Familia Parentalidade e Epoca
Familia Parentalidade e Epoca
Familia Parentalidade e Epoca
FACULDADE DE EDUCAO
SO PAULO
2012
So Paulo
2012
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo
156.42
T314f
.
1. Psicanlise 2. Famlia 3. Parentalidade 4. Sujeito 5.
Contemporaneidade 6. Educao I. Voltolini, Rinaldo, orient.
SO PAULO
2012
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Rinaldo Voltolini, pela confiana, pelo respeito e pela tranqilidade,
fundamentais para que eu pudesse suportar o tempo - to demorado! - de compreender,
e para que os achados surgissem nesta pesquisa.
A Caty Koltai, professora querida desde os tempos da graduao, pelas contribuies
preciosas e instigantes no exame de qualificao, decisivas para os destinos desta
pesquisa.
A querida Leda Bernardino, que testemunha um modo possvel de pensar a clnica e de
circular entre os psicanalistas e entre os profissionais de outras reas; amiga desde o
mestrado, leitora delicada e dedicada no exame de qualificao.
A Ins Loureiro, pela disponibilidade, pela generosidade e pelo cuidado
impressionantes na leitura e nos comentrios deste trabalho e por me fazer lembrar
porque escolhi a pesquisa acadmica.
A minha me, Marta, de quem herdei, no sem relutar um pouco, algumas inquietaes
e o especial interesse por aqueles que tm um brilho no olhar.
A meu pai, Rogrio, que faz tanta diferena na minha vida, que me acompanha sempre
de perto.
A Luisa, que me mostrou desde os primeiros dias de vida como uma filha pode ser to
amada e to diferente da me, e que tem me mostrado que possvel inventar a prpria
famlia de outro jeito, do seu jeito, que eu respeito e admiro.
Aos meus irmos Andr, Fernando, Ricardo e Julia, to queridos! A Maria Helena, que
faz parte da minha famlia desde sempre. A Dani, minha cunhada querida, Ricardo, meu
primeiro sobrinho, e Dudu, o mais novo integrante da famlia. E a Bia, cunhada-parceira
em tantos momentos.
A Renata Petri, pela amizade preciosa, construda aos poucos, fortalecida ao longo dos
anos.
A Luciana Pires, amiga-irm, que parte da minha histria, por tantos bons momentos
partilhados.
A Luciana Annunziata Lopes, pela amizade de uma vida inteira.
A Ilana Katz Fragelli amiga querida, comadre, e que, junto com Guto, Miguel e Deco,
tambm minha famlia.
A Dbora Valentini, por sua admirvel integridade, por seu modo de mostrar-se amiga.
A Heloisa Prado, por me mostrar com tanta preciso como posio tica e estilo podem
andar to bem juntos.
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RESUMO
TEPERMAN, D. W. Famlia, parentalidade e poca: um ns que no existe. Tese
(doutorado). Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.
ABSTRACT
TEPERMAN, D. W. Family, parenting and age: an us that does not exist. Thesis
(doctorate). Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.
Parenting is a neologism that has been achieving consistency over the last years and
that tends to replace the term family. It is possible to identify this concern in various
authors, from different disciplines, extracting different consequences from the possible
replacement of the term. Would there actually be such an aspiration in this new term
and in its underlying speeches? Would such an aspiration be sustainable when one
understands that, at the present times, the family experiences an unprecedented crisis?
Would parenting implicate a risk for the familial transmission? Questioning such issues
was the starting point from which I initiated this research. The initial unease was
provoked by the understanding that the new term would be inseparable from the
intervention of the specialist in the sphere of the family and by the mistrust that it
would secure its basis in the lack of differentiation and asepsis in the familial
transmission. The investigation of the origins of this neologism, of its underlying
speeches and of the practices that it authorizes has enabled the identification of three
streams through which it appears today: how to nominate the parent, as a means to
handle the changes in the sphere of the family and shaped as a public speech conveyed
by the family specialist. To evaluate each of these aspects individually, to recognize the
consistency that the term parenting continues to achieve in current times as
symptomatic of todays scenario, and to circumscribe the family in its function of
residue - reduced to the minimum necessary conditions for existence of subject - was
fundamental in order to establish the basis for the possible articulations among family,
parenting and age. The roadmap that was accomplished allow us to state that the family
as residue, grounded in the motherhood and fatherhood functions and in the manners by
which father and mother are shaped as semblants, is side by side with the structure:
needed, however dependent on what relates to contingency, that is, it is uncompleted by
the features, positions and values that prevail in social speech in the social ties in a
certain age, and by the singular position of the subjects implicated in each of these
functions. Psychoanalysis, as it tilts between the universal and the homogeneous that are
10
driven by the speeches about parenting and the singularity that is inherent to the notion
of family as residue, report the impossibility of covering the lack (condensed in the
lacanian aphorism there is no sexual relationship). In such a way that FOR EVERY
ONE inherent to the speeches about parenting, the role of psychoanalysis is to respond
by resending each family to its singularity. Nevertheless, a deadlock is generated when
parenting is presented necessarily annihilating the family in its condition of residue,
implicating in risk for the children, for the sons of parenting. The encounter with the
book The Day in which my father went silent, from Virginie Linhart - mainly the
amazement in the face of the consistency of the statement the children from 68 -, has
enabled this investigation to distance from generic or universalized manners of
comprehension, to which the researched theme has proved to be particularly sensitive. It
has also enabled a positioning in the face of the authors, who, grounded in the sphere of
the family, foreshadow a dramatic future for the subject. Throughout this research I
believe I have gathered the elements to question the validity of statements such as the
sons of parenting, and one of the findings to which direction I was led by the
amazement is that an age does not shape an us with the subjects that are part of them.
As it exceeds the us in the singular jouissance from which each father and each
mother provide their testimony in the transmission, the family is inclined to continue to
generate leaks in the consistency and in the asepsis foreseen in the normative and
orthopedic speeches about parenting.
Key words: psychoanalysis, family, parenting, subject, contemporaneousness,
education.
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SUMRIO
INTRODUO.....................................................................................................................14
CAPTULO 1 A FAMLIA NA PSICANLISE DE ORIENTAO LACANIANA.....19
1.1 - UMA PRIMEIRA FORMULAO SOBRE A FAMLIA: O LACAN DE 1938............................20
1.2 FAMLIA, ANTROPOLOGIA E PSICANLISE....................................................................26
1.3 - A INFLUNCIA DE DURKHEIM ......................................................................................32
1. 4 - A TESE DO DECLNIO DA IMAGO PATERNA E SUAS CONSEQNCIAS.............................37
1.5 - DO PAI DE FAMLIA AO PAI COMO RESDUO: AS DECLINAES DO PAI EM LACAN .........44
1.5.1- A QUESTO DO PAI: UM TERRENO MOVEDIO ............................................................45
1.5.2 AS DECLINAES DO PAI EM LACAN ........................................................................46
1.5.3 - O PAI DE FREUD UM PAI MORTO .............................................................................49
1.5.4 - O NOME-DO-PAI.......................................................................................................53
1.5.5- MAIS ALM DO NOME-DO-PAI ...................................................................................58
1.6 OS COMPLEXOS FAMILIARES ......................................................................................62
1.7 - A FAMLIA COMO RESDUO ..........................................................................................68
12
13
Introduo
14
esses pais, essas famlias, as famlias de hoje, etc. Assim sendo, uma preocupao
que estar na base dessa investigao a de como abordar tal temtica sem recair em
enunciados como esses. No captulo 2, alm de realizar um levantamento dos estudos
sobre a famlia na atualidade, procurarei destacar como os psicanalistas se situam diante
da demanda, cada vez mais insistente, de marcar uma posio diante das novas formas
pelas quais a famlia tem reivindicado legitimidade.
Ao deter-me na possvel tendncia de o termo parentalidade vir a substituir o termo
famlia, procurarei isolar a famlia em sua condio mnima para a transmisso dos
elementos necessrios para que haja sujeito, o que o leitor encontrar traduzido nos
termos de a famlia como resduo.
a particularidade do modo como a psicanlise de orientao lacaniana toma a famlia
como objeto que permite localizar a sua funo de resduo, assim como afirmar que a
famlia resiste, mesmo que se apresente na atualidade por meio de novas configuraes.
Ao longo do captulo 1, procurarei circunscrever a famlia em sua funo de resduo.
Com isso, pretendo discriminar a psicanlise dos dispositivos de normalizao e separla das disciplinas que preconizam que determinada forma de famlia mais adequada
para a educao das crianas. Ressaltarei tambm que no existe uma forma de
organizao familiar ideal que possa garantir as condies necessrias para a
constituio do sujeito e que o modelo de famlia nuclear nunca foi sinnimo de
normalidade.
O percurso realizado ao circunscrever a famlia em sua funo de resduo visar
esvaziar a perspectiva de que existiria um bom modo de ser pai ou de ser me, e, mais
que isso, destacar que a diferena sexual, assim como as faltas ou imperfeies, so
imprescindveis na transmisso familiar. Contudo, a parentalidade parece comportar um
ideal: apresenta-se investida por pais competentes, implicados em um modo de vida
voltado educao das crianas e despojado dos dramas inerentes famlia. O
especialista, ao oferecer-se como indispensvel e dispor de pautas para o exerccio das
funes parentais, incute nos pais na idia de que existe um modo, um bom modo, de
TODOS eles se converterem em bons pais. Ser que a crescente consistncia que o
neologismo parentalidade vem adquirindo na atualidade poder perturbar a
15
16
Em relao a esse ponto, Sauret (1998) lembra duas observaes de Lacan. A primeira
um convite a examinar as instituies que recebem crianas, de modo a localizar a
forma pela qual o campo social entende tratar o sujeito.
A segunda uma denncia dos prprios psicanalistas por, no apenas
no terem sabido impor a concepo do sujeito que decorre da
descoberta freudiana, mas ainda por se terem feito os cmplices de
uma psicologizao, e at mesmo de uma mitologizao dos
indivduos, que entrega estes ltimos de mos e ps atados ao
tratamento a que o campo social entende submet-los (p. 61).
17
para
sujeito.
18
19
adultos geradores que asseguram sua funo. J nas primeiras linhas possvel
destacar a especificidade por meio da qual a famlia se institui como um objeto de
estudo para a psicanlise, quando se volta para a famlia, interessa-lhe destacar o lugar
dos adultos geradores que asseguram sua funo. Esse ponto evidenciado em um
escrito posterior, de 1969, to diminuto quanto importante na obra de Lacan, Nota sobre
a criana, no qual circunscreve a funo de resduo sustentada pela famlia conjugal,
responsvel por uma transmisso irredutvel, assegurada pelo exerccio das funes
materna e paterna. Retornarei a esse escrito mais adiante.
Lacan destaca ainda que as relaes que se estabelecem entre gerao e geradores
no interessam psicanlise por seu carter biolgico, mas sim pelo que se apresenta
como continuidade psquica; sua inteno na poca organizar o campo da famlia,
de modo a afastar a concepo psicanaltica da famlia definitivamente do
acontecimento biolgico. Posteriormente, na Nota sobre a criana, Lacan enftico ao
conduzir o leitor a no confundir as funes parentais com a satisfao das
necessidades.
No texto de 1938, j possvel antever que a funo que Lacan atribui aos adultos
geradores no tem um carter biolgico, mas social, cultural. Nesse sentido, Peusner
(2009) e Miller (1984) destacam o termo economia paradoxal dos instintos. O
paradoxal introduzido neste contexto visa a afastar toda e qualquer determinao
biolgica; o termo comportamentos adaptativos de variedade infinita tambm habilita
a mesma leitura, assim como a afirmao de que as instncias culturais dominam as
naturais. Com isso, j no segundo pargrafo do referido escrito, Lacan situa a
especificidade da espcie humana.
Miller (2007) acrescenta o seguinte comentrio acerca do termo economia paradoxal
dos instintos: Os instintos so, na espcie humana, tributrios das modificaes
paradoxais das necessidades (p. 4). No seu comentrio sobre Os Complexos
Familiares, Miller (1984) destaca o modo como Lacan extrai o funcionamento
instintivo da condio do ser falante, centrando-se nos complexos, formas dominadas
pelos fatores culturais, traduzindo da seguinte forma o domnio das instncias culturais
sobre as naturais: O que uma maneira de dizer que, no homem, a lngua, por meio do
21
significante, domina tudo aquilo que natural e que o que se passa na famlia
humana (MILLER, 2007, p. 4).
Nesse ponto, no posso deixar de me deter para comentar uma publicao
absolutamente particular, inteligente e irnica, ela resvala o tempo todo na radicalidade
daquilo que nos separa do mundo instintivo dos animais, pelo modo como, ao falar e
suportar o mal-entendido que este ato implica, uma perda irreparvel se consuma. Tratase do livro em quadrinhos O gato do rabino, de Joann Sfar. Ainda que o livro, como o
ttulo indica, se concentre no judasmo o gato do rabino quer fazer Bar-Mitzvah e
persegue o rabino com insistentes indagaes e questionamentos que justificam esta
demanda , toca naquilo que nos arranca da determinao biolgica: o gato do rabino
engole o papagaio da famlia e comea a falar. Mas o gato do rabino no se contenta em
repetir algumas palavras tolamente, como fazia o papagaio, ele comea a falar. E, ao
falar, torna-se to humano que inclusive sonha: desde que passei a falar, tudo mudou,
tenho pesadelos (SFAR, 2006, p.31). E em suas aventuras junto ao bicho homem,
passa a sentir compaixo:
Desde que passei a falar, virei um bicho esquisito. Eis que sinto
simpatia por esse humano que me desfere pontaps. Enquanto o
achava intransigente e virtuoso, eu o odiava. A partir do momento em
que sei que tem duas caras e hipcrita, que o vejo se debater entre
seus hormnios e suas convices, amo-o (SFAR, 2006, p. 48).
23
24
A noo de relao sinaliza um ajuste perfeito. O aforismo no h relao sexual aponta justamente
para a impossibilidade de conjugar sem resto. Penso que essa formulao aparentemente enigmtica e
provocativa - como costumam ser as formulaes de Lacan - pode e deve ser tratada sem rodeios uma vez
que se declina como estrutural, e por isso, incontornvel, [...] j que uma relao sexual faz falta em
todas as formas de sociedade (LACAN, 1974, p. 13).
25
Lacan, em seu escrito de 1938, detalha o segundo ponto que destaquei anteriormente - a
famlia como uma estrutura hierrquica, que prevalece na primeira educao, na
represso dos instintos, na aquisio da lngua materna, desempenhando um papel
fundamental na transmisso da cultura - marcando que outros grupos sociais se ocupam
de aspectos como as tradies espirituais, a manuteno dos ritos e dos costumes, a
conservao das tcnicas e do patrimnio, mas [...] a famlia prevalece na primeira
educao, na represso dos instintos, na aquisio da lngua acertadamente chamada
materna (LACAN, 1938, p.13); acrescenta ainda que a famlia preside os processos
fundamentais do desenvolvimento psquico, ultrapassando, dessa forma, em sua
transmisso, os limites da conscincia.
Continuando no texto de 1938, encontramos a seguinte definio de famlia: [...] rgo
privilegiado desta coao do adulto sobre a criana, coao qual o homem deve uma
etapa original e as bases arcaicas de sua formao moral (p. 12). Lacan toca no ponto
em que a famlia atualiza em seu ncleo uma funo cultural, uma funo civilizatria,
mas ao mesmo tempo abre uma brecha para o entendimento de que o modo como cada
famlia o faz e o modo pelo qual essa transmisso se atualiza em cada sujeito
absolutamente singular. Esses aspectos tornam-se mais evidentes quando o autor
introduz a noo de constelao familiar e podem ser reconhecidos como eixos centrais
para o que, mais adiante, ser formulado em termos da famlia como resduo.
1.2 Famlia, antropologia e psicanlise
Destacar a famlia em sua funo de resduo, ou seja, em sua condio mnima
necessria para que haja sujeito implica arranc-la do contexto das determinaes
biolgicas, mas no fazer o mesmo com suas determinaes culturais. Se Durkheim
influenciou o Lacan de 1938, a partir de 1953 a antropologia de Lvi-Strauss, mais
particularmente seu estudo sobre as estruturas elementares de parentesco, inspirou
fortemente sua produo. Para Lacan, a psicanlise s teria a se beneficiar ao
estabelecer uma equivalncia com os termos da antropologia, sobretudo no que tange ao
incesto e aliana e a troca (LACAN, 1953c). Os encontros da psicanlise lacaniana
26
27
Para os Chukchee, uma m famlia define-se como uma famlia isolada sem irmo e sem primo
(BOGORAS apud LVI-STRAUSS, 2008, p. 526) Lvi-Strauss recorre a esse exemplo para comentar as
respostas s perguntas que Margaret Mead fez aos Arapeshes sobre eventuais infraes s proibies do
casamento: mas como, casar-te com a tua irm, no queres um cunhado?. Com isso o autor localizou as
bases para afirmar que o incesto socialmente absurdo antes de ser moralmente culpvel. A exclamao
incrdula arrancada ao informante: Mas ento no queres ter cunhado? fornece a regra de ouro do estado
da sociedade (LVI-STRAUSS, 2008, p. 526).
28
Reproduzo a seguir o modo como Lacan traduz seu retorno a Freud, antecipando ao leitor que retomarei
esse tema mais adiante: O sentido de um retorno a Freud um retorno ao sentido de Freud. E o sentido
do que Freud disse pode ser comunicado a qualquer um, porque, mesmo dirigido a todos, cada um estar
interessado e basta uma palavra para fazer senti-lo: a descoberta de Freud questiona a verdade, e no h
ningum que no seja pessoalmente afetado pela verdade (LACAN, 1955, p. 406).
29
30
possvel extrair desse trecho o modo como Lacan se permite articular estrutura e
subjetividade, ao situar a lgica subjetiva implicada no dipo examinado em termos das
estruturas de parentesco, tema que retomarei no prximo captulo.
31
Vale destacar que, conforme Lacan avana em seu ensino em direo ao real5 como o
impossvel de ser simbolizado, as divergncias com o antroplogo revelam-se mais
marcadamente. O parentesco entre as disciplinas no se rompe - apesar de o caminho
empreendido por Lacan lev-lo em direo ao real, a uma reviso da primazia do
simblico - pois ele se estabelece a partir de uma afinidade que est na base das duas.
Ambas, [...] nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, formam por certo
um perptuo princpio de inquietude, de retificao, de crtica, de contestao do que
por ventura pode ter parecido, por outro lado, definitivamente adquirido (FOUCAULT,
1966, apud KOLTAI, 2010).
Para encerrar este item dedicado a circunscrever a famlia a partir dos encontros entre a
psicanlise e a antropologia, um pequeno trecho em que ouso reconhecer um LviStrauss lacaniano ao situar a iluso humana de driblar a falta quando esta resulta
sempre incontornvel: At nossos dias a humanidade sonhou apreender e fixar este
instante fugitivo em que foi permitido acreditar ser possvel enganar a lei da troca,
ganhar sem perder, gozar sem partilhar (LVI-STRAUSS, 2008, p. 537).
1.3 - A influncia de Durkheim
O grupo reduzido formado pela famlia moderna no se apresenta,
com efeito, ao exame, como uma simplificao, mas antes como uma
contrao da instituio familiar [...] Esse sentido dado
precisamente quando, luz desse exame comparativo, se apreende o
remanejamento profundo que conduziu a instituio familiar sua
forma atual; reconhece-se, ao mesmo tempo, que preciso atribu-lo
influncia prevalente que assume aqui o casamento, instituio que
devemos distinguir da famlia. Da a excelncia do termo famlia
conjugal, pelo qual Durkheim a designa (LACAN, 1938, p. 16).
O pargrafo acima um dos dois nicos momentos em que Lacan cita Durkheim em seu
escrito de 1938. Ainda que Lacan no o explicite, o socilogo francs representou uma
forte influncia na sua argumentao terica referente famlia. Peusner (2009) relata
5
O Real no se confunde com o termo realidade. Trata-se de um termo inventado por Lacan para fazer
referncia ao que escapa, ao que resiste simbolizao, ao que no cessa de no se inscrever. O
conceito de Real organiza a teoria e a clnica lacaniana e no fcil de ser apreendido, Lacan o traduziu
de inmeras formas ao longo de seu ensino. Kaufmann (1996) o define da seguinte maneira: Ao Real
ser conferido o estatuto de vazio, de impossvel de ser representado, situado fora de todo campo
demarcvel (p. 445). Em A Terceira (1974), Lacan afirma que o real o que retorna sempre ao mesmo
lugar. O acento deve ser colocado no retorna. o lugar que ele descobre, o lugar do semblante (p. 9).
32
Tal a zona central da famlia moderna (DURKHEIM, 1892, apud PEUSNER, 2009, p. 125).
33
Para corroborar essa afirmao, recorre noo de famlia como continuidade psquica
entre as geraes, formulada por Lacan em 38. Mas, convenhamos, Durkheim se refere
a uma dependncia jurdica, prope uma leitura sociolgica da famlia e, nesse contexto,
sua afirmao no s procede como partilhada por outros pesquisadores pois, entre as
principais mudanas que implicaram a passagem de um modelo tradicional de famlia
(leia-se patriarcal) para a famlia moderna, esto o fortalecimento do lao conjugal e a
participao crescente do Estado7 no campo da famlia.
neste ponto que o risco preconizado por Peusner parece descabido, j que Durkheim
toma a famlia como objeto do ponto de vista jurdico, ocupando-se da evoluo do
direito que a regula. Lacan toma emprestado de Durkheim a concepo de famlia
conjugal, adotando o entendimento deste de que ela seria o resultado de uma contrao
da instituio familiar; entretanto, nem por isso a reduz a um fenmeno de menor
complexidade ou a um fato biolgico.
Ainda descrevendo as particularidades da famlia conjugal, Durkheim faz o seguinte
comentrio:Estamos ento, na presena de um novo tipo de famlia. Posto que os
nicos elementos permanentes nela so o marido e a esposa, uma vez que todas as
crianas deixam cedo ou tarde a casa paterna, proponho cham-la famlia conjugal
(DURKHEIM, 1892, apud PEUSNER, 2009, p. 124, traduo livre).
A originalidade do comentrio reside no fato de o lao conjugal ser definido como o que
resta dessa modalidade de famlia, enquanto outros autores que abordam as mudanas
7
O autor situa duas maneiras pelas quais o Estado pode intervir: ao exercer o direito de correo do pai e
ao requerer a interdio do adulto.
34
experimentadas pela famlia do ponto de vista histrico situam o lao conjugal como o
que a funda. Contudo, e ento talvez concorde com Durkheim, mas talvez por motivos
alheios aos que ele apontaria, penso o lao conjugal como aquele que funda e tambm
como aquele que resta, no se reduzindo aos laos parentais, testemunhando um desejo
que est para alm dos filhos: transmisso necessria e fundante da subjetividade.
Durkheim pontua, na sequncia, outra particularidade deste modelo de famlia: a
desestabilizao do coletivismo familiar8. O situado aqui pelo autor o prenncio da
sobreposio, na famlia, das necessidades individuais sobre as do coletivo? O seguinte
trecho comprova essa hiptese e a previso de Durkheim em relao ao lao social que
passaria a vigorar e a predominar em um futuro prximo: Pode ento ser certo que tal
apagamento do coletivismo que caracteriza nosso direito domstico no seja um
acidente passageiro, mas pelo contrrio, se acentuar cada vez em maior medida [...]
(DURKHEIM, 1892 apud PEUSNER, 2009, p. 128, traduo livre).
A noo de coletivismo uma noo jurdica, relativa aos bens comuns a uma famlia.
O fim do coletivismo est associado ao fato de que as coisas deixaram de ser um
cimento da sociedade domstica, de forma que esta se tornou absolutamente pessoal.
Outrora, os laos que derivavam das coisas prevaleciam sobre os que surgiam das
pessoas. Durkheim parece se ressentir do fato de que a famlia deixe de ser regulada
pela manuteno do patrimnio e passe a ser edificada em torno dos sentimentos
afetivos consumados no lao conjugal. O coletivismo que se retira da sociedade
domstica passa a concentrar-se na sociedade matrimonial
Para finalizar o comentrio sobre o texto de Durkheim de 1892, vejamos como ele o
conclui:
Tais so as concluses gerais que se depreendem deste curso. O
progresso da famlia foi o de concentrar-se e personalizar-se. A
famlia se contrai cada vez mais; ao mesmo tempo as relaes nela
tomam um maior carter pessoal devido ao apagamento progressivo
do coletivismo domstico. Enquanto a famlia perde terreno, o
8
Foi um grupo de historiadores ingleses que, na dcada de 70, questionou as bases para a lei de contrao
familiar, postulada por Durkheim. Para explicar a estrutura da famlia e sua extenso, os socilogos
levavam em conta as condies demogrficas e as condies jurdicas, particularmente a herana. Neste
sentido, a idia de um comunismo familiar, ou seja, a vigncia de grandes famlias em um perodo
anterior no foi absorvida como natural pelos ingleses dado que na Inglaterra prevalecia a diviso
igualitria entre os herdeiros e uma tradio de organizao restrita famlia (ZAFIROPOULOS, 2002).
35
Proponho, ento, que desconhecer o problema terico implcito (a concepo e construo da noo de
famlia conjugal), produz como efeito atrelar uma concepo sociolgica, biolgica e ideolgica ao
campo do fazer clnico (PEUSNER, 2009, p. 122, traduo livre).
36
Em Chemama (1995), imago definida como termo introduzido por C.G. Jung (1911) para designar
uma representao tal como o pai (imago paterna) ou a me (imago materna), que se fixa no inconsciente
do sujeito e ulteriormente orienta sua conduta e seu modo de apreenso do outro. A imago elaborada em
uma relao intersubjetiva, podendo ser deformada em relao realidade (p. 105). De acordo com
Laplanche e Pontalis (1998), a imago e o complexo so noes prximas, relacionam-se ambas com o
mesmo domnio - as relaes da criana com o seu meio familiar e social. Mas o complexo designa o
efeito sobre o sujeito da situao interpessoal no seu conjunto; a imago designa uma sobrevivncia
imaginria deste ou daquele participante dessa situao (p. 235).
11
Apenas o sublime acaso do gnio talvez no explique que tenha sido em Viena ento centro de um
Estado que era o melting-pot das formas familiares mais diversas, das mais arcaicas s mais evoludas,
dos ltimos agrupamentos agnticos dos camponeses eslavos s formas mais decadentes do casal instvel,
passando pelos paternalismos feudais e mercantis - que um filho do patriarcado judeu tenha imaginado o
complexo de dipo. Seja como for, so as formas de neuroses dominantes no final do ltimo sculo que
revelaram que elas estavam intimamente dependentes das condies da famlia (LACAN, 1938, p. 60).
12
O tema da carncia do pai ser examinado no prximo item.
37
38
No preciso ir mais longe para situar o ponto sobre o qual incide a analogia proposta
por Zafiropoulos: ao transferir o romance familiar do neurtico ao campo da sociologia,
o autor localiza em sua base uma nostalgia e uma exaltao do pai.
Vejamos agora a base terica que permite a Zafiropoulos identificar o erro
durkheimiano e lanar sua interpretao de que a lei da contrao familiar seria
resultado do romance familiar dos socilogos. A lei de contrao da estrutura
familiar que fundamenta a noo durkheimiana de famlia conjugal foi questionada
na dcada de 70 por um grupo de historiadores de Cambridge:
Que as famlias de antigamente eram pouco numerosas de quatro a
seis pessoas, em mdia -, e isso no s na Inglaterra, mas em toda
Europa. Que, ademais, a maioria destas famlias eram de tipo
conjugal, que as famlias ampliadas eram ainda menos freqentes
que em nossos dias e que quase nunca se encontravam a famlia
troncal13 e outros tipos de famlias polinucleares (LASLETT, 1972,
apud ZAFIROPOULOS, 2002, p. 139, traduo livre).
Le Play descrevia uma famlia troncal ideal tpica como aquela que reunia um grupo de pelo menos 18
pessoas, isso porque supunha que em um perodo de vinte e cinco anos, as mes tivessem at 20 filhos,
qualquer que fosse seu meio social (ZAFIROPOULOS, 2002).
39
40
Localizar mudanas em curso no discurso social de uma poca, o que Lacan em 1953
define como alcanar a subjetividade de sua poca, um trabalho delicado e necessrio,
que no se confunde com estabelecer uma relao linear, causal, entre histria e
subjetividade, conforme veremos no prximo captulo.
Zafiropoulos (2008) resume da seguinte maneira quatro ideias essenciais decorrentes da
posio assumida por Lacan na dcada de 1930:
a bancarrota do pai de famlia um fato comprovado;
o declnio da instituio familiar estaria na origem da inveno da psicanlise;
Freud estaria empenhado em revalorizar o pai;
Lacan, em seu retorno a Freud, aspiraria reintroduzir a imagem do pai como essencial
para a organizao da famlia e para a estruturao subjetiva das geraes.
E conclui:
No basta, com efeito, repetir simplesmente que a imago paterna e
mais em geral o grupo familiar est em declnio para dar conta da
atualidade de nossos mal-estares modernos (e inclusive de nossos
estados fronteirios); ademais, h que saber antropolgica e
clinicamente de que se fala. Tambm preciso saber sobre que fonte
nos apoiamos para diagnosticar com certeza a causa de nossos
infortnios e at da inveno da psicanlise, nada menos
(ZAFIROPOULOS, 2002, p. 28, traduo livre).
41
reconhecer nela tambm uma nostlgica dos tempos passados. Numa destas noites
maravilhosas, tropea com um Degas nostlgico do Renascimento. S ento nosso
mocinho retorna ao presente e passa a encarar Paris luz do dia, o que, afinal de contas,
no to mau assim!
Como vimos, a leitura de Os complexos familiares na formao do indivduo permite
identificar a importncia que Lacan conferia ao grupo familiar na estruturao do
sujeito, assim como pressentir o valor que a funo do pai comearia a assumir nos seus
escritos. Zafiropoulos destaca que, naquela poca, Lacan acreditava ser maior a
fecundidade do complexo de dipo se o valor do pai na famlia tambm o fosse.
Conforme veremos a seguir, no h vestgios dessa relao direta entre o lugar do pai na
famlia e a operatividade da funo paterna no Lacan que veio depois, de modo que no
encontro motivos para que vrios autores e leitores de Lacan tenham permanecido
presos a essa verso. Tal fato importante dado que a posio assumida por Lacan em
1938 sobre o declnio da imago social do pai foi o que lhe valeu a crtica de familiarista.
No entanto, cabe ponderar que Lacan, em 1938, ainda no dispunha de importantes
formulaes para situar com maior clareza as diferenas entre o pai de famlia e o pai
em sua funo de resduo - trabalho ao qual se dedicou com afinco em seus escritos e
seminrios -, o que poderia ter levado seus leitores a confundir tais instncias.
Alm de tomar como inquestionvel o erro detectado pela escola de Cambridge,
Zafiropoulos localiza outro erro, que seria uma decorrncia do primeiro, mas cuja
extenso seria maior para o referencial freudolacaniano. Afirma que a declinao
histrica do valor social do pai de famlia falsa, pois assim como a famlia , desde
sempre lbil, o valor do pai e o seu lugar na famlia tambm variam de acordo com o
perodo histrico ou a localizao geogrfica.
Para concluir, os pais de escasso valor social e inclusive a figura do
pai humilhado no datam desde logo da Viena finisecular nem da
Frana da dcada de 1930, mas para descrever justamente o rosto
desses pais humilhados desde sempre preciso, alm disso, colocar
em relevo a multiplicidade de posturas paternas atualizadas por cada
poca (ZAFIROPOULOS, 2002, p. 170, traduo livre).
42
15
Esse tema tratado com rigor e profundidade por Elizabeth Roudinesco no captulo 1 Deus pai, em A
famlia em desordem.
43
produo daqueles, assim como dos que neles encontraram inspirao, como o Lacan de
1938.
A leitura do texto de Durkheim que serviu como referncia para Lacan, o exame do
texto de Lacan de 38 e o estudo da crtica de Zafiropoulos me permitem afirmar que
sim, Lacan em 38 d margem para a psicanlise familiarista, para uma viso linear da
relao entre o pai na sociedade e o pai na famlia. Mas no se encontra vestgio dessas
formulaes no ensinamento de Lacan que se sucede. Ele arranca definitivamente a
funo do pai de sua presena na famlia. Vale lembrar que importantes aspectos
destacados pelo autor em relao funo da famlia (adultos geradores) esto na base
para o que vir depois em termos da famlia como resduo. O Lacan de 38 j aceitava o
jogo das evolues culturais e se deixava trabalhar por elas, no se afligia com o
afrouxamento dos laos familiares e, assim, fazia resistncia leitura de que as
mudanas na sociedade equivaleriam a uma crise na famlia.
44
45
16
46
Uma toro possvel dessa definio leva a tomar declinar como deixar cair, sem,
necessariamente, enfraquecer. Da acepo gramatical, destaco terminao casual
especfica necessria para indicar as diferentes funes do termo. Veremos se e
como essas acepes e esse modo de l-las permitem tratar o movedio do pai em Lacan
como declinaes do pai. Tal a proposta de Srgio Laia em Declinaes do pai em
Lacan, artigo no qual recorre ao latim para precisar o uso particular que prope do
termo declinao: declinar um nome significa enunciar em determinada ordem as
diversas formas que ele reveste segundo as funes que desempenha na frase, isto ,
enumerar os seus casos (RONI, 1980, apud LAIA, 2006, p. 41, grifo meu).
Retomar as declinaes do pai em Lacan no implica assumir um enfraquecimento do
pai. Como j fomos advertidos por Zafiropoulos e Tort, a assuno de um
enfraquecimento do pai levou rapidamente afirmao de sua carncia. No Seminrio
5, Lacan observa que no se sabe em que o pai carente, portanto, a falta paterna
permanece como enigmtica, contrapondo-se s perspectivas que sustentam um saber
sobre o que falta ao pai e que pretendem indicar como san-la. O clebre caso do
pequeno Hans exemplar de que um pai normal, presente e atencioso, pode falhar em
sua funo normalizadora. Assim, a carncia do pai no resultaria de sua falha no
simblico ou no enfraquecimento da lei, o que constituiria uma verso imaginarizada do
pai, mas de uma demisso do pai Real com relao ao desejo da me.
Vale lembrar que o pai simblico o pai morto (como ser) e conservado (como
significante). O pai imaginrio aquele com o qual se est em rivalidade fraterna, e o
pai Real aquele que intervm como agente da castrao (PORGE, 1998). No
seminrio 17 (1969/70), Lacan no s reafirma o pai Real como agente da castrao
como contundente ao afirmar que no h causa do desejo que no seja produto dessa
operao.
Assim como o tema da carncia paterna ganha consistncia nos discursos psis
convertendo-se em prticas de chamado ao pai (em orientaes concretas relacionadas
presena fsica do pai ou s atividades que deve empreender junto aos filhos para
efetivar sua funo), o tema da autoridade paterna revela-se tambm alvo de uma
certa confuso. Nesta, atribui-se a suposta crise na famlia a uma crise da autoridade
paterna, logo, a restaurao dessa autoridade habilitaria o pai ao exerccio de sua
47
Definem-se como semblantes os fenmenos que nos fazem crer que h algo ali onde no h. O
semblante nos faz crer que h realidade ou verdade onde h o real. Dessa forma, sua funo, na vida e na
anlise, velar o real, ainda que por vezes vacile e toque o real, desvelando-o. A relao entre os sexos
a experincia na qual o real mais se presentifica. A no-existncia da relao sexual seria uma das
verses do real, e justamente o que um semblante se esfora por subtrair, mesmo que acabe produzindo
oscilaes entre o velar e o desvelar.
48
localizo na letra de Lacan sua posio a respeito: O mito de dipo faz espalhafato
porque, supostamente, instaura a primazia do pai, que seria uma espcie de reflexo
patriarcal. Eu gostaria de faz-los perceber por que, pelo menos para mim, ele de modo
algum parece ser um reflexo patriarcal, longe disso (LACAN, 1971, p. 162).
No que tange ao movedio do pai, o tema da autoridade paterna ganha nova
consistncia imaginria quando se atribui uma nova razo passagem da autoridade
paterna para a autoridade parental, desta feita sustentada numa fico jurdica, para
justificar a carncia do pai em nossa poca, conforme veremos no captulo 2.
Se um dos modos de abordar a questo do pai declinando-o em Lacan, Ritvo (2000)
prope uma leitura tambm interessante do modo como Lacan, de uma forma geral, mas
tomado pelo autor a partir do conceito de sintoma, trabalhava um conceito ao longo de
seu ensino. A propsito das deformaes s quais Lacan submete, em seus sucessivos
seminrios, a noo de sintoma, Ritvo diz que elas no devem ser entendidas como
substituies ou complementaridades, mas sim como suplementaridade, [...] ou seja,
cada determinao tenta resolver um problema, mas ao resolver o problema que a
determinao anterior no havia conseguido, provoca outro. Isso quer dizer que, de
algum modo, o conceito s se fecha em torno de seu prprio vazio (p 11.). Veremos a
seguir como, no que tange funo paterna, o pai como morto passa a criar problema
quando Lacan formula a noo de pai Real.
1.5.3 - O pai de Freud um pai morto
A questo do pai ocupou Freud do incio ao fim de sua obra. Os trs mitos aos quais se
dedicou podem ser considerados mitos do pai: dipo, Totem e tabu e Moiss e o
monotesmo. Lacan os retoma, principalmente os dois primeiros, destacando a morte do
pai como crucial para a psicanlise: A morte do pai. Todos sabem, com efeito, que
parece estar a a chave, o ponto sensvel de tudo o que se enuncia e no s a ttulo
mtico sobre aquilo com que a psicanlise lida (1969-70, p. 125).
No complexo de dipo o pai aquele que transmite a interdio do incesto. Pode-se
dizer que a funo do pai, aqui, articular o sujeito ao simblico. No centro do dipo
est a castrao, perda de gozo necessria entrada do sujeito na ordem simblica. A
49
Desfamiliarizar o dipo representa um esforo diante das crticas que se fez psicanlise de
condicionar o dipo s caractersticas da famlia burguesa-vitoriana dos tempos de Freud.
19
Em conferncia intitulada As interpretaes lacanianas do dipo freudiano, Brousse (1997) trata
dessas variaes do dipo retomando o caso do pequeno Hans e tira importantes conseqncias para a
clnica psicanaltica com crianas.
20
Caterina Koltai, em seu livro Totem e tabu, um mito freudiano, mostra que Freud oscila entre
apresentar o parricdio como um fato que ocorreu em um passado distante e foi recalcado e apresent-lo
como um fato imaginrio, que captura algo de essencial do real: a relao do pai com a lei.
50
Contudo, Lacan identifica uma invariante nesses dois mitos (dipo e Totem e tabu) e
dedica-se a examin-la: o assassinato do pai a condio de gozo.
Totem e tabu apresenta-se como o mito fundador da funo paterna. Havia uma horda
primitiva dirigida por um nico macho que gozava de todas as fmeas e que privava
seus filhos do acesso a qualquer uma delas. Um dia, os filhos se juntaram para matar o
pai. Uma vez o pai assassinado e seu lugar liberado, diante da rivalidade fraterna, os
filhos erigem uma lei ainda mais radical. De fato, se o pai, segundo a Lei, o pai
morto, esse o representado no Totem, ou no nome da lpide, ento s h um passo a
ser dado para dizer que o pai um significante e Lacan faz isso (VANIER, 2005, p.
66). Lacan d a esse significante o nome de Nome-do-Pai e situa a castrao no centro
de sua funo.
No centro do dipo est a castrao. A funo do pai de agente da castrao. A
castrao o que atinge o filho e se transmite de pai para filho. Vale marcar que, se a
metfora paterna implica uma perda de gozo, ao mesmo tempo autoriza o gozo-flico 21.
O pai, por natureza incerto, nomina cada filho ordenando-o em uma linhagem e
inscrevendo-o na diferena entre as geraes: O pai de fato o genitor. Mas, antes que
o saibamos de fonte segura, o nome do pai cria a funo do pai (LACAN, 1954a, p.
47).
Ainda que eu tenha feito a passagem por Totem e tabu de forma muito rpida, ficam as
referncias para que o leitor possa aprofundar-se. O que me importa destacar aqui que
em Totem e tabu, uma vez o pai morto que seus filhos podem gozar (em um Lacan
que se dedica a formular um mais alm da metfora paterna, veremos que um pai
vivo, sexuado e imperfeito que opera em sua funo de resduo).
Ao tomar o pai morto como equivalente ao gozo da me, Lacan faz uma transposio do
mito estrutura, tomando essa equivalncia como um operador estrutural. Mesmo
questionando o mito de Totem e tabu, o autor assinala a segregao intrnseca
fraternidade, na qual, quando estamos todos isolados juntos, estamos isolados do resto:
seja como for, eles se descobrem irmos, e indagamos em nome de qual segregao
21
O gozo flico um gozo limitado pela castrao, mas acessvel. Para Lacan, a castrao permite o
acesso a um gozo possvel (enquanto para Freud a castrao era o que impedia o gozo). O falo organiza o
corpo em torno de um rgo isolado pelo significante (VANIER, 2005, p. 92).
51
(1969/70, p. 121). A preocupao com a segregao, um trao de nossa poca estamos evidentemente numa poca em que a segregao, erght! (p. 120) - uma
constante no ensino de Lacan e retomada pelos seus leitores em suas anlises sobre o
mal-estar na atualidade. A segregao subjacente a um lao social no s
fundamentado em um ns, mas exacerbado neste ns, evidenciando um apagamento
da diferena em prol da semelhana. Essa temtica ser retomada no captulo 4.
O mito freudiano, pretendendo-se real, localiza na morte do pai a interdio do gozo.
Depreende-se da que pai morto= gozo impossvel. Ao propor um para alm do
dipo, Lacan conjuga o pai como um termo do impossvel. O mito seria dessa forma
um enunciado do impossvel, impossvel que Lacan credita linguagem uma vez que o
gozo est interditado a quem fala. Ou, dito de outro modo: toda formao humana tem
por essncia, e no por acaso, de refrear o gozo (LACAN, 1967, p. 362). A perda de
gozo se produz pela linguagem, decorrncia da condio humana, ou seja, decorre de
sermos animais capazes de fala, condio circunscrita por Lacan em termos de seres
falantes (condio que o gato do rabino viu-se fadado a ratificar uma vez que se
instituiu como ser falante). Creditar linguagem a perda de gozo necessria
subjetivao neg-la como tributria da funo paterna. Nesse sentido, a entrada na
linguagem decorre dos cuidados iniciais que o Outro preconiza com o filhote humano a
partir de seu desamparo inicial. Freud, j no Projeto de uma Psicologia se ocupava com
a ao especfica realizada pelo Outro Primordial, descrito no texto como Prximo
cuidador (Nebenmensch) como fundamental ao convocar o beb a inscrever-se no
universo da linguagem.
Aceder linguagem implica um consentimento (trata-se de uma escolha forada) em
uma perda. Sujeitar-se ao Outro, ao desejo do Outro, operao formulada por Lacan nos
termos da alienao, condio necessria para separar-se, em um segundo tempo
lgico. Alienar-se constitui uma escolha forada, ainda que esse termo encerre um
paradoxo: possvel escolher no se alienar, no se sujeitar linguagem? Tal deciso
excluiria a possibilidade do advento do indivduo como sujeito, o que remeteria
clnica do autismo. Importa aqui destacar que a linguagem o que faz sujeito, o que
Bernardino (2006) formula nos seguintes termos [...] a linguagem, esta estrutura, que
adquire a criana! (p. 25).
52
O termo escolha forada remete ao exemplo clssico de Lacan sobre a deciso diante
da ameaa do assaltante: A bolsa ou a vida!22. Pode-se escolher dar a bolsa e
permanecer com a vida (sempre com a perda a implicada), mas pode-se hesitar e, ao
tentar permanecer, perder a bolsa... e a vida! Ou bem, ainda que a bolsa permanea, j
no haver algum para usufruir disso em proveito de que a vida se perdeu...
A retomada do dipo, no seminrio 17, foi marcada por um esforo de Lacan em
separar a castrao do dipo, separ-la do pai, tom-la como real, como efeito da
linguagem. Veja-se que a interpretao freudiana do dipo faz equivaler o pai
castrao, vela que o pai castrado, ao se colocar o pai em posio de exceo por
causa de seu assassinato, vela-se a sua prpria castrao (BROUSSE, 1997, p. 72).
Esconde-se que a castrao vem de outro lugar que no do pai: a castrao passa a
instituir-se como uma funo da linguagem e no mais como uma funo do pai. Com
isso, h um deslocamento do dipo como traumtico para o traumtico inerente
inscrio do sujeito na ordem simblica, na linguagem, implicando sempre o real da
perda de gozo.
No h causa do desejo que no seja produto da operao da castrao. A castrao a
operao real introduzida pela incidncia do significante, seja ele qual for, na relao do
sexo. E bvio que ela determina o pai como esse real impossvel que dissemos
(LACAN, 1969/70, p. 135). Nesse sentido, se pai por causa de. (LACAN, 1969/70,
p.137).
1.5.4 - O Nome-do-Pai
O dipo freudiano foi interpretado por Lacan como metfora paterna: falei ento nesse
nvel sobre a metfora paterna. Nunca falei do Complexo de dipo a no ser desta
forma (LACAN, 169-70, p. 118). A metfora paterna consiste na substituio do
significante Desejo-da-Me pelo significante Nome-do-Pai. Ao introduzir o Nome-doPai, Lacan declina o pai reduzindo-o a um nome que no se confunde com traos
biogrficos sociais ou familiares de um pai. Na metfora paterna, os personagens que
compem a trama edipiana so desimaginarizados (h uma reduo do imaginrio ao
simblico). O pai um significante (Nome-do-Pai) e a funo paterna opera como
22
53
metfora - pela substituio de um significante por outro. Vale lembrar que a metfora
implica substituio e desaparecimento e, tambm, que haja um mais de sentido.
Retomando: ao desejo materno substitui-se o Nome-do-Pai (representante de um desejo
materno outro, no voltado para a criana). Dessa forma, assim como o pai, a me
tomada como um significante, o Desejo-da-Me23, que comporta uma incgnita (x): a
criana se pergunta sobre as idas e vindas da me. A criana interessa-se pelo desejo da
me, [...] na medida em que seu desejo o desejo do desejo da me (LACAN,
1957/58, p. 188). Esse desejo est no lugar de uma ausncia, de uma falta. O desejo da
me neste momento uma palavra para definir ausncia (BROUSSE, 1997, p. 54). O
seguinte trecho permite antever os riscos que Lacan preconiza para aqueles que
permanecem aprisionados no campo do desejo da me:
O papel da me o desejo da me. capital. O desejo da me no
algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia
sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocs esto a
me isso [...] o que se chama falo. o rolo que os pe a salvo se,
de repente, aquilo se fecha (LACAN, 1969/70, p. 118).
A metfora paterna consiste na substituio de uma ausncia por uma palavra que venha
tapar a ausncia e, no seu reaparecimento como uma proibio (pai morto e me
proibida). Aqui se atualiza a funo da lei, caracterizada pelo pai morto, portanto
simblico, a funo da falta ou ausncia caracterizada pela me proibida, portanto real,
e a funo significante encarnada pelo falo, o a mais que se produz como resultado da
operao metafrica. O pai assim o que permite ao sujeito sair do impasse imaginrio.
O dipo comporta uma funo de normalizao. Essa funo no incide apenas na
estrutura moral do sujeito, nem em suas relaes com a realidade: diz respeito
assuno de seu sexo (LACAN, 1957/58, p. 171), permitindo que o homem assuma o
tipo viril e que a mulher assuma um certo tipo feminino e se reconhea como mulher e
se identifique s suas funes de mulher (LACAN, 1957/58, p. 171). A norma
estabelecida graas interveno simblica do Nome-do-Pai sobre o Desejo-da-Me
a norma flica, que tenta regular a existncia da diferena sexual sem restringi-la
diferena entre os genitais masculino e feminino. A pertinncia norma flica deve-se
23
Pode-se ler no significante Desejo da me tanto a me como desejante quanto a me como desejada.
Veremos a seguir como para que o pai se apresente em sua prversion crucial que possa instituir a me
como objeto causa de seu desejo como homem.
54
55
mediado, o pai revelado na medida em que ele tem o falo (LACAN, 1957/58), d
me o que ela deseja. O falo se revela como o dom de um pai me de seu filho. O pai
d provas de que tem o falo e pode efetiv-lo para alm de um objeto de privao para a
me.
O falo se constitui como um objeto privilegiado na ordem simblica. A relao da
criana ao falo se estabelece uma vez este o objeto do desejo da me. Esta relao, no
entanto, mediada pela palavra do pai, e, nesse sentido, a metfora paterna o que
permite fundamentar o desejo inconsciente. E, mais que isso, a partir dessa operao
que um sujeito se localiza na diferena sexual. O falo no um pnis, um rgo ou um
objeto real, no uma fantasia nem um objeto. um significante (LACAN, 1953d).
Trata-se do mesmo significante para ambos os sexos, marcando a substituio do desejo
materno por um nome e tambm a substituio do rgo pelo semblante (LACAN,
1956/57).
A introduo do falo como significante da diferena sexual no ser
falante tem como conseqncia a passagem ao parecer, ao semblante.
No ser falante, o sexo organizado no apenas pela diferena
anatmica, que tem sua importncia, mas determinado pela
linguagem. O falo produz uma substituio do ser com o parecer. O
que implica que tudo que tem a ver com o sexo para os humanos est
do lado do semblante. Quando se fala em ser homem ou ser mulher
sempre do lado dos semblantes (BROUSSE, 1997, p . 59).
24
O n borromeu uma figura topolgica que articula os trs registros, simblico, imaginrio e real,
apresentada por Lacan pela primeira vez no seminrio Ou pior, aula de 9 de fevereiro de 1972. Ao se
cortar algum desses ns, os outros se veem imediatamente soltos, este n consiste estritamente no fato de
56
atribui ao dipo o valor de n: une a estrutura do sujeito sua histria singular. O dipo
se institui, portanto, no n entre estrutura e subjetividade. Une a perspectiva estrutural
com a temporal (LACAN, 1953d).
Desse modo, o dipo o que permite instalao de uma posio inconsciente no sujeito:
uma posio sem a qual o sujeito no poderia se identificar a um tipo ideal de seu sexo,
uma posio que permite ao sujeito situar-se como parceiro de um outro e que permite
acolher as necessidades da criana que pode advir da relao sexual com outro (Lacan,
1953d).
Com a metfora paterna, Lacan desfamiliarizou o dipo, mas Brousse (1997) nota que
ela no leva em conta o pai da realidade, s o nome, e assim s fala dos pais como
mortos. A realidade dos pais, das mes, so acidentes ou tem poder de determinao? Se
no h pai seno traumtico25, que lugar dar ao trauma? Essa tambm parece ser a
pergunta de Lacan sobre o pai como morto. A noo de pai morto cria dificuldades
quando a noo de pai Real abordada por Lacan: como fica a questo da morte como
estando na origem? Talvez tenha sido a partir deste interrogante que Lacan tenha
trabalhado a funo do pai na direo de um pai vivo, cuja eficcia reside no apenas na
interdio, mas no testemunho e na conseqente autorizao de um gozo, como veremos
a seguir.
A abordagem formal do complexo de dipo no dispensa a presena dos corpos em
jogo nessas relaes. Para avanar em relao a este ponto, Laia (2006) refere-se a uma
diferenciao estabelecida por Laurent entre o pai como funo simblica e o pai como
existente, mostrando que a dimenso formal do dipo est referida a uma corporeidade.
A formulao do dipo em termos da metfora paterna um movimento importante no
sentido do movedio mobilizado pela questo do pai. No entanto, [...] a metfora
paterna no se processa sem algum tipo de incidncia sobre a existncia (LAIA, 2006,
p. 50) e implica tambm um resto.
que trs o seu mnimo [...] , a saber, que se de trs vocs rompem um dos anis, eles ficam livres todos
os trs, ou seja, os outros dois se soltam (LACAN, 1974/75, p. 5).
25
Lacan chamava o traumatismo sexual, estrutural, de troumatisme, que pode ser lido tanto como
buraco no real como um truque do sujeito. No lugar desse furo, o sujeito inventa algo, um truque, para
preench-lo.
57
Propor um tratamento ao resto pode ser algo fecundo em uma poca em que se pretende
que no haja resto! Naparstek (2006) lembra que Freud j apontava para o quanto o
resto poderia ser fecundo ao tomar os sonhos como resto diurno. Lacan, no fim de seu
ensino, toma o resto como aquilo que causa, declinando o pai em uma verso que leva
em conta o gozo; mais que isso, ala-o a uma condio crucial na transmisso paterna.
1.5.5- Mais alm do Nome-do-Pai
A formalizao em termos da metfora paterna no a ultima de Lacan sobre o pai: ele
declina o pai mais alm do Nome-do-pai. Em RSI (1974/75), o psicanalista apresenta
uma nova declinao que d um tratamento ao que resta da operao da metfora
paterna: o objeto a. Os corpos agora so tomados como sexuados e a funo paterna
pode ser definida a partir de um trecho que recortado e trabalhado pelos lacanianos
uma e outra vez, no qual Lacan formula a noo de prversion: um pai s tem direito
ao amor e ao respeito de uma mulher se tal amor for pai-versamente orientado, isto , se
ele fizer de uma mulher a causa de seu desejo. A prversion, novidade dessa
declinao, comporta um pai desejante, sexuado, que no coincide mais com o pai dos
trs tempos do dipo (velado, mediado e revelado). Porge (1998) situa as articulaes
apresentadas em RSI como uma soluo para os problemas colocados pelo Nome-dopai, de modo que a suspenso de 1963 (a interrupo do seminrio sobre os nomes do
pai na primeira aula) no mais relembrada por Lacan.
Ao instituir a funo do pai como prversion, Lacan mais uma vez lana mo dos
jogos de palavras - sempre to apreciados por ele - fazendo valer a referncia
sexualidade e propondo uma verso sexuada da funo paterna, introduz nesta a
dimenso do gozo, o pai como aquele que autoriza um gozo. Ao declinar-se como
prversion, o pai funciona como vivo/desejante, como modelo de uma funo de
gozo. Modelo e exceo articulam-se aqui da seguinte maneira: preciso que qualquer
um possa ser exceo para que a funo de exceo se torne modelo [...] A est o que
deve ser um pai, na medida em que s pode ser exceo (LACAN, 1974/75, p. 23).
No dipo da metfora paterna, o simblico prevalecia sobre o real e o imaginrio. Em
RSI, ponto de chegada da reflexo de Lacan sobre o para alm do dipo freudiano, no
h mais predominncia do simblico. Nessa declinao, o pai deixa de ser o significante
58
de uma funo e constitui-se em uma existncia singular, um uso de gozo particular que
habilita outras excees (LAIA, 2006).
A nomeao, num primeiro tempo em Lacan, decorre do registro simblico. O Nomedo-Pai equivale ao pai esvaziado de gozo, ao pai morto. Quando se trata do pai vivo e
gozante da prversion, a nomeao tambm de ordem imaginria e real. No entanto,
o pai um vetor de uma encarnao da lei no desejo, ele existente, mas tambm
semblante; como vetor, ele suporta, mas no consiste. Nesse sentido, no equivale a um
ideal (aqui no esto em jogo suas virtudes morais), tampouco deve confundir-se com
excepcional e recai em uma impostura quando pretende consistir (ou confundir-se com)
a lei:[...] nada pior que um pai que profere a lei sobre tudo: sobretudo nada de pai
educador (LACAN, 1974/75, p. 23, grifo meu). O pai Real se define a partir da causa
(como causa sexual) e no pode operar a partir de enunciados edificantes. Estes
apontariam para uma verso de pai purificado de gozo (Laurent, 2007).
O pai Real se configura como um pai que permite e d. Um pai que porta a lei, diferente
do pai de direito ou do pai que intervm simbolicamente. importante desprender-se da
idia de um pai que se identifica funo do interdito para abrir margem para um pai
cuja lei menos oposta e mais articulada lei do desejo: a funo do pai unir e no
opor o desejo lei.
Na mesma linha, a eficcia do Nome-do-Pai residiria no fato de que algum se levanta
para responder (LACAN, 1971, aula de 16 de junho de 1971), um nome chamado para
que algum fale. Nesta declinao, no importa tanto o nome dado ao pai, mas o nome
dado pelo pai ao nominar, O que s quer dizer que o Pai enquanto Nome, no quer
dizer nada de incio, no s o pai como nome, mas como nomeador (LACAN,
1974/75, p. 64). A nominao faz buraco, e Lacan enftico, para alguma coisa ex-istir
preciso que haja buraco.
O pai Real recoloca a questo do pai encarnado e, nesse sentido, consiste em uma
formulao central para articular a famlia como resduo, o romance familiar e o modo
como pai e me se conformam em semblantes ao encarnar as funes.
59
26
60
Esse trecho de Zenoni central para que avancemos nas articulaes entre famlia e
parentalidade. A famlia como resduo (reduzida s condies necessrias para que haja
28
Uma das vertentes pelas quais o neologismo parentalidade comparece na atualidade, tema que ser
abordado no captulo 3.
61
na ordem original de realidade constituda pelas relaes sociais que se deve compreender a famlia
humana. Se, para assentar esse princpio, recorremos s concluses da sociologia, ainda que a soma dos
fatos com os quais ela o ilustra ultrapasse o nosso tema, porque a ordem de realidade em questo o
objeto prprio desta cincia (LACAN, 1938, p.19)
62
30
Esse comentrio de Peusner sobre a traduo de parent vem fortalecer o de Miller (1984) sobre a
traduo do ttulo do escrito de Lacan. A advertncia recai sobre o fato de que a compreenso de um texto
pode ficar comprometida caso no haja o cuidado necessrio na traduo.
31
O termo aparece no texto de Lacan pela primeira vez na pgina 16, j referido ao modo como
Durkheim o emprega.
63
32
64
Peusner (2009) repara que em quase todos os momentos em que Lacan fala de
constelao familiar, faz referncia ao homem dos ratos. Avalia que este foi o caso
em que Freud refletiu com mais profundidade sobre o problema da constelao
familiar, mas pontua que o sistema aplicvel a qualquer caso.
A constelao familiar de um sujeito humano falante deve ser
entendida ao modo dos astrlogos: preciso faz-la falar. E preciso
faz-la falar porque permite no s estabelecer as posies de seus
componentes no momento da chegada de um sujeito falante ao
mundo (algo assim como uma carta natal), mas que tambm
preciso faz-la falar para que permita antecipar algo do que poderia
ocorrer no futuro (no sentido do melhor horscopo). Lacan, em O
mito individual do neurtico, afirma que a personalidade do paciente
deve constelao familiar seu nascimento e seu destino
(PEUSNER, 2009, p. 100, traduo livre)
Todo o trabalho que o paciente criana ou adulto realiza acerca de sua histria
excede o limite do individual, este que j superado desde e quando se parte da
linguagem como estruturante da subjetividade. A linguagem nos antecede, e aceder a ela
implica automaticamente exceder o limite individual. O lugar da famlia est ligado
lngua que falamos, falar numa lngua j dar testemunho de um lao com a famlia
(MILLER, 2007).
65
A seguir, alguns trechos extrados da Carta ao pai, de Franz Kafka (1919), escrita aos
36 anos.
Quero tentar explic-lo melhor: na tentativa de casamento confluem,
nas minhas relaes com voc, duas coisas aparentemente opostas,
to fortes como em nenhuma outra parte. O casamento certamente a
garantia da mais ntida autolibertao e independncia. Eu teria uma
famlia, o mximo que na minha opinio se pode alcanar, ou seja:
tambm o mximo que voc alcanou; eu seria igual a voc, a velha e
eternamente nova vergonha seria apenas uma histria. Com certeza
seria fabuloso, mas justamente a que est o problema. algo
excessivo, no se pode conseguir tanta coisa assim. como se
algum estivesse aprisionado e tivesse no s a inteno de fugir o
que talvez fosse realizvel mas tambm, e, na verdade ao mesmo
tempo, a de transformar, para uso prprio, a priso num castelo de
prazeres. Mas, se ele foge, no pode fazer essa transformao, e se a
faz, no pode fugir. Se eu quiser me tornar independente, na relao
especial de infelicidade em que me encontro com voc, preciso fazer
alguma coisa que no tenha a menor ligao possvel com a sua
33
[...] assim, o que depende apenas da transmisso biolgica deve ser designado como hereditrio e
no como familiar[...] (LACAN, 1938, p. 65).
34
Trecho do conto Os laos de famlia, extrado do livro que leva o mesmo ttulo.
66
67
68
sua funo de resduo: [...] revela-se que a instituio familiar esconde, pe um vu,
dissimula o traumatismo que est no centro de toda formao humana: o gozo (p. 38).
Nesse sentido, a famlia como resduo particulariza o que a cultura (ou a civilizao)
sustenta no mbito coletivo, ao arrimar-se sobre um limite ao gozo. Ressalto que
estabelecer um limite ao gozo ou vel-lo no implica elimin-lo do campo da
transmisso familiar.
Tomar a famlia em sua funo de resduo habilita a posio de que ela resiste. Essa
posio no se ancora em nenhum modelo de famlia, nem mesmo na famlia nuclear,
como se poderia pensar. A famlia resiste reduzida ao que tem de irredutvel, e esta
irredutibilidade remete exigncia de uma transmisso, transmisso dos elementos
necessrios para que haja sujeito. Lacan enfatiza que tal transmisso de outra ordem
que no a natural. Sauret (1998) completa: no h necessidade de famlia para fazer
filhos, mas para fazer sujeitos, sim (p. 87).
Neste ponto, duas questes se destacam: a primeira que o nascimento de um filho no
determina automaticamente a constituio das funes parentais. Estas requerem um
processo delicado de reordenamento simblico e no esto determinadas pelos aspectos
biolgicos daqueles que constituem as figuras parentais. A segunda que o irredutvel
da transmisso no reside no fato de que haja um homem e uma mulher no exerccio das
funes e tampouco a existncia de pai e me conforma naturalmente instintivamente
as operaes fundamentais necessrias constituio subjetiva. Esse um ponto que
tentei destacar do texto de Lacan: algum que se apresentaria unicamente como o pai,
ou seja, que no gozaria de uma mulher, deixaria a criana nas mos do gozo do Outro
por estrutura, seja esta me boazinha ou no (SAURET, 1998, p. 47, grifo meu).
Para que haja transmisso preciso que uma me possa tambm ser mulher, preciso
que um pai possa figurar-se como um homem, e uma das vias para tal o desejo de uma
mulher. Outro modo de diz-lo seria: para que haja um neurtico, preciso no apenas
um pai e uma me, mas tambm um homem e uma mulher. importante ainda destacar
que o sujeito, independentemente dos esforos pedaggicos de seu pai e sua me,
responde ao tipo de Outro ao qual se confronta. Com isso esvazia-se a perspectiva de
que os pais podem controlar o que transmitem aos filhos e que, se forem competentes e
estiverem pedagogicamente orientados, tero mais sucesso nessa empreitada.
69
70
35
Lacan formula a distribuio de lugares no quadro da sexuao, lembrando que a psicanlise insiste em
manter a hincia e, para tanto, tem que resgatar a lgica da diferena. C.f. - LACAN, J. (1972/73) O
Seminrio, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
36
Tema que ser examinado no captulo 2.
37
Ponto que escapou aos psicanalistas que cederam tentao de biologizar a pulso e identificar a causa
a uma determinao complementar: Eles fizeram crer na ideia do neurtico segundo a qual, se o sujeito
est ferrado, culpa de seu pai, de sua me, de suas deficincias orgnicas ou cognitivas, do que ele
encontrou durante sua infncia, da sociedade e at mesmo da interao de determinantes
biopsicossociais (SAURET, 1998, p. 30).
71
72
De que amanh... : dilogo o ttulo do livro publicado a partir de uma conversa entre
Jacques Derrida e Elizabeth Roudinesco. No prefcio, esta situa o leitor a respeito da
fonte de inspirao do ttulo escolhido para esse dilogo:
De que amanh se trata?- pergunta Victor Hugo em um de seus
poemas de Cantos do Crepsculo. E, como introduo, assinala:
Tudo hoje em dia, nas idias como nas coisas, na sociedade como no
indivduo, encontra-se em estado de crepsculo. De que natureza
esse crepsculo, o que vir depois? Este foi o nosso ponto de partida
(ROUDINESCO, 2004, p. 7)38.
Tomo emprestado esse belo ttulo para introduzir este captulo, no qual se discutem as
mudanas no campo da famlia, articulando-as ao momento histrico atual; cabe,
contudo, adiantar de que aspectos ele no tratar no que diz respeito famlia na
atualidade:
1 - de definir os rumos que a famlia deve tomar (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004,
ROUDINESCO, 2003)
2 - de promover um alarmismo em relao s mudanas no campo da famlia
(CECCARELLI, 2007, GAVARINI, 2008, LAURENT, 2007, ROUDINESCO, 2003,
TORT, 2008)
3 - de antecipar ou de traar um veredicto sobre o futuro das crianas educadas nas
novas configuraes familiares (DELAISE de PARSIVAL, 2001 e 2006, DERRIDA;
ROUDINESCO, 2004, JULIEN, 2000, ROUDINESCO, 2003)
38
Traduo livre do trecho citado por Roudinesco disponvel nas notas de rodap: Espectro sempre
mascarado que nos segue lado a lado./ E que se chama amanh!/ Oh! Amanh o grande momento!/ De
que amanh se trata? (2004, p. 7)
73
4 - de compactuar com uma psicanlise que se apresenta como guardi da moral e dos
bons costumes (CECCARELLI, 2007, KEHL, 2002 e 2003, ROUDINESCO, 2003,
TORT, 2008)
Nessa pesquisa, pretendo distanciar-me de posicionamentos alarmistas, preditivos e
normativos. Portanto, no se trata de prever o que ser da famlia... amanh; porm, de
examinar as principais mudanas que vm ocorrendo no campo da famlia e as novas
configuraes pelas quais tem buscado reconhecimento. No se trata de prever as
conseqncias das novidades no campo da famlia, mas de situar que, neste caso, hoje
j amanh39!
Elizabeth Roudinesco em A famlia em desordem (2003) descortina um paradoxal
panorama contemporneo: se outrora os homossexuais viviam uma experincia
margem da sociedade, reivindicavam o direito diferena, marcando em sua escolha
uma transgresso, uma oposio em relao quilo que configurava a famlia como
instituio normatizada na sociedade40 atualmente vm pleiteando a possibilidade de
instituir-se dentro das regras que compem o universo estabelecido em relao famlia
e procriao (buscando o reconhecimento da relao conjugal, outorgado pelo
PACS41) e o reconhecimento do direito parentalidade42.
certo que muitos desses modos de procriao e filiao sempre existiram, mas
existiam de forma marginal, eram ignorados ou tratados como uma fatalidade. A
39
Fassin (2001) faz a seguinte leitura acerca da posio da sociologia da famlia em relao a essas
novidades: ela se prope a acompanhar o movimento dos costumes, no a preced-los; ela no
pretende, portanto dizer o que dever ser (amanh) para alm do que j (hoje).
40
Fassin (2001) pontua que a discusso no se situa mais em torno da liberdade dos indivduos, mas em
torno inscrio da homossexualidade na sociedade. Ver: FASSIN, E, (2001). La voix de lexpertise et
les silences de la silence dans le dbat dmocratique. IN : Au-del du PaCS lexpertise famliale
lpreuve de lhomossexualit. Paris : Presses Universitaires de France.
41
Pacto Civil de Solidariedade (PACS) lei francesa em vigor desde 1999 que legaliza a unio entre
casais do mesmo sexo, mas no supe o direito adoo de crianas ou procriao medicamente
assistida.
42
No referido Dilogo, Roudinesco avana um pouco mais na discusso em relao a essa demanda de
famlia, advertindo para o risco deste desejo de normalidade contribuir para o aumento das
discriminaes sociais: Alm disso, constato que os casais homossexuais tendem a querer aparecer como
to normais quanto os casais tradicionais, a ponto de imit-los s vezes de maneira caricatural.
Pergunto-me ento se esse desejo de normalidade cessar com a extino das discriminaes sociais ou
se, ao contrrio, ser acentuado (2004, p. 50) Por outro lado, Gavarini (2008) reconhece a presena de
autores e discursos dissonantes ao citar que a reivindicao do jurista Daniel Borrillo de vida familiar
para todos, seja qual for sua orientao sexual, inclui a libertao de sua funo de sistema
constrangedor e das diversas ordens s quais ela est subordinada: trata-se de fazer o elogio de um
modo de vida tradicional, mas libertado das obrigaes que lhe dariam uma ordem (p.7).
74
reivindicao, por parte dos protagonistas de tais arranjos, suscita questes que
interpelam todo o tecido social (CECCARELLI, 2007).
Diante dessa demanda de visibilidade, surgem questes como: o que esta demanda
representa? Que conseqncias ela tem para o modo como as relaes familiares vm se
constituindo na contemporaneidade? A existncia da famlia est ameaada?
Vale marcar que o estudo empreendido por Roudinesco no visa a antecipar e discutir as
conseqncias para a educao das crianas quando os papis parentais so
desempenhados por apenas um membro da famlia ou por membros do mesmo sexo mas
a examinar esta demanda e suas possibilidades de significao, numa perspectiva
histrica, social e poltica.
Denotando uma posio no alarmista, Roudinesco observa que a famlia eterna e no
est em perigo, uma vez que se ancora em uma funo simblica e dispe de uma
multiplicidade de possveis recomposies. Ao dialogar com a psicanalista, Derrida
(2004) faz uma ressalva a seu comentrio, pontuando que no falaria de uma
eternidade de um modelo familiar qualquer, mas de uma trans-historicidade do lao
familiar. Atribuir uma trans-historicidade ao lao familiar outro modo de afirmar que
h algo de irredutvel na famlia, algo que independe do momento histrico em que vive
o sujeito, que transcende o que relativo a uma poca, o que, neste trabalho, venho
formulando em termos da famlia como resduo.
Se, como mencionei acima, no se trata de promover um alarmismo em relao s
mudanas no campo da famlia nem, tampouco, de compactuar com uma psicanlise
que se apresenta como guardi da moral e dos bons costumes, preciso discriminar a
psicanlise dos dispositivos de normalizao, separando-a das disciplinas que
preconizam que determinada forma de famlia seria mais adequada educao das
crianas, assim como discrimin-la de construtos que encontrariam suas bases em uma
idealizao ou em uma naturalizao da famlia patriarcal. Nesse sentido, importante
recorrer tica psicanaltica e Ceccarelli (2007) o faz com rigor: A psicanlise no
guardi de uma ordem simblica suposta imutvel, produtora de uma forma idealizada
de subjetivao baseada nas normas vigentes e com o poder de deliberar sobre o normal
e o patolgico. (p.93).
75
O modelo de famlia nuclear (leia-se pai, me e filhos morando na mesma casa), mesmo
que seja idealizado e que promova uma sensao de estabilidade e segurana, nunca foi
sinnimo de normalidade. No existe uma forma de organizao familiar ideal que
possa garantir as condies necessrias constituio do sujeito. Mesmo nos casos
mais normais, acontece o que acontece: h famlias ditas normais nas quais os filhos
legtimos so infelicssimos (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 49).
Roudinesco tambm questiona uma suposta normalidade inerente famlia nuclear.
Contudo, para compreender a forma aguerrida como o faz, necessrio situar o cenrio
no qual a autora introduz esse questionamento: o de discusso sobre o posicionamento
das instituies psicanalticas em relao homossexualidade de seus membros e sobre
o repdio, por parte de alguns psicanalistas, da homoparentalidade. A autora lana mo
do termo famlias heterossexuais e lembra de alguns casos clnicos todos eles
estarrecedores, diga-se de passagem do que foi a vida ordinria de certas dessas
famlias heterossexuais da metade do sculo, cujos filhos, ento adultos, freqentaram
vinte anos mais tarde os divs dos psicanalistas (2003, p. 189). , portanto, em meio
indignao perante os especialistas que se propuseram a testar as aptides
psicolgicas dos homossexuais para serem pais, que Roudinesco evoca essas cenas
terrveis, atribudas a personagens da vida familiar normal.
O fato de uma suposta famlia normal (aquela que se apresenta com pai, me e filhos
morando na mesma casa) no ser e nunca ter sido garantia de crianas felizes e bemeducadas no nenhuma novidade, mas o contexto atual dos debates entre especialistas
e polticos tem levado os psicanalistas a se sentirem convocados a reiter-lo. O que os
psicanalistas pretendem reafirmar no est sustentado na observao emprica (e talvez
os casos trazidos por Roudinesco para ilustr-lo me parecem excessivos), mas na base
da teoria psicanaltica. Como vimos no captulo 1, ainda que se formule o irredutvel da
famlia em termos das funes materna e paterna, diferenciando radicalmente a(s)
pessoa(s) do pai e da me da operatividade de suas funes, na famlia no h
garantias, independentemente das configuraes pelas quais esta possa se apresentar.
Se bem verdade que a famlia nuclear no e tampouco pode ser vista como um
sinnimo de normalidade, verdade tambm que esta tem sido a forma de famlia
identificada no imaginrio social como ideal, da as novidades apresentadas nesse
76
campo poderem ser sentidas como uma ameaa. Se bem que abandonar um ideal de tal
forma arraigado no discurso social gere certa resistncia, essa ao no justifica o temor
de que os novos arranjos familiares estariam desintegrando a famlia, ou que estaramos
vivendo uma crise sem precedentes.
No ltimo captulo de A famlia em desordem, denominado A famlia do futuro,
Roudinesco (2003) esclarece que seus questionamentos no tm um carter alarmista e
afirma tambm que a existncia da famlia no se encontra ameaada:
Aos utopistas que acreditam que a procriao ser um dia a tal ponto
diferenciada do ato carnal que os filhos sero fecundados fora do
corpo da me biolgica, em um tero de emprstimo e com a ajuda
de um smen que no ser mais aquele do pai, retorquimos que, para
alm de todas as distines que podem ser feitas entre o gnero e o
sexo, o materno e o feminino, a sexualidade psquica e o corpo
biolgico, o desejo de um filho sempre ter algo a ver com a
diferena dos sexos (p. 198).
significativamente.
A autoridade patriarcal,
77
Hamad (2002) reproduz as palavras da deputada de esquerda Catherine Tasca, registradas no Le Monde
de 10 de outubro de 1998, acerca desse ponto: Quanto aos homossexuais, isso no representar para eles
uma etapa possvel no sentido da adoo e da procriao medicamente assistida. Ns escolhemos como
quase todos os pases europeus que, bem antes de ns, j adotaram uma legislao para as unies
registradas excluir essa perspectiva, pois continuamos a querer para a criana uma filiao de um pai e
de uma me.
44
no seguinte trecho que Lacan apresenta essa formulao: Problemas do direito de nascimento, por
um lado, mas tambm, no impulso do teu corpo teu, no qual se vulgarizou no incio do sculo um
adgio do liberalismo, a questo de saber se, em virtude da ignorncia em que mantido esse corpo pelo
sujeito da cincia, chegaremos a ter o direito de desmembr-lo para a troca. [...] Haveremos de destacar
pelo termo criana generalizada a consequncia disso? Certas antimemrias ocupam hoje em dia o
noticirio (por que so assim essas memrias? Se por no serem confisses como nos advertem,
porventura no essa desde sempre a diferena das memrias?). Seja como for, o autor as abre com a
78
confidncia, de estranha ressonncia, com que dele se despediu um religioso: Acabei acreditando, veja
s, nesse declnio de minha vida, disse-lhe ele, que no existe gente grande (LACAN,1967, p. 367).
45
A nfase nas competncias e nas habilidades parentais um dos modos pelos quais os discursos
prevalentes na atualidade se particularizam no mbito da famlia.
46
No original demariage, termo proposto por Irne Thery (1998). Couple, filiation et parente
aujourdhui. Paris: Odile Jacob.
79
Lebrun (2004) vai na mesma direo ao destacar dois traos da evoluo do direito no
que tange corresponsabilidade parental. O primeiro diz respeito ao fim da no
igualdade que organizava as relaes entre pai e me, acarretando o desaparecimento do
conceito de autoridade, em proveito do de responsabilidade, marcando a superioridade
dos deveres dos pais em relao a seus poderes e a diminuio destes diante dos direitos
subjetivos da criana. O segundo trao se refere inverso operada pela passagem do
paternal ao parental, terminando por assegurar (de fato, mesmo que no de direito) uma
preponderncia da me, em detrimento do pai. O autor acredita que a parentalidade, em
sua indiscriminao de lugares, implicaria uma mreverso (2008). Aqui ele se inspira
na homofonia introduzida por Lacan ao formular a prversion (verso do pai/
perverso), e pretende designar o nmero crescente de sujeitos que, na atualidade,
permaneceriam no regime materno. Na mreverso se sustentaria a insero da nova
criana no universo da linguagem, mas se a protegeria do encontro com o pai Real.
Embora eu compreenda que o autor faa aluso ao imperativo deixar a me,
prescrio para toda criana em toda sociedade (conforme sua formulao em
conferncia proferida em 2007), penso que o termo mreversion uma escolha infeliz
diante do impacto e da subverso que o termo prversion representou para a questo do
pai na psicanlise, como vimos no captulo 1. Acredito que a traduo do autor poderia
representar-se melhor no termo mrearrestation47, cuja designao de um
aprisionamento no campo do Outro, ou, em outros termos, a permanncia no campo
materno.
Segundo alguns autores, essa preponderncia do materno na qual estaramos recaindo
assumiria a forma de um retorno do matriarcado48. Eles partem da observao de que a
autoridade estaria mudando de natureza e que a referncia quanto autoridade,
atualmente, seria a mulher. Lacan, no seminrio 18, aula de 16 de junho de 1971, traz
dados que contribuem para esvaziar essa discusso:
O matriarcado consiste essencialmente nisto: que, no que concerne
me como produo, no h dvida. De vez em quando a gente
pode perder a me no metr, claro, mas enfim, no h dvida sobre
quem a me. No h dvida igualmente, sobre quem a me da
47
Sugesto de Domingos Infante durante reunio do grupo de pesquisa do grupo de pesquisa do Ncleo
de Estudos e Pesquisas em Psicanlise com Crianas em 25 de setembro de 2009.
48
C.f. - Rsurgence du matriarcat. Le Bulletin, n. 2, Association Lacanienne Internationale. Paris:
Editions de lA.L.I., 2007, p. 9-40.
80
Penso que o pai Real, em sua prversion e a famlia localizada em sua funo de
resduo operam em um registro diferente das determinaes amparadas no discurso
jurdico. As fices jurdicas so necessrias e organizadoras do lao social. De fato, a
passagem da autoridade paterna autoridade parental reduz as diferenas entre pai e
me no que tange responsabilidade social diante do filho, mas no elimina a diferena
sexual, no apaga as diferenas entre as posies masculina e feminina (e mesmo a
paridade no o faz, se pensarmos que ela incide apenas no estatuto social de homens e
mulheres). Nesse sentido, atribuir a runa da famlia fico jurdica que define a
autoridade parental parece consistir em uma nova roupagem para a to criticada e
supostamente ultrapassada teoria do declnio social da imago do pai.
Acredito que nem as fices jurdicas nem as fices cientficas podero dar conta do
ponto de real do que a origem subjetiva de cada um, o que Laurent (2010b) traduz
como uma malformao do desejo do qual cada um provm, uma malformao do que
foi o encontro fracassado entre os desejos que trouxe cada um de ns ao mundo, um
encontro fracassado entre os sexos (uma vez que no h relao sexual, que no h
como conjugar sem resto) e no importa se so ou no do mesmo sexo e o desejo de
criana.
81
49
Esse modelo de famlia parece retratar a confuso que se instaura entre a reivindicao pelas mulheres
da paridade e da no-discriminao social entre os sexos e a no-diferenciao sexual do pai e da me e
das funes parentais.
82
50
Diante dessa definio, me pergunto se de fato tal famlia existe, ou seja, se possvel fincar os laos
familiares nessas bases e de que maneira.
51
traduo do francs dmariage.
52
uma famlia que no mais regida como uma instituio, mas por um pacto privado. Uma famlia
que resolve suas tenses por negociaes internas [...] Uma famlia igualitria em que a hierarquia
desapareceu no casal e se esfuma entre geraes. Uma famlia em que a solidariedade simultaneamente
intensa e frgil. Para dizer em uma palavra, uma famlia que pretende poupar qualquer terceiro
significativo (ROUSSEL, 1989 apud LEBRUN, 2004, p. 14).
53
Traduo do francs dsaffiliation.
83
cotidiano das grandes cidades e das relaes que se impem neste contexto: anonimato
urbano, crise da famlia moderna (leia-se casais separados, famlias monoparentais,
famlias recompostas, famlias homoparentais e etc) e incompetncia crescente dos pais
na educao dos filhos. A meu ver, essa incompetncia que se veria incrementada pela
crena disseminada no discurso da cincia de que h um modo, um bom modo de
educar, ou seja, de que existem competncias parentais, que dariam conta do impossvel
da educao, a respeito do qual Freud j nos advertia.
Julien (2000) destaca trs fatores fundamentais na concretizao de uma sociedade
moderna: a democracia, a laicidade e a cincia. Estes intervm na constituio dos laos
sociais na contemporaneidade, intervm na conjugalidade e na parentalidade, ou seja, na
formao dos laos conjugais e na reorganizao destes laos a partir do exerccio das
funes parentais.
esse cenrio que leva muitos autores a se perguntarem se a famlia, em suas novas
configuraes, propiciaria as condies necessrias para a transmisso. Ainda que no
se trate de alarmismo e mesmo que empreste de Sauret (1997) a convico de que a
famlia resiste, as formas pelas quais as famlias se apresentam na contemporaneidade
me levaram a indagar sobre a transmisso, sobre o que preciso que se mantenha, para
alm das mudanas substanciais sofridas pela famlia nos ltimos anos. Por isso, isolar a
famlia como resduo foi fundamental.
Contudo, localizar a famlia em sua funo de resduo no esgota a pergunta sobre como
se articulam estrutura e contexto histrico. Situar-se em relao a esses aspectos
necessrio para no recair, por um lado, em uma nostalgia da autoridade ou da tradio
e, por outro, em uma supervalorizao do que se introduz como novidade na esfera do
discurso cientfico ou das fices jurdicas.
Susana Torrado, sociloga argentina s voltas com os rumos da famlia na atualidade,
voltando sua indagao para a funo de transmisso da famlia, pergunta: essa funo
estaria assegurada nos tempos atuais?
A funo de transmisso entre as geraes [...] pode ser assegurada
qualquer que seja a maneira pela qual se organize a vida privada? Em
especial, essa contribuio pode ser assegurada com um grau de
84
Peusner (2009) observa que, se a autora fosse psicanalista, responderia que sim. Para
sustentar o comentrio, recorre a Nota sobre a criana, texto que, conforme vimos no
primeiro captulo, pode ser tomada como um aprofundamento, mais concisa e
precisamente, das ideias de Lacan j contidas em Os complexos familiares, de 1938.
importante situar o contexto da discusso relativa s novas configuraes familiares,
principalmente no que diz respeito s famlias homoparentais mas veremos que no s
, pois envolve posicionamentos e consequncias relacionadas psicanlise,
antropologia e ao direito e tambm de ordem poltica. Isso tudo no deixa de trazer
efeitos para as famlias, para a educao das crianas e, principalmente, para o modo
pelo qual o neologismo parentalidade vem ganhando consistncia na atualidade.
Michel Tort (2006) aborda de modo incisivo a discusso sobre as novas configuraes
familiares. Esclarecendo que no se trata mais de dizer que vivemos nos tempos do
declnio da funo paterna - posicionamento com o qual concordo -, conduz uma
reflexo em direo a uma tomada de posio menos contaminada54. O autor parece
especialmente advertido em relao ao risco de os profissionais assumirem um discurso
normativo ao tentar se posicionar neste campo (muito embora saibamos que em vrios
outros este mesmo risco se impe). Em tal discurso, o autor localiza uma confuso entre
prticas sociais e funcionamento psquico, confuso imperante no que se refere aos
efeitos do divrcio, da monoparentalidade ou da homoparentalidade para a constituio
psquica das crianas educadas nessas configuraes familiares.
Tort seleciona os seguintes elementos: sexualidade, famlia, parentesco, sujeito,
reproduo e procriao e a diferena entre os sexos e prope nos determos em suas
54
85
86
Fassin (2001), autor citado por Tort, pontua que a abertura do casamento e da filiao
aos casais homossexuais no mais socialmente impensvel, atingindo na atualidade a
categoria de passvel de ser discutida. Observa que se pode ser a favor ou contra, que se
pode pensar que a causa legtima ou no, mas o que est em jogo so opinies; podese debater, mas trata-se sempre de uma questo de valores e no de verdade. Acrescenta
ainda que o tema comporta uma srie de problemas, justamente porque as respostas no
esto dadas e devem ser produzidas.
Penso, junto com Tort (2006) e com Roudinesco (2004), que as prticas sociais esto
um passo adiante em relao ao especialista, e que no se trata de julg-las ou
normatiz-las, ou seja, estas prticas j existem, apesar e para alm do pronunciamento
do especialista e dos ajustes necessrios em relao s polticas pblicas e ao discurso
jurdico55. Ento, talvez se trate de refletir se e quando cada disciplina deve pronunciarse (mesmo e claro que sempre o faa a partir de seu objeto de estudo e da tica que a
orienta). Vale lembrar que na tica psicanaltica orientada pelo bem-dizer, no se
pretende dizer onde est o bem!
Para mostrar que o debate e o discurso normativo ou contaminado, embora compaream
de modo mais fervoroso, no se concentram apenas em torno das famlias
homoparentais, me concentrarei por um momento nas famlias monoparentais (inclusive
pela sua expressividade nos lares brasileiros56)
Acompanhemos com Roudinesco a origem do termo monoparental:
Em 1975, Andre Michel, sociloga feminista, inspirou-se nas
experincias da famlia americana para introduzir na Frana a
expresso famlia monoparental, que serviu para designar, sem
estigmatiz-lo, um modelo de famlia irregular, julgado entretanto
mais negativo que o da parentalidade reconstituda (2003, p. 154)
55
Reproduzo a seguir alguns dados extrados das notas de rodap de Roudinesco (2003): no continente
americano, existem de 1 a 5 milhes de mes lsbicas, de 1 a 3 milhes de pais gays, e de 6 a 14 milhes
de crianas criadas por pais homossexuais. Em Paris, entre 1990 e 2000, o nmero de lares monoparentais
passou de 1,2 milho para 1, 7, as famlias monoparentais representam 16% dos lares com filhos.
56
De acordo com dados do IBGE, entre 1995 e 2005, na regio Sudeste, as famlias chefiadas por
mulheres tiveram um aumento de 35%.
Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=774
87
Se a inteno, ao nomear, foi legitimar uma modalidade de famlia, nem por isso a
representao social ali condensada foi totalmente eliminada, pois, em relao a essa
modalidade de famlia, o discurso da expertise fez um percurso histrico que passou da
vergonha culpabilizao. Contudo, possvel ler, junto com Tort (2006), que a
definio se constituiu em um momento posterior instalao de uma prtica social e
reivindicao de reconhecimento por seus representantes (veremos que uma das
vertentes pelas quais o significante parentalidade se instituiu conformou-se em um
processo semelhante).
Observemos agora algumas concluses de pesquisas sobre mulheres sozinhas que
adotam crianas (conformando famlias monoparentais), reunidas por Nazir Hamad em
seu livro Adoo e parentalidade: questes atuais. MacLanahan e Sandefur (1984)
verificaram que adolescentes e jovens adultos adotivos criados por mulheres sozinhas
apresentaram fracasso escolar duas vezes superior s outras crianas e tinham tendncia
a ter filhos antes dos vinte anos. Eram 50% mais numerosos na condio de no ter
formao e estar sem trabalho do que outras crianas na mesma idade. Por outro lado,
Wegar (1990) afirma que, ao contrrio do que se pensa, famlias compostas por
mulheres que adotam sozinhas no so mais frgeis emocionalmente que as outras,
mostram laos familiares fortes e estveis.
Hamad (2007) no se aprofunda nesses dados contraditrios, mas levanta algumas
hipteses sobre o que os justificaria. A meu ver, so hipteses pouco convincentes,
como, por exemplo, associar as dificuldades apresentadas pelas crianas a uma maior
dificuldade das mes de contar sobre a adoo, pelo fato de no terem parceiros. Esses
resultados, de tal forma conflitantes, podem ser atribudos a uma certa contaminao
pelas opinies pessoais ou posicionamentos dos pesquisadores em questo?
No modo como o prprio Hamad (2007) se prope a responder questo H
conseqncias em criar sozinho (a) uma criana? verifica-se uma confuso entre dados
de pesquisa e fatores de ordem imaginria intercalados com alguns elementos da
psicanlise, que so tratados pelo autor de forma superficial. Indo alm, acredito que o
simples fato de enunciar a questo desse modo parece j revelar que o autor recorre a
uma psicanlise normativa. Gavarini (2008) parece encontrar o mesmo tipo de problema
88
89
57
A seguinte afirmao de Gavarini (2008) denota o modo como essa situao rapidamente se configura:
A idia de um direito criana pode ser entendida como um direito a ser como os outros, do mesmo
modo que o fato de coloc-lo em questo rapidamente considerado signo de homofobia (p. 7).
58
Tema desenvolvido por Roudinesco em A famlia em desordem e por Donzelot em A polcia das
famlias.
59
A carta foi endereada a Lvi-Strauss em 1999.
90
Esta a resposta do antroplogo: coerente com o que sua disciplina permite sustentar,
sem posicionar-se de forma alarmista, normativa ou preditiva. No seria isso tambm o
que se esperaria de um psicanalista?
Parece que diante das grandes indagaes que estas realidades tm suscitado na
atualidade - novas configuraes familiares, reproduo assistida, mudanas no campo
da sexualidade - algo da pessoa do pesquisador/cientista (psicanalistas a includos), que
redunda em julgamentos morais, ou na assuno de opinies pessoais, se impe diante
das demandas por um posicionamento. Esse posicionamento se traduz muitas vezes em
uma indiscriminao entre convices pessoais e leituras das prticas sociais e do
funcionamento psquico. preciso que esteja definitivamente excluda para o
psicanalista a possibilidade de se converter em um defensor dos costumes ou em um
censor, mas tambm no pode deixar-se encantar com a liberao dos costumes,
mesmo que pretendendo recusar a pecha de reacionrio.
2.3 poca: um recorte especfico na histria
A psicanlise tende a se instalar em um discurso a-histrico, localizando, de um lado a
ordem subjetiva, intemporal e, de outro, a dimenso histrica das relaes sociais. O
discurso lacaniano, no entanto, no se caracteriza por ser intemporal, mas intempestivo!
(CHEMAMA, 1997). O ensino de Lacan permite entrever que ele escutava atentamente
o que se passava no social e, em mais de uma ocasio, enfatizou que o psicanalista no
deve tomar o sujeito como separvel da subjetividade de sua poca60. O estudo das
declinaes do pai nos permitiu acompanhar como Lacan tomou essa prescrio ao p
da letra em seu ensino: a pluralizao dos nomes do pai uma decorrncia de sua leitura
constante e sensvel do social.
Articular estrutura e histria no uma simples empreitada. Ao contrrio, consiste em
uma tarefa a ser executada com cuidado para no se cair em um emaranhado de autores,
conceitos, posicionamentos e polmicas dos quais resulta extremamente difcil extrair
60
Que antes renuncie a isso, portanto, quem no conseguir alcanar em seu horizonte a subjetividade de
sua poca. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo da tantas vidas quem nada soubesse da dialtica que
o compromete com essas vidas num movimento simblico. Que ele conhea bem a espiral a que o arrasta
sua poca na obra contnua de Babel, e que conhea sua funo de intrprete na discrdia das lnguas
(LACAN, 1953c, p. 322, grifo meu).
91
um fio condutor. Que posio me permito compartilhar, de modo a habilitar uma leitura
possvel dos elementos que pretendo isolar neste trabalho? Procurarei investir nessa
articulao de forma cuidadosa, mas no exaustiva, valendo-me do modo como Lacan
sempre esteve atento, na tentativa de isolar o que da ordem da estrutura, para tambm
inscrever nesta a histria do sujeito, submetendo-a prova com a vivacidade da clnica,
apelando clnica para anim-la.
Para realizar tal tarefa, recorrerei a outros autores que retomam o texto de Lacan e lhe
acrescentam novos alinhavos. O leitor ver que examinarei mais detidamente as
formulaes de Sidi Askofar. Trata-se de uma escolha, j que elas me pareceram as
mais passveis de operar como um fio condutor. Minha proposta tratar o tema de um
modo possvel, ou seja, como aquilo que cessa de se no se escrever, pelo menos por
um momento, para que a pesquisa possa continuar.
A pergunta central que me faz adentrar este terreno e da qual no possvel furtar-me
quando o que est em jogo examinar um neologismo j surgido e cada vez mais
consistente, esta: como estrutura e histria se articulam? Se se entende que o sujeito e
o lao social no so entidades estanques, como pensar os efeitos na subjetividade dos
modos de lao social predominantes de uma dada poca?
importante marcar que, historicamente, estrutura e histria foram considerados
conceitos inconciliveis. Apesar das crticas a Lacan por deixar a segunda de lado
(Cabral, 2006), vimos que ele props a escuta do psicanalista daquilo que prevalece no
lao social na sua poca. Lacan apontou tambm para o modo como isso se concretiza,
seja no que concerne funo paterna, seja o dipo: como operao que une a estrutura
do sujeito sua histria singular. Podemos ento afirmar - de forma um pouco rpida,
concordo - que o modo pelo qual Lacan edifica o conceito de estrutura61 prev que este
possa articular-se ao de histria.
A especificidade da estrutura em Lacan estaria no fato de esta ser marcada,
descompletada pela contingncia (CABRAL, 2006, p. 132): se a revoluo psestruturalista (o ltimo Barthes, Derrida, Lacan) teve algum sentido, foi mostrar a
61
Para um estudo mais aprofundado sobre o tema da estrutura, ver: MAFRA, T. M. (2000) A estrutura
na obra lacaniana. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
92
contingncia das relaes estruturais (LACLAU, 2006, p. 112, traduo livre), algo
que poderia ser formulado nestes termos: a estrutura necessria, mas depende da
contingncia para inscrever-se, ainda animada singularmente pelo sujeito. No seguinte
trecho Lacan assinala a contingncia das relaes estruturais:
Por esse fato, a aparente necessidade da funo flica se descobre ser
apenas contingncia. enquanto modo do contingente que ela pra
de no se escrever. A contingncia aquilo no que se resume o que
submete a relao sexual a ser, para o ser falante, apenas o regime do
encontro (LACAN, 1972/73, p. 101).
Voltando articulao entre estrutura e histria, cabe perguntar: com que histria opera
a psicanlise? Cabral (2006), em um artigo com o sugestivo ttulo de Na cura analtica,
proteger a histria da Histria62, se concentra na noo de histria com a qual opera a
psicanlise, defendendo Lacan das crticas recebidas por no levar em conta a histria e
destacando a histria que Lacan detestava. Sigamos o modo como o autor vai
desenvolvendo sua reflexo.
Lacan marcava os limites de uma psicanlise sustentada exclusivamente na historizao,
uma vez que em seu tratamento da histria no se operaria com o que no
historicizvel, com o real. O risco seria recair em uma orientao da cura formulada em
termos de tornar consciente o que inconsciente. Cabral ento parafraseia Lacan: na
cura analtica possvel, sim, prescindir da histria [...] mas com a condio de ter-se
servido previamente dela. Em outros termos, somente servindo-se do recurso
historizao pode-se constituir o campo do no historicizvel (p. 122, traduo livre).
Em Funo e campo da fala e da linguagem em psicanlise, Lacan faz referncia a uma
investigao histrica autntica, marcada pelo esforo em seu ensino de precisar os
pontos de inflexo que, na histria da cultura, foram se produzindo no nvel dos
discursos, outro modo de referir-se a uma investigao sobre as articulaes entre cada
poca e a estrutura. Cabral (2006) entende que Lacan oporia histria e Histria, situando
a investigao histrica autntica do lado da primeira e a noo tradicional de histria,
sustentada em pretensas leis da histria, do lado da segunda. De acordo com o autor,
seria essa a histria que Lacan detestava. Uma histria que seria muito mais tributria
62
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95
Isso o que permite a Askofar afirmar que o sujeito tem coordenadas histricas e
culturais muito precisas.
64
Que o inconsciente do sujeito o discurso do Outro, eis o que aparece, ainda mais claramente do que
em qualquer lugar, nos estudos que Freud consagrou ao que chama de telepatia, na media em que ela se
manifesta no contexto de uma experincia analtica (LACAN, 1953c, p. 266).
96
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Um modo interessante de concluir esta discusso, mesmo antevendo que esse tema
espinhoso deixar sempre um resto, retomar o neologismo histoeria (hystoire)
proposto por Lacan no Prefcio edio inglesa. Nele o autor condensa histria e
histeria (alis, cabe comentar que em Lacan comparecem mais as condensaes
mantendo a tenso entre os termos em seus neologismos que as simples oposies), une
histria subjetiva - o sujeito, portanto - com histeria, estrutura que se particulariza por
evidenciar a incidncia do discurso do Outro sobre o sujeito. A histria do sujeito no
sem o discurso do Outro!
2. 4 - Do mal-estar na civilizao ao mal-estar na atualidade
Vimos no incio deste trabalho como Freud se surpreendeu com o fato de a cultura,
apesar de ser uma produo humana, no representar nenhuma garantia de felicidade.
Mais que isso, ao verificar que a cultura requer de seus indivduos, necessariamente,
uma perda de felicidade. Retomarei o texto freudiano sobre o mal-estar na civilizao e
o modo como localiza a perda que resulta do encontro do sujeito com a cultura com o
intuito de situar o que vem sendo nomeado, nesta poca, como mal-estar na atualidade.
no mbito do mal-estar na atualidade que vemos surgir o termo parentalidade,
oferecendo-se como uma resposta da poca ao que se l - do lado do especialista da
famlia - como um mal-estar parental, ou, conforme proponho neste trabalho, como um
modo de sutura da falta prevalente no lao social, sustentado no discurso da cincia em
sua determinao de forcluir o impossvel da educao. Impossvel localizado por
Freud, aos quais acrescentou outros dois: governar e psicanalisar65. O impossvel, furo,
falta ou perda necessria, nomes possveis do real, foi formalizado por Lacan nos
termos de no h relao sexual.
Em O mal-estar na civilizao Freud marca a contradio fundamental existente entre
civilizao e prazer, destacando o carter deste buraco, que deve ser conservado, uma
vez que ordena a dialtica do desejo. O mal-estar, portanto, se particulariza de acordo
com o que se apresenta como imperativo em cada poca. neste sentido que diversos
autores (destaco Charles Melman, Jean-Pierre Lebrun, Joel Birman) vm se dedicando a
circunscrever e ler o modo pelo qual o mal-estar se particulariza neste momento
histrico, ou, como mais freqente ser mencionado, o mal-estar na atualidade.
65
98
99
nem podem viver sem ela; devem estar juntos, separadamente (Rey-Flaud, 2002).
Mesmo que o autor no faa uma referncia direta, impossvel no lembrar a parbola
dos porcos espinhos relatada por Freud em Psicologia das Massas e anlise do eu,
dando consistncia formulao de que [...] nenhum homem suporta uma aproximao
demasiado ntima dos demais (FREUD, 1920-21, p. 2583, traduo livre).
Fao aqui uma breve parada para comentar o filme Onde vivem os monstros66 no qual
a iluso de estar juntos, em um mundo sem conflitos, comparece sob o desejo dos
personagens de dormir amontoados. Essa iluso, como possvel tratamento da falta,
logo se revela insustentvel, pois os furos no cessam de insistir. Contudo, se viver
juntos mal-estar, o filme mostra que as solues de cada um diante do mal-estar so
singulares e contingenciais.
O filme comea com um buraco que o garoto Max, de 10 anos, cavou na neve e que
chama de Iglu. Dentro dele sente-se protegido, inventa brincadeiras, faz-de-conta que
um rei. Max vibra com uma guerra de bolas de neve que deflagra contra os amigos da
irm que, j moa, no liga mais para ele, no quer mais brincar. A guerra termina com
a destruio de seu iglu. Max chora. A irm vai embora com os amigos. O menino, em
um acesso de raiva, destri um presente que fizera para ela. Ele sofre, angustia-se,
sente-se mal e culpado.
A me, quando chega, diz que, se estivesse em casa naquele momento, teria protegido o
filho... Pouco depois, Max novamente se sente s, a irm est crescendo, a me tem um
novo amigo, e o menino no encontra parceria para partilhar o prazer intenso que
experimenta nas suas brincadeiras. Em um acesso de fria, acaba mordendo a me e
foge.
Viaja por mares revoltos, luta contra ondas poderosas e finalmente atraca numa ilha.
l onde vivem os monstros. Monstros que ameaam devor-lo, mas Max os convence de
seus poderes. Podemos tambm pensar que os monstros querem ser convencidos,
anseiam por algum que faa essa promessa, que os iluda, que traga um sopro de
esperana. E, bem, Max muito bom nisso, tem um brilho no olhar e energia suficiente
para mobilizar todo o grupo.
66
Ttulo original: Where the wild things are, direo de Spike Jonze, 2010.
100
Os monstros consentem que Max seja o rei, um rei que poder livr-los da solido, que
promete mant-los juntos, afastar a dor, os conflitos... Esses monstros parecem sofrer do
mesmo mal que sofremos os humanos: para eles, estar juntos, apesar de inevitvel,
tambm mal-estar!
Na primeira noite, Max e os monstros dormem amontoados. Max no est mais sozinho.
Como rei, pretende reinar num mundo onde poder manter todos juntos e protegidos e
onde pretensamente os conflitos estaro do lado de fora.
