Familia Parentalidade e Epoca

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE EDUCAO

DANIELA WALDMAN TEPERMAN

FAMLIA, PARENTALIDADE E POCA:


UM NS QUE NO EXISTE

SO PAULO
2012

DANIELA WALDMAN TEPERMAN

FAMLIA, PARENTALIDADE E POCA:


UM NS QUE NO EXISTE

Tese apresentada ao Programa de


Ps-Graduao da Faculdade de Educao
da Universidade de So Paulo, para
obteno do ttulo de Doutor em Educao.
rea de Concentrao:
Psicologia e Educao
Orientador: Prof. Dr. Rinaldo Voltolini

So Paulo
2012

Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

156.42
T314f

Teperman, Daniela Waldman


Famlia, parentalidade e poca: um ns que no existe / Daniela
Waldman Teperman ; orientao Rinaldo Voltolini. So Paulo : s.n.,
2012.
198 p.
Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Educao.
rea de Concentrao : Psicologia e Educao) Faculdade de
Educao da Universidade de So Paulo)

.
1. Psicanlise 2. Famlia 3. Parentalidade 4. Sujeito 5.
Contemporaneidade 6. Educao I. Voltolini, Rinaldo, orient.

DANIELA WALDMAN TEPERMAN

FAMLIA, PARENTALIDADE E POCA:


UM NS QUE NO EXISTE

Tese apresentada ao Programa de


Ps-Graduao da Faculdade de Educao
da Universidade de So Paulo, para
obteno do ttulo de Doutor em Educao.
rea de Concentrao: Psicologia e Educao
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________ Instituio:_____________
Assinatura: _____________________________________
Prof. Dr. _______________________________________ Instituio:_____________
Assinatura: _____________________________________
Prof. Dr. _______________________________________ Instituio:_____________
Assinatura: _____________________________________
Prof. Dr. _______________________________________ Instituio:_____________
Assinatura: _____________________________________
Prof. Dr. _______________________________________ Instituio:_____________
Assinatura: _____________________________________

SO PAULO
2012

AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Rinaldo Voltolini, pela confiana, pelo respeito e pela tranqilidade,
fundamentais para que eu pudesse suportar o tempo - to demorado! - de compreender,
e para que os achados surgissem nesta pesquisa.
A Caty Koltai, professora querida desde os tempos da graduao, pelas contribuies
preciosas e instigantes no exame de qualificao, decisivas para os destinos desta
pesquisa.
A querida Leda Bernardino, que testemunha um modo possvel de pensar a clnica e de
circular entre os psicanalistas e entre os profissionais de outras reas; amiga desde o
mestrado, leitora delicada e dedicada no exame de qualificao.
A Ins Loureiro, pela disponibilidade, pela generosidade e pelo cuidado
impressionantes na leitura e nos comentrios deste trabalho e por me fazer lembrar
porque escolhi a pesquisa acadmica.
A minha me, Marta, de quem herdei, no sem relutar um pouco, algumas inquietaes
e o especial interesse por aqueles que tm um brilho no olhar.
A meu pai, Rogrio, que faz tanta diferena na minha vida, que me acompanha sempre
de perto.
A Luisa, que me mostrou desde os primeiros dias de vida como uma filha pode ser to
amada e to diferente da me, e que tem me mostrado que possvel inventar a prpria
famlia de outro jeito, do seu jeito, que eu respeito e admiro.
Aos meus irmos Andr, Fernando, Ricardo e Julia, to queridos! A Maria Helena, que
faz parte da minha famlia desde sempre. A Dani, minha cunhada querida, Ricardo, meu
primeiro sobrinho, e Dudu, o mais novo integrante da famlia. E a Bia, cunhada-parceira
em tantos momentos.
A Renata Petri, pela amizade preciosa, construda aos poucos, fortalecida ao longo dos
anos.
A Luciana Pires, amiga-irm, que parte da minha histria, por tantos bons momentos
partilhados.
A Luciana Annunziata Lopes, pela amizade de uma vida inteira.
A Ilana Katz Fragelli amiga querida, comadre, e que, junto com Guto, Miguel e Deco,
tambm minha famlia.
A Dbora Valentini, por sua admirvel integridade, por seu modo de mostrar-se amiga.
A Heloisa Prado, por me mostrar com tanta preciso como posio tica e estilo podem
andar to bem juntos.
5

A Domingos Infante, pela transmisso viva, pela generosidade ao partilhar suas


construes fundamentadas na pesquisa e na clnica e por marcar sempre os riscos das
generalizaes na clnica psicanaltica, recomendao que me acompanha sempre e que
procurei seguir risca nesta pesquisa.
A Ethel Akkerman, pela amizade, pelo carinho e por acompanhar-me de perto no dia a
dia e na confeco deste trabalho. E s minhas queridas parceiras de consultrio Maria
Elisa Pessoa Labaki e Margaret Cross Silva.
Aos colegas do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Psicanlise com Crianas: Adriana
Barbosa Pereira, Alexandre de Bellis, Carina Faria, Ceclia Santana, Domingos Infante,
Ilana Katz Fragelli, Julieta Jerusalinky, Marcia Funabashi, Rejane Rubino, Renata
Guarido e Renata Petri, pela experincia clnica compartilhada, pelas discusses
instigantes e pelos comentrios preciosos.
A Tatiana Mazzarella, com quem partilho inquietaes na clnica e na transmisso.
A Suzana Fontenelle, amiga carinhosa, parceira em caminhadas sempre animadas por
discusses temticas.
A Bel Abreu, pela ateno, pelo cuidado e pela companhia durante o doutorado.
A Maria Luiza Bonanata da Rocha pela reviso criteriosa e pelo cuidado de no
modificar meu estilo de escrita.
A CAPES, que financiou esta pesquisa.

Todas as famlias felizes so parecidas;


as infelizes o so cada uma sua maneira
Leon Tolstoi.

RESUMO
TEPERMAN, D. W. Famlia, parentalidade e poca: um ns que no existe. Tese
(doutorado). Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

Parentalidade um neologismo que vem ganhando consistncia nos ltimos anos e


que tende a substituir o termo famlia. possvel localizar essa preocupao em
diversos autores, de diferentes disciplinas, extraindo da possvel substituio diferentes
consequncias. Haveria mesmo nesse novo termo e, nos discursos que lhe so
subjacentes, essa pretenso? Sustentar-se-ia tal pretenso na leitura de que a famlia
vive uma crise sem precedentes na atualidade? A parentalidade implicaria um risco para
a transmisso familiar? Foi a partir desses interrogantes que iniciei esta pesquisa. O
incmodo inicial foi provocado pelo entendimento de que o novo termo seria
indissocivel da interveno do especialista no campo da famlia e pela desconfiana de
que fincaria suas bases na indiferenciao e na assepsia na transmisso familiar. A
investigao das origens desse neologismo, dos discursos que lhe so subjacentes e das
prticas que autoriza permitiu identificar trs vertentes por meio das quais ele
comparece na atualidade: como modo de nomear o parent, como modo de dar conta das
mudanas no campo da famlia e sob a forma de um discurso pblico, veiculado pelo
especialista da famlia. Analisar separadamente cada uma dessas vertentes, ler a
consistncia que o termo parentalidade vem ganhando na atualidade como o que
sintomtico desta poca, e circunscrever a famlia em sua funo de resduo reduzida s condies mnimas necessrias para que haja sujeito -, foi fundamental para
estabelecer as bases para as articulaes possveis entre famlia, parentalidade e poca.
O percurso realizado permite afirmar que a famlia como resduo, ancorada nas funes
materna e paterna e nos modos como pai e me se conformam em semblantes, est do
lado da estrutura: necessria, mas pendente do que da ordem da contingncia, ou seja,
descompletada pelos traos, posies e valores que prevalecem em determinada poca
no lao social e pela posio singular dos sujeitos implicados em cada uma dessas
funes. A psicanlise, ao bascular entre o universal e o homogneo que os discursos
sobre a parentalidade veiculam e a singularidade inerente noo de famlia como
resduo, faz comparecer a impossibilidade de recobrimento da falta (condensada no
aforismo lacaniano no h relao sexual). De modo que ao PARA TODOS inerente
8

aos discursos sobre a parentalidade, psicanlise cabe responder reenviando cada


famlia sua singularidade. Contudo, o impasse se produz quando a parentalidade
apresentada como necessariamente aniquiladora da famlia em sua condio de
resduo, implicando um risco para as crianas, para os filhos da parentalidade. O
encontro com o livro O dia em que meu pai se calou, de Virginie Linhart principalmente o espanto diante do enunciado as crianas de 68 -, permitiu que esta
investigao se distanciasse de modos genricos ou universalizantes de compreenso,
aos quais o tema pesquisado revelou-se particularmente sensvel. Habilitou tambm um
posicionamento diante dos autores que, ancorados nas mudanas no mbito da famlia,
prenunciam um futuro dramtico para o sujeito. Ao longo desta pesquisa, penso ter
reunido elementos para questionar a validade de enunciados como os filhos da
parentalidade e, um dos achados em direo ao qual o espanto me precipitou, que
uma poca no conforma um ns com os sujeitos que dela fazem parte. Ao exceder o
ns no modo de gozo singular do qual cada pai e cada me do testemunho na
transmisso, a famlia tende a continuar abrindo furos na consistncia e na assepsia
previstas nos discursos normativos e ortopdicos sobre a parentalidade.
Palavras-chave: psicanlise, famlia, parentalidade, sujeito, contemporaneidade,
educao

ABSTRACT
TEPERMAN, D. W. Family, parenting and age: an us that does not exist. Thesis
(doctorate). Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

Parenting is a neologism that has been achieving consistency over the last years and
that tends to replace the term family. It is possible to identify this concern in various
authors, from different disciplines, extracting different consequences from the possible
replacement of the term. Would there actually be such an aspiration in this new term
and in its underlying speeches? Would such an aspiration be sustainable when one
understands that, at the present times, the family experiences an unprecedented crisis?
Would parenting implicate a risk for the familial transmission? Questioning such issues
was the starting point from which I initiated this research. The initial unease was
provoked by the understanding that the new term would be inseparable from the
intervention of the specialist in the sphere of the family and by the mistrust that it
would secure its basis in the lack of differentiation and asepsis in the familial
transmission. The investigation of the origins of this neologism, of its underlying
speeches and of the practices that it authorizes has enabled the identification of three
streams through which it appears today: how to nominate the parent, as a means to
handle the changes in the sphere of the family and shaped as a public speech conveyed
by the family specialist. To evaluate each of these aspects individually, to recognize the
consistency that the term parenting continues to achieve in current times as
symptomatic of todays scenario, and to circumscribe the family in its function of
residue - reduced to the minimum necessary conditions for existence of subject - was
fundamental in order to establish the basis for the possible articulations among family,
parenting and age. The roadmap that was accomplished allow us to state that the family
as residue, grounded in the motherhood and fatherhood functions and in the manners by
which father and mother are shaped as semblants, is side by side with the structure:
needed, however dependent on what relates to contingency, that is, it is uncompleted by
the features, positions and values that prevail in social speech in the social ties in a
certain age, and by the singular position of the subjects implicated in each of these
functions. Psychoanalysis, as it tilts between the universal and the homogeneous that are
10

driven by the speeches about parenting and the singularity that is inherent to the notion
of family as residue, report the impossibility of covering the lack (condensed in the
lacanian aphorism there is no sexual relationship). In such a way that FOR EVERY
ONE inherent to the speeches about parenting, the role of psychoanalysis is to respond
by resending each family to its singularity. Nevertheless, a deadlock is generated when
parenting is presented necessarily annihilating the family in its condition of residue,
implicating in risk for the children, for the sons of parenting. The encounter with the
book The Day in which my father went silent, from Virginie Linhart - mainly the
amazement in the face of the consistency of the statement the children from 68 -, has
enabled this investigation to distance from generic or universalized manners of
comprehension, to which the researched theme has proved to be particularly sensitive. It
has also enabled a positioning in the face of the authors, who, grounded in the sphere of
the family, foreshadow a dramatic future for the subject. Throughout this research I
believe I have gathered the elements to question the validity of statements such as the
sons of parenting, and one of the findings to which direction I was led by the
amazement is that an age does not shape an us with the subjects that are part of them.
As it exceeds the us in the singular jouissance from which each father and each
mother provide their testimony in the transmission, the family is inclined to continue to
generate leaks in the consistency and in the asepsis foreseen in the normative and
orthopedic speeches about parenting.
Key words: psychoanalysis, family, parenting, subject, contemporaneousness,
education.

11

SUMRIO

INTRODUO.....................................................................................................................14
CAPTULO 1 A FAMLIA NA PSICANLISE DE ORIENTAO LACANIANA.....19
1.1 - UMA PRIMEIRA FORMULAO SOBRE A FAMLIA: O LACAN DE 1938............................20
1.2 FAMLIA, ANTROPOLOGIA E PSICANLISE....................................................................26
1.3 - A INFLUNCIA DE DURKHEIM ......................................................................................32
1. 4 - A TESE DO DECLNIO DA IMAGO PATERNA E SUAS CONSEQNCIAS.............................37
1.5 - DO PAI DE FAMLIA AO PAI COMO RESDUO: AS DECLINAES DO PAI EM LACAN .........44
1.5.1- A QUESTO DO PAI: UM TERRENO MOVEDIO ............................................................45
1.5.2 AS DECLINAES DO PAI EM LACAN ........................................................................46
1.5.3 - O PAI DE FREUD UM PAI MORTO .............................................................................49
1.5.4 - O NOME-DO-PAI.......................................................................................................53
1.5.5- MAIS ALM DO NOME-DO-PAI ...................................................................................58
1.6 OS COMPLEXOS FAMILIARES ......................................................................................62
1.7 - A FAMLIA COMO RESDUO ..........................................................................................68

CAPTULO 2 MUDANAS NO CONTEXTO HISTRICO, MUDANAS NA


FAMLIA ..............................................................................................................................73
2.1 DA CONJUGALIDADE PARENTALIDADE .....................................................................77
2.2 AS NOVAS CONFIGURAES FAMILIARES ....................................................................82
2.3 POCA: UM RECORTE ESPECFICO NA HISTRIA ...........................................................91
2. 4 - DO MAL-ESTAR NA CIVILIZAO AO MAL-ESTAR NA ATUALIDADE ..............................98

CAPTULO 3 - PARENTALIDADE: UM NEOLOGISMO QUE GANHA


CONSISTNCIA NA ATUALIDADE...............................................................................112
3.1 - A PARENTALIDADE COMO UM MEIO DE NOMEAR O PARENT OU AQUELE QUE OCUPA O
LUGAR ..............................................................................................................................113

3.2 - A PARENTALIDADE COMO UM MEIO DE DAR CONTA DAS TRANSFORMAES NO CAMPO


DA FAMLIA.......................................................................................................................116

12

3.3 - A PARENTALIDADE COMO UM DISCURSO DE ORDEM PBLICA ....................................120


3.3.1 - AS ORIGENS DAS POLTICAS PBLICAS DE APOIO PARENTALIDADE NA FRANA ....122
3.3.2 O ESPECIALISTA DA FAMLIA..................................................................................126
3.3.3 - WINNICOTT E O APOIO NEGATIVO AOS PAIS ............................................................133
3.3.4 - FRANOISE DOLTO E A MAISON VERTE....................................................................139
3.4 - A PARENTALIDADE COMO O SINTOMTICO DESTA POCA ..........................................147

CAPTULO 4 UM NS QUE NO EXISTE..............................................................156


4.1 A PESQUISA DE VIRGINIE ..........................................................................................158
4.2 - AS CRIANAS DE 68 ...............................................................................................166
4.3 O SILNCIO DO PAI ....................................................................................................175

CAPTULO 5 CONSIDERAES FINAIS: A PARENTALIDADE PARA TODOS,


NO SEM A FAMLIA DE CADA UM ............................................................................180
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...............................................................................186

13

Introduo

Parentalidade um neologismo que vem ganhando consistncia nos ltimos anos e


que tende a substituir o termo famlia. possvel localizar essa preocupao em
diversos autores, de diferentes disciplinas, extraindo da possvel substituio diferentes
consequncias. Haveria mesmo nesse novo termo e nos discursos que lhe so
subjacentes essa pretenso? Sustentar-se-ia tal pretenso na leitura de que a famlia vive
uma crise sem precedentes na atualidade? A parentalidade implicaria em um risco para
a transmisso familiar? Foi a partir desses interrogantes que iniciei esta pesquisa.
O termo parentalidade vem chamando a minha ateno h algum tempo. O incmodo
inicial foi provocado pelo entendimento que ele seria indissocivel da interveno do
especialista no campo da famlia (dando corpo a ofertas como as Escolas para Pais1),
pela impreciso com a qual era utilizado por psiclogos e psicanalistas e pela
desconfiana de que fincaria suas bases na indiferenciao e na assepsia na transmisso
familiar.
Eu vislumbrava que o uso crescente do termo parentalidade poderia ser revelador do
modo pelo qual o mal-estar comparece na atualidade ao se particularizar no campo da
famlia. Mas bem, se apresentaria a parentalidade como uma soluo para o mal-estar
ou seria ela mesma a causadora deste? Interrogante que me levou ao estudo da famlia e
das novas configuraes que esta vem adquirindo na atualidade.
O estudo das publicaes dedicadas s novas configuraes familiares mostra que esse
um tema extremamente espinhoso, sobretudo porque envolve discusses que tendem
normalizao e indiscriminao entre dados de pesquisa, formulaes tericas e
posicionamentos pessoais. Permite tambm observar que esse tema particularmente
sensvel a generalizaes, que empobrecem a discusso e autorizam enunciados como
1

Em reportagem de 12 de fevereiro de 2009, o Caderno Equilbrio da Folha de So Paulo divulgou a


abertura na Espanha de uma Universidade de Pais, que pretende ensinar adultos a educar seus filhos e
cuja proposta monitorar os pais desde o ltimo trimestre de gravidez at os 16 anos da criana, por
meio de aulas organizadas por especialistas e fundamentadas em princpios da pedagogia e da
psicologia.

14

esses pais, essas famlias, as famlias de hoje, etc. Assim sendo, uma preocupao
que estar na base dessa investigao a de como abordar tal temtica sem recair em
enunciados como esses. No captulo 2, alm de realizar um levantamento dos estudos
sobre a famlia na atualidade, procurarei destacar como os psicanalistas se situam diante
da demanda, cada vez mais insistente, de marcar uma posio diante das novas formas
pelas quais a famlia tem reivindicado legitimidade.
Ao deter-me na possvel tendncia de o termo parentalidade vir a substituir o termo
famlia, procurarei isolar a famlia em sua condio mnima para a transmisso dos
elementos necessrios para que haja sujeito, o que o leitor encontrar traduzido nos
termos de a famlia como resduo.
a particularidade do modo como a psicanlise de orientao lacaniana toma a famlia
como objeto que permite localizar a sua funo de resduo, assim como afirmar que a
famlia resiste, mesmo que se apresente na atualidade por meio de novas configuraes.
Ao longo do captulo 1, procurarei circunscrever a famlia em sua funo de resduo.
Com isso, pretendo discriminar a psicanlise dos dispositivos de normalizao e separla das disciplinas que preconizam que determinada forma de famlia mais adequada
para a educao das crianas. Ressaltarei tambm que no existe uma forma de
organizao familiar ideal que possa garantir as condies necessrias para a
constituio do sujeito e que o modelo de famlia nuclear nunca foi sinnimo de
normalidade.
O percurso realizado ao circunscrever a famlia em sua funo de resduo visar
esvaziar a perspectiva de que existiria um bom modo de ser pai ou de ser me, e, mais
que isso, destacar que a diferena sexual, assim como as faltas ou imperfeies, so
imprescindveis na transmisso familiar. Contudo, a parentalidade parece comportar um
ideal: apresenta-se investida por pais competentes, implicados em um modo de vida
voltado educao das crianas e despojado dos dramas inerentes famlia. O
especialista, ao oferecer-se como indispensvel e dispor de pautas para o exerccio das
funes parentais, incute nos pais na idia de que existe um modo, um bom modo, de
TODOS eles se converterem em bons pais. Ser que a crescente consistncia que o
neologismo parentalidade vem adquirindo na atualidade poder perturbar a

15

transmisso familiar? Ser que a famlia, ao assumir-se como uma parentalidade,


finalmente se ver livre dos excessos e das faltas inerentes transmisso familiar?
Diante desse cenrio, dedicarei alguns pargrafos a dois psicanalistas que sempre me
serviram de norte no que tange interferncia do especialista no campo da famlia.
Winnicott j defendia um apoio negativo aos pais na dcada de 60, posicionando-se
vigorosamente contra a interferncia no campo da famlia. Tendo se disposto a se dirigir
aos pais em programas de rdio e em seus escritos, o psicanalista esteve sempre atento
aos perigos implicados nesse tipo de transmisso. Franoise Dolto tambm participou
de programas de rdio, e tambm se mostrava advertida em relao aos riscos de dirigirse ao grande pblico, atividade que a levou a receber inmeras crticas de seus pares.
Mas Dolto comparece nessa pesquisa mais especificamente pela criao da Maison
Verte, instituio de acolhimento a pais e bebs ou crianas pequenas, sustentada na
psicanlise e contempornea ao incremento das polticas de apoio parentalidade na
Frana. Tendo se recusado a participar das avaliaes promovidas pelas agncias
financiadoras e a submeter-se ao controle pelo poder pblico, a Maison Verte
distanciou-se do para todos igual inevitvel em qualquer poltica pblica e, ao mesmo
tempo, permaneceu fiel a seu projeto inicial, mantendo o lugar para a criana como
sujeito do desejo e para a inveno na interveno sustentada no discurso psicanaltico.
Ao atualizar o posicionamento de Winnicott e de Dolto em relao interveno do
especialista no campo da famlia e aos discursos normativos e ortopdicos que este
muitas vezes veicula, espero esclarecer que, apesar da demanda dos pais por certezas na
educao de seus filhos, demanda que reconheo como legtima, cabe questionar o
modo como o psicanalista se posiciona diante dessa demanda. (Vale marcar que muitas
vezes o prprio especialista que gera, ou incrementa tal demanda, a partir das ofertas
que institui atribuindo-lhes o carter de indispensveis para o bom desempenho das
competncias parentais). Fao referncia especificamente ao psicanalista porque ele no
se confunde pelo menos no necessariamente com a figura do especialista, e porque
a criana encontra na psicanlise um meio eficaz para lutar contra os efeitos nefastos
do discurso que domina o campo social contemporneo, esse misto de capitalismo e de
cincia [...] (SAURET, 1998, p. 44). Se o psicanalista no escolhe o lugar em que se
impe o pedido social - lugar em que demandado - pode sim escolher a sua resposta.

16

Em relao a esse ponto, Sauret (1998) lembra duas observaes de Lacan. A primeira
um convite a examinar as instituies que recebem crianas, de modo a localizar a
forma pela qual o campo social entende tratar o sujeito.
A segunda uma denncia dos prprios psicanalistas por, no apenas
no terem sabido impor a concepo do sujeito que decorre da
descoberta freudiana, mas ainda por se terem feito os cmplices de
uma psicologizao, e at mesmo de uma mitologizao dos
indivduos, que entrega estes ltimos de mos e ps atados ao
tratamento a que o campo social entende submet-los (p. 61).

Ao situar a famlia como resduo do lado da estrutura e ao ler a parentalidade como um


fenmeno atual - ou como o sintomtico desta poca conforme proporei no captulo 3 do lado da histria torna-se imprescindvel formular as articulaes possveis entre
estrutura e histria. Procurarei investir nessa articulao de forma cuidadosa, mas no
exaustiva, valendo-me do modo a que Lacan sempre esteve atento, na tentativa de isolar
o que da ordem da estrutura, para tambm inscrever ali a histria do sujeito,
submetendo a primeira prova com a vivacidade da clnica. Para realizar essa tarefa
recorrerei a outros autores que retomam o texto de Lacan e lhe acrescentam novos
alinhavos.
Tomando a recomendao de Lacan de que o psicanalista deve estar altura de sua
poca, movida pelo mal-estar diante da insistncia do termo parentalidade nos diversos
discursos sobre a criana e sobre a famlia, senti-me convocada a localizar o contexto e
as circunstncias nas quais esse termo vem encontrando um terreno frtil. No captulo 3
o leitor encontrar uma investigao sobre as origens do termo parentalidade e sobre
cada uma das trs vertentes por meio das quais esse neologismo comparece na
atualidade: como modo de nomear o parent, em um discurso psicolgico/psicanaltico;
como modo de dar conta das mudanas no campo da famlia, sejam elas produzidas
pelas mudanas nos costumes (famlias monoparentais, homoparentais, pluriparentais)
e/ou pela procriao medicamente assistida, em um discurso social/jurdico, e sob a
forma de um discurso pblico, veiculado pelo especialista da famlia, ou pelo
especialista da subjetividade, conforme o estudo realizado por Volpe (2011).

17

importante destacar que essas vertentes e os discursos que ensejam se influenciam


mutuamente.
Para avanar nessa pesquisa e me separar das confuses e imprecises que identifico em
muitos estudos sobre o termo parentalidade, tratarei separadamente cada uma dessas
vertentes. Acredito que tal discriminao faz falta nas leituras realizadas por alguns dos
autores que se ocupam desse tema. Ao longo da pesquisa, tratarei mais detidamente da
parentalidade como um modo de reconhecer e legitimar as novas formas de famlia no
campo jurdico e da parentalidade como um discurso pblico, que traduzo como um
discurso normativo e ortopdico. Nas referncias parentalidade como um modo de
sutura da falta prevalente na atualidade, ou seja, como o que sintomtico nesta poca,
avalio que esta discriminao no ser necessria.
Iniciei esta pesquisa mobilizada pelo mal-estar que me causava a consistncia crescente
dos discursos sobre a parentalidade no campo social, mais especificamente no terreno
da educao e da psicologia. A investigao das articulaes possveis entre famlia e
parentalidade mostra que o impasse se produz quando a parentalidade apresentada
como necessariamente aniquiladora da famlia em sua condio de resduo, implicando
um risco para as crianas, para os filhos da parentalidade. O encontro com o livro O
dia em que meu pai se calou, de Virginie Linhart (descrito no captulo 4), e o espanto
diante da consistncia do enunciado as crianas de 68 abrem brechas para evitar o
risco de recair em modos genricos ou universalizantes de compreenso aos quais esse
tema particularmente sensvel. Permite tambm evitar a possvel identificao com os
autores que, ancorados nas mudanas no campo da famlia, prenunciam um futuro
dramtico

para

sujeito.

18

Captulo 1 A famlia na psicanlise de orientao lacaniana


o sujeito unicamente responsvel pelo que ele faz de seus
determinantes (SAURET, 1998, p. 30)

A famlia reconhecidamente objeto de estudo da sociologia, da antropologia e, cada


vez mais, do campo jurdico, devido demanda pela regulamentao e pelo
reconhecimento das novas e variadas configuraes familiares que tm se apresentado
na atualidade. Neste captulo, examinarei o particular recorte que a psicanlise de
orientao lacaniana realiza ao debruar-se sobre a famlia, e, para estabelecer o que
uma famlia na orientao lacaniana ser preciso retornar a um texto precursor de
Lacan, traduzido inicialmente como A famlia e depois como Os Complexos Familiares
na formao do indivduo. Veremos que o pensamento de Durkheim influenciou Lacan
naquele tempo o texto data de 1938 e procurarei destacar o que h nele de
extremamente atual, malgrado as crticas de familiarista rendidas a seu autor. Esse texto
tambm deu margem - ao confundir o pai de famlia com a funo paterna - exaustiva
discusso em torno do declnio da imago paterna, que ainda persiste e referida ao
ensino de Lacan, apesar do distanciamento do psicanalista, ao longo do seu ensino,
dessa perspectiva inicial. Tal temtica foi retomada por Lacan a partir de 1953 quando
se dedicou a explorar o movedio para o qual a questo do pai pareceu arrastar os
psicanalistas.
Ao debruar-se sobre a famlia, a psicanlise de orientao lacaniana procura isolar sua
condio de resduo, ou seja, a condio mnima para a transmisso dos elementos
necessrios para que haja sujeito. Trata-se da famlia reduzida ao que irredutvel na
transmisso. com ela que a psicanlise de orientao lacaniana opera e que, veremos
ao longo deste trabalho, habilita um posicionamento diante da consistncia que os
discursos sobre a parentalidade vm ganhando na atualidade.

19

1.1 - Uma primeira formulao sobre a famlia: o Lacan de 1938


Diversos autores, entre eles Miller (2007, 1984), Peusner (2009) e Roudinesco (2003),
situam o texto de Lacan intitulado Os complexos familiares na formao do indivduo,
publicado em 1938, como particularmente especial, devido ao modo pelo qual este
responde ao convite para compor a seo sobre Famlia no tomo VIII da Encyclopdie
Franaise (publicada pelo Editorial Larousse, consagrado Vida mental), e pelo que
Lacan j alcana formular, mesmo em um tempo inicial de sua produo escrita.
Ademais, essa publicao tomada como precursora no ensino de Lacan e no oferece
obstculo ao que vir depois (Miller, 1984).
O texto recebeu inicialmente um ttulo falso: A famlia. Miller (1984) pontua que no
possvel compreend-lo se nos pautarmos por este ttulo, lembrando que o texto fazia
parte da Encyclopdie Franaise, cujas principais linhas foram traadas pelo psiclogo
Henri Wallon:
Graas lhe sejam dadas por ter recorrido a Lacan que, na poca, no
era bem uma persona grata para escrever um captulo. Foi Wallon
que organizou os captulos: A famlia, A escola, A profisso.
abusivo considerar que era com a famlia que Lacan se ocupava. O
verdadeiro ttulo do texto completamente diferente: Os complexos
familiares na formao do indivduo (MILLER,1984, p. 2).

O estudo de Os complexos familiares na formao do indivduo central para o


estabelecimento dos fundamentos dessa pesquisa ao permitir destacar e organizar o que
particular psicanlise de orientao lacaniana no que diz respeito famlia,
distinguindo-a das outras disciplinas que se debruam sobre esse campo de
investigao, ainda que conte com as importantes contribuies que advm daquelas
(mais especificamente da sociologia, da antropologia e do direito, como veremos ao
longo deste trabalho).
Lacan interessa-se pela famlia tomando-a como objeto e circunstncia psquica
(1938, p. 19), descarta toda e qualquer possibilidade de restringi-la a um fenmeno
biolgico e introduz a noo de complexo em oposio noo de instinto. Inicia Os
complexos familiares situando a famlia como um grupo natural de indivduos unidos
por uma dupla relao biolgica, a gerao e o ambiente, este ltimo constitudo por
20

adultos geradores que asseguram sua funo. J nas primeiras linhas possvel
destacar a especificidade por meio da qual a famlia se institui como um objeto de
estudo para a psicanlise, quando se volta para a famlia, interessa-lhe destacar o lugar
dos adultos geradores que asseguram sua funo. Esse ponto evidenciado em um
escrito posterior, de 1969, to diminuto quanto importante na obra de Lacan, Nota sobre
a criana, no qual circunscreve a funo de resduo sustentada pela famlia conjugal,
responsvel por uma transmisso irredutvel, assegurada pelo exerccio das funes
materna e paterna. Retornarei a esse escrito mais adiante.
Lacan destaca ainda que as relaes que se estabelecem entre gerao e geradores
no interessam psicanlise por seu carter biolgico, mas sim pelo que se apresenta
como continuidade psquica; sua inteno na poca organizar o campo da famlia,
de modo a afastar a concepo psicanaltica da famlia definitivamente do
acontecimento biolgico. Posteriormente, na Nota sobre a criana, Lacan enftico ao
conduzir o leitor a no confundir as funes parentais com a satisfao das
necessidades.
No texto de 1938, j possvel antever que a funo que Lacan atribui aos adultos
geradores no tem um carter biolgico, mas social, cultural. Nesse sentido, Peusner
(2009) e Miller (1984) destacam o termo economia paradoxal dos instintos. O
paradoxal introduzido neste contexto visa a afastar toda e qualquer determinao
biolgica; o termo comportamentos adaptativos de variedade infinita tambm habilita
a mesma leitura, assim como a afirmao de que as instncias culturais dominam as
naturais. Com isso, j no segundo pargrafo do referido escrito, Lacan situa a
especificidade da espcie humana.
Miller (2007) acrescenta o seguinte comentrio acerca do termo economia paradoxal
dos instintos: Os instintos so, na espcie humana, tributrios das modificaes
paradoxais das necessidades (p. 4). No seu comentrio sobre Os Complexos
Familiares, Miller (1984) destaca o modo como Lacan extrai o funcionamento
instintivo da condio do ser falante, centrando-se nos complexos, formas dominadas
pelos fatores culturais, traduzindo da seguinte forma o domnio das instncias culturais
sobre as naturais: O que uma maneira de dizer que, no homem, a lngua, por meio do

21

significante, domina tudo aquilo que natural e que o que se passa na famlia
humana (MILLER, 2007, p. 4).
Nesse ponto, no posso deixar de me deter para comentar uma publicao
absolutamente particular, inteligente e irnica, ela resvala o tempo todo na radicalidade
daquilo que nos separa do mundo instintivo dos animais, pelo modo como, ao falar e
suportar o mal-entendido que este ato implica, uma perda irreparvel se consuma. Tratase do livro em quadrinhos O gato do rabino, de Joann Sfar. Ainda que o livro, como o
ttulo indica, se concentre no judasmo o gato do rabino quer fazer Bar-Mitzvah e
persegue o rabino com insistentes indagaes e questionamentos que justificam esta
demanda , toca naquilo que nos arranca da determinao biolgica: o gato do rabino
engole o papagaio da famlia e comea a falar. Mas o gato do rabino no se contenta em
repetir algumas palavras tolamente, como fazia o papagaio, ele comea a falar. E, ao
falar, torna-se to humano que inclusive sonha: desde que passei a falar, tudo mudou,
tenho pesadelos (SFAR, 2006, p.31). E em suas aventuras junto ao bicho homem,
passa a sentir compaixo:
Desde que passei a falar, virei um bicho esquisito. Eis que sinto
simpatia por esse humano que me desfere pontaps. Enquanto o
achava intransigente e virtuoso, eu o odiava. A partir do momento em
que sei que tem duas caras e hipcrita, que o vejo se debater entre
seus hormnios e suas convices, amo-o (SFAR, 2006, p. 48).

A experincia do gato do rabino leva o leitor a deparar-se com a desnaturao da


natureza: para falar, o homem paga com a necessidade de se separar; ao ganhar a
linguagem, perde a certeza diante da palavra.
A condio humana, ou seja, o que o falar implica, afasta-nos definitivamente de
qualquer determinao instintiva ou biolgica: Logo, so a perda, o vazio que
especificam a condio humana. Em holands, o ttulo da obra de Andr Malraux, A
condio humana foi traduzido por Het menselijke, a falta humana. No se podia
dizer melhor! (LEBRUN, 2008, p. 68).
Voltando ao comentrio sobre os Complexos Familiares, penso que notvel como em
apenas duas pginas o autor localiza a especificidade da psicanlise diante do que se
denomina famlia. Agrupo-a a seguir em dois pontos centrais:
22

- um fenmeno social, cultural, uma instituio no redutvel ao fato biolgico, na qual


as instncias culturais dominam e prevalecem sobre as naturais.
- uma estrutura hierrquica, que prevalece na primeira educao, na represso dos
instintos, na aquisio da lngua materna, desempenhando um papel fundamental na
transmisso da cultura.
Lacan destaca em seu escrito de 1938 o carter singular das relaes sociais
preconizadas pela espcie humana. Nesse ponto, recorro ao Freud de O Mal-estar da
civilizao, texto de 1929, no qual o autor no s frisa o carter singular das relaes
sociais, mas se concentra no mal-estar que elas implicam. Freud (1929) situa trs modos
pelos quais o sofrimento nos ameaa: a partir do prprio corpo, condenado decadncia
e ao aniquilamento; a partir do mundo exterior, capaz de atentar contra ns com foras
destrutveis, onipotentes e implacveis; e a partir das relaes com outros seres
humanos, nas quais constata [...] a insuficincia de nossos mtodos para regular as
relaes humanas na famlia, no Estado e na sociedade (p. 3031). O autor define esta
ltima fonte de sofrimento como a mais dolorosa para a humanidade!
Diante da dor que nos provocam as relaes sociais, Freud formula uma pergunta
crucial: por que as instituies que ns mesmos criamos no representam proteo e
bem-estar para todos? Ao se dedicar a respond-la podemos antever que o psicanalista
comea j a suspeitar de que, se vamos to mal no que diz respeito preveno do
sofrimento, deve ser porque essa estaria referida a uma poro indomvel da natureza,
da natureza de nossa prpria constituio psquica.
No texto citado, Freud apresenta a seguinte definio de cultura: [...] a soma das
produes e instituies que distanciam nossa vida da de nossos antecessores animais e
que servem a dois fins: proteger o homem contra a Natureza e regular as relaes dos
homens entre si (FREUD, 1929, p. 3033, traduo livre).
Um trao caracterstico de uma cultura seria a forma pela qual so reguladas as relaes
entre os homens, ou seja, as relaes sociais que o indivduo estabelece como membro
de uma famlia ou de um Estado. Na base dessa regulao estabelecida pela cultura
assenta a substituio do poder individual pelo da comunidade, de modo que seus

23

membros restringem suas possibilidades de satisfao, enquanto que o indivduo no


reconhecia semelhantes restries (FREUD, 1929).
Vejamos agora a definio de cultura que pode ser extrada do escrito de 1938 de
Lacan: Comportamentos adaptativos de variedade infinita so assim permitidos. Sua
conservao e seu progresso, por dependerem de sua comunicao, so, antes de tudo,
obra coletiva e constituem a cultura (p. 11). Cultura, ento, pode ser definida como a
obra coletiva de conservao e progresso dos comportamentos adaptativos da espcie
humana, pela via do simblico, ainda que no texto Lacan utilize o termo
comunicao.
Em relao a esse pequeno trecho observo que, ao falar em variedade infinita, Lacan
aponta para o fato de que, nas relaes familiares, h lugar para a inveno; parece,
portanto, abrir a possibilidade - ser que inadvertidamente? - de reconhecer uma famlia
independentemente das diferentes configuraes com as quais ela possa se apresentar.
No decorrer desse escrito, conforme marcado anteriormente, Lacan dedica-se a
fundamentar os pontos a partir dos quais a psicanlise se diferencia no que diz respeito
investigao em torno da famlia (um fenmeno cultural e no biolgico):
As formas primitivas da famlia tm os traos essenciais de suas
formas acabadas: autoridade, se no concentrada no tipo patriarcal,
ao menos representada por um conselho, por um matriarcado ou seus
delegados do sexo masculino; modo de parentesco, herana,
sucesso, transmitidos, s vezes distintamente (Rivers), segundo uma
linhagem paterna ou materna. Trata-se a de famlias humanas
devidamente constitudas. Mas, longe de nos mostrarem a pretensa
clula social, veem-se nessas famlias, quanto mais primitivas so,
no apenas um agregado mais amplo de casais biolgicos, mas
sobretudo um parentesco menos conforme aos laos naturais de
consanginidade (LACAN, 1938, p. 14).

Na sequncia, Lacan observa que a famlia primitiva desconhece os laos biolgicos de


parentesco e que, em muitas culturas, o parentesco s reconhecido por meio de ritos
que legitimam os laos de sangue, criando at mesmo laos fictcios. Mesmo nos
sistemas mais primitivos de agrupamento familiar, o sistema simblico cria os vnculos
familiares; dessa maneira, o vnculo familiar simblico por excelncia.

24

No direito romano, a paternidade natural no tem significao, a filiao biolgica no


considerada se no for seguida pela palavra. Assim, o pai pode legitimar um filho
natural, mas tambm pode instituir como herdeiro um estranho:
O pai no , portanto, um pai procriador seno na medida em que
um pai pela fala. E esse lugar atribudo ao verbo tem como efeito ao
mesmo tempo reunir e cindir as duas funes da paternidade (pater e
genitor), a da nomeao e a da transmisso do sangue ou da raa
(ROUDINESCO, 2003, p. 23).

Um aspecto interessante que, em 1938, Lacan define a famlia moderna como um


grupo reduzido, mas nem por isso mais simplificado; ao contrrio, trata-se de uma
contrao da instituio familiar que apresenta uma estrutura profundamente
complexa. Conclui o primeiro captulo apontando para o remanejamento profundo que
conduziu a instituio familiar sua forma atual, e o atribui ao casamento. Neste ponto
reitera a posio adotada por Durkheim de distinguir casamento de famlia, da a
deciso de adotar o termo famlia conjugal. Esse pargrafo se apresenta, no final das
contas, de forma extremamente condensada, deixa entrever a influncia do pensamento
durkheimiano nas formulaes de Lacan, mas no permite calcular sua dimenso. Mais
adiante, examinarei cuidadosamente a aula ministrada por Durkheim acerca da famlia
conjugal com o intuito de situar mais claramente essa influncia.
O valor desse escrito precursor de Lacan acentuado por Miller (1984) da seguinte
maneira:
Tal como praticado nos dias de hoje, o desmame poderia parecer
mais prximo das exigncias da natureza. Justamente aqui, as
referncias antropologia e histria vm, como pea de apoio,
justificar, testemunhar que, na espcie humana, fez-se todo tipo de
coisa com o desmame, que no se encontra nele uma fixidez
comparvel do instinto e que, pelo contrrio, preciso dizer
claramente que se inventaram diversas formas de desmame. Podemos
ver para que servem essas referncias antropologia e histria.
Aqui, servem sempre para demonstrar que no h relao com esse
objeto, no sentido em que Lacan dir mais tarde: no h relao
sexual2. Isso significa que no est escrito no instinto e, desde ento,
2

A noo de relao sinaliza um ajuste perfeito. O aforismo no h relao sexual aponta justamente
para a impossibilidade de conjugar sem resto. Penso que essa formulao aparentemente enigmtica e
provocativa - como costumam ser as formulaes de Lacan - pode e deve ser tratada sem rodeios uma vez
que se declina como estrutural, e por isso, incontornvel, [...] j que uma relao sexual faz falta em
todas as formas de sociedade (LACAN, 1974, p. 13).

25

h lugar para a inveno humana, para a inveno do mundo


simblico, precisamente porque nesse lugar nada est escrito (p.10).

Lacan, em seu escrito de 1938, detalha o segundo ponto que destaquei anteriormente - a
famlia como uma estrutura hierrquica, que prevalece na primeira educao, na
represso dos instintos, na aquisio da lngua materna, desempenhando um papel
fundamental na transmisso da cultura - marcando que outros grupos sociais se ocupam
de aspectos como as tradies espirituais, a manuteno dos ritos e dos costumes, a
conservao das tcnicas e do patrimnio, mas [...] a famlia prevalece na primeira
educao, na represso dos instintos, na aquisio da lngua acertadamente chamada
materna (LACAN, 1938, p.13); acrescenta ainda que a famlia preside os processos
fundamentais do desenvolvimento psquico, ultrapassando, dessa forma, em sua
transmisso, os limites da conscincia.
Continuando no texto de 1938, encontramos a seguinte definio de famlia: [...] rgo
privilegiado desta coao do adulto sobre a criana, coao qual o homem deve uma
etapa original e as bases arcaicas de sua formao moral (p. 12). Lacan toca no ponto
em que a famlia atualiza em seu ncleo uma funo cultural, uma funo civilizatria,
mas ao mesmo tempo abre uma brecha para o entendimento de que o modo como cada
famlia o faz e o modo pelo qual essa transmisso se atualiza em cada sujeito
absolutamente singular. Esses aspectos tornam-se mais evidentes quando o autor
introduz a noo de constelao familiar e podem ser reconhecidos como eixos centrais
para o que, mais adiante, ser formulado em termos da famlia como resduo.
1.2 Famlia, antropologia e psicanlise
Destacar a famlia em sua funo de resduo, ou seja, em sua condio mnima
necessria para que haja sujeito implica arranc-la do contexto das determinaes
biolgicas, mas no fazer o mesmo com suas determinaes culturais. Se Durkheim
influenciou o Lacan de 1938, a partir de 1953 a antropologia de Lvi-Strauss, mais
particularmente seu estudo sobre as estruturas elementares de parentesco, inspirou
fortemente sua produo. Para Lacan, a psicanlise s teria a se beneficiar ao
estabelecer uma equivalncia com os termos da antropologia, sobretudo no que tange ao
incesto e aliana e a troca (LACAN, 1953c). Os encontros da psicanlise lacaniana

26

com a antropologia de Lvi-Strauss foram centrais para alicerar a famlia em sua


condio de estrutura.
Roudinesco (2003) inicia o livro A famlia em desordem destacando a universalidade da
famlia (entendida como o lao que se organiza a partir de um nascimento ou de uma
criana). Para tanto, recorre a Lvi-Strauss, que, em 1956, assinalou apresentar-se a vida
familiar em praticamente todas as sociedades humanas (mesmo aquelas que possuem
hbitos sexuais e educativos diferentes dos nossos). Ao repousar sobre a unio mais ou
menos duradoura e socialmente aprovada entre um homem, uma mulher e seus filhos, a
famlia se institui como um fenmeno universal.
At ento, os antroplogos acreditavam que a famlia surgira recentemente, aps longa e
lenta evoluo. Contudo, no se conhece praticamente nenhuma sociedade na histria
do gnero humano em que a famlia nuclear no tenha desempenhado papel importante,
na imensa maioria dos casos, como grupo residente no mesmo domiclio.
Para estabelecer as propriedades invariantes que serviriam para descrever todas as
famlias, Lvi-Strauss investigou arranjos familiares em diferentes sociedades e
estabeleceu trs pontos: a famlia tem origem no casamento; inclui o marido, a mulher e
os filhos nascidos desta unio, formando um ncleo ao qual outros parentes podem
agregar-se; seus membros esto unidos entre si por laos jurdicos, por direitos e
obrigaes de natureza econmica, religiosa, por uma rede precisa de direitos e
proibies sexuais e por um conjunto varivel e diversificado de sentimentos
(MANDELBAUN, 2008).
Segundo o antroplogo, a universalidade da famlia repousa na concepo naturalista da
diferena dos sexos, o que no coincide com afirmar que a famlia consiste em um
fenmeno biolgico. Para a sua criao so necessrias outras duas famlias que
forneam um homem e uma mulher, sendo necessrias, para sua constituio, a aliana
(casamento) e a filiao. A proibio do incesto rege a aliana e se estabelece como lei
primordial que superpe a cultura natureza.
Diante da pergunta: onde acaba a natureza e onde comea a cultura?, Lvi-Strauss
(2008) observa que h vrios meios de responder, mas todos se mostraram

27

decepcionantes. Entre eles meios, situa a justificativa de que a proibio do incesto


estaria associada a uma medida de proteo, visando defender a espcie dos resultados
nefastos dos casamentos consangneos. Mas essa justificativa de origem recente, no
aparecendo antes do sculo XVI, ou seja, a proibio do incesto no teria se institudo a
partir de sanes naturais.
A exogamia afirma a existncia social de outrem, e s probe o
casamento endgamo para introduzir e prescrever o casamento com
um grupo diferente da famlia biolgica. Certamente no porque
algum perigo biolgico se ligue ao casamento consangneo, mas
porque do casamento exgamo resulta um benefcio social3. (LVISTRAUSS, 2008, p. 521).

Assim sendo, a proibio do incesto no nem puramente de origem cultural nem


puramente de origem natural; constitui o passo fundamental graas ao qual, pelo qual,
mas, sobretudo, no qual se realiza a passagem da natureza cultura. A proibio do
incesto no se exprime sempre em funo das regras de parentesco real, mas tem por
objeto os indivduos que se dirigem uns aos outros empregando certos termos.
E aqui entramos em um terreno importante: o que define o parentesco para LviStrauss?
Entendemos por estruturas elementares do parentesco os sistemas nos
quais a nomenclatura permite determinar imediatamente o crculo dos
parentes e dos aliados, isto , os sistemas que prescrevem o
casamento com um certo tipo de parente. Ou, se preferirmos, os
sistemas que, embora definindo todos os membros do grupo como
parentes, dividem-nos em duas categorias, a dos cnjuges possveis e
a dos cnjuges proibidos (2008, p. 19).

O parentesco determinante para a organizao da unidade familiar num sistema e para


o modo como este se organiza. Vale marcar que no centro das estruturas de parentesco
est o nome, e que Lacan identifica nas denominaes de parentesco, implicando as
regras de aliana e filiao, a possibilidade do reconhecimento das diferenas de sexo e
3

Para os Chukchee, uma m famlia define-se como uma famlia isolada sem irmo e sem primo
(BOGORAS apud LVI-STRAUSS, 2008, p. 526) Lvi-Strauss recorre a esse exemplo para comentar as
respostas s perguntas que Margaret Mead fez aos Arapeshes sobre eventuais infraes s proibies do
casamento: mas como, casar-te com a tua irm, no queres um cunhado?. Com isso o autor localizou as
bases para afirmar que o incesto socialmente absurdo antes de ser moralmente culpvel. A exclamao
incrdula arrancada ao informante: Mas ento no queres ter cunhado? fornece a regra de ouro do estado
da sociedade (LVI-STRAUSS, 2008, p. 526).

28

de gerao (1953c, p. 279). O conceito de parentesco se estabelece, portanto, como um


fenmeno de ordem cultural, no determinado pela biologia.
Cada relao familiar define um certo conjunto de direitos e de deveres, e a ausncia de
relao familiar no define nada. Define a hostilidade. Direitos, privilgios, obrigaes,
tudo determinado pelo parentesco. Um indivduo qualquer deve ser ou um parente real
ou fictcio ou ento um estranho, com o qual no se est ligado por nenhuma
obrigao recproca e que se trata como um virtual inimigo (LVI-STRAUSS, 2008).
sempre um sistema de troca que est na origem das regras do casamento. A regra da
exogamia tende a garantir, pela proibio do casamento nos graus interditos, a
circulao total e contnua das mulheres e suas filhas. A proibio do incesto, dessa
forma, a regra do dom por excelncia. A exogamia faz com que o grupo biolgico no
esteja s, o vnculo de aliana com uma famlia diferente assegura o domnio do social
sobre o biolgico, do cultural sobre o natural.
A proibio do incesto e a exogamia tm a funo de estabelecer, entre os homens, um
vnculo sem o qual no poderiam se elevar acima da organizao biolgica para atingir
a organizao social, viabilizando a comunicao com o outro e a integrao do grupo.
Assim sendo, o casamento que d origem a uma famlia, mas o casamento no um
assunto privado, pois une grupos e famlias; e constitui-se em uma instituio social que
garante aos grupos familiares no se fecharem sobre si.
Lacan, no trecho a seguir, toma de emprstimo as formulaes da antropologia e, em
seu retorno a Freud4, precisa a essncia da troca que estaria na base das relaes
humanas:
essencialmente na ligao sexual, com efeito, e ordenando-a pela
lei das alianas preferenciais e das relaes proibidas que se apoia a
primeira combinatria das trocas de mulheres entre as linhagens
nominais, para desenvolver, numa troca de bens gratuitos e numa
troca de palavras-chaves, o comrcio fundamental e o discurso

Reproduzo a seguir o modo como Lacan traduz seu retorno a Freud, antecipando ao leitor que retomarei
esse tema mais adiante: O sentido de um retorno a Freud um retorno ao sentido de Freud. E o sentido
do que Freud disse pode ser comunicado a qualquer um, porque, mesmo dirigido a todos, cada um estar
interessado e basta uma palavra para fazer senti-lo: a descoberta de Freud questiona a verdade, e no h
ningum que no seja pessoalmente afetado pela verdade (LACAN, 1955, p. 406).

29

concreto que sustentam as sociedades humanas (LACAN, 1998, p.


433).

As idias de Lvi-Strauss e de Freud a respeito da proibio do incesto no so


incompatveis, mas estabelecem diferentes focos. Enquanto o primeiro estabelece o
valor funcional dessa proibio para a preservao e perpetuao dos grupos sociais, o
segundo acentua o valor central da proibio do incesto para a constituio psquica dos
homens.
O antroplogo e o psicanalista tambm atribuem a origem do casamento a necessidades
humanas de diferentes ordens: enquanto o primeiro situa a origem do casamento em
necessidades de ordem econmica, ligadas diviso do trabalho entre os sexos, o
segundo a situa (em Totem e Tabu) no reconhecimento, por parte do homem, de suas
necessidades sexuais e afetivas contnuas e, por parte da mulher, de sua necessidade de
proteo para poder manter junto de si a sua cria (MANDELBAUN, 2008).
Em O mal-estar na civilizao, encontramos mais elementos sobre as hipteses de
Freud acerca do que levou o homem a constituir famlia: sua constituio est vinculada
a certa evoluo sofrida pela necessidade de satisfao genital, fazendo da mulher uma
figura presente e no mais uma inquilina, que se viu obrigada a permanecer, em
interesse da prole, junto ao macho mais forte. De tal maneira, diz Freud, que Eros e
Anank (amor e necessidade) se converteram nos pais da cultura humana. E conclui: no
fcil compreender como esta cultura poderia deixar de fazer felizes os seus membros.
Mais adiante, retomarei este mal-estar que, inicialmente, pareceu a Freud descabido e
paradoxal.
Se a psicanlise e a antropologia, ao deter-se sobre o mesmo objeto - a famlia recortam-no a partir de perspectivas diferentes, ao mesmo tempo possvel localizar um
parentesco entre elas na posio anloga que assumem em relao ao saber moderno,
quando encontramos na antropologia o combate ao etnocentrismo e na psicanlise
combate psicologia da conscincia (KOLTAI, 2010).
cara a Lacan a atribuio por Lvi-Strauss de uma funo simblica proibio do
incesto, pois permite desbiologizar o complexo de dipo, atribuindo-lhe uma funo

30

simblica. Lvi- Strauss e Lacan encontram-se ao atribuir uma universalidade funo


simblica, mas no a seu contedo.
Lacan destaca que nem sempre as estruturas do parentesco so elementares, pontuando
que as nossas so bastante complexas, mas no existiriam sem o sistema de palavras que
as organizam
[...] e o fato que os interditos que regulam em ns a troca humana
das alianas, no sentido prprio da palavra, limitam-se a um nmero
excessivamente restrito. Por conseguinte, tendemos a confundir
termos como pai, me, filho, etc. com relaes reais. porque o
sistema das relaes de parentesco reduziu-se extremamente, em seu
limite e em seu campo. Mas trata-se de smbolos (1953a, p. 32).

Em Funo e campo da fala e da linguagem, Lacan retoma as estruturas elementares de


parentesco explicitadas em termos das regras de aliana e troca, aplicando-lhes as leis
da linguagem. Localiza nestas regras a dimenso inconsciente que, acredita, estaria na
base das estruturas elementares. Observa que as regras da aliana ordenam o sentido em
que realizada a troca das mulheres e que ocorre em uma infinidade de formas; a
aliana rege uma ordem preferencial cuja lei, implicando os nomes de parentesco, para
o grupo, como a linguagem, imperativa em suas formas, mas inconsciente em sua
estrutura (1953c, p. 278). Nesse sentido, o dipo marca a lgica subjetiva que se
instala a partir da estrutura de parentesco como
[...] aquilo que o sujeito pode conhecer de sua participao
inconsciente no movimento das estruturas complexas das alianas,
verificando os efeitos simblicos, em sua existncia particular, do
movimento tangencial para o incesto que se manifesta desde o
advento de uma comunidade universal (1953c, p. 278).

possvel extrair desse trecho o modo como Lacan se permite articular estrutura e
subjetividade, ao situar a lgica subjetiva implicada no dipo examinado em termos das
estruturas de parentesco, tema que retomarei no prximo captulo.

31

Vale destacar que, conforme Lacan avana em seu ensino em direo ao real5 como o
impossvel de ser simbolizado, as divergncias com o antroplogo revelam-se mais
marcadamente. O parentesco entre as disciplinas no se rompe - apesar de o caminho
empreendido por Lacan lev-lo em direo ao real, a uma reviso da primazia do
simblico - pois ele se estabelece a partir de uma afinidade que est na base das duas.
Ambas, [...] nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, formam por certo
um perptuo princpio de inquietude, de retificao, de crtica, de contestao do que
por ventura pode ter parecido, por outro lado, definitivamente adquirido (FOUCAULT,
1966, apud KOLTAI, 2010).
Para encerrar este item dedicado a circunscrever a famlia a partir dos encontros entre a
psicanlise e a antropologia, um pequeno trecho em que ouso reconhecer um LviStrauss lacaniano ao situar a iluso humana de driblar a falta quando esta resulta
sempre incontornvel: At nossos dias a humanidade sonhou apreender e fixar este
instante fugitivo em que foi permitido acreditar ser possvel enganar a lei da troca,
ganhar sem perder, gozar sem partilhar (LVI-STRAUSS, 2008, p. 537).
1.3 - A influncia de Durkheim
O grupo reduzido formado pela famlia moderna no se apresenta,
com efeito, ao exame, como uma simplificao, mas antes como uma
contrao da instituio familiar [...] Esse sentido dado
precisamente quando, luz desse exame comparativo, se apreende o
remanejamento profundo que conduziu a instituio familiar sua
forma atual; reconhece-se, ao mesmo tempo, que preciso atribu-lo
influncia prevalente que assume aqui o casamento, instituio que
devemos distinguir da famlia. Da a excelncia do termo famlia
conjugal, pelo qual Durkheim a designa (LACAN, 1938, p. 16).

O pargrafo acima um dos dois nicos momentos em que Lacan cita Durkheim em seu
escrito de 1938. Ainda que Lacan no o explicite, o socilogo francs representou uma
forte influncia na sua argumentao terica referente famlia. Peusner (2009) relata
5

O Real no se confunde com o termo realidade. Trata-se de um termo inventado por Lacan para fazer
referncia ao que escapa, ao que resiste simbolizao, ao que no cessa de no se inscrever. O
conceito de Real organiza a teoria e a clnica lacaniana e no fcil de ser apreendido, Lacan o traduziu
de inmeras formas ao longo de seu ensino. Kaufmann (1996) o define da seguinte maneira: Ao Real
ser conferido o estatuto de vazio, de impossvel de ser representado, situado fora de todo campo
demarcvel (p. 445). Em A Terceira (1974), Lacan afirma que o real o que retorna sempre ao mesmo
lugar. O acento deve ser colocado no retorna. o lugar que ele descobre, o lugar do semblante (p. 9).

32

ter se surpreendido ao debruar-se sobre esse escrito de Lacan e identificar que, na


ocasio de sua produo, o interlocutor de Lacan era Durkheim - e no Lvi-Strauss,
como se supunha -, mais especificamente uma aula daquele, proferida em 1892 e
intitulada A famlia conjugal. Veremos mais adiante que outro autor estudioso das
relaes entre a psicanlise e as cincias sociais, Markus Zafiropoulos, no partilha da
mesma surpresa em relao ao um Lacan durkheimiano na base do texto de 38.
A aula em questo foi aberta com o seguinte comentrio: Chamo com este nome a
famlia tal como est constituda nas sociedades surgidas de sociedades germnicas, ou
seja, nos povos mais civilizados da Europa moderna (DURKHEIM, 1892, apud
PEUSNER, 2009, p. 92, traduo livre). Comentrio particularmente eficaz para
surpreender os leitores de Lacan com a escolha de Durkheim como um interlocutor!
Mas avancemos no texto de 1892, na tentativa de localizar o que nele foi inspirador para
Lacan, mesmo que j possa adiantar que no partilho da posio de Peusner - que v na
escolha da noo de famlia conjugal um risco de se arrastar a psicanlise para uma
concepo biolgica da famlia - e que aprecio o aporte de Markos Zafiropoulos ao
questionar a contrao da qual esse modelo familiar teria sido o resultado.
Durkheim define a famlia conjugal como aquela que compreende o marido, a esposa e
os filhos. Trata-se de uma contrao da famlia paternal. Mas o que seria a famlia
paternal, de acordo com o socilogo? Seria aquela que compreende o pai, a me e todas
as geraes surgidas deles, salvo as filhas e seus descendentes.
Continuando, o socilogo francs acentua outra particularidade da famlia conjugal: a
interveno sempre crescente do Estado, e, no mesmo pargrafo, utiliza o termo
famlia moderna para designar o tipo de famlia em questo6. O autor parece nomear
como famlia conjugal o que Roudinesco (2003) define, conforme veremos no
prximo captulo, como famlia moderna. O que chama a ateno que, embora
ambos os autores situem tal modelo familiar como sustentado no lao conjugal, o fazem
de modos distintos, Roudinesco (assim como JULIEN, 2000) aponta para a escolha
sexual como um diferencial importante em relao famlia tradicional, portanto, para o
fortalecimento do lao entre os cnjuges, e Durkheim para aquilo que resta o conjugal
depois que os filhos crescem, conforme veremos mais adiante.
6

Tal a zona central da famlia moderna (DURKHEIM, 1892, apud PEUSNER, 2009, p. 125).

33

Durkheim assinala que no haveria nada que recordasse o estado de dependncia


perptua que era a base da famlia paternal e da famlia patriarcal (a famlia patriarcal
anterior paternal). Peusner (2009), por sua vez, se pergunta sobre o que seria tal
dependncia e se de fato ela teria sido abolida:
Qualquer psicanalista teria objetado: Como no h nada? Coloque
qualquer pessoa no div e se dar conta de que a gente continua to
dependente das geraes anteriores como o foi em qualquer outro
estilo de conformao familiar. Somente h que faz-lo falar (p. 93,
traduo livre).

Para corroborar essa afirmao, recorre noo de famlia como continuidade psquica
entre as geraes, formulada por Lacan em 38. Mas, convenhamos, Durkheim se refere
a uma dependncia jurdica, prope uma leitura sociolgica da famlia e, nesse contexto,
sua afirmao no s procede como partilhada por outros pesquisadores pois, entre as
principais mudanas que implicaram a passagem de um modelo tradicional de famlia
(leia-se patriarcal) para a famlia moderna, esto o fortalecimento do lao conjugal e a
participao crescente do Estado7 no campo da famlia.
neste ponto que o risco preconizado por Peusner parece descabido, j que Durkheim
toma a famlia como objeto do ponto de vista jurdico, ocupando-se da evoluo do
direito que a regula. Lacan toma emprestado de Durkheim a concepo de famlia
conjugal, adotando o entendimento deste de que ela seria o resultado de uma contrao
da instituio familiar; entretanto, nem por isso a reduz a um fenmeno de menor
complexidade ou a um fato biolgico.
Ainda descrevendo as particularidades da famlia conjugal, Durkheim faz o seguinte
comentrio:Estamos ento, na presena de um novo tipo de famlia. Posto que os
nicos elementos permanentes nela so o marido e a esposa, uma vez que todas as
crianas deixam cedo ou tarde a casa paterna, proponho cham-la famlia conjugal
(DURKHEIM, 1892, apud PEUSNER, 2009, p. 124, traduo livre).
A originalidade do comentrio reside no fato de o lao conjugal ser definido como o que
resta dessa modalidade de famlia, enquanto outros autores que abordam as mudanas
7

O autor situa duas maneiras pelas quais o Estado pode intervir: ao exercer o direito de correo do pai e
ao requerer a interdio do adulto.

34

experimentadas pela famlia do ponto de vista histrico situam o lao conjugal como o
que a funda. Contudo, e ento talvez concorde com Durkheim, mas talvez por motivos
alheios aos que ele apontaria, penso o lao conjugal como aquele que funda e tambm
como aquele que resta, no se reduzindo aos laos parentais, testemunhando um desejo
que est para alm dos filhos: transmisso necessria e fundante da subjetividade.
Durkheim pontua, na sequncia, outra particularidade deste modelo de famlia: a
desestabilizao do coletivismo familiar8. O situado aqui pelo autor o prenncio da
sobreposio, na famlia, das necessidades individuais sobre as do coletivo? O seguinte
trecho comprova essa hiptese e a previso de Durkheim em relao ao lao social que
passaria a vigorar e a predominar em um futuro prximo: Pode ento ser certo que tal
apagamento do coletivismo que caracteriza nosso direito domstico no seja um
acidente passageiro, mas pelo contrrio, se acentuar cada vez em maior medida [...]
(DURKHEIM, 1892 apud PEUSNER, 2009, p. 128, traduo livre).
A noo de coletivismo uma noo jurdica, relativa aos bens comuns a uma famlia.
O fim do coletivismo est associado ao fato de que as coisas deixaram de ser um
cimento da sociedade domstica, de forma que esta se tornou absolutamente pessoal.
Outrora, os laos que derivavam das coisas prevaleciam sobre os que surgiam das
pessoas. Durkheim parece se ressentir do fato de que a famlia deixe de ser regulada
pela manuteno do patrimnio e passe a ser edificada em torno dos sentimentos
afetivos consumados no lao conjugal. O coletivismo que se retira da sociedade
domstica passa a concentrar-se na sociedade matrimonial
Para finalizar o comentrio sobre o texto de Durkheim de 1892, vejamos como ele o
conclui:
Tais so as concluses gerais que se depreendem deste curso. O
progresso da famlia foi o de concentrar-se e personalizar-se. A
famlia se contrai cada vez mais; ao mesmo tempo as relaes nela
tomam um maior carter pessoal devido ao apagamento progressivo
do coletivismo domstico. Enquanto a famlia perde terreno, o
8

Foi um grupo de historiadores ingleses que, na dcada de 70, questionou as bases para a lei de contrao
familiar, postulada por Durkheim. Para explicar a estrutura da famlia e sua extenso, os socilogos
levavam em conta as condies demogrficas e as condies jurdicas, particularmente a herana. Neste
sentido, a idia de um comunismo familiar, ou seja, a vigncia de grandes famlias em um perodo
anterior no foi absorvida como natural pelos ingleses dado que na Inglaterra prevalecia a diviso
igualitria entre os herdeiros e uma tradio de organizao restrita famlia (ZAFIROPOULOS, 2002).

35

casamento pelo contrrio se fortifica (DURKHEIM, 1892 apud


PEUSNER, 2009, p. 132, traduo livre).

No cenrio atual, como veremos no captulo 2, o que vemos fortificar-se so as novas


formas de famlia, instituindo laos parentais que, muitas vezes, no s independem do
casamento e mesmo de uma conjugalidade, mas tambm do ato sexual.
Depois de examinar mais detidamente a aula ministrada por Durkheim, no encontro
justificativa para a preocupao manifestada por Peusner com os riscos de no se avaliar
a extenso que teria na fundamentao de Lacan sobre a famlia o fato de ter tomado de
emprstimo a noo de famlia conjugal do socilogo francs9. Peusner destaca como
central em Lacan o entendimento de que a famlia conjugal sustenta e mantm o
irredutvel da transmisso. No texto Nota sobre a criana, de 1969, Lacan atribui a
funo de resduo famlia conjugal, mas tambm enfatiza o exerccio das funes
parentais, pretendendo descolar a operacionalidade da funo das figuras que ocupam
os lugares de pai e me. Reitero que a especificidade da psicanlise ao tomar a famlia
como objeto, marcada definitivamente na Nota sobre a criana, mas j presente no
escrito de 1938, reside no carter no redutvel ao biolgico das funes materna e
paterna (adultos geradores), traduzindo a famlia em uma estrutura hierrquica, que
prevalece na primeira educao, na represso dos instintos e na aquisio da lngua
materna, desempenhando um papel fundamental na transmisso da cultura.
Agora, se as formulaes de Durkheim sobre a famlia conjugal no levam Lacan a uma
viso biolgica da famlia, observo que h no texto do socilogo francs que serviu de
base para o Lacan de 38 dois pontos que podem ter contribudo para nos arrastar para
algumas das confuses que persistem na atualidade no que diz respeito famlia. O
primeiro o reconhecimento no que o autor define como fim do comunismo familiar
de uma crise na famlia, de uma desestabilizao como no se viu anteriormente. E o
segundo a assuno de uma linearidade entre a forma pela qual a famlia se apresenta
e a constituio psquica das crianas (Durkheim considera que a unio livre uma
sociedade conjugal na qual as obrigaes no existem, e, por isso, uma sociedade
imoral na qual as crianas desenvolvem taras morais).
9

Proponho, ento, que desconhecer o problema terico implcito (a concepo e construo da noo de
famlia conjugal), produz como efeito atrelar uma concepo sociolgica, biolgica e ideolgica ao
campo do fazer clnico (PEUSNER, 2009, p. 122, traduo livre).

36

Ao investigar as influncias do pensamento durkheimiano no texto de Lacan de 1938,


deparei-me com o livro de Markus Zafiropoulos, intitulado Lacan y las ciencias
sociales la declinacin del padre (1938-1953). Nesse trabalho, o autor dedica-se a
oferecer subsdios para o descarte da lei de contrao da instituio familiar como
originria da famlia conjugal, postulada por Durkheim e adotada por Lacan em 1938.
Zafiropoulos tambm mostra como o socilogo francs influenciou a produo de
Lacan e questiona com veemncia a noo de declnio social da imago paterna,
assumida pelo psicanalista naquele momento de seu ensino e situada na base de dois
grandes problemas intimamente relacionados e ainda presentes na atualidade: a
nostalgia do patriarcado e o chamado ao pai recorrente em algumas prticas clnicas e
instituies.
1. 4 - A tese do declnio da imago10 paterna e suas conseqncias
O declnio da imago paterna, para Lacan, estaria intimamente ligado dialtica da
famlia conjugal, constituindo uma crise psicolgica, possivelmente relacionada ao
aparecimento da prpria psicanlise11.
Essa tese de Lacan recusada por Zafiropoulos. Suas pesquisas levam-no a questionar
tal declnio, dado que as bases da noo de famlia conjugal, adotada por Lacan a partir
de Durkheim, estavam fincadas em um erro e a descoberta deste, na opinio de
Zafiropoulos, deveria fazer ruir toda a construo sustentada. O autor tambm discorda
de que a psicanlise tivesse surgido a partir desse cenrio do declnio do pai e, para
tal, recorre aos pais dos pacientes de Freud para mostrar que no devido carncia12
daqueles que seus filhos adoeciam. Apresentarei a seguir os principais eixos da pesquisa
10

Em Chemama (1995), imago definida como termo introduzido por C.G. Jung (1911) para designar
uma representao tal como o pai (imago paterna) ou a me (imago materna), que se fixa no inconsciente
do sujeito e ulteriormente orienta sua conduta e seu modo de apreenso do outro. A imago elaborada em
uma relao intersubjetiva, podendo ser deformada em relao realidade (p. 105). De acordo com
Laplanche e Pontalis (1998), a imago e o complexo so noes prximas, relacionam-se ambas com o
mesmo domnio - as relaes da criana com o seu meio familiar e social. Mas o complexo designa o
efeito sobre o sujeito da situao interpessoal no seu conjunto; a imago designa uma sobrevivncia
imaginria deste ou daquele participante dessa situao (p. 235).
11
Apenas o sublime acaso do gnio talvez no explique que tenha sido em Viena ento centro de um
Estado que era o melting-pot das formas familiares mais diversas, das mais arcaicas s mais evoludas,
dos ltimos agrupamentos agnticos dos camponeses eslavos s formas mais decadentes do casal instvel,
passando pelos paternalismos feudais e mercantis - que um filho do patriarcado judeu tenha imaginado o
complexo de dipo. Seja como for, so as formas de neuroses dominantes no final do ltimo sculo que
revelaram que elas estavam intimamente dependentes das condies da famlia (LACAN, 1938, p. 60).
12
O tema da carncia do pai ser examinado no prximo item.

37

de Zafiropoulos: antecipo, todavia, que no partilho de algumas das posies que o


autor assume.
Embora Lacan, no texto de 1938, faa apenas duas referncias a Durkheim, vimos que
toma de emprstimo do socilogo a concepo de famlia conjugal. Como costuma ser
seu estilo, Lacan no alardeia a influncia; contudo, ela valorizada por Peusner (2009)
ao comentar o referido texto e mais ainda por Zafiropoulos (2008). Este ltimo se detm
nos escritos de Lacan de 1938 a 1953, sustentando a tese de que este teria se deixado
influenciar por um equvoco da formulao durkheimiana o de que a famlia conjugal
seria a resultante de uma contrao da instituio familiar -, que interpreta como uma
transferncia, pelos intelectuais da poca, do romance familiar do neurtico ao campo
da sociologia.
Em La novela familiar del neurtico (1908) Freud formula que, para alcanar um estado
normal, e at mesmo para o prprio progresso da sociedade, o indivduo deve liberar-se
da autoridade de seus pais. Se, para a criana pequena, os pais so a nica autoridade e o
desejo que prevalece o de se parecer com eles, conforme se desenvolve e conhece
outros pais, a criana comea a discordar daqueles e a critic-los. Intensos impulsos de
rivalidade sexual esto na base desse processo, no qual a criana se lana em uma
intensa atividade imaginativa, que se manifesta no brincar e, mais adiante, nas relaes
familiares, e que Freud designa como a novela familiar dos neurticos: [...] a
imaginao da criana se dedica, pois, tarefa de liberar-se dos pais menosprezados e a
substitu-los por outros, geralmente de categoria social mais elevada (FREUD, 1908, p.
1362, traduo livre).
Como de costume em seus escritos, Freud preocupa-se com o modo como suas
formulaes podem ser compreendidas por seus leitores e os adverte de que tal
atividade imaginativa aparentemente plena de hostilidade no de fato to malvola,
pois conserva sob tnue disfarce todo o afeto primitivo da criana pelos seus pais.
Nesse sentido, e acompanhando Freud, observa-se que tal atividade da criana
sustentada por uma nostalgia daqueles tempos nos quais os pais eram dignos do desejo
de parecer-se a eles. Na novela familiar do neurtico, no se trata, portanto, de eliminar
o pai, mas de exalt-lo.

38

No preciso ir mais longe para situar o ponto sobre o qual incide a analogia proposta
por Zafiropoulos: ao transferir o romance familiar do neurtico ao campo da sociologia,
o autor localiza em sua base uma nostalgia e uma exaltao do pai.
Vejamos agora a base terica que permite a Zafiropoulos identificar o erro
durkheimiano e lanar sua interpretao de que a lei da contrao familiar seria
resultado do romance familiar dos socilogos. A lei de contrao da estrutura
familiar que fundamenta a noo durkheimiana de famlia conjugal foi questionada
na dcada de 70 por um grupo de historiadores de Cambridge:
Que as famlias de antigamente eram pouco numerosas de quatro a
seis pessoas, em mdia -, e isso no s na Inglaterra, mas em toda
Europa. Que, ademais, a maioria destas famlias eram de tipo
conjugal, que as famlias ampliadas eram ainda menos freqentes
que em nossos dias e que quase nunca se encontravam a famlia
troncal13 e outros tipos de famlias polinucleares (LASLETT, 1972,
apud ZAFIROPOULOS, 2002, p. 139, traduo livre).

Esse grupo questionou no s a veracidade do modelo proposto por Durkheim, mas o de


outro socilogo francs, Frderic Le Play, cuja obra anterior e marcadamente
reacionria e nostlgica em relao famlia patriarcal, modelo familiar a seu ver
natural e de excelncia. Os historiadores de Cambridge questionaram at mesmo a
formulao de que a passagem da famlia extensa famlia nuclear teria ocorrido no
momento da revoluo industrial.
Zafiropoulos reconhece em Le Play e em Durkheim uma idealizao da famlia
patriarcal e se lana nessa analogia, a meu ver questionvel, que no s retira dos
investigadores acima toda a sua credibilidade como os infantiliza e os sujeita a uma
interpretao psicanaltica descabida.
Assim, o pragmatismo dos historiadores ingleses teria posto um fim iluso partilhada
pelos socilogos franceses, que se constituiria em uma formao imaginria coletiva e
da qual seria preciso fazer um luto. Na base dessa recomendao est a preocupao
de Zafiropoulos com os especialistas, entre eles psicanalistas, que ainda se referem a
13

Le Play descrevia uma famlia troncal ideal tpica como aquela que reunia um grupo de pelo menos 18
pessoas, isso porque supunha que em um perodo de vinte e cinco anos, as mes tivessem at 20 filhos,
qualquer que fosse seu meio social (ZAFIROPOULOS, 2002).

39

essa formao imaginria, induzindo a um chamado nostlgico ao pai, a uma figura


autoritria e at tirnica, que tem aparecido de forma crnica nas instituies, na esfera
poltica e assumido at mesmo por alguns clnicos (no campo psi tal chamado ao
pai aparece abundantemente, seja na quantidade de evocaes ao pai, seja na variedade
das formas pelas quais se sugere ou se orienta que estas devam ocorrer). Embora eu
partilhe com o autor a preocupao em relao ao chamado ao pai, parece-me
excessivo atribu-lo a esse suposto erro (pois no caso se tomaria a produo da Escola
de Cambridge como verdade nica) subjacente definio da famlia conjugal como
uma contrao da instituio familiar. O chamado ao pai me parece muito mais uma
decorrncia do condicionamento da operatividade da funo paterna ao lugar social do
pai e, portanto, da tese do declnio da imago paterna. No item As declinaes do pai
em Lacan, esse tema ser discutido mais detidamente.
Sob a autoridade de Lacan, muitos psicanalistas de renome sustentaram diversas teses a
respeito do declnio da imago paterna. Entre estes, Zafiropoulos situa Elizabeth
Roudinesco, que estaria concorde com a tese de que a inveno da psicanlise seria uma
resultante do declnio da famlia patriarcal. Ainda que no concorde com o autor na
crtica que faz a Roudinesco, partilho de sua preocupao com o risco de que aqueles
que se instituem como herdeiros do pensamento lacaniano reproduzam a confuso entre
o pai simblico e o pai de famlia, recaindo em uma lgica ambientalista ou ainda
enaltecedora do patriarcado.
A leitura de A famlia em desordem, de Roudinesco, a meu ver no conduz a uma viso
idealizada do patriarcado (a autora afirma que Lacan se opunha idia de um
restabelecimento da onipotncia patriarcal) e tampouco a um discurso nostlgico. No
d margem, ainda, a uma viso da psicanlise como reparadora do declnio social do
pai, e, tampouco, a uma confuso entre o pai como funo e o pai de famlia. A autora,
assim como Lacan em 1938 e outros autores, atribui efervescncia cultural da Viena
daquela poca a inveno da psicanlise. No entanto, essa afirmao no implica
estabelecer uma relao unvoca causal entre a inveno da psicanlise e o declnio da
imago do pai, embora este aparea como um dos componentes das mudanas em curso
na sociedade vienense.

40

Localizar mudanas em curso no discurso social de uma poca, o que Lacan em 1953
define como alcanar a subjetividade de sua poca, um trabalho delicado e necessrio,
que no se confunde com estabelecer uma relao linear, causal, entre histria e
subjetividade, conforme veremos no prximo captulo.
Zafiropoulos (2008) resume da seguinte maneira quatro ideias essenciais decorrentes da
posio assumida por Lacan na dcada de 1930:
a bancarrota do pai de famlia um fato comprovado;
o declnio da instituio familiar estaria na origem da inveno da psicanlise;
Freud estaria empenhado em revalorizar o pai;
Lacan, em seu retorno a Freud, aspiraria reintroduzir a imagem do pai como essencial
para a organizao da famlia e para a estruturao subjetiva das geraes.
E conclui:
No basta, com efeito, repetir simplesmente que a imago paterna e
mais em geral o grupo familiar est em declnio para dar conta da
atualidade de nossos mal-estares modernos (e inclusive de nossos
estados fronteirios); ademais, h que saber antropolgica e
clinicamente de que se fala. Tambm preciso saber sobre que fonte
nos apoiamos para diagnosticar com certeza a causa de nossos
infortnios e at da inveno da psicanlise, nada menos
(ZAFIROPOULOS, 2002, p. 28, traduo livre).

Tort (2008) partilha da mesma posio, pontuando que, se no se esclarece o discurso


sobre o declnio do pai, no se pode fazer frente s posies alarmistas dos que
assumem que nossas sociedades esto destruindo as condies de subjetivao; como se
os velhos tempos fossem estruturantes, e os atuais fossem decadentes. O filme Meia
noite em Paris14, de Woody Allen, precioso ao mostrar como a nostalgia em relao a
um tempo anterior atravessa a histria da humanidade. No filme, o protagonista,
imobilizado em sua produo como escritor, pela crena de que os grandes feitos neste
campo j ocorreram, de que os grandes artistas no existem mais (crena que de fato
no parece lhe ser exclusiva!), escapa meia noite para um tempo passado no qual tem
o privilgio de desfrutar da companhia de seus artistas preferidos, como Picasso,
Hemingway, Dal e etc. Conhece a bela Adriana, amante de Picasso, e se surpreende ao
14

Ttulo original: Midnight in Paris (2011).

41

reconhecer nela tambm uma nostlgica dos tempos passados. Numa destas noites
maravilhosas, tropea com um Degas nostlgico do Renascimento. S ento nosso
mocinho retorna ao presente e passa a encarar Paris luz do dia, o que, afinal de contas,
no to mau assim!
Como vimos, a leitura de Os complexos familiares na formao do indivduo permite
identificar a importncia que Lacan conferia ao grupo familiar na estruturao do
sujeito, assim como pressentir o valor que a funo do pai comearia a assumir nos seus
escritos. Zafiropoulos destaca que, naquela poca, Lacan acreditava ser maior a
fecundidade do complexo de dipo se o valor do pai na famlia tambm o fosse.
Conforme veremos a seguir, no h vestgios dessa relao direta entre o lugar do pai na
famlia e a operatividade da funo paterna no Lacan que veio depois, de modo que no
encontro motivos para que vrios autores e leitores de Lacan tenham permanecido
presos a essa verso. Tal fato importante dado que a posio assumida por Lacan em
1938 sobre o declnio da imago social do pai foi o que lhe valeu a crtica de familiarista.
No entanto, cabe ponderar que Lacan, em 1938, ainda no dispunha de importantes
formulaes para situar com maior clareza as diferenas entre o pai de famlia e o pai
em sua funo de resduo - trabalho ao qual se dedicou com afinco em seus escritos e
seminrios -, o que poderia ter levado seus leitores a confundir tais instncias.
Alm de tomar como inquestionvel o erro detectado pela escola de Cambridge,
Zafiropoulos localiza outro erro, que seria uma decorrncia do primeiro, mas cuja
extenso seria maior para o referencial freudolacaniano. Afirma que a declinao
histrica do valor social do pai de famlia falsa, pois assim como a famlia , desde
sempre lbil, o valor do pai e o seu lugar na famlia tambm variam de acordo com o
perodo histrico ou a localizao geogrfica.
Para concluir, os pais de escasso valor social e inclusive a figura do
pai humilhado no datam desde logo da Viena finisecular nem da
Frana da dcada de 1930, mas para descrever justamente o rosto
desses pais humilhados desde sempre preciso, alm disso, colocar
em relevo a multiplicidade de posturas paternas atualizadas por cada
poca (ZAFIROPOULOS, 2002, p. 170, traduo livre).

42

exatamente neste ponto que no o acompanho. Partilho da posio de que a famlia se


modifica ao longo da histria e que convivem, num mesmo momento cronolgico,
diferentes modos e arranjos familiares. No entanto, inquestionvel que o lugar do pai
de famlia se modificou profundamente na passagem do patriarcado para a famlia
moderna, passagem que pode ser descrita como uma perda histrica do poder do pai15.
Tort (2008) chama a ateno para o especial interesse da corrente lacaniana pela figura
do Pai, que, mesmo no se fixando sobre a confuso entre o trivial pai social e a funo
simblica do pai, no elimina a questo: Qual a relao entre o que desaparece ante
nossos olhos dos poderes dos pais e o universal da funo paterna? (p. 13). Para o
autor, o declnio do pai, e agora a simetrizao dos lugares de pai e me, levam
inquietao sobre o modo como se erigir a funo paterna e, portanto, sobre a
constituio do sujeito. Resta examinar se esse interrogante procede ou no, e posso j
adiantar que ele divide os psicanalistas. Para ultrapass-la, ser necessrio estudar as
declinaes do pai em Lacan, as articulaes possveis entre estrutura e histria, e as
origens e os discursos subjacentes ao neologismo parentalidade, o que farei ao longo
dos prximos captulos.
Zafiropoulos conclui seu livro desferindo um golpe final: muito surpreendente que
Lacan tenha seguido os passos de Durkheim sem reconhecer em sua lei de contrao da
famlia o romance familiar neurtico transladado pelos intelectuais ao campo da
sociologia (2008, p. 182, traduo livre); e acrescenta que, mesmo com as grandes
diferenas existentes entre Le Play, Durkheim e Lacan, os trs se sentiram fascinados
por uma espcie de iluso familiar originada no romance da grande famlia patriarcal.
Talvez agora seja possvel hipotetizar por que autores que tiveram contato com a obra
de Zafiropoulos (como PEUSNER, 2009) nem por isso abandonaram todas as
decorrncias das afirmaes de Lacan registradas no escrito de 1938, pois, se o rigor
que o primeiro reclama aos socilogos em questo plenamente justificvel, as
hipteses que apresenta sobre os motivos que teriam levado a seus erros de
procedimento me parecem exageradas, sob o risco de atirar ao descrdito toda a

15

Esse tema tratado com rigor e profundidade por Elizabeth Roudinesco no captulo 1 Deus pai, em A
famlia em desordem.

43

produo daqueles, assim como dos que neles encontraram inspirao, como o Lacan de
1938.
A leitura do texto de Durkheim que serviu como referncia para Lacan, o exame do
texto de Lacan de 38 e o estudo da crtica de Zafiropoulos me permitem afirmar que
sim, Lacan em 38 d margem para a psicanlise familiarista, para uma viso linear da
relao entre o pai na sociedade e o pai na famlia. Mas no se encontra vestgio dessas
formulaes no ensinamento de Lacan que se sucede. Ele arranca definitivamente a
funo do pai de sua presena na famlia. Vale lembrar que importantes aspectos
destacados pelo autor em relao funo da famlia (adultos geradores) esto na base
para o que vir depois em termos da famlia como resduo. O Lacan de 38 j aceitava o
jogo das evolues culturais e se deixava trabalhar por elas, no se afligia com o
afrouxamento dos laos familiares e, assim, fazia resistncia leitura de que as
mudanas na sociedade equivaleriam a uma crise na famlia.

1.5 - Do pai de famlia ao pai como resduo: as declinaes do pai em Lacan


A retomada do Lacan de 38, da aula de Durkheim e da crtica de Zafiropoulos consistiu
em um esforo para limpar o movedio a que a questo do pai parece ainda nos
arrastar. Consistiu tambm em preparar o terreno para acompanhar como Lacan se
props a trabalhar essa questo em seu ensino, em construes sucessivas, ou em
declinaes como sugere Laia (2006). Nestas, destacou a firmeza do pai de sua
posio social ou de seu lugar na famlia e, produzindo um esvaziamento (sem d nem
piedade) da consistncia condensada na figura do pai de famlia, investiu no pai
fundando sua transmisso na prversion. desta ltima que destaca a funo do pai
como resduo, formulao crucial para a noo de famlia resduo que pretendo
circunscrever nesta tese. O percurso que farei aqui, junto com Lacan, busca separar
definitivamente o pai de famlia, ou o pai de cada poca, do pai como aquele que se
levanta para responder, dando um testemunho de seu singular modo de gozo.

44

1.5.1- A questo do pai: um terreno movedio


Como reconheceu Lacan no Seminrio 5, As formaes do inconsciente, a questo do
pai parece nos arrastar at hoje para um mundo to movedio. Movedio remete a o
que se move, muda de posio, ou pouco firme. Como vimos, a psicanlise foi
duramente criticada por ter deixado entender que o movimento (leia-se declnio) do
pai na sociedade geraria uma desestabilizao no pai de famlia, gerando uma carncia
paterna, o que justificaria uma nostalgia do patriarcado, assim como as vrias verses
pelas quais o chamado ao pai se atualiza nas instituies e nos meios psis. Essa
confuso encontraria algum respaldo no texto de 1938, mas s at ele. E ento esse
movedio que permanece no que tange ao pai parece ter se perpetuado para alm de
Lacan.
Lacan contundente em seus escritos, marcadamente no Seminrio 5, As formaes do
inconsciente, ao dissociar o Nome-do-pai de qualquer concretude relacionada pessoa
do pai, suas caractersticas ou presena fsica, afastando-se de uma viso ambientalista,
sociolgica ou psicolgica. Em De uma questo preliminar a todo tratamento possvel
da psicose (1965/66), o psicanalista frisa a frouxido dos discursos que localizam a
carncia paterna na biografia ou na caracterologia do pai, carncia que se desdobraria
nas figuras do pai indulgente, do pai humilhado, do pai onipotente, etc. Desse modo,
desloca a carncia do pai na famlia - no se trata de sua ausncia ou presena
concreta, como elemento do meio ambiente (1957-58, p. 173) - para sua carncia no
complexo, cuidando para no recairmos no rame-rame da anlise sociolgica
ambiental (LACAN, 1957-58, p. 197).
preciso incluir ainda no movedio que envolve a questo do pai na psicanlise a
universalidade do dipo preconizada por Freud, que, critica-se, normalizaria uma
famlia edipiana, situando no patriarcado a garantia da transmisso da lei paterna. Os
que partilham da ideia de que a famlia est em crise na atualidade justamente apontam
que as novas configuraes familiares no poderiam dar a consistncia necessria ao
complexo de dipo. Aqui, a presena da palavra consistncia no casual: a suposta
consistncia atribuda ao pai - como pai de famlia, do qual se reclama a presena e a
normalidade - que torna o terreno to movedio.

45

Limpar o terreno, portanto, passa por reafirmar que a psicanlise no guardi da


famlia patriarcal e, tampouco, da ordem paterna; que a famlia patriarcal no o
modelo da psicanlise lacaniana, alis, no se preconiza um modelo de famlia na
psicanlise. A idia de modelo (leia-se, ideal) incompatvel com o discurso
psicanaltico. Lacan preocupava-se com uma prtica psicanaltica que se inclinasse na
direo da adaptao do indivduo ao meio social, reconhecendo nela um desvio da
psicanlise. Marcava que no se trata, como se acredita, de se adaptar a um real mais
ou menos bem definido ou bem organizado, mas de fazer reconhecer sua prpria
realidade, em outras palavras, seu prprio desejo (LACAN, 1953a, p. 41). Esta
preocupao tambm pode ser localizada na letra de Freud em El porvenir de la terapia
psicoanalitica, ao alertar seus ouvintes-psicanalistas (trata-se de uma conferncia
pronunciada no 2. Congresso Psicanaltico Privado) de que no devemos inculcar
nossos ideais ao paciente, nem buscar model-lo nossa imagem, que no devemos
situar-nos como fanticos higienistas ou terapeutas (FREUD, 1910, p. 1569, traduo
livre).
Jutamente porque a psicanlise no guardi da ordem paterna, talvez Lacan tenha
podido, a cada nova volta sobre a questo do pai, liber-lo da consistncia imaginria
que adquirira como pai de famlia e garantidor da ordem social, para localiz-lo em sua
funo residual, independentemente de seu papel na famlia ou na sociedade. Nesta
passagem, o pai da palavra suplanta o pai de famlia, e vale destacar que desembaraarse do familiarismo no implica uma superao ou desatualizao do romance familiar.
1.5.2 As declinaes do pai em Lacan
Declnio pode ser definido como perda de fora, enfraquecimento. Declinar implica
entrar em decadncia, cair, perder a fora, enfraquecer, mas remete tambm a desvio
(desviar-se de um rumo, de um ponto). Segundo a gramtica, declinar16 implica
acrescentar (nas lnguas flexionais) terminaes casuais especficas a um radical, para
indicar as diferentes funes sintticas do termo (adj., pron., subst) na orao.

16

Fonte: Dicionrio Aulete. Disponvel no endereo eletrnico: http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital

46

Uma toro possvel dessa definio leva a tomar declinar como deixar cair, sem,
necessariamente, enfraquecer. Da acepo gramatical, destaco terminao casual
especfica necessria para indicar as diferentes funes do termo. Veremos se e
como essas acepes e esse modo de l-las permitem tratar o movedio do pai em Lacan
como declinaes do pai. Tal a proposta de Srgio Laia em Declinaes do pai em
Lacan, artigo no qual recorre ao latim para precisar o uso particular que prope do
termo declinao: declinar um nome significa enunciar em determinada ordem as
diversas formas que ele reveste segundo as funes que desempenha na frase, isto ,
enumerar os seus casos (RONI, 1980, apud LAIA, 2006, p. 41, grifo meu).
Retomar as declinaes do pai em Lacan no implica assumir um enfraquecimento do
pai. Como j fomos advertidos por Zafiropoulos e Tort, a assuno de um
enfraquecimento do pai levou rapidamente afirmao de sua carncia. No Seminrio
5, Lacan observa que no se sabe em que o pai carente, portanto, a falta paterna
permanece como enigmtica, contrapondo-se s perspectivas que sustentam um saber
sobre o que falta ao pai e que pretendem indicar como san-la. O clebre caso do
pequeno Hans exemplar de que um pai normal, presente e atencioso, pode falhar em
sua funo normalizadora. Assim, a carncia do pai no resultaria de sua falha no
simblico ou no enfraquecimento da lei, o que constituiria uma verso imaginarizada do
pai, mas de uma demisso do pai Real com relao ao desejo da me.
Vale lembrar que o pai simblico o pai morto (como ser) e conservado (como
significante). O pai imaginrio aquele com o qual se est em rivalidade fraterna, e o
pai Real aquele que intervm como agente da castrao (PORGE, 1998). No
seminrio 17 (1969/70), Lacan no s reafirma o pai Real como agente da castrao
como contundente ao afirmar que no h causa do desejo que no seja produto dessa
operao.
Assim como o tema da carncia paterna ganha consistncia nos discursos psis
convertendo-se em prticas de chamado ao pai (em orientaes concretas relacionadas
presena fsica do pai ou s atividades que deve empreender junto aos filhos para
efetivar sua funo), o tema da autoridade paterna revela-se tambm alvo de uma
certa confuso. Nesta, atribui-se a suposta crise na famlia a uma crise da autoridade
paterna, logo, a restaurao dessa autoridade habilitaria o pai ao exerccio de sua

47

funo. Reconhece-se em tal leitura uma nostalgia do patriarcado; afinal, restaurar a


autoridade do pai sem recair em um modelo de famlia patriarcal parece algo bastante
improvvel. Prticas que visam restabelecer a autoridade paterna identificam na
consistncia do pai de famlia a operatividade de sua funo, leitura que o ensino de
Lacan no autoriza. Este um modo pelo qual o discurso social trata as mudanas que
vm ocorrendo na sociedade e na famlia; contudo, as declinaes do pai em Lacan
arrancam definitivamente a operatividade da funo paterna da autoridade do pai na
famlia e no espao coletivo.
Lacan tinha uma especial capacidade de estar escuta do social e, com isso, reconheceu
no pai do patriarcado uma mera contingncia histrica (KOLTAI, 2010). Eu no s
partilho dessa posio como a formulo nos seguintes termos: a identificao do pai de
famlia com a autoridade se constitui em um modo de sutura da falta, promovido pelo
lao social e relativo a uma poca, de forma que, no patriarcado, a autoridade consistiria
em um modo de sutura da falta daquela poca, em um dos semblantes17 assumidos pelo
pai, particularizando um modo de velar a sua prpria inconsistncia, diante da
inexistncia da relao sexual. (Essa formulao vai ao encontro da leitura que ser
realizada no captulo 3 sobre a parentalidade como o sintomtico desta poca).
A esse respeito, Lebrun (2008) formula a seguinte questo: [...] o patriarcado foi
apenas um modo de organizao da sociedade contingente historicamente ou, ao
contrrio, resulta de uma necessidade estrutural? (p. 247). Acompanhando-o em sua
reflexo a partir dessa interrogao, verifica-se que ele no pretende salvar o
amlgama, optando pela hiptese do patriarcado como contingncia histrica
(LEBRUN, 2010, p. 88). Com isso, possvel discordar de autores como Melman que,
em Um homem sem gravidade, faz uma amlgama entre pai e patriarcado: Um pai no
pode se autorizar por ele mesmo, s pode se autorizar pelo patriarcado. E se ele quer, a
qualquer preo, se autorizar por ele mesmo, estamos lidando com o pai violento, brutal
[...] (MELMAN, 2003, p. 122). Ainda, para encerrar definitivamente esta discusso,
17

Definem-se como semblantes os fenmenos que nos fazem crer que h algo ali onde no h. O
semblante nos faz crer que h realidade ou verdade onde h o real. Dessa forma, sua funo, na vida e na
anlise, velar o real, ainda que por vezes vacile e toque o real, desvelando-o. A relao entre os sexos
a experincia na qual o real mais se presentifica. A no-existncia da relao sexual seria uma das
verses do real, e justamente o que um semblante se esfora por subtrair, mesmo que acabe produzindo
oscilaes entre o velar e o desvelar.

48

localizo na letra de Lacan sua posio a respeito: O mito de dipo faz espalhafato
porque, supostamente, instaura a primazia do pai, que seria uma espcie de reflexo
patriarcal. Eu gostaria de faz-los perceber por que, pelo menos para mim, ele de modo
algum parece ser um reflexo patriarcal, longe disso (LACAN, 1971, p. 162).
No que tange ao movedio do pai, o tema da autoridade paterna ganha nova
consistncia imaginria quando se atribui uma nova razo passagem da autoridade
paterna para a autoridade parental, desta feita sustentada numa fico jurdica, para
justificar a carncia do pai em nossa poca, conforme veremos no captulo 2.
Se um dos modos de abordar a questo do pai declinando-o em Lacan, Ritvo (2000)
prope uma leitura tambm interessante do modo como Lacan, de uma forma geral, mas
tomado pelo autor a partir do conceito de sintoma, trabalhava um conceito ao longo de
seu ensino. A propsito das deformaes s quais Lacan submete, em seus sucessivos
seminrios, a noo de sintoma, Ritvo diz que elas no devem ser entendidas como
substituies ou complementaridades, mas sim como suplementaridade, [...] ou seja,
cada determinao tenta resolver um problema, mas ao resolver o problema que a
determinao anterior no havia conseguido, provoca outro. Isso quer dizer que, de
algum modo, o conceito s se fecha em torno de seu prprio vazio (p 11.). Veremos a
seguir como, no que tange funo paterna, o pai como morto passa a criar problema
quando Lacan formula a noo de pai Real.
1.5.3 - O pai de Freud um pai morto
A questo do pai ocupou Freud do incio ao fim de sua obra. Os trs mitos aos quais se
dedicou podem ser considerados mitos do pai: dipo, Totem e tabu e Moiss e o
monotesmo. Lacan os retoma, principalmente os dois primeiros, destacando a morte do
pai como crucial para a psicanlise: A morte do pai. Todos sabem, com efeito, que
parece estar a a chave, o ponto sensvel de tudo o que se enuncia e no s a ttulo
mtico sobre aquilo com que a psicanlise lida (1969-70, p. 125).
No complexo de dipo o pai aquele que transmite a interdio do incesto. Pode-se
dizer que a funo do pai, aqui, articular o sujeito ao simblico. No centro do dipo
est a castrao, perda de gozo necessria entrada do sujeito na ordem simblica. A

49

castrao d consistncia e legitimidade ao gozo, por intermdio da interdio. O pai faz


a criana entrar na ordem simblica exigindo renncia, perda de gozo. Veremos a seguir
que em Lacan a linguagem se institui como tributria desta perda de gozo e que, nas
declinaes sucessivas s quais submete o pai, a nfase recai no modo como este
testemunha sua singular relao com o gozo, naquilo que autoriza, e no mais ao impelir
renncia.
A universalidade do dipo em Freud estaria fundada na percepo de desejos
incestuosos universais e o complexo diria respeito ao destino incontornvel do humano
e no a uma mera experincia individual, na morte do pai que reside sua esperana de
vida (KOLTAI, 2010, p. 86). Em Lacan, a universalidade estaria na reduo do mito
estrutura, ainda que sempre posta prova pela clnica.
Em seu retorno a Freud, Lacan formulou o dipo como metfora paterna, visando
desmitific-lo e desfamiliariz-lo 18, transformando-o em uma frmula lgica e
universal. Vale destacar que esse trabalho no o poupou de deter-se sobre as variaes
do dipo19, ou seja, de estabelecer uma relao entre a frmula e os casos individuais,
questionando-a, relativizando-a, colocando-a prova no caso a caso. Nesse movimento,
possvel reconhecer em Lacan a preocupao permanente de articular estrutura e
histria, mais especificamente o modo em que esta ltima incide na primeira, ou talvez
no modo como na histria singulariza-se o que da estrutura, dados os acidentes da
histria de cada um que no se deixam frequentemente reduzir frmula (BROUSSE,
1997, p. 53). Os casos individuais, ao introduzir o real da clnica no universal da
frmula, tambm permitem animar a frmula com o vivo da experincia clinica
(Brousse, 1997).
Em relao a Totem e tabu, h em Lacan uma revolta com a insistncia de Freud de que
isso fosse real20. Para ele um pai da horda nunca existiu. No por predicar um retorno
a Freud que eu no posso dizer que Totem e tabu meio torto (1969-70, p.117).
18

Desfamiliarizar o dipo representa um esforo diante das crticas que se fez psicanlise de
condicionar o dipo s caractersticas da famlia burguesa-vitoriana dos tempos de Freud.
19
Em conferncia intitulada As interpretaes lacanianas do dipo freudiano, Brousse (1997) trata
dessas variaes do dipo retomando o caso do pequeno Hans e tira importantes conseqncias para a
clnica psicanaltica com crianas.
20
Caterina Koltai, em seu livro Totem e tabu, um mito freudiano, mostra que Freud oscila entre
apresentar o parricdio como um fato que ocorreu em um passado distante e foi recalcado e apresent-lo
como um fato imaginrio, que captura algo de essencial do real: a relao do pai com a lei.

50

Contudo, Lacan identifica uma invariante nesses dois mitos (dipo e Totem e tabu) e
dedica-se a examin-la: o assassinato do pai a condio de gozo.
Totem e tabu apresenta-se como o mito fundador da funo paterna. Havia uma horda
primitiva dirigida por um nico macho que gozava de todas as fmeas e que privava
seus filhos do acesso a qualquer uma delas. Um dia, os filhos se juntaram para matar o
pai. Uma vez o pai assassinado e seu lugar liberado, diante da rivalidade fraterna, os
filhos erigem uma lei ainda mais radical. De fato, se o pai, segundo a Lei, o pai
morto, esse o representado no Totem, ou no nome da lpide, ento s h um passo a
ser dado para dizer que o pai um significante e Lacan faz isso (VANIER, 2005, p.
66). Lacan d a esse significante o nome de Nome-do-Pai e situa a castrao no centro
de sua funo.
No centro do dipo est a castrao. A funo do pai de agente da castrao. A
castrao o que atinge o filho e se transmite de pai para filho. Vale marcar que, se a
metfora paterna implica uma perda de gozo, ao mesmo tempo autoriza o gozo-flico 21.
O pai, por natureza incerto, nomina cada filho ordenando-o em uma linhagem e
inscrevendo-o na diferena entre as geraes: O pai de fato o genitor. Mas, antes que
o saibamos de fonte segura, o nome do pai cria a funo do pai (LACAN, 1954a, p.
47).
Ainda que eu tenha feito a passagem por Totem e tabu de forma muito rpida, ficam as
referncias para que o leitor possa aprofundar-se. O que me importa destacar aqui que
em Totem e tabu, uma vez o pai morto que seus filhos podem gozar (em um Lacan
que se dedica a formular um mais alm da metfora paterna, veremos que um pai
vivo, sexuado e imperfeito que opera em sua funo de resduo).
Ao tomar o pai morto como equivalente ao gozo da me, Lacan faz uma transposio do
mito estrutura, tomando essa equivalncia como um operador estrutural. Mesmo
questionando o mito de Totem e tabu, o autor assinala a segregao intrnseca
fraternidade, na qual, quando estamos todos isolados juntos, estamos isolados do resto:
seja como for, eles se descobrem irmos, e indagamos em nome de qual segregao
21

O gozo flico um gozo limitado pela castrao, mas acessvel. Para Lacan, a castrao permite o
acesso a um gozo possvel (enquanto para Freud a castrao era o que impedia o gozo). O falo organiza o
corpo em torno de um rgo isolado pelo significante (VANIER, 2005, p. 92).

