Critica Literária Orlanda Amarilis
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8-Apr-2015 16:21:59
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VEREDAS 7 (porto Alegre, 2006) 145-159
Globalizacao, cultura e
identidade em Orlanda Amarilis
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
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gostoso dentro do meu corac;ao".2 A partir das carencias de sua terra, Osvaldo Alcantara sonha com 0 que nao tinha.
Ao contrario de Osvaldo Alcantara, Ovidio Martins - identificado com os pressupostos ideologicos da Casa dos Estudantes do
Imperio em Lisboa - ja estava insatisfeito com 0 reino de Pasargada. Em oposicao ao que ocorrera no sonho de Bandeira, ele nao so
nao era amigo do rei ("Vou-me embora pra Pasargada / La sou amigo do rei / La tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei" - Apud: Idem. Ibidem. p. 142) como foi perseguido por sua policia. Nao conseguindo permanecer em Lisboa, foi obrigado a imigrar para a Holanda. Ovidio Martins, como Osvaldo Alcantara, soOOa com 0 que nao tinha: justamente sua terra, Cabo Verde. Se Osvaldo Alcantara olha para horizontes indefinidos do mar, Ovidio
Martins adota a perspectiva inversa: procura arremessar-se ao chao
("Pedirei / Suplicarei / Chorarei / Nao yOU para Pasargada / Atirarme-ei ao chao / e prenderei nas maos convulsas / ervas e pedras de
sangue / Nao yOU para Pasargada"),"
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publicada urn pouco antes dos Cravos de Abril. 5 Esse conto serve de
portico para essa coletanea e permite identificar estrategias narrativas e motivos tematicos que tern recorrencia no conjunto das produyoes de Orlanda Amarilis. Como se sabe, apos a edicao dessa coletanea, Orlanda Amarilis publicou ainda os seguintes volumes de
contos: Ilheu dos passaros" (1983) e A casa dos mastros' (1989).
Corneyamos com duas citacoes que nos servem de primeiro
contexto critico. 0 primeiro e 0 ensaio "As mulheres-sos de Orlanda Amarilis", de Maria Aparecida Santilli, que integra 0 livro Africanidade. 8 Relevamos suas observacoes sobre a optica feminista da
escritora em Ilheu dos passaros - perspectiva que a critica brasileira
associa tambem acoletanea anterior (Cais-do-Sodre te Salamansa).
Citamos as conclusoes de Maria Aparecida Santilli:
Neste ultimo livro de contos, confirma-se 0 processo de e1abora<;ao da colecao anterior da Escritora, Cais-do-Sodre te Salamansa,
fundamental mente organizada sobre os sulcos da memoria, por
convergencia de pequeninas e multiplas verterites das recorda- .
coes, canalizadas na rede de vasos comunicantes da intriga de fie<;ao. A memoria funciona, entao, como sistema de estimulos para
se irem abrindo as comportas da interligacao de muitas caixinhas
de segredo, revelando a pouco e pouco 0 retrato caprichoso de suas mal-amadas heroinas, Nas voltas delicadas para fundir 0 que
"era" no que "e" caboverdiano fica de1ineada a solucao literaria
"feminina" da Contista, quase como contraponto do estilo convulso, de "serpentinata" da memoria de seu companheiro de letras
caboverdianas, 0 Manuel Ferreira de Voz de Prisiio.
A linguagem de Orlanda e ainda a das mulheres contidas, a caminho de libertarem-se do codigo de manifestacao que a sociedade
masculina ao lange dos tempos lhes impos."
6 _ _ .Ilheu
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a linha de Cascais - urn dos suburbios de Lisboa, e a praia de Salamansa, em Cabo Verde); divisao tambem no tempo (em que a mesmice do presente da pretensa Pasargada opoe-se a uma singularidade
- mesmo que dramatica e tragica - recuperada pe1a memoria).
Dito de outra forma, 0 texto de ficcao de Orlanda Amarilis
mostra-se bastante auto-recorrente, criando urn continuum como se
a escritora estivesse sempre escrevendo urn mesmo livro, com seus
narradores trazendo novas visoes dos mesmos objetos ou acrescimos de historias intercaladas. Alem disso, esse continuum do espayo-tempo, em oposicao ao insulamento das mulheres-sos, cria ao
nivel da enunciacao urn espaco de solidariedade. Esse recorte e manifestacao do desejo da escritora, de sua vontade. Ou, se quisermos,
uma configuracao virtual que cria horizontes capazes de levar 0 escritor e seus atores a dialogarem em termos de presente com seus
leitores. Dessa forma, 0 que poderia ser denuncia da situacao da
mulher cabo-verdiana acaba tambem por constituir uma forma solidaria de encontro. 0 texto, assim, nao deixa de ser manifestacao utopica: uma manifestacao da vontade da escritora que acredita que
as coisas possam ser diferentes do que sao e se seu leitor, como boa
parte de suas personagens, nao pode modificar 0 mundo, podera pe10 menos modificar suas atitudes diante dele.