O garoto vive os momentos de alegria sorvendo e saboreando cada instante. No filme, a
trilha sonora e a fotografia contribuem para que saboreemos tambm a delcia desses
momentos e que, assim como o monstro Carol, sonhemos com um mundo onde tudo
sempre bom e os conflitos possam ficar do lado de fora. Para Max e Carol, deparar-se
com o que foge ao previsto nesse mundo idealizado motivo para descontrole,
desespero e sofrimento.
Max traz algo de novo para o grupo, uma promessa, uma utopia? Os monstros fingem
acreditar nesse novo rei e por isso no o devoram? - para desfrutar do frescor que a
chegada deste jovem membro anuncia. Max acredita no tal mundo onde todos dormiro
sempre amontoados... mas se angustia com cada sinal de que isso no ser sempre
possvel.
Ser que o que est em jogo para Max tem a ver com o sofrimento da criana?
Sofrimento necessrio e contingente inscrio daquilo que no cessa de no se
escrever na estrutura? Um sofrimento que pertence ao tempo da infncia? Mas e Carol?
Ele parece viver o mesmo conflito que Max e j um monstro adulto.
Dar conta de que h sempre algo que escapa e se constituir como desejante, apesar
disso, ou para alm disso, ou ainda, fazendo o seu melhor com isso, uma tarefa pela
qual todos temos que passar e que passamos de diferentes maneiras. Os monstros do
filme no so s bons ou maus, mas mostram diferentes formas de dar conta daquilo
que escapa...
101
O filme se desenrola sem meno famlia de Max, ao lugar de onde vem. O garoto
est incumbido de manter todos juntos, de construir este mundo no qual os males e os
maus ficam de fora a promessa inclui arrancar o crebro daqueles que no so bemvindos e encontra em Carol um alter ego. Com ele tem a relao mais prxima, mais
intensa e se desdobra tentando garantir o que prometera ao amigo. Ele e Carol acreditam
que isso ser possvel. J os outros monstros... h uma que se mostra mais provocadora
e ctica, h outro que sempre soube que a promessa de Max era um engodo, mas queria
ver Carol feliz e h ainda KW, que abandona o grupo quando a coisa aperta...
Max dedica-se a planejar esse mundo onde todos podero sempre dormir amontoados,
mas os pequenos conflitos comeam a surgir: insatisfaes, demandas no satisfeitas,
provocaes. Numa cena em que Carol est desesperado e violento, KW oferece
proteo a Max, sugere que se esconda dentro de sua boca! A possibilidade de proteglo vem atrelada de literalmente devor-lo.
No toa, nesse momento que Max se lembra da me, daquela que teria protegido seu
iglu, daquela que ele mordeu (mas no devorou) e abandonou. Proteger...devorar...
consentir naquilo que escapa sem com isso se deixar devorar? No consentir, mas viver
abandonando o barco a cada vez que o mal-estar se impe?
tambm nessa cena e com esse monstro protetor (mas que, diante da falibilidade do
rei, de todos os reis, pois Max foi o nico que no devorou, foge, no fica para construir
o que possvel), de dentro de sua barriga, que Max fala de sua famlia, compartilha
como difcil viver em famlia. aqui que comea seu retorno para casa.
Diante do impossvel, do real, daquilo que escapa, os monstros at os monstros? reagem de formas diferentes, Carol torna-se violento e desesperado (como nosso
pequeno Max), KW abandona o grupo, os outros monstros mostram-se cticos ou
melanclicos.
Max retorna desta viagem diferente. No porque descobriu onde vivem os monstros, e
agora pode deix-los, mas talvez porque tenha descoberto que os monstros esto sempre
espreita e possa agora construir o seu modo particular de lidar com o fato de que nem
sempre dormiremos todos amontoados.
102
Remeto o leitor ao texto de Pommier intitulado O desejo de criana (...e seu avatar pedfilo) In:
Revista Literal Escola de Psicanlise de Campinas. Volume 11 sexualidade e(m) diferena.
Campinas, 2008, pp. 117-127. O autor parte do equvoco inerente expresso desejo de criana (desejo
de ter uma criana e desejo sexual por uma criana) tomando essas perspectivas como no antinmicas,
ainda que seja crucial que este segundo vis sofra a ao do recalque. Desse modo, possvel resguardar
o lugar da dimenso sexual na transmisso familiar em uma poca em que se pretende elidi-la sob o risco
de ser apreendida como uma forma de abuso.
103
indivduos na sociedade mais ampla. por isso que se pode dizer que no existe corte
entre o campo social e a cena familiar, o que se passa na vida social influencia a vida
familiar. Em outras palavras, a famlia reproduz em seu seio o limite ao gozo que a
civilizao cobra de seus integrantes. Decorre da que o que comparece no campo social
como mal-estar na atualidade no sem conseqncias para as relaes que se
organizam no mbito familiar.
Freud conclui: se a cultura nos impe to grandes sacrifcios, no apenas sexualidade,
como tambm a nossos instintos agressivos, podemos compreender melhor por que
to difcil para o homem alcanar a felicidade.
Ao propor a sua leitura do mal-estar na atualidade, Birman (2005) situa que o mal-estar
formalizado por Freud era j um mal-estar na modernidade. Lembra que em Moral
sexual civilizada e doena moderna, texto de 1908, Freud ainda apostava em uma
harmonia entre o sujeito e o social, e localiza as perspectivas teraputicas que investem
na harmonia do sujeito com o campo social e a medicalizao do social como um
retrocesso, dando corpo a uma psicanlise normativa, no condizente com a leitura
crtica de Freud sobre a modernidade, fundada no sujeito e seus impasses.
Se a psicanlise deixa claro que a desarmonia est na base da relao do sujeito com a
cultura, nem por isso aquele deixa de demandar a cura para seu mal-estar e seu
desamparo.
A iluso continua l, intacta, nos coraes e mentes dos indivduos.
Por isso mesmo, a psicofarmacologia, as neurocincias e o
cognitivismo vm cena para restabelecer a mesma crena e iluso
das subjetividades de que tudo ainda seria possvel. Esses saberes,
com suas tecnologias especficas, vm ao mundo para fazer a mesma
promessa e alimentar a mesma iluso de harmonia possvel, como
acreditava ainda o primeiro Freud (BIRMAN, 2005, p. 144).
A iluso de harmonia, e mesmo a demanda que ela gera, legtima. J em 1927, Freud
assinalava que o homem no poderia renunciar s iluses uma vez que elas so
necessrias para se tolerar a vida. As iluses so imperativas para se tolerar a condio
104
humana, logo no se pode prescindir delas68. Para operar, o discurso social conta com a
iluso, velando a verdade da desarmonia que nos estrutural, e tornando, dessa maneira,
a vida tolervel. Nessa linha, uma iluso no o mesmo que um erro nem
necessariamente um erro (FREUD, 1927, p. 2977, traduo livre), prescinde de toda
garantia, afirma Freud, outro modo de dizer que a iluso opera como um semblante. O
que se critica so os discursos que prometem garantir essa harmonia, [...] sem sequer
preocupar-se mais em saber se ou no semblante (LACAN, 1971, p. 27). Veremos a
seguir que o discurso cientfico aspira a elidir sua prpria dimenso de semblante ao
identificar-se com a verdade e pretender excluir o real.
Freud se ocupou do tema da iluso em El porvenir de una ilusion (1927) propondo que
as representaes religiosas nascem da mesma fonte que as outras conquistas da cultura:
da prepotncia sobre a natureza e tambm do impulso de corrigir as imperfeies da
civilizao. Diante do desamparo da infncia individual e da infncia da humanidade, as
iluses constituem-se em representaes que tornam tolervel o desamparo. E Freud
prope uma definio das representaes religiosas, ou seja, uma definio de iluso:
princpios e afirmaes sobre fatos e relaes da realidade exterior (ou interior) nos
quais se sustenta algo que no pudemos encontrar por ns mesmos e que aspiram a ser
aceitos como verdadeiros. (FREUD, 1927, p. 2973, traduo livre).
Nesse texto, Freud j detecta que a religio perde influncia para o discurso cientifico,
ainda que avalie que este ltimo no encontrara ainda, na poca, respostas para muitas
de suas indagaes. A substituio de um sistema de doutrinas por outro, diz ele,
implica que se proceda com a mesma rigidez e intolerncia; ou seja, o discurso
cientfico, para prevalecer, precisa valer-se das mesmas condies nas quais se firmou o
discurso religioso. Ao concluir que as doutrinas religiosas no so mais que iluses,
Freud passa a se perguntar se no o seriam outros fatores de nossa cultura, e localiza a
iluso na base da relao entre os sexos (perturbada por uma srie de iluses erticas).
Deduzo da que a iluso, dessa forma, est na base da relao entre os sexos, velando a
inexistncia da relao sexual.
68
No foi toa Freud teve de renunciar ideia de que, ao se esclarecer s crianas a sexualidade,
avanaria em direo diminuio das neuroses, j que verificou que elas no abandonam to facilmente
as suas prprias teorias - suas iluses - que manteriam a verdade como velada ou como mais tolervel.
105
Bem, a iluso, afixada na base do mal-estar que a cultura prevalece como recurso para
tornar tolervel a condio humana. Ento o que se modifica em cada poca o modo
de fazer frente ao mal-estar que a iluso pretender encobrir? Essa questo central
diante de autores (especialmente Charles Melman, em Um homem sem gravidade, e de
forma menos radical Jean-Pierre Lebrun em A perverso comum) que detectam no
indivduo contemporneo a pretenso de livrar-se da perda de gozo que a vida na
comunidade exige, ou, que a linguagem cobra, o que torna a iluso prescindvel.
Reproduzo a seguir a excelente formulao de Puj acerca do modo como se articulam
iluso e contexto histrico, com a qual concordo essencialmente, porque marca a
insistncia com a qual se pretende contornar a castrao inevitvel, mas no pressupe
um indivduo que se acredita realmente capaz de prescindir das iluses:
Podemos ento pensar que as formas de iluso que predominam em
um determinado contexto histrico, constituindo um modo
culturalmente ativo a servio de renegar a perda de gozo natural, que
em ltima instncia, denominamos castrao, representa um modo de
pensar a poca inspirado na descoberta freudiana, encontrando cada
poca o modo de resolver-se em seu limite para renovar-se sob a
forma de uma nova iluso (PUJ, 2006, p. 64, traduo livre).
Esse pequeno trecho tambm habilita uma resposta afirmativa pergunta formulada
acima: cada poca se renova sob a forma de uma nova iluso. Ento, o que se designa
como mal-estar na atualidade o tratamento dado contemporaneamente ao mal-estar na
civilizao. Destaco que tais afirmaes inscrevem a atualidade como uma poca a mais
na Histria, com particularidades, evidente, mas referida ao cenrio estrutural do malestar na civilizao e das iluses necessrias para toler-lo.
Ao longo deste trabalho, ressaltei algumas vezes um aspecto que est na letra de Lacan
e que serve como um vetor investigao que ora proponho, que o psicanalista sentirse convocado a estar altura de sua poca. Encontrei em Rey-Flaud (2002) a leitura de
que o princpio que sustenta O mal-estar na civilizao (j perceptvel em Totem e Tabu
e em Psicologia das massas e anlise do eu) consiste em que o destino do indivduo no
pode ser estudado fora do da comunidade na qual ele se insere. H diferenas
importantes entre o momento histrico em que Freud escreveu O mal-estar na
106
civilizao e o momento histrico em que Lacan props uma leitura desse mesmo malestar.
O social em que Freud imergia era o da Primeira Guerra Mundial e do entre-guerras,
enquanto Lacan fazia sua leitura diante de uma sociedade ps-Hiroshima e Auschwitz;
[...] se o primeiro podia compartilhar sem desconfiana o movimento cientificista de
seu tempo, o segundo no podia desconhecer as devastaes produzidas pela civilizao
tecnocientfica (LEBRUN, 2004, p. 18). E o autor se pergunta: trata-se do mesmo malestar? (Questo que parece perder o sentido quando observa que a formulao de Lacan
sobre os efeitos do discurso da cincia no mal-estar na civilizao deve-se mais ao
remanejamento operado por ele da descoberta de Freud do que a uma nova conjuntura
histrica, ou seja, trata-se do mesmo mal-estar, o que varia so as formas histricoculturais de contorn-lo.)
Se Freud se ocupava da perda de felicidade inerente vida em comunidade, atualmente
essa demanda comparece como um empuxo a gozar (LAURENT, 2007), no apelo
insistente e sedutor que o discurso capitalista, aspirando elidir a categoria do
impossvel, reafirma cotidianamente aos indivduos, ao empanturr-los gadgets. Nesse
sentido, a felicidade comparece como um imperativo no campo coletivo e na famlia.
H aqui um paradoxo: o mal-estar estrutural, que intrigou Freud, se encontra no fato de
que a cultura requer uma perda de gozo, mas a poca atual condensada no discurso
capitalista espera vender-nos a iluso de que no h limites para o gozo, oferecendo
objetos que tamponariam o menor indcio de falta.
Uma interessante anlise do modo como o imperativo de felicidade comparece na
contemporaneidade realizada por Brodski (2008), ao localizar o momento histrico em
que o empuxo felicidade tornou-se universal (a partir da Revoluo Francesa),
consolidando-se na busca de felicidade para todos e produzindo um achatamento do
singular no universal. , precisamente, a partir do momento em que a felicidade passa
do mbito privado ao mbito pblico, e que o pblico aspira manejar os corpos, que
esse mesmo discurso produz um resto (p.25) O imperativo de felicidade para todos
produz um resto que no se encaixa. A psicanalista reconhece na depresso uma objeo
ao universal e lembra que a maneira de a psicanlise tratar o real no se d pelo
universal, mas, ao contrrio, pelo mais singular de cada um.
107
69
Lebrun (2004) marca uma importante diferena entre o discurso do homem de cincia, o discurso
cientfico, e o discurso tcnico. No primeiro, a enunciao ainda est presente, no segundo h j o
apagamento da enunciao e mantm-se apenas a autoridade dos enunciados. No discurso tcnico - que
disponibilizado aos pais quando se pretende ensinar-lhes por meio de aulas a educar seus filhos - lidamos
apenas com enunciados, sem qualquer vestgio da enunciao, que, contudo, inaugurou a sequncia destes
discursos.
108
Birman (2005) surpreende-se com a insistncia com que a pergunta o que devo fazer?
tem sido feita ao analista. O autor marca que tal interpelao no indita, mas se
impe na atualidade com maior freqncia. Talvez o que no seja da mesma natureza
que antes a resposta do analista. Para o autor, isso significa que os destinos da
interpelao em pauta no foram necessariamente os mesmos para o sujeito. Pergunta:
como devemos tomar isso? O que se pode escutar nessa formulao desesperada? O
autor l aqui um convite da figura do analisando para a ao da figura do analista. Tratase de averiguar a natureza da demanda para verificar o que est em jogo na interpelao.
Nas instituies educacionais e na clnica com crianas, tal interpelao tambm
comparece, do lado dos pais, sob a forma de isso normal? ou o que devo fazer?.
Penso que a psicanlise faz resistncia aos outros discursos ao singularizar esta
demanda, diante de uma tendncia a homogeneiz-la e trat-la com respostas universais
e prt--porter. Destaco a produo terica e a atuao profissional de dois
psicanalistas, Franoise Dolto e Donald Winnicott, que, apesar das diferenas em seus
referenciais tericos, cuidaram insistentemente para que os pais fossem escutados - na
clnica, na instituio e at mesmo em programas de rdio - procurando conduzi-los a
produzir e implementar suas prprias solues, conforme veremos no prximo captulo.
Um exemplo da homogeneizao da demanda e da interveno do especialista munido
pelo discurso da cincia no mbito familiar, a Escola para pais70. O especialista da
famlia, ao convocar os pais a um retorno escola, transmitindo-lhes seus
conhecimentos especficos sobre a criana, institui o discurso da cincia no lugar da
transmisso. No lugar do saber inconsciente, da implicao, da angstia e dos riscos
implicados no ato educativo, impe-se um discurso totalizante, sem brechas, sem
excees, sem vazio, confirmando a formulao de Lacan sobre a criana generalizada.
Outra caracterstica de nossa poca o discurso democrtico e suas incidncias no s
no espao coletivo mas tambm no mbito da famlia. Lembremo-nos da famlia
democrtica, descrita por Gavarini (2008), e de suas caractersticas: regida pelo
70
Vale esclarecer que me refiro s propostas como a citada na introduo desta pesquisa ou, ainda, a
criao (na Frana) de um programa dirigido aos pais, trabalhadores sociais e associaes que atuam na
rea da infncia sob a forma de um Cd-rom intitulado ser pais hoje em dia. Ele se prope a fortalecer
as competncias das famlias com crianas de 7 a 16 anos (PLANTET, 2004). Tais propostas se
inscrevem em outro marco poltico ideolgico que as Escolas para pais, idealizadas na Frana na
dcada de 70.
109
110
111
72
Nada surpreendente ento que de todas as partes emerja o sentimento de ter que preservar o lao
parental (traduo livre).
73
No seminrio A tica da psicanlise, Lacan adverte sobre os riscos de se fazer o bem: Poder-se-ia de
maneira paradoxal, ou at mesmo decisiva, designar nosso desejo como um no-desejo de curar. Essa
expresso tem o sentido de alertar aos psicanalistas contra as vias vulgares do bem, tal como elas se
oferecem a ns, contra a falcatrua de querer o bem-do-sujeito (LACAN, 1959/60, p. 267).
74
Embora o autor contextualize esse discurso nas principais dificuldades enfrentadas pelo poder pblico
na Frana, onde a temtica da insegurana/violncia est na ordem do dia, avalio que o argumento pode
ser ampliado a outros contextos.
112
Optei por manter o termo parent no original para evitar os riscos resultantes de uma traduo
equivocada. Parents refere-se a pais, a pai ou a me; refere-se tambm queles que compem os
ascendentes de uma pessoa e, ainda, parent qualquer pessoa com a qual se tenha um lao de parentesco.
76
De acordo com Martin (2006b) o termo parentalidade uma traduo do termo anglo-saxo
parenthood, que designaria melhor as funes parentais que o termo parentesco.
113
114
77
Gavarini (2008) faz um interessante percurso dos direitos da criana ao direito criana.
78
Abordei esse tema em outra publicao: Clnica psicanaltica com bebs: uma interveno a tempo.
So Paulo: Casa do Psiclogo, 2005.
79
Para maiores informaes ver o manifesto Les lieux daccueil enfants-parents manifestent pour
lenfant, disponvel no endereo eletrnico:
http://www.pasde0deconduite.org/IMG/pdf/lieux_accueil_parents_enfants_manifeste-2.pdf.
115
116
Em 2009 foram registrados cerca de 188 mil divrcios no Brasil, ou seja, para cada cinco casamentos
h um divrcio (Fonte: IBGE) .
81
Na Frana, em 2004, quase a metade dos bebs nasceram de um casal vivendo em unio livre (em 1965
apenas 6% dos bebs teriam nascido fora do casamento. (LAURENT, 2010a, p. 150)
82
Neyrand (2006) cita pesquisas sobre a dificuldade da manuteno do lao paternal alguns anos depois
da separao (50% dos pais no v nunca, ou v raramente seus filhos aps a separao conjugal) dado
que contribuiria para a promoo da co-parentalidade conforme o interesse da criana.
117
expressamente clamada pela criana, pelo desejo de continuar o convvio com seus pais
e esse clamor foi plenamente compreendido e protegido pela Lei83.
No Cdigo Civil francs, a autoridade parental definida pelo artigo 371-1, que
determina terem por finalidade os direitos e os deveres dos pais "o interesse da criana"
e conclui anunciando um novo dever para estes: "Os pais devem associar a criana nas
decises que lhes concernem diretamente segundo a idade e o grau de maturidade"
(GAVARINI, 2009).
No Brasil, a Constituio Federal de 1988 assegurou direitos iguais entre homens e
mulheres, confirmando a igualdade de direitos e obrigaes entre estes diante do
casamento e dos filhos. Em harmonia com a Constituio da Repblica est o Estatuto
da Criana e do Adolescente, Lei 8.069/90, que contemplou a igualdade conjugal e a coresponsabilidade parental, obedecendo aos preceitos constitucionais, quanto
preocupao do melhor interesse da criana.
Com a Conveno Internacional dos Direitos da Criana (1989), tratado internacional
do qual o Brasil signatrio, a criana passou a ser reconhecida como sujeito de
direito84 - o que tem contribudo para a evoluo das crenas sobre A-Criana85. A
criana tambm passou a fazer a famlia, dado que esta no mais fundada pelo
matrimnio. As decises jurdicas concernentes famlia passaram a ser regidas em
nome do interesse da criana, e, a partir da introduo da noo de consentimento da
criana, esta foi lanada irreversivelmente no centro de todo o processo: A criana
pode ser consultada nas questes relativas sua educao, mas tambm em caso do
divrcio contencioso dos pais. A doutrina jurdica deixou de considerar as necessidades
da criana promulgao do interesse da criana (GAVARINI, 2009, p. 6).
83
118
Dizer que a criana passou a fazer a famlia pode parecer uma metfora, mas no ,
trata-se de uma prescrio sustentada nas novas fices jurdicas em torno da famlia:
Doravante, qualquer que seja a situao jurdica do casal, o nascimento de uma
criana que cria socialmente uma famlia (Relatrio da Misso da Assemblia
Nacional sobre a Famlia apud LAURENT, 2010a, p. 150, traduo livre).
Considerada uma funo, a parentalidade se decompe em mltiplas dimenses
(biolgica, social, simblica, genealgica); combinada com um sufixo, ela permite
qualificar as configuraes nas quais o parentesco social no corresponde ao parentesco
biolgico. Penso que quando proposto que o termo parentalidade permite o
descolamento entre o genitor e aquele que ocupa o lugar, vale lembrar (mesmo que
isso no consista em uma objeo ao uso do termo parentalidade para designar as novas
formas de famlia) que desde as pesquisas empreendidas por Lvi-Strauss, a famlia
definida como um fenmeno de ordem cultural, no redutvel ao acontecimento
biolgico (aspecto frisado por Lacan em 1838).
O termo parentalidade teria, ento, se imposto para responder questo seguinte: quem
so os pais? Como melhor nomear aquele que ocupa o lugar de parent? Parte-se da
constatao de que o lxico antropolgico do parentesco no permite designar o fato de
hoje no serem apenas os genitores a ocupar esse lugar e a desempenhar essa funo. O
que estar cada vez mais em jogo ser a vontade individual de ocupar este lugar
(MARTIM, 2006b).
O termo parentalidade abre espao nomeao e ao reconhecimento jurdico de laos
estabelecidos no mbito da famlia e que, sem isso, ficariam no limbo. Reivindica-se,
em ltima instncia, a legitimao de laos parentais no oriundos de laos de sangue,
ou melhor, o que est em jogo no s a nomeao, mas a regulao86 desses laos.
Retorno aqui a uma proposio de Tort (no captulo 2): no que diz respeito s novas
formas de famlia, a parentalidade revela-se uma inveno terminolgica na qual se
busca sair de uma contradio, retratando uma inventividade da definio prtica. Ou
seja, o que est agora em questo no uma definio terica, mas prtica, amparada
86
Maria Consuelo Passos (2005) alerta para a clandestinidade na qual vive boa parte das famlias
homoparentais, ao no serem legitimadas social e juridicamente, de modo que a vergonha, a mentira e o
silncio so uma constante em suas vidas e um aspecto no descartvel do ponto de vista da constituio
da subjetividade.
119
em prticas sociais j existentes e que precisam das fices jurdicas para sair da
clandestinidade.
O que vale destacar, do ponto de vista da psicanlise que o irredutvel da transmisso
familiar no se garante com a introduo do termo parentalidade e que a famlia como
resduo no se confunde com o amor parental pelos filhos. Alis, no h garantias na
transmisso e, menos ainda sobre seus efeitos; ou seja, desse risco, nem uma nova
terminologia nem as fices jurdicas ou as polticas de apoio parentalidade podem
nos liberar.
Em referncia a essa vertente do termo parentalidade, ela parece dar conta das
transformaes na famlia ao nomear e regular o lugar daqueles que assumem as
funes parentais, para alm das figuras biolgicas de pai e me. Entretanto, devemos
ser cuidadosos ao pretender estend-la a outros campos, porque, como veremos a seguir,
o termo parentalidade no dissocivel dos discursos que lhe so subjacentes. Se, por
um lado, a parentalidade convocada para legitimar novos laos familiares, por outro
veremos que, ao oferecer-se PARA TODOS os pais, produz um efeito de
homogeneizao, normalizao e diluio das diferenas no campo da famlia.
3.3 - A parentalidade como um discurso de ordem pblica
H ainda uma terceira vertente de investigao e de investimento na parentalidade: a
parentalidade como um discurso de ordem pblica. Nessa vertente, situam-se os
discursos veiculados pelo especialista da famlia, pelos profissionais implicados no
atendimento direto s crianas e s suas famlias e pelos poderes pblicos em sua
preocupao manifesta com os rumos das famlias na atualidade.
Darei continuidade ao estudo sobre o neologismo parentalidade a partir de um recorte
sobre as origens das polticas pblicas de apoio parentalidade na Frana. Nesse
percurso, veremos que o termo, alm de se referir a teorias psicolgicas e de representar
um facilitador para o ordenamento dos novos laos familiares pelas fices jurdicas,
tambm indissocivel do discurso no qual se origina e das prticas que lhe so
subjacentes.
120
87
nesse sentido que penso que o mal-estar na atualidade se particulariza na famlia. A ascendncia da
autoajuda e do aconselhamento no uma caracterstica exclusiva dela famlia, mas um trao do modo
predominante nesta poca de fazer frente ao mal-estar que a civilizao.
121
88
89
122
123
substituio parental), mas passariam ao estatuto de vtimas. Seriam agora, aos olhos do
poder pblico, pais em sofrimento, que demandavam escuta e apoio. A ao
profissional sofreu um giro importante: no se tratava mais de limitar as prticas
parentais patognicas, e a noo de cooperao passou a fazer parte da ao profissional
junto aos pais (PIOLI, 2006).
A passagem da culpabilidade dos pais para sua vitimizao, relatada por Pioli, me levou
a refletir sobre os riscos de serem tomados, por um lado, como vtimas e impotentes,
instituindo prticas assistencialistas, que repercutem na dependncia e na infantilizao
em relao s instituies mantidas pelo poder pblico e, por outro, como malagradecidos ao no se submeterem completamente (pais que tentam recuperar a
subjetividade em um sistema que est organizado para despoj-los dela),
reintroduzindo-se a via da culpabilidade e da distncia dos mesmos em relao ao que
se preconizaria como bons pais. Nos discursos sustentados pelos profissionais da rea
social e educacional, os pais so lanados de um plo ao outro: ora so vistos como
vtimas, ora como abusivos.
Em 1994 foi criado um grupo de trabalho pluridisciplinar e pluri-institucional dirigido
por Didier Houzel com o objetivo de trabalhar mais especificamente a parentalidade.
Buscaram-se precisar as conseqncias de situaes de rupturas total ou parcial dos
laos pais-filhos tanto para a criana como para cada um de seus pais, partindo das
seguintes questes: em que medida h possibilidade de manterem esses laos e
fortalec-los, ou, ao contrrio, de limit-los? Em que condies a manuteno desses
laos favorvel ao desenvolvimento psquico da criana, ou, ao contrrio, prejudicial
a ele? Qual o significado para a criana desses laos de filiao quando eles no esto
mais em estrita correspondncia com seus laos afetivos e educativos atuais?
Os especialistas reunidos sob a direo de Houzel propuseram distinguir, na
parentalidade, o exerccio (os direitos e deveres), a experincia (a dimenso subjetiva) e
a prtica (as tarefas cotidianas), e destaco, entre esses eixos, o modo como os autores se
posicionam diante do primeiro. O exerccio da parentalidade entendido como
prximo ao sentido jurdico, ao situar cada individuo nos seus laos de parentesco e
com isso, nos seus direitos e deveres. O direito legisla os aspectos jurdicos do
parentesco e da filiao, e diante da franca turbulncia da evoluo dos costumes e da
124
reproduo assistida, preciso discriminar lao biolgico, lao social e lao jurdico.
Houzel (2004) avalia que no se trata de tomar uma posio, mas adverte que faltam
estudos informativos dessas situaes (formas modernas de parentalidade e impacto
sobre o desenvolvimento psquico da criana):
Nosso dever, me parece, no tomar posio, do que, alis, me
isentarei, mas chamar a ateno dos que decidem para alm das
consideraes jurdicas ou de aspectos sociolgicos desses
problemas, sobre as conseqncias para o desenvolvimento psquico
da criana da situao na qual aqueles que se encarregam dela
exercem sua parentalidade92 (p. 49).
Conforme marquei no captulo 2, no tratarei de antecipar ou traar um veredicto sobre o que ser das
crianas educadas nas novas configuraes familiares. Recomendo queles que possam interessar-se
sobre esse tema a leitura de artigos de Genevi Delaise de Parsival.
125
antecipao:
presumidas como
126
Essa observao me fez recordar uma constatao recente de uma orientadora educacional de uma
escola de educao infantil: os pais tm procurado insistentemente a orientao da escola para certificarse de que seus filhos so normais.
127
De acordo com Volpe (2011), o discurso do especialista foi definido por Claude Lefort
como discurso tcnico especializado, um discurso legislador e pedaggico, passando a
reger as relaes sociais. Lash identificou a figura do especialista com as novas
profisses auxiliares da famlia, que supostamente dominariam as tcnicas necessrias
para mediar as relaes sociais, partindo do consenso de que aquela no poderia mais
dar conta de suas prprias necessidades.
94
Em uma pesquisa, 65% dos professores avaliaram que o envolvimento da famlia na educao dos seus
filhos essencial para a melhoria na qualidade de ensino, porcentagem significativamente acima da que
foi atribuda importncia da formao dos professores na qualidade do ensino. Fonte: MARCHESI, A.
(2008) O Bem-estar dos professores. Porto Alegre: Armed.
95
LASCH, C. (1991) Refgio num mundo sem corao. Famlia: Santurio ou instituio sitiada? So
Paulo: Paz e Terra.
96
COSTA, J. F. (2004). Ordem mdica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edies Graal.
128
97
129
condutas
adequadas
de
que
os
profissionais
dispem
desse
130
filhos sem que eles tenham sequer que nome-las, e, se chegam a nome-las, isso no
necessariamente bem-vindo, pois pode contrariar os profissionais em questo. Esse
um bom exemplo de como o interesse da criana, quando comparece como um
imperativo, pode se sobrepor ao interesse de cada criana e possibilidade de um
sujeito (seja ele adulto ou criana) enunciar uma demanda. Trata-se de uma das facetas
pelas quais a infncia generalizada, preconizada por Lacan, comparece na atualidade.
Resta a indagao sobre o quanto no seriam os prprios profissionais os
desencadeadores nos pais da expectativa sobre a existncia de um bom modo de ser pai
ou me, se essa demanda no seria gerada pela oferta do especialista que sustenta seu
discurso numa avaliao pr-concebida dos pais como incompetentes e insuficientes,
justificando a interveno.
Um ltimo comentrio sobre a pesquisa de Volpe: a autora destaca o modo como a
iluso da existncia de um ns98 se atualiza no discurso do especialista da
subjetividade: ele costuma apresentar-se tambm como pai ou me, de forma que no
haveria diferena entre o especialista e os pais; juntos, eles formariam um ns [...] que
compartilha da mesma experincia - ter filhos -, e das mesmas dificuldades (VOLPE,
2011, p. 187).
Se o cenrio em torno da insuficincia parental e da inevitabilidade da interveno
ganha cada vez mais consistncia, h tambm autores e pesquisadores que, como Volpe,
criticam essa posio e defendem um no-intervencionismo. Malat (2006) avalia que os
profissionais devem se ressituar, uma vez que no so os observadores da famlia, os
avaliadores do comportamento dos pais. A autora critica especialistas que querem nos
fazer crer na existncia de uma funo puro sangue materna e outra paterna e que a
atuao do bom trabalhador social consiste em observ-los, descrev-los, contabiliz-los
e, a partir de uma avaliao microscpica, envi-los ou no ao juiz. Nessa
perspectiva, a famlia estaria reduzida a um conjunto de competncias educativas.
Ao dirigir-se aos trabalhadores sociais, Malat lembra-os de que no so exteriores
sociedade diante da qual se posicionam como observadores, mas fazem parte dela e,
frequentemente, so tambm pais e sentem na pele o peso da avaliao externa de suas
98
131
Dessa forma, vrios autores que se dirigem aos profissionais da infncia, (MARTIM,
2006b, MALAT, 2006 e GIAMPINO, 2006) avaliam que preciso abordar os pais de
outra maneira, que os profissionais se ressituem diante daqueles. Declaram inclusive
que se trata de recusar a perspectiva de apoio parentalidade: Podemos eventualmente
auxiliar os pais em suas tarefas educativas, apoi-los nos momentos de dificuldades
ligadas aos acontecimentos da vida. No se trata em nenhum caso da parentalidade que
dever ser sustentada (GIAMPINO, 2006, p. 34, traduo livre, grifo meu).
Partilho com Giampino a posio de que no se trata de apoiar ou sustentar a
parentalidade e acrescento que as funes parentais no podem ser homogeneizadas,
tampouco se conformam a partir de um universal. Destaco a seguir outra afirmao
contundente da psicanalista, na qual pretendo me deter: Apoiar a parentalidade,
acompanhar os pais, deve ser, antes de querer corrigir as parentalidades, evitar arruinlas (GIAMPINO, 2006, p. 43, traduo livre). Ainda que a autora no faa referncia a
Winnicott, o psicanalista ingls manifestava a mesma preocupao, assim como refletia
sobre os danos que um especialista poderia causar ao interferir no campo da
maternidade e da paternidade.
99
Tal confuso aparece, por exemplo, quando educadores de abrigos que acompanham as crianas a
atendimento psicolgico viabilizado por uma rede profissional organizada por uma ONG, demandam
instituio que se responsabilize pelo atendimento psicolgico de seus filhos.
132
133
134
135
O autor parece se referir a um empobrecimento das relaes, de uma forma geral como
efeito da interferncia massiva no mbito da famlia. Nesse sentido, faz diferena se
pensamos que os discursos normativos e ortopdicos vm socorrer os pais no exerccio
de suas competncias ou se entendemos que esto j na base do mal-estar parental na
atualidade, contribuindo para o sentimento de insuficincia e incompetncia parental.
O termo lar bom e normal utilizado por Winnicott pareceu-me inicialmente uma
adjetivao, uma valorao da famlia, mas o modo como ele define o define 136
137
pais se separam, por exemplo, no teria as condies necessrias para conduzir seus
filhos maturidade emocional. Mas o autor toma o cuidado de frisar que a
desintegrao da estrutura familiar no implicaria necessariamente o aparecimento de
sintomas psquicos em sua prole.
No mesmo texto, possvel destacar outro cuidado do psicanalista em relao s
concluses s quais os leitores poderiam chegar: Por mais que uma famlia faa tudo
do melhor por um dos seus filhos, isso no garantia de que a criana v desenvolver-se
at atingir a plena maturidade103 (WINNICOTT, 2001, p. 135). Pois bem, na famlia,
no h garantias. Que Winnicott o formule desta maneira me tranqiliza: mesmo que a
famlia permanea invicta, no h garantias.
Ao tomar como referncia as formulaes lacanianas sobre a famlia, situei que o que
deve permanecer intacto o formulado por Lacan como resduo, o irredutvel da
transmisso: a funo da me, cujos cuidados levam a marca de um interesse
particularizado, ainda que pela via das prprias faltas e a funo do pai, na medida em
que seu nome o vetor de uma encarnao da Lei no desejo. No mais, no h famlia
intacta. No h famlia intacta em relao s mudanas que ocorrem no lao social, no
h famlia intacta desde e sempre que exista famlia. Mesmo que Winnicott atribua a
desintegrao a separaes, conflitos ou instabilidades conjugais, teramos que pensar
que a morte de um dos cnjuges, por exemplo, promoveria tal desintegrao; de modo
que ficamos sem saber o autor ficaria alarmado diante das famlias nas modalidades
pelas quais elas se apresentam na atualidade. Mas, intactas ou no, na famlia no h
garantias, e o psicanalista ingls claro nesse ponto!
Apesar da preocupao com a interferncia do especialista na famlia, Winnicott no
recusou o convite para fazer um programa de rdio na BBC de Londres; entre 1939 e
1962, ele proferiu cerca de 50 palestras radiofnicas dirigidas aos pais, e o livro
Conversando com os pais rene todas as realizadas depois de 1955. Winnicott (1999)
inicia o captulo 1, intitulado Educao para a sade atravs do rdio, com o seguinte
comentrio: [...] deve ficar claro que no sou, na verdade, especialmente favorvel
103
Lembremos que para o autor maturidade sinnimo de sade. O modo como define um adulto
maduro, aparentemente simples, , a nosso ver, digno de nota: Pode-se dizer que o adulto maduro
capaz de identificar-se a agrupamentos ou instituies sociais sem perder o sentido da continuidade
pessoal e sem sacrificar em demasia seus impulsos espontneos [...] (p 137).
138
104
Nos seus programas de rdio, Dolto criticava os saberes pedaggicos e se recusava a dar aos pais
regras educativas referentes a um sistema de valores particular, assim como se recusava tambm a
fornecer indicadores cronolgicos; marcava dessa forma que o ritmo e a histria prpria do desejo da
criana devem ser sustentados (FRANOIS, 1992).
105
Nos seus programas de rdio, os pais dirigiam a Dolto perguntas que geralmente se referiam ao
cotidiano das famlias: o sono, o ritmo dirio, o controle dos esfncteres, a entrada na pr-escola, etc.
Algumas vezes eles traziam dificuldades mais especficas e, quando a situao parecia mais grave, Dolto
enfatizava a necessidade de os pais recorrerem a uma ajuda especializada. Assim como Winnicott,
mostrava clareza sobre os limites e alcances das intervenes.
139
Como para sua abertura a fachada fora pintada de verde e como as crianas j a nomeavam Casa
Verde, esse nome foi mantido. No entanto, algo do chiste se instaurou no nome, dado que se falava da
Maison Verte (Casa Verde) e da Maison Ouverte (Casa Aberta): a sonoridade permitia o equvoco, que
foi escutado por This (2007) como referido s outras tantas instituies que foram inauguradas em toda a
Frana e em outros pases, assim como abertura na qual os fundamentos dessa instituio repousavam.
107
Na Maison Verte h algumas regras que devem ser observadas. Para as crianas: os brinquedos no
podem ser levados para casa, pois eles pertencem a todos; para brincar com gua, necessrio vestir o
avental, para brincar com as motocas, preciso respeitar a linha vermelha que delimita a zona para esta
atividade. Para os adultos: a presena do adulto tutelar obrigatria.
108
Em 1977 a rdio France Inter convidou Dolto a participar de uma srie de emisses destinadas a
ajudar os pais com dificuldades com seus filhos. Mesmo que a proposta fosse ao encontro de suas
preocupaes do momento, ela hesitou em aceitar (FRANOIS, 1992). No primeiro tomo de Quando a
criana aparece, Dolto faz o seguinte comentrio: No seria ento possvel ajudar os pais em
dificuldades a expressar-se, a refletir sobre o sentido das dificuldades de seus filhos, a compreender estes
e a acudi-los, no lugar de procurar faz-los se calar ou ignorar os signos do sofrimento infantil [...]
Informar os pais, responder a sua demanda de ajuda. Desdramatizar as situaes bloqueadas.
Desculpabilizar uns e outros, a fim de despertar os poderes de reflexo [...] Isso seria possvel? No teria
que tentar fazer a experincia? [...] Certamente no se tinha que esperar muito deste tipo de emisso, mas
seria esta uma razo para se subtrair a isso? Certamente isso provocaria, por mais que se dissesse, muitas
discusses? Mas seria esta uma razo para no provar? (DOLTO apud FRANOIS, 1992, p. 183/184,
traduo livre). No mesmo momento em que a Maison Verte abria suas portas, os trs livros que
testemunhavam o dilogo de Dolto com os ouvintes da emisso de rdio da France-Inter eram lanados.
140
suas atitudes educativas, conversar com outras pessoas que possam auxili-los em suas
dificuldades. O que se lhes demanda que acompanhem seus filhos, que permaneam e
que contribuam com uma participao financeira.
A Maison Verte no pretende confundir-se com um berrio, com uma creche ou com
um centro de atividades organizadas. Os autores do projeto so enfticos: ela no pode
ser comparada a outras instituies criadas para responder s demandas dos adultos.
Diferencia-se, ainda, de um espao de tratamento, de um espao pedaggico, ou de uma
escola para pais: Dolto insistia em que esses centros de lazer da primeira infncia no
fossem burocratizados, medicalizados e psicologizados, mas permanecessem como uma
espcie de jardins pblicos abertos, sem matrcula e sem instruo (LEDOUX, 1991, p.
186).
Um dos fundadores109, Bernard This (2007), justifica o distanciamento que a Maison
Verte assume em relao s escolas para pais: no com princpios educativos de outros
que se educa um filho; os pais no esperam receber conselhos ou tcnicas. A
especificidade da Maison Verte parece residir no apenas no que ela se prope a fazer,
mas naquilo a que se recusa, estabelecendo-se em uma total ruptura com relao s
estruturas mdico-pedaggicas ou assistenciais clssicas.
preciso um certo cuidado ao abordar o pedido de conselhos por parte dos pais. A
formulao de This pode levar a estabelecer que bons pais seriam aqueles que sabem
que, na transmisso, no se trata de se orientar por conselhos. A observao de
Malandrin (2009), que tambm est entre os fundadores da Maison Verte, de que os pais
demandavam mais conselhos no incio faz pensar que a demanda diminui diante do
modo pelo qual tomada nesee dispositivo.
Bernard This, em seu livro dedicado Maison Verte, pergunta: Por que os pais vm
Maison Verte com suas crianas? [...] a prpria situao, mais que nossas
intervenes de toda maneira muito marginais e que explicam apenas parcialmente os
efeitos benficos constatados (2007, p. 56, traduo livre). Entendo que o que This
define como a prpria situao remete ao fato de que a estrutura de acolhimento
109
Formavam a equipe fundadora da Maison Verte Franoise Dolto, Bernard This, Pierre Benoit, Colette
Langignon e Marie-Hlne Malandrin.
141
Lebrun (2004) detecta no indivduo contemporneo a pretenso de livrar-se da perda de gozo que a
vida na comunidade exige e, nas instituies, a dificuldade de sustentar essa perda necessria. LEBRUN,
J.-P. (2004) Um mundo sem limite: ensaio para uma clnica psicanaltica do social. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud
111
Malandrin (2009) pontua que Dolto precisou de um certo tempo para moderar a tonalidade e rapidez
de suas intervenes, tendo que se lembrar de que estava num centro de acolhimento.
142
O anonimato est no centro do dispositivo, mesmo que possa gerar certo mal-estar no
pblico atendido, nas equipes de trabalho e, sobretudo, nas agncias financiadoras,
preocupadas em medir e produzir dados estatsticos. Com o anonimato, recusa-se a
formalidade de inscrio e a visada pedaggica ou diagnstica, j que no se pretende
avaliar as crianas ou produzir dossis mdicos ou administrativos.
No entanto, a presena do anonimato no implica a oferta de um acolhimento annimo.
Vale explicitar de que forma este dispositivo se atualiza no cotidiano da instituio.
Quando a criana chega, seu nome anunciado e registrado numa lousa, seu sobrenome
no demandado. Acredita-se que o sobrenome esteja ligado identidade civil e social,
mais que construo de sua identidade afetiva. A finalidade da regra silenciar o
estatuto social das famlias, um silncio que liberaria os pais e os profissionais do
imaginrio no qual encerram certas profisses, certas situaes, certos nomes. O que
est aqui em jogo uma tentativa de dar um tratamento dimenso imaginria de modo
que ela no seja a norteadora da escuta e das intervenes dos profissionais. Vejo nessa
tentativa - desde que seja tomada sempre como uma tentativa e no como uma pretenso
de excluso da dimenso imaginria - um cuidado importante no que se refere s
relaes estabelecidas entre as famlias e os profissionais, sobretudo quando estes
ltimos se autorizam a intervir, orientados por uma leitura de ordem imaginria. Estas
intervenes ocorrem cotidianamente nas instituies educacionais ou assistenciais,
quando, por exemplo, atribui-se a uma me ou um pai que no levam ou buscam seu
filho nas atividades o adjetivo de pais ausentes ou atribui-se s famlias recompostas
ou monoparentais a pecha de famlias desestruturadas.
Malandrin lembra que a regra do anonimato surpreende mesmo na Frana. Foi aceita
pelo poder pblico no projeto inicial, mas incomoda muito os financiadores que veem
nela uma contradio ao desejo de preveno e controle. Em uma entrevista112 realizada
com Malandrin, Schauder (2009) diz que o anonimato se justifica, sobretudo
atualmente, diante da ascenso do discurso cientfico nas instituies, como uma
proteo diante de pesquisadores que preconizam a poltica de preveno, mas uma
112
A publicao mais recente sobre a Maison Verte data de 2009 e recebe o ttulo Uma psicanalista na
cidade, a aventura da Maison Verte. Foi organizado por Marie-Hlne Malandrin e est dividida em
trs grandes partes. A primeira se apresenta sob a forma de uma entrevista, concedida a Claude Schauder
que recebeu o ttulo: educao/psicanlise, um enodamento impossvel? A segunda rene documentos
de arquivos da Maison Verte (1976-1992) e a terceira uma compilao de textos de Franoise Dolto
sobre a Maison Verte (1978-1988).
143
144
detentor do saber. Penso que os riscos institucionais esto colocados para todos, mesmo
para os mais advertidos, e, apesar dessa preocupao sempre presente e intrnseca ao
dispositivo, as diferenas na formao, as tentativas de fazer prevalecer um discurso
sobre os outros e as disputas institucionais fizeram parte do percurso da instituio e
podem ser localizadas na leitura do livro de Bernard This, nos documentos e cartas
reproduzidos no ltimo livro sobre a Maison Verte e na entrevista que Malandrin
concedeu a Schauder.
Contudo, destaco dois pontos essenciais que me parecem centrais na busca pela
manuteno dos princpios que estiveram na origem do projeto da Maison Verte: o
primeiro o entendimento de Dolto que a paridade salarial114 (igualdade de salrios
entre todos os profissionais que atuavam na instituio) deveria ser garantida - Dolto
ameaou retirar-se do projeto caso isso no ocorresse -; o segundo a recusa de
submeter-se ao processo de avaliao proposto pela Fondation de France.
A eficcia do dispositivo tambm atribuda ao fato de os profissionais compondo
uma equipe que se modifica a cada dia e para a qual h a preocupao de garantir pelo
menos a presena de um homem115 no se proporem como bons pais substitutos e no
se identificam com um lugar de saber. Resta verificar se de fato este aspecto
preservado no fazer cotidiano desta instituio, ou seja, se no h um atravessamento de
uma maestria nas relaes que se estabelecem entre os profissionais e os pais. Ainda
que algo de maestria ou prescrio possa escapar nas intervenes dos profissionais, o
que me parece estar preservado na escolha por no traduzir este dispositivo em um
modelo a ser replicado e por no fazer concesses diante das agncias financiadoras a
manuteno de um lugar para inveno na interveno sustentada no discurso
psicanaltico116 e no lugar de sujeito do desejo para a criana. Ao recusar-se
114
Esse ponto aprofundado na entrevista concedida por Marie-Hlne Malandrin a Claude Schauder no
livro Une psychanalyste dans la cit.
115
O esforo por garantir a presena de pelo menos um homem diariamente na instituio abordado por
Bernard This (2007). O autor fala em paridade, presena masculina e funo paterna, procurando
inscrever o cuidado em garantir a presena do pai - por exemplo, na deciso de abrir a instituio aos
sbados tarde - na leitura lacaniana da funo do pai. Incorre, a meu ver, em uma imaginarizao das
formulaes de Lacan. Aubourg (2009) apresenta uma explicao menos pretensiosa e mais simples
acerca da presena dos homens no cotidiano da instituio: a equipe mista porque na idade em que
esto em jogo as identificaes sexuais, importante que a criana possa ter uma aproximao com os
dois sexos encarnados e no somente no discurso (p. 7, traduo livre).
116
Malandrin (2009) observa que a psicanlise mantm sua vitalidade na Maison Verte, enquanto em
outras instituies que recebem crianas ela permanece apenas como uma referncia no mbito das
supervises.
145
avaliao117 e ao controle pelo poder pblico, a Maison Verte tambm recusou o para
todos igual inevitvel em qualquer poltica pblica. Assim, dizer no para a
institucionalizao, para a avaliao e para a replicao dizer no ao para todos os
pais que ordena as polticas pblicas que se instituem na mesma poca na Frana,
visando ao apoio parentalidade. neste ponto que a Maison Verte se define como uma
instituio singular, impossvel de ser enquadrada nos dispositivos existentes na
atualidade.
A Maison Verte serviu de inspirao para outros dispositivos que foram criados ao redor
do mundo (Blgica, Rssia, Sua e mesmo no Brasil, no Rio de Janeiro, com o nome
de A casa da rvore) e foi utilizada como modelo para o poder pblico francs para a
criao de uma srie de centros de acolhimento pais-criana ao redor do pas. Contudo,
recusou a proposta de compor uma federao de centros de acolhida, recusou a
superviso, a formao, ou filiao, acreditando que cada instituio deveria encontrar
seu caminho e mesmo o caminho para financiar seu projeto. Schauder props a criao
de uma federao para gerar impacto no poder pblico e nas demandas de avaliao que
eram associadas possibilidade de se obter um financiamento. A Maison Verte via
como ilusria a possibilidade de estabelecer critrios comuns para fundamentar o
trabalho realizado nos centros. Para Malandrin, tratou-se de uma escolha pela tica:
Em nome de que critrios comuns podemos validar esses centros? Sua legitimidade
conferida pelos pais, na utilizao que eles fazem do dispositivo, que est a seu servio
e de sua criana (MALANDRIN, 2009, p. 45, traduo livre).
Em 1991, a Fondation de France, responsvel pelo financiamento das atividades
desenvolvidas na Maison Verte, enderea-lhe uma carta adiantando um trabalho de
avaliao a ser realizado, que permitiria valorizar sua ao junto a instituies locais e
nacionais. Naquela poca, essa Fundao mantinha aproximadamente 30 centros de
acolhida pais-criana. Em 1992 foi unnime no grupo que atuava na instituio naquela
poca a deciso de se retirar deste estudo, deciso que gerou uma carta aberta118. Nesta,
117
O tema da avaliao tratado com rigor em duas obras recentes: NAJLES, A. R., (2008) Problemas
de aprendizaje y psicoanlisis. Buenos Aires: Gramma Ediciones e por MILLER, J.-A. e MILNER, J.C.(2006) Voc quer mesmo ser avaliado? entrevistas sobre uma mquina de impostura. So Paulo:
Manole.
118
Essa carta foi redigida por Marie-Hlne Malandrin e consta como documento n. 19, de abril de 1992.
Reproduzo a seguir um trecho: A Maison Verte uma experincia que criou uma situao nova na
cidade pela introduo deste dispositivo de trabalho. Esta inovao na sua pesquisa clnica no pode
146
os profissionais mostravam seu ceticismo e suas srias reservas acerca de uma avaliao
objetivizante, que poderia induzir a distores das opes de base assumidas na
instituio (paridade de salrios, rodzio dirio da equipe, recusa de reunio de sntese,
anonimato, etc).
Se, por um lado, a Maison Verte faz resistncia aos avanos do discurso da cincia
propondo um dispositivo no qual a criana tomada como um sujeito, por outro, parece
evitar identificar-se com um ideal, um modelo ideal de instituio, o que convm em
um dispositivo que firma suas bases na ausncia de ideais, de crianas ideais, de filhos
ideais, de pais ideais. Sustenta-se, assim, como uma instituio furada, incompleta, no
detentora de uma verdade vlida para todas as outras estruturas de acolhimento paiscriana.
A atualidade desse dispositivo parece residir na possibilidade de fazer frente ao que se
configura como um mal-estar na famlia na atualidade quando, de fato, o que se passa
a famlia vir sendo soterrada por convices disseminadas pelo discurso da cincia, que
converte o impossvel da educao em impotncia parental e, no mesmo movimento,
promete certezas e ausncia de riscos no desempenho de uma suposta competncia
parental. A Maison Verte faz resistncia avaliao, normalizao e ao discurso
homogeneizante e assexuado da parentalidade, instituindo-se na singularidade e na
inventividade do encontro com cada famlia.
3.4 - A parentalidade como o sintomtico desta poca
Vimos que o termo parentalidade surgiu a partir de estudos sobre a psicose materna,
estendeu-se s pesquisas com crianas separadas de seus pais e, depois, de uma forma
geral, s investigaes que visavam fornecer subsdios s polticas de proteo da
famlia. Interessa-me especialmente a passagem destacada por Pioli (2006) de uma
ser regulamentada administrativamente: o respeito pelo dispositivo e por suas regras testemunham um
longo e necessrio trabalho de elaborao pela equipe que busca sustentar a criana em suas questes, e
as distores do dispositivo revelam frequentemente as incompreenses estruturais deste lugar. Em geral,
a criana, em sua palavra e gesto em corpo que se exprime, em comportamento que significa uma
palavra a ser escutada que corre o risco de ser ignorada. Este movimento de pesquisa deve ser mantido
(2009, p. 184, traduo livre)
147
119
Gavarini (2006) observa que nesses casos se atualiza uma confuso entre pobreza e risco, mesmo que
existam traos comuns entre as famlias-alvo dessas qualificaes nas descries dos trabalhadores
sociais.
120
Alis, desejvel inculcar essa funo parental nos pais defeituosos, incompetentes, naqueles
que devem ser reparentalizados (GAVARINI, 2008, p. 14).
148
Laurent (2007) prope uma articulao entre o singular e o universal que contribui para
a reflexo sobre o modo como se fundiu uma indissocivel da necessidade de apoio aos
discursos sobre a parentalidade. Advertido sobre o imprio do gozo como preo pago
pela liberao e pela autorregulao na contemporaneidade, o psicanalista pontua: No
que diz respeito ao gozo, o psicanalista deve reenviar o sujeito sua particularidade121
(p. 172). Recorre noo de serenidade, formulada por Heidegger como uma atitude de
dizer simultaneamente sim e no ao mundo tcnico122, e prope a transio do
vocabulrio do filsofo para o campo do gozo, formulando que a viso hedonista do
mundo faz desaparecer a singularidade do sintoma e apia seu imprio no acesso ao
gozo para todos. Haveria dois tipos de relao com o gozo: quer-lo mais e querer a
singularidade do sintoma. No seria sensato atacar os objetos de gozo, mas:
Dizer no consiste em impedir que o pronto-para-gozar
generalizado no esteja escuta da singularidade de nosso sintoma.
Seu envelope formal contingente, no pertence a todos. Nesses
termos, a serenidade do sujeito igual em presena dos objetos de
gozo no perder de vista a singularidade do caminho que lhe
prprio (LAURENT, 2007, p. 173).
121
Embora o autor use aqui o termo particularidade, penso que pretende referir-se a singularidade.
Acredito que o mesmo ocorre no trecho em que ele pontua que no se deve tirar algum de sua
particularidade.
122
Reproduzo a seguir os trechos destacados de Heidegger por Laurent: Seria insensato atacar, a
cabeadas, o mundo tcnico [...]. Dependemos dos objetos que nos so fornecidos pela tcnica
(HEIDEGGER, 1966, apud LAURENT (2007, p. 172) ; Podemos dizer sim e, ao mesmo tempo no
ao emprego inevitvel dos objetos tcnicos, no sentido de impedi-los de nos engolir e, assim, falsear,
confundir e, finalmente, esvaziar o nosso ser. [...] Uma palavra antiga serve para designar essa atitude de
dizer simultaneamente sim e no ao mundo tcnico: Gelassenheit, serenidade, igualdade de alma.
Falemos ento da alma igual em presena das coisas (p. 173).
149
123
O famoso grito de Andr Gide:Famlia, odeio-vos!, retomado pelos estudantes de 68, estaria nas
entranhas das tentativas de se prescindir da famlia.
124
Sofremos na atualidade, de uma maneira geral, de falta (dficit) ou excesso? Vivemos sob os desgnios
da ausncia de referncias ou pelo seu excesso? Esse um ponto importante porque no campo da famlia
atribui-se um certo peso falta, deficincia, carncia, mas, ao mesmo tempo, pode-se fazer uma
150
dimenso de gozo comparece (embora se espere que comparea de forma velada), nessa
vertente da parentalidade pretende-se omitir o gozo inerente constituio familiar. A
aposta na desdramatizao pode acarretar uma higienizao da famlia, mais um trao a
ser destacado desta poca em sua intolerncia ao sintoma, marcada pela pretenso de
desembaraar-se do real.
Forget (2007) lembra outros termos que comparecem no discurso social e que viriam
juntar-se parentalidade como modos de sutura da falta de nossa poca, termos125 esses
que tm em comum a aspirao de elidir a falta e a contradio. Alm do termo
parentalidade, o autor relaciona o termo paridade, quando se prope a substituir homem
e mulher, e os direitos da criana, quando substitui a criana como fruto da falta e do
sexual. Eu acrescentaria que tais termos so muitas vezes utilizados com a pretenso de
excluir a disparidade de lugares, que estrutural e que se radicaliza no irredutvel da
diferena entre os sexos (e que, como vimos, no deve ser confundida com o modo pelo
qual fices jurdicas estabelecem a diviso da autoridade entre pai e me e, tampouco,
diferena entre os genitais masculino e feminino).
importante ressaltar que o discurso social se constri como uma categoria coletiva, d
aos termos uma aparncia de homogeneidade126, permitindo atribuir-lhes predicados
universalizadores, como as crianas de hoje, os pais de hoje, etc, e organizando os
indivduos em categorias. dessa forma que convida submisso a um S1 coletivo e
annimo: existem bons pais, desde que suas vidas sejam orientadas a partir das
crianas e nas competncias e habilidades estabelecidas a partir do discurso da cincia e
veiculadas pelo especialista da subjetividade. Vale lembrar que minha crtica no
recai sobre a presena de categorias no discurso social, mas sobre a normatizao e a
prescrio de regras intrnsecas ao que nomeio nesta pesquisa discursos normativos e
ortopdicos sobre a parentalidade.
leitura do que ocorre pela via do excesso: uma criana se retrai no encontro com o Outro porque este
deficitrio ou excessivo? Uma famlia deixa suas marcas em seus filhos somente pela via da deficincia
ou tambm por meio do excesso? Ler os fenmenos de uma forma geral pela via da carncia (do pai, por
exemplo) , no mnimo, superficial e equivocado.
125
importante notar que, tanto quando fao referncia paridade como quando me refiro aos direitos
da criana, introduzo na sequncia o advrbio quando com o intuito de assinalar que critico um uso
especfico destes termos e no sua legitimidade.
126
Freud, em Psicologia das massas e anlise do eu, texto de 1923, j advertia sobre os efeitos do
empuxo homogeneizao.
151
O sintoma social pode ser lido como estrutural, no se confunde com fenmenos
particulares, ou com o que relativo a uma poca. estrutural porque consiste naquilo
que se formula diante do encontro com o impossvel da relao sexual. Nesse sentido,
pode-se ler a prpria civilizao como um sintoma social ao tentar regular a relao
entre os sexos. Isso o que permite afirmar que o sintoma social se atualiza nas
respostas particulares formuladas em cada poca diante da inexistncia da relao
sexual, ou seja, dos modos de sutura que cada poca articula, o que venho nomeando
como sintomtico de uma poca. Essa articulao coerente com o que Puj (2006)
apresenta como uma definio de poca: uma resposta especfica e elaborada em
determinado contexto histrico pela civilizao, ao que Lacan formula como a ausncia
de relao sexual (p. 62, traduo livre).
152
153
determinantes (SAURET, 1998, p. 30). Bem, parece que vou reunindo elementos para
consolidar a posio de que no se trata de proteger a famlia da parentalidade...
Uma publicao recente, datada de 2010 e intitulada Uniones del mismo sexo:
diferencia, invencin y sexuacin, rene psicanalistas lacanianos em torno do tema da
parentalidade. Penso que at aqui fui preparando o terreno (ao situar sua origem
histrica, os diferentes discursos que lhe so subjacentes, as polticas pblicas, o
contexto de mal-estar na atualidade ao qual se oferece como possvel resposta, etc.) para
formular uma posio psicanaliticamente consistente diante do cenrio que o genrico
parentalidade condensa. Alm de marcar que assumo a posio de que a famlia
resiste e de que no se trata de a psicanlise se anunciar como nostlgica, normatizadora
ou entusiasta das novidades, tambm me posicionei diante dos psicanalistas que
descrevem e analisam o cenrio contemporneo de forma mais pessimista ou
catastrfica, ao marcar o mal-estar que a civilizao, o mal-estar que a educao e
ler os discursos e prticas que se organizam em torno da parentalidade como
sintomticos desta poca. Ao atualizar as formulaes de Laurent de que no se trata de
recusar o que o contemporneo arma em termos do para todos, mas de reintroduzir o
singular e legitim-lo, vou delineando uma posio diante do campo de investigao ao
qual me dediquei nos termos de reintroduzir a famlia na parentalidade. Da todo o
esforo empreendido no captulo 1 no s de circunscrever a famlia na orientao
lacaniana, mas de destacar sua funo de resduo.
Os artigos da coletnea que citei acima podem ser lidos como tendncias, pontuaes e
interrogantes de psicanalistas de orientao lacaniana acerca do neologismo
parentalidade, e foi a partir deste recorte que me deixei trabalhar por eles. Encontrei
neles formulaes como esta: ento, se esta inveno contempornea promete a
inveno de novos modos de paternidade, as conseqncias tero que ser verificadas.
Em um futuro no to distante, escutaremos nos consultrios estes filhos da
parentalidade (NEGRI, 2010, p. 193, traduo livre). E at mesmo perguntas como
estas: Ento, a psicanlise possvel para as novas famlias, para a atual
parentalidade? (TORRES, 2010, p. 175, traduo livre) ou E aqui surge a
preocupao, no s pelos objetos a que so hoje mais que nunca as crianas, mas vou
diz-lo assim a angstia pelo porvir, pelas conseqncias nos sujeitos, nos filhos da
parentalidade (RUSSO, 2010, p. 211, traduo livre, grifo meu).
154
Essas perguntas me fizeram lembrar do comentrio de Laurent (2007) sobre uma poca
na qual se pensou no se poderem analisar filhos de pais separados! O encontro com a
investigao empreendida por Virginie Linhart sobre as crianas de 68 foi crucial para
que eu pudesse me posicionar diante de enunciados como os filhos da parentalidade.
155
127
Virginie tinha 15 anos quando seu pai desapareceu subitamente de sua vida. Mais tarde, soube que ele
esteve em coma durante semanas aps a ingesto de uma dose massiva de medicamentos. Depois desse
episdio seu pai permaneceria grande parte do tempo em silncio.
128
Ttulo original: Le jour o mon pre sest tu.
156
A premissa da qual Virginie parte que a Histria (condensada nos ideais partilhados
naquela poca) teria determinado as histrias das crianas de 68. Da mesma forma,
atribui o silncio do pai queda daqueles ideais, ou seja, a uma decorrncia de fatos
historicamente determinados. Seu pai, segundo o que ela averiguou, foi uma das figuras
mais marcantes daqueles anos, e infere: infelizmente umas das figuras mais
marcadas (LINHART, 2008, p.16). Trata-se de outro modo de dizer que as marcas que
o fizeram calar-se decorreram da Histria: Meu pai jamais se recuperou daquele tempo
em que ele acreditou que seria possvel infletir o curso da Histria (p. 16). possvel
reconhecer nessa hiptese inicial uma formulao sobre as articulaes entre sujeito e
sua poca: o sujeito determinado por aquilo a que esta dava consistncia.
Veremos adiante como naquela poca, o ns se particularizara como um imperativo,
fazendo-se valer mesmo que em detrimento do individual. O que a autora-protagonista
no se permitiu supor que entre o ns do discurso e as crianas de 68 estaria o
sujeito e sua singular amarrao. No incio de seu projeto, ela ainda no podia se
perguntar a respeito da articulao entre a Histria, cujo rumo seu pai acreditava poder
infletir e a historia de seu pai; no podia ainda localizar um decantado a partir do
ns consistente no qual o pai (assim como os outros pais daquela poca) estava
imerso e que, supunha, o teria levado a calar-se. No entanto, em uma conversa com um
colega de seu pai sobre o silncio em que este se encerrara, Virginie afirma no saber o
que teria decorrido das circunstncias histricas e o que poderia ser imputado
problemtica pessoal do pai. Ainda que ela afirme o pai como vtima da Histria,
sobre a histria dele, sobre seu silncio que se lana em sua pesquisa, intuindo ser
necessrio que um saber possa instituir-se para que o silncio deixe de aprision-la.
O ponto de partida de Virginie foi o silncio do pai; pretendia recolher nas outras
crianas de 68 traos a partir dos quais pudesse alinhavar a sua histria, buscando
produzir um saber ali onde o mutismo at ento reinara. Se esse foi o ponto de partida, o
mtodo de pesquisa escolhido pela autora permite antever que o ponto de chegada lhe
era desconhecido, e ela parecia disposta a suportar o que isso implicava. a partir dessa
posio que reconheo em Virginie uma pesquisadora. O uso do termo mtodo aqui
no ingnuo, tampouco casual; pretende anunciar a discusso a seguir, a partir de meu
encontro com o livro de Virginie, sobre como sua pesquisa me permitiu avanar e me
157
posicionar nas articulaes que venho propondo entre famlia, parentalidade e contexto
histrico.
Em O dia em que meu pai se calou, Virginie identifica furos em suas proposies,
sujeita-se a inflexes, consente em abandonar as hipteses formuladas inicialmente. No
a partir dessa posio que surgem os achados 129? A autora no s afirma no ter a
pretenso de esgotar o tema ou realizar um estudo sociolgico como explicita trabalhar
a partir da associao de ideias, das lembranas perdidas que retornam, do encontro
inesperado. Esse seu mtodo de pesquisa, um mtodo que se aproxima do mtodo
psicanaltico.
Foi o encontro130 com a pesquisa empreendida por Virginie e o fato de, tendo partido do
enunciado as crianas de 68, dispor-se a coloc-lo prova com cada um de seus
entrevistados e sua singular amarrao que me permitiram construir uma posio diante
do enunciado os filhos da parentalidade, precipitando-me numa possvel formulao
sobre como se articulam famlia, parentalidade e contexto histrico: no existe um
ns passvel de definir o conjunto das crianas nascidas em determinada poca,
mesmo que possamos localizar traos comuns entre elas. Essa formulao, penso, o
que decanta como um dos achados de Virginie.
4.1 A pesquisa de Virginie
Logo no incio de seu livro a escritora enunciou que decidira, em sua empreitada,
entrevistar as crianas de 68. Esse enunciado chamou-me particularmente a ateno:
estaria rumando, em minha pesquisa, em direo a uma formulao semelhante?
Autorizaria essa pesquisa enunciados como os filhos da parentalidade? Lano a
pergunta e prossigo, para retom-la mais adiante.
Virginie partiu de um ns, as crianas de 68, mas escutou seus entrevistados um a
um, endereou-lhes suas hipteses, verificou como podiam ou no fazer frente s
perguntas que eram suas, testou a elasticidade, a resistncia, o alcance e os limites de
129
Referncia posio assumida por Lacan no seminrio 11, a partir da frase de Picasso: Eu no
procuro, eu acho, na qual denota que no est procura da verdade.
130
Encontro possvel graas indicao preciosa de Caterina Koltai no exame de qualificao, a Laura
Hansen que me emprestou o livro, e a Mariana Neustein que me enviou um exemplar.
158
sua teoria. O dia em que meu pai se calou, dessa forma, no comparece aqui como
ilustrativo de uma teoria ou modelar131 desta, mas como uma construo ancorada na
disposio de colocar prova uma tese, a existncia de um ns, referente aos modos
de sutura da falta prevalentes em uma poca determinada, enunciado como as crianas
de 68 A pesquisa de Virginie a levou a deixar cair o ns em benefcio do um, no
sem primeiro alienar-se em seus semelhantes e embrenhar-se em suas histrias.
Paralelamente (veremos que, enquanto a autora procura e entrevista as crianas de 68,
seu pai subitamente rompe o silncio em que se encerrou e volta a falar) foi levada
assuno de uma verdade: seu pai escolhera o silncio. Com isso, no pode mais definilo e se relacionar com ele como vtima da Histria.
Lembrando do artigo de Cabral (2006), penso que, no caso de Virginie, a Histria
estava a servio de proteger a histria132. Reproduzo a seguir um trecho desse autor com
o intuito de justificar a afirmao: na cura analtica que reconhecemos um
dispositivo genuno de proteo da histria (seguramente, no o nico) no que esta
contm, como veremos adiante, de empuxo realizao do prprio ser, diante da
presso uniformizadora da Histria do Outro (p. 125, traduo livre, grifo meu).
Virginie protegia-se de sua histria alienando-se nas crianas de 68, pagando com a
repetio - na insistncia com que o interesse pela poltica e pela histria comparecia em
sua vida, em seu trabalho, enunciada por ela como: no consigo sair delas ou sempre
volto para elas (LINHART, 2008, p. 27) - a impossibilidade de separar-se da Histria e
do Outro. Ao grifar um pequeno trecho da citao acima, destaco que outros
dispositivos, como a escrita, a produo artstica e at mesmo a produo acadmica,
podem ter efeitos subjetivantes e podem possibilitar a realizao da histria.
Se, no que se refere articulao entre famlia, parentalidade e contexto histrico, a
pesquisa de Virginie tomada neste trabalho, infletindo seu rumo, devido ao espanto
causado diante da consistncia implcita em seu enunciado as crianas de 68, desejo
131
Souza (1994), em um trabalho de uma preciso digna de nota, ao circunscrever o que um caso na
psicanlise, alerta para os riscos de este comparecer como o leito de Procusto: o que sobra cortado, e o
que falta se estica at o limite da cama. Refere-se a uma na interveno artstica realizada por Tula
Agnostopoulos em junho de 1998, Small Size na qual a artista mandou baixar o teto da sala na exata
dimenso de sua altura: O mundo daquele espao de exposio se conformava medida de sua estatura.
O narcisismo de 1 metro e 53 cm organizando o espao. O visitante, conseqentemente,tinha que se
curvar altura da artista. Acredito que assim Tula conseguia dar visibilidade a uma construo que
fazemos quotidianamente sem necessariamente nos darmos conta.
132
159
tambm tom-la pela via do silncio do pai, agora sim como ilustrativa do modo como o
pai Real opera, conforme fundamentado no captulo 1.
Dessa forma, a pesquisa de Virginie aqui examinada por meio de duas vertentes: a da
pesquisa sobre as crianas de 68 e a da construo singular, a qual no prescinde da
outra, que esse processo lhe permite armar no que diz respeito ao pai.
Iniciei essa pesquisa mobilizada pelo mal-estar que me causava a consistncia crescente
dos discursos em torno da parentalidade no campo social, mais especificamente no
terreno da educao, mas tambm no interior da psicanlise. Contudo, me encontrava
em um impasse; eu explicitara os aspectos que no seriam tratados nesta pesquisa133 (no
incio do captulo 2) esperando mostrar ao leitor que estava advertida em relao aos
riscos de se buscar prever ou antecipar o futuro da famlia, pretendendo distanciar-me
de posicionamentos preditivos, alarmistas e normativos. Entretanto, cada um desses
aspectos e os riscos que implicam pareciam estar espreita, tornando turvo o campo de
pesquisa, estendendo o momento de compreender. Vale recorrer ao dicionrio e
definio de impasse134: situao aparentemente sem soluo favorvel, beco sem
sada. Diante da temtica da famlia e da parentalidade, avalio que o impasse se produz
quando esta apresentada como necessariamente aniquiladora da famlia em sua
condio de resduo, implicando um risco para as crianas, para os filhos da
parentalidade.
O encontro com Virginie me permitiu evitar o risco de recair em modos genricos ou
universalizantes de compreenso - que autorizariam enunciados como: os pais na
atualidade, as crianas contemporneas, etc. - aos quais esse tema particularmente
sensvel. Permitiu tambm evitar outro risco, que a impotncia para a qual o
impossvel, ao ser enunciado no terreno da educao, frequentemente nos arrasta, assim
como a possvel identificao com os autores que, ancorados tambm nas mudanas no
campo da famlia, prenunciam um futuro dramtico para o sujeito. Vale explicitar a que
me refiro quando observo o que ocorre no terreno da educao quando o impossvel
133
Reproduzo a seguir os aspectos em questo: definir os rumos que a famlia deve tomar, promover um
alarmismo em relao s mudanas no campo da famlia, antecipar ou de traar um veredicto sobre o que
ser das crianas educadas nas novas configuraes familiares e compactuar com uma psicanlise que se
apresenta como guardi da moral e dos bons costumes.
134
160
161
Didier-Weill (1997) descreve o ato interior por meio do qual algum se deixa espantar
como um reconhecimento que permite dizer um sim, diferenciando-o de um
constrangimento ao qual no se pode resistir. O espanto diz respeito a um
consentimento interior a uma presena outra, estranha, diante da qual se descobre, no
sem surpresa, que no estranha. A que estaria Virginie dizendo sim? Parece que
possibilidade de escapar, escapar sem que isso necessariamente abalasse o amor filial.
Retornarei a este ponto mais adiante.
O tema do espanto e sua relao com o estranho tratado por Freud em O estranho,
texto de 1919. O autor observa inicialmente que o estranho causa espanto precisamente
porque no conhecido, familiar. No entanto, no decorrer do texto, detecta a existncia
de uma certa intimidade entre o estranho e o familiar e levado a definir aquele como
algo que deveria ter ficado oculto (reprimido) e se manifestou. Em Recordar, repetir e
elaborar, esse saber no sabido involucrado no estranho j no passava despercebido
por Freud: Quando o paciente fala deste material esquecido, raramente deixa de
acrescentar: Na verdade, sempre soube perfeitamente todas estas coisas; o que acontece
que nunca me detive para pensar nelas (FREUD, 1914, p. 1684, traduo livre).
Estranho e familiar parecem consistir em duas faces da mesma moeda, de modo que um
no existe sem o outro, ainda que essa relao no seja percebida de forma clara ou
explcita na experincia. nisto que reside o espanto: na revelao dessa intimidade
surpreendente entre o familiar e o estranho.
Tal como trabalhado por Didier-Weill, o espanto parece consistir na faceta
produtiva135 do encontro do que familiar no estranho. Segundo o autor, o espanto
tem o poder de introduzir uma descontinuidade no saber: seremos assim levados a
interpretar o espanto como o efeito de uma destituio subjetiva produzida por um
significante especial [...] (1997, p. 17). Esse significante traduzido por Marie
Bonaparte, em O chiste e suas relaes com o inconsciente, como significante
siderante. O espanto, dessa forma, no s produziria uma descontinuidade como
tambm um furo no saber, tendo um efeito interpretativo para o sujeito. Essa
135
O autor observa que o supereu tende a inabilitar a aptido do homem ao espanto, levando-o a decair no
j conhecido, em uma dimenso repetitiva do dj-vu (DIDIER-WEILL, 1997, p. 29).
162
interpretao vinda de meu adversrio136 extrai seu poder do desejo muito particular que
o anima (DIDIER-WEILL, 1997, p, 20, grifo meu).
O efeito interpretativo do espanto causado precisamente porque a relao do outro
com o desejo est estruturada de forma diferente da minha. Parece que esse primeiro
encontro de Virginie a fez deparar-se com o h um, no lugar do existe um ns
esperado. Seguindo com Didier-Weill, tal efeito s possvel porque havia, do lado de
Virginie, a possibilidade de consentir, de deixar-se siderar, e porque, do lado do outro,
se ele foi capaz de sider-la, porque compareceu a partir do singular desejo que o
anima. O espanto arrancou Virginie do determinismo histrico: ento possvel
escapar!; entrou em jogo um saber no sabido, um saber que caiu como estranhamente
familiar, embora se tratasse de um saber que j a habitava. E, bem, ao enunciar que o
amor filial no tem nada a ver [com isso] ela deixava entrever que estava disposta a
abrir mo da posio assumida diante dos pais e da herana familiar de que am-los
corresponderia a deixar-se aprisionar nos seus significantes ou no seu silncio. Assim,
quando a segunda frase de Virginie retroagiu primeira, percebemos que ela no s foi
compelida a abandonar a determinao histrica como tambm a hiptese da existncia
de uma linearidade ou um assujeitamento herana familiar.
De acordo com Silva (2011), uma pesquisa se consolida com a sucesso de trs tempos:
o estranhamento, o entranhamento e o desentranhamento. inevitvel a lembrana dos
trs momentos lgicos formalizados por Lacan: o instante de ver, o momento de
compreender e o tempo de concluir. A formulao de Silva, ao contrrio da de Lacan,
que est ancorada na lgica, remete ao que h de visceral nesse processo - parece que se
trata mesmo de revolver as entranhas -, mas aponta tambm para a crucialidade de um
terceiro momento, em que preciso concluir, desentranhar-se. O terceiro tempo, diz
Lacan, deve ser precipitado. Neste ponto, ao introduzir o tema da pressa, o psicanalista
vem nos socorrer, porque uma pesquisa que se detm nos dois primeiros tempos
propostos por Silva permanece em uma suspenso; entretanto, passar ao terceiro tempo
requer um precipitador. No espanto, parece residir a condio para a precipitao de um
136
O autor toma como exemplo os jogos que so regidos pela bola: Como dar conta do poder que essa
pequena bola detm sobre milhares de seres humanos que, no estdio ou pela televiso, acompanham
horas a fio suas idas e vindas? Qual a natureza do espanto provocado cada vez que a bola desorienta
suficientemente um dos jogadores para que ele a deixe passar? (Didier Weill, 1997, p. 18).
163
saber, ele comparece, dessa forma, como um disparador da pressa em sua funo de
uma certeza antecipada que, em ato, precipita uma concluso.
Virginie experimentou o estranhamento cada vez que a singularidade se imps e fez
obstculo ao ns, mas suportou deixar-se furar em proveito do um. Ao entranhar-se
na vida das outras crianas de 68, ela caiu como um, mesmo que sua pesquisa nos
permita confirmar que possvel destacar, no discurso social, traos que se
particularizam como modos de sutura da falta prevalentes em uma determinada poca,
como vimos no captulo 3.
Em O tempo lgico e a assero de certeza antecipada, Lacan afirma que o que as
moes suspensas denunciam no o que os sujeitos vem, mas o que eles descobriram
positivamente por aquilo que no veem [...] (1945, p. 203). Acrescenta que a instncia
do tempo se apresenta de modo diferente em cada um desses trs momentos, subsistindo
apenas o ltimo que os absorve. Vidal (2006) observa que a funo da pressa j fora
acentuada por Lacan em seu escrito sobre o estgio do espelho137, no qual descrevia a
precipitao da criana da insuficincia antecipao: Tentando suturar a hincia entre
a experincia que tem do corpo e a forma ideal percebida no espelho, a criana se
precipita numa identificao com um objeto a imagem do outro que toma
emprestado do Outro (VIDAL, 2006, p. 3).
O momento de compreender opera em uma dialtica com os outros dois tempos lgicos:
E tambm que se, nessa corrida pela verdade, apenas sozinho, no sendo todos, que
se atinge o verdadeiro, ningum o atinge, no entanto, a no ser atravs dos outros
(LACAN, 1945, p. 212). Pois bem, se no existe o ns postulado por Virginie, isso
no implica em uma negao do outro como semelhante, ao contrrio, no h um sem
os outros. O ttulo do texto de Vidal citado acima parece tambm vir ao encontro da
tenso que se estabelece entre o Um e os outros: Em tempo: sozinho, mas no sem os
outros. O autor relembra a pea de Sartre datada de 1944, As portas fechadas (Huis
Clos) na qual cada um dos trs personagens, incapaz de perceber as prprias falhas,
atribui-as aos outros dois, concluindo que o inferno so os outros; ao que Lvi-Strauss
137
C.f. - LACAN, J. O estdio do espelho como formador da funo do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar editor, 1998, p. 100.
164
teria retrucado: o inferno cada um. No caso dos trs prisioneiros, o sujeito atinge
sozinho o verdadeiro, mas no o faz sem os outros, numa operao que deixa resto
(VIDAL, 2006, p. 4).
Em sua pesquisa, Virginie no pretendia retratar fatos histricos, orden-los ou verificlos, mas escutar seus entrevistados, estranhando-se e emaranhando-se em suas histrias.
Vale retomar como Lacan explicita os limites entre realidade e verdade em Funo e
Campo da palavra, lembrando que, na anlise, no se trata da realidade, mas do modo
como passado e futuro podem conjugar-se na histria de um sujeito. Virginie escolheu
alinhavar, reunir, escandir as suas lembranas e as lembranas de cada um que
encontrou, menos a partir do modo como elas procediam informativamente do que a
partir do lugar exato em que se apoderou de cada uma delas. Trata-se de uma construo
(SOUSA, 1994).
assim que tomo O dia em que meu pai se calou como uma
construo; uma construo que no s interpela a teoria, mas que tambm revela as
sinuosidades do campo conceitual no qual se transita (SOUSA, 1994).
A leitura do texto de Virginie me levou a definitivamente a abandonar perguntas na
linha de: o que ser dos filhos da parentalidade? Levou-me inclusive a recusar a
premissa de que haveria filhos da parentalidade, reafirmando o impondervel que
opera em cada poca, no encontro da transmisso do lugar em que uma criana foi
desejada, do gozo que condensou e da fico que cada uma inventa para si, nesse
encontro. Em cada entrevista com Linhart, a criana de 68 em questo permite
acompanharmos sua soluo singular diante do que prevalecia no lao social daquela
poca, evidenciando que os traos de uma poca so particulares e no singulares, que o
modo como pai e me so tocados por esses traos singular, assim como tambm
singular a construo de cada um. Nesse sentido, o Outro pode ser decisivo, mas o
sujeito quem decide!
Sauret (1998), ao reunir uma srie de textos para a publicao de seu livro O infantil e a
estrutura, reconhece que podemos ser contados pelo que escrevemos. A leitura de O dia
em que meu pai se calou me permitiu atualizar a afirmao de Sauret nos seguintes
termos: podemos tambm contar-nos a partir do que escrevemos. Em seu relato, ao
arrancar-se da determinao histrica, Virginie deixou de acreditar que poderia ser
165
contada (pela Histria, pelos outros) e pde contar-se como uma (entre outros), no sem
reconhecer, ao mesmo tempo, o um em seu pai.
4.2 - As crianas de 68
No belo relato de Virginie, nota-se que ao encontrar cada criana de 68, ela encontrou
algo de si; seu discurso ia e voltava a partir dos discursos dos outros, de modo que
muitas vezes no sabemos quem fala, e, quase sempre que isso acontecia, acabamos por
verificar que era Virginie. Ela falava a partir dos outros, em um movimento dialtico
que ia de si a eles e deles para si novamente: Explorando as lembranas deles surgem
as minhas. Sem eles, eu no posso nada. Suas narrativas liberam minha palavra
(LINHART, 2008, p. 33).
Entrevistar as crianas de 68 foi para Virginie tambm entrevistar-se, precisou falar
dos outros para poder falar de si. A autora-protagonista se confundia inicialmente com
os outros nos quais precisou alienar-se para, depois, separar-se. Mas Virginie tambm
encontrou traos comuns em seus entrevistados, localizados por eles a partir de como o
ns se impunha naqueles tempos, prevalecendo sobre o indivduo. Situar estes traos
fundamental para entender o mandato a partir do qual as crianas de 68
responderam ao se converterem em pais: no reproduzir aquilo que seus prprios pais
fizeram, o que implicou ordenar suas vidas em torno dos filhos.
Esse mandato enunciado por uma das entrevistadas, Lamiel Barret-Kriegel:
impressionante a distncia entre a maneira pela qual ns fomos criados e a maneira pela
qual nos ocupamos de nossas crianas. Tambm, eu no passo um dia sem que me diga:
lembrar a cada dia de no fazer o que os meus pais fizeram comigo (LINHART, 2008,
p.29). Tambm por Claudia Senik: na vida cotidiana, com meus filhos, eu estou na
antpoda do que eu vivi com meus pais (p. 107); ou, ainda, por Juliette Senik: mas a
diferena fundamental entre a educao que eu recebi e a dos meus filhos, que nossos
pais faziam a sua vida e ns os seguamos, enquanto eu me curvo ao cronograma de
meus filhos (p. 128). Ao longo do livro, os entrevistados de Virginie apresentam, cada
um sua maneira, o modo pelo qual a parentalidade converteu-se em um modo de vida
para eles.
166
138
Franois Geismar, umas das crianas de 68 entrevistadas por Virginie, recusa a existncia de um
ns, diz ser imaginrio esse coletivo e no acredita ter algo em comum com as outras crianas de 68.
139
A militncia abordada como sintomtica de uma poca em FIGUEIREDO, L. C. (1995) Modos de
subjetivao no Brasil e outros escritos. So Paulo: Escuta/Educ.
167
Em um trecho de seu segundo livro 1968, o que fizemos de ns, Ventura (2008b) capta
com preciso o modo pelo qual o ns se impunha naquela poca. Mostra a definio
do Juiz Eros Grau, em seu romance Tringulo no ponto, para a diferena entre um
militante e os outros cidados, a partir do seguinte evento: ao serem informados acerca
do AI-5140, dois amigos preocupam-se com a sociedade como um todo enquanto o
terceiro preocupa-se com os riscos que corre pessoalmente devido aos rastros que
deixara de sua militncia poltica. Eros Grau contundente: em mim no predomina a
singularidade. Acho que felizmente predomina o universal (2008b, p. 54).
Creio que esta a melhor definio que pude encontrar do modo pelo qual o ns se
institua sobre o individual naquela poca. A militncia se apresentava como uma
renncia a toda e qualquer veleidade individual. Virginie tambm retratou esse trao
ao se referir a uma passagem do romance de Olivier Rolin, Tigre en papier - que traa a
histria dos militantes maostas naqueles anos. Na passagem, uma moa demanda do
narrador um testemunho sobre seu pai, de quando ela era uma criana. A resposta que
recebe esta:
Eu no posso te falar dele sem falar de ns. No sei como te fazer
compreender isso, ns no ramos eu naquela poca. Isso se devia
nossa juventude, mas acima de tudo poca. O indivduo nos
parecia negligencivel e at mesmo menosprezvel [...] sem ns,
todas nossas memrias desaparecem (LINHART, 2008, p. 31).
140
168
pai, Thomas pensava que ele poderia ter razo; todavia, aqueles carros eram realmente
belos!
Nesse sentido, pode-se dizer que a militncia poltica, alm de se constituir em um
modo de vida na juventude dos pais de Virginie, comparecia como um modo de sutura
da falta predominante naquela poca. Um dos achados dela foi, portanto, que uma
poca incide no lao social, e que, no mbito da famlia, essa incidncia comparece a
partir de como o discurso social entende que as relaes devem se estabelecer. Gavarini
(2008) explicita isso da seguinte maneira: A variabilidade das formas adotadas pelo
grupo familiar e pela parentalidade mostra bem que a famlia e o fato de ser pais so
diversamente institudos segundo o perodo histrico e as sociedades (p.2). O
testemunho de Lamiel preciso: passou a infncia a seguir os pais, rodeada por adultos
discutindo poltica ou cultura. Acredita que embora os pais no se interessassem pelas
crianas como fazemos na atualidade, eles queriam transmitir-lhes sua ideia de cultura e
conhecimento. Ela, por sua vez, se preocupa com o bem-estar e o desenvolvimento de
seus filhos, concluindo: Acredito que isso no estava ligado aos meus pais. Era a
poca! (LINHART, 2008, p. 88, grifo meu).
O cenrio que se organiza hoje em torno da famlia e da criana - a parentalidade alada
condio de modo de vida - remonta quilo que as crianas de 68 recusaram em
seus prprios pais. Os traos que marcam uma poca no so alheios queles que
prevaleceram num tempo anterior; dito de outra maneira, os modos de sutura da falta de
um determinado momento histrico retornam como o sintomtico da poca
subsequente. Lamiel precisa em seu relato porque enuncia o quanto aspectos como o
bem-estar e o desenvolvimento esto atualmente no centro das preocupaes da famlia,
como decorrncia do lugar no imaginrio social que a criana e o exerccio da
parentalidade ocupam na atualidade.
Um aspecto que me chamou particularmente a ateno que alguns dos entrevistados
de Virginie leem como retorno ao que fora recalcado na poca anterior o modo como
seus pais se atiraram no movimento de 68. Observam que muitos dos que se destacaram
naquele perodo eram judeus, filhos de judeus imigrantes. Seus avs tinham vergonha
de ter sobrevivido ao holocausto e seus filhos e netos teriam sido criados como
sobreviventes. Essa seria uma resposta possvel pergunta sobre o nmero altssimo de
169
judeus participantes do movimento de 68, ou seja, talvez estes tivessem visto naquele
movimento a possibilidade de sair da condio de sobreviventes, a possibilidade de
viver em contraposio a seus pais, que se permitiam apenas sobreviver.
O tema do ns abordado por Lacan em sua anlise do mito de Eros, e seu potencial
devastador marcado pelo psicanalista ao situ-lo na base da segregao. O mito de
Eros, para Lacan, ao contrrio do de dipo, perigoso, pois leva a confuses sobre o
que o Um141. No incio do seminrio 20, o autor aponta para a confuso original (p.
13) que o mito de Eros comporta ao tender a fazer um s dessa multido imensa
(1972-73, p. 72). Nesse mito, o Um seria o produto da fuso de dois, e sabemos que no
h como dois fazerem Um142, [...] em nenhum caso dois corpos no podem fazer um
por mais que se abracem [...] De forma que no h nenhuma espcie de reduo ao um
(Lacan, 1974, p. 31). O mito de Eros apontaria para a existncia de Um da relao
sexual.
Neste sentido, a formulao de Lacan do pai para alm do dipo como metfora paterna
pode ser tomada como uma nova abordagem sobre a questo do Um. Como vimos no
captulo 1, o pai Real, ao testemunhar um modo singular de gozo, surge como um pai,
fazendo exceo para que a funo possa tornar-se modelo. Opera no porque
excepcional, mas porque nico. Nessa perspectiva, os pais, um a um, do testemunho
de sua verso de gozo da funo, fazendo exceo a toda e qualquer universalizao.
Para Lacan, s h universal do possvel: ns s existe como possvel em Um.
A predio de Lacan da ascenso da segregao correlativa a esse apagamento da
diferena em proveito da similitude: os mesmos com os mesmos. No discurso
preconizado em 68 pela militncia de esquerda, a face segregacionista do ns
comparece sempre que a diferena passa por fora e ele mesmo se impe, de forma
autoritria e consistente. O trecho reproduzido acima sobre a uniformizao no contexto
141
Do que que se trata ento no amor? O amor, ser que como promove a psicanlise com uma
audcia tanto mais incrvel quanto isto mais vai contra toda a sua experincia, e quanto mais ela
demonstra o contrrio o amor, ser que fazer um s? Eros, ser ele a tenso para o Um? (LACAN,
1972/73, p. 13).
142
No Seminrio 20 - Mais, ainda (1972/73), Lacan grafa Um (com letra maiscula). O autor relata que a
formulao H Um deu suporte ao seu discurso do ano anterior (referncia ao Seminrio 19 ...Ou pior,
1971-72) aspirando a no recair nessa confuso entre o Um, suposto no mito de Eros, e o H Um em
hincia com o Outro, revelando a impossibilidade inerente relao sexual. A representao deste H Um
o n borromeano.
170
171
como uma das facetas pelas quais o ns comparece, como uma das formas de
manifestao da potncia subjacente iluso de um ns, quando esta perde seu carter
de semblante.
Situar o ns como uma tendncia no lao social evidencia seu carter de iluso
(necessria para tolerar a condio humana, como vimos no captulo 2), porm, como
iluso, no pode dispensar seu carter de semblante, pode-se acreditar nela, mas no
muito. Tolstoi, em sua famosa frase: Todas as famlias felizes so parecidas; as
infelizes o so cada uma sua maneira parecia estar j advertido dos riscos de se
confiar em demasia na consistncia de um ns, conformando um enunciado que cabe
como uma luva na atualidade. Explico-me: se na atualidade o que prevalece no discurso
como iluso a felicidade para todos, na famlia esta se particulariza na busca pela
competncia e pela assepsia, aspectos destacados pela parentalidade ao assumir sua
faceta normativa. Assim, como Tolstoi, aposto na singularidade das famlias infelizes,
imperfeitas e faltosas, e lembro de Maral Aquino, que, j no ttulo de seu livro
Famlias terrivelmente felizes, apresenta seu mal-estar diante de uma normalizao da
famlia.
Ainda investigando os fenmenos de massa, Freud constata que a neurose extrai o
indivduo das formaes coletivas habituais, constituindo-se em um fator de
desagregao: o neurtico substitui as grandes formaes coletivas por suas prprias
formaes sintomticas (FREUD, 1920/21, p. 2609, traduo livre). Essa observao
cai como uma luva para mim! Eu a formularia da seguinte maneira: o sujeito, com seu
sintoma, com a singularidade do gozo ali engendrado, que faz objeo ao ns e
tambm ao para todos.
Com isso, parece que comeo a delinear uma resposta para a pergunta formulada no
final do captulo 2: como localizar o que faz objeo ao universal e ao homogneo
condensado no para todos da parentalidade? a famlia em sua funo de resduo
(com suas faltas e imperfeies) que faz objeo consistncia intrnseca ao
neologismo parentalidade, e o sujeito (com seu sintoma) que faz objeo ao ns,
independente da forma que ele assume em cada poca. Alcano formular que o ns
articulado em cada poca, na iluso de armar uma sutura falta, no se confunde com o
para todos produzido pelo discurso capitalista, evidenciado no lao social na
172
Embora
aparentemente no exista uma conexo entre esses fatos, tanto a oportunidade de fazer
anlise quanto o fato de ter escapado da vida em comunidade abriram para cada uma
delas a possibilidade de realizar ou de proteger a construo de uma verso singular
diante da consistncia que o ns tinha naquela poca.
O tema da vida em comunidade complexo e requer um estudo mais aprofundado. No
entanto, recorto um aspecto que me parece central para a discusso sobre as
especificidades de cada poca e sobre o modo como o neologismo parentalidade
comparece na atualidade. Ren Levy viveu em comunidade e lembra-se de como era
difcil para as crianas suportarem a liberdade de costumes: A comunidade no uma
173
143
174
175
concluir.
Era estranho que no momento em que eu me decidira finalmente a
contar a historia de meu pai, para me liberar, em que eu me decidira
cont-la precisamente por onde ela me havia feito sofrer - seu
silncio - no havia mais silncio, o silncio tinha desaparecido, meu
pai recomeou a falar! (LINHART, 2008, p. 190, traduo livre).
Quando finalmente Virginie decidira contar a histria de seu pai para se liberar, seu pai
sofre um acidente domstico e, inesperadamente, voltou a falar. agora meu pai que
fala, sem parar, com todo mundo, sobre tudo (p. 192). Virginie observa que demorou
para perceber os sinais de perigo: seu pai entrara em uma crise manaca. Rapidamente a
loucura se apoderara dele novamente. Eu compreendi que ele foi para si mesmo at
agora seu melhor mdico. [...] Meu pai no era essa vtima que eu imaginei por tanto
tempo, ele era um homem que sabia exatamente como se proteger de seus demnios e
fez tudo para isso (LINHART, 2008, p. 194, grifo meu).
Agora Virginie sabe por que seu pai se calou. Ele no estava na mesma problemtica
daqueles que continuaram a falar, a se expor publicamente, etc. Na sua doena, ele
demonstrou uma grande sabedoria. No seu isolamento, mostrou um domnio perfeito de
seu destino (p. 196). Agora sei por que meu pai escolheu se calar (p. 197, grifo meu).
Em O dia em que meu pai se calou, ao deixar cair o ns, Virginie deixou cair a
Histria como determinante de sua histria, l onde a histria de seu pai era tambm a
sua. Virginie se ps a falar e, assim fazendo, encontrou em cada entrevistado uma
soluo nica e que seu pai no foi exclusivamente uma vtima da Histria; sua queda,
seu silncio, descobrimos junto com ela no final, foi uma escolha, uma produo
145
No seguinte trecho localizo em Lacan o modo pelo qual a histria lhe interessa: Com efeito, esse
limite est presente a cada instante no que essa histria tem de acabado. Ele representa o passado sob sua
forma real, isto , no o passado fsico, cuja existncia abolida, nem o passado pico, tal como se
aperfeioou na obra da memria, nem o passado histrico em que o homem encontra o garante de seu
futuro, mas o passado que se manifesta revertido na repetio (LACAN, 1953c, p. 319).
176
singular, e, portanto, uma produo da ordem da exceo, o que, j sabemos, pode dar
lugar a outras excees. Indo um pouco mais longe, proponho que, ao reconhecer no
silncio do pai uma sada singular, no apenas tributria da Histria, ainda que
certamente carregada pelos traos que a marcaram, Virginie pde exceder o ns.
O pai de Virginie era descrito por seus companheiros como excepcional. No captulo
1, adverti para os riscos de um pai que ocupa o lugar de excepcional, porque neste caso,
no estaramos diante de um pai que faz exceo testemunhando um modo de gozo
singular, mas daquele que se apresenta e se acredita como ideal, como despido de
imperfeies. Virginie parecia estar aprisionada em uma bscula que ia do pai
excepcional ao pai envergonhado; a interrupo do silncio deste e a emergncia de sua
loucura habilitaram-na a significar sua histria a partir de outras coordenadas. Vejam
que o pai Real, este que se descortina para Virginie, um pai manaco, no se confunde
com um pai ideal. O pai calado, silenciado pela Histria, um pai morto, este sim estaria
mais sujeito s idealizaes, mais passvel de ser salvo, ainda que ao preo de ver-se
reduzido condio de vtima.
Teria a escrita desse livro operado para Virginie como um encontro com o pai Real?
Formulo tal pergunta, pois acredito que ela estava identificada a um pai imaginrio que
a aprisionava em seu silncio, na vergonha que esse lhe causara. Assim como o espanto
produzido pelo encontro com Samuel Castro levou-a a abandonar o ns consistente
condensado no enunciado as crianas de 68, a arrancar-se da Histria como
determinante, o espanto produzido pelo insuportvel da fala do pai arrancou-a do
aprisionamento. Se o encontro com o pai Real liberou, autorizou, tambm permitiu a
Virginie interrogar como saber o que era da ordem de uma verdade. Para ter esse saber,
dir Lacan, preciso empenhar a prpria pele (1972/73, p. 103). Se reconhecermos a
pele de Virginie na sua identificao ao ns, ento sim, podemos afirmar que ela
empenhou sua prpria pele em sua pesquisa!
O silncio do pai pode agora restabelecer-se, sob outros termos, radicalmente diferentes,
como modo singular de dar conta de um gozo, como uma escolha e no mais como um
assujeitamento. Eu dizia no captulo 1 que o encontro com o pai Real permite separar-se
do gozo do Outro, separar-se para servir-se do pai, um pai que no oferece garantias,
mas d testemunho de uma relao possvel com o gozo. O pai de Virginie perdeu para
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ela a consistncia que o lugar de vtima de Histria lhe conferia, mas abriu-lhe brechas
para a inveno, a escolha. Seu silncio passou a ser lido por ela como um modo de
tampar o buraco a loucura que eficaz em fazer crer que no h buraco, e, nessa
medida, confere um semblante no lugar do impossvel.
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Quando Judith nasceu, sua me Sylvia ainda estava casada com G. Bataille. Dada a proteo que este
casamento lhe conferia por tratar-se de um no-judeu. Com a morte deste, Lacan d incio ao processo de
legitimao de sua paternidade (PORGE, 1998).
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sobre como deve ser o papel do pai e o papel da me; o que encorparia a fantasia
dos pais de que existe uma boa verso de famlia, e que, para tal, bastaria seguir as
orientaes e prescries do especialista. Najles (2008) destaca um aspecto
aparentemente simples, mas fundamental: como sujeitos que se escutam pai e me no
tratamento de uma criana, isto , no h como isolar, ao escutar o sujeito, o pai, a me
ou a parentalidade. No possvel assumir uma faceta s pai ou s me ao se criar
uma criana, o que da ordem do sexual, que se pretende expulsar nos discursos
normativos e ortopdicos sobre a parentalidade, retorna quando do sujeito que se trata.
A propsito da chamada para o V Enapol A sade para todos, no sem a loucura de
cada um - Marcus Andr Vieira150, diretor do evento, fez o seguinte comentrio:
O no sem de nosso ttulo convida a outro caminho. Esta expresso
afasta a simples oposio entre seus termos. A loucura no ser
definida, como de hbito, como o contrrio da sade mental ou da
razo, mas acrescenta-se a elas como condio imprescindvel.
Vieira, ao propor uma articulao entre sade mental e loucura, convidou a se fazer uma
bscula entre esses termos, ao invs de polariz-los e convert-los em excludentes. Com
isso, inspirou um tratamento possvel ao binmio sobre o qual me detive ao longo deste
trabalho: parentalidade e famlia. Antes que opor-se ao que o discurso social produz
como modo de sutura da falta na atualidade ou mesmo fazer-lhe resistncia, pode-se
formular que a parentalidade151 no sem a famlia em sua condio de resduo, ou,
outro modo de diz-lo, a famlia se reintroduz na parentalidade como condio
imprescindvel. Penso que esse um modo possvel de tratar tais termos e, ao assumilo como possvel, entendo ser o que permite que, por um tempo, as articulaes entre
famlia e parentalidade parem de no se escrever.
A famlia faz furo, descompleta a parentalidade. Ao bascular entre o universal e o
homogneo que os discursos sobre a parentalidade veiculam e a singularidade inerente
noo de famlia como resduo, a psicanlise faz comparecer a impossibilidade de
recobrimento da falta (condensada no aforismo lacaniano no h relao sexual). De
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Como NEGRI, 2010, RUSSO, 2010 e TORRES, 2010, autores citados no final do captulo 3.
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