51

(1969/70, p. 121). A preocupao com a segregao, um trao de nossa poca estamos evidentemente numa poca em que a segregao, erght! (p. 120) - uma
constante no ensino de Lacan e retomada pelos seus leitores em suas anlises sobre o
mal-estar na atualidade. A segregao subjacente a um lao social no s
fundamentado em um ns, mas exacerbado neste ns, evidenciando um apagamento
da diferena em prol da semelhana. Essa temtica ser retomada no captulo 4.
O mito freudiano, pretendendo-se real, localiza na morte do pai a interdio do gozo.
Depreende-se da que pai morto= gozo impossvel. Ao propor um para alm do
dipo, Lacan conjuga o pai como um termo do impossvel. O mito seria dessa forma
um enunciado do impossvel, impossvel que Lacan credita linguagem uma vez que o
gozo est interditado a quem fala. Ou, dito de outro modo: toda formao humana tem
por essncia, e no por acaso, de refrear o gozo (LACAN, 1967, p. 362). A perda de
gozo se produz pela linguagem, decorrncia da condio humana, ou seja, decorre de
sermos animais capazes de fala, condio circunscrita por Lacan em termos de seres
falantes (condio que o gato do rabino viu-se fadado a ratificar uma vez que se
instituiu como ser falante). Creditar linguagem a perda de gozo necessria
subjetivao neg-la como tributria da funo paterna. Nesse sentido, a entrada na
linguagem decorre dos cuidados iniciais que o Outro preconiza com o filhote humano a
partir de seu desamparo inicial. Freud, j no Projeto de uma Psicologia se ocupava com
a ao especfica realizada pelo Outro Primordial, descrito no texto como Prximo
cuidador (Nebenmensch) como fundamental ao convocar o beb a inscrever-se no
universo da linguagem.
Aceder linguagem implica um consentimento (trata-se de uma escolha forada) em
uma perda. Sujeitar-se ao Outro, ao desejo do Outro, operao formulada por Lacan nos
termos da alienao, condio necessria para separar-se, em um segundo tempo
lgico. Alienar-se constitui uma escolha forada, ainda que esse termo encerre um
paradoxo: possvel escolher no se alienar, no se sujeitar linguagem? Tal deciso
excluiria a possibilidade do advento do indivduo como sujeito, o que remeteria
clnica do autismo. Importa aqui destacar que a linguagem o que faz sujeito, o que
Bernardino (2006) formula nos seguintes termos [...] a linguagem, esta estrutura, que
adquire a criana! (p. 25).

52

O termo escolha forada remete ao exemplo clssico de Lacan sobre a deciso diante
da ameaa do assaltante: A bolsa ou a vida!22. Pode-se escolher dar a bolsa e
permanecer com a vida (sempre com a perda a implicada), mas pode-se hesitar e, ao
tentar permanecer, perder a bolsa... e a vida! Ou bem, ainda que a bolsa permanea, j
no haver algum para usufruir disso em proveito de que a vida se perdeu...
A retomada do dipo, no seminrio 17, foi marcada por um esforo de Lacan em
separar a castrao do dipo, separ-la do pai, tom-la como real, como efeito da
linguagem. Veja-se que a interpretao freudiana do dipo faz equivaler o pai
castrao, vela que o pai castrado, ao se colocar o pai em posio de exceo por
causa de seu assassinato, vela-se a sua prpria castrao (BROUSSE, 1997, p. 72).
Esconde-se que a castrao vem de outro lugar que no do pai: a castrao passa a
instituir-se como uma funo da linguagem e no mais como uma funo do pai. Com
isso, h um deslocamento do dipo como traumtico para o traumtico inerente
inscrio do sujeito na ordem simblica, na linguagem, implicando sempre o real da
perda de gozo.
No h causa do desejo que no seja produto da operao da castrao. A castrao a
operao real introduzida pela incidncia do significante, seja ele qual for, na relao do
sexo. E bvio que ela determina o pai como esse real impossvel que dissemos
(LACAN, 1969/70, p. 135). Nesse sentido, se pai por causa de. (LACAN, 1969/70,
p.137).
1.5.4 - O Nome-do-Pai
O dipo freudiano foi interpretado por Lacan como metfora paterna: falei ento nesse
nvel sobre a metfora paterna. Nunca falei do Complexo de dipo a no ser desta
forma (LACAN, 169-70, p. 118). A metfora paterna consiste na substituio do
significante Desejo-da-Me pelo significante Nome-do-Pai. Ao introduzir o Nome-doPai, Lacan declina o pai reduzindo-o a um nome que no se confunde com traos
biogrficos sociais ou familiares de um pai. Na metfora paterna, os personagens que
compem a trama edipiana so desimaginarizados (h uma reduo do imaginrio ao
simblico). O pai um significante (Nome-do-Pai) e a funo paterna opera como
22

Cf. Seminrio 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise.

53

metfora - pela substituio de um significante por outro. Vale lembrar que a metfora
implica substituio e desaparecimento e, tambm, que haja um mais de sentido.
Retomando: ao desejo materno substitui-se o Nome-do-Pai (representante de um desejo
materno outro, no voltado para a criana). Dessa forma, assim como o pai, a me
tomada como um significante, o Desejo-da-Me23, que comporta uma incgnita (x): a
criana se pergunta sobre as idas e vindas da me. A criana interessa-se pelo desejo da
me, [...] na medida em que seu desejo o desejo do desejo da me (LACAN,
1957/58, p. 188). Esse desejo est no lugar de uma ausncia, de uma falta. O desejo da
me neste momento uma palavra para definir ausncia (BROUSSE, 1997, p. 54). O
seguinte trecho permite antever os riscos que Lacan preconiza para aqueles que
permanecem aprisionados no campo do desejo da me:
O papel da me o desejo da me. capital. O desejo da me no
algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia
sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocs esto a
me isso [...] o que se chama falo. o rolo que os pe a salvo se,
de repente, aquilo se fecha (LACAN, 1969/70, p. 118).

A metfora paterna consiste na substituio de uma ausncia por uma palavra que venha
tapar a ausncia e, no seu reaparecimento como uma proibio (pai morto e me
proibida). Aqui se atualiza a funo da lei, caracterizada pelo pai morto, portanto
simblico, a funo da falta ou ausncia caracterizada pela me proibida, portanto real,
e a funo significante encarnada pelo falo, o a mais que se produz como resultado da
operao metafrica. O pai assim o que permite ao sujeito sair do impasse imaginrio.
O dipo comporta uma funo de normalizao. Essa funo no incide apenas na
estrutura moral do sujeito, nem em suas relaes com a realidade: diz respeito
assuno de seu sexo (LACAN, 1957/58, p. 171), permitindo que o homem assuma o
tipo viril e que a mulher assuma um certo tipo feminino e se reconhea como mulher e
se identifique s suas funes de mulher (LACAN, 1957/58, p. 171). A norma
estabelecida graas interveno simblica do Nome-do-Pai sobre o Desejo-da-Me
a norma flica, que tenta regular a existncia da diferena sexual sem restringi-la
diferena entre os genitais masculino e feminino. A pertinncia norma flica deve-se
23

Pode-se ler no significante Desejo da me tanto a me como desejante quanto a me como desejada.
Veremos a seguir como para que o pai se apresente em sua prversion crucial que possa instituir a me
como objeto causa de seu desejo como homem.

54

incidncia da metfora paterna. O Nome-do-Pai a capacidade normativizante do pai


enquanto ele no se conforma a uma mdia, mas faz rachar as normas maternas para
instituir novas. Sua perverso a verso da mudana de norma que ele institui por
relao ao desejo da me (PORGE, 1998, p. 41).
Portanto, no a normalidade do pai (pai normal) o que permite que ele seja um
normatizador nem esta a normalidade que resulta do dipo entendido como uma
funo de normalizao. Aqui no est em jogo a normalidade como uma oposio ao
patolgico, mas uma normatizao como neurose: um pai como neurotizante, na
medida em que incide sobre a metfora paterna, o que independeria de sua presena
fsica. Mais uma vez Lacan separa a normalidade do pai de sua posio normal na
famlia. O pai Real nada mais que um efeito da linguagem e no tem outro real
(LACAN, 1969/70, p.134). neste contexto que o autor no perde a oportunidade de
separar o pai Real do pai da realidade, pois, traduzindo-se em um efeito da linguagem, a
funo paterna no corresponde ao lugar do pai na famlia ou na sociedade, mesmo
numa sociedade que no lhe d evidentemente um grande papel (169/70, p. 133).
Reproduzo a seguir, de forma resumida, os trs tempos do dipo em Lacan. No
primeiro tempo, o pai intervm como smbolo e a criana se oferece como assujeitado
(ao desejo da me). Lacan (1957/58) destaca que se trata de um capricho articulado
pela me, o pai existe aqui de forma velada, pois o significante designado como Desejoda-Me j metaforizado pelo Nome-do-pai. H uma dimenso nominal do pai que
determinante para esta articulao.
No segundo tempo, o pai aparece como interditor. a declinao do pai mais conhecida
e divulgada e que poderia deixar acreditar que a funo paterna se traduz em termos da
autoridade do pai, como vimos. Este intervm no mais de forma velada, mas
intermediada pela me. Vale frisar que a privao [] da me, no da criana
(LACAN, 1957/58), j que a divulgao do pai como interditor e representante da lei
pode deixar entender que a proibio recairia sobre a criana. Aqui a me que
consente em transmitir a lei suportada pelo pai (LAIA, 2006).
A sada do dipo depende de um terceiro tempo, que marca a consolidao da norma
flica na orientao da trama sexual de um sujeito. O pai no mais velado nem

55

mediado, o pai revelado na medida em que ele tem o falo (LACAN, 1957/58), d
me o que ela deseja. O falo se revela como o dom de um pai me de seu filho. O pai
d provas de que tem o falo e pode efetiv-lo para alm de um objeto de privao para a
me.
O falo se constitui como um objeto privilegiado na ordem simblica. A relao da
criana ao falo se estabelece uma vez este o objeto do desejo da me. Esta relao, no
entanto, mediada pela palavra do pai, e, nesse sentido, a metfora paterna o que
permite fundamentar o desejo inconsciente. E, mais que isso, a partir dessa operao
que um sujeito se localiza na diferena sexual. O falo no um pnis, um rgo ou um
objeto real, no uma fantasia nem um objeto. um significante (LACAN, 1953d).
Trata-se do mesmo significante para ambos os sexos, marcando a substituio do desejo
materno por um nome e tambm a substituio do rgo pelo semblante (LACAN,
1956/57).
A introduo do falo como significante da diferena sexual no ser
falante tem como conseqncia a passagem ao parecer, ao semblante.
No ser falante, o sexo organizado no apenas pela diferena
anatmica, que tem sua importncia, mas determinado pela
linguagem. O falo produz uma substituio do ser com o parecer. O
que implica que tudo que tem a ver com o sexo para os humanos est
do lado do semblante. Quando se fala em ser homem ou ser mulher
sempre do lado dos semblantes (BROUSSE, 1997, p . 59).

As posies masculina e feminina so conseqncias do dipo, o mais de sentido que se


produz tem a ver com a sexuao. Essas posies so fundadas no imprio dos
semblantes que necessita do imprio dos significantes, por sua vez organizado pelo
significante flico, que tem a ver com o Nome-do-Pai (BROUSSE, 1997, p. 60).
A sexuao o processo de eleio de uma posio sexuada e de um objeto sexual. No
h sexuao sem dipo. No dipo unem-se a filiao e a sexuao, e a famlia o lugar
ao mesmo tempo fundamental, mtico e real desse processo. No h sexuao sem
filiao. No h eleio do sexo, da posio sexual na cadeia das relaes sem uma
posio na genealogia (BROUSSE, 1997). Antes de formular a teoria dos ns24, Lacan

24

O n borromeu uma figura topolgica que articula os trs registros, simblico, imaginrio e real,
apresentada por Lacan pela primeira vez no seminrio Ou pior, aula de 9 de fevereiro de 1972. Ao se
cortar algum desses ns, os outros se veem imediatamente soltos, este n consiste estritamente no fato de

56

atribui ao dipo o valor de n: une a estrutura do sujeito sua histria singular. O dipo
se institui, portanto, no n entre estrutura e subjetividade. Une a perspectiva estrutural
com a temporal (LACAN, 1953d).
Desse modo, o dipo o que permite instalao de uma posio inconsciente no sujeito:
uma posio sem a qual o sujeito no poderia se identificar a um tipo ideal de seu sexo,
uma posio que permite ao sujeito situar-se como parceiro de um outro e que permite
acolher as necessidades da criana que pode advir da relao sexual com outro (Lacan,
1953d).
Com a metfora paterna, Lacan desfamiliarizou o dipo, mas Brousse (1997) nota que
ela no leva em conta o pai da realidade, s o nome, e assim s fala dos pais como
mortos. A realidade dos pais, das mes, so acidentes ou tem poder de determinao? Se
no h pai seno traumtico25, que lugar dar ao trauma? Essa tambm parece ser a
pergunta de Lacan sobre o pai como morto. A noo de pai morto cria dificuldades
quando a noo de pai Real abordada por Lacan: como fica a questo da morte como
estando na origem? Talvez tenha sido a partir deste interrogante que Lacan tenha
trabalhado a funo do pai na direo de um pai vivo, cuja eficcia reside no apenas na
interdio, mas no testemunho e na conseqente autorizao de um gozo, como veremos
a seguir.
A abordagem formal do complexo de dipo no dispensa a presena dos corpos em
jogo nessas relaes. Para avanar em relao a este ponto, Laia (2006) refere-se a uma
diferenciao estabelecida por Laurent entre o pai como funo simblica e o pai como
existente, mostrando que a dimenso formal do dipo est referida a uma corporeidade.
A formulao do dipo em termos da metfora paterna um movimento importante no
sentido do movedio mobilizado pela questo do pai. No entanto, [...] a metfora
paterna no se processa sem algum tipo de incidncia sobre a existncia (LAIA, 2006,
p. 50) e implica tambm um resto.

que trs o seu mnimo [...] , a saber, que se de trs vocs rompem um dos anis, eles ficam livres todos
os trs, ou seja, os outros dois se soltam (LACAN, 1974/75, p. 5).
25
Lacan chamava o traumatismo sexual, estrutural, de troumatisme, que pode ser lido tanto como
buraco no real como um truque do sujeito. No lugar desse furo, o sujeito inventa algo, um truque, para
preench-lo.

57

Propor um tratamento ao resto pode ser algo fecundo em uma poca em que se pretende
que no haja resto! Naparstek (2006) lembra que Freud j apontava para o quanto o
resto poderia ser fecundo ao tomar os sonhos como resto diurno. Lacan, no fim de seu
ensino, toma o resto como aquilo que causa, declinando o pai em uma verso que leva
em conta o gozo; mais que isso, ala-o a uma condio crucial na transmisso paterna.
1.5.5- Mais alm do Nome-do-Pai
A formalizao em termos da metfora paterna no a ultima de Lacan sobre o pai: ele
declina o pai mais alm do Nome-do-pai. Em RSI (1974/75), o psicanalista apresenta
uma nova declinao que d um tratamento ao que resta da operao da metfora
paterna: o objeto a. Os corpos agora so tomados como sexuados e a funo paterna
pode ser definida a partir de um trecho que recortado e trabalhado pelos lacanianos
uma e outra vez, no qual Lacan formula a noo de prversion: um pai s tem direito
ao amor e ao respeito de uma mulher se tal amor for pai-versamente orientado, isto , se
ele fizer de uma mulher a causa de seu desejo. A prversion, novidade dessa
declinao, comporta um pai desejante, sexuado, que no coincide mais com o pai dos
trs tempos do dipo (velado, mediado e revelado). Porge (1998) situa as articulaes
apresentadas em RSI como uma soluo para os problemas colocados pelo Nome-dopai, de modo que a suspenso de 1963 (a interrupo do seminrio sobre os nomes do
pai na primeira aula) no mais relembrada por Lacan.
Ao instituir a funo do pai como prversion, Lacan mais uma vez lana mo dos
jogos de palavras - sempre to apreciados por ele - fazendo valer a referncia
sexualidade e propondo uma verso sexuada da funo paterna, introduz nesta a
dimenso do gozo, o pai como aquele que autoriza um gozo. Ao declinar-se como
prversion, o pai funciona como vivo/desejante, como modelo de uma funo de
gozo. Modelo e exceo articulam-se aqui da seguinte maneira: preciso que qualquer
um possa ser exceo para que a funo de exceo se torne modelo [...] A est o que
deve ser um pai, na medida em que s pode ser exceo (LACAN, 1974/75, p. 23).
No dipo da metfora paterna, o simblico prevalecia sobre o real e o imaginrio. Em
RSI, ponto de chegada da reflexo de Lacan sobre o para alm do dipo freudiano, no
h mais predominncia do simblico. Nessa declinao, o pai deixa de ser o significante

58

de uma funo e constitui-se em uma existncia singular, um uso de gozo particular que
habilita outras excees (LAIA, 2006).
A nomeao, num primeiro tempo em Lacan, decorre do registro simblico. O Nomedo-Pai equivale ao pai esvaziado de gozo, ao pai morto. Quando se trata do pai vivo e
gozante da prversion, a nomeao tambm de ordem imaginria e real. No entanto,
o pai um vetor de uma encarnao da lei no desejo, ele existente, mas tambm
semblante; como vetor, ele suporta, mas no consiste. Nesse sentido, no equivale a um
ideal (aqui no esto em jogo suas virtudes morais), tampouco deve confundir-se com
excepcional e recai em uma impostura quando pretende consistir (ou confundir-se com)
a lei:[...] nada pior que um pai que profere a lei sobre tudo: sobretudo nada de pai
educador (LACAN, 1974/75, p. 23, grifo meu). O pai Real se define a partir da causa
(como causa sexual) e no pode operar a partir de enunciados edificantes. Estes
apontariam para uma verso de pai purificado de gozo (Laurent, 2007).
O pai Real se configura como um pai que permite e d. Um pai que porta a lei, diferente
do pai de direito ou do pai que intervm simbolicamente. importante desprender-se da
idia de um pai que se identifica funo do interdito para abrir margem para um pai
cuja lei menos oposta e mais articulada lei do desejo: a funo do pai unir e no
opor o desejo lei.
Na mesma linha, a eficcia do Nome-do-Pai residiria no fato de que algum se levanta
para responder (LACAN, 1971, aula de 16 de junho de 1971), um nome chamado para
que algum fale. Nesta declinao, no importa tanto o nome dado ao pai, mas o nome
dado pelo pai ao nominar, O que s quer dizer que o Pai enquanto Nome, no quer
dizer nada de incio, no s o pai como nome, mas como nomeador (LACAN,
1974/75, p. 64). A nominao faz buraco, e Lacan enftico, para alguma coisa ex-istir
preciso que haja buraco.
O pai Real recoloca a questo do pai encarnado e, nesse sentido, consiste em uma
formulao central para articular a famlia como resduo, o romance familiar e o modo
como pai e me se conformam em semblantes ao encarnar as funes.

59

Domingos Infante26 (2010) avana significativamente ao precisar em que consiste a


nominao do pai Real. Ao nominar, o pai Real, no mesmo golpe, atarraxa um nome ao
gozo, cria um real e singulariza27. Quando se nomina, o pai cria um real, um pai real,
que se submete lei; nominar implica localizar um gozo e cifr-lo, implica um desejo.
As nominaes criam um real, separam a criana do campo materno e a alienam na
linguagem. Ao nominar, o pai Real d testemunho de que um sujeito singular tem um
gozo especfico. Infante contundente ao afirmar que para revelar uma implicao de
gozo o pai Real tem que ser encarnado.
O pai, em sua pai-verso, como existente, afeta os corpos e localiza um gozo. graas a
um pai que pode se inscrever em um corpo a marca de uma satisfao singular e
contingente (LAIA, 2006).
Bruno (2003) tambm partilha da posio de que o pai Real tem que ser encarnado,
algum de carne e osso que no seja somente o portador abstrato de uma funo, mas
que assuma o risco da paternidade. Assim, no se trata de um pai virtual, ainda que a
eficcia de sua palavra no resida em sua presena fsica. Dolto (1989) destaca a funo
simblica do pai de sua presena fsica ao referir-se a pais que iam ao exrcito, mas
mantinham uma relao epistolar com os filhos, escrevendo a cada um uma carta
mensal, respondida individualmente.
Nessa perspectiva, o pai Real opera ao nominar um desejo especificado (um desejo no
annimo, como define Lacan ao circunscrever o que irredutvel numa famlia). Ao
final dessa operao, pontua Bruno, o sujeito assume sua exceo, ou seja, o sujeito se
separa do gozo do Outro, separa-se para se servir do pai. A extrao do pai Real faz
borda (BRUNO, 2003). Nesse sentido h pais e no pai, porque h modos de gozo.
Como h pais, o Nome-do-Pai multiplica-se em tantos nomes quantos forem os suportes
sua funo, no se sustenta mais na ordem simblica e como portador da interdio. A
pai-verso se funda em uma pluralizao da funo paterna, autoriza um gozo e, para
tal, no pode consistir em um pai morto. Mas preciso que o pai seja reconhecido como

26

Em transmisso oral realizada no Seminrio sobre o Sinthoma em 2009.


Singular remete ao latim singularis cuja raiz sem que significa uma s vez (YUREVICH, 2009, p.
117).
27

60

um semblante: o semblante do pai o signo de que houve transmisso do pai, naquilo


que o divide, a saber, o real de seu modo de gozo (SANTIAGO, 2006, p. 86).
Se o pai, como morto, permite que o identifiquemos perfeio, um pai vivo e gozante
comporta a imperfeio. Assim, se o pai ideal uma fantasia do neurtico, s pode slo enquanto morto. O exame dos discursos pblicos em vigor sobre a parentalidade28
parte da hiptese que estes vo na direo da promoo de um ideal no que tange ao
exerccio dos papis de pai e me, dando consistncia a noes como competncia
parental e oferecendo a certeza e a assepsia no lugar da imperfeio (do gozo, nem se
fala!). Nesse sentido, me pergunto sobre os efeitos que estes discursos podem ter para
os pais, ou seja, para estes poderem dar lugar imperfeio na transmisso (imperfeio
necessria para a subjetivao contingente).
Com um pai gozante e imperfeito, no h garantia, e onde no h garantia, onde h
uma lacuna no cdigo, h lugar para a iniciativa, h lugar para a deciso, para a causa
do desejo (ZENONI, 2007, p. 8), para a inveno, termo caro a Lacan no fim de seu
ensino. Nessa ltima declinao, o pai perde consistncia para converter-se em um
semblante: ele tampa o buraco, fazendo crer que no h buraco (ZENONI, 2007, p.
8), velando a falta de consistncia e, no mesmo movimento, dando testemunho da
maneira particular pela qual d conta da inexistncia da relao sexual. Um pai confere
uma fico l onde existe um real, confere um semblante no lugar do impossvel: seu
modo particular de gozar o que lhe d alguma consistncia. Ao nominar, o pai Real
habilita a inveno.
Por outro lado, no prolongamento do que foi exposto no seminrio As
formaes do inconsciente, a respeito do pai real, a noo de pai ser,
a partir de ento, e definitivamente, abordada no sob o ngulo do
parentesco, mas sob o da aliana homem-mulher, sob o ngulo,
portanto, do efeito colateral da posio de desejo do pai sobre a
constituio subjetiva da criana. No se enfatiza a dissimetria ou a
hierarquia entre os papis dos pais, mas sim a diferena sexual,
homem-mulher, no casal de pais (ZENONI, 2007, p. 9).

Esse trecho de Zenoni central para que avancemos nas articulaes entre famlia e
parentalidade. A famlia como resduo (reduzida s condies necessrias para que haja
28

Uma das vertentes pelas quais o neologismo parentalidade comparece na atualidade, tema que ser
abordado no captulo 3.

61

sujeito) no se confunde com o lugar do pai na sociedade (e, portanto, no varia


conforme a poca) e opera desde que a diferena sexual prevalea e que, de posse de um
desejo particularizado, no-annimo, algum se levante para responder. Adianto ao
leitor que a famlia (em sua funo de resduo) tampouco estaria ameaada pela
paridade entre os sexos ou pela diviso da responsabilidade entre pai e me, uma vez
que ambas no se confundem com a transmisso da diferena sexual.
Vale marcar que, na famlia, o gozo aparece de forma velada e que a tendncia tentar
conjugar sem resto. nessa perspectiva que pai e me no so mais que semblantes,
velam a falta, uma vez que o real des-cobre o semblante, mas reconhecem e
testemunham a relao que estabelecem com esta. Numa poca em que conjugar sem
resto e o empuxo a gozar so imperativos, o pai Real, em sua prversion, ao
testemunhar uma relao possvel com o gozo, reintroduz a dimenso do gozo na
famlia e atualiza no s a inexistncia da relao sexual, mas a singular sada que arma
diante desta.
1.6 Os Complexos familiares
Ao introduzir o tema dos Complexos Familiares no texto de 38, Lacan situa, ao mesmo
tempo, o ponto no qual a aproximao com a sociologia29 se faz necessria dado o
objeto de estudo em questo e o ponto no qual comparece a especificidade do
referencial psicanaltico diante do mesmo objeto: [...] a famlia, como objeto e
circunstncia especfica, nunca objetiva os instintos, mas sempre os complexos
(LACAN, 1938, p. 19).
Na segunda edio de El sufrimiento de los nios, Pablo Peusner inclui uma segunda
parte, organizada a partir de um seminrio que proferiu em Buenos Aires em 2003,
intitulado Elementos para uma teoria lacaniana da famlia. Introduz o tema da famlia
em psicanlise com uma advertncia - assim como fizera ao trabalhar cuidadosamente o
tema do sofrimento das crianas, atrelando-o a uma temporalidade -, pontuando que
preciso ter com a famlia o mesmo cuidado que temos para que o sujeito no seja uma
29

na ordem original de realidade constituda pelas relaes sociais que se deve compreender a famlia
humana. Se, para assentar esse princpio, recorremos s concluses da sociologia, ainda que a soma dos
fatos com os quais ela o ilustra ultrapasse o nosso tema, porque a ordem de realidade em questo o
objeto prprio desta cincia (LACAN, 1938, p.19)

62

pessoa de carne e osso, para no a reduzirmos a um grupo de pessoas de carne e osso,


com o mesmo material gentico e o mesmo sangue. Adverte ainda sobre os riscos
implicados na traduo do termo parents (os pais, pai e me) do francs ao espanhol (o
que valeria tambm ao traduzi-lo para o portugus), pois parents so tambm aqueles
que compem os ascendentes de uma pessoa e, ainda, parent qualquer pessoa com a
qual se tenha um lao (destaca que o dicionrio Gran Robert no especifica que esse
lao deva ser sanguneo) de parentesco.
preciso, portanto, checar nas tradues de textos ou conferncias de Lacan se a
referncia aos pais ou aos parentes, uma vez que essa confuso no deixa de ter
efeitos na leitura do texto de Lacan de 193830. Peusner precisa ainda que o erro de
traduo desse termo nos deixa totalmente atados idia de famlia biolgica, e frisa
que, em 1938, Lacan conhecia muito bem a noo de famlia conjugal31 e pretendia
que sua noo de complexo familiar tomasse distncia em relao quela.
Proponho agora que acompanhemos o modo pelo qual Lacan destaca da famlia os
complexos familiares e depois as constelaes familiares. Se a noo de complexo est
j em Freud e situa-se na base do escrito de Lacan de 1938, as constelaes familiares
aparecero como uma inveno lacaniana.
Lacan define o complexo sempre em oposio ao instinto, atribuindo ao primeiro um
carter social, cultural. Posto que a ordem humana subverte toda a fixidez instintiva, o
complexo antinmico ao instinto e pertence ao domnio da cultura, e esta, diz Lacan,
uma considerao essencial para quem quer explicar os fatos psquicos da famlia,
entendida como o lugar de eleio dos complexos mais estveis e mais tpicos.
Se Freud instituiu a noo de complexo atribuindo-lhe um carter inconsciente, Lacan
atualizou seu papel de organizador no desenvolvimento psquico e props incluir os
fenmenos conscientes em seu estudo das relaes dos complexos com a famlia, entre

30

Esse comentrio de Peusner sobre a traduo de parent vem fortalecer o de Miller (1984) sobre a
traduo do ttulo do escrito de Lacan. A advertncia recai sobre o fato de que a compreenso de um texto
pode ficar comprometida caso no haja o cuidado necessrio na traduo.
31
O termo aparece no texto de Lacan pela primeira vez na pgina 16, j referido ao modo como
Durkheim o emprega.

63

os quais destaca o complexo do desmame, o complexo de intruso e o complexo de


dipo32.
Miller (1984) comenta que o modo como Lacan apresenta o conceito de complexo o
eleva ao estatuto de conceito chave da teoria do desenvolvimento e da psicopatologia.
Para o autor, o conceito em questo operatrio, uma pr-estrutura, uma antecipao
do conceito de estrutura - presente na referncia ao social -, uma vez que o conceito de
estrutura falta a Lacan no momento da elaborao desse escrito.
A nfase posta sobre o social obrigatria nessa Enciclopdia e
sobre o cultural como sendo o que especifica o social no homem, um
cultural que feito de sedimentaes da comunicao, j anuncia a
noo de simblico pela afirmao, chocante em todos os sentidos
para o leitor da poca, de que o que a psicanlise verifica a
dominncia dos fatores culturais (MILLER, 1984, p. 3).

em O mito individual do neurtico, de 1952, que Lacan institui a noo de


constelao familiar e situa sua inspirao nos astrlogos para forjar este termo:
A constelao por que no, no sentido que dela falam os
astrlogos? , a constelao original que presidiu ao nascimento do
sujeito, ao seu destino e quase diria sua pr-histria, a saber, as
relaes familiares fundamentais que estruturam a unio de seus pais
[...] (LACAN, 1952, p.19).

Seriam ainda componentes da constelao familiar as lendas, as tradies familiares e


os traos que especificam a unio de seus pais.
No texto de 1952, Lacan prope uma leitura do caso O homem dos ratos, de Freud,
qual articula sua noo de constelao familiar. Recorto dois pequenos trechos:
A constelao do sujeito (o homem dos ratos) formada na tradio
familiar pelo relato de um certo nmero de traos que especificam a
unio dos pais (LACAN, 1952, p. 19)
O que de fato se v numa viso panormica da observao a estrita
correspondncia entre esses elementos iniciais da constelao
subjetiva e o desenvolvimento ltimo da obsesso fantasstica
(LACAN, 1952, p. 21).

32

C.f. Lacan, J. (1938) Os complexos familiares na formao do indivduo.

64

Peusner (2009) repara que em quase todos os momentos em que Lacan fala de
constelao familiar, faz referncia ao homem dos ratos. Avalia que este foi o caso
em que Freud refletiu com mais profundidade sobre o problema da constelao
familiar, mas pontua que o sistema aplicvel a qualquer caso.
A constelao familiar de um sujeito humano falante deve ser
entendida ao modo dos astrlogos: preciso faz-la falar. E preciso
faz-la falar porque permite no s estabelecer as posies de seus
componentes no momento da chegada de um sujeito falante ao
mundo (algo assim como uma carta natal), mas que tambm
preciso faz-la falar para que permita antecipar algo do que poderia
ocorrer no futuro (no sentido do melhor horscopo). Lacan, em O
mito individual do neurtico, afirma que a personalidade do paciente
deve constelao familiar seu nascimento e seu destino
(PEUSNER, 2009, p. 100, traduo livre)

Em entrevista publicada no LExpress, em 1957, justamente a propsito do caso do


Homem dos ratos, Lacan retoma a noo de constelao familiar. Aponta que se trata de
uma constelao dramtica, anterior ao nascimento, a qual se situa na pr-histria de um
indivduo e reproduzida por ele, sem ter a menor idia de que o faz. Precisa, e isto
central, que se fosse suficiente ter uma pr-histria na origem de uma conscincia,
seramos todos neurticos e que, o que determinante, o modo pelo qual o sujeito
tomas as coisas, admite-as ou as recalca. Reproduzo um trecho do Seminrio 1, no qual
Lacan articula, em sua leitura do texto freudiano, a singularidade do sujeito em relao
sua histria:
O progresso de Freud, sua descoberta, est na maneira de tomar um
caso na sua singularidade. Tom-lo na sua singularidade, o que quer
dizer isso? Quer dizer essencialmente que, para ele, o interesse, a
essncia, o fundamento, a dimenso prpria da anlise, a
reintegrao, pelo sujeito, de sua histria at os ltimos limites
sensveis, isto , at uma dimenso que ultrapassa, de muito, os
limites individuais (1953/1954, p. 21).

Todo o trabalho que o paciente criana ou adulto realiza acerca de sua histria
excede o limite do individual, este que j superado desde e quando se parte da
linguagem como estruturante da subjetividade. A linguagem nos antecede, e aceder a ela
implica automaticamente exceder o limite individual. O lugar da famlia est ligado
lngua que falamos, falar numa lngua j dar testemunho de um lao com a famlia
(MILLER, 2007).

65

O mito familiar, que no da ordem que uma transmisso biolgica/hereditria33, o


que excede o limite individual. A seguir, e para encerrar esta temtica, recorro a dois
escritores que retratam de forma intensa e contundente a beleza, mas tambm o horror
que exceder o limite individual pode provocar no sujeito.
Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar,
pareciam achatadas ao solo e mais escuras luz do mar. Os cabelos
da criana voavam...
O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocncia
de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vo? Via preocupado que sua
mulher guiava a criana e temia que neste momento em que ambos
estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho... mas o qu?
Catarina, pensou, Catarina, esta criana ainda inocente! Em que
esta priso de amor que se abateria para sempre sobre o futuro
homem. Mais tarde seu filho, j homem, sozinho, estaria de p diante
desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraa; preso. Obrigado a
responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a me
transferia ao filho a herana. E com que sombrio prazer. Agora me e
filho compreendendo-se dentro do mistrio partilhado. Depois
ningum saberia de que negras razes se alimenta a liberdade de um
homem. Catarina, pensou com clera, a criana inocente!.
Tinham porm desaparecido pela praia. O mistrio partilhado34
(LISPECTOR, 1998, p. 100/1001).

A seguir, alguns trechos extrados da Carta ao pai, de Franz Kafka (1919), escrita aos
36 anos.
Quero tentar explic-lo melhor: na tentativa de casamento confluem,
nas minhas relaes com voc, duas coisas aparentemente opostas,
to fortes como em nenhuma outra parte. O casamento certamente a
garantia da mais ntida autolibertao e independncia. Eu teria uma
famlia, o mximo que na minha opinio se pode alcanar, ou seja:
tambm o mximo que voc alcanou; eu seria igual a voc, a velha e
eternamente nova vergonha seria apenas uma histria. Com certeza
seria fabuloso, mas justamente a que est o problema. algo
excessivo, no se pode conseguir tanta coisa assim. como se
algum estivesse aprisionado e tivesse no s a inteno de fugir o
que talvez fosse realizvel mas tambm, e, na verdade ao mesmo
tempo, a de transformar, para uso prprio, a priso num castelo de
prazeres. Mas, se ele foge, no pode fazer essa transformao, e se a
faz, no pode fugir. Se eu quiser me tornar independente, na relao
especial de infelicidade em que me encontro com voc, preciso fazer
alguma coisa que no tenha a menor ligao possvel com a sua
33

[...] assim, o que depende apenas da transmisso biolgica deve ser designado como hereditrio e
no como familiar[...] (LACAN, 1938, p. 65).
34
Trecho do conto Os laos de famlia, extrado do livro que leva o mesmo ttulo.

66

pessoa; o casamento sem dvida o que h de maior, e confere a


autonomia mais honrosa; mas tambm est, ao mesmo tempo, na
mais estreita vinculao com voc. (KAFKA, 2007, p. 67)
s vezes imagino um mapa-mndi aberto e voc estendido
transversalmente sobre ele. Para mim, ento, como se entrassem em
considerao apenas as regies que voc no cobre ou que no esto
ao seu alcance. De acordo com a imagem que tenho do seu tamanho,
essas regies no so muitas nem muito consoladoras e o casamento
no est entre elas (p. 68).

No posfcio da Carta ao pai, Modesto Carone comenta a metfora do pai de Kafka


estendido sobre o mapa-mndi e lembra duas observaes feitas por Adorno: A origem
social do indivduo revela-se no final como a fora que o aniquila. A obra de Kafka
uma tentativa de absorv-la. (ADORNO apud CARONE, 2007, p. 80). A segunda ideia
traduzida por Carone da seguinte forma: [...] quando algum mergulha em si mesmo,
no encontra uma personalidade autnoma, desvinculada de momentos sociais, mas sim
marcas de sofrimento do mundo alienado (CARONE, 2007, p. 80). O autor
presentifica os comentrios de Adorno para concluir com o que seria a sua leitura do
fenmeno Kafka: Transformado pelo pai em filho deste sculo, Kafka deu um passo
adiante, prprio do artista, e se tornou um poeta (crtico) da alienao. No pouco para
quem se considerava um fracasso (p 80).
Nos trechos recortados vemos Kafka lidando com a dificuldade do sujeito se liberar de
um pai violento e opressor: um pai que domina o continente e que permite que fiquem
do lado de fora de seu arbtrio apenas pequenos pedaos, desinteressantes e
desconhecidos, insuficientes para que essa suposta autonomia possa se firmar. Kakfa
mostra como a subjetividade se firma para alm da individualidade. Se Adorno mira as
determinaes sociais, chamo a ateno para o tema da herana familiar. E que herana
essa que Kafka procura elaborar e da qual procura se libertar!
Kakfa inicia sua carta dirigindo-se ao pai e pergunta deste sobre o medo do filho:
E se aqui tento responder por escrito, ser sem dvida de um modo
muito incompleto, porque, tambm ao escrever, o medo e suas
conseqncias me inibem diante de voc e porque a magnitude do
assunto ultrapassa de longe minha memria e meu entendimento
(2007, p. 7).

67

Penso que ultrapassa tambm sua conscincia!

1.7 - A famlia como resduo


Na Nota sobre a criana, Lacan (1969) refere-se irredutibilidade de uma
transmisso localizando-a na funo de resduo exercida pela famlia, [...] que de
outra ordem que no a da vida segundo as satisfaes das necessidades, mas de uma
constituio subjetiva, implicando a relao com um desejo que no seja annimo (p.
369). O autor delimita a funo da me, cujos cuidados levam a marca de um interesse
particularizado, ainda que pela via das prprias faltas e do pai, na medida em que seu
nome o vetor de uma encarnao da Lei no desejo. (Vejam que se trata menos da
definio de um pai do que da condio do exerccio de sua funo a partir da
localizao da causa de seu desejo em uma mulher).
Ainda que en passant, na Nota sobre a criana Lacan cita o fracasso das utopias
comunitrias. Vale destacar que o pequeno escrito foi entregue a Jenny Aubry em 1969,
perodo em que estas utopias encontravam-se no auge. Naquela poca, as utopias
comunitrias eram anunciadas no s como uma inovao, mas tambm como uma
maneira bem-sucedida de prescindir da famlia. No entanto, ao introduzir a noo de
resduo, Lacan enfatizou que no h como impedir a existncia de algo irredutvel nas
posies de pai e me, mesmo que destas no haja garantias. Resduo remete ao que
resta, mas tambm ao que permanece como irredutvel. Como resto, tambm aquilo
que causa (NAPARSTEK, 2006). A noo de resduo permite ainda circunscrever o que
no redutvel a uma determinada poca, o que permanece independentemente das
formas de conjugo, das fices jurdicas e dos discursos do especialista da famlia.
Em uma poca na qual se pretendia prescindir da famlia, Lacan preocupou-se em situar
que no h como eliminar o que irredutvel nas posies de pai e me. Na atualidade,
(como veremos no captulo 3) os discursos normativos e ortopdicos sobre a
parentalidade pretendem que se prescinda da dimenso de gozo na transmisso familiar,
investindo no exerccio de uma parentalidade competente e assptica. Assim sendo,
Laurent (2007) preocupa-se em reintroduzir a dimenso de gozo intrnseca famlia em

68

sua funo de resduo: [...] revela-se que a instituio familiar esconde, pe um vu,
dissimula o traumatismo que est no centro de toda formao humana: o gozo (p. 38).
Nesse sentido, a famlia como resduo particulariza o que a cultura (ou a civilizao)
sustenta no mbito coletivo, ao arrimar-se sobre um limite ao gozo. Ressalto que
estabelecer um limite ao gozo ou vel-lo no implica elimin-lo do campo da
transmisso familiar.
Tomar a famlia em sua funo de resduo habilita a posio de que ela resiste. Essa
posio no se ancora em nenhum modelo de famlia, nem mesmo na famlia nuclear,
como se poderia pensar. A famlia resiste reduzida ao que tem de irredutvel, e esta
irredutibilidade remete exigncia de uma transmisso, transmisso dos elementos
necessrios para que haja sujeito. Lacan enfatiza que tal transmisso de outra ordem
que no a natural. Sauret (1998) completa: no h necessidade de famlia para fazer
filhos, mas para fazer sujeitos, sim (p. 87).
Neste ponto, duas questes se destacam: a primeira que o nascimento de um filho no
determina automaticamente a constituio das funes parentais. Estas requerem um
processo delicado de reordenamento simblico e no esto determinadas pelos aspectos
biolgicos daqueles que constituem as figuras parentais. A segunda que o irredutvel
da transmisso no reside no fato de que haja um homem e uma mulher no exerccio das
funes e tampouco a existncia de pai e me conforma naturalmente instintivamente
as operaes fundamentais necessrias constituio subjetiva. Esse um ponto que
tentei destacar do texto de Lacan: algum que se apresentaria unicamente como o pai,
ou seja, que no gozaria de uma mulher, deixaria a criana nas mos do gozo do Outro
por estrutura, seja esta me boazinha ou no (SAURET, 1998, p. 47, grifo meu).
Para que haja transmisso preciso que uma me possa tambm ser mulher, preciso
que um pai possa figurar-se como um homem, e uma das vias para tal o desejo de uma
mulher. Outro modo de diz-lo seria: para que haja um neurtico, preciso no apenas
um pai e uma me, mas tambm um homem e uma mulher. importante ainda destacar
que o sujeito, independentemente dos esforos pedaggicos de seu pai e sua me,
responde ao tipo de Outro ao qual se confronta. Com isso esvazia-se a perspectiva de
que os pais podem controlar o que transmitem aos filhos e que, se forem competentes e
estiverem pedagogicamente orientados, tero mais sucesso nessa empreitada.

69

A transmisso familiar de ordem inconsciente. O que se transmite, do lado do Outro


parental, no necessariamente pronunciado ou formalizado. O significante vindo deste
Outro, produzido na estrutura, contido nessa estrutura, marca do corpo do sujeito.
Assim, pode-se dizer que o Outro Parental exerce sua funo de posse de um desejo no
annimo, oferecendo-se como um suporte concreto para que o sujeito possa animar a
estrutura. O modo como o sujeito institui o Outro para si no coincide com as
pretenses pedaggicas do pai ou da me, mas revela sua singular posio em relao
ao Outro. Assim, se o Outro decisivo, ele no decide; quem decide o sujeito.
Lacan opera com a noo de funo visando liberar-se da consistncia imaginria que
pai e me podem adquirir, e nesse sentido que a noo de funo faz obstculo ao
ideal. Mas o que uma funo? Esta no se define a partir de uma essncia ou de
caractersticas, e tampouco se pode definir o conjunto dos casos que a abarcam. Uma
funo define-se pelas realizaes das variveis que constituem seu desenvolvimento.
a partir deste ponto que Lacan declina, no final de seu ensino, cada pai, um por um,
dando testemunho de sua singular verso do gozo nessa funo. Cada pai comparece
como um modelo, no ao incorporar um ideal, mas ao fazer operar sua funo arrimada
na singularidade de seu gozo, na sua prversion.
A operacionalidade da funo materna no se confunde com o fato de uma me ser
bondosa ou com suas habilidades ou caractersticas, tambm no depende de uma
perfeio nos cuidados que preconiza. Na referida Nota, Lacan destaca a crucialidade do
desejo da me, mesmo que seja pela via de suas prprias faltas. Portanto, quando se
isolam as funes materna e paterna como irredutveis na transmisso, no esto em
jogo as boas intenes dos pais ou mesmo suas competncias e habilidades
educacionais. Vejam que at mesmo as faltas so bem-vindas!
Operar com a noo de funo permite manter o sujeito distncia do ideal e interrogar
o real em jogo no nascimento da criana, ou seja, o desejo ou o gozo que ela condensa.
A dimenso do gozo, portanto, est implicada na tarefa da famlia, naquilo que constitui
sua funo de resduo, e no centro da famlia como resduo que as faltas inerentes
transmisso avalizam a imperfeio. A transmisso da diferena sexual tambm
inerente famlia em sua funo de resduo:

70

O interesse sobre a questo familiar passa pelo assunto de saber se a


situao subjetiva do adulto, no campo aberto pela diferena sexual,
d ou no uma chance transmisso de uma posio mediadora entre
o desejo e o gozo, e como o faz (SOLIMANO, 2008, p. 87, traduo
livre).

importante que nos detenhamos um momento na transmisso da diferena sexual na


famlia, pois trata-se de um tema que leva facilmente a equvocos. Essa transmisso tem
a ver com a posio que, diante da diferena sexual, um sujeito assume ao situar-se do
lado masculino ou do lado feminino 35. Diante das mudanas no campo da famlia 36 tem
sido comum escutarmos que a diferena sexual precisa manter-se para que as condies
mnimas para a transmisso sejam preservadas, o que seria outro modo de dizer que a
famlia como resduo se encarrega da transmisso da diferena sexual. No entanto,
preciso esclarecer que a transmisso da diferena sexual no deriva da diferena sexual
anatmica, no se confunde com as diferenas sociais entre homens e mulheres (o que
levaria rapidamente concluso de que, nas famlias nas quais no h um homem e uma
mulher, no haveria as condies para a criao de uma criana) e no se alteraria com a
multiplicao das orientaes sexuais.
Mesmo que destaquemos ao circunscrever a famlia em sua funo de resduo as
condies necessrias transmisso, o modo como cada sujeito, inscrito na diferena
entre as geraes e na diferena entre os sexos, vai se articular a partir desta estrutura
absolutamente singular. Este um modo de dizer que a estrutura necessria, mas no
garantia, que o que se arma do lado do sujeito a partir da transmisso familiar
absolutamente singular. Concordo com Sauret quando ele localiza um ponto especfico
e determinante, que poderia escapar37 na leitura da Nota sobre a criana:

35

Lacan formula a distribuio de lugares no quadro da sexuao, lembrando que a psicanlise insiste em
manter a hincia e, para tanto, tem que resgatar a lgica da diferena. C.f. - LACAN, J. (1972/73) O
Seminrio, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
36
Tema que ser examinado no captulo 2.
37
Ponto que escapou aos psicanalistas que cederam tentao de biologizar a pulso e identificar a causa
a uma determinao complementar: Eles fizeram crer na ideia do neurtico segundo a qual, se o sujeito
est ferrado, culpa de seu pai, de sua me, de suas deficincias orgnicas ou cognitivas, do que ele
encontrou durante sua infncia, da sociedade e at mesmo da interao de determinantes
biopsicossociais (SAURET, 1998, p. 30).

71

Se eu pudesse acrescentar uma palavra, esse texto no trata nunca da


insondvel deciso do ser. Eu lembro a vocs, para remediar um
efeito de leitura, que eu sinto que se poderia imputar a resposta da
criana pelo que ela para seu pai e sua me. No importa o que
induza o pai ou a me, a resposta do sujeito a resposta do sujeito
(SAURET, 1998, p. 94, grifo meu).

72

Captulo 2 Mudanas no contexto histrico, mudanas na famlia

No somos daqueles que se afligem com um pretenso afrouxamento do liame familiar


(LACAN, 1938, p. 60)

De que amanh... : dilogo o ttulo do livro publicado a partir de uma conversa entre
Jacques Derrida e Elizabeth Roudinesco. No prefcio, esta situa o leitor a respeito da
fonte de inspirao do ttulo escolhido para esse dilogo:
De que amanh se trata?- pergunta Victor Hugo em um de seus
poemas de Cantos do Crepsculo. E, como introduo, assinala:
Tudo hoje em dia, nas idias como nas coisas, na sociedade como no
indivduo, encontra-se em estado de crepsculo. De que natureza
esse crepsculo, o que vir depois? Este foi o nosso ponto de partida
(ROUDINESCO, 2004, p. 7)38.

Tomo emprestado esse belo ttulo para introduzir este captulo, no qual se discutem as
mudanas no campo da famlia, articulando-as ao momento histrico atual; cabe,
contudo, adiantar de que aspectos ele no tratar no que diz respeito famlia na
atualidade:
1 - de definir os rumos que a famlia deve tomar (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004,
ROUDINESCO, 2003)
2 - de promover um alarmismo em relao s mudanas no campo da famlia
(CECCARELLI, 2007, GAVARINI, 2008, LAURENT, 2007, ROUDINESCO, 2003,
TORT, 2008)
3 - de antecipar ou de traar um veredicto sobre o futuro das crianas educadas nas
novas configuraes familiares (DELAISE de PARSIVAL, 2001 e 2006, DERRIDA;
ROUDINESCO, 2004, JULIEN, 2000, ROUDINESCO, 2003)

38

Traduo livre do trecho citado por Roudinesco disponvel nas notas de rodap: Espectro sempre
mascarado que nos segue lado a lado./ E que se chama amanh!/ Oh! Amanh o grande momento!/ De
que amanh se trata? (2004, p. 7)

73

4 - de compactuar com uma psicanlise que se apresenta como guardi da moral e dos
bons costumes (CECCARELLI, 2007, KEHL, 2002 e 2003, ROUDINESCO, 2003,
TORT, 2008)
Nessa pesquisa, pretendo distanciar-me de posicionamentos alarmistas, preditivos e
normativos. Portanto, no se trata de prever o que ser da famlia... amanh; porm, de
examinar as principais mudanas que vm ocorrendo no campo da famlia e as novas
configuraes pelas quais tem buscado reconhecimento. No se trata de prever as
conseqncias das novidades no campo da famlia, mas de situar que, neste caso, hoje
j amanh39!
Elizabeth Roudinesco em A famlia em desordem (2003) descortina um paradoxal
panorama contemporneo: se outrora os homossexuais viviam uma experincia
margem da sociedade, reivindicavam o direito diferena, marcando em sua escolha
uma transgresso, uma oposio em relao quilo que configurava a famlia como
instituio normatizada na sociedade40 atualmente vm pleiteando a possibilidade de
instituir-se dentro das regras que compem o universo estabelecido em relao famlia
e procriao (buscando o reconhecimento da relao conjugal, outorgado pelo
PACS41) e o reconhecimento do direito parentalidade42.
certo que muitos desses modos de procriao e filiao sempre existiram, mas
existiam de forma marginal, eram ignorados ou tratados como uma fatalidade. A
39

Fassin (2001) faz a seguinte leitura acerca da posio da sociologia da famlia em relao a essas
novidades: ela se prope a acompanhar o movimento dos costumes, no a preced-los; ela no
pretende, portanto dizer o que dever ser (amanh) para alm do que j (hoje).
40
Fassin (2001) pontua que a discusso no se situa mais em torno da liberdade dos indivduos, mas em
torno inscrio da homossexualidade na sociedade. Ver: FASSIN, E, (2001). La voix de lexpertise et
les silences de la silence dans le dbat dmocratique. IN : Au-del du PaCS lexpertise famliale
lpreuve de lhomossexualit. Paris : Presses Universitaires de France.
41
Pacto Civil de Solidariedade (PACS) lei francesa em vigor desde 1999 que legaliza a unio entre
casais do mesmo sexo, mas no supe o direito adoo de crianas ou procriao medicamente
assistida.
42
No referido Dilogo, Roudinesco avana um pouco mais na discusso em relao a essa demanda de
famlia, advertindo para o risco deste desejo de normalidade contribuir para o aumento das
discriminaes sociais: Alm disso, constato que os casais homossexuais tendem a querer aparecer como
to normais quanto os casais tradicionais, a ponto de imit-los s vezes de maneira caricatural.
Pergunto-me ento se esse desejo de normalidade cessar com a extino das discriminaes sociais ou
se, ao contrrio, ser acentuado (2004, p. 50) Por outro lado, Gavarini (2008) reconhece a presena de
autores e discursos dissonantes ao citar que a reivindicao do jurista Daniel Borrillo de vida familiar
para todos, seja qual for sua orientao sexual, inclui a libertao de sua funo de sistema
constrangedor e das diversas ordens s quais ela est subordinada: trata-se de fazer o elogio de um
modo de vida tradicional, mas libertado das obrigaes que lhe dariam uma ordem (p.7).

74

reivindicao, por parte dos protagonistas de tais arranjos, suscita questes que
interpelam todo o tecido social (CECCARELLI, 2007).
Diante dessa demanda de visibilidade, surgem questes como: o que esta demanda
representa? Que conseqncias ela tem para o modo como as relaes familiares vm se
constituindo na contemporaneidade? A existncia da famlia est ameaada?
Vale marcar que o estudo empreendido por Roudinesco no visa a antecipar e discutir as
conseqncias para a educao das crianas quando os papis parentais so
desempenhados por apenas um membro da famlia ou por membros do mesmo sexo mas
a examinar esta demanda e suas possibilidades de significao, numa perspectiva
histrica, social e poltica.
Denotando uma posio no alarmista, Roudinesco observa que a famlia eterna e no
est em perigo, uma vez que se ancora em uma funo simblica e dispe de uma
multiplicidade de possveis recomposies. Ao dialogar com a psicanalista, Derrida
(2004) faz uma ressalva a seu comentrio, pontuando que no falaria de uma
eternidade de um modelo familiar qualquer, mas de uma trans-historicidade do lao
familiar. Atribuir uma trans-historicidade ao lao familiar outro modo de afirmar que
h algo de irredutvel na famlia, algo que independe do momento histrico em que vive
o sujeito, que transcende o que relativo a uma poca, o que, neste trabalho, venho
formulando em termos da famlia como resduo.
Se, como mencionei acima, no se trata de promover um alarmismo em relao s
mudanas no campo da famlia nem, tampouco, de compactuar com uma psicanlise
que se apresenta como guardi da moral e dos bons costumes, preciso discriminar a
psicanlise dos dispositivos de normalizao, separando-a das disciplinas que
preconizam que determinada forma de famlia seria mais adequada educao das
crianas, assim como discrimin-la de construtos que encontrariam suas bases em uma
idealizao ou em uma naturalizao da famlia patriarcal. Nesse sentido, importante
recorrer tica psicanaltica e Ceccarelli (2007) o faz com rigor: A psicanlise no
guardi de uma ordem simblica suposta imutvel, produtora de uma forma idealizada
de subjetivao baseada nas normas vigentes e com o poder de deliberar sobre o normal
e o patolgico. (p.93).

75

O modelo de famlia nuclear (leia-se pai, me e filhos morando na mesma casa), mesmo
que seja idealizado e que promova uma sensao de estabilidade e segurana, nunca foi
sinnimo de normalidade. No existe uma forma de organizao familiar ideal que
possa garantir as condies necessrias constituio do sujeito. Mesmo nos casos
mais normais, acontece o que acontece: h famlias ditas normais nas quais os filhos
legtimos so infelicssimos (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 49).
Roudinesco tambm questiona uma suposta normalidade inerente famlia nuclear.
Contudo, para compreender a forma aguerrida como o faz, necessrio situar o cenrio
no qual a autora introduz esse questionamento: o de discusso sobre o posicionamento
das instituies psicanalticas em relao homossexualidade de seus membros e sobre
o repdio, por parte de alguns psicanalistas, da homoparentalidade. A autora lana mo
do termo famlias heterossexuais e lembra de alguns casos clnicos todos eles
estarrecedores, diga-se de passagem do que foi a vida ordinria de certas dessas
famlias heterossexuais da metade do sculo, cujos filhos, ento adultos, freqentaram
vinte anos mais tarde os divs dos psicanalistas (2003, p. 189). , portanto, em meio
indignao perante os especialistas que se propuseram a testar as aptides
psicolgicas dos homossexuais para serem pais, que Roudinesco evoca essas cenas
terrveis, atribudas a personagens da vida familiar normal.
O fato de uma suposta famlia normal (aquela que se apresenta com pai, me e filhos
morando na mesma casa) no ser e nunca ter sido garantia de crianas felizes e bemeducadas no nenhuma novidade, mas o contexto atual dos debates entre especialistas
e polticos tem levado os psicanalistas a se sentirem convocados a reiter-lo. O que os
psicanalistas pretendem reafirmar no est sustentado na observao emprica (e talvez
os casos trazidos por Roudinesco para ilustr-lo me parecem excessivos), mas na base
da teoria psicanaltica. Como vimos no captulo 1, ainda que se formule o irredutvel da
famlia em termos das funes materna e paterna, diferenciando radicalmente a(s)
pessoa(s) do pai e da me da operatividade de suas funes, na famlia no h
garantias, independentemente das configuraes pelas quais esta possa se apresentar.
Se bem verdade que a famlia nuclear no e tampouco pode ser vista como um
sinnimo de normalidade, verdade tambm que esta tem sido a forma de famlia
identificada no imaginrio social como ideal, da as novidades apresentadas nesse

76

campo poderem ser sentidas como uma ameaa. Se bem que abandonar um ideal de tal
forma arraigado no discurso social gere certa resistncia, essa ao no justifica o temor
de que os novos arranjos familiares estariam desintegrando a famlia, ou que estaramos
vivendo uma crise sem precedentes.
No ltimo captulo de A famlia em desordem, denominado A famlia do futuro,
Roudinesco (2003) esclarece que seus questionamentos no tm um carter alarmista e
afirma tambm que a existncia da famlia no se encontra ameaada:
Aos utopistas que acreditam que a procriao ser um dia a tal ponto
diferenciada do ato carnal que os filhos sero fecundados fora do
corpo da me biolgica, em um tero de emprstimo e com a ajuda
de um smen que no ser mais aquele do pai, retorquimos que, para
alm de todas as distines que podem ser feitas entre o gnero e o
sexo, o materno e o feminino, a sexualidade psquica e o corpo
biolgico, o desejo de um filho sempre ter algo a ver com a
diferena dos sexos (p. 198).

2.1 Da conjugalidade parentalidade


A famlia moderna, constituda o final do sculo XVIII e meados do XX, representa
uma ruptura em relao ao modelo tradicional. Fundada no amor romntico, a famlia
passa a ordenar-se a partir da escolha:
H a uma ruptura importante. Antigamente, as famlias velavam pela
semelhana de identidade dos esposos: educao, mesma crena
religiosa, proximidade geogrfica, tradies culturais. Doravante, a
sexualidade revela publicamente que h um alm das identificaes
sociais, uma transgresso das fronteiras culturais, uma familiar
estranheza da relao, uma mestiagem tnica, uma subverso na
linhagem; em suma, uma alteridade mais manifesta do que nunca
(JULIEN, 2000, p.11).

A famlia tradicional representava uma clula estvel remetida a um mundo imutvel. A


partir da possibilidade de escolha, os laos conjugais passam a ser fortalecidos e os
casamentos arranjados diminuem

significativamente.

A autoridade patriarcal,

predominante na famlia tradicional, cede espao diviso do trabalho e da


responsabilidade pelos filhos entre os esposos e introduo do Estado como
responsvel pela educao das crianas.

77

A modernidade impe duas grandes mudanas que estabelecem definitivamente a


diviso entre conjugalidade e parentalidade e que representam uma reorganizao dos
aspectos pblicos e privados destas dimenses: a primeira passa a ser orientada pela
escolha dos cnjuges (o carter privado se acentua), paralelamente entrada do terceiro
social. Esse passa a dividir a responsabilidade e a autoridade sobre as crianas,
inscrevendo a parentalidade em um mbito pblico e intervindo cada vez mais na
relao entre pais e filhos. Desse modo, evidencia-se que a distino entre privado e
pblico no sculo XX toma a forma de uma disjuno entre conjugalidade e
parentalidade (JULIEN, 2000). Essa disjuno tem como efeito a privatizao cada vez
maior da sexualidade e culmina na concepo de um carter pblico da educao.
Na medida em que o PACS reconhece as unies homossexuais, mas restringe o
reconhecimento legal conjugalidade43, separa definitivamente a sexualidade do
exerccio da parentalidade. Se a educao das crianas um fato pblico, se o Estado
deve zelar pelos direitos da criana, bem, neste caso, que se restrinja ao privado o que
da ordem do sexo e que se justifique desta maneira o no-reconhecimento do direito
parentalidade nos casais homossexuais!
Vale ressaltar que a outra face dessa moeda seria a concepo de uma parentalidade sem
levar em conta a ordem sexual e para tal a cincia se apresenta em sua onipotncia,
pois a modernidade viabilizou o prazer sem procriao (com o surgimento da plula e
com a legalizao do aborto nos pases desenvolvidos) e depois a procriao sem prazer,
ou melhor, a procriao sem ato sexual, por meio da procriao medicamente assistida.
Rosa (2006) se pergunta se a conseqncia desse atravessamento da cincia no seria o
que Lacan cunhou de criana generalizada44, em um mundo em que no existe gente
43

Hamad (2002) reproduz as palavras da deputada de esquerda Catherine Tasca, registradas no Le Monde
de 10 de outubro de 1998, acerca desse ponto: Quanto aos homossexuais, isso no representar para eles
uma etapa possvel no sentido da adoo e da procriao medicamente assistida. Ns escolhemos como
quase todos os pases europeus que, bem antes de ns, j adotaram uma legislao para as unies
registradas excluir essa perspectiva, pois continuamos a querer para a criana uma filiao de um pai e
de uma me.
44
no seguinte trecho que Lacan apresenta essa formulao: Problemas do direito de nascimento, por
um lado, mas tambm, no impulso do teu corpo teu, no qual se vulgarizou no incio do sculo um
adgio do liberalismo, a questo de saber se, em virtude da ignorncia em que mantido esse corpo pelo
sujeito da cincia, chegaremos a ter o direito de desmembr-lo para a troca. [...] Haveremos de destacar
pelo termo criana generalizada a consequncia disso? Certas antimemrias ocupam hoje em dia o
noticirio (por que so assim essas memrias? Se por no serem confisses como nos advertem,
porventura no essa desde sempre a diferena das memrias?). Seja como for, o autor as abre com a

78

grande ou certas antimemrias (p. 120). Ao inscrever a filiao no discurso cientfico,


ao tomar a cincia como um dos nomes do pai, a ordem sexual retirada da cena
familiar. Vimos no captulo 1 que a diferena entre os sexos consiste em um fator
essencial da transmisso, e suspender o que da ordem do sexual na famlia pareceria
promover uma transmisso assptica, livre das faltas e imperfeies que so intrnsecas
famlia em sua funo de resduo. Vale lembrar que criar uma criana envolve uma
atividade sexual, e esta no se refere s competncias ou habilidades45 parentais, mas
posio que a criana ocupa no desejo dos pais. A sexualidade est em jogo nas
primeiras relaes entre pais e filhos e fixa as modalidades de satisfao que marcam as
posies do sujeito.
Entre as importantes mudanas que ocorreram nos ltimos anos no campo da famlia,
diversos autores destacam a passagem da autoridade paterna autoridade parental. A
autoridade parental configura-se como um marco para o que Hurstel (2002) nomina de
um mal-estar paternal contemporneo, situando-a como uma das trs linhas de ruptura
que configuram o apagamento do terceiro (as outras duas seriam a introduo das
cincias biolgicas na procriao e o descasamento46 e a multiplicao das formas de
famlia). A autora acredita que a noo de igualdade concede um estatuto jurdico
equivalente s crianas, s mulheres e aos homens e que se revela fonte de confuso
entre estatuto social, papel na famlia e funo edpica do pai. A igualdade de estatuto,
dessa forma, seria vivida como uma indiferenciao das funes e acabaria por
evidenciar uma assimilao do pai me.
Se os papis familiares tornaram-se intercambiveis, os estatutos
jurdicos idnticos para pai e me, as funes edipianas, estas, no
podem ser indiferenciadas sob pena de ver desaparecer o terceiro
edipiano [...] Como ento preservar a diferena das funes? Como
no fazer do pai e da me peas intercambiveis? (HURSTEL, 2002,
p. 9, traduo livre).

confidncia, de estranha ressonncia, com que dele se despediu um religioso: Acabei acreditando, veja
s, nesse declnio de minha vida, disse-lhe ele, que no existe gente grande (LACAN,1967, p. 367).
45

A nfase nas competncias e nas habilidades parentais um dos modos pelos quais os discursos
prevalentes na atualidade se particularizam no mbito da famlia.
46
No original demariage, termo proposto por Irne Thery (1998). Couple, filiation et parente
aujourdhui. Paris: Odile Jacob.

79

Lebrun (2004) vai na mesma direo ao destacar dois traos da evoluo do direito no
que tange corresponsabilidade parental. O primeiro diz respeito ao fim da no
igualdade que organizava as relaes entre pai e me, acarretando o desaparecimento do
conceito de autoridade, em proveito do de responsabilidade, marcando a superioridade
dos deveres dos pais em relao a seus poderes e a diminuio destes diante dos direitos
subjetivos da criana. O segundo trao se refere inverso operada pela passagem do
paternal ao parental, terminando por assegurar (de fato, mesmo que no de direito) uma
preponderncia da me, em detrimento do pai. O autor acredita que a parentalidade, em
sua indiscriminao de lugares, implicaria uma mreverso (2008). Aqui ele se inspira
na homofonia introduzida por Lacan ao formular a prversion (verso do pai/
perverso), e pretende designar o nmero crescente de sujeitos que, na atualidade,
permaneceriam no regime materno. Na mreverso se sustentaria a insero da nova
criana no universo da linguagem, mas se a protegeria do encontro com o pai Real.
Embora eu compreenda que o autor faa aluso ao imperativo deixar a me,
prescrio para toda criana em toda sociedade (conforme sua formulao em
conferncia proferida em 2007), penso que o termo mreversion uma escolha infeliz
diante do impacto e da subverso que o termo prversion representou para a questo do
pai na psicanlise, como vimos no captulo 1. Acredito que a traduo do autor poderia
representar-se melhor no termo mrearrestation47, cuja designao de um
aprisionamento no campo do Outro, ou, em outros termos, a permanncia no campo
materno.
Segundo alguns autores, essa preponderncia do materno na qual estaramos recaindo
assumiria a forma de um retorno do matriarcado48. Eles partem da observao de que a
autoridade estaria mudando de natureza e que a referncia quanto autoridade,
atualmente, seria a mulher. Lacan, no seminrio 18, aula de 16 de junho de 1971, traz
dados que contribuem para esvaziar essa discusso:
O matriarcado consiste essencialmente nisto: que, no que concerne
me como produo, no h dvida. De vez em quando a gente
pode perder a me no metr, claro, mas enfim, no h dvida sobre
quem a me. No h dvida igualmente, sobre quem a me da
47

Sugesto de Domingos Infante durante reunio do grupo de pesquisa do grupo de pesquisa do Ncleo
de Estudos e Pesquisas em Psicanlise com Crianas em 25 de setembro de 2009.
48
C.f. - Rsurgence du matriarcat. Le Bulletin, n. 2, Association Lacanienne Internationale. Paris:
Editions de lA.L.I., 2007, p. 9-40.

80

me. E assim sucessivamente. A me, em sua linhagem, eu diria,


inumervel (p. 162).

Roudinesco (2003) tambm chama a ateno para os efeitos da diviso da


responsabilidade entre os pais na educao dos filhos, uma diluio entre eles da
autoridade; contudo, diferentemente de Lebrun, no adverte para o risco de uma
preponderncia do materno:
A difuso dessa terminologia, derivada do termo parentalidade
(monoparentalidade, homoparentalidade, etc.), traduz tanto a
inverso da dominao masculina que evoquei como um novo modo
de conceitualizao da famlia. [...] De agora em diante esta no ser
mais vista apenas como uma estrutura do parentesco que restaura a
autoridade derrotada do pai, ou sintetizando a passagem da natureza
cultura atravs dos interditos e das funes simblicas, mas como um
lugar de poder descentralizado e de mltiplas aparncias
(ROUDINESCO, 2003, p. 155).

Penso que o pai Real, em sua prversion e a famlia localizada em sua funo de
resduo operam em um registro diferente das determinaes amparadas no discurso
jurdico. As fices jurdicas so necessrias e organizadoras do lao social. De fato, a
passagem da autoridade paterna autoridade parental reduz as diferenas entre pai e
me no que tange responsabilidade social diante do filho, mas no elimina a diferena
sexual, no apaga as diferenas entre as posies masculina e feminina (e mesmo a
paridade no o faz, se pensarmos que ela incide apenas no estatuto social de homens e
mulheres). Nesse sentido, atribuir a runa da famlia fico jurdica que define a
autoridade parental parece consistir em uma nova roupagem para a to criticada e
supostamente ultrapassada teoria do declnio social da imago do pai.
Acredito que nem as fices jurdicas nem as fices cientficas podero dar conta do
ponto de real do que a origem subjetiva de cada um, o que Laurent (2010b) traduz
como uma malformao do desejo do qual cada um provm, uma malformao do que
foi o encontro fracassado entre os desejos que trouxe cada um de ns ao mundo, um
encontro fracassado entre os sexos (uma vez que no h relao sexual, que no h
como conjugar sem resto) e no importa se so ou no do mesmo sexo e o desejo de
criana.

81

Retomando, a disjuno entre conjugalidade e parentalidade corresponde crescente


interveno do Estado na educao das crianas e aos avanos do discurso da cincia no
territrio familiar. A famlia interessa cada vez mais cincia como uma parentalidade,
os discursos normativos e ortopdicos nos quais se ampara esse neologismo pretendem
excluir as imperfeies e excessos caractersticos do drama familiar e investir nas
habilidades e competncias pontuais dos pais. Essa discusso ser desenvolvida no
captulo 3.
2.2 As novas configuraes familiares
Na atualidade, no que diz respeito famlia, possvel localizar trs modos de
aproximao: h os que acreditam que as novas configuraes familiares podem
perturbar o exerccio adequado das funes parentais; h os que exaltam a
experimentao nos registros da parentalidade e da filiao, e, por ltimo, h aqueles
que assumem a posio de que, apesar das diferentes e novas configuraes que possa
adquirir, a famlia resiste.
As novas configuraes familiares so as formas pelas quais essa instituio, na
atualidade, vem se apresentando. Trata-se de um outro modo de se referir famlia
contempornea ou ps-moderna, definida por Roudinesco (2003) como aquela que
une, [...] ao longo de uma durao relativa, dois indivduos em busca de relaes
ntimas ou realizao sexual. A transmisso da autoridade vai se tornando cada vez mais
problemtica medida que divrcios, separaes e recomposies conjugais aumentam
(p. 19).
Gavarini (2008) resume os diferentes modos pelos quais a famlia contempornea tem
sido abordada por socilogos e psicanalistas, situando as principais referncias nesse
campo:
democrtica: famlia na qual se exerceria uma paridade49 entre os indivduos,
homens e mulheres, adultos e crianas. regida pelo princpio de igualdade entre seus

49

Esse modelo de famlia parece retratar a confuso que se instaura entre a reivindicao pelas mulheres
da paridade e da no-discriminao social entre os sexos e a no-diferenciao sexual do pai e da me e
das funes parentais.

82

membros, e as tarefas e os papis so autodefinidos por todos50. A psicanalista situa tal


modelo na produo do socilogo Franois de Singly.
relacional: marcada pela flexibilidade das alianas e pela autorregulao das relaes
parentais e filiais, a partir do consentimento dos cnjuges e das crianas. A vida
cotidiana regulada pela negociao.
recomposta: composta por uma dialtica entre composio, decomposio e
recomposio, marcada pela instabilidade das unies em um processo descrito por Irne
Thry como descasamento51. Os laos de filiao e de parentesco so indissolveis em
comparao com a fluidez dos laos conjugais. Notadamente, retrata a disjuno entre
conjugalidade e parentalidade apontada por Julien (2000) e Neyrand (2006).
desinstitucionalizada: sustentada em laos eletivos, conforme formulao de Marcel
Gauchet, que preconiza que a famlia se torna um assunto privado.
incerta: vista por Louis Roussel52 como ameaada e ameaadora. Gavarini aproxima
essa orientao de Pierre Legendre (entre outros psicanalistas) que situa o
enfraquecimento do pai na origem de uma crise na famlia e da autoridade na sociedade.
no-institucionalizada: marcada pela marginalidade e bem conhecida pelos servios
sociais e de sade pblica, uma famlia na qual se produz o que Robert Castel
descreveu como desafiliao53: a partir de uma estruturao catica, no oferece aos
indivduos que fazem parte dela os alicerces que lhes dariam consistncia na
sociedade.
Roudinesco (2003), Julien (2000) e outros autores que se dedicam a investigar o tema
da famlia e a contemporaneidade, partem de um panorama bastante familiar ao

50

Diante dessa definio, me pergunto se de fato tal famlia existe, ou seja, se possvel fincar os laos
familiares nessas bases e de que maneira.
51
traduo do francs dmariage.
52
uma famlia que no mais regida como uma instituio, mas por um pacto privado. Uma famlia
que resolve suas tenses por negociaes internas [...] Uma famlia igualitria em que a hierarquia
desapareceu no casal e se esfuma entre geraes. Uma famlia em que a solidariedade simultaneamente
intensa e frgil. Para dizer em uma palavra, uma famlia que pretende poupar qualquer terceiro
significativo (ROUSSEL, 1989 apud LEBRUN, 2004, p. 14).
53
Traduo do francs dsaffiliation.

83

cotidiano das grandes cidades e das relaes que se impem neste contexto: anonimato
urbano, crise da famlia moderna (leia-se casais separados, famlias monoparentais,
famlias recompostas, famlias homoparentais e etc) e incompetncia crescente dos pais
na educao dos filhos. A meu ver, essa incompetncia que se veria incrementada pela
crena disseminada no discurso da cincia de que h um modo, um bom modo de
educar, ou seja, de que existem competncias parentais, que dariam conta do impossvel
da educao, a respeito do qual Freud j nos advertia.
Julien (2000) destaca trs fatores fundamentais na concretizao de uma sociedade
moderna: a democracia, a laicidade e a cincia. Estes intervm na constituio dos laos
sociais na contemporaneidade, intervm na conjugalidade e na parentalidade, ou seja, na
formao dos laos conjugais e na reorganizao destes laos a partir do exerccio das
funes parentais.
esse cenrio que leva muitos autores a se perguntarem se a famlia, em suas novas
configuraes, propiciaria as condies necessrias para a transmisso. Ainda que no
se trate de alarmismo e mesmo que empreste de Sauret (1997) a convico de que a
famlia resiste, as formas pelas quais as famlias se apresentam na contemporaneidade
me levaram a indagar sobre a transmisso, sobre o que preciso que se mantenha, para
alm das mudanas substanciais sofridas pela famlia nos ltimos anos. Por isso, isolar a
famlia como resduo foi fundamental.
Contudo, localizar a famlia em sua funo de resduo no esgota a pergunta sobre como
se articulam estrutura e contexto histrico. Situar-se em relao a esses aspectos
necessrio para no recair, por um lado, em uma nostalgia da autoridade ou da tradio
e, por outro, em uma supervalorizao do que se introduz como novidade na esfera do
discurso cientfico ou das fices jurdicas.
Susana Torrado, sociloga argentina s voltas com os rumos da famlia na atualidade,
voltando sua indagao para a funo de transmisso da famlia, pergunta: essa funo
estaria assegurada nos tempos atuais?
A funo de transmisso entre as geraes [...] pode ser assegurada
qualquer que seja a maneira pela qual se organize a vida privada? Em
especial, essa contribuio pode ser assegurada com um grau de

84

autonomia individual e/ou isolamento social to altos como os que


caracterizam hoje em dia, a organizao familiar? Se existe um
interrogante ps-moderno, este (TORRADO, 2003 apud
PEUSNER, 2009, p. 112, traduo livre).

Peusner (2009) observa que, se a autora fosse psicanalista, responderia que sim. Para
sustentar o comentrio, recorre a Nota sobre a criana, texto que, conforme vimos no
primeiro captulo, pode ser tomada como um aprofundamento, mais concisa e
precisamente, das ideias de Lacan j contidas em Os complexos familiares, de 1938.
importante situar o contexto da discusso relativa s novas configuraes familiares,
principalmente no que diz respeito s famlias homoparentais mas veremos que no s
, pois envolve posicionamentos e consequncias relacionadas psicanlise,
antropologia e ao direito e tambm de ordem poltica. Isso tudo no deixa de trazer
efeitos para as famlias, para a educao das crianas e, principalmente, para o modo
pelo qual o neologismo parentalidade vem ganhando consistncia na atualidade.
Michel Tort (2006) aborda de modo incisivo a discusso sobre as novas configuraes
familiares. Esclarecendo que no se trata mais de dizer que vivemos nos tempos do
declnio da funo paterna - posicionamento com o qual concordo -, conduz uma
reflexo em direo a uma tomada de posio menos contaminada54. O autor parece
especialmente advertido em relao ao risco de os profissionais assumirem um discurso
normativo ao tentar se posicionar neste campo (muito embora saibamos que em vrios
outros este mesmo risco se impe). Em tal discurso, o autor localiza uma confuso entre
prticas sociais e funcionamento psquico, confuso imperante no que se refere aos
efeitos do divrcio, da monoparentalidade ou da homoparentalidade para a constituio
psquica das crianas educadas nessas configuraes familiares.
Tort seleciona os seguintes elementos: sexualidade, famlia, parentesco, sujeito,
reproduo e procriao e a diferena entre os sexos e prope nos determos em suas
54

Sobretudo no contexto das famlias homoparentais, mas no s, os discursos inflamados, os


posicionamentos polticos, religiosos e a militncia se confundem nas posies adotadas pelos
especialistas convocados a se pronunciar sobre o assunto. Tomo como exemplo a seguinte afirmao de
Genevive Delaise Parseval: melhor que uma criana tenha os dois pais, sejam eles do mesmo sexo,
do que apenas um [...] No se trata, portanto, de estigmatizar no que quer que seja as famlias
monoparentais, mas apenas sublinhar o paradoxo legislativo francs em termos de adoo. In: Borrillo,
D. e Fassin, E. (2001). (orgs.) Au-del du PaCS lexpertise familiale lpreuve de
lhomossexualit. Paris : Presses Universitaires de France.

85

articulaes histricas e refletirmos sobre os arranjos entre eles, sobre os efeitos no


sujeito e as medidas tomadas pelo Estado para lhes fazer frente. Definitivamente, no
pouco o que o autor prope! [Contudo, parte deste caminho o que pretendo
empreender nesta pesquisa.]
Mas continuemos acompanhando Tort. Ele pergunta: quem define as regras? Quem
define a realidade da famlia? E antecipa: no basta dizer que quem define essas
realidades a psicanlise, a antropologia ou o direito, quer dizer, os especialistas.
Prope outra via a das prticas sociais - e toma como exemplo as famlias
homoparentais. Seriam estas definidas pelas trs disciplinas em questo ou por aqueles
que a fazem? So as prticas sociais que definem um certo nmero de realidades ou so
os especialistas? Segundo ele, essa a questo que devemos enfrentar na atualidade.
O autor argumenta que a realidade das famlias homoparentais nos obriga a repensar a
definio de famlia e a refletir sobre a prpria questo das definies. Quem deve
definir sobre a abertura do casamento e da filiao aos casais do mesmo sexo?Trata-se
de uma deciso cientfica? (aqui ROUDINESCO, 2003, o acompanha) o parentesco o autor faz referncia sociloga Irne Thry - que, para alm das diferenas entre as
culturas, articula a diferena entre os sexos e a diferena entre as geraes, e so as
prticas sociais e a poltica que transformam a linguagem e a definio, no o contrrio.
Num debate publicado em seguida ao texto de Tort, no que diz respeito s prticas
sociais, Grard Neyrand pontua que justamente se passou do termo parentesco ao termo
parentalidade com a finalidade de ultrapassar a contradio apontada pelo primeiro. Tort
concorda com essa pontuao, afinal, esse novo termo no surgiu no debate por acaso
(partilho desta hiptese), e acrescenta que subjaz a ele um tipo de inveno
terminolgica com a qual se busca sair da contradio, retratando uma inventividade da
definio prtica (que no decorre de uma definio terica). Embora considere
pertinente e procedente este posicionamento de Neyrand, veremos no captulo 3 que
esta seria uma das facetas do termo parentalidade, mas h outras, que evidenciam outros
discursos presentes na montagem deste termo. Resta, do referido debate, uma
importante questo, formulada por Liane Mozre: mas no o especialista, no fim das
contas, que veicula o discurso majoritrio?

86

Fassin (2001), autor citado por Tort, pontua que a abertura do casamento e da filiao
aos casais homossexuais no mais socialmente impensvel, atingindo na atualidade a
categoria de passvel de ser discutida. Observa que se pode ser a favor ou contra, que se
pode pensar que a causa legtima ou no, mas o que est em jogo so opinies; podese debater, mas trata-se sempre de uma questo de valores e no de verdade. Acrescenta
ainda que o tema comporta uma srie de problemas, justamente porque as respostas no
esto dadas e devem ser produzidas.
Penso, junto com Tort (2006) e com Roudinesco (2004), que as prticas sociais esto
um passo adiante em relao ao especialista, e que no se trata de julg-las ou
normatiz-las, ou seja, estas prticas j existem, apesar e para alm do pronunciamento
do especialista e dos ajustes necessrios em relao s polticas pblicas e ao discurso
jurdico55. Ento, talvez se trate de refletir se e quando cada disciplina deve pronunciarse (mesmo e claro que sempre o faa a partir de seu objeto de estudo e da tica que a
orienta). Vale lembrar que na tica psicanaltica orientada pelo bem-dizer, no se
pretende dizer onde est o bem!
Para mostrar que o debate e o discurso normativo ou contaminado, embora compaream
de modo mais fervoroso, no se concentram apenas em torno das famlias
homoparentais, me concentrarei por um momento nas famlias monoparentais (inclusive
pela sua expressividade nos lares brasileiros56)
Acompanhemos com Roudinesco a origem do termo monoparental:
Em 1975, Andre Michel, sociloga feminista, inspirou-se nas
experincias da famlia americana para introduzir na Frana a
expresso famlia monoparental, que serviu para designar, sem
estigmatiz-lo, um modelo de famlia irregular, julgado entretanto
mais negativo que o da parentalidade reconstituda (2003, p. 154)

55

Reproduzo a seguir alguns dados extrados das notas de rodap de Roudinesco (2003): no continente
americano, existem de 1 a 5 milhes de mes lsbicas, de 1 a 3 milhes de pais gays, e de 6 a 14 milhes
de crianas criadas por pais homossexuais. Em Paris, entre 1990 e 2000, o nmero de lares monoparentais
passou de 1,2 milho para 1, 7, as famlias monoparentais representam 16% dos lares com filhos.
56
De acordo com dados do IBGE, entre 1995 e 2005, na regio Sudeste, as famlias chefiadas por
mulheres tiveram um aumento de 35%.
Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=774

87

Se a inteno, ao nomear, foi legitimar uma modalidade de famlia, nem por isso a
representao social ali condensada foi totalmente eliminada, pois, em relao a essa
modalidade de famlia, o discurso da expertise fez um percurso histrico que passou da
vergonha culpabilizao. Contudo, possvel ler, junto com Tort (2006), que a
definio se constituiu em um momento posterior instalao de uma prtica social e
reivindicao de reconhecimento por seus representantes (veremos que uma das
vertentes pelas quais o significante parentalidade se instituiu conformou-se em um
processo semelhante).
Observemos agora algumas concluses de pesquisas sobre mulheres sozinhas que
adotam crianas (conformando famlias monoparentais), reunidas por Nazir Hamad em
seu livro Adoo e parentalidade: questes atuais. MacLanahan e Sandefur (1984)
verificaram que adolescentes e jovens adultos adotivos criados por mulheres sozinhas
apresentaram fracasso escolar duas vezes superior s outras crianas e tinham tendncia
a ter filhos antes dos vinte anos. Eram 50% mais numerosos na condio de no ter
formao e estar sem trabalho do que outras crianas na mesma idade. Por outro lado,
Wegar (1990) afirma que, ao contrrio do que se pensa, famlias compostas por
mulheres que adotam sozinhas no so mais frgeis emocionalmente que as outras,
mostram laos familiares fortes e estveis.
Hamad (2007) no se aprofunda nesses dados contraditrios, mas levanta algumas
hipteses sobre o que os justificaria. A meu ver, so hipteses pouco convincentes,
como, por exemplo, associar as dificuldades apresentadas pelas crianas a uma maior
dificuldade das mes de contar sobre a adoo, pelo fato de no terem parceiros. Esses
resultados, de tal forma conflitantes, podem ser atribudos a uma certa contaminao
pelas opinies pessoais ou posicionamentos dos pesquisadores em questo?
No modo como o prprio Hamad (2007) se prope a responder questo H
conseqncias em criar sozinho (a) uma criana? verifica-se uma confuso entre dados
de pesquisa e fatores de ordem imaginria intercalados com alguns elementos da
psicanlise, que so tratados pelo autor de forma superficial. Indo alm, acredito que o
simples fato de enunciar a questo desse modo parece j revelar que o autor recorre a
uma psicanlise normativa. Gavarini (2008) parece encontrar o mesmo tipo de problema

88

em vrios autores implicados na pesquisa sobre as mudanas no campo da famlia, o


que traduz uma ambiguidade permanente entre cincia e convico.
Essa ambigidade potencializada pela confuso que se arma entre o discurso social, as
fices jurdicas e as leituras de alguns psicanalistas, quando estes ltimos confundem o
fenmeno social (mes que criam sozinhas seus filhos) com a posio psquica de uma
mulher que decide ser me prescindindo do Outro, uma mulher que se situa [...] como
me sozinha em relao a seu fantasma, dando criana um pai ideal antes que um pai
imperfeito, mas da realidade (TORRES, 2008, p. 207, traduo livre)
preciso diferenciar uma mulher sozinha (fenmeno social) de uma mulher somente
me (posio psquica), pois a posio psquica da mulher no est contida no nome. O
nome apenas circunscreve o fenmeno, ou seja, sob o nome de famlia monoparental
podemos ou no encontrar uma mulher somente me (alis, uma mulher posicionada
como somente me no seria uma exclusividade ou algo particularmente propiciado por
uma determinada configurao familiar) nessa linha que Nomin (1997) aposta ser
prefervel uma criana ter uma me suficientemente mulher - posio psquica diante do
Outro que no se deduz do fato de estar ou no casada, de ter ou no um companheiro,
de enquadrar-se ou no no que se convencionou chamar de famlia monoparental - a
uma me suficientemente boa (em clara aluso formulao winicottiana).
Um bom exemplo, agora no que se refere s famlias recompostas, do modo como a
famlia como resduo opera em relao ao lao social predominante numa determinada
poca, dado por Laurent (2007). O psicanalista retoma a prversion e destaca uma
especificidade desta: o pai, em sua pai-verso, faz de uma mulher o objeto a que causa
seu desejo, enquanto a mulher se ocupa de outros objetos a, seus filhos. Desta forma, a
pai-verso pode operar mesmo que a mulher em questo no seja aquela com a qual
teve filhos.
Observa-se que, em tais casos, o especialista mais uma vez convocado a se posicionar.
Agora, entre uma demanda e as respostas que poder gerar, no h ou, no deveria
haver um contnuo. imperativo que o especialista se pergunte sobre essa demanda e
sobre possveis efeitos para alm de seus campos de pesquisa das respostas e

89

posies assumidas, e que no recaia na obscenidade de elevar suas convices pessoais


ao estatuto de verdades cientficas.
Fassin (2001) atribui a demanda por um posicionamento mais especificamente no
turbulento campo das famlias homoparentais tentativa dos polticos de buscar apoio
nos especialistas para justificar a recusa s reivindicaes daquelas (brevemente, o autor
pontua que a opo que lhes resta uma vez que tendem a evitar identificar-se com a
discriminao homofbica57, a se arrogar a igualdade democrtica e no podem recorrer
religio em um espao pblico laico para justificar sua posio). Localizo aqui
uma verso atual de tentativa de controle pelo Estado das prticas sociais ao recorrer aos
especialistas para garantir e/ou justificar prticas sociais 58.
Quanto ao tema da demanda de um posicionamento aos pesquisadores, Fassin (2001)
contribui com um exemplo precioso. Inquieto, ao ver o nome do pai da antropologia
estrutural e o estatuto da referncia cientifica invocados de maneira abusiva como
expertise, pelos cientistas e tambm pelos polticos, Fassin endereou a Lvi-Strauss
uma carta59, na qual perguntava se este poderia manifestar-se.
Obteve a seguinte resposta:

O leque de culturas humanas to amplo, to variado (e de


uma manipulao to fcil) que encontramos sem dificuldades
argumentos para apoiar qualquer tese.
Entre as solues concebveis aos problemas da vida em
sociedade, a etnologia tem o papel de repertoriar e descrever aquelas
que, em condies determinadas, se revelaram viveis.
Esta familiaridade adquirida com os costumes os mais
diversos lhe ensina no melhor dos casos uma certa sabedoria que
pode no ser intil a seus contemporneos; sem esquecer contudo que
as escolhas da sociedade no pertencem ao cientista enquanto tal, mas
e ele mesmo um ao cidado (LVI-STRAUSS, 1999, apud
FASSSIN, 2001, p. 110, traduo livre).

57

A seguinte afirmao de Gavarini (2008) denota o modo como essa situao rapidamente se configura:
A idia de um direito criana pode ser entendida como um direito a ser como os outros, do mesmo
modo que o fato de coloc-lo em questo rapidamente considerado signo de homofobia (p. 7).
58
Tema desenvolvido por Roudinesco em A famlia em desordem e por Donzelot em A polcia das
famlias.
59
A carta foi endereada a Lvi-Strauss em 1999.

90

Esta a resposta do antroplogo: coerente com o que sua disciplina permite sustentar,
sem posicionar-se de forma alarmista, normativa ou preditiva. No seria isso tambm o
que se esperaria de um psicanalista?
Parece que diante das grandes indagaes que estas realidades tm suscitado na
atualidade - novas configuraes familiares, reproduo assistida, mudanas no campo
da sexualidade - algo da pessoa do pesquisador/cientista (psicanalistas a includos), que
redunda em julgamentos morais, ou na assuno de opinies pessoais, se impe diante
das demandas por um posicionamento. Esse posicionamento se traduz muitas vezes em
uma indiscriminao entre convices pessoais e leituras das prticas sociais e do
funcionamento psquico. preciso que esteja definitivamente excluda para o
psicanalista a possibilidade de se converter em um defensor dos costumes ou em um
censor, mas tambm no pode deixar-se encantar com a liberao dos costumes,
mesmo que pretendendo recusar a pecha de reacionrio.
2.3 poca: um recorte especfico na histria
A psicanlise tende a se instalar em um discurso a-histrico, localizando, de um lado a
ordem subjetiva, intemporal e, de outro, a dimenso histrica das relaes sociais. O
discurso lacaniano, no entanto, no se caracteriza por ser intemporal, mas intempestivo!
(CHEMAMA, 1997). O ensino de Lacan permite entrever que ele escutava atentamente
o que se passava no social e, em mais de uma ocasio, enfatizou que o psicanalista no
deve tomar o sujeito como separvel da subjetividade de sua poca60. O estudo das
declinaes do pai nos permitiu acompanhar como Lacan tomou essa prescrio ao p
da letra em seu ensino: a pluralizao dos nomes do pai uma decorrncia de sua leitura
constante e sensvel do social.
Articular estrutura e histria no uma simples empreitada. Ao contrrio, consiste em
uma tarefa a ser executada com cuidado para no se cair em um emaranhado de autores,
conceitos, posicionamentos e polmicas dos quais resulta extremamente difcil extrair
60

Que antes renuncie a isso, portanto, quem no conseguir alcanar em seu horizonte a subjetividade de
sua poca. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo da tantas vidas quem nada soubesse da dialtica que
o compromete com essas vidas num movimento simblico. Que ele conhea bem a espiral a que o arrasta
sua poca na obra contnua de Babel, e que conhea sua funo de intrprete na discrdia das lnguas
(LACAN, 1953c, p. 322, grifo meu).

91

um fio condutor. Que posio me permito compartilhar, de modo a habilitar uma leitura
possvel dos elementos que pretendo isolar neste trabalho? Procurarei investir nessa
articulao de forma cuidadosa, mas no exaustiva, valendo-me do modo como Lacan
sempre esteve atento, na tentativa de isolar o que da ordem da estrutura, para tambm
inscrever nesta a histria do sujeito, submetendo-a prova com a vivacidade da clnica,
apelando clnica para anim-la.
Para realizar tal tarefa, recorrerei a outros autores que retomam o texto de Lacan e lhe
acrescentam novos alinhavos. O leitor ver que examinarei mais detidamente as
formulaes de Sidi Askofar. Trata-se de uma escolha, j que elas me pareceram as
mais passveis de operar como um fio condutor. Minha proposta tratar o tema de um
modo possvel, ou seja, como aquilo que cessa de se no se escrever, pelo menos por
um momento, para que a pesquisa possa continuar.
A pergunta central que me faz adentrar este terreno e da qual no possvel furtar-me
quando o que est em jogo examinar um neologismo j surgido e cada vez mais
consistente, esta: como estrutura e histria se articulam? Se se entende que o sujeito e
o lao social no so entidades estanques, como pensar os efeitos na subjetividade dos
modos de lao social predominantes de uma dada poca?
importante marcar que, historicamente, estrutura e histria foram considerados
conceitos inconciliveis. Apesar das crticas a Lacan por deixar a segunda de lado
(Cabral, 2006), vimos que ele props a escuta do psicanalista daquilo que prevalece no
lao social na sua poca. Lacan apontou tambm para o modo como isso se concretiza,
seja no que concerne funo paterna, seja o dipo: como operao que une a estrutura
do sujeito sua histria singular. Podemos ento afirmar - de forma um pouco rpida,
concordo - que o modo pelo qual Lacan edifica o conceito de estrutura61 prev que este
possa articular-se ao de histria.
A especificidade da estrutura em Lacan estaria no fato de esta ser marcada,
descompletada pela contingncia (CABRAL, 2006, p. 132): se a revoluo psestruturalista (o ltimo Barthes, Derrida, Lacan) teve algum sentido, foi mostrar a
61

Para um estudo mais aprofundado sobre o tema da estrutura, ver: MAFRA, T. M. (2000) A estrutura
na obra lacaniana. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

92

contingncia das relaes estruturais (LACLAU, 2006, p. 112, traduo livre), algo
que poderia ser formulado nestes termos: a estrutura necessria, mas depende da
contingncia para inscrever-se, ainda animada singularmente pelo sujeito. No seguinte
trecho Lacan assinala a contingncia das relaes estruturais:
Por esse fato, a aparente necessidade da funo flica se descobre ser
apenas contingncia. enquanto modo do contingente que ela pra
de no se escrever. A contingncia aquilo no que se resume o que
submete a relao sexual a ser, para o ser falante, apenas o regime do
encontro (LACAN, 1972/73, p. 101).

Voltando articulao entre estrutura e histria, cabe perguntar: com que histria opera
a psicanlise? Cabral (2006), em um artigo com o sugestivo ttulo de Na cura analtica,
proteger a histria da Histria62, se concentra na noo de histria com a qual opera a
psicanlise, defendendo Lacan das crticas recebidas por no levar em conta a histria e
destacando a histria que Lacan detestava. Sigamos o modo como o autor vai
desenvolvendo sua reflexo.
Lacan marcava os limites de uma psicanlise sustentada exclusivamente na historizao,
uma vez que em seu tratamento da histria no se operaria com o que no
historicizvel, com o real. O risco seria recair em uma orientao da cura formulada em
termos de tornar consciente o que inconsciente. Cabral ento parafraseia Lacan: na
cura analtica possvel, sim, prescindir da histria [...] mas com a condio de ter-se
servido previamente dela. Em outros termos, somente servindo-se do recurso
historizao pode-se constituir o campo do no historicizvel (p. 122, traduo livre).
Em Funo e campo da fala e da linguagem em psicanlise, Lacan faz referncia a uma
investigao histrica autntica, marcada pelo esforo em seu ensino de precisar os
pontos de inflexo que, na histria da cultura, foram se produzindo no nvel dos
discursos, outro modo de referir-se a uma investigao sobre as articulaes entre cada
poca e a estrutura. Cabral (2006) entende que Lacan oporia histria e Histria, situando
a investigao histrica autntica do lado da primeira e a noo tradicional de histria,
sustentada em pretensas leis da histria, do lado da segunda. De acordo com o autor,
seria essa a histria que Lacan detestava. Uma histria que seria muito mais tributria

62

Ttulo original: En la cura analtica: proteger a la historia de la Historia.

93

do que o investigador visaria corroborar do que dos acontecimentos histricos


singulares; uma histria que se sustentaria em um vis edificante, incorporado em sua
vocao pedaggica, e que seria marcada por uma operao legitimadora.
A Histria detestada por Lacan, ainda segundo Cabral (2006) seria aquela que procura
alinhavar uma sucesso de acontecimentos por meio de uma coerncia imaginria,
provendo sentidos, produzindo universais. Dessa forma, se inscreve na lgica prpria ao
discurso do mestre, promovendo significantes privilegiados, significantes mestres
(aqueles que do consistncia e estabilidade para os fenmenos de massa). Seriam estes
os significantes que ordenariam identificaes como membro de, e, em escala
individual, filho de. A investigao histrica autntica, ao contrrio, [...] ao
fragmentar no indivduo o que se pensava unido e revelar marcas de heterogeneidade no
que se supunha homogneo, opera no sentido oposto (CABRAL, 2006, p. 125,
traduo livre, grifo meu).
Bem, se de fato o autor preciso ao pontuar a especificidade da histria com a qual
opera a psicanlise, perde-se ao tratar a histria em oposio Histria e mesmo quando
pretende circunscrever a tal Histria destestada por Lacan. E ento penso no
embarao que o deparar com o ttulo de seu artigo produziu em mim: Na cura analtica,
proteger a histria da Histria63. Haveria ento uma boa histria e uma m Histria?
Do lado da primeira estaria o sujeito e a singularidade, do outro lado o indivduo, o
universal e o homogneo? Seriam essas ltimas categorias detestadas pela psicanlise?
Estruturar-se-ia o lado bom (o sujeito) parte do que se configura do lado da Histria
(cada poca e o que comparece ali como sintomtico)? Seria ento a estrutura
impermevel aos acontecimentos histricos? Se o autor claro ao destacar como a
histria comparece na psicanlise de orientao lacaniana, parece confundir a crtica que
se faz aos dispositivos de controle implicados na Histria com a lgica do discurso do
mestre na qual esta se inscreve, gerando enunciados - como membro de, filho de,
conforme exemplifica Cabral - em relao aos quais o sujeito deve posicionar-se,
estando sempre de alguma forma a eles referido.
na cura analtica que reconhecemos um dispositivo genuno de
proteo da histria (seguramente, no o nico) no que esta contm,
como veremos adiante, de empuxo a realizao do prprio ser, frente
63

Esta temtica importante para a discusso que ser realizada no captulo 4.

94

presso uniformizadora da Historia do Outro (CABRAL, p. 125,


traduo livre).

O autor lembra a escolha de Lacan pelo termo realizao da histria no lugar de


reconstruo (que estaria referida a um objeto como pr-existente): O que se realiza em
minha histria no o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele j no , nem
tampouco o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior
do que terei sido para aquilo em que me estou transformando (LACAN, 1953c, p 301).
Ao pretender que na cura analtica se procede a uma realizao da histria, encontramos
em Lacan os vestgios do pensamento freudiano. Em Recuerdo, repeticion y
elaboracion, Freud prope que o sofrimento do analisante no seja tratado como fato
histrico, mas como uma potncia atual. Pontua ainda, que o analisante no recorda
nada do esquecido ou reprimido, mas o vive novamente.
Ento, caberia psicanlise proteger a histria da Histria? Autorizaria a leitura de
Lacan semelhante enunciado? Tomar a histria como separada/separvel da Histria?
Mas isso no iria na contramo da recomendao ou prescrio, que o modo pelo
qual a tomo - de Lacan no que diz respeito abordagem de uma poca? Tal enunciado,
se aplicado ao contexto da presente pesquisa, levaria no s oposio entre famlia e
parentalidade, como leitura de que se deve proteger a famlia daquela, perspectivas
das quais pretendo me distanciar.
Askofar (2009) apresenta uma interessante e coerente proposta de articulao, no
campo psicanaltico, entre sujeito e histria, partindo da constatao da dificuldade de
se articularem estes elementos, mais especificamente de articular o [...] sujeito
histria como processo e como lugar das diferenas (p.166). O autor pergunta: Pode-se
falar de um sujeito contemporneo o que evoca uma especificidade ligada ao tempo,
poca e, portanto, histria se o sujeito se define pelo seu assujeitamento
linguagem, e como o que um significante representa para um outro significante?
O sujeito, para a psicanlise lacaniana, o sujeito do significante. Ele o efeito da
linguagem, que o que especifica o humano. Progressivamente, o termo sujeito veio a
designar, de uma s vez, o indivduo emprico que se submete experincia e

95

instncia que se deduz da mesma experincia, instncia suposta ao saber inconsciente,


ao inconsciente como saber (ASKOFAR, 2009, p. 166). Todo ser que tomado na
linguagem e que exerce a funo da fala um sujeito, ou seja, pode-se dizer que h o
sujeito desde sempre e que haver sempre o sujeito, enquanto houver linguagem,
enquanto os homens continuarem a falar.
H sujeito desde sempre, e o inconsciente do sujeito o discurso do Outro64. Logo, se o
Outro se v afetado pelo contexto histrico, as marcas deste contexto incidiro sobre o
sujeito. Penso ser preciso, por isso mesmo, que os encarregados das funes materna e
paterna para a criana possam operar como um anteparo diante do que se apresenta
como imperativo em uma poca, interceptando o discurso prevalente na transmisso. A
famlia como resduo, desmembrada nas funes materna e paterna, opera a partir das
verses pelas quais o gozo singularizado em cada sujeito, e, neste caso, no como
pai ou me que eles comparecem, mas como sujeitos e os modos que arranjaram de
fazer frente inexistncia da relao sexual.
Alis, Lacan no diz outra coisa quando tenta situar, em 1953, o
problema das relaes do sujeito da fala e da linguagem. O que ele
prope so as coordenadas de uma verdadeira subjetividade, quer
dizer, de uma forma histrica e determinada de traos, de posies e
de valores que os sujeitos de uma poca tm em comum, em suas
relaes com o Outro, como discurso; no presente caso, o discurso da
cincia (ASKOFAR, 2009, p. 170).

Se o inconsciente estrutura, o lugar do Outro, h que se pensar que o Outro no se


reduz aos pais:
[...] o Outro do discurso universal que determina o inconsciente
como transindividual. Ora, o Outro, entendido nesse sentido, ou seja,
o simblico, se ele invarivel em sua estrutura aquela da
linguagem , tambm submetido s mudanas, s mutaes, s
rupturas, s subverses (ASKOFAR, 2009, p. 169).

Isso o que permite a Askofar afirmar que o sujeito tem coordenadas histricas e
culturais muito precisas.

64

Que o inconsciente do sujeito o discurso do Outro, eis o que aparece, ainda mais claramente do que
em qualquer lugar, nos estudos que Freud consagrou ao que chama de telepatia, na media em que ela se
manifesta no contexto de uma experincia analtica (LACAN, 1953c, p. 266).

96

O Outro, invarivel em sua estrutura, sofre influncias da histria, sofre influncias do


que em uma poca se apresenta como sintomtico, como modo de sutura da falta
prevalente. O discurso da cincia o discurso prevalente nessa poca. Veremos no
captulo 3 que ele altamente sedutor quando apresenta aos pais certezas e solues e
promete alivi-los dos riscos e das imperfeies inerentes s funes parentais.
No trecho reproduzido a seguir, possvel localizar o cuidado, preconizado por Lacan j
em 1938, que se deve ter de compreender um sujeito na cultura em que este est
inserido:
Com efeito, so as relaes da psicologia do homem moderno com a
famlia conjugal que se propem ao estudo do psicanalista; esse
homem o nico objeto que ele submeteu verdadeiramente sua
experincia, e se o psicanalista reencontra nele o reflexo psquico das
condies mais originais do homem, como pode pretender cur-lo de
suas fraquezas psquicas sem compreend-lo na cultura que lhe
impe as mais elevadas exigncias, sem compreender tambm sua
prpria posio perante esse homem no ponto extremo da atitude
cientfica.
Ora, em nosso tempo, menos que nunca, o homem da cultura
ocidental no poderia ser compreendido fora das antinomias que
constituem suas relaes com a natureza e com a sociedade: como,
fora delas, compreender no s a angstia que ele exprime no
sentimento de uma transgresso prometica em relao s condies
de sua vida, mas tambm as concepes mais elevadas com que
vence essa angstia, reconhecendo que atravs de crises dialticas
que ele se cria, a si mesmo e a seus objetos (LACAN, 1938, p. 54).

Conforme j foi destacado, em Os complexos familiares, Lacan no estabelece uma


diviso clara e ordenadora entre estrutura e histria, reconhecendo uma crise psicolgica
decorrente do declnio social da imago paterna. Entretanto, o percurso realizado at aqui
pretendeu ser esclarecedor em relao improcedncia de se reconhecer no que veio
depois, ou seja, nas declinaes do pai em Lacan, a manuteno dessa confuso ou
mesmo qualquer possibilidade de identificao da operacionalidade da funo paterna
com o lugar do pai na famlia ou na sociedade. Esse esclarecimento no visa concluir
que a histria no incide na subjetividade; ao contrrio, a noo de pai Real e a
prversion so j formulaes inseridas em um determinado momento histrico, a
partir de como Lacan se props a escutar o sujeito em sua poca, o que, central frisar,
diferente de assumir uma relao linear entre histria e subjetividade.

97

Um modo interessante de concluir esta discusso, mesmo antevendo que esse tema
espinhoso deixar sempre um resto, retomar o neologismo histoeria (hystoire)
proposto por Lacan no Prefcio edio inglesa. Nele o autor condensa histria e
histeria (alis, cabe comentar que em Lacan comparecem mais as condensaes
mantendo a tenso entre os termos em seus neologismos que as simples oposies), une
histria subjetiva - o sujeito, portanto - com histeria, estrutura que se particulariza por
evidenciar a incidncia do discurso do Outro sobre o sujeito. A histria do sujeito no
sem o discurso do Outro!
2. 4 - Do mal-estar na civilizao ao mal-estar na atualidade
Vimos no incio deste trabalho como Freud se surpreendeu com o fato de a cultura,
apesar de ser uma produo humana, no representar nenhuma garantia de felicidade.
Mais que isso, ao verificar que a cultura requer de seus indivduos, necessariamente,
uma perda de felicidade. Retomarei o texto freudiano sobre o mal-estar na civilizao e
o modo como localiza a perda que resulta do encontro do sujeito com a cultura com o
intuito de situar o que vem sendo nomeado, nesta poca, como mal-estar na atualidade.
no mbito do mal-estar na atualidade que vemos surgir o termo parentalidade,
oferecendo-se como uma resposta da poca ao que se l - do lado do especialista da
famlia - como um mal-estar parental, ou, conforme proponho neste trabalho, como um
modo de sutura da falta prevalente no lao social, sustentado no discurso da cincia em
sua determinao de forcluir o impossvel da educao. Impossvel localizado por
Freud, aos quais acrescentou outros dois: governar e psicanalisar65. O impossvel, furo,
falta ou perda necessria, nomes possveis do real, foi formalizado por Lacan nos
termos de no h relao sexual.
Em O mal-estar na civilizao Freud marca a contradio fundamental existente entre
civilizao e prazer, destacando o carter deste buraco, que deve ser conservado, uma
vez que ordena a dialtica do desejo. O mal-estar, portanto, se particulariza de acordo
com o que se apresenta como imperativo em cada poca. neste sentido que diversos
autores (destaco Charles Melman, Jean-Pierre Lebrun, Joel Birman) vm se dedicando a
circunscrever e ler o modo pelo qual o mal-estar se particulariza neste momento
histrico, ou, como mais freqente ser mencionado, o mal-estar na atualidade.
65

C.f. Anlisis terminable e interminable (1937).

98

Procurar responder pergunta sobre como se configura o mal-estar na atualidade


implica atravessar um emaranhado de autores, produes polmicas e que algumas
vezes denotam posies radicais a partir dos modos possveis de serem lidos os efeitos
da histria na subjetividade, tanto na clnica como no lao social.
No me proponho a examinar cada uma das vrias maneiras pelas quais essa articulao
explorada, mas adianto que me distancio daqueles que assumem posies mais
alarmistas em suas leituras sobre o mal-estar na atualidade. Tomo como referncia os
autores que, em suas anlises, recorrem letra de Lacan e que so prudentes nas
conseqncias que dela extraem, sem lamentar o tempo passado ou enaltecer o tempo
presente.
Permanecerei um momento no texto de Freud de 1929, no tratamento que d ao tema da
felicidade, dado que esta se apresenta como um dos imperativos de nossa poca. Para
Freud, a aspirao humana pela felicidade teria duas faces: uma positiva e outra
negativa; por um lado visaria evitar a dor e o desprazer, por outro, experimentar intensas
sensaes prazerosas. No sentido estrito, o termo felicidade s se aplicaria ao segundo
fim. Nossa busca pela felicidade seria limitada pela nossa prpria constituio; assim, a
finalidade de evitar o sofrimento tende a relegar para segundo plano a de obter o prazer.
A complicada arquitetura de nosso aparelho psquico coloca-nos diante da seguinte
questo: a satisfao dos instintos (que implicaria a felicidade) se converte em causa de
sofrimento quando o mundo exterior nos priva dela, negando a satisfao de nossas
necessidades. Mesmo assim, com essa complicada arquitetura, nosso aparelho psquico
capaz de adaptar suas funes ao mundo para tirar proveito deste na realizao do
prazer: Assim como o comerciante prudente evita investir todo seu capital em uma s
operao, a sabedoria talvez nos aconselhe no fazer depender toda a satisfao de uma
nica tendncia [...] (FREUD, 1929, p. 3030, traduo livre).
Ento fica estabelecido o paradoxo: a cultura seria a grande responsvel pela misria
que sofremos - civilizao mal-estar! Contudo, todos os recursos com os quais
procuramos nos defender contra o sofrimento procedem precisamente da cultura
(independentemente do sentido que se d ao conceito de cultura, precisa Freud). O que
desconcertante na descoberta freudiana que os homens no suportam a civilizao,

99

nem podem viver sem ela; devem estar juntos, separadamente (Rey-Flaud, 2002).
Mesmo que o autor no faa uma referncia direta, impossvel no lembrar a parbola
dos porcos espinhos relatada por Freud em Psicologia das Massas e anlise do eu,
dando consistncia formulao de que [...] nenhum homem suporta uma aproximao
demasiado ntima dos demais (FREUD, 1920-21, p. 2583, traduo livre).
Fao aqui uma breve parada para comentar o filme Onde vivem os monstros66 no qual
a iluso de estar juntos, em um mundo sem conflitos, comparece sob o desejo dos
personagens de dormir amontoados. Essa iluso, como possvel tratamento da falta,
logo se revela insustentvel, pois os furos no cessam de insistir. Contudo, se viver
juntos mal-estar, o filme mostra que as solues de cada um diante do mal-estar so
singulares e contingenciais.
O filme comea com um buraco que o garoto Max, de 10 anos, cavou na neve e que
chama de Iglu. Dentro dele sente-se protegido, inventa brincadeiras, faz-de-conta que
um rei. Max vibra com uma guerra de bolas de neve que deflagra contra os amigos da
irm que, j moa, no liga mais para ele, no quer mais brincar. A guerra termina com
a destruio de seu iglu. Max chora. A irm vai embora com os amigos. O menino, em
um acesso de raiva, destri um presente que fizera para ela. Ele sofre, angustia-se,
sente-se mal e culpado.
A me, quando chega, diz que, se estivesse em casa naquele momento, teria protegido o
filho... Pouco depois, Max novamente se sente s, a irm est crescendo, a me tem um
novo amigo, e o menino no encontra parceria para partilhar o prazer intenso que
experimenta nas suas brincadeiras. Em um acesso de fria, acaba mordendo a me e
foge.
Viaja por mares revoltos, luta contra ondas poderosas e finalmente atraca numa ilha.
l onde vivem os monstros. Monstros que ameaam devor-lo, mas Max os convence de
seus poderes. Podemos tambm pensar que os monstros querem ser convencidos,
anseiam por algum que faa essa promessa, que os iluda, que traga um sopro de
esperana. E, bem, Max muito bom nisso, tem um brilho no olhar e energia suficiente
para mobilizar todo o grupo.
66

Ttulo original: Where the wild things are, direo de Spike Jonze, 2010.

100

Os monstros consentem que Max seja o rei, um rei que poder livr-los da solido, que
promete mant-los juntos, afastar a dor, os conflitos... Esses monstros parecem sofrer do
mesmo mal que sofremos os humanos: para eles, estar juntos, apesar de inevitvel,
tambm mal-estar!
Na primeira noite, Max e os monstros dormem amontoados. Max no est mais sozinho.
Como rei, pretende reinar num mundo onde poder manter todos juntos e protegidos e
onde pretensamente os conflitos estaro do lado de fora.
O garoto vive os momentos de alegria sorvendo e saboreando cada instante. No filme, a
trilha sonora e a fotografia contribuem para que saboreemos tambm a delcia desses
momentos e que, assim como o monstro Carol, sonhemos com um mundo onde tudo
sempre bom e os conflitos possam ficar do lado de fora. Para Max e Carol, deparar-se
com o que foge ao previsto nesse mundo idealizado motivo para descontrole,
desespero e sofrimento.
Max traz algo de novo para o grupo, uma promessa, uma utopia? Os monstros fingem
acreditar nesse novo rei e por isso no o devoram? - para desfrutar do frescor que a
chegada deste jovem membro anuncia. Max acredita no tal mundo onde todos dormiro
sempre amontoados... mas se angustia com cada sinal de que isso no ser sempre
possvel.
Ser que o que est em jogo para Max tem a ver com o sofrimento da criana?
Sofrimento necessrio e contingente inscrio daquilo que no cessa de no se
escrever na estrutura? Um sofrimento que pertence ao tempo da infncia? Mas e Carol?
Ele parece viver o mesmo conflito que Max e j um monstro adulto.
Dar conta de que h sempre algo que escapa e se constituir como desejante, apesar
disso, ou para alm disso, ou ainda, fazendo o seu melhor com isso, uma tarefa pela
qual todos temos que passar e que passamos de diferentes maneiras. Os monstros do
filme no so s bons ou maus, mas mostram diferentes formas de dar conta daquilo
que escapa...

101

O filme se desenrola sem meno famlia de Max, ao lugar de onde vem. O garoto
est incumbido de manter todos juntos, de construir este mundo no qual os males e os
maus ficam de fora a promessa inclui arrancar o crebro daqueles que no so bemvindos e encontra em Carol um alter ego. Com ele tem a relao mais prxima, mais
intensa e se desdobra tentando garantir o que prometera ao amigo. Ele e Carol acreditam
que isso ser possvel. J os outros monstros... h uma que se mostra mais provocadora
e ctica, h outro que sempre soube que a promessa de Max era um engodo, mas queria
ver Carol feliz e h ainda KW, que abandona o grupo quando a coisa aperta...
Max dedica-se a planejar esse mundo onde todos podero sempre dormir amontoados,
mas os pequenos conflitos comeam a surgir: insatisfaes, demandas no satisfeitas,
provocaes. Numa cena em que Carol est desesperado e violento, KW oferece
proteo a Max, sugere que se esconda dentro de sua boca! A possibilidade de proteglo vem atrelada de literalmente devor-lo.
No toa, nesse momento que Max se lembra da me, daquela que teria protegido seu
iglu, daquela que ele mordeu (mas no devorou) e abandonou. Proteger...devorar...
consentir naquilo que escapa sem com isso se deixar devorar? No consentir, mas viver
abandonando o barco a cada vez que o mal-estar se impe?
tambm nessa cena e com esse monstro protetor (mas que, diante da falibilidade do
rei, de todos os reis, pois Max foi o nico que no devorou, foge, no fica para construir
o que possvel), de dentro de sua barriga, que Max fala de sua famlia, compartilha
como difcil viver em famlia. aqui que comea seu retorno para casa.
Diante do impossvel, do real, daquilo que escapa, os monstros at os monstros? reagem de formas diferentes, Carol torna-se violento e desesperado (como nosso
pequeno Max), KW abandona o grupo, os outros monstros mostram-se cticos ou
melanclicos.
Max retorna desta viagem diferente. No porque descobriu onde vivem os monstros, e
agora pode deix-los, mas talvez porque tenha descoberto que os monstros esto sempre
espreita e possa agora construir o seu modo particular de lidar com o fato de que nem
sempre dormiremos todos amontoados.

102

Voltemos a Freud e busca da felicidade. Refletindo ainda sobre as maneiras pelas


quais o homem se esfora para obter a felicidade e distanciar-se do sofrimento, Freud
situa o amor e pontua: jamais nos encontramos to merc do sofrimento como
quando amamos. Entretanto, a linguagem que emprega para o termo amor
imprecisa. Pode estar se referindo relao entre homem e mulher (que fundaram sua
famlia sobre a base de suas necessidades genitais), mas tambm se denominam amor
os sentimentos positivos entre pais e filhos, entre irmos e irms, mesmo que estes
vnculos devam ser considerados como amor de fim inibido, como carinho67 (p.
3041). Se o amor genital leva formao de novas famlias, o fim inibido leva
amizade, que tem valor na cultura, pois escapa a muitas restries do amor genital,
como, por exemplo, a seu carter exclusivo. Contudo, a relao entre o amor e a
cultura deixa de ser unvoca no curso da evoluo: por um lado, o primeiro se ope aos
interesses da segunda, que por sua vez o ameaa com sensveis restries (FREUD,
1929, p. 3041, traduo livre).
Para Freud, esse divrcio entre amor e cultura comea a estabelecer-se como um
conflito entre a famlia e a comunidade social mais ampla. Quanto mais ntimos sejam
os vnculos entre os membros de uma famlia, tanto maior ser muitas vezes sua
inclinao a isolar-se dos demais, tanto mais difcil lhes resultar ingressar nas esferas
sociais mais vastas (1929, p. 3041, traduo livre) Aqui pareceria que Freud refere-se
mais a uma resistncia por parte da criana s renuncias necessrias ao empreendimento
cultural do que ao fato de a famlia resistir a ingressar na esfera cultural. Tanto que, na
sequncia, o autor ressalta a importncia que alguns ritos de puberdade e iniciao tm
para o adolescente. At porque, se pensamos na famlia como clula mnima da
sociedade, sua funo justamente dar condies para o ingresso do novo indivduo na
cultura. nesse sentido que Hannah Arendt (2003), em Crise na educao, atribui aos
adultos (que j esto por aqui h mais tempo) a tarefa de introduzir a criana no mundo
que novo para ela; ou que Winnicott (2001), em Famlia e maturao emocional
atribui famlia a funo de propiciar as condies para a participao de seus
67

Remeto o leitor ao texto de Pommier intitulado O desejo de criana (...e seu avatar pedfilo) In:
Revista Literal Escola de Psicanlise de Campinas. Volume 11 sexualidade e(m) diferena.
Campinas, 2008, pp. 117-127. O autor parte do equvoco inerente expresso desejo de criana (desejo
de ter uma criana e desejo sexual por uma criana) tomando essas perspectivas como no antinmicas,
ainda que seja crucial que este segundo vis sofra a ao do recalque. Desse modo, possvel resguardar
o lugar da dimenso sexual na transmisso familiar em uma poca em que se pretende elidi-la sob o risco
de ser apreendida como uma forma de abuso.

103

indivduos na sociedade mais ampla. por isso que se pode dizer que no existe corte
entre o campo social e a cena familiar, o que se passa na vida social influencia a vida
familiar. Em outras palavras, a famlia reproduz em seu seio o limite ao gozo que a
civilizao cobra de seus integrantes. Decorre da que o que comparece no campo social
como mal-estar na atualidade no sem conseqncias para as relaes que se
organizam no mbito familiar.
Freud conclui: se a cultura nos impe to grandes sacrifcios, no apenas sexualidade,
como tambm a nossos instintos agressivos, podemos compreender melhor por que
to difcil para o homem alcanar a felicidade.
Ao propor a sua leitura do mal-estar na atualidade, Birman (2005) situa que o mal-estar
formalizado por Freud era j um mal-estar na modernidade. Lembra que em Moral
sexual civilizada e doena moderna, texto de 1908, Freud ainda apostava em uma
harmonia entre o sujeito e o social, e localiza as perspectivas teraputicas que investem
na harmonia do sujeito com o campo social e a medicalizao do social como um
retrocesso, dando corpo a uma psicanlise normativa, no condizente com a leitura
crtica de Freud sobre a modernidade, fundada no sujeito e seus impasses.
Se a psicanlise deixa claro que a desarmonia est na base da relao do sujeito com a
cultura, nem por isso aquele deixa de demandar a cura para seu mal-estar e seu
desamparo.
A iluso continua l, intacta, nos coraes e mentes dos indivduos.
Por isso mesmo, a psicofarmacologia, as neurocincias e o
cognitivismo vm cena para restabelecer a mesma crena e iluso
das subjetividades de que tudo ainda seria possvel. Esses saberes,
com suas tecnologias especficas, vm ao mundo para fazer a mesma
promessa e alimentar a mesma iluso de harmonia possvel, como
acreditava ainda o primeiro Freud (BIRMAN, 2005, p. 144).

A iluso de harmonia, e mesmo a demanda que ela gera, legtima. J em 1927, Freud
assinalava que o homem no poderia renunciar s iluses uma vez que elas so
necessrias para se tolerar a vida. As iluses so imperativas para se tolerar a condio

104

humana, logo no se pode prescindir delas68. Para operar, o discurso social conta com a
iluso, velando a verdade da desarmonia que nos estrutural, e tornando, dessa maneira,
a vida tolervel. Nessa linha, uma iluso no o mesmo que um erro nem
necessariamente um erro (FREUD, 1927, p. 2977, traduo livre), prescinde de toda
garantia, afirma Freud, outro modo de dizer que a iluso opera como um semblante. O
que se critica so os discursos que prometem garantir essa harmonia, [...] sem sequer
preocupar-se mais em saber se ou no semblante (LACAN, 1971, p. 27). Veremos a
seguir que o discurso cientfico aspira a elidir sua prpria dimenso de semblante ao
identificar-se com a verdade e pretender excluir o real.
Freud se ocupou do tema da iluso em El porvenir de una ilusion (1927) propondo que
as representaes religiosas nascem da mesma fonte que as outras conquistas da cultura:
da prepotncia sobre a natureza e tambm do impulso de corrigir as imperfeies da
civilizao. Diante do desamparo da infncia individual e da infncia da humanidade, as
iluses constituem-se em representaes que tornam tolervel o desamparo. E Freud
prope uma definio das representaes religiosas, ou seja, uma definio de iluso:
princpios e afirmaes sobre fatos e relaes da realidade exterior (ou interior) nos
quais se sustenta algo que no pudemos encontrar por ns mesmos e que aspiram a ser
aceitos como verdadeiros. (FREUD, 1927, p. 2973, traduo livre).
Nesse texto, Freud j detecta que a religio perde influncia para o discurso cientifico,
ainda que avalie que este ltimo no encontrara ainda, na poca, respostas para muitas
de suas indagaes. A substituio de um sistema de doutrinas por outro, diz ele,
implica que se proceda com a mesma rigidez e intolerncia; ou seja, o discurso
cientfico, para prevalecer, precisa valer-se das mesmas condies nas quais se firmou o
discurso religioso. Ao concluir que as doutrinas religiosas no so mais que iluses,
Freud passa a se perguntar se no o seriam outros fatores de nossa cultura, e localiza a
iluso na base da relao entre os sexos (perturbada por uma srie de iluses erticas).
Deduzo da que a iluso, dessa forma, est na base da relao entre os sexos, velando a
inexistncia da relao sexual.

68

No foi toa Freud teve de renunciar ideia de que, ao se esclarecer s crianas a sexualidade,
avanaria em direo diminuio das neuroses, j que verificou que elas no abandonam to facilmente
as suas prprias teorias - suas iluses - que manteriam a verdade como velada ou como mais tolervel.

105

Bem, a iluso, afixada na base do mal-estar que a cultura prevalece como recurso para
tornar tolervel a condio humana. Ento o que se modifica em cada poca o modo
de fazer frente ao mal-estar que a iluso pretender encobrir? Essa questo central
diante de autores (especialmente Charles Melman, em Um homem sem gravidade, e de
forma menos radical Jean-Pierre Lebrun em A perverso comum) que detectam no
indivduo contemporneo a pretenso de livrar-se da perda de gozo que a vida na
comunidade exige, ou, que a linguagem cobra, o que torna a iluso prescindvel.
Reproduzo a seguir a excelente formulao de Puj acerca do modo como se articulam
iluso e contexto histrico, com a qual concordo essencialmente, porque marca a
insistncia com a qual se pretende contornar a castrao inevitvel, mas no pressupe
um indivduo que se acredita realmente capaz de prescindir das iluses:
Podemos ento pensar que as formas de iluso que predominam em
um determinado contexto histrico, constituindo um modo
culturalmente ativo a servio de renegar a perda de gozo natural, que
em ltima instncia, denominamos castrao, representa um modo de
pensar a poca inspirado na descoberta freudiana, encontrando cada
poca o modo de resolver-se em seu limite para renovar-se sob a
forma de uma nova iluso (PUJ, 2006, p. 64, traduo livre).

Esse pequeno trecho tambm habilita uma resposta afirmativa pergunta formulada
acima: cada poca se renova sob a forma de uma nova iluso. Ento, o que se designa
como mal-estar na atualidade o tratamento dado contemporaneamente ao mal-estar na
civilizao. Destaco que tais afirmaes inscrevem a atualidade como uma poca a mais
na Histria, com particularidades, evidente, mas referida ao cenrio estrutural do malestar na civilizao e das iluses necessrias para toler-lo.
Ao longo deste trabalho, ressaltei algumas vezes um aspecto que est na letra de Lacan
e que serve como um vetor investigao que ora proponho, que o psicanalista sentirse convocado a estar altura de sua poca. Encontrei em Rey-Flaud (2002) a leitura de
que o princpio que sustenta O mal-estar na civilizao (j perceptvel em Totem e Tabu
e em Psicologia das massas e anlise do eu) consiste em que o destino do indivduo no
pode ser estudado fora do da comunidade na qual ele se insere. H diferenas
importantes entre o momento histrico em que Freud escreveu O mal-estar na

106

civilizao e o momento histrico em que Lacan props uma leitura desse mesmo malestar.
O social em que Freud imergia era o da Primeira Guerra Mundial e do entre-guerras,
enquanto Lacan fazia sua leitura diante de uma sociedade ps-Hiroshima e Auschwitz;
[...] se o primeiro podia compartilhar sem desconfiana o movimento cientificista de
seu tempo, o segundo no podia desconhecer as devastaes produzidas pela civilizao
tecnocientfica (LEBRUN, 2004, p. 18). E o autor se pergunta: trata-se do mesmo malestar? (Questo que parece perder o sentido quando observa que a formulao de Lacan
sobre os efeitos do discurso da cincia no mal-estar na civilizao deve-se mais ao
remanejamento operado por ele da descoberta de Freud do que a uma nova conjuntura
histrica, ou seja, trata-se do mesmo mal-estar, o que varia so as formas histricoculturais de contorn-lo.)
Se Freud se ocupava da perda de felicidade inerente vida em comunidade, atualmente
essa demanda comparece como um empuxo a gozar (LAURENT, 2007), no apelo
insistente e sedutor que o discurso capitalista, aspirando elidir a categoria do
impossvel, reafirma cotidianamente aos indivduos, ao empanturr-los gadgets. Nesse
sentido, a felicidade comparece como um imperativo no campo coletivo e na famlia.
H aqui um paradoxo: o mal-estar estrutural, que intrigou Freud, se encontra no fato de
que a cultura requer uma perda de gozo, mas a poca atual condensada no discurso
capitalista espera vender-nos a iluso de que no h limites para o gozo, oferecendo
objetos que tamponariam o menor indcio de falta.
Uma interessante anlise do modo como o imperativo de felicidade comparece na
contemporaneidade realizada por Brodski (2008), ao localizar o momento histrico em
que o empuxo felicidade tornou-se universal (a partir da Revoluo Francesa),
consolidando-se na busca de felicidade para todos e produzindo um achatamento do
singular no universal. , precisamente, a partir do momento em que a felicidade passa
do mbito privado ao mbito pblico, e que o pblico aspira manejar os corpos, que
esse mesmo discurso produz um resto (p.25) O imperativo de felicidade para todos
produz um resto que no se encaixa. A psicanalista reconhece na depresso uma objeo
ao universal e lembra que a maneira de a psicanlise tratar o real no se d pelo
universal, mas, ao contrrio, pelo mais singular de cada um.

107

Esse tema me interessa particularmente, pois veremos no prximo captulo que os


discursos e as polticas de apoio parentalidade tambm assumiram esse trao do para
todos. Ento, qual seria o resto produzido ao para todos do apoio parentalidade? Se
a depresso faz objeo ao universal contido no imperativo de felicidade, como
localizaramos o que faz objeo ao universal e ao homogneo condensado no para
todos da parentalidade?
Se na atualidade vivemos sob a gide dos discursos capitalista e cientfico, cabe
perguntar o que pretende cada um deles. O que pretende o capital? Suturar a falta pela
via dos objetos, prometendo satisfao imediata e livre de angstias. E que pretende o
discurso cientfico? A cincia sutura o sujeito, despreza-o de seu campo. Pretende
prevalecer sobre o real, encobrir a falta. Ambos aspiram a eliminar a falta, ambos
incidem sobre a famlia e sobre a infncia e acenam com possibilidades bastante
tentadoras! O capital, aliado cincia, promete construir uma sociedade sem sintoma. O
conhecimento reunido pela cincia, transformado em uma tcnica, ou seja, sem nenhum
rastro de enunciao, converte-se em um bem, em um capital. dessa maneira que os
discursos cientfico e capitalista se aliam, o primeiro consistindo em uma ferramenta
para o segundo, consolidando conhecimento para a realizao de avaliaes e
habilitando avaliadores; o segundo utilizando-o como bem econmico a servio de
multiplicar o capital. Subjugados a esses discursos, os indivduos acabam consentindo
em converter-se em avaliadores e usurios.
As tecnocincias69, verso do discurso da cincia liberada de qualquer vestgio de
enunciao, tm efeito na relao entre saber e conhecimento, aspecto central no campo
da subjetividade e da transmisso parental. O saber reduzido ao conhecimento e o
sujeito e a responsabilidade por seus atos so eliminados. Nesse sentido, a psicanlise,
como retorno do sujeito excludo da cincia, converte-se em um sintoma, sintoma do
real, e pode oferecer-se como uma segunda oportunidade (BASSOLS, 2007).

69

Lebrun (2004) marca uma importante diferena entre o discurso do homem de cincia, o discurso
cientfico, e o discurso tcnico. No primeiro, a enunciao ainda est presente, no segundo h j o
apagamento da enunciao e mantm-se apenas a autoridade dos enunciados. No discurso tcnico - que
disponibilizado aos pais quando se pretende ensinar-lhes por meio de aulas a educar seus filhos - lidamos
apenas com enunciados, sem qualquer vestgio da enunciao, que, contudo, inaugurou a sequncia destes
discursos.

108

Birman (2005) surpreende-se com a insistncia com que a pergunta o que devo fazer?
tem sido feita ao analista. O autor marca que tal interpelao no indita, mas se
impe na atualidade com maior freqncia. Talvez o que no seja da mesma natureza
que antes a resposta do analista. Para o autor, isso significa que os destinos da
interpelao em pauta no foram necessariamente os mesmos para o sujeito. Pergunta:
como devemos tomar isso? O que se pode escutar nessa formulao desesperada? O
autor l aqui um convite da figura do analisando para a ao da figura do analista. Tratase de averiguar a natureza da demanda para verificar o que est em jogo na interpelao.
Nas instituies educacionais e na clnica com crianas, tal interpelao tambm
comparece, do lado dos pais, sob a forma de isso normal? ou o que devo fazer?.
Penso que a psicanlise faz resistncia aos outros discursos ao singularizar esta
demanda, diante de uma tendncia a homogeneiz-la e trat-la com respostas universais
e prt--porter. Destaco a produo terica e a atuao profissional de dois
psicanalistas, Franoise Dolto e Donald Winnicott, que, apesar das diferenas em seus
referenciais tericos, cuidaram insistentemente para que os pais fossem escutados - na
clnica, na instituio e at mesmo em programas de rdio - procurando conduzi-los a
produzir e implementar suas prprias solues, conforme veremos no prximo captulo.
Um exemplo da homogeneizao da demanda e da interveno do especialista munido
pelo discurso da cincia no mbito familiar, a Escola para pais70. O especialista da
famlia, ao convocar os pais a um retorno escola, transmitindo-lhes seus
conhecimentos especficos sobre a criana, institui o discurso da cincia no lugar da
transmisso. No lugar do saber inconsciente, da implicao, da angstia e dos riscos
implicados no ato educativo, impe-se um discurso totalizante, sem brechas, sem
excees, sem vazio, confirmando a formulao de Lacan sobre a criana generalizada.
Outra caracterstica de nossa poca o discurso democrtico e suas incidncias no s
no espao coletivo mas tambm no mbito da famlia. Lembremo-nos da famlia
democrtica, descrita por Gavarini (2008), e de suas caractersticas: regida pelo
70

Vale esclarecer que me refiro s propostas como a citada na introduo desta pesquisa ou, ainda, a
criao (na Frana) de um programa dirigido aos pais, trabalhadores sociais e associaes que atuam na
rea da infncia sob a forma de um Cd-rom intitulado ser pais hoje em dia. Ele se prope a fortalecer
as competncias das famlias com crianas de 7 a 16 anos (PLANTET, 2004). Tais propostas se
inscrevem em outro marco poltico ideolgico que as Escolas para pais, idealizadas na Frana na
dcada de 70.

109

princpio de igualdade entre seus membros e as tarefas e os papis so autodefinidos por


todos.
Freud, em Aclaraciones, aplicaciones y observaciones (1932 [1933]), atribui educao
a tarefa de levar a criana a aprender a dominar seus instintos, mas destaca que ela deve
buscar seu caminho entre a permisso e a proibio. Acredita que possvel encontr-lo
produzindo para a criana o mximo de benefcios e causando-lhe o mnimo de danos
(uma soluo exitosa do ponto de vista econmico!). Voltolini71 traduz da seguinte
maneira o que seria o ideal da educao para Freud: desejar coisas para os filhos,
tolerar suas escolhas". Assim sendo, modo encontramos j em Freud essa clareza: a
educao sustenta-se em marcas de desejo, marcas que no so garantias. Marcas que
implicam um arriscar-se para alm do para o seu bem ou porque era meu dever,
marcas de desejo. Na atualidade, esse arriscar-se inclui tambm ousar para alm das
predies, medies e avaliaes veiculadas pelo discurso cientfico.
Constato um dos efeitos do modo como o discurso democrtico se insere na
contemporaneidade no exerccio das funes parentais quando os pais so categricos
sustentando o ato educativo numa promessa: no vou desejar nada para meu filho, ele
ser o que quiser... Nesse caso, a perspectiva pretensamente democrtica institui a
dimenso de promessa e se impe em detrimento da proibio necessria e estruturante.
Em Trs conselhos para a educao das crianas, Calligaris (1994) alerta para a
ocorrncia de uma inverso entre promessa e dever ao se seduzir a criana com uma
promessa que compromete o valor de nossa palavra educadora (p.28). O autor chama a
ateno para o fato de que a hegemonia da condio de promessa imposta criana
compromete a dimenso simblica. certo que a educao se sustenta numa promessa:
marcar o filho com o desejo; porm, sob vestes democrticas parece veicular-se um
discurso autoritrio. No imperativo de felicidade imposto s crianas, parece no haver
lugar para o sujeito do desejo.
Assim, encontramos, por um lado, a idia subjacente de uma transmisso assptica no
modo como a cincia atravessa o lao social na modernidade, por outro, no
estabelecimento da liberdade de escolha - no modo pelo qual a democracia se instala no
71

Em comunicao pessoal realizada em aula na ps-graduao da Faculdade de Educao da USP.

110

lao social na modernidade - institui-se a criana como promessa (promessa de


felicidade) para alm do dever. O imperativo de felicidade parece atualizar-se no mbito
da famlia como uma promessa de eliminar para os pais o risco de suas prprias faltas
e imperfeies.
Notadamente o neologismo parentalidade vem ganhando consistncia na atualidade,
condensando o modo como o mal-estar na atualidade se particulariza na famlia. Nesse
sentido, pode ser traduzido como o sintomtico desta poca? Pode-se dizer que a
parentalidade consiste em um modo de sutura da falta, caracterstico desta poca, diante
do impossvel da educao? Os discursos sobre a parentalidade, ao sustentar-se em
noes como competncia parental, esperando convencer os pais da possibilidade de
uma transmisso sem faltas ou imperfeies, representaria um risco para a famlia?
Essas e outras questes que envolvem o neologismo parentalidade, suas origens e os
discursos que lhe so subjacentes sero abordadas no prximo captulo.

111

Captulo 3 - Parentalidade: um neologismo que ganha consistncia na atualidade


Rien dttonant alors ce que de touts parts merge le sentiment
davoir prserver le lien parental 72 (NEYRAND, 2006, p. 120).

O termo parentalidade se institui no vcuo da discusso sobre o declnio da funo


paterna e evidencia, no mesmo movimento que o forja, um mal-estar relativo ao
desempenho das funes parentais. Apesar das boas intenes73 nas quais encontra suas
origens, o novo termo indissocivel do mal-estar que lhe suposto.
Ainda que no pretenda apresentar um histrico exaustivo ou realizar uma anlise
sociolgica da origem do neologismo parentalidade, parece inevitvel situar o contexto
no qual ele tem sido progressivamente imposto, a fim de tirar minhas prprias
concluses acerca de seus efeitos e implicaes no que se refere famlia.
De acordo com o interlocutor, profissional ou universitrio, o discurso sobre a
emergncia da noo de parentalidade diferente (Fablet, 2008). Martin (2006b) prope
trs argumentos para explicar por que se fala em parentalidade:
1 - A parentalidade como um meio de nomear o parent ou aquele que ocupa o lugar
2 - A parentalidade como um meio de dar conta das transformaes no campo da
famlia
3 - A parentalidade como um meio de desenvolver um discurso de ordem pblica74

72

Nada surpreendente ento que de todas as partes emerja o sentimento de ter que preservar o lao
parental (traduo livre).
73

No seminrio A tica da psicanlise, Lacan adverte sobre os riscos de se fazer o bem: Poder-se-ia de
maneira paradoxal, ou at mesmo decisiva, designar nosso desejo como um no-desejo de curar. Essa
expresso tem o sentido de alertar aos psicanalistas contra as vias vulgares do bem, tal como elas se
oferecem a ns, contra a falcatrua de querer o bem-do-sujeito (LACAN, 1959/60, p. 267).
74
Embora o autor contextualize esse discurso nas principais dificuldades enfrentadas pelo poder pblico
na Frana, onde a temtica da insegurana/violncia est na ordem do dia, avalio que o argumento pode
ser ampliado a outros contextos.

112

A seguir abordarei os discursos prevalentes em cada um desses argumentos, embora


saiba que os outros discursos comparecem de forma mais ou menos explcita em cada
um dos eixos e que no s os discursos como tambm os argumentos organizados por
Martin se influenciam mutuamente. Abordar cada uma das dimenses separadamente,
alm de organizar a exposio a seguir, permite situar com mais clareza os aspectos que
a meu ver merecem uma discusso mais aprofundada, assim como aqueles em relao
aos quais mantenho uma posio crtica.
3.1 - A parentalidade como um meio de nomear o parent75 ou aquele que ocupa o
lugar
O neologismo parentalidade, agrupando os papis e as funes parentais, surgiu na
Frana na dcada de 80 (HOUZEL, 2004, SOLIS-PONTON, 2004). Iniciativas do poder
pblico daquele pas visando apoiar a parentalidade foram concebidas no fim dos anos
80 (PIOLI, 2006) e a intensificao do uso do termo parentalidade ocorreu em meados
dos anos 90 (HOUZEL, 2004, FABLET, 2008, MARTIM, 2006a e 2006b).
Paralelamente, ocorreu o fortalecimento das polticas de apoio e a implementao de
discursos relativos parentalidade em outros pases, entre eles o Brasil, nos campos
jurdico, sociolgico, psicolgico, e nos meios profissionais voltados primeira infncia
(MARTIM, 2006a e 2006b, GAVARINI, 2006 e 2008, NEYRAND, 2006, GIAMPINO,
2006).
Em 1961, o psicanalista francs Paul-Claude Racamier introduziu o termo
maternalidade para definir o [...] conjunto dos processos psicoafetivos que se
desenvolvem e se integram na mulher por ocasio da maternidade (RACAMIER, 1961,
apud HOUZEL, 2004, p. 47), propondo-o como traduo mais adequada do ingls
motherhood76, tradicionalmente traduzido como maternidade. Na sequncia, Racamier
acrescentou os termos paternalidade e parentalidade, sem especificar, entretanto, a que
se referia. O objeto de estudo de Racamier e dos pesquisadores de seu grupo era a
psicose puerperal. Assim, a origem dos termos maternalidade, paternalidade e,
finalmente, parentalidade, estaria no que Houzel (2004) avalia como uma das patologias
75

Optei por manter o termo parent no original para evitar os riscos resultantes de uma traduo
equivocada. Parents refere-se a pais, a pai ou a me; refere-se tambm queles que compem os
ascendentes de uma pessoa e, ainda, parent qualquer pessoa com a qual se tenha um lao de parentesco.
76
De acordo com Martin (2006b) o termo parentalidade uma traduo do termo anglo-saxo
parenthood, que designaria melhor as funes parentais que o termo parentesco.

113

psiquitricas mais severas da parentalidade, concluindo que, sem dvida, no por


acaso que esse conceito apareceu nesta ocasio (p. 47). O autor no justifica tal
afirmao, embora parea encontrar certa lgica no fato de que o termo parentalidade
tenha sido forjado a partir do estudo de uma patologia situada do lado dos pais.
Houzel (2004) observa que no basta ser genitor nem ser designado como pai (ou me),
preciso tornar-se pai ou tornar-se me, o que implica um processo envolvendo
aspectos conscientes e inconscientes. Essa definio permite inscrev-lo entre os autores
com uma perspectiva psicolgica em relao s figuras parentais, definindo a
parentalidade como os remanejamentos psquicos e afetivos que permitem ao adulto
tornar-se pai (ou me), ou seja, responder s necessidades de sua criana em trs nveis:
o corpo, a vida afetiva e a vida psquica.
Solis-Ponton (2004) define parentalidade como o estudo dos vnculos de parentesco e
dos processos psicolgicos que se desenvolvem a partir deles. A parentalidade
necessita de um processo de preparao, at de aprendizagem, no no sentido de
pedagogia parental, mas como trabalho que pe em evidncia a complexidade e as
caractersticas paradoxais do fenmeno natural do parentesco (p. 29, grifo meu).
Chama a ateno que a autora atribua o adjetivo natural ao parentesco, dado que isso
contraria as bases das estruturas elementares de parentesco estudadas por Lvi-Strauss,
como vimos no captulo 1. Ainda assim, vale destacar sua preocupao da autora em
diferenciar o processo que descreve como parentalizao de uma pedagogia parental,
ainda que essa formulao parea comportar uma perspectiva desenvolvimentista.
Sustentada na expresso de Lebovici de que o beb faz seus pais e que, portanto, os
pais nascem junto com a criana, Solis-Ponton prope que o beb parentaliza os pais. A
construo da parentalidade, nesse sentido, fundamental para a vida mental da criana.
Em entrevista concedida psicanalista, Lebovici pontua que optou pelo termo
parentalidade no lugar de famlia, buscando no reduzi-lo ao fenmeno biolgico, e
entendendo que [...] ser pai e ser me no s ter um filho, mas tambm uma
oportunidade para refletir a respeito de sua descendncia (2004b, p. 21). A
parentalidade se constituiria, nessa perspectiva, a partir da aceitao de que herdamos
algo de nossos pais.

114

Nessa abordagem, justifica-se a incluso do termo parentalidade no lugar do termo


famlia porque o primeiro se destacaria como no decorrente do acontecimento
biolgico. Conforme vimos no captulo 1, Lacan, j em 1938, investiu em isolar a
famlia do fato biolgico, e a articulao da famlia como resduo de nenhuma maneira
prev que as funes materna e paterna sejam determinadas por laos biolgicos ou
dependam destes.
Tort (2008) destaca que, com a noo de parentalidade, surge uma definio de pais que
no dedutvel nem da biologia nem do ser social, mas das qualidades das relaes
psquicas com a criana. Esse me parece um modo muito interessante de recortar a
especificidade das funes parentais, ainda que no justifique, a meu ver, a insuficincia
do termo parentesco para alocar essas relaes.
As investigaes realizadas em torno da parentalidade e das importantes decorrncias
desse processo para o beb vm ocorrendo no mbito de pesquisas sobre a primeira
infncia e sobre as competncias do beb, em um movimento que vai da criana como
sujeito aos direitos da criana77 (NEYRAND, 2006). Outra vertente de pesquisas tem
se dirigido ao tema da preveno78, contudo, um vis importante desta vem adquirindo
um carter preditivo, justificando prticas de avaliao e controle e um considervel
movimento de resistncia79 entre os profissionais implicados no acolhimento
institucional primeira infncia. Como vimos no captulo 2, essa uma das maneiras
pelas quais o discurso da cincia se apresenta na atualidade, excluindo o sujeito,
reduzindo-o categoria de usurio e a nmeros expressos em tabelas estatsticas, e
autorizando intervenes de carter avaliativo, normativo e homogeneizante.
Um ltimo aspecto a assinalar que a vertente psicolgica do termo parentalidade no
se d sem conseqncias para o modo como os outros discursos aspiram a se apropriar
dele, sobretudo no que diz respeito s polticas pblicas que se organizam visando o
apoio parentalidade.

77

Gavarini (2008) faz um interessante percurso dos direitos da criana ao direito criana.

78

Abordei esse tema em outra publicao: Clnica psicanaltica com bebs: uma interveno a tempo.
So Paulo: Casa do Psiclogo, 2005.
79
Para maiores informaes ver o manifesto Les lieux daccueil enfants-parents manifestent pour
lenfant, disponvel no endereo eletrnico:
http://www.pasde0deconduite.org/IMG/pdf/lieux_accueil_parents_enfants_manifeste-2.pdf.

115

3.2 - A parentalidade como um meio de dar conta das transformaes no campo da


famlia
A partir do que foi discutido no captulo 2, acredito que possvel vislumbrar como o
termo parentalidade vem ao encontro das novas configuraes familiares. Contudo, ser
necessrio que nos detenhamos em seus aspectos sociolgicos e, sobretudo, no modo
como na atualidade o discurso jurdico comparece e vem sendo pressionado a
comparecer no mbito da famlia e da proteo infncia.
A dcada de 70 foi decisiva no que diz respeito s mudanas jurdicas no mbito da
famlia: a expresso chefe de famlia foi suprimida, e o significante parental
(conforme vimos no captulo 2), originrio do discurso jurdico, marcou a substituio
da autoridade paterna pela autoridade parental. A famlia, nessa passagem, tornou-se
co-parental. Contudo, as mudanas mais cruciais (decorrentes das reivindicaes das
famlias homoparentais e dos avanos da procriao medicamente assistida) ainda
estavam por vir, mudanas que vm reverberando na rea jurdica pressionando-a a
legalizar e reconhecer laos anteriormente inexistentes, a reconhecer a suposta
insuficincia da categoria do parentesco para dar conta das relaes familiares
institudas e a concretizar os laos familiares sob o desgnio do termo parentalidade.
Mas permaneamos ainda um momento na dcada de 70. A lei do divrcio foi
modificada em 1975, na Frana, pela introduo do consentimento mtuo. Este
substituiu a noo de erro ou falta conjugal que prevalecera at ento
(ROUDINESCO, 2003) prevendo que o genitor responsvel pela separao
matrimonial, devido s faltas que cometera, no deveria ser o detentor da guarda dos
filhos. O abandono desse critrio levou dissociao entre os papis de cnjuge e de pai
ou me. Assim, o princpio da co-parentalidade est no interesse da criana de ser
educada pelo pai e pela me, mesmo que eles sejam separados.
No Brasil, a legislao relaciona ainda a noo de culpa, falta grave que resulta na
separao matrimonial, ao cuidado dos filhos; a noo de interesse da criana no
substituiu a noo de falta conjugal, ou seja, convivemos com as noes de falta
conjugal, interesse da criana e direitos da criana (BRITO, 2004). A lei do divrcio,
eliminando a desigualdade entre homens e mulheres, data de 1977.

116

Nos ltimos anos, o nmero de divrcios no parou de crescer80, concomitantemente


queda do nmero de casamentos; entretanto, nem por isso deixou-se de ter filhos81,
configurando a disjuno entre conjugalidade e parentalidade, como vimos no captulo
2. A preocupao em torno das crianas nos casos de divrcio teve como efeito a
separao definitiva entre esses dois fenmenos, pois, com o objetivo de garantir
criana uma segurana material e afetiva para alm dos riscos implicados na relao
conjugal, e independentemente das aspiraes individuais e das liberdades da qual cada
um dos pais pode prevalecer-se, transferiu-se o ideal de indissolubilidade do casamento
para o ideal de indissolubilidade da filiao (PIOLI, 2006). Passou-se a insistir, e
mesmo a se normatizar, que os deveres e direitos parentais deveriam manter-se e
prevalecer, independentemente dos laos conjugais. Em nome dos interesses da criana,
centrou-se a ateno nos pais82.
A problemtica do divrcio deixou de destacar-se diante dos interrogantes gerados pelas
novas configuraes familiares e pelas promessas e realizaes no campo da procriao
medicamente assistida. Contudo, a guarda das crianas mantm-se como um tema
presente nos debates atuais no Brasil, principalmente a partir da introduo da noo de
interesse da criana - tambm expressa pelos termos bem da criana, ou melhor
interesse da criana - central para situarmos as atuais fices jurdicas em torno da
infncia e da famlia.
Apesar de bastante debatido em nosso pas, o Instituto da Guarda Compartilhada no
assunto to recente no mbito jurdico. Sua histria tem origem nos anos 1960, na
Inglaterra, onde ocorreu a primeira deciso sobre a guarda compartilhada (joint
custody). Nesse caso, todas as partes foram ouvidas e ponderadas; entretanto, as
decises dos tribunais ingleses privilegiaram os benefcios e o interesse maior da
criana e a igualdade parental. Tais precedentes repercutiram na Frana e no Canad,
sendo que o direito americano absorveu a nova tendncia e a desenvolveu em larga
escala. O fato em questo deixa bem claro que a origem da guarda compartilhada foi
80

Em 2009 foram registrados cerca de 188 mil divrcios no Brasil, ou seja, para cada cinco casamentos
h um divrcio (Fonte: IBGE) .
81
Na Frana, em 2004, quase a metade dos bebs nasceram de um casal vivendo em unio livre (em 1965
apenas 6% dos bebs teriam nascido fora do casamento. (LAURENT, 2010a, p. 150)
82
Neyrand (2006) cita pesquisas sobre a dificuldade da manuteno do lao paternal alguns anos depois
da separao (50% dos pais no v nunca, ou v raramente seus filhos aps a separao conjugal) dado
que contribuiria para a promoo da co-parentalidade conforme o interesse da criana.

117

expressamente clamada pela criana, pelo desejo de continuar o convvio com seus pais
e esse clamor foi plenamente compreendido e protegido pela Lei83.
No Cdigo Civil francs, a autoridade parental definida pelo artigo 371-1, que
determina terem por finalidade os direitos e os deveres dos pais "o interesse da criana"
e conclui anunciando um novo dever para estes: "Os pais devem associar a criana nas
decises que lhes concernem diretamente segundo a idade e o grau de maturidade"
(GAVARINI, 2009).
No Brasil, a Constituio Federal de 1988 assegurou direitos iguais entre homens e
mulheres, confirmando a igualdade de direitos e obrigaes entre estes diante do
casamento e dos filhos. Em harmonia com a Constituio da Repblica est o Estatuto
da Criana e do Adolescente, Lei 8.069/90, que contemplou a igualdade conjugal e a coresponsabilidade parental, obedecendo aos preceitos constitucionais, quanto
preocupao do melhor interesse da criana.
Com a Conveno Internacional dos Direitos da Criana (1989), tratado internacional
do qual o Brasil signatrio, a criana passou a ser reconhecida como sujeito de
direito84 - o que tem contribudo para a evoluo das crenas sobre A-Criana85. A
criana tambm passou a fazer a famlia, dado que esta no mais fundada pelo
matrimnio. As decises jurdicas concernentes famlia passaram a ser regidas em
nome do interesse da criana, e, a partir da introduo da noo de consentimento da
criana, esta foi lanada irreversivelmente no centro de todo o processo: A criana
pode ser consultada nas questes relativas sua educao, mas tambm em caso do
divrcio contencioso dos pais. A doutrina jurdica deixou de considerar as necessidades
da criana promulgao do interesse da criana (GAVARINI, 2009, p. 6).

83

C.f. - IBDFAM ACADMICO - Guarda Compartilhada: Novo Padro Contemporneo do Direito de


Famlia. Disponvel no endereo eletrnico: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=453.
84
Destaca-se o carter inovador do Estatuto da Criana e do Adolescente, promulgado em 1990, ao no
contemplar somente a criana em situao irregular, carente ou menor, mas tratar do direito de
todas as crianas e jovens brasileiros, considerando-os sujeitos de direitos e no mais objeto de
direitos.
85
C.f. - LAJONQUIRE, L. (2010). Figuras do infantil. A psicanlise na vida cotidiana com as
crianas. Petrpolis, RJ: Vozes.

118

Dizer que a criana passou a fazer a famlia pode parecer uma metfora, mas no ,
trata-se de uma prescrio sustentada nas novas fices jurdicas em torno da famlia:
Doravante, qualquer que seja a situao jurdica do casal, o nascimento de uma
criana que cria socialmente uma famlia (Relatrio da Misso da Assemblia
Nacional sobre a Famlia apud LAURENT, 2010a, p. 150, traduo livre).
Considerada uma funo, a parentalidade se decompe em mltiplas dimenses
(biolgica, social, simblica, genealgica); combinada com um sufixo, ela permite
qualificar as configuraes nas quais o parentesco social no corresponde ao parentesco
biolgico. Penso que quando proposto que o termo parentalidade permite o
descolamento entre o genitor e aquele que ocupa o lugar, vale lembrar (mesmo que
isso no consista em uma objeo ao uso do termo parentalidade para designar as novas
formas de famlia) que desde as pesquisas empreendidas por Lvi-Strauss, a famlia
definida como um fenmeno de ordem cultural, no redutvel ao acontecimento
biolgico (aspecto frisado por Lacan em 1838).
O termo parentalidade teria, ento, se imposto para responder questo seguinte: quem
so os pais? Como melhor nomear aquele que ocupa o lugar de parent? Parte-se da
constatao de que o lxico antropolgico do parentesco no permite designar o fato de
hoje no serem apenas os genitores a ocupar esse lugar e a desempenhar essa funo. O
que estar cada vez mais em jogo ser a vontade individual de ocupar este lugar
(MARTIM, 2006b).
O termo parentalidade abre espao nomeao e ao reconhecimento jurdico de laos
estabelecidos no mbito da famlia e que, sem isso, ficariam no limbo. Reivindica-se,
em ltima instncia, a legitimao de laos parentais no oriundos de laos de sangue,
ou melhor, o que est em jogo no s a nomeao, mas a regulao86 desses laos.
Retorno aqui a uma proposio de Tort (no captulo 2): no que diz respeito s novas
formas de famlia, a parentalidade revela-se uma inveno terminolgica na qual se
busca sair de uma contradio, retratando uma inventividade da definio prtica. Ou
seja, o que est agora em questo no uma definio terica, mas prtica, amparada
86

Maria Consuelo Passos (2005) alerta para a clandestinidade na qual vive boa parte das famlias
homoparentais, ao no serem legitimadas social e juridicamente, de modo que a vergonha, a mentira e o
silncio so uma constante em suas vidas e um aspecto no descartvel do ponto de vista da constituio
da subjetividade.