Voltemos ao conto "Cais-do-Sodre". E ai que se encontra
uma das narradoras de Orlanda Amarilis, Andresa. Sua voz, repetimos, e exercida a partir de carencias, nao apenas aquelas recuperadas do referente Cabo Verde, mas sobretudo aque1as de quem se ve
longe da terra e se encontra num "reino" frustrante. Esse reino, de
caracteristicas burguesas, move-se atraves de formas rituais tao estandardizadas quanto os seus produtos. Nao se trata da outra civilizacdo dos sonhos de Manuel Bandeira. E urn espaco que enreda as
personagens de Orlanda Amarilis, levando-as a urn mundo competitivo que seria 0 avesso daquele sonhado pelas perspectivas libertarias
que balizam 0 horizonte estetico-ideologico da contista. Relacoes de
solidariedade entre essas personagens, quando ocorrem, sao fugazes e
podem ser creditadas a manifestacoes de ordem comunitaria que invariavelmente apontam para os signos da identidade cabo-verdiana.
Entre esses signos, e central a lingua literaria de Orlanda
Amarilis, urn portugues padrao entrecruzado pela cadencia oral do
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cabo-verdiana constitui matizacoes equivalentes aquelas que separam regioes ou a cidade do campo.
A Ilha de Sao Vicente, onde se localiza a cidade de Mindelo,
e a referencia basica de Orlanda Amarilis, Na ambiencia insular de
uma cidade media, a atividade social se circunscreve e todos se conhecem. E, ao curso das conversas, configuram-se os elos de articulacao da comunidade:
Oh gente, se encontra pessoas, como ela, vindas daquelas terras de
espreguicamento e lazeira, associa-as quase sempre a uma ou outra familia. Se nao as conhece, born, de certeza conheceu 0 pai ou
o primo ou 0 irmao, ou ainda uma tia velha, doceira de fama, ate
talvez uma das criadas la da casa. E a conversa, por esse elo, estende-se, alarga-se, num desfolhar calmo, arrastado, saboroso
quase sempre. II
Cais-do-Sodre Ie salamansa. p. 9.
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A procura da identidade, atraves da chamada "literatura oral" (ou, se se quiser, oralitura), leva 0 narrador a incorporar formas
do imaginario popular. Em alguns momentos da obra de Orlanda
Amarilis, 0 discurso do narrador nao se distancia dos relatos das
personagens, impregnando-se de referencias fantasticas. Assim a
identidade faz-se por dentro e nao apenas atraves do discurso referido. E a estrategia discursiva, ao nivel da efabulacao, torna-se simetrica com 0 ja indicado ao nivel linguistico,
Nessa situacao narrativa que incorpora 0 "causo" de Simao
Filili - uma historia encaixada dentro do conto - e notoria a re1igiosidade crista da ideologia oficial, que nao aceita a diferenca do outro: urn macom, re1egado a solidao. Nesses relatos originarios da 0ralitura, 0 fantastico vern de fontes culturais crioulas, na mesc1a do
misticismo das culturas africanas com 0 dos primitivos colonos portugueses que vieram ter ao arquipelago. Simao Filili, no passado,
despertou medo na menina Andresa; agora, no presente da enunciacao, sua figura e recuperada com empatia.
12 op.
cit., p. 12-3.
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o processo de composicao de Orlanda Amarilis - uma producao artesanal, restrita aos papeares domesticos. Suas narradoras sao sucedaneas, na escrita, dos antigos "griots" africanos. Uma dessas vozes
narrativas em "Cais-do-Sodre" e Bia Antonia:
Bia Antonia, a velha criada da casa, era quem contava estas e outras patranhas a Andresa. Depois do jantar, Bia Antonia sentavase num caixote, perto da escada, na varanda sobranceira ao quintal. Entre duas fumacas do canhoto sempre dependurado no canto
da boca, a serva desfiava um ror de historias. 13
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com ela. Nao teve duvidas em ir atras de Tanha, para continuar suas
conversas.
A identidade feminina, como se ve, caminha ao lado da identidade nacional. Era a perspectiