da Maslenitsa so as bliny, panquecas russas que popularmente simbolizam o sol.
Redondas e douradas, so feitas a partir de alimentos ricos permitidos durante essa semana pela tradio
ortodoxa: manteiga, ovos e leite. (n. do t.)
[9]. A kasha um mingau de cereais cozidos na gua ou no leite. (n. do t.)
[10]. Cf. Romanos 9:29 E como antes disse Isaas: Se o Senhor dos Exrcitos nos no deixara descendncia/
Teramos nos tornado como Sodoma, e teramos sido feitos como Gomorra. (n. do t.)
[11]. Vila do tsar, antiga residncia da famlia imperial russa. (n. do t.)
[12]. Pedro 2:22: Deste modo sobreveio-lhes o que por um verdadeiro provrbio se diz: O co voltou ao seu
prprio vmito, e a porca lavada ao espojadouro de lama. (n. do t.)
[13]. Clssicos de grande sucesso na histria das bicicletas, as penny farthing (como so conhecidas pelos ingleses)
ou grand bi (como so conhecidas pelos franceses) so modelos de velocpedes cuja caracterstica o sistema
de trao movido a pedal, que fixo na roda dianteira portanto, sem correntes. (n. do t.)
[14]. Vestido longo sem mangas, de corte reto e sem cintura marcada. (n. do t.)
[15]. Para um bom panorama da recepo e presena de Tolsti no Brasil, ver Bruno Barretto Gomide, Da
estepe caatinga O romance russo no Brasil (1887-1936). So Paulo: Edusp, 2012.
[16]. A editora H. Antunes costumava publicar tradues portuguesas, sem dar as referncias. No
impossvel que seja este o caso.
[17]. A Irmos Pongetti, nos anos 1940, recorreu com alguma frequncia ao uso no autorizado de tradues
publicadas por outras editoras, procedendo a algumas pequenas modificaes nas pginas iniciais.
[18]. Essa antologia passou para o catlogo da Tecnoprint/Ediouro nos anos 1960, sendo reeditada com ttulos
variados, e atualmente como Contos russos: os clssicos. A morte de Ivan Ilitch tem sido reeditada como
volume independente pela Tecnoprint/Ediouro desde 1963 [Biblioteca Folha, 1998].
[19]. As tradues publicadas pelo Clube do Livro eram, em sua maioria, tomadas a outras editoras,
republicadas sem meno ao tradutor ou, muitas vezes, apresentadas como traduo especial de Jos Maria
Machado.
[20]. A Cultrix, em sua coleo de Maravilhas do conto universal, tambm tinha o costume de utilizar tradues
publicadas por outras editoras sem crditos nem licena de uso. Na maioria dos casos, eram tradues de
origem portuguesa.
[21]. Natlia Nunes e Joo Gaspar Simes so tradutores portugueses, os demais brasileiros. Ressurreio (nn)
saiu pela Bruguera, Coleo Livro Amigo, c.1968; Ana Karnina (jgs), pela Abril Cultural em 1971, 1979
e 1982; pelo Crculo do Livro em 1973, 1987 e 1994; Guerra e Paz (jgs), pela l&pm em 2007.
[22]. Mesmo sendo traduo portuguesa, cabe sua incluso por ser uma edio especificamente destinada ao
pblico brasileiro (reed. at 1988).