119

em prticas sociais j existentes e que precisam das fices jurdicas para sair da
clandestinidade.
O que vale destacar, do ponto de vista da psicanlise que o irredutvel da transmisso
familiar no se garante com a introduo do termo parentalidade e que a famlia como
resduo no se confunde com o amor parental pelos filhos. Alis, no h garantias na
transmisso e, menos ainda sobre seus efeitos; ou seja, desse risco, nem uma nova
terminologia nem as fices jurdicas ou as polticas de apoio parentalidade podem
nos liberar.
Em referncia a essa vertente do termo parentalidade, ela parece dar conta das
transformaes na famlia ao nomear e regular o lugar daqueles que assumem as
funes parentais, para alm das figuras biolgicas de pai e me. Entretanto, devemos
ser cuidadosos ao pretender estend-la a outros campos, porque, como veremos a seguir,
o termo parentalidade no dissocivel dos discursos que lhe so subjacentes. Se, por
um lado, a parentalidade convocada para legitimar novos laos familiares, por outro
veremos que, ao oferecer-se PARA TODOS os pais, produz um efeito de
homogeneizao, normalizao e diluio das diferenas no campo da famlia.
3.3 - A parentalidade como um discurso de ordem pblica
H ainda uma terceira vertente de investigao e de investimento na parentalidade: a
parentalidade como um discurso de ordem pblica. Nessa vertente, situam-se os
discursos veiculados pelo especialista da famlia, pelos profissionais implicados no
atendimento direto s crianas e s suas famlias e pelos poderes pblicos em sua
preocupao manifesta com os rumos das famlias na atualidade.
Darei continuidade ao estudo sobre o neologismo parentalidade a partir de um recorte
sobre as origens das polticas pblicas de apoio parentalidade na Frana. Nesse
percurso, veremos que o termo, alm de se referir a teorias psicolgicas e de representar
um facilitador para o ordenamento dos novos laos familiares pelas fices jurdicas,
tambm indissocivel do discurso no qual se origina e das prticas que lhe so
subjacentes.

120

Fablet (2008) localiza a emergncia do neologismo parentalidade no fim dos anos 90 e


avalia que a promoo do termo se deve menos aos pesquisadores ou a uma disciplina
universitria do que evoluo dos meios profissionais ligados proteo da infncia.
Aes de sustentao parentalidade constituem uma categoria de ao dos poderes
pblicos e foram concebidas no fim dos anos 80 para melhorar as condies do
acolhimento institucional primeira infncia (PIOLI, 2006). Cabe a pergunta: em que se
converteram essas aes? Como se define atualmente o perfil de famlia a que se
destinam? Em que discursos elas se fundamentam?
Vale observar que no Brasil no dispomos da mesma variedade de dispositivos
institucionais voltados primeira infncia que so ofertados na Frana. Tampouco
dispomos de instituies mantidas pelo poder pblico contemplando tambm os pais,
como os Centros de Acolhimento pais-criana que se instituram inspirados na Maison
Verte, a partir de polticas de apoio parentalidade. Acredito que, em nossa realidade,
possvel encontrar o investimento e a propagao de discursos sobre os pais na
atualidade no campo das instituies de acolhimento e da assistncia pblica e no
campo da educao (pblica e privada, no mbito das creches, berrios, escolas de
Educao Infantil e Ensino Fundamental). Vale ressaltar que, na realidade brasileira,
alm das instituies pblicas, h uma oferta crescente de dispositivos voltados a pais e
crianas propostos pela iniciativa privada, assim como de produtos e publicaes
especficas, incluindo um mercado editorial de autoajuda87 e de aconselhamento aos
pais em ascendncia.
Veremos adiante, junto com Volpe (2011) que, na realidade brasileira, os produtos e os
discursos so veiculados pelo especialista da subjetividade. A produo desse
profissional est muito menos ligada pesquisa universitria ou a instituies cientficas
que evoluo dos meios profissionais ligados infncia e educao, leitura que
condizente com a de Fablet (2008) sobre a emergncia do termo parentalidade na
Frana, como vimos acima. Outro modo de diz-lo que o termo parentalidade est
diretamente relacionado aos discursos sobre a famlia produzidos na atualidade, os

87

nesse sentido que penso que o mal-estar na atualidade se particulariza na famlia. A ascendncia da
autoajuda e do aconselhamento no uma caracterstica exclusiva dela famlia, mas um trao do modo
predominante nesta poca de fazer frente ao mal-estar que a civilizao.

121

quais, de acordo com Volpe (2011) adquirem particularidades no cenrio


contemporneo.
3.3.1 - As origens das polticas pblicas de apoio parentalidade na Frana
Um relatrio preliminar da comisso de preveno do Grupo de estudos parlamentares
sobre a segurana interior88, publicado em 2004, enfatizou recentemente a importncia
do perodo da primeira infncia (0-3) no domnio da preveno da delinqncia,
situando os pais, que devem ser apoiados pelas estruturas educativas ou sociais, no
centro desse dispositivo de preveno, sobretudo nos casos de famlias monoparentais89
ou recompostas (PIOLI, 2006). Localizo nesse tipo de proposio um discurso mais
preditivo do que preventivo (GAVARINI, 2008) e mais poltico que cientfico
(conforme o manifesto citado anteriormente). Sua lgica est em total contradio com
o modo como o apoio parentalidade foi concebido a partir do fim dos anos 80 pela
administrao social francesa, precisamente no domnio da primeira infncia (PIOLI,
2006).
Atualmente, reivindica Pioli, o apoio parentalidade se constitui como um elemento
estruturante nas reflexes e intervenes relativas aos domnios da justia, da sade, do
social e do familiar, envolve essencialmente iniciativas visando a estabelecer e reforar
os laos entre os pais e seus filhos, traduzindo-se em uma ferramenta para a
emancipao dos indivduos. Ainda que o autor critique modelos de interveno
preditivos, institudos como instrumentos de controle, dificilmente encontraremos
medidas que visam a estabelecer e reforar os laos sociais e totalmente despojadas de
mecanismos de avaliao e categorizao, ou, ainda, das perspectivas de insuficincia e
incompetncia parental, como veremos a seguir. Afinal, como seriam tais iniciativas
visando a estabelecer os laos entre pais e filhos? A partir de que tipo de avaliao, de
critrios ou expectativas seriam organizadas? Veremos mais adiante a atitude radical
que foi necessria aos profissionais da Maison Verte para manter o dispositivo
psicanaltico ali instaurado sem responder demanda avaliativa e categorizante das

88

No original: Groupe dtudes parlementaire sur la scurit intrieure


Possivelmente esse tipo de iniciativa est em conformidade com as pesquisas reunidas por Hazmad
relacionando dificuldades de aprendizagem e delinquncia e crianas educadas em famlias
monoparentais (ver captulo 2).

89

122

instituies financiadoras, embora estas fossem importantes para a inscrio social e


para a manuteno financeira do referido dispositivo.
Faz-se ento necessrio situar a lacuna estabelecida entre o modo como o apoio
parentalidade foi concebido e as prticas distorcidas que justificaria na atualidade. Pioli
(2006) alerta para a dificuldade de apreender a questo do apoio parentalidade a partir
unicamente da lgica do controle social ou da pura lgica de emancipao, e, neste
sentido, sua aproximao ao tema visivelmente menos ingnua do que poderia parecer
inicialmente.
No comeo dos anos 70, com a diminuio significativa da mortalidade infantil, as
polticas pblicas comearam a voltar-se para a primeira infncia (PIOLI, 2006,
GAVARINI, 2004). A pequena criana passou a ser assimilada a um capital da
humanidade, a um elemento portador de um projeto poltico de modernizao e de
emancipao.
Pioli observa que a pesquisa e o movimento relativo parentalidade tiveram sua origem
na opration pouponnires90, sustentada na vontade poltica de melhorar o acolhimento
em instituies voltadas aos cuidados de crianas separadas de seus pais. Foram
convocados pesquisadores j engajados nessa temtica, como Myriam David,
Genevive Appell, Danile Rapoport e Janine Lvy, para traar uma ao voltada ao
combate s perturbaes decorrentes da separao (descritas inicialmente por Ren
Spitz, John Bowlby e, depois, por Jenny Aubry). Logo a ao foi ampliada para o
estudo sobre as maneiras de os profissionais melhorarem o acolhimento institucional.
Dessa maneira, o autor situa a origem do termo parentalidade nas prticas de apoio aos
pais de crianas separadas91, que visavam se desvencilhar de uma perspectiva
culpabilizante e concentrar-se em modos de manter as funes parentais em situaes de
ruptura.
A dinmica sustentada no bem-estar da criana foi acompanhada por uma importante
modificao das representaes que os profissionais tinham acerca dos pais. Eles no
seriam mais vistos como culpados (cujas falhas teriam legitimado medidas de
90

Instituies de acolhimento a bebs e crianas de at 3 anos separados de suas famlias.


Referncia ao termo utilizado por Jenny Aubry no livro Psicanlise de crianas separadas. Rio de
Janeiro: Campo Matmico, 2004.
91

123

substituio parental), mas passariam ao estatuto de vtimas. Seriam agora, aos olhos do
poder pblico, pais em sofrimento, que demandavam escuta e apoio. A ao
profissional sofreu um giro importante: no se tratava mais de limitar as prticas
parentais patognicas, e a noo de cooperao passou a fazer parte da ao profissional
junto aos pais (PIOLI, 2006).
A passagem da culpabilidade dos pais para sua vitimizao, relatada por Pioli, me levou
a refletir sobre os riscos de serem tomados, por um lado, como vtimas e impotentes,
instituindo prticas assistencialistas, que repercutem na dependncia e na infantilizao
em relao s instituies mantidas pelo poder pblico e, por outro, como malagradecidos ao no se submeterem completamente (pais que tentam recuperar a
subjetividade em um sistema que est organizado para despoj-los dela),
reintroduzindo-se a via da culpabilidade e da distncia dos mesmos em relao ao que
se preconizaria como bons pais. Nos discursos sustentados pelos profissionais da rea
social e educacional, os pais so lanados de um plo ao outro: ora so vistos como
vtimas, ora como abusivos.
Em 1994 foi criado um grupo de trabalho pluridisciplinar e pluri-institucional dirigido
por Didier Houzel com o objetivo de trabalhar mais especificamente a parentalidade.
Buscaram-se precisar as conseqncias de situaes de rupturas total ou parcial dos
laos pais-filhos tanto para a criana como para cada um de seus pais, partindo das
seguintes questes: em que medida h possibilidade de manterem esses laos e
fortalec-los, ou, ao contrrio, de limit-los? Em que condies a manuteno desses
laos favorvel ao desenvolvimento psquico da criana, ou, ao contrrio, prejudicial
a ele? Qual o significado para a criana desses laos de filiao quando eles no esto
mais em estrita correspondncia com seus laos afetivos e educativos atuais?
Os especialistas reunidos sob a direo de Houzel propuseram distinguir, na
parentalidade, o exerccio (os direitos e deveres), a experincia (a dimenso subjetiva) e
a prtica (as tarefas cotidianas), e destaco, entre esses eixos, o modo como os autores se
posicionam diante do primeiro. O exerccio da parentalidade entendido como
prximo ao sentido jurdico, ao situar cada individuo nos seus laos de parentesco e
com isso, nos seus direitos e deveres. O direito legisla os aspectos jurdicos do
parentesco e da filiao, e diante da franca turbulncia da evoluo dos costumes e da

124

reproduo assistida, preciso discriminar lao biolgico, lao social e lao jurdico.
Houzel (2004) avalia que no se trata de tomar uma posio, mas adverte que faltam
estudos informativos dessas situaes (formas modernas de parentalidade e impacto
sobre o desenvolvimento psquico da criana):
Nosso dever, me parece, no tomar posio, do que, alis, me
isentarei, mas chamar a ateno dos que decidem para alm das
consideraes jurdicas ou de aspectos sociolgicos desses
problemas, sobre as conseqncias para o desenvolvimento psquico
da criana da situao na qual aqueles que se encarregam dela
exercem sua parentalidade92 (p. 49).

Vemos aqui o modo como o discurso psicolgico se entrecruza com o jurdico e


convocado ou se oferece como suporte para as decises tomadas no mbito do direito e
mesmo para a elaborao de polticas pblicas. Nesse caso, o autor pretende no tomar
posio, mas reivindica que as decises sejam tomadas a partir do modo como
compreende a constituio psquica da criana e as funes parentais.
A proposta do grupo de Houzel de diferenciar lao biolgico, social e jurdico pode
tambm ser encontrada em outros autores que verificam que esses laos guardam cada
vez menos relao de dependncia. Em Ceccarelli (2007) tais termos so traduzidos de
outro modo: fato fsico (o nascimento), fato social (o nascimento transformado em
filiao) e fato psquico (a filiao inserida em uma organizao simblica) para que a
criana se constitua como sujeito. Avalio que a distino proposta pode contribuir para
que as fices jurdicas se organizem de modo a reconhecer e a legitimar os novos laos
familiares que se instauram na atualidade.
A partir do fim dos anos 90, o apoio parentalidade passa a estar no centro de um
processo maior. ao preventiva procuram ser integrados os modos de auxiliar os
pais na sua tarefa de pais, numa lgica que se prope respeitadora dos indivduos e
valorizadora das competncias parentais. Nessa perspectiva, os pais no so mais
abordados como demissionrios ou patognicos por natureza, mas simplesmente
como indivduos esmagados pelo peso dos constrangimentos materiais, financeiros e
pelos riscos da vida (PIOLI, 2006).
92

Conforme marquei no captulo 2, no tratarei de antecipar ou traar um veredicto sobre o que ser das
crianas educadas nas novas configuraes familiares. Recomendo queles que possam interessar-se
sobre esse tema a leitura de artigos de Genevi Delaise de Parsival.

125

Com isso, o apoio parentalidade deixa de se restringir a uma preocupao ou ateno


especial com filhos de pais psicticos, ou com crianas separadas de seus pais, e passa
a se constituir em uma perspectiva que se estende a todos os pais, traduzindo-se em
lgicas que envolvem prticas variadas, e muitas vezes, contrrias.
Consequentemente, todos os pais so concernidos potencialmente,
ainda que alguns deles possam aparecer como tendo mais
necessidade de ajuda. Com efeito, a funo dessas aes no
unvoca, j que o apoio parentalidade reenvia a dois eixos: o
primeiro horizontal, e prope uma ao global destinada a todas as
famlias. O segundo um eixo vertical, e corresponde a uma
perspectiva que se apia sobre as populaes alvo (PIOLI, 2006, p.
24, traduo livre, grifo meu).

O percurso realizado at aqui permite localizar na emergncia do termo parentalidade os


modos como o discurso da cincia penetra no mbito da famlia, propondo medidas de
apoio parentalidade que partem da perspectiva de que haveria uma carncia ou uma
insuficincia parental. A leitura do estudo de Pioli permite identificar um discurso de
ordem pblica que vai adquirindo consistncia ao se traduzir em iniciativas de apoio
parentalidade pressupondo uma insuficincia subjacente a TODOS os pais.
3.3.2 O especialista da famlia
No posso deixar de notar que, curiosamente, o termo parentalidade tenha surgido em
uma poca na qual a funo, a disponibilidade e o lugar que ocupam os pais so
questionados. Os pais so tambm acusados de delegar cada vez mais as funes que
tradicionalmente assumiriam a instituies terceiras: escola, servios de sade e
culturais e outros servios oferecidos pelo especialista da famlia. As famlias so
atualmente excessivamente culpabilizadas por

antecipao:

presumidas como

demissionrias, fracassadas, ao ponto que se faz necessrio apoi-las (GIAMPINO,


2006, p. 35, traduo livre). Um paradoxo presente no discurso pblico sobre a famlia
a passagem da famlia de excessiva a insuficiente:
Sabamos que a famlia podia ser mortfera. Mas, depois da leitura
das obras de Laing e Cooper, principalmente, era muito mais a um
excesso de instituio que imputvamos seu carter patognico: a
uma instituio que por excesso de institudo, de normas, de
autoridade e de dominao era destruidora para os sujeitos. Hoje em
dia, os maus tratos ou a violncia intrafamiliar so, ao contrrio,

126

interpretadas como defeitos ou falhas da instituio (GAVARINI,


2008, p. 6).

Nesse contexto, oferece-se uma srie de conhecimentos que traduziriam as funes


parentais em termos de competncias e que seriam disponibilizados aos pais ao modo
de como ser bons pais/boas mes. Os discursos sobre a parentalidade surgem como
efeito de tais conhecimentos, apontando para uma inadequao, uma insuficincia dos
pais concretos diante da tarefa de criar seus filhos. Essa dimenso normativa da
parentalidade se estabelece assinalando quo distantes esto os pais em relao a um
ideal possvel - o impossvel inerente educao forcludo no s das promessas
veiculadas pelas tecnocincias como tambm do discurso sobre a parentalidade que
nelas se sustenta. Prope, ainda, um modo de transmisso que poderia concretizar-se
como tributrio exclusivamente da funo parental, como se de um sujeito fosse
possvel separar o parental, sem que essa parte fosse contaminada por outros
aspectos (falhas e imperfeies), menos nobres, da subjetividade.
No Brasil, embora no disponhamos de uma rede de atendimento s famlias organizada
da mesma forma que na Frana, possvel identificar na escola o mesmo discurso na
forma de uma queixa, assim como a relao de causalidade que se estabelece entre as
dificuldades apresentadas pelas crianas e as mudanas no campo da famlia, explicitada
nas referncias insistentes s famlias desestruturadas. Na mesma medida, vem
aumentando visivelmente a oferta de dispositivos (escuta de pais, escola para pais,
orientao de pais) e de publicaes voltadas aos pais, invocando as competncias
parentais, ou as melhores maneiras de bons pais produzirem crianas competentes. Vale
destacar que mesmo que vejamos como legtimas as demandas por parte dos pais,
preciso separ-las das respostas que o especialista da famlia sente-se convocado a
oferecer; pois possvel que estejamos diante de uma inverso: grande parte da
demanda verificada nos pais na atualidade parece configurar-se a partir da oferta
excessiva e generalizada sustentada nos discursos normativos da parentalidade93.
Ao fazer da famlia a causa principal dos problemas sociais, privatiza-se uma questo
que social, e, ao se diagnosticar que a famlia seria a responsvel pelas dificuldades
93

Essa observao me fez recordar uma constatao recente de uma orientadora educacional de uma
escola de educao infantil: os pais tm procurado insistentemente a orientao da escola para certificarse de que seus filhos so normais.

127

apresentadas pelas crianas94, se recai em um reducionismo (MARTIM, 2006b,


GIAMPINO, 2006). Interessante observar que, por um lado, privatiza-se a culpa (o que
localizvel na esfera social atribudo esfera familiar), mas, por outro, ou, no
mesmo movimento, converte-se um fenmeno de ordem privada (a transmisso
familiar) em um fato pblico (sustentado no interesse da criana): a proteo famlia
justificaria as ingerncias do Estado (visando suprir a omisso familiar).
Vale lembrar que a interveno do especialista no mbito da famlia no um fato
recente. Pesquisadores como Christopher Lasch95 e Jurandir Freire Costa96 dedicaram-se
a estabelecer o cenrio social no qual a figura do especialista se instituiu no final do
sculo XIX. Lasch deteve-se, em sua anlise, na realidade norte-americana, enquanto
Costa investiu em circunscrever a realidade brasileira. Costa (1999) abordou o modo
pelo qual o discurso mdico passou a normalizar a sociedade brasileira, exaltando uma
famlia higinica. O autor se refere aos mdicos que intervinham nas famlias,
consistindo em um brao interventor do estado na esfera privada, como tradutores
exclusivos do obscuro:
O controle higinico era microscpico, detalhado, improvisado. No
havia um cdigo claro, permanente, que orientasse o sentido das
proibies. A higiene deu margem a este jogo de variaes infinitas.
Quase toda a atividade humana podia ser potencialmente mrbida
(COSTA, 1999, p. 138).

De acordo com Volpe (2011), o discurso do especialista foi definido por Claude Lefort
como discurso tcnico especializado, um discurso legislador e pedaggico, passando a
reger as relaes sociais. Lash identificou a figura do especialista com as novas
profisses auxiliares da famlia, que supostamente dominariam as tcnicas necessrias
para mediar as relaes sociais, partindo do consenso de que aquela no poderia mais
dar conta de suas prprias necessidades.

94

Em uma pesquisa, 65% dos professores avaliaram que o envolvimento da famlia na educao dos seus
filhos essencial para a melhoria na qualidade de ensino, porcentagem significativamente acima da que
foi atribuda importncia da formao dos professores na qualidade do ensino. Fonte: MARCHESI, A.
(2008) O Bem-estar dos professores. Porto Alegre: Armed.
95
LASCH, C. (1991) Refgio num mundo sem corao. Famlia: Santurio ou instituio sitiada? So
Paulo: Paz e Terra.
96
COSTA, J. F. (2004). Ordem mdica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edies Graal.

128

Encontrei em Volpe (2011) um estudo sobre o modo pelo qual na atualidade o


especialista se apresenta famlia, ou seja, como ele comparece nesta poca,
diferenciando-se da figura clssica do especialista ou do discurso tcnico
especializado. A autora no menciona em sua anlise o neologismo parentalidade;
contudo, parece descrever a lgica por meio da qual ele se insere - em sua vertente
normativa e ortopdica - no cenrio contemporneo brasileiro. Embora eu prefira o
termo especialista da famlia, a autora opta por profissional da subjetividade. Parece
que Volpe, ao circunscrever a figura do especialista da subjetividade, mesmo sem
utilizar o termo parentalidade uma nica vez, faz referncia ao discurso subjacente ao
entendimento que haveria necessidade de um apoio parentalidade. Identifico essa
proximidade entre o especialista e os discursos sobre a parentalidade quando a autora
observa que o campo de atuao daquele legitimado pela crena na inevitabilidade da
interveno97, justificada pela insuficincia dos pais para desempenhar suas funes.
O discurso do especialista da subjetividade, diferentemente do discurso cientfico,
legitimado pela cincia e pelas instituies, se caracteriza pela visibilidade pblica e
pela expresso em grande escala, de modo que os profissionais regem suas carreiras
mais pelas leis do mercado do que pelo discurso universitrio, no qual a figura do
especialista se firmou.
A pesquisa realizada por Volpe, alm de circunscrever a figura do especialista da
subjetividade, apresenta uma anlise crtica do discurso por ele veiculado, mostrando
como este se constitui por enunciados que so simplificaes e diluies do
conhecimento cientfico e especializado. Embora a autora reconhea no especialista da
subjetividade o propsito de diferenciar-se dos profissionais que atuam na rea da
autoajuda ou do aconselhamento, identifica-o literatura de autoajuda e a um simulacro
de saber transmitido como conselhos, dicas e reflexes. As intervenes realizadas pelo
especialista da subjetividade so normativas e refletem um determinado padro de
famlia, recaindo em generalizaes e empobrecendo a discusso. Embora exista uma

97

O culto autonomia e performance, caractersticos dos discursos prevalentes na atualidade produzem


sujeitos dependentes de todo tipo de ajuda especializada redundando em uma autonomia assistida que
demanda servios de apoio (BEZERRA, 2002). Deste modo, pode-se dizer que a inevitabilidade da
interveno consiste em um dos modos pelos quais os discursos prevalentes na atualidade se
particularizam na famlia.

129

tentativa de neutralidade, revela-se uma posio normativa, na qual se busca eliminar a


imprevisibilidade e esclarecer todas as dvidas.
Volpe precisa ao localizar o que denomina ambiguidade no discurso do especialista
da subjetividade: ao mesmo tempo em que pretende devolver a sabedoria aos pais,
revelando uma preocupao com a legitimidade de seu saber, tal preocupao no
suficiente para produzir uma alterao no vnculo estabelecido entre o especialista e o
pblico. O especialista da subjetividade, apesar de pretender diferenciar-se de outros
profissionais, recai em um discurso permeado por certezas, prescries e conselhos. A
autora assinala, ainda, que tal ambigidade j estava presente nos especialistas e fora
detectada por Lash no discurso mdico americano dos anos 1950, quando comparecia
como uma defesa da singularidade na relao entre pais e filhos e apresentava-se sob a
forma de um culto da autenticidade.
Assim sendo, se a presena do especialista no um fenmeno novo na sociedade, na
configurao social atual ele assume formas inditas: trata-se de um discurso sustentado
na lgica da literatura de autoajuda, governado pelo imperativo do mercado e no mais
legitimado pela autoridade intelectual ou pela origem institucional de quem o profere.
No entanto, constata Volpe, h alguns traos que se mantm, como o consenso de que
existem

condutas

adequadas

de

que

os

profissionais

dispem

desse

conhecimento/tcnica para faz-las prevalecer. Outro trao mantido a posio


ambgua, j que as intervenes do especialista da subjetividade no promovem a
independncia dos pais. Um ltimo aspecto, que j fora detectado por Lasch, que os
pais modernos acabam sentindo-se obrigados a ser pais perfeitos e encontram no
discurso do especialista as certezas sobre como faz-lo, promovendo uma aproximao
entre a maternidade e a paternidade e o exerccio de uma profisso. Eu acrescentaria
outro trao, no destacado por Volpe, que caracteriza o cenrio no qual o especialista
intervm na atualidade: a preocupao em avaliar, medir e quantificar.
Vale destacar que a avaliao converte um indivduo: de seu estado de nico passa para
o de um em entre outros, um ser comparvel a outros e capaz de ser registrado pelas
estatsticas (NAJLES, 2008 e MILLER; MILNER, 2006). A avaliao produz respostas
que pretendem categorizar e homogeneizar grupos e depois geri-los. Instaura a lgica do
usurio na qual, no caso da parentalidade, se supe uma srie de necessidades aos pais e

130

filhos sem que eles tenham sequer que nome-las, e, se chegam a nome-las, isso no
necessariamente bem-vindo, pois pode contrariar os profissionais em questo. Esse
um bom exemplo de como o interesse da criana, quando comparece como um
imperativo, pode se sobrepor ao interesse de cada criana e possibilidade de um
sujeito (seja ele adulto ou criana) enunciar uma demanda. Trata-se de uma das facetas
pelas quais a infncia generalizada, preconizada por Lacan, comparece na atualidade.
Resta a indagao sobre o quanto no seriam os prprios profissionais os
desencadeadores nos pais da expectativa sobre a existncia de um bom modo de ser pai
ou me, se essa demanda no seria gerada pela oferta do especialista que sustenta seu
discurso numa avaliao pr-concebida dos pais como incompetentes e insuficientes,
justificando a interveno.
Um ltimo comentrio sobre a pesquisa de Volpe: a autora destaca o modo como a
iluso da existncia de um ns98 se atualiza no discurso do especialista da
subjetividade: ele costuma apresentar-se tambm como pai ou me, de forma que no
haveria diferena entre o especialista e os pais; juntos, eles formariam um ns [...] que
compartilha da mesma experincia - ter filhos -, e das mesmas dificuldades (VOLPE,
2011, p. 187).
Se o cenrio em torno da insuficincia parental e da inevitabilidade da interveno
ganha cada vez mais consistncia, h tambm autores e pesquisadores que, como Volpe,
criticam essa posio e defendem um no-intervencionismo. Malat (2006) avalia que os
profissionais devem se ressituar, uma vez que no so os observadores da famlia, os
avaliadores do comportamento dos pais. A autora critica especialistas que querem nos
fazer crer na existncia de uma funo puro sangue materna e outra paterna e que a
atuao do bom trabalhador social consiste em observ-los, descrev-los, contabiliz-los
e, a partir de uma avaliao microscpica, envi-los ou no ao juiz. Nessa
perspectiva, a famlia estaria reduzida a um conjunto de competncias educativas.
Ao dirigir-se aos trabalhadores sociais, Malat lembra-os de que no so exteriores
sociedade diante da qual se posicionam como observadores, mas fazem parte dela e,
frequentemente, so tambm pais e sentem na pele o peso da avaliao externa de suas
98

Tema que ser desenvolvido no prximo captulo.

131

competncias parentais, chegando inclusive a se misturar com os pais que criticam e


destituem99.
Penso que se trata de estimular os pais a interceptar o discurso social assumindo os
riscos e imperfeies que a transmisso - absolutamente singular - implica. Martim
(2006b) prope que os profissionais da infncia e da famlia abordem a parentalidade de
outra maneira:
[...] o que se precisa trabalhar a condio parental e a maneira pela
qual os pais falam de seu prprio papel; tentar levar em conta o ponto
de vista e a palavra dos pais sobre a funo que ocupam, procurar
compreender como eles se tornam pais progressivamente em sua
trajetria (p. 62, traduo livre).

Dessa forma, vrios autores que se dirigem aos profissionais da infncia, (MARTIM,
2006b, MALAT, 2006 e GIAMPINO, 2006) avaliam que preciso abordar os pais de
outra maneira, que os profissionais se ressituem diante daqueles. Declaram inclusive
que se trata de recusar a perspectiva de apoio parentalidade: Podemos eventualmente
auxiliar os pais em suas tarefas educativas, apoi-los nos momentos de dificuldades
ligadas aos acontecimentos da vida. No se trata em nenhum caso da parentalidade que
dever ser sustentada (GIAMPINO, 2006, p. 34, traduo livre, grifo meu).
Partilho com Giampino a posio de que no se trata de apoiar ou sustentar a
parentalidade e acrescento que as funes parentais no podem ser homogeneizadas,
tampouco se conformam a partir de um universal. Destaco a seguir outra afirmao
contundente da psicanalista, na qual pretendo me deter: Apoiar a parentalidade,
acompanhar os pais, deve ser, antes de querer corrigir as parentalidades, evitar arruinlas (GIAMPINO, 2006, p. 43, traduo livre). Ainda que a autora no faa referncia a
Winnicott, o psicanalista ingls manifestava a mesma preocupao, assim como refletia
sobre os danos que um especialista poderia causar ao interferir no campo da
maternidade e da paternidade.

99

Tal confuso aparece, por exemplo, quando educadores de abrigos que acompanham as crianas a
atendimento psicolgico viabilizado por uma rede profissional organizada por uma ONG, demandam
instituio que se responsabilize pelo atendimento psicolgico de seus filhos.

132

Destacarei a seguir a posio assumida por Winnicott ao identificar os riscos implicados


na interferncia do especialista no mbito da famlia. Embora o psicanalista ingls no
tenha recuado diante do convite de se dirigir aos pais em um programa da rdio BBC de
Londres, veremos de que modo pensou ser possvel dirigir-se a eles, j que estava
advertido em relao aos riscos a implicados. Na sequncia, farei uma breve
apresentao da Maison Verte, instituio de acolhimento a crianas pequenas e seus
pais proposta por Franoise Dolto e um grupo de profissionais na dcada de 80.
Chamo a ateno para o fato de que este dispositivo institucional contemporneo ao
movimento que culminou, na Frana, com a poltica de apoio parentalidade, pois
resulta de um projeto absolutamente particular, constituindo-se em uma instituio
radicalmente diferente das que lhe so contemporneas. Sua presena neste captulo
pretende marcar a resistncia dos profissionais da Maison Verte ao discurso cientfico,
homogeneizante e avaliador - que, como vimos, subjacente noo de parentalidade
em sua dimenso normativa e ortopdica - para manter a tica psicanaltica como um
eixo do dispositivo institucional.
3.3.3 - Winnicott e o apoio negativo aos pais
A famlia abordada por Winnicott diversas vezes, em inmeras publicaes.
Concentrarei minha ateno em dois textos do livro A famlia e o desenvolvimento
individual, publicado pela primeira vez em ingls, em 1965. Em Aconselhando os
pais, o psicanalista (vale lembrar que Winnicott, assim como Dolto, fez o percurso da
pediatria psicanlise) adianta aos leitores que sua expectativa a de que, aps a
leitura, eles se sintam menos preparados e menos inclinados a dar conselhos aos pais.
Ainda que o autor no o formule dessa forma, o que faz nos textos justamente separar
a demanda dos pais das respostas que o especialista se sentiria inclinado a fornecer.
Adverte que sua expectativa no deve levar o leitor a extremos: quando um mdico est
diante de uma doena que conhece, seu dever dar as respostas a quem as pedir.
Em seguida, Winnicott descreve uma situao bem ilustrativa em relao ao que
pretende transmitir aos seus leitores: relata uma consulta mdica motivada por um
problema nas amgdalas, na qual o mdico conversa um pouco com a me, aps o
diagnstico e a prescrio, e ela lhe diz que o filho tem sofrido violncia de outras

133

crianas e que pensa mud-lo de escola. O mdico diz me que acredita na


necessidade de ela mud-lo de escola. Nesse ponto, Winnicott interrompe o relato
assinalando que o mdico saiu de seu domnio e teve uma atitude autoritria. Avalia
que, ao escutar a me, o mdico, sem sab-lo, teve uma atitude benfica, mas ao
aconselhar, tomou uma atitude irresponsvel e desnecessria, dado que a me no lhe
pedira sua opinio. O exemplo, aparentemente simples e corriqueiro, denota a
sensibilidade do psicanalista para a intromisso do especialista no mbito privado da
famlia, para os riscos implicados em se sair do campo especfico de atuao e para o
fato de, neste deslocamento a um campo no qual no estaria autorizado a manifestar-se,
o especialista carregar a autoridade que lhe confere o discurso mdico.
O problema : devem eles (aqueles que tiveram formao em
medicina orgnica) dar um passo alm de suas habilidades especiais e
ingressar no campo da psicologia, isto , da vida e do viver? Eis
minha resposta: sim, se eles forem capazes de guardar e conter em si
mesmos os problemas pessoais, familiares e sociais com que so
colocados em contato, deixando que a soluo aparea por si s
(WINNICOTT, 2001, p. 173).

O psicanalista preocupa-se em precisar no s a diferena entre escutar e intervir, mas


que intervir torna-se desnecessrio nos momentos em que escutar absolutamente
efetivo. Assim, introduz um corte entre a demanda e a resposta produzida, levando os
leitores a se questionarem sobre a pertinncia de seus comentrios no exerccio de suas
atividades profissionais. De fato, em minha atuao na formao de professores,
verifico que frequentemente eles se sentem impelidos a responder s demandas dos pais,
quando muitas vezes seria interessante apenas escut-los.
Winnicott mostra-se extremamente sensvel s interferncias do especialista no campo
da famlia, sobretudo no caso de bebs e crianas pequenas e, sem ser prescritivo, deixa
bem claro o que no deve ser feito no contato dos profissionais com os pais. Oferece
pistas para uma posio possvel diante da demanda destes: a observao, a
possibilidade de escutar e, no mximo, devolver aos pais o que eles contaram e de
deixar que a soluo aparea por si s. Adverte ainda sobre a inadequao da
expresso de juzos morais nesse tipo de contato.

134

Em Algumas consideraes sobre o significado da palavra democracia100, Winnicott


(2001) avisa seus leitores que est ingressando em um terreno fora de sua rea de
especialidade. Ele descreve uma sociedade democrtica como uma sociedade madura.
Para Winnicott maturidade sinnimo de sade; logo, uma sociedade democrtica
seria tambm saudvel. Pergunta: Como se pode estudar o desenvolvimento emocional
de uma sociedade? Tal estudo deve acompanhar de perto o estudo do indivduo. Os dois
estudos devem desenrolar-se simultaneamente (p. 229)
Para Winnicott, a estrutura democrtica uma conquista de uma sociedade dotada de
algum limite natural, ela deve possibilitar a eleio de governantes pelo voto livre e
secreto, e nela o indivduo - se for suficientemente sadio - responsabiliza-se por sua
ao. Nesta sociedade e nesta poca, h uma proporo suficiente de indivduos que
atingiu um grau suficiente de maturidade emocional para que exista uma tendncia inata
criao, recriao e conservao da estrutura democrtica (2001, p. 231).
O autor define o termo inato como as tendncias naturais (hereditrias) da natureza
humana que se desenvolvem e florescem no modo de vida democrtico, o que pode ser
lido como maturidade social e que s ocorre mediante o desenvolvimento emocional
sadio dos indivduos. Se a democracia maturidade, a maturidade sade e a sade
algo desejvel, natural que procuremos saber se podemos fazer algo para promov-la.
Tomemos como certo que a simples imposio da estrutura democrtica seria
perfeitamente intil (WINNICOTT, 2001, p. 234).
O fator democrtico dependeria do que foi feito ou no pelas famlias dos indivduos. O
autor prope que se evite interferir nos lares capazes de dar conta de suas crianas,
denominando-os lares bons e normais, e adianta que a partir de seus 25 anos de
trabalho, pode afirmar que esses lares so costumeiros, desafiam todas as estatsticas,
pois no aparecem nos jornais, no so espetaculares e no produzem homens e
mulheres famosos.
Pontua, contudo, que os pais normais s vezes precisam de ajuda, mas se preocupa com
o modo como ela pode ser oferecida: Quem pode garantir que, ao buscarem
100

Captulo 18 do livro A famlia e o desenvolvimento individual, publicado pela primeira vez em


ingls, em 1965.

135

assistncia, eles no sero roubados da responsabilidade que tm sobre os prprios


filhos? Com isso, deixariam de ser criadores do fator democrtico inato
(WINNICOTT, 2001, p. 235, grifo meu).
Winnicott se preocupa mais com os riscos implicados na interferncia do especialista do
que com a competncia dos pais para criarem filhos maduros. Ele legitima as
demandas dos pais e pergunta-se sobre a posio a partir da qual o especialista
responde, de que modo atualiza um saber e supe ou no um saber nos pais, mesmo
que pelas prprias faltas e imperfeies. O que o autor parece vislumbrar que a
interferncia, alm de constituir-se em ferramenta de controle social, acaba por destituir
os pais de sua responsabilidade sobre os prprios filhos.
Como se respondesse antecipadamente ao que se configurou posteriormente (em nossa
poca) como uma poltica de apoio parentalidade, Winnicott prope um apoio
negativo aos pais: O melhor apoio consiste na atitude negativa de promover
organizadamente a no-interferncia na relao normal e boa entre me e beb, bem
como nos lares bons e normais (2001, p.239).
Deve-se evitar interferir no lar bom e normal e o estudo da psicologia e da educao
consistiria, de acordo com o autor, um esteio adicional.
A devoo que a me boa e normal dedica a seu beb um fato
dotado de especial significao; a capacidade de atingir a maturidade
emocional resultado dessa mesma devoo. A interferncia massiva
neste ponto, por parte de uma sociedade, faria diminuir rpida e
decisivamente o potencial democrtico dessa sociedade, e certamente
minoraria a riqueza de sua cultura (WINNICOTT, 2001, p. 247,
grifos meus).

O autor parece se referir a um empobrecimento das relaes, de uma forma geral como
efeito da interferncia massiva no mbito da famlia. Nesse sentido, faz diferena se
pensamos que os discursos normativos e ortopdicos vm socorrer os pais no exerccio
de suas competncias ou se entendemos que esto j na base do mal-estar parental na
atualidade, contribuindo para o sentimento de insuficincia e incompetncia parental.
O termo lar bom e normal utilizado por Winnicott pareceu-me inicialmente uma
adjetivao, uma valorao da famlia, mas o modo como ele define o define 136

prevalente, costumeiro e no espetacular - tranqilizou-me a esse respeito. Tambm


chamou a minha ateno o fato de Winnicott, no artigo sobre a democracia, qualificar
como defeito da famlia o fato de os pais no serem casados, terem um
relacionamento instvel ou estarem separados; tais pais no alcanariam a categoria de
bons e normais. Convm lembrar que esses textos foram concebidos em um contexto
scio-histrico no qual a suposta crise relativa famlia ainda no havia sido deflagrada,
sobretudo os fatos principais a partir dos quais tal crise adquiriu notoriedade (definio
da autoridade parental, surgimento e demanda por reconhecimento das novas
configuraes familiares e avanos da procriao mdica assistida). certo que jamais
saberemos como o psicanalista ingls teria se posicionado diante desse novo contexto;
no sabemos nem mesmo se teria se posicionado, ou seja, se mostraria alguma
preocupao em relao constituio psquica das crianas resultantes dos novos
modos de constituir famlia.
Alm disso, Winnicott (2001) refere-se a uma famlia invicta101, e isso, alm de
intrigar-me, merece algumas consideraes. Reproduzo a seguir alguns trechos nos
quais essa noo utilizada pelo autor:
Na esmagadora maioria dos casos o lar e a famlia existem,
permanecem intactos e proporcionam ao individuo a oportunidade de
desenvolver-se quanto a esse importante aspecto (p. 132).
[...] quando a famlia permanece intacta e h unidade entre os irmos,
cada individuo tem diante de si a melhor das oportunidades de
iniciar-se na vida social (p. 133).
quando a famlia se rompe, ou ameaa romper-se que percebemos
o quo importante a famlia intacta. verdade que a ameaa de
desintegrao da estrutura familiar no determina automaticamente o
aparecimento de distrbios clnicos nas crianas [...] (p. 133).

Inicialmente pensei que poderia tratar-se de um erro de traduo (o que no se


verificou102), dado que intacto remete a ntegro, ileso, no tocado. O que teria de
permanecer intacto para que uma famlia pudesse produzir indivduos maduros? Uma
anlise apressada apontaria para a idia de que, para Winnicott, uma famlia na qual os
101

Esta referncia aparece no captulo 11 Famlia e maturidade emocional do livro A famlia e o


desenvolvimento individual.
102
No texto original em ingls encontramos remain intact.

137

pais se separam, por exemplo, no teria as condies necessrias para conduzir seus
filhos maturidade emocional. Mas o autor toma o cuidado de frisar que a
desintegrao da estrutura familiar no implicaria necessariamente o aparecimento de
sintomas psquicos em sua prole.
No mesmo texto, possvel destacar outro cuidado do psicanalista em relao s
concluses s quais os leitores poderiam chegar: Por mais que uma famlia faa tudo
do melhor por um dos seus filhos, isso no garantia de que a criana v desenvolver-se
at atingir a plena maturidade103 (WINNICOTT, 2001, p. 135). Pois bem, na famlia,
no h garantias. Que Winnicott o formule desta maneira me tranqiliza: mesmo que a
famlia permanea invicta, no h garantias.
Ao tomar como referncia as formulaes lacanianas sobre a famlia, situei que o que
deve permanecer intacto o formulado por Lacan como resduo, o irredutvel da
transmisso: a funo da me, cujos cuidados levam a marca de um interesse
particularizado, ainda que pela via das prprias faltas e a funo do pai, na medida em
que seu nome o vetor de uma encarnao da Lei no desejo. No mais, no h famlia
intacta. No h famlia intacta em relao s mudanas que ocorrem no lao social, no
h famlia intacta desde e sempre que exista famlia. Mesmo que Winnicott atribua a
desintegrao a separaes, conflitos ou instabilidades conjugais, teramos que pensar
que a morte de um dos cnjuges, por exemplo, promoveria tal desintegrao; de modo
que ficamos sem saber o autor ficaria alarmado diante das famlias nas modalidades
pelas quais elas se apresentam na atualidade. Mas, intactas ou no, na famlia no h
garantias, e o psicanalista ingls claro nesse ponto!
Apesar da preocupao com a interferncia do especialista na famlia, Winnicott no
recusou o convite para fazer um programa de rdio na BBC de Londres; entre 1939 e
1962, ele proferiu cerca de 50 palestras radiofnicas dirigidas aos pais, e o livro
Conversando com os pais rene todas as realizadas depois de 1955. Winnicott (1999)
inicia o captulo 1, intitulado Educao para a sade atravs do rdio, com o seguinte
comentrio: [...] deve ficar claro que no sou, na verdade, especialmente favorvel
103

Lembremos que para o autor maturidade sinnimo de sade. O modo como define um adulto
maduro, aparentemente simples, , a nosso ver, digno de nota: Pode-se dizer que o adulto maduro
capaz de identificar-se a agrupamentos ou instituies sociais sem perder o sentido da continuidade
pessoal e sem sacrificar em demasia seus impulsos espontneos [...] (p 137).

138

educao para a sade em moldes massificados (p. 1) e prossegue deplorando as


intervenes que pretendem dizer aos pais o que tm de fazer, uma vez que recorrem
desavisadamente a qualquer um que lhes fale com autoridade, por se sentir culpados.
Mais uma vez, localizo em Winnicott a preocupao em separar a demanda dos pais da
resposta que os profissionais se sentem convocados ou tentados a fornecer104. No seu
programa de rdio, o psicanalista procurava apreender as coisas comuns que os pais
faziam e ajud-los a compreender porqu delas, advertindo ser impossvel tratar
anormalidades graves105pelo rdio. O autor, sem defini-lo dessa maneira, parece
circunscrever o apoio negativo aos pais com as seguintes palavras:
Quando se diz s mes que faam isto ou aquilo, no tardam em ficar
confusas e (o mais importante de tudo) perdem o contato com a sua
prpria capacidade para agir sem saber exatamente o que est certo e
o que est errado. faclimo fazer com que se sintam incompetentes
(WINNICOTT, 1999, p. 6, grifo meu).

Vale lembrar que na incompetncia parental que o discurso da cincia, aspirando a


elidir o impossvel estrutural da educao, encontra brechas para intervir, embora ao
mesmo tempo ele mesmo discurso contribua para que os pais se sintam incompetentes e
insuficientes para desempenhar os papis de pai e me.
3.3.4 - Franoise Dolto e a Maison Verte
Quando o tema a contextualizao das investigaes e polticas pblicas na Frana
voltadas primeira infncia, aos pais e preveno, na dcada de 70, a originalidade e a
inovao do dispositivo implementado na Maison Verte aparecem notadamente
(ELIACHEFF, 2004, LAJONQUIRE, 2010).

104

Nos seus programas de rdio, Dolto criticava os saberes pedaggicos e se recusava a dar aos pais
regras educativas referentes a um sistema de valores particular, assim como se recusava tambm a
fornecer indicadores cronolgicos; marcava dessa forma que o ritmo e a histria prpria do desejo da
criana devem ser sustentados (FRANOIS, 1992).
105
Nos seus programas de rdio, os pais dirigiam a Dolto perguntas que geralmente se referiam ao
cotidiano das famlias: o sono, o ritmo dirio, o controle dos esfncteres, a entrada na pr-escola, etc.
Algumas vezes eles traziam dificuldades mais especficas e, quando a situao parecia mais grave, Dolto
enfatizava a necessidade de os pais recorrerem a uma ajuda especializada. Assim como Winnicott,
mostrava clareza sobre os limites e alcances das intervenes.

139

A Maison Verte106 foi aberta em 1979, como um lugar de encontro, de socializao, de


escuta e de trocas para tudo aquilo que envolve a chegada de uma criana, contando
com a presena de profissionais formados em psicanlise e onde a interdio
legitimada107. Um lugar no qual se enderea criana, onde seus atos tm um sentido.
Esse endereamento se origina na constatao de Franoise Dolto de que se fala das
crianas, mas pouco se fala com elas.
O dispositivo implementado na Maison Verte articula-se em torno de dois conceitos
principais: lao social e subjetivao. Pretende-se ofertar um lugar intermedirio entre a
vida familiar a o espao coletivo, que favorea a relao precoce pais-crianassociedade, sem, contudo, identificar-se obrigao de socializao precoce preconizada
pela civilizao ocidental (THIS, 2007). Sustenta-se na possibilidade, criada por Dolto,
de uma utilizao social da psicanlise, baseada em sua idia de preveno desta
psicanalista, implicada tanto nas suas transmisses na rdio108 quanto na Maison Verte.
A Maison Verte se apresenta como um lugar onde o que importa falar com vrias
pessoas sobre o comportamento das crianas, num clima social acolhedor, que dissipa a
ansiedade e desculpabiliza pais e filhos (LEDOUX, 1991, p. 186). Com isso, contribui
para minorar a solido dos pais e metabolizar as relaes excessivamente exclusivas
entre eles e os filhos. Ali os pais podem se ocupar de seus prprios filhos, comparar
106

Como para sua abertura a fachada fora pintada de verde e como as crianas j a nomeavam Casa
Verde, esse nome foi mantido. No entanto, algo do chiste se instaurou no nome, dado que se falava da
Maison Verte (Casa Verde) e da Maison Ouverte (Casa Aberta): a sonoridade permitia o equvoco, que
foi escutado por This (2007) como referido s outras tantas instituies que foram inauguradas em toda a
Frana e em outros pases, assim como abertura na qual os fundamentos dessa instituio repousavam.
107
Na Maison Verte h algumas regras que devem ser observadas. Para as crianas: os brinquedos no
podem ser levados para casa, pois eles pertencem a todos; para brincar com gua, necessrio vestir o
avental, para brincar com as motocas, preciso respeitar a linha vermelha que delimita a zona para esta
atividade. Para os adultos: a presena do adulto tutelar obrigatria.
108

Em 1977 a rdio France Inter convidou Dolto a participar de uma srie de emisses destinadas a
ajudar os pais com dificuldades com seus filhos. Mesmo que a proposta fosse ao encontro de suas
preocupaes do momento, ela hesitou em aceitar (FRANOIS, 1992). No primeiro tomo de Quando a
criana aparece, Dolto faz o seguinte comentrio: No seria ento possvel ajudar os pais em
dificuldades a expressar-se, a refletir sobre o sentido das dificuldades de seus filhos, a compreender estes
e a acudi-los, no lugar de procurar faz-los se calar ou ignorar os signos do sofrimento infantil [...]
Informar os pais, responder a sua demanda de ajuda. Desdramatizar as situaes bloqueadas.
Desculpabilizar uns e outros, a fim de despertar os poderes de reflexo [...] Isso seria possvel? No teria
que tentar fazer a experincia? [...] Certamente no se tinha que esperar muito deste tipo de emisso, mas
seria esta uma razo para se subtrair a isso? Certamente isso provocaria, por mais que se dissesse, muitas
discusses? Mas seria esta uma razo para no provar? (DOLTO apud FRANOIS, 1992, p. 183/184,
traduo livre). No mesmo momento em que a Maison Verte abria suas portas, os trs livros que
testemunhavam o dilogo de Dolto com os ouvintes da emisso de rdio da France-Inter eram lanados.

140

suas atitudes educativas, conversar com outras pessoas que possam auxili-los em suas
dificuldades. O que se lhes demanda que acompanhem seus filhos, que permaneam e
que contribuam com uma participao financeira.
A Maison Verte no pretende confundir-se com um berrio, com uma creche ou com
um centro de atividades organizadas. Os autores do projeto so enfticos: ela no pode
ser comparada a outras instituies criadas para responder s demandas dos adultos.
Diferencia-se, ainda, de um espao de tratamento, de um espao pedaggico, ou de uma
escola para pais: Dolto insistia em que esses centros de lazer da primeira infncia no
fossem burocratizados, medicalizados e psicologizados, mas permanecessem como uma
espcie de jardins pblicos abertos, sem matrcula e sem instruo (LEDOUX, 1991, p.
186).
Um dos fundadores109, Bernard This (2007), justifica o distanciamento que a Maison
Verte assume em relao s escolas para pais: no com princpios educativos de outros
que se educa um filho; os pais no esperam receber conselhos ou tcnicas. A
especificidade da Maison Verte parece residir no apenas no que ela se prope a fazer,
mas naquilo a que se recusa, estabelecendo-se em uma total ruptura com relao s
estruturas mdico-pedaggicas ou assistenciais clssicas.
preciso um certo cuidado ao abordar o pedido de conselhos por parte dos pais. A
formulao de This pode levar a estabelecer que bons pais seriam aqueles que sabem
que, na transmisso, no se trata de se orientar por conselhos. A observao de
Malandrin (2009), que tambm est entre os fundadores da Maison Verte, de que os pais
demandavam mais conselhos no incio faz pensar que a demanda diminui diante do
modo pelo qual tomada nesee dispositivo.
Bernard This, em seu livro dedicado Maison Verte, pergunta: Por que os pais vm
Maison Verte com suas crianas? [...] a prpria situao, mais que nossas
intervenes de toda maneira muito marginais e que explicam apenas parcialmente os
efeitos benficos constatados (2007, p. 56, traduo livre). Entendo que o que This
define como a prpria situao remete ao fato de que a estrutura de acolhimento
109

Formavam a equipe fundadora da Maison Verte Franoise Dolto, Bernard This, Pierre Benoit, Colette
Langignon e Marie-Hlne Malandrin.

141

representa, para pais e crianas, um primeiro encontro com o coletivo, um encontro


mediado pela presena dos pais da palavra, mediado tambm pela presena da
interdio. Nesta instituio se propicia uma experincia em um espao coletivo
preservado em relao perda necessria de gozo, um espao no qual esta
legitimada110 e que pode ento servir de amparo aos pais naquilo que tem se convertido
em tarefa herclea: interceptar - de modo singular - o discurso social, na tarefa
educativa de enodar lao social e subjetividade.
Ao diferenciar-se das instituies pedaggicas e de tratamento e situar a psicanlise no
centro do dispositivo, a Maison Verte se estabelece em ruptura com o referencial da
cura, que marcou a origem da psicanlise. Lembremos que o referencial da cura
funciona com hora marcada, situa-se a partir de uma demanda, pe em jogo a questo
diagnstica, aspectos propositadamente ausentes nessa instituio. Com isso, a presena
da psicanlise e dos psicanalistas na Maison Verte foi colocada em xeque, e Franoise
Dolto, cujas idias esto na base do projeto, foi duramente criticada, no s por propor a
psicanlise para alm do dispositivo da cura como tambm pelo modo como se dirigiu
aos pais, muitas vezes de forma diretiva111, sustentada em um ideal de preveno. O
risco dessas crticas invalidar a inventividade e a sensibilidade presentes na escuta e
nas intervenes de Dolto, tanto na clnica como na instituio.
A Maison Verte se consolida como um dispositivo institucional absolutamente singular
ao oferecer um espao no qual a psicanlise se inscreve e convida coletivamente
escuta singular de todos aqueles que atravessam suas portas. H mais de 30 anos, vem
permitindo que pais e crianas, sem dossis nem papis, possam encontrar um
psicanalista, sem a obrigao de uma cura psicanaltica (THIS, 2007). Essa experincia
no s abriu o caminho para a pesquisa sobre os efeitos da presena do discurso
psicanaltico numa comunidade assim como permitiu ainda que inmeros profissionais
da primeira infncia se posicionassem diferentemente em sua prtica profissional
(psiclogos, trabalhadores sociais, pedagogos e etc.).
110

Lebrun (2004) detecta no indivduo contemporneo a pretenso de livrar-se da perda de gozo que a
vida na comunidade exige e, nas instituies, a dificuldade de sustentar essa perda necessria. LEBRUN,
J.-P. (2004) Um mundo sem limite: ensaio para uma clnica psicanaltica do social. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud
111
Malandrin (2009) pontua que Dolto precisou de um certo tempo para moderar a tonalidade e rapidez
de suas intervenes, tendo que se lembrar de que estava num centro de acolhimento.

142

O anonimato est no centro do dispositivo, mesmo que possa gerar certo mal-estar no
pblico atendido, nas equipes de trabalho e, sobretudo, nas agncias financiadoras,
preocupadas em medir e produzir dados estatsticos. Com o anonimato, recusa-se a
formalidade de inscrio e a visada pedaggica ou diagnstica, j que no se pretende
avaliar as crianas ou produzir dossis mdicos ou administrativos.
No entanto, a presena do anonimato no implica a oferta de um acolhimento annimo.
Vale explicitar de que forma este dispositivo se atualiza no cotidiano da instituio.
Quando a criana chega, seu nome anunciado e registrado numa lousa, seu sobrenome
no demandado. Acredita-se que o sobrenome esteja ligado identidade civil e social,
mais que construo de sua identidade afetiva. A finalidade da regra silenciar o
estatuto social das famlias, um silncio que liberaria os pais e os profissionais do
imaginrio no qual encerram certas profisses, certas situaes, certos nomes. O que
est aqui em jogo uma tentativa de dar um tratamento dimenso imaginria de modo
que ela no seja a norteadora da escuta e das intervenes dos profissionais. Vejo nessa
tentativa - desde que seja tomada sempre como uma tentativa e no como uma pretenso
de excluso da dimenso imaginria - um cuidado importante no que se refere s
relaes estabelecidas entre as famlias e os profissionais, sobretudo quando estes
ltimos se autorizam a intervir, orientados por uma leitura de ordem imaginria. Estas
intervenes ocorrem cotidianamente nas instituies educacionais ou assistenciais,
quando, por exemplo, atribui-se a uma me ou um pai que no levam ou buscam seu
filho nas atividades o adjetivo de pais ausentes ou atribui-se s famlias recompostas
ou monoparentais a pecha de famlias desestruturadas.
Malandrin lembra que a regra do anonimato surpreende mesmo na Frana. Foi aceita
pelo poder pblico no projeto inicial, mas incomoda muito os financiadores que veem
nela uma contradio ao desejo de preveno e controle. Em uma entrevista112 realizada
com Malandrin, Schauder (2009) diz que o anonimato se justifica, sobretudo
atualmente, diante da ascenso do discurso cientfico nas instituies, como uma
proteo diante de pesquisadores que preconizam a poltica de preveno, mas uma
112

A publicao mais recente sobre a Maison Verte data de 2009 e recebe o ttulo Uma psicanalista na
cidade, a aventura da Maison Verte. Foi organizado por Marie-Hlne Malandrin e est dividida em
trs grandes partes. A primeira se apresenta sob a forma de uma entrevista, concedida a Claude Schauder
que recebeu o ttulo: educao/psicanlise, um enodamento impossvel? A segunda rene documentos
de arquivos da Maison Verte (1976-1992) e a terceira uma compilao de textos de Franoise Dolto
sobre a Maison Verte (1978-1988).

143

preveno que se atualiza sob a forma de uma predio. Malandrin pontua, na


sequncia, que o anonimato, como um dispositivo institucional, no pode ser reduzido
ao desejo de se proteger do controle social ou dos avanos do discurso cientfico.
Pierre Benoit tambm se preocupa em situar esse dispositivo institucional em relao
aos avanos do discurso da cincia ou ao que vem sendo nomeado como mal-estar na
atualidade. Pontua que, se outrora o mistrio sobre as origens estava a cargo da religio,
o discurso da cincia se apresenta na atualidade como detentor das respostas a essa
questo; com a psicanlise, no entanto, no se pretende responder a ela e sim procurar
mant-la em aberto. O autor localiza a errncia do sujeito moderno como algo que a
Maison Verte se esforaria por prevenir. O que est em jogo, 30 anos depois de sua
abertura, a atualidade desse dispositivo, tema ao qual Aubourg (2009) se dedica e que
mobilizou os profissionais envolvidos no projeto a organizarem um colquio113 em
2009.
Mesmo que a Maison Verte tenha contado desde o incio com crditos pblicos para se
manter, Dolto no queria que ela se convertesse em uma nova instituio, com toda a
carga de rotina, repetio e convenes que isso implicaria. This (2007) descreve os
vrios modos pelos quais Dolto e o pequeno grupo fundador da Maison Verte
procuraram resistir institucionalizao e suas conseqncias. Entre esses modos
destacam-se a organizao dos profissionais em um colegiado e a recusa de uma
estrutura hierrquica (com o objetivo de que os profissionais estivessem a servio da
instituio e no que se apropriassem dela), consolidando a Maison Verte como uma
democracia institucional. O trabalho em tempo parcial e a presena de uma equipe a
cada dia da semana tm como objetivo que nenhum dos profissionais monopolize a
totalidade das informaes ou possa reunir o conjunto da experincia vivida na
instituio.
Uma nova equipe a cada dia da semana era uma regra indispensvel aos fundadores para
combater o desejo de mestria na dinmica institucional, permitindo que cada um se
engajasse no seu trabalho, com seu prprio estilo, mas sempre acompanhado de outros
profissionais, de outros estilos. Nas equipes, relatam os fundadores, ningum se
arriscava a ser mais que os outros, a identificar-se com um lugar de mestria ou de
113

La recontre: les 30 ans de la Maison Verte, realizado de 17 a 19 de outubro de 2009.

144

detentor do saber. Penso que os riscos institucionais esto colocados para todos, mesmo
para os mais advertidos, e, apesar dessa preocupao sempre presente e intrnseca ao
dispositivo, as diferenas na formao, as tentativas de fazer prevalecer um discurso
sobre os outros e as disputas institucionais fizeram parte do percurso da instituio e
podem ser localizadas na leitura do livro de Bernard This, nos documentos e cartas
reproduzidos no ltimo livro sobre a Maison Verte e na entrevista que Malandrin
concedeu a Schauder.
Contudo, destaco dois pontos essenciais que me parecem centrais na busca pela
manuteno dos princpios que estiveram na origem do projeto da Maison Verte: o
primeiro o entendimento de Dolto que a paridade salarial114 (igualdade de salrios
entre todos os profissionais que atuavam na instituio) deveria ser garantida - Dolto
ameaou retirar-se do projeto caso isso no ocorresse -; o segundo a recusa de
submeter-se ao processo de avaliao proposto pela Fondation de France.
A eficcia do dispositivo tambm atribuda ao fato de os profissionais compondo
uma equipe que se modifica a cada dia e para a qual h a preocupao de garantir pelo
menos a presena de um homem115 no se proporem como bons pais substitutos e no
se identificam com um lugar de saber. Resta verificar se de fato este aspecto
preservado no fazer cotidiano desta instituio, ou seja, se no h um atravessamento de
uma maestria nas relaes que se estabelecem entre os profissionais e os pais. Ainda
que algo de maestria ou prescrio possa escapar nas intervenes dos profissionais, o
que me parece estar preservado na escolha por no traduzir este dispositivo em um
modelo a ser replicado e por no fazer concesses diante das agncias financiadoras a
manuteno de um lugar para inveno na interveno sustentada no discurso
psicanaltico116 e no lugar de sujeito do desejo para a criana. Ao recusar-se
114

Esse ponto aprofundado na entrevista concedida por Marie-Hlne Malandrin a Claude Schauder no
livro Une psychanalyste dans la cit.
115
O esforo por garantir a presena de pelo menos um homem diariamente na instituio abordado por
Bernard This (2007). O autor fala em paridade, presena masculina e funo paterna, procurando
inscrever o cuidado em garantir a presena do pai - por exemplo, na deciso de abrir a instituio aos
sbados tarde - na leitura lacaniana da funo do pai. Incorre, a meu ver, em uma imaginarizao das
formulaes de Lacan. Aubourg (2009) apresenta uma explicao menos pretensiosa e mais simples
acerca da presena dos homens no cotidiano da instituio: a equipe mista porque na idade em que
esto em jogo as identificaes sexuais, importante que a criana possa ter uma aproximao com os
dois sexos encarnados e no somente no discurso (p. 7, traduo livre).
116
Malandrin (2009) observa que a psicanlise mantm sua vitalidade na Maison Verte, enquanto em
outras instituies que recebem crianas ela permanece apenas como uma referncia no mbito das
supervises.

145

avaliao117 e ao controle pelo poder pblico, a Maison Verte tambm recusou o para
todos igual inevitvel em qualquer poltica pblica. Assim, dizer no para a
institucionalizao, para a avaliao e para a replicao dizer no ao para todos os
pais que ordena as polticas pblicas que se instituem na mesma poca na Frana,
visando ao apoio parentalidade. neste ponto que a Maison Verte se define como uma
instituio singular, impossvel de ser enquadrada nos dispositivos existentes na
atualidade.
A Maison Verte serviu de inspirao para outros dispositivos que foram criados ao redor
do mundo (Blgica, Rssia, Sua e mesmo no Brasil, no Rio de Janeiro, com o nome
de A casa da rvore) e foi utilizada como modelo para o poder pblico francs para a
criao de uma srie de centros de acolhimento pais-criana ao redor do pas. Contudo,
recusou a proposta de compor uma federao de centros de acolhida, recusou a
superviso, a formao, ou filiao, acreditando que cada instituio deveria encontrar
seu caminho e mesmo o caminho para financiar seu projeto. Schauder props a criao
de uma federao para gerar impacto no poder pblico e nas demandas de avaliao que
eram associadas possibilidade de se obter um financiamento. A Maison Verte via
como ilusria a possibilidade de estabelecer critrios comuns para fundamentar o
trabalho realizado nos centros. Para Malandrin, tratou-se de uma escolha pela tica:
Em nome de que critrios comuns podemos validar esses centros? Sua legitimidade
conferida pelos pais, na utilizao que eles fazem do dispositivo, que est a seu servio
e de sua criana (MALANDRIN, 2009, p. 45, traduo livre).
Em 1991, a Fondation de France, responsvel pelo financiamento das atividades
desenvolvidas na Maison Verte, enderea-lhe uma carta adiantando um trabalho de
avaliao a ser realizado, que permitiria valorizar sua ao junto a instituies locais e
nacionais. Naquela poca, essa Fundao mantinha aproximadamente 30 centros de
acolhida pais-criana. Em 1992 foi unnime no grupo que atuava na instituio naquela
poca a deciso de se retirar deste estudo, deciso que gerou uma carta aberta118. Nesta,
117

O tema da avaliao tratado com rigor em duas obras recentes: NAJLES, A. R., (2008) Problemas
de aprendizaje y psicoanlisis. Buenos Aires: Gramma Ediciones e por MILLER, J.-A. e MILNER, J.C.(2006) Voc quer mesmo ser avaliado? entrevistas sobre uma mquina de impostura. So Paulo:
Manole.
118
Essa carta foi redigida por Marie-Hlne Malandrin e consta como documento n. 19, de abril de 1992.
Reproduzo a seguir um trecho: A Maison Verte uma experincia que criou uma situao nova na
cidade pela introduo deste dispositivo de trabalho. Esta inovao na sua pesquisa clnica no pode

146

os profissionais mostravam seu ceticismo e suas srias reservas acerca de uma avaliao
objetivizante, que poderia induzir a distores das opes de base assumidas na
instituio (paridade de salrios, rodzio dirio da equipe, recusa de reunio de sntese,
anonimato, etc).
Se, por um lado, a Maison Verte faz resistncia aos avanos do discurso da cincia
propondo um dispositivo no qual a criana tomada como um sujeito, por outro, parece
evitar identificar-se com um ideal, um modelo ideal de instituio, o que convm em
um dispositivo que firma suas bases na ausncia de ideais, de crianas ideais, de filhos
ideais, de pais ideais. Sustenta-se, assim, como uma instituio furada, incompleta, no
detentora de uma verdade vlida para todas as outras estruturas de acolhimento paiscriana.
A atualidade desse dispositivo parece residir na possibilidade de fazer frente ao que se
configura como um mal-estar na famlia na atualidade quando, de fato, o que se passa
a famlia vir sendo soterrada por convices disseminadas pelo discurso da cincia, que
converte o impossvel da educao em impotncia parental e, no mesmo movimento,
promete certezas e ausncia de riscos no desempenho de uma suposta competncia
parental. A Maison Verte faz resistncia avaliao, normalizao e ao discurso
homogeneizante e assexuado da parentalidade, instituindo-se na singularidade e na
inventividade do encontro com cada famlia.
3.4 - A parentalidade como o sintomtico desta poca
Vimos que o termo parentalidade surgiu a partir de estudos sobre a psicose materna,
estendeu-se s pesquisas com crianas separadas de seus pais e, depois, de uma forma
geral, s investigaes que visavam fornecer subsdios s polticas de proteo da
famlia. Interessa-me especialmente a passagem destacada por Pioli (2006) de uma

ser regulamentada administrativamente: o respeito pelo dispositivo e por suas regras testemunham um
longo e necessrio trabalho de elaborao pela equipe que busca sustentar a criana em suas questes, e
as distores do dispositivo revelam frequentemente as incompreenses estruturais deste lugar. Em geral,
a criana, em sua palavra e gesto em corpo que se exprime, em comportamento que significa uma
palavra a ser escutada que corre o risco de ser ignorada. Este movimento de pesquisa deve ser mantido
(2009, p. 184, traduo livre)

147

poltica de apoio parentalidade fragilizada socialmente119 a uma poltica de apoio


PARA TODOS os pais, pois quando o apoio parentalidade se torna uma poltica
pblica, assume a dimenso do para-todos-igual, inevitvel nesse campo e, no mesmo
movimento, exclui o sujeito.
Situei no captulo anterior o mal-estar parental na atualidade como resultado da traduo
do impossvel da educao em impotncia; agora, penso ter reunido elementos para
asseverar que o mal-estar parental atual condensado no neologismo parentalidade, o
qual, em sua base, aponta para uma insuficincia, para uma incompetncia, para uma
necessidade de apoio PARA TODOS120 os pais. No discurso normativo e ortopdico
sobre a parentalidade, no h lugar para a singularidade, trao fundante e fundamental
da famlia.
Encontrei em Peusner (2009) a formulao de que o mal-estar parental estaria motivado
pelo sofrimento que a criana causa no Outro quando o confronta com o impossvel na
educao - da podermos dizer que educao mal-estar! - e este tomado como
impotncia. Constata-se que, na atualidade, o discurso tecnocientfico incide nesse malestar, assumindo a forma do especialista da subjetividade, prometendo a excluso da
categoria do impossvel, mas nem por isso livrando os pais de sua impotncia. Ao
contrrio, vale-se desta para interferir na transmisso parental, terreno privado e
necessariamente sujeito a falhas, imperfeies, uma vez que permeado pelas
modalidades de gozo que cada pai e cada me testemunham em sua transmisso.
Vale pontuar que o mal-estar na famlia condensa e particulariza o modo pelo qual ele
tratado na atualidade: um mal-estar que, ao denotar incompetncia e insuficincia, deve
ser suprimido e, de acordo com esse ponto de vista, demanda uma interveno
corretiva (BEZERRA, 2002).

119

Gavarini (2006) observa que nesses casos se atualiza uma confuso entre pobreza e risco, mesmo que
existam traos comuns entre as famlias-alvo dessas qualificaes nas descries dos trabalhadores
sociais.
120

Alis, desejvel inculcar essa funo parental nos pais defeituosos, incompetentes, naqueles
que devem ser reparentalizados (GAVARINI, 2008, p. 14).

148

Laurent (2007) prope uma articulao entre o singular e o universal que contribui para
a reflexo sobre o modo como se fundiu uma indissocivel da necessidade de apoio aos
discursos sobre a parentalidade. Advertido sobre o imprio do gozo como preo pago
pela liberao e pela autorregulao na contemporaneidade, o psicanalista pontua: No
que diz respeito ao gozo, o psicanalista deve reenviar o sujeito sua particularidade121
(p. 172). Recorre noo de serenidade, formulada por Heidegger como uma atitude de
dizer simultaneamente sim e no ao mundo tcnico122, e prope a transio do
vocabulrio do filsofo para o campo do gozo, formulando que a viso hedonista do
mundo faz desaparecer a singularidade do sintoma e apia seu imprio no acesso ao
gozo para todos. Haveria dois tipos de relao com o gozo: quer-lo mais e querer a
singularidade do sintoma. No seria sensato atacar os objetos de gozo, mas:
Dizer no consiste em impedir que o pronto-para-gozar
generalizado no esteja escuta da singularidade de nosso sintoma.
Seu envelope formal contingente, no pertence a todos. Nesses
termos, a serenidade do sujeito igual em presena dos objetos de
gozo no perder de vista a singularidade do caminho que lhe
prprio (LAURENT, 2007, p. 173).

Embora no o explicitem dessa maneira, Derrida e Laurent parecem ter escutado a


recomendao de Lacan de que o analista deve estar altura de sua poca. Derrida,
como vimos no captulo 2, pontua que a transformao no campo social indissocivel
da transformao no campo analtico. Laurent, por sua vez, pensa em [...] um analista
capaz de entender qual foi sua funo e qual lhe corresponde agora (2007, p. 143.) e
formula o que poderia ser um alerta aos partidrios do apoio parentalidade: Dito de
outro modo, preciso recordar que no se deve tirar de algum sua particularidade, a
fim de mistur-lo com todos no universal, em razo de algum humanitarismo ou
qualquer outro motivo (LAURENT, 2007, p. 145). O discurso sobre a parentalidade
mais um discurso hegemnico ao qual cabe psicanlise no se deixar seduzir.

121

Embora o autor use aqui o termo particularidade, penso que pretende referir-se a singularidade.
Acredito que o mesmo ocorre no trecho em que ele pontua que no se deve tirar algum de sua
particularidade.
122
Reproduzo a seguir os trechos destacados de Heidegger por Laurent: Seria insensato atacar, a
cabeadas, o mundo tcnico [...]. Dependemos dos objetos que nos so fornecidos pela tcnica
(HEIDEGGER, 1966, apud LAURENT (2007, p. 172) ; Podemos dizer sim e, ao mesmo tempo no
ao emprego inevitvel dos objetos tcnicos, no sentido de impedi-los de nos engolir e, assim, falsear,
confundir e, finalmente, esvaziar o nosso ser. [...] Uma palavra antiga serve para designar essa atitude de
dizer simultaneamente sim e no ao mundo tcnico: Gelassenheit, serenidade, igualdade de alma.
Falemos ento da alma igual em presena das coisas (p. 173).

149

A psicanlise se apresentaria, assim, como resistncia generalizao, aos discursos que


apontam para uma parentalidade incompetente ou deficitria, cabendo a ela responder
reenviando cada famlia - e neste ponto insisto no significante famlia - sua
singularidade. Para a psicanlise, h cada famlia e no uma parentalidade! No h
transmisso se deixamos de fora a maneira pela qual cada sujeito conjuga seu modo de
gozo singular na relao com o outro. Retomando: para que haja um neurtico, preciso
no apenas um pai e uma me, mas tambm um homem e uma mulher.
No captulo anterior, assinalei que pretendia distanciar-me da oposio entre famlia e
parentalidade e da leitura de que se deve proteger a famlia desta ltima. Contudo,
embora o percurso realizado at aqui aponte para a manuteno da posio de que a
transmisso (com suas faltas e imperfeies) opera e continuar operando para alm dos
discursos normativos e ortopdicos sobre a parentalidade, parece que ainda no reuni
elementos suficientes para asseverar que no se trata de resistir ao neologismo
parentalidade em nome da transmisso da famlia em sua condio de resduo. A
seguinte pergunta ainda permanece: a parentalidade implicaria um risco para que haja
um amanh no qual a transmisso familiar, com suas falhas e imperfeies, continue
vigorando?
A partir do exame das origens e dos discursos subjacentes noo de parentalidade,
proponho que o neologismo parentalidade possa ser lido como sintomtico desta poca,
como um dos modos de sutura da falta prevalentes neste momento histrico, no qual o
impulso de corrigir as imperfeies da civilizao se edifica visando corrigir as
imperfeies da transmisso parental. Da mesma maneira, penso que possvel ler as
comunidades alternativas idealizadas em 68 como sintomticas daquela poca123, como
veremos no prximo captulo. Os discursos normativos e ortopdicos sobre a
parentalidade comportam um ideal: investem na figura de pais competentes, implicados
em um modo de vida voltado educao das crianas e despojados dos dramas que a
famlia comporta. Esta, ao assumir essa vertente da parentalidade, se veria livre dos
excessos e tambm das faltas124 ou imperfeies inerentes transmisso. Se na famlia a

123

O famoso grito de Andr Gide:Famlia, odeio-vos!, retomado pelos estudantes de 68, estaria nas
entranhas das tentativas de se prescindir da famlia.
124
Sofremos na atualidade, de uma maneira geral, de falta (dficit) ou excesso? Vivemos sob os desgnios
da ausncia de referncias ou pelo seu excesso? Esse um ponto importante porque no campo da famlia
atribui-se um certo peso falta, deficincia, carncia, mas, ao mesmo tempo, pode-se fazer uma

150

dimenso de gozo comparece (embora se espere que comparea de forma velada), nessa
vertente da parentalidade pretende-se omitir o gozo inerente constituio familiar. A
aposta na desdramatizao pode acarretar uma higienizao da famlia, mais um trao a
ser destacado desta poca em sua intolerncia ao sintoma, marcada pela pretenso de
desembaraar-se do real.
Forget (2007) lembra outros termos que comparecem no discurso social e que viriam
juntar-se parentalidade como modos de sutura da falta de nossa poca, termos125 esses
que tm em comum a aspirao de elidir a falta e a contradio. Alm do termo
parentalidade, o autor relaciona o termo paridade, quando se prope a substituir homem
e mulher, e os direitos da criana, quando substitui a criana como fruto da falta e do
sexual. Eu acrescentaria que tais termos so muitas vezes utilizados com a pretenso de
excluir a disparidade de lugares, que estrutural e que se radicaliza no irredutvel da
diferena entre os sexos (e que, como vimos, no deve ser confundida com o modo pelo
qual fices jurdicas estabelecem a diviso da autoridade entre pai e me e, tampouco,
diferena entre os genitais masculino e feminino).
importante ressaltar que o discurso social se constri como uma categoria coletiva, d
aos termos uma aparncia de homogeneidade126, permitindo atribuir-lhes predicados
universalizadores, como as crianas de hoje, os pais de hoje, etc, e organizando os
indivduos em categorias. dessa forma que convida submisso a um S1 coletivo e
annimo: existem bons pais, desde que suas vidas sejam orientadas a partir das
crianas e nas competncias e habilidades estabelecidas a partir do discurso da cincia e
veiculadas pelo especialista da subjetividade. Vale lembrar que minha crtica no
recai sobre a presena de categorias no discurso social, mas sobre a normatizao e a
prescrio de regras intrnsecas ao que nomeio nesta pesquisa discursos normativos e
ortopdicos sobre a parentalidade.

leitura do que ocorre pela via do excesso: uma criana se retrai no encontro com o Outro porque este
deficitrio ou excessivo? Uma famlia deixa suas marcas em seus filhos somente pela via da deficincia
ou tambm por meio do excesso? Ler os fenmenos de uma forma geral pela via da carncia (do pai, por
exemplo) , no mnimo, superficial e equivocado.
125
importante notar que, tanto quando fao referncia paridade como quando me refiro aos direitos
da criana, introduzo na sequncia o advrbio quando com o intuito de assinalar que critico um uso
especfico destes termos e no sua legitimidade.
126
Freud, em Psicologia das massas e anlise do eu, texto de 1923, j advertia sobre os efeitos do
empuxo homogeneizao.

151

Neste ponto, preciso retomar a discusso realizada no captulo 2 sobre as articulaes


possveis entre o sujeito e os modos de lao social predominantes em cada poca. O
discurso social refere-se aos efeitos do discurso do mestre que a modernidade isola
como fatos de estudo e objeto sociolgico. Vale pontuar que o discurso do mestre
pretende que tudo funcione por homogeneizao e sem tropeos, [...] seu fim, que as
coisas caminhem no passo de todo o mundo (LACAN, 1974, p. 9). O sintoma, por sua
vez, faz objeo ao discurso do mestre (desejo que a marche), uma vez que o que faz
desordem; o que vem do real, o que comparece como um sinal de que algo no vai
bem no campo do real.
Se, por um lado, o discurso social vale para muitos, por outro o sintoma constitui-se na
singularidade. Vale marcar que do lao social que o sujeito colhe elementos para fazer
sintoma. Brousse (2010) precisa ao pontuar a posio da psicanlise diante das
transformaes do discurso do mestre:
Ao formular que o discurso do inconsciente tem a mesma estrutura
do discurso do mestre, Lacan pe a psicanlise em posio de
analisar as transformaes do discurso do mestre. Neste contexto, a
orientao lacaniana permite pensar a evoluo das prticas sociais,
dos costumes, das mentalidades e do direito da famlia. como dizer,
em consequncia, que a perspectiva conservadora ou reacionria que
foi muitas vezes a da psicanlise, no pode ser a nossa, por razes
lgicas (p. 142, traduo livre).

O sintoma social pode ser lido como estrutural, no se confunde com fenmenos
particulares, ou com o que relativo a uma poca. estrutural porque consiste naquilo
que se formula diante do encontro com o impossvel da relao sexual. Nesse sentido,
pode-se ler a prpria civilizao como um sintoma social ao tentar regular a relao
entre os sexos. Isso o que permite afirmar que o sintoma social se atualiza nas
respostas particulares formuladas em cada poca diante da inexistncia da relao
sexual, ou seja, dos modos de sutura que cada poca articula, o que venho nomeando
como sintomtico de uma poca. Essa articulao coerente com o que Puj (2006)
apresenta como uma definio de poca: uma resposta especfica e elaborada em
determinado contexto histrico pela civilizao, ao que Lacan formula como a ausncia
de relao sexual (p. 62, traduo livre).

152

Cada poca articula um modo de resposta especfica diante da inexistncia da relao


sexual. Nesta pesquisa, partindo da consistncia que o neologismo parentalidade vem
ganhando na atualidade, vi-me remetida a uma outra poca, na qual o que aparece como
sintomtico a pretenso de se prescindir das famlias (refiro-me ao fim da dcada de
60 e ao incremento das comunidades alternativas). Penso que esse neologismo no
surgiu por acaso, mas justamente porque o que foi recusado em 68 retornou no real,
numa consistncia e pretenso de perfeio e assepsia que os discursos sobre a
parentalidade parecem condensar. Vejam que, na atualidade, novamente da famlia,
ainda que lhe destacando outro trao (as faltas e imperfeies), que se pretende
prescindir.
Isso posto, no pretendo fazer um estudo das respostas que cada poca arma diante do
confronto com a inexistncia da relao sexual - isto nem seria possvel -, mas destacar
dois momentos na histria em relao famlia, justamente porque localizo neles uma
certa relao: o que recusado em 68, retorna como real na atualidade, evidenciando
dois modos diferentes de sutura da falta, cada um deles condizente com o que se destaca
em sua poca como prevalente no lao social. Essa hiptese encontra seu alicerce no
relato sobre as crianas de 68 entrevistadas por Virginie Linhart, como veremos no
captulo 4.
Entendo a parentalidade como uma das verses da modificao atual do
discurso do mestre, um dos modos de sutura da falta que se formula nesta poca. A
partir da psicanlise, no entanto, estamos advertidos de que a sutura no um
tratamento eficaz da falta e de que nenhum modo de sutura vai dar conta do que da
ordem do real, que sempre escapa.
possvel ler as mudanas sintomticas que acontecem na clnica como efeito das
mudanas ocorridas na civilizao, entendidas como avatares da condio prpria de
falantes; ao mesmo tempo, possvel localizar os singulares modos de resposta que
cada um elabora, no empenho de conservar sua singularidade. Outro modo de diz-lo
que cada poca e os modos de sutura da falta que engendra no so sem efeitos para o
sujeito, contudo, a escolha sempre deste. Reproduzo aqui a frase que abre o primeiro
captulo deste trabalho: o sujeito unicamente responsvel pelo que ele faz de seus

153

determinantes (SAURET, 1998, p. 30). Bem, parece que vou reunindo elementos para
consolidar a posio de que no se trata de proteger a famlia da parentalidade...
Uma publicao recente, datada de 2010 e intitulada Uniones del mismo sexo:
diferencia, invencin y sexuacin, rene psicanalistas lacanianos em torno do tema da
parentalidade. Penso que at aqui fui preparando o terreno (ao situar sua origem
histrica, os diferentes discursos que lhe so subjacentes, as polticas pblicas, o
contexto de mal-estar na atualidade ao qual se oferece como possvel resposta, etc.) para
formular uma posio psicanaliticamente consistente diante do cenrio que o genrico
parentalidade condensa. Alm de marcar que assumo a posio de que a famlia
resiste e de que no se trata de a psicanlise se anunciar como nostlgica, normatizadora
ou entusiasta das novidades, tambm me posicionei diante dos psicanalistas que
descrevem e analisam o cenrio contemporneo de forma mais pessimista ou
catastrfica, ao marcar o mal-estar que a civilizao, o mal-estar que a educao e
ler os discursos e prticas que se organizam em torno da parentalidade como
sintomticos desta poca. Ao atualizar as formulaes de Laurent de que no se trata de
recusar o que o contemporneo arma em termos do para todos, mas de reintroduzir o
singular e legitim-lo, vou delineando uma posio diante do campo de investigao ao
qual me dediquei nos termos de reintroduzir a famlia na parentalidade. Da todo o
esforo empreendido no captulo 1 no s de circunscrever a famlia na orientao
lacaniana, mas de destacar sua funo de resduo.
Os artigos da coletnea que citei acima podem ser lidos como tendncias, pontuaes e
interrogantes de psicanalistas de orientao lacaniana acerca do neologismo
parentalidade, e foi a partir deste recorte que me deixei trabalhar por eles. Encontrei
neles formulaes como esta: ento, se esta inveno contempornea promete a
inveno de novos modos de paternidade, as conseqncias tero que ser verificadas.
Em um futuro no to distante, escutaremos nos consultrios estes filhos da
parentalidade (NEGRI, 2010, p. 193, traduo livre). E at mesmo perguntas como
estas: Ento, a psicanlise possvel para as novas famlias, para a atual
parentalidade? (TORRES, 2010, p. 175, traduo livre) ou E aqui surge a
preocupao, no s pelos objetos a que so hoje mais que nunca as crianas, mas vou
diz-lo assim a angstia pelo porvir, pelas conseqncias nos sujeitos, nos filhos da
parentalidade (RUSSO, 2010, p. 211, traduo livre, grifo meu).
154

Essas perguntas me fizeram lembrar do comentrio de Laurent (2007) sobre uma poca
na qual se pensou no se poderem analisar filhos de pais separados! O encontro com a
investigao empreendida por Virginie Linhart sobre as crianas de 68 foi crucial para
que eu pudesse me posicionar diante de enunciados como os filhos da parentalidade.

155

Captulo 4 Um ns que no existe


Minha me no parava de me explicar que ns, ns no nos
interessamos por carros, mas por livros. Ela repetia sem parar que os
livros eram bem melhores. E eu me lembro que aos cinco anos, eu
pensava que ela estava errada [...] (BARRET-KRIEGEL apud
LINHART, 2008, p. 122).

Virginie Linhart acreditava que encontraria um ns ao entrevistar os adultos que,


como ela, poderiam ser definidos a partir de um trao comum: as crianas de 68.
Filha de Robert Linhart, umas das figuras mais marcantes do movimento de 68 na
Frana, Virginie conviveu 24 anos com o mutismo paterno127. J adulta, iniciou o
projeto denominado uma pesquisa sobre o silncio do pai. Seu livro O dia em que me
pai se calou128 a escrita deste processo.
Para significar o silncio do pai, para dar conta de que esta histria no s a sua
histria (do pai) tambm a minha (LINHART, 2008, p. 12), Virginie decidiu recorrer
s crianas que, por terem sido submetidas aos ideais daquela poca, formariam junto
com ela um ns: as crianas de 68. Sustentada pela crena de que atrs deles (os
pais), h ns (p. 27, grifo meu), decidiu entrevist-las: era a primeira vez que eu
entrava um pouco na intimidade de outra criana de 68 (p. 27). Virginie pretendia falar
ali onde seu pai se calou, mas para isso precisava que esses outros pudessem falar-lhe,
precisava experimentar embaralhar-se em suas falas, o que - adianto j o final do livro habilitou-a a produzir um saber sobre o pai e permitiu que o silncio daquele pudesse
restabelecer-se, mas desta vez em outros termos. Quando seu pai se calou, seus
familiares silenciaram acerca do silncio dele, [...] e ns, as crianas, fomos silenciosos
sobre o silncio (p.112). Virginie via na deciso de romper o silncio sobre o silncio
do pai - vejam que no se trata exatamente de romper o silncio do pai - a possibilidade
de pr um fim vergonha na qual seu mutismo a aprisionara.

127

Virginie tinha 15 anos quando seu pai desapareceu subitamente de sua vida. Mais tarde, soube que ele
esteve em coma durante semanas aps a ingesto de uma dose massiva de medicamentos. Depois desse
episdio seu pai permaneceria grande parte do tempo em silncio.
128
Ttulo original: Le jour o mon pre sest tu.

156

A premissa da qual Virginie parte que a Histria (condensada nos ideais partilhados
naquela poca) teria determinado as histrias das crianas de 68. Da mesma forma,
atribui o silncio do pai queda daqueles ideais, ou seja, a uma decorrncia de fatos
historicamente determinados. Seu pai, segundo o que ela averiguou, foi uma das figuras
mais marcantes daqueles anos, e infere: infelizmente umas das figuras mais
marcadas (LINHART, 2008, p.16). Trata-se de outro modo de dizer que as marcas que
o fizeram calar-se decorreram da Histria: Meu pai jamais se recuperou daquele tempo
em que ele acreditou que seria possvel infletir o curso da Histria (p. 16). possvel
reconhecer nessa hiptese inicial uma formulao sobre as articulaes entre sujeito e
sua poca: o sujeito determinado por aquilo a que esta dava consistncia.
Veremos adiante como naquela poca, o ns se particularizara como um imperativo,
fazendo-se valer mesmo que em detrimento do individual. O que a autora-protagonista
no se permitiu supor que entre o ns do discurso e as crianas de 68 estaria o
sujeito e sua singular amarrao. No incio de seu projeto, ela ainda no podia se
perguntar a respeito da articulao entre a Histria, cujo rumo seu pai acreditava poder
infletir e a historia de seu pai; no podia ainda localizar um decantado a partir do
ns consistente no qual o pai (assim como os outros pais daquela poca) estava
imerso e que, supunha, o teria levado a calar-se. No entanto, em uma conversa com um
colega de seu pai sobre o silncio em que este se encerrara, Virginie afirma no saber o
que teria decorrido das circunstncias histricas e o que poderia ser imputado
problemtica pessoal do pai. Ainda que ela afirme o pai como vtima da Histria,
sobre a histria dele, sobre seu silncio que se lana em sua pesquisa, intuindo ser
necessrio que um saber possa instituir-se para que o silncio deixe de aprision-la.
O ponto de partida de Virginie foi o silncio do pai; pretendia recolher nas outras
crianas de 68 traos a partir dos quais pudesse alinhavar a sua histria, buscando
produzir um saber ali onde o mutismo at ento reinara. Se esse foi o ponto de partida, o
mtodo de pesquisa escolhido pela autora permite antever que o ponto de chegada lhe
era desconhecido, e ela parecia disposta a suportar o que isso implicava. a partir dessa
posio que reconheo em Virginie uma pesquisadora. O uso do termo mtodo aqui
no ingnuo, tampouco casual; pretende anunciar a discusso a seguir, a partir de meu
encontro com o livro de Virginie, sobre como sua pesquisa me permitiu avanar e me

157

posicionar nas articulaes que venho propondo entre famlia, parentalidade e contexto
histrico.
Em O dia em que meu pai se calou, Virginie identifica furos em suas proposies,
sujeita-se a inflexes, consente em abandonar as hipteses formuladas inicialmente. No
a partir dessa posio que surgem os achados 129? A autora no s afirma no ter a
pretenso de esgotar o tema ou realizar um estudo sociolgico como explicita trabalhar
a partir da associao de ideias, das lembranas perdidas que retornam, do encontro
inesperado. Esse seu mtodo de pesquisa, um mtodo que se aproxima do mtodo
psicanaltico.
Foi o encontro130 com a pesquisa empreendida por Virginie e o fato de, tendo partido do
enunciado as crianas de 68, dispor-se a coloc-lo prova com cada um de seus
entrevistados e sua singular amarrao que me permitiram construir uma posio diante
do enunciado os filhos da parentalidade, precipitando-me numa possvel formulao
sobre como se articulam famlia, parentalidade e contexto histrico: no existe um
ns passvel de definir o conjunto das crianas nascidas em determinada poca,
mesmo que possamos localizar traos comuns entre elas. Essa formulao, penso, o
que decanta como um dos achados de Virginie.
4.1 A pesquisa de Virginie
Logo no incio de seu livro a escritora enunciou que decidira, em sua empreitada,
entrevistar as crianas de 68. Esse enunciado chamou-me particularmente a ateno:
estaria rumando, em minha pesquisa, em direo a uma formulao semelhante?
Autorizaria essa pesquisa enunciados como os filhos da parentalidade? Lano a
pergunta e prossigo, para retom-la mais adiante.
Virginie partiu de um ns, as crianas de 68, mas escutou seus entrevistados um a
um, endereou-lhes suas hipteses, verificou como podiam ou no fazer frente s
perguntas que eram suas, testou a elasticidade, a resistncia, o alcance e os limites de
129

Referncia posio assumida por Lacan no seminrio 11, a partir da frase de Picasso: Eu no
procuro, eu acho, na qual denota que no est procura da verdade.
130
Encontro possvel graas indicao preciosa de Caterina Koltai no exame de qualificao, a Laura
Hansen que me emprestou o livro, e a Mariana Neustein que me enviou um exemplar.

158

sua teoria. O dia em que meu pai se calou, dessa forma, no comparece aqui como
ilustrativo de uma teoria ou modelar131 desta, mas como uma construo ancorada na
disposio de colocar prova uma tese, a existncia de um ns, referente aos modos
de sutura da falta prevalentes em uma poca determinada, enunciado como as crianas
de 68 A pesquisa de Virginie a levou a deixar cair o ns em benefcio do um, no
sem primeiro alienar-se em seus semelhantes e embrenhar-se em suas histrias.
Paralelamente (veremos que, enquanto a autora procura e entrevista as crianas de 68,
seu pai subitamente rompe o silncio em que se encerrou e volta a falar) foi levada
assuno de uma verdade: seu pai escolhera o silncio. Com isso, no pode mais definilo e se relacionar com ele como vtima da Histria.
Lembrando do artigo de Cabral (2006), penso que, no caso de Virginie, a Histria
estava a servio de proteger a histria132. Reproduzo a seguir um trecho desse autor com
o intuito de justificar a afirmao: na cura analtica que reconhecemos um
dispositivo genuno de proteo da histria (seguramente, no o nico) no que esta
contm, como veremos adiante, de empuxo realizao do prprio ser, diante da
presso uniformizadora da Histria do Outro (p. 125, traduo livre, grifo meu).
Virginie protegia-se de sua histria alienando-se nas crianas de 68, pagando com a
repetio - na insistncia com que o interesse pela poltica e pela histria comparecia em
sua vida, em seu trabalho, enunciada por ela como: no consigo sair delas ou sempre
volto para elas (LINHART, 2008, p. 27) - a impossibilidade de separar-se da Histria e
do Outro. Ao grifar um pequeno trecho da citao acima, destaco que outros
dispositivos, como a escrita, a produo artstica e at mesmo a produo acadmica,
podem ter efeitos subjetivantes e podem possibilitar a realizao da histria.
Se, no que se refere articulao entre famlia, parentalidade e contexto histrico, a
pesquisa de Virginie tomada neste trabalho, infletindo seu rumo, devido ao espanto
causado diante da consistncia implcita em seu enunciado as crianas de 68, desejo
131

Souza (1994), em um trabalho de uma preciso digna de nota, ao circunscrever o que um caso na
psicanlise, alerta para os riscos de este comparecer como o leito de Procusto: o que sobra cortado, e o
que falta se estica at o limite da cama. Refere-se a uma na interveno artstica realizada por Tula
Agnostopoulos em junho de 1998, Small Size na qual a artista mandou baixar o teto da sala na exata
dimenso de sua altura: O mundo daquele espao de exposio se conformava medida de sua estatura.
O narcisismo de 1 metro e 53 cm organizando o espao. O visitante, conseqentemente,tinha que se
curvar altura da artista. Acredito que assim Tula conseguia dar visibilidade a uma construo que
fazemos quotidianamente sem necessariamente nos darmos conta.
132

Autor citado no captulo 2.

159

tambm tom-la pela via do silncio do pai, agora sim como ilustrativa do modo como o
pai Real opera, conforme fundamentado no captulo 1.
Dessa forma, a pesquisa de Virginie aqui examinada por meio de duas vertentes: a da
pesquisa sobre as crianas de 68 e a da construo singular, a qual no prescinde da
outra, que esse processo lhe permite armar no que diz respeito ao pai.
Iniciei essa pesquisa mobilizada pelo mal-estar que me causava a consistncia crescente
dos discursos em torno da parentalidade no campo social, mais especificamente no
terreno da educao, mas tambm no interior da psicanlise. Contudo, me encontrava
em um impasse; eu explicitara os aspectos que no seriam tratados nesta pesquisa133 (no
incio do captulo 2) esperando mostrar ao leitor que estava advertida em relao aos
riscos de se buscar prever ou antecipar o futuro da famlia, pretendendo distanciar-me
de posicionamentos preditivos, alarmistas e normativos. Entretanto, cada um desses
aspectos e os riscos que implicam pareciam estar espreita, tornando turvo o campo de
pesquisa, estendendo o momento de compreender. Vale recorrer ao dicionrio e
definio de impasse134: situao aparentemente sem soluo favorvel, beco sem
sada. Diante da temtica da famlia e da parentalidade, avalio que o impasse se produz
quando esta apresentada como necessariamente aniquiladora da famlia em sua
condio de resduo, implicando um risco para as crianas, para os filhos da
parentalidade.
O encontro com Virginie me permitiu evitar o risco de recair em modos genricos ou
universalizantes de compreenso - que autorizariam enunciados como: os pais na
atualidade, as crianas contemporneas, etc. - aos quais esse tema particularmente
sensvel. Permitiu tambm evitar outro risco, que a impotncia para a qual o
impossvel, ao ser enunciado no terreno da educao, frequentemente nos arrasta, assim
como a possvel identificao com os autores que, ancorados tambm nas mudanas no
campo da famlia, prenunciam um futuro dramtico para o sujeito. Vale explicitar a que
me refiro quando observo o que ocorre no terreno da educao quando o impossvel
133

Reproduzo a seguir os aspectos em questo: definir os rumos que a famlia deve tomar, promover um
alarmismo em relao s mudanas no campo da famlia, antecipar ou de traar um veredicto sobre o que
ser das crianas educadas nas novas configuraes familiares e compactuar com uma psicanlise que se
apresenta como guardi da moral e dos bons costumes.
134

Fonte: Dicionrio Aulete. Disponvel no endereo eletrnico: http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital

160

enunciado: reiteradamente surgem, por parte de professores e educadores, queixas em


relao s famlias, falta de recursos ou de formao especfica ou sobrecarga
decorrente da inadequao das famlias. Nestes casos, o espao que se abre diante do
impossvel, ao invs de produzir respostas particulares, passveis de serem aplicadas no
caso a caso, ou de habilitar a inveno, como se espera, produz impotncia, queixa e
desimplicao.
Tocar na diferena entre impotncia e impossvel tocar nos efeitos do encontro com a
inconsistncia do Outro. A incompleteza do Outro pode deixar o sujeito na via da
impotncia; o Outro no capaz de me ajudar a sair dessa, de dar a resposta ou a
interpretao que me ajudariam a me sentir melhor (SAURET, 1998, p. 83). Ao
mesmo tempo, a inconsistncia do Outro, se tomada em sua vertente de impossvel,
pode consistir no fim da possibilidade de se recorrer ao Outro para solucionar ou regular
a sua relao com o gozo. Penso ser possvel afirmar que, ao deixar cair o ns,
Virginie abriu mo da impotncia diante do silncio do pai e constatou o modo singular
(e inconsistente) deste de regular sua relao com o gozo. Penso ser disso que se trata o
encontro com o pai Real, no caso de Virginie, capaz de autoriz-la a assumir uma
relao confivel com o gozo, com o seu (dela) singular modo de gozo, abandonando
definitivamente a Histria e depois o ns, como determinantes da histria subjetiva.
Embaralhando-se em cada lembrana - ou em cada modo de atualizao presente do
passado - de seus entrevistados, mas surpresa por no encontrar nestes um ns,
Virginie se permitiu submeter suas hipteses prova; no sem susto ou sem surpresa,
no sem at mesmo mostrar alguma insistncia.
A primeira criana de 68 que Virginie encontrou foi Samuel Castro. Ela investigava o
modo como aquele perodo o marcou. Samuel lhe disse que a poltica no o interessava;
mais que isso, lhe era praticamente estrangeira, e ficou surpreso com o fato de que o
trabalho de Virginie consistir em realizar documentrios polticos e histricos.
Perguntou-lhe se ela no estava farta dessas histrias. Sim, disse ela, mas [...] no
consigo sair delas ou sempre volto para elas (LINHART, 2008, p. 27). O encontro com
Samuel provocou-lhe espanto: Acho surpreendente que efetivamente Samuel no saiba
nada desta histria que eu domino perfeitamente. Ento possvel escapar. E o amor
filial no tem nada a ver [com isso] (p. 27, grifo meu).

161

Didier-Weill (1997) descreve o ato interior por meio do qual algum se deixa espantar
como um reconhecimento que permite dizer um sim, diferenciando-o de um
constrangimento ao qual no se pode resistir. O espanto diz respeito a um
consentimento interior a uma presena outra, estranha, diante da qual se descobre, no
sem surpresa, que no estranha. A que estaria Virginie dizendo sim? Parece que
possibilidade de escapar, escapar sem que isso necessariamente abalasse o amor filial.
Retornarei a este ponto mais adiante.
O tema do espanto e sua relao com o estranho tratado por Freud em O estranho,
texto de 1919. O autor observa inicialmente que o estranho causa espanto precisamente
porque no conhecido, familiar. No entanto, no decorrer do texto, detecta a existncia
de uma certa intimidade entre o estranho e o familiar e levado a definir aquele como
algo que deveria ter ficado oculto (reprimido) e se manifestou. Em Recordar, repetir e
elaborar, esse saber no sabido involucrado no estranho j no passava despercebido
por Freud: Quando o paciente fala deste material esquecido, raramente deixa de
acrescentar: Na verdade, sempre soube perfeitamente todas estas coisas; o que acontece
que nunca me detive para pensar nelas (FREUD, 1914, p. 1684, traduo livre).
Estranho e familiar parecem consistir em duas faces da mesma moeda, de modo que um
no existe sem o outro, ainda que essa relao no seja percebida de forma clara ou
explcita na experincia. nisto que reside o espanto: na revelao dessa intimidade
surpreendente entre o familiar e o estranho.
Tal como trabalhado por Didier-Weill, o espanto parece consistir na faceta
produtiva135 do encontro do que familiar no estranho. Segundo o autor, o espanto
tem o poder de introduzir uma descontinuidade no saber: seremos assim levados a
interpretar o espanto como o efeito de uma destituio subjetiva produzida por um
significante especial [...] (1997, p. 17). Esse significante traduzido por Marie
Bonaparte, em O chiste e suas relaes com o inconsciente, como significante
siderante. O espanto, dessa forma, no s produziria uma descontinuidade como
tambm um furo no saber, tendo um efeito interpretativo para o sujeito. Essa

135

O autor observa que o supereu tende a inabilitar a aptido do homem ao espanto, levando-o a decair no
j conhecido, em uma dimenso repetitiva do dj-vu (DIDIER-WEILL, 1997, p. 29).

162

interpretao vinda de meu adversrio136 extrai seu poder do desejo muito particular que
o anima (DIDIER-WEILL, 1997, p, 20, grifo meu).
O efeito interpretativo do espanto causado precisamente porque a relao do outro
com o desejo est estruturada de forma diferente da minha. Parece que esse primeiro
encontro de Virginie a fez deparar-se com o h um, no lugar do existe um ns
esperado. Seguindo com Didier-Weill, tal efeito s possvel porque havia, do lado de
Virginie, a possibilidade de consentir, de deixar-se siderar, e porque, do lado do outro,
se ele foi capaz de sider-la, porque compareceu a partir do singular desejo que o
anima. O espanto arrancou Virginie do determinismo histrico: ento possvel
escapar!; entrou em jogo um saber no sabido, um saber que caiu como estranhamente
familiar, embora se tratasse de um saber que j a habitava. E, bem, ao enunciar que o
amor filial no tem nada a ver [com isso] ela deixava entrever que estava disposta a
abrir mo da posio assumida diante dos pais e da herana familiar de que am-los
corresponderia a deixar-se aprisionar nos seus significantes ou no seu silncio. Assim,
quando a segunda frase de Virginie retroagiu primeira, percebemos que ela no s foi
compelida a abandonar a determinao histrica como tambm a hiptese da existncia
de uma linearidade ou um assujeitamento herana familiar.
De acordo com Silva (2011), uma pesquisa se consolida com a sucesso de trs tempos:
o estranhamento, o entranhamento e o desentranhamento. inevitvel a lembrana dos
trs momentos lgicos formalizados por Lacan: o instante de ver, o momento de
compreender e o tempo de concluir. A formulao de Silva, ao contrrio da de Lacan,
que est ancorada na lgica, remete ao que h de visceral nesse processo - parece que se
trata mesmo de revolver as entranhas -, mas aponta tambm para a crucialidade de um
terceiro momento, em que preciso concluir, desentranhar-se. O terceiro tempo, diz
Lacan, deve ser precipitado. Neste ponto, ao introduzir o tema da pressa, o psicanalista
vem nos socorrer, porque uma pesquisa que se detm nos dois primeiros tempos
propostos por Silva permanece em uma suspenso; entretanto, passar ao terceiro tempo
requer um precipitador. No espanto, parece residir a condio para a precipitao de um

136

O autor toma como exemplo os jogos que so regidos pela bola: Como dar conta do poder que essa
pequena bola detm sobre milhares de seres humanos que, no estdio ou pela televiso, acompanham
horas a fio suas idas e vindas? Qual a natureza do espanto provocado cada vez que a bola desorienta
suficientemente um dos jogadores para que ele a deixe passar? (Didier Weill, 1997, p. 18).

163

saber, ele comparece, dessa forma, como um disparador da pressa em sua funo de
uma certeza antecipada que, em ato, precipita uma concluso.
Virginie experimentou o estranhamento cada vez que a singularidade se imps e fez
obstculo ao ns, mas suportou deixar-se furar em proveito do um. Ao entranhar-se
na vida das outras crianas de 68, ela caiu como um, mesmo que sua pesquisa nos
permita confirmar que possvel destacar, no discurso social, traos que se
particularizam como modos de sutura da falta prevalentes em uma determinada poca,
como vimos no captulo 3.
Em O tempo lgico e a assero de certeza antecipada, Lacan afirma que o que as
moes suspensas denunciam no o que os sujeitos vem, mas o que eles descobriram
positivamente por aquilo que no veem [...] (1945, p. 203). Acrescenta que a instncia
do tempo se apresenta de modo diferente em cada um desses trs momentos, subsistindo
apenas o ltimo que os absorve. Vidal (2006) observa que a funo da pressa j fora
acentuada por Lacan em seu escrito sobre o estgio do espelho137, no qual descrevia a
precipitao da criana da insuficincia antecipao: Tentando suturar a hincia entre
a experincia que tem do corpo e a forma ideal percebida no espelho, a criana se
precipita numa identificao com um objeto a imagem do outro que toma
emprestado do Outro (VIDAL, 2006, p. 3).
O momento de compreender opera em uma dialtica com os outros dois tempos lgicos:
E tambm que se, nessa corrida pela verdade, apenas sozinho, no sendo todos, que
se atinge o verdadeiro, ningum o atinge, no entanto, a no ser atravs dos outros
(LACAN, 1945, p. 212). Pois bem, se no existe o ns postulado por Virginie, isso
no implica em uma negao do outro como semelhante, ao contrrio, no h um sem
os outros. O ttulo do texto de Vidal citado acima parece tambm vir ao encontro da
tenso que se estabelece entre o Um e os outros: Em tempo: sozinho, mas no sem os
outros. O autor relembra a pea de Sartre datada de 1944, As portas fechadas (Huis
Clos) na qual cada um dos trs personagens, incapaz de perceber as prprias falhas,
atribui-as aos outros dois, concluindo que o inferno so os outros; ao que Lvi-Strauss
137

C.f. - LACAN, J. O estdio do espelho como formador da funo do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar editor, 1998, p. 100.

164

teria retrucado: o inferno cada um. No caso dos trs prisioneiros, o sujeito atinge
sozinho o verdadeiro, mas no o faz sem os outros, numa operao que deixa resto
(VIDAL, 2006, p. 4).
Em sua pesquisa, Virginie no pretendia retratar fatos histricos, orden-los ou verificlos, mas escutar seus entrevistados, estranhando-se e emaranhando-se em suas histrias.
Vale retomar como Lacan explicita os limites entre realidade e verdade em Funo e
Campo da palavra, lembrando que, na anlise, no se trata da realidade, mas do modo
como passado e futuro podem conjugar-se na histria de um sujeito. Virginie escolheu
alinhavar, reunir, escandir as suas lembranas e as lembranas de cada um que
encontrou, menos a partir do modo como elas procediam informativamente do que a
partir do lugar exato em que se apoderou de cada uma delas. Trata-se de uma construo
(SOUSA, 1994).

assim que tomo O dia em que meu pai se calou como uma

construo; uma construo que no s interpela a teoria, mas que tambm revela as
sinuosidades do campo conceitual no qual se transita (SOUSA, 1994).
A leitura do texto de Virginie me levou a definitivamente a abandonar perguntas na
linha de: o que ser dos filhos da parentalidade? Levou-me inclusive a recusar a
premissa de que haveria filhos da parentalidade, reafirmando o impondervel que
opera em cada poca, no encontro da transmisso do lugar em que uma criana foi
desejada, do gozo que condensou e da fico que cada uma inventa para si, nesse
encontro. Em cada entrevista com Linhart, a criana de 68 em questo permite
acompanharmos sua soluo singular diante do que prevalecia no lao social daquela
poca, evidenciando que os traos de uma poca so particulares e no singulares, que o
modo como pai e me so tocados por esses traos singular, assim como tambm
singular a construo de cada um. Nesse sentido, o Outro pode ser decisivo, mas o
sujeito quem decide!
Sauret (1998), ao reunir uma srie de textos para a publicao de seu livro O infantil e a
estrutura, reconhece que podemos ser contados pelo que escrevemos. A leitura de O dia
em que meu pai se calou me permitiu atualizar a afirmao de Sauret nos seguintes
termos: podemos tambm contar-nos a partir do que escrevemos. Em seu relato, ao
arrancar-se da determinao histrica, Virginie deixou de acreditar que poderia ser

165

contada (pela Histria, pelos outros) e pde contar-se como uma (entre outros), no sem
reconhecer, ao mesmo tempo, o um em seu pai.
4.2 - As crianas de 68
No belo relato de Virginie, nota-se que ao encontrar cada criana de 68, ela encontrou
algo de si; seu discurso ia e voltava a partir dos discursos dos outros, de modo que
muitas vezes no sabemos quem fala, e, quase sempre que isso acontecia, acabamos por
verificar que era Virginie. Ela falava a partir dos outros, em um movimento dialtico
que ia de si a eles e deles para si novamente: Explorando as lembranas deles surgem
as minhas. Sem eles, eu no posso nada. Suas narrativas liberam minha palavra
(LINHART, 2008, p. 33).
Entrevistar as crianas de 68 foi para Virginie tambm entrevistar-se, precisou falar
dos outros para poder falar de si. A autora-protagonista se confundia inicialmente com
os outros nos quais precisou alienar-se para, depois, separar-se. Mas Virginie tambm
encontrou traos comuns em seus entrevistados, localizados por eles a partir de como o
ns se impunha naqueles tempos, prevalecendo sobre o indivduo. Situar estes traos
fundamental para entender o mandato a partir do qual as crianas de 68
responderam ao se converterem em pais: no reproduzir aquilo que seus prprios pais
fizeram, o que implicou ordenar suas vidas em torno dos filhos.
Esse mandato enunciado por uma das entrevistadas, Lamiel Barret-Kriegel:
impressionante a distncia entre a maneira pela qual ns fomos criados e a maneira pela
qual nos ocupamos de nossas crianas. Tambm, eu no passo um dia sem que me diga:
lembrar a cada dia de no fazer o que os meus pais fizeram comigo (LINHART, 2008,
p.29). Tambm por Claudia Senik: na vida cotidiana, com meus filhos, eu estou na
antpoda do que eu vivi com meus pais (p. 107); ou, ainda, por Juliette Senik: mas a
diferena fundamental entre a educao que eu recebi e a dos meus filhos, que nossos
pais faziam a sua vida e ns os seguamos, enquanto eu me curvo ao cronograma de
meus filhos (p. 128). Ao longo do livro, os entrevistados de Virginie apresentam, cada
um sua maneira, o modo pelo qual a parentalidade converteu-se em um modo de vida
para eles.

166

A crena em um ns no era apenas um sonho de Virginie, era quase uma


conseqncia lgica do modo como o ns era vivido naquele tempo por seus pais e
outros militantes: como um imperativo. Embora no se trate nesse trabalho de fazer um
estudo sobre aquela poca, faz-se necessrio situar que a que me refiro quando falo em
um ns consolidado pela militncia poltica de esquerda. Conforme observa ReyFlaud, 2002: A vontade de uma uniformizao dos indivduos manifestada pela
revoluo cultural maosta se inscreve nesta tendncia a apagar as diferenas no interior
do grupo ao fazer a diferena passar por fora (pelo espao maldito do capitalismo) (p.
43).
Assim, o ns que se consumaria nas crianas de 68 pode ser lido como um coletivo
imaginrio 138, fundado numa propriedade supostamente preexistente, que poderia ser
formulada da seguinte forma: as crianas cujos pais estavam submetidos aos mesmos
ideais, forjados a partir de um ns consistente, sustentado pela militncia poltica de
esquerda. Essa hiptese no s implica uma supervalorizao da Histria em detrimento
do sujeito como tambm no leva em conta os modos pelos quais cada famlia
singulariza o que prevalece no discurso social, o gozo que cada um, pai e me,
testemunha na transmisso e a fico, singular, que cada criana arma para si nesse
cenrio. Pode-se ento afirmar que naquela poca a militncia comparecia como um
modo de vida139? Se em sua base estava a exaltao do ns, mesmo que em
detrimento do individual, pode-se tambm reconhecer nela um modo de sutura da falta ou uma iluso de harmonia, como diria Freud - articulado quela poca?
O pai de Virginie era maosta. O modo como o ns se condensava naquela poca
definido quase de forma caricaturesca no livro de Zuenir Ventura 1968: O ano que no
terminou. O autor relata a queixa de Nelson Rodrigues, impactado pelo modo como o
indivduo perdia o contorno nas assemblias e passeatas, de no poder mais saudar um
artista por este ter se tornado um ser impessoal, coletivo: No era um ator, era um
Discurso, era uma Comisso, era uma Assemblia. Dizia ns e no eu
(RODRIGUES apud VENTURA, 2008a, p. 76).

138

Franois Geismar, umas das crianas de 68 entrevistadas por Virginie, recusa a existncia de um
ns, diz ser imaginrio esse coletivo e no acredita ter algo em comum com as outras crianas de 68.
139
A militncia abordada como sintomtica de uma poca em FIGUEIREDO, L. C. (1995) Modos de
subjetivao no Brasil e outros escritos. So Paulo: Escuta/Educ.

167

Em um trecho de seu segundo livro 1968, o que fizemos de ns, Ventura (2008b) capta
com preciso o modo pelo qual o ns se impunha naquela poca. Mostra a definio
do Juiz Eros Grau, em seu romance Tringulo no ponto, para a diferena entre um
militante e os outros cidados, a partir do seguinte evento: ao serem informados acerca
do AI-5140, dois amigos preocupam-se com a sociedade como um todo enquanto o
terceiro preocupa-se com os riscos que corre pessoalmente devido aos rastros que
deixara de sua militncia poltica. Eros Grau contundente: em mim no predomina a
singularidade. Acho que felizmente predomina o universal (2008b, p. 54).
Creio que esta a melhor definio que pude encontrar do modo pelo qual o ns se
institua sobre o individual naquela poca. A militncia se apresentava como uma
renncia a toda e qualquer veleidade individual. Virginie tambm retratou esse trao
ao se referir a uma passagem do romance de Olivier Rolin, Tigre en papier - que traa a
histria dos militantes maostas naqueles anos. Na passagem, uma moa demanda do
narrador um testemunho sobre seu pai, de quando ela era uma criana. A resposta que
recebe esta:
Eu no posso te falar dele sem falar de ns. No sei como te fazer
compreender isso, ns no ramos eu naquela poca. Isso se devia
nossa juventude, mas acima de tudo poca. O indivduo nos
parecia negligencivel e at mesmo menosprezvel [...] sem ns,
todas nossas memrias desaparecem (LINHART, 2008, p. 31).

Lamiel Barret- Kriegel descreve o modo como o ns se particularizava no discurso de


seus pais: Minha me no parava de me explicar que ns, ns no nos interessamos por
carros, mas por livros. Ela repetia sem parar que os livros eram bem melhores. E eu me
lembro que aos cinco anos, eu pensava que ela estava errada [...] (p. 122). Ento, se o
ns comparecia como um imperativo, isso no quer dizer que todos se submetiam a
ele de igual maneira. Thomas Piketty tambm sonhava com grandes carros, e seu pai lhe
dizia: sabe, Thomas, eles tm grandes carros, mas no tm belas ideias na cabea (p.
119). Em seu relato, Thomas no s acentua o peso do ns como tambm que a
existncia de um ns leva, invariavelmente a um eles. Diante da contundncia do

140

O Ato Institucional n. 5 entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, durante o governo de Artur


Costa e Silva. O AI-5 foi o quinto de uma srie de decretos emitidos pelo regime militar brasileiro nos
anos seguintes ao golpe militar de 1964; sobrepondo-se Constituio, dava poderes extraordinrios ao
Presidente da Repblica e suspendia vrias garantias constitucionais.

168

pai, Thomas pensava que ele poderia ter razo; todavia, aqueles carros eram realmente
belos!
Nesse sentido, pode-se dizer que a militncia poltica, alm de se constituir em um
modo de vida na juventude dos pais de Virginie, comparecia como um modo de sutura
da falta predominante naquela poca. Um dos achados dela foi, portanto, que uma
poca incide no lao social, e que, no mbito da famlia, essa incidncia comparece a
partir de como o discurso social entende que as relaes devem se estabelecer. Gavarini
(2008) explicita isso da seguinte maneira: A variabilidade das formas adotadas pelo
grupo familiar e pela parentalidade mostra bem que a famlia e o fato de ser pais so
diversamente institudos segundo o perodo histrico e as sociedades (p.2). O
testemunho de Lamiel preciso: passou a infncia a seguir os pais, rodeada por adultos
discutindo poltica ou cultura. Acredita que embora os pais no se interessassem pelas
crianas como fazemos na atualidade, eles queriam transmitir-lhes sua ideia de cultura e
conhecimento. Ela, por sua vez, se preocupa com o bem-estar e o desenvolvimento de
seus filhos, concluindo: Acredito que isso no estava ligado aos meus pais. Era a
poca! (LINHART, 2008, p. 88, grifo meu).
O cenrio que se organiza hoje em torno da famlia e da criana - a parentalidade alada
condio de modo de vida - remonta quilo que as crianas de 68 recusaram em
seus prprios pais. Os traos que marcam uma poca no so alheios queles que
prevaleceram num tempo anterior; dito de outra maneira, os modos de sutura da falta de
um determinado momento histrico retornam como o sintomtico da poca
subsequente. Lamiel precisa em seu relato porque enuncia o quanto aspectos como o
bem-estar e o desenvolvimento esto atualmente no centro das preocupaes da famlia,
como decorrncia do lugar no imaginrio social que a criana e o exerccio da
parentalidade ocupam na atualidade.
Um aspecto que me chamou particularmente a ateno que alguns dos entrevistados
de Virginie leem como retorno ao que fora recalcado na poca anterior o modo como
seus pais se atiraram no movimento de 68. Observam que muitos dos que se destacaram
naquele perodo eram judeus, filhos de judeus imigrantes. Seus avs tinham vergonha
de ter sobrevivido ao holocausto e seus filhos e netos teriam sido criados como
sobreviventes. Essa seria uma resposta possvel pergunta sobre o nmero altssimo de

169

judeus participantes do movimento de 68, ou seja, talvez estes tivessem visto naquele
movimento a possibilidade de sair da condio de sobreviventes, a possibilidade de
viver em contraposio a seus pais, que se permitiam apenas sobreviver.
O tema do ns abordado por Lacan em sua anlise do mito de Eros, e seu potencial
devastador marcado pelo psicanalista ao situ-lo na base da segregao. O mito de
Eros, para Lacan, ao contrrio do de dipo, perigoso, pois leva a confuses sobre o
que o Um141. No incio do seminrio 20, o autor aponta para a confuso original (p.
13) que o mito de Eros comporta ao tender a fazer um s dessa multido imensa
(1972-73, p. 72). Nesse mito, o Um seria o produto da fuso de dois, e sabemos que no
h como dois fazerem Um142, [...] em nenhum caso dois corpos no podem fazer um
por mais que se abracem [...] De forma que no h nenhuma espcie de reduo ao um
(Lacan, 1974, p. 31). O mito de Eros apontaria para a existncia de Um da relao
sexual.
Neste sentido, a formulao de Lacan do pai para alm do dipo como metfora paterna
pode ser tomada como uma nova abordagem sobre a questo do Um. Como vimos no
captulo 1, o pai Real, ao testemunhar um modo singular de gozo, surge como um pai,
fazendo exceo para que a funo possa tornar-se modelo. Opera no porque
excepcional, mas porque nico. Nessa perspectiva, os pais, um a um, do testemunho
de sua verso de gozo da funo, fazendo exceo a toda e qualquer universalizao.
Para Lacan, s h universal do possvel: ns s existe como possvel em Um.
A predio de Lacan da ascenso da segregao correlativa a esse apagamento da
diferena em proveito da similitude: os mesmos com os mesmos. No discurso
preconizado em 68 pela militncia de esquerda, a face segregacionista do ns
comparece sempre que a diferena passa por fora e ele mesmo se impe, de forma
autoritria e consistente. O trecho reproduzido acima sobre a uniformizao no contexto
141

Do que que se trata ento no amor? O amor, ser que como promove a psicanlise com uma
audcia tanto mais incrvel quanto isto mais vai contra toda a sua experincia, e quanto mais ela
demonstra o contrrio o amor, ser que fazer um s? Eros, ser ele a tenso para o Um? (LACAN,
1972/73, p. 13).
142
No Seminrio 20 - Mais, ainda (1972/73), Lacan grafa Um (com letra maiscula). O autor relata que a
formulao H Um deu suporte ao seu discurso do ano anterior (referncia ao Seminrio 19 ...Ou pior,
1971-72) aspirando a no recair nessa confuso entre o Um, suposto no mito de Eros, e o H Um em
hincia com o Outro, revelando a impossibilidade inerente relao sexual. A representao deste H Um
o n borromeano.

170

do maosmo continua com a seguinte afirmao: O racismo mantm o mesmo dio da


diferena em nome da in-diferena mantida entre os membros da comunidade (REYFLAUD, 2002, p. 43). Nota-se que o autor identifica fenmenos como o racismo na
mesma base do construto que justifica o ns.
Pacheco (2009) tambm evidencia o que subjaz em potncia na iluso de um ns:
Mais de um psicanalista j nos lembrou que os sujeitos com estrutura
neurtica, inconformados com essa condio, constroem um saber
coletivo que os assegure mutuamente da iluso de que esto juntos na
mesma fantasia e de que se remetem a um nico e mesmo Outro
absoluto e sem falhas. Eles se entregam como instrumentos desse
saber, evitando indecises, hesitaes ou incertezas (p. 146).

Didier-Weill, em sua formulao sobre o espanto, localiza uma posio desfavorvel a


ele na identificao coletiva a um lder; h um cuidado redobrado (1997, p. 25) para
que este no se manifeste, de modo que se opta por alienar-se ao outro na figura sem
surpresa do mesmo.
Essa discusso remete anlise empreendida por Freud em Psicologia das massas e
anlise do eu, na qual destaca a tendncia existente, sempre que os homens se renem,
de surgir uma massa psicolgica. O autor inicia a discusso destacando dois aspectos
fundamentais no que se refere relao do indivduo com o social. O primeiro que
somente em circunstncias excepcionais um indivduo pode prescindir da relao com
seus semelhantes e o segundo que a psicologia individual ao mesmo tempo e desde
o princpio uma psicologia social, em um sentido amplo, plenamente justificado
(FREUD, 1920/21, p. 2566, traduo livre). Partindo de perguntas como o que uma
massa e por que ela exerce tanta influncia sobre o indivduo, Freud examina as ideias
de Gustave Le Bon sobre as massas.
Interessa-me destacar duas caractersticas das massas: a primeira que a noo de
impossvel no existe para o indivduo que faz parte de uma multido; a segunda que
nas multides o que se pede so iluses, s quais no se pode renunciar. Penso que
esses dois traos comparecem na iluso de harmonia que em cada poca, assume uma
forma, um ns, mas, neste caso, tanto o impossvel como a iluso no tm a mesma
consistncia que nas massas. Dessa forma, os fenmenos de massa podem ser lidos

171

como uma das facetas pelas quais o ns comparece, como uma das formas de
manifestao da potncia subjacente iluso de um ns, quando esta perde seu carter
de semblante.
Situar o ns como uma tendncia no lao social evidencia seu carter de iluso
(necessria para tolerar a condio humana, como vimos no captulo 2), porm, como
iluso, no pode dispensar seu carter de semblante, pode-se acreditar nela, mas no
muito. Tolstoi, em sua famosa frase: Todas as famlias felizes so parecidas; as
infelizes o so cada uma sua maneira parecia estar j advertido dos riscos de se
confiar em demasia na consistncia de um ns, conformando um enunciado que cabe
como uma luva na atualidade. Explico-me: se na atualidade o que prevalece no discurso
como iluso a felicidade para todos, na famlia esta se particulariza na busca pela
competncia e pela assepsia, aspectos destacados pela parentalidade ao assumir sua
faceta normativa. Assim, como Tolstoi, aposto na singularidade das famlias infelizes,
imperfeitas e faltosas, e lembro de Maral Aquino, que, j no ttulo de seu livro
Famlias terrivelmente felizes, apresenta seu mal-estar diante de uma normalizao da
famlia.
Ainda investigando os fenmenos de massa, Freud constata que a neurose extrai o
indivduo das formaes coletivas habituais, constituindo-se em um fator de
desagregao: o neurtico substitui as grandes formaes coletivas por suas prprias
formaes sintomticas (FREUD, 1920/21, p. 2609, traduo livre). Essa observao
cai como uma luva para mim! Eu a formularia da seguinte maneira: o sujeito, com seu
sintoma, com a singularidade do gozo ali engendrado, que faz objeo ao ns e
tambm ao para todos.
Com isso, parece que comeo a delinear uma resposta para a pergunta formulada no
final do captulo 2: como localizar o que faz objeo ao universal e ao homogneo
condensado no para todos da parentalidade? a famlia em sua funo de resduo
(com suas faltas e imperfeies) que faz objeo consistncia intrnseca ao
neologismo parentalidade, e o sujeito (com seu sintoma) que faz objeo ao ns,
independente da forma que ele assume em cada poca. Alcano formular que o ns
articulado em cada poca, na iluso de armar uma sutura falta, no se confunde com o
para todos produzido pelo discurso capitalista, evidenciado no lao social na

172

aspirao globalizao e particularizado na famlia sob a forma da inevitabilidade


do apoio (ou da interveno) a todos os pais. Sustentando-se no discurso capitalista o
para todos parece constituir-se em uma tentativa de superao do ns em prol do
todo. No entanto, que haja uns constituinte da civilizao.
O leitor atento, que vem me acompanhando nas formulaes sobre os modos pelos
quais o ns se atualiza no lao social, poder se perguntar se a famlia tambm no se
instituiria como um ns. Diante desse interrogante, eu responderia que a famlia
tambm um coletivo social e que, em sua funo de semblante, vela o impossvel da
relao sexual. Contudo, a noo da famlia como resduo, ao operar a partir dos
singulares modos de gozo que cada um, pai e me, testemunham na transmisso, faz
objeo a essa consistncia, furando-a.
Voltemos aos entrevistados de Virginie e aos seus testemunhos sobre como possvel
escapar da consistncia de um ns. Mathias Weber, amante do rugby e filho de Henri
Weber, testemunha uma hiptese sobre a transmisso diferente da de Virginie,
destacando-lhe um trao: eu e meu pai no temos a mesma paixo, mas a necessidade
de investir em algo que nos apaixone (LINHART, 2008,p. 156). ve Miller, por sua
vez, est certa de que sua me privilegiou a ateno s crianas em relao vida
militante. Lembra-se de um ambiente familiar estruturante com a presena de seu av
materno... o av materno de ve era nada menos do que Jacques Lacan! A psicanlise
referida em alguns trechos do livro, e destaco um que chamou particularmente a minha
ateno: tanto Virginie como Lamiel mostram-se especialmente aliviadas por terem
escapado da vida em comunidade e agradecidas por terem feito anlise!

Embora

aparentemente no exista uma conexo entre esses fatos, tanto a oportunidade de fazer
anlise quanto o fato de ter escapado da vida em comunidade abriram para cada uma
delas a possibilidade de realizar ou de proteger a construo de uma verso singular
diante da consistncia que o ns tinha naquela poca.
O tema da vida em comunidade complexo e requer um estudo mais aprofundado. No
entanto, recorto um aspecto que me parece central para a discusso sobre as
especificidades de cada poca e sobre o modo como o neologismo parentalidade
comparece na atualidade. Ren Levy viveu em comunidade e lembra-se de como era
difcil para as crianas suportarem a liberdade de costumes: A comunidade no uma

173

boa lembrana. So minhas primeiras lembranas de angstia (LINHART, 2008, p.


52). Naquela poca, portanto, a sexualidade no era velada na famlia, e Levy lembra
que isso no sem conseqncias para as crianas. Contudo, os relatos mostram que
no s a liberdade sexual no tomava a mesma forma em todas as famlias como
tambm que as crianas inventavam diferentes maneiras de fazer-lhe frente. Alexandra
Roussopoulos escutava os pais conversarem em reunies, de forma muito livre, sobre a
vida em casal e sobre a sexualidade, mas no sabia nada da sexualidade deles ou de sua
intimidade. Observa que os pais sempre tiveram o cuidado de preserv-la. Para Claudia
Senik, a liberdade sexual exuberante da qual foi espectadora quando criana (p. 168)
no resultou em dificuldades ou constrangimentos. Sua irm, Juliette Senik, lembra-se
de que, em vez de contar histrias de fadas, inventava histrias de amor entre adultos,
preciso que isso possa sair de uma maneira ou de outra [...] (p. 169). J Virginie relata
que, durante muito tempo, foi incapaz de emitir qualquer som durante as relaes
sexuais.
No que diz respeito ao modo como o tema da liberao sexual comparecia nas famlias,
o testemunho de Julier Faguer contundente: A liberdade dos costumes, do casal, era
infernal! (p. 169) e acrescenta: o problema que uma criana no deve conhecer a
sexualidade de seus pais (p. 170, grifo meu). Eu acrescentaria: as crianas no devem
conhecer a sexualidade de seus pais, mas devem desconfiar de que ela est ali. Acredito
que esse o exato ponto em que se situa a sexualidade como velada na famlia: recobre
o que da ordem do gozo, mas ao recobri-lo permite vislumbrar sua existncia. Ao
mesmo tempo em que so velados na famlia, os modos de gozo de pai e me velam a
inexistncia da relao sexual. O que chama a ateno que na verso atual da famlia,
que se apresentaria sob a forma da parentalidade143, novamente o gozo sexual no
velado, mas, desta vez (quando se passa a valorizar a tcnica e a competncia na
transmisso, como se o fato de tornar-se pai ou me pudesse ser isolado do sujeito, de
seus modos de gozo e de suas imperfeies) pretende-se extirp-lo do cenrio familiar.
Pretende-se excluir o que sexual do campo da famlia, como se realmente nela a
transmisso pudesse se concretizar sem deixar nenhum resto. O que no se pode perder
de vista que na famlia, pai e me conformam-se em semblantes, velando o real e,
como tal, respondem inexistncia da relao sexual, mas fundamental que, ao

143

Tomada em sua vertente normativa e ortopdica.

174

assumirem suas funes, possam suportar, mas no consistir, vacilando entre o


velamento e o inevitvel desvelamento do real.
Quando a famlia se apresenta na forma de uma parentalidade, inscrevendo-se em
uma poca em que o discurso da cincia prevalece, esquece-se de que pai e me so
semblantes e estes passam a ter uma consistncia, cindida da singularidade do desejo
que produziu a criana. Na parentalidade, a consistncia dessas figuras passa a ser
tamanha (pais que so habitados pela certeza e pela prometida assepsia na transmisso)
que, o que est velado na famlia - a inexistncia da relao sexual - pretende ser
definitivamente extirpado do cenrio familiar.
Assim como no existe um ns nas crianas de 68, entendo que no haver um
ns nos filhos da parentalidade. Alis, penso que a formulao crianas de 68 no
tem fundamento dado que, mesmo que uma poca ordene modos de sutura particulares,
no h generalizao possvel: este ns no existe. O sujeito faz o ns no existir
em sua articulao singular no seu sintoma. Virginie foi levada a constatar que no
conformava um ns com seus entrevistados, mesmo que tenha precisado por um
tempo perder-se em seus relatos, para separar-se e deixar-se cair como uma. Ainda
que o ns comparecesse como um imperativo naquela poca, conformar-se em um
ns junto com as crianas de 68 parece ter sido um sonho de Virginie, a sua verso
do dormiremos sempre todos amontoados144, do qual se inevitavelmente despertado
pela constatao de que somos habitados e habilitados - pela separao, mesmo que
no vivamos separados.
4.3 O silncio do pai
Virginie parece ter iniciado sua pesquisa em um momento de vida no qual estava
disposta a deixar-se cair: como vtima da Histria, como compondo um ns com as
outras crianas nascidas naquela poca, como aprisionada no silncio paterno. Foi nesse
momento particular de sua vida que o espanto pde sider-la, espanto que compareceu
em dois tempos: no encontro com Samuel Castro e no encontro com o que falar
implicava para seu pai. Vale lembrar que o espanto traz um afeto como se fosse pela
primeira vez, que no s este no recebido como repetio como, ao fazer furo no
144

Referncia discusso sobre o filme Onde vivem os monstros, realizada no captulo 1.

175

saber, d um basta naquela145. O espanto, dir Didier-Weill, surge quando o sujeito


capaz de se autorizar dele mesmo, e eu acrescentaria: sem precisar alienar-se em um
ns para sustentar-se, sem precisar aprisionar-se na Histria para apaziguar a
vergonha. O pai saiu do silncio justamente enquanto ela descobria que s existe
ns a partir do um.

Esse segundo espanto precipitou Virginie ao momento de

concluir.
Era estranho que no momento em que eu me decidira finalmente a
contar a historia de meu pai, para me liberar, em que eu me decidira
cont-la precisamente por onde ela me havia feito sofrer - seu
silncio - no havia mais silncio, o silncio tinha desaparecido, meu
pai recomeou a falar! (LINHART, 2008, p. 190, traduo livre).

Quando finalmente Virginie decidira contar a histria de seu pai para se liberar, seu pai
sofre um acidente domstico e, inesperadamente, voltou a falar. agora meu pai que
fala, sem parar, com todo mundo, sobre tudo (p. 192). Virginie observa que demorou
para perceber os sinais de perigo: seu pai entrara em uma crise manaca. Rapidamente a
loucura se apoderara dele novamente. Eu compreendi que ele foi para si mesmo at
agora seu melhor mdico. [...] Meu pai no era essa vtima que eu imaginei por tanto
tempo, ele era um homem que sabia exatamente como se proteger de seus demnios e
fez tudo para isso (LINHART, 2008, p. 194, grifo meu).
Agora Virginie sabe por que seu pai se calou. Ele no estava na mesma problemtica
daqueles que continuaram a falar, a se expor publicamente, etc. Na sua doena, ele
demonstrou uma grande sabedoria. No seu isolamento, mostrou um domnio perfeito de
seu destino (p. 196). Agora sei por que meu pai escolheu se calar (p. 197, grifo meu).
Em O dia em que meu pai se calou, ao deixar cair o ns, Virginie deixou cair a
Histria como determinante de sua histria, l onde a histria de seu pai era tambm a
sua. Virginie se ps a falar e, assim fazendo, encontrou em cada entrevistado uma
soluo nica e que seu pai no foi exclusivamente uma vtima da Histria; sua queda,
seu silncio, descobrimos junto com ela no final, foi uma escolha, uma produo
145

No seguinte trecho localizo em Lacan o modo pelo qual a histria lhe interessa: Com efeito, esse
limite est presente a cada instante no que essa histria tem de acabado. Ele representa o passado sob sua
forma real, isto , no o passado fsico, cuja existncia abolida, nem o passado pico, tal como se
aperfeioou na obra da memria, nem o passado histrico em que o homem encontra o garante de seu
futuro, mas o passado que se manifesta revertido na repetio (LACAN, 1953c, p. 319).

176

singular, e, portanto, uma produo da ordem da exceo, o que, j sabemos, pode dar
lugar a outras excees. Indo um pouco mais longe, proponho que, ao reconhecer no
silncio do pai uma sada singular, no apenas tributria da Histria, ainda que
certamente carregada pelos traos que a marcaram, Virginie pde exceder o ns.
O pai de Virginie era descrito por seus companheiros como excepcional. No captulo
1, adverti para os riscos de um pai que ocupa o lugar de excepcional, porque neste caso,
no estaramos diante de um pai que faz exceo testemunhando um modo de gozo
singular, mas daquele que se apresenta e se acredita como ideal, como despido de
imperfeies. Virginie parecia estar aprisionada em uma bscula que ia do pai
excepcional ao pai envergonhado; a interrupo do silncio deste e a emergncia de sua
loucura habilitaram-na a significar sua histria a partir de outras coordenadas. Vejam
que o pai Real, este que se descortina para Virginie, um pai manaco, no se confunde
com um pai ideal. O pai calado, silenciado pela Histria, um pai morto, este sim estaria
mais sujeito s idealizaes, mais passvel de ser salvo, ainda que ao preo de ver-se
reduzido condio de vtima.
Teria a escrita desse livro operado para Virginie como um encontro com o pai Real?
Formulo tal pergunta, pois acredito que ela estava identificada a um pai imaginrio que
a aprisionava em seu silncio, na vergonha que esse lhe causara. Assim como o espanto
produzido pelo encontro com Samuel Castro levou-a a abandonar o ns consistente
condensado no enunciado as crianas de 68, a arrancar-se da Histria como
determinante, o espanto produzido pelo insuportvel da fala do pai arrancou-a do
aprisionamento. Se o encontro com o pai Real liberou, autorizou, tambm permitiu a
Virginie interrogar como saber o que era da ordem de uma verdade. Para ter esse saber,
dir Lacan, preciso empenhar a prpria pele (1972/73, p. 103). Se reconhecermos a
pele de Virginie na sua identificao ao ns, ento sim, podemos afirmar que ela
empenhou sua prpria pele em sua pesquisa!
O silncio do pai pode agora restabelecer-se, sob outros termos, radicalmente diferentes,
como modo singular de dar conta de um gozo, como uma escolha e no mais como um
assujeitamento. Eu dizia no captulo 1 que o encontro com o pai Real permite separar-se
do gozo do Outro, separar-se para servir-se do pai, um pai que no oferece garantias,
mas d testemunho de uma relao possvel com o gozo. O pai de Virginie perdeu para

177

ela a consistncia que o lugar de vtima de Histria lhe conferia, mas abriu-lhe brechas
para a inveno, a escolha. Seu silncio passou a ser lido por ela como um modo de
tampar o buraco a loucura que eficaz em fazer crer que no h buraco, e, nessa
medida, confere um semblante no lugar do impossvel.

Esse arranjo, portanto,

singular, no extensvel, no decorre de uma poca, no se repete de pai para pai; no


compatvel com um ns: no h, no Outro, garantias em que se agarrar (nem no ns).
Vale marcar que ao irromper brevemente como falante e voltar a recolher-se no silncio,
a histria de seu pai no se modificou; o que mudou foi o saber que Virginie pde
produzir sobre o pai, sobre seu silncio, foi o efeito produzido por esse saber: ela
concluiu sua pesquisa, ps um ponto final, algo silenciou nela.
exatamente neste ponto que a discusso sobre a historizao pode ser retomada.
Vejam que, ao pesquisar sobre os fatos historicamente determinados, no se trata de
esgotar um tema; o silncio do pai no s historicizado por ela, mas tambm
localizado em sua condio de tratamento possvel do real.
Quando observo que o pai de Virginie produziu um saber sobre o impossvel, produziu
uma sada que da ordem de uma inveno - foi o melhor mdico para si mesmo, como
constatou sua filha - faz sentido retomar a diferena entre impotncia e impossvel como
efeitos do encontro com a inconsistncia do Outro. Esta, se tomada em sua vertente de
impossvel, pode representar o fim do recurso ao Outro para solucionar ou regular sua
relao com o gozo. Virginie pode ento deslizar da impotncia diante do silncio do
pai para a constatao do seu (do pai) modo singular de regular sua relao com o gozo.
Esse seria o encontro com o pai Real, capaz de autoriz-la a assumir a sua (dela)
singular relao com o gozo.
O tema do silncio e dos nomes do pai fazem lembrar o famoso seminrio interrompido
por Lacan na primeira aula, Os nomes do pai. Porge (1998) hipotetiza que Lacan o
manteve suspenso apostando no valor significante da suspenso. A interrupo
reconhecida como uma reao a medidas discriminatrias da IPA (Sociedade
Internacional de Psicanlise) em relao SFP (Sociedade Francesa de Psicanlise, da
qual Lacan era um dos fundadores): Porque se tinha querido faz-lo calar, como se ele
tivesse pronunciado uma blasfmia ao falar dos nomes do pai, ele se calar, e far deste
silncio uma palavra (PORGE, 1998, p. 86). No entanto, parece no esgotar seu valor

178

nesse ato de repdio: Lacan manteve o seminrio suspenso, no retomando-o ao longo


de seu ensino.
O que chamou particularmente a minha ateno nesse fato histrico foi uma
coincidncia, destacada por Porge entre a interrupo do seminrio e a autorizao
concedida no dia da primeira e nica aula desse seminrio recebida por Lacan para dar
seu nome filha Judith146. No mesmo momento em que suspende sua fala sobre o pai,
Lacan tornou-se legalmente pai; foi, ele mesmo, reconhecido como pai. Ento instituiu
o silncio. De que fala o seu silncio, embora possamos fazer conjecturas, cada um
que sabe. Virginie detm agora um saber sobre o silncio. Conclui sua pesquisa com a
seguinte frase: ento silncio.

146

Quando Judith nasceu, sua me Sylvia ainda estava casada com G. Bataille. Dada a proteo que este
casamento lhe conferia por tratar-se de um no-judeu. Com a morte deste, Lacan d incio ao processo de
legitimao de sua paternidade (PORGE, 1998).

179

Captulo 5 Consideraes finais: a parentalidade para todos, no sem a famlia


de cada um147
O modo como eu havia estruturado inicialmente esta pesquisa, situando de um lado a
famlia como resduo e a parentalidade de outro, me levava a assumir uma posio de
oposio ou resistncia ao novo termo, como se a psicanlise, ela mesma constituindose em um discurso integrante desta poca148, habilitasse uma posio sobre a
procedncia ou no do neologismo parentalidade. Naquele momento, eu me preocupava
em enfrentar os discursos que apontavam para a inevitabilidade da interveno do
especialista e, ao mesmo tempo, em me situar em relao ao temor de que o neologismo
parentalidade viesse a substituir a famlia e de que a diferena (sexual) fosse eliminada
da transmisso familiar.
O destaque conferido por Tort (2006) s confuses armadas pelos especialistas sobre o
que so prticas sociais e o que diz respeito ao funcionamento psquico, chamando a
ateno para o fato de que so as prticas sociais que definem um certo nmero de
realidades e no aqueles, foi fundamental para que eu abandonasse aquela perspectiva
inicial. Tambm foi determinante a proposio do mesmo autor de conceber a
inventividade terminolgica como um modo de dar conta das mudanas nas prticas
sociais. Analisar separadamente cada uma das vertentes pelas quais o termo
parentalidade comparece na atualidade149 (sempre levando em conta que cada uma delas
e os discursos que lhes so subjacentes se influenciam mutuamente, tornando
praticamente impossvel encontrar cada umas dessas dimenses em estado puro) e ler
a consistncia que o termo parentalidade vem ganhando na atualidade e as prticas que
lhe so subjacentes como o sintomtico desta poca pareceram-me posicionamentos
condizentes com os pontos destacados pelo autor.

147

Afirmao proposta em ressonncia Convocatria do 5. Encontro Americano de Psicanlise de


Orientao Lacaniana (ENAPOL) XVII Encontro Nacional do Campo Freudiano: A sade para todos,
no sem a loucura de cada um perspectivas da psicanlise
148
O psicanalista, ao constituir-se em um integrante desta poca, tambm contribui para a sua produo
(DUNKER, 2008).
149
Como um modo de nomear o parent ou aquele que ocupa o lugar, como um meio de dar conta das
transformaes no campo da famlia e como um discurso de ordem pblica.

180

Ao tratar separadamente as diferentes dimenses pelas quais o termo parentalidade se


inscreve na atualidade, foi possvel destacar que minha crtica recaa sobre os discursos
normativos e ortopdicos sobre a parentalidade e observar que, no campo jurdico, o
novo termo pode ser bem-vindo, j que responde demanda por reconhecimento e
legitimidade das novas formas de famlia. As fices jurdicas pretendem organizar e
legitimar prticas j existentes e no implicam na excluso da diferena do campo da
famlia. No entanto, no decorrer do captulo 2, mostrei como se atualiza uma grande
confuso entre teorias psicolgicas, prticas sociais e convices polticas e pessoais no
que se refere s novas formas de famlia e procriao medicamente assistida, a ponto
de as demandas procedentes do ponto de vista jurdico acabarem sendo apropriadas por
outros discursos, s vezes de forma imprecisa e ideolgica.
A especificidade da psicanlise em relao aos outros discursos reside no fato de que,
embora o que se demande do psicanalista seja desembaraar-se do real e do sintoma,
este est advertido de que no h como eliminar o real. Sua interveno consiste
justamente em apontar para o real (lembremos que o discurso da cincia pretende
superar o que da ordem real, esquecendo-se de que tambm um semblante). Nesse
ponto, ou seja, diante da demanda pela eliminao do real, preciso que a psicanlise
continue a falhar (LACAN, 1974).
importante assinalar que no do psicanalista que depende o advento do real, aquele
s faz apontar para este. Evidentemente, para o psicanalista, no se trata de responder
demanda! A tica do bem-dizer no se confunde com dizer onde est o bem, no cabe
psicanlise armar consistncia sobre como as coisas devem ser (ou, mais
especificamente, sobre quais devem ser as competncias parentais). Contudo, o que se
nota que, em relao ao tema da famlia, muitos se sentem impelidos a dizer onde est
o bem, s vezes at mesmo o psicanalista. Mas ento ele corre o risco de posicionar-se
como um especialista e de engrossar o discurso sobre a inevitabilidade da interveno.
No decorrer das leituras realizadas ao longo desta pesquisa, havia uma formulao de
Laurent (2010b) que me intrigava. O autor assinalava a funo do analista de proteger a
criana do delrio familiarista de seus pais, diferenciando-se em relao aos
psicoterapeutas. Entendo agora a crtica em relao s psicoterapias, pois estas abordam
as funes parentais por meio de um vis funcionalista, atribuindo uma consistncia

181

sobre como deve ser o papel do pai e o papel da me; o que encorparia a fantasia
dos pais de que existe uma boa verso de famlia, e que, para tal, bastaria seguir as
orientaes e prescries do especialista. Najles (2008) destaca um aspecto
aparentemente simples, mas fundamental: como sujeitos que se escutam pai e me no
tratamento de uma criana, isto , no h como isolar, ao escutar o sujeito, o pai, a me
ou a parentalidade. No possvel assumir uma faceta s pai ou s me ao se criar
uma criana, o que da ordem do sexual, que se pretende expulsar nos discursos
normativos e ortopdicos sobre a parentalidade, retorna quando do sujeito que se trata.
A propsito da chamada para o V Enapol A sade para todos, no sem a loucura de
cada um - Marcus Andr Vieira150, diretor do evento, fez o seguinte comentrio:
O no sem de nosso ttulo convida a outro caminho. Esta expresso
afasta a simples oposio entre seus termos. A loucura no ser
definida, como de hbito, como o contrrio da sade mental ou da
razo, mas acrescenta-se a elas como condio imprescindvel.

Vieira, ao propor uma articulao entre sade mental e loucura, convidou a se fazer uma
bscula entre esses termos, ao invs de polariz-los e convert-los em excludentes. Com
isso, inspirou um tratamento possvel ao binmio sobre o qual me detive ao longo deste
trabalho: parentalidade e famlia. Antes que opor-se ao que o discurso social produz
como modo de sutura da falta na atualidade ou mesmo fazer-lhe resistncia, pode-se
formular que a parentalidade151 no sem a famlia em sua condio de resduo, ou,
outro modo de diz-lo, a famlia se reintroduz na parentalidade como condio
imprescindvel. Penso que esse um modo possvel de tratar tais termos e, ao assumilo como possvel, entendo ser o que permite que, por um tempo, as articulaes entre
famlia e parentalidade parem de no se escrever.
A famlia faz furo, descompleta a parentalidade. Ao bascular entre o universal e o
homogneo que os discursos sobre a parentalidade veiculam e a singularidade inerente
noo de famlia como resduo, a psicanlise faz comparecer a impossibilidade de
recobrimento da falta (condensada no aforismo lacaniano no h relao sexual). De

150

Texto de apresentao do V ENAPOL. Disponvel no endereo eletrnico:


http://www.ebp.org.br/enapol/09/pt/template.asp?apresenta/asaudeparatodos.htm
151
O termo parentalidade aqui tomado como o sintomtico de uma poca, portanto, em termos dos
discursos que o animam, das prticas que autoriza e das famlias que regulariza.

182

modo que ao PARA TODOS dos discursos subjacentes noo de parentalidade,


psicanlise cabe responder reenviando cada famlia, e aqui insisto no significante
famlia, sua singularidade. Ao apontar para a unicidade do gozo e para a
responsabilidade do sujeito por aquilo que faz de seus determinantes, a funo residual
da famlia fura a consistncia do genrico parentalidade. Ancorada nas funes
materna e paterna e nos modos como pai e me se conformam em semblantes, a famlia
como resduo estaria do lado da estrutura. Esta, apesar de necessria, depende do que
da ordem da contingncia, ou seja, descompletada pelos traos, posies e valores que
prevalecem em determinada poca e pela posio singular dos sujeitos implicados em
cada uma dessas funes.
Os comentadores de Lacan que se dedicam ao tema da famlia na atualidade e que
foram estudados e citados ao longo desta pesquisa apresentam, cada um sua maneira,
suas leituras sobre o mal-estar parental, destacando sempre o real como o que no
pretende deixar de no se escrever. Essa posio evidenciada na letra de Eric Laurent
(2010a), ao afirmar que nenhuma fico pode dar conta do real que a chegada de uma
criana numa famlia, na letra de Marie-Hlne Brousse (2010), ao observar que o
sintoma tem muitos dias adiante, e na letra de Gustavo Stiglitz (2009), ao assinalar que
nenhuma fico reduz o impossvel de escrever a relao sexual e que cabe psicanlise
cuidar da tentao de querer cobrir o real com as fices.
Em A Terceira, texto de 1974 Lacan se pergunta sobre as quinquilharias, em clara
referncia ao discurso capitalista: tomaro elas a dianteira? Responde enftico que isso
pouco provvel. O real, ao que parece, no tem seus dias contados! A famlia, como
vimos ao longo desta pesquisa, tampouco tem seus dias contados! Se o termo
parentalidade condensa o modo prevalente de sutura da falta nesta poca, ao
psicanalista, mais uma vez, cabe apontar para o real, e, neste caso especfico, para a
famlia em sua funo de resduo e para o sujeito em sua unicidade.
Entre os leitores de Lacan que se dedicam famlia e parentalidade, pude observar
tambm que, vez por outra, no to raro, o tema do declnio da funo paterna
reaparece; vez por outra tambm, mas com mais freqncia, surgem leituras mais
alarmistas a respeito das mudanas no campo da famlia e do futuro das crianas. Desta

183

forma, h psicanalistas152 que, ao se dedicarem a essa temtica, parecem embaraar-se,


denotando o temor de que a parentalidade possa vir a se substituir famlia em sua
condio de resduo, implicando em um risco para elas, ou seja, para os filhos da
parentalidade. Reproduzi no final do captulo 3 alguns trechos de autores que
denotavam tal preocupao, e vale assinalar que esses autores tratam o neologismo
parentalidade de forma genrica, sem atentar para os diferentes discursos que se
encontram em sua base, o que pode levar a confuses e imprecises em suas anlises.
Ao longo desta pesquisa, penso ter reunido elementos para questionar a preocupao
revelada por esses autores e mesmo a validade de enunciados como os filhos da
parentalidade. Um dos achados em direo ao qual o espanto me precipitou que
uma poca no conforma a um ns os sujeitos que dela fazem parte. A famlia,
reduzida sua condio mnima, ou seja, a famlia como resduo, aliada formulao
de que a parentalidade pode ser lida como o sintomtico desta poca consistiram em
elementos fundamentais para a assuno dessa posio.
A consistncia e as implicaes que Virginie Linhart, em O dia em que meu pai se
calou, pretendia subtrair do enunciado as crianas de 68, precipitaram-me ao tempo
de concluir. Assim como a autora, eu iniciara minha investigao munida de algumas
hipteses, mas no sabia exatamente aonde elas me permitiriam aportar. Alm disso, me
pretendia advertida em relao a alguns riscos para os quais o tema escolhido poderia
me levar. No incio do captulo 4, assinalei que a pesquisa de Virginie comparecia nesta
tese pelo espanto que causara em mim a consistncia implcita em seu enunciado as
crianas de 68, infletindo o rumo de minha pesquisa, e que examin-la me permitia:
posicionar-me diante de enunciados como os filhos da parentalidade, pontuando que
este ns no existe, e ilustrar a funo do pai como resduo (ou como opera o pai
Real). Mas s-depois um terceiro aspecto, no previsto anteriormente, foi se delineando:
o sinthoma como uma formulao que sustenta haver um (no sem os outros) e que
definitivamente esvazia a consistncia do ns sonhado por Virginie; noo que Harari
(2002) define de forma excepcional: No se trata, claro de solido subjetivada,
vivencial, mas do Um como formao psquica em Hincia com o Outro (p. 215, grifo
meu).

152

Como NEGRI, 2010, RUSSO, 2010 e TORRES, 2010, autores citados no final do captulo 3.

184

Pretendendo furar o ns subjacente ao enunciado os filhos da parentalidade me vi


impelida a buscar uma formulao mais precisa acerca do um em sua relao com o
Outro (questo que foi trabalhada por meio da noo de pai Real). Tocar na noo de
sinthoma, portanto, foi se tornando quase inevitvel, a partir do modo como os
elementos foram sendo costurados no momento de concluir esta pesquisa.
A noo de sinthoma153 foi formulada no ltimo ensino do Lacan, em um momento no
qual o psicanalista no mais procedia a um retorno a Freud, mas habilitou a inveno,
conceito absolutamente articulado ao Um e ao singular. Essa noo encontra
fundamento na especificidade da relao do Um com o Outro, e a partir desse ponto
especfico que a menciono aqui, embora seja importante frisar tratar-se de uma noo
complexa, que se articula de modo especfico com a noo de sintoma e que tem
implicaes importantes para a direo da cura em uma anlise. Penso que se trata de
uma formulao crucial de um Lacan que aspirava a estar altura de sua poca.
O modo como a anlise das articulaes possveis entre os termos famlia, parentalidade
e poca foi sendo tecida ao longo desta pesquisa me permite retornar aos interrogantes
formulados inicialmente e assumir uma posio: a parentalidade, um modo de sutura da
falta sintomtico desta poca, no implica um risco para que haja um amanh no qual a
transmisso familiar, com suas falhas e imperfeies, continue vigorando. Ao exceder o
ns no modo de gozo singular do qual cada pai e cada me do testemunho na
transmisso, a famlia tende a continuar abrindo furos na consistncia e na assepsia
previstas nos discursos normativos e ortopdicos sobre a parentalidade.

153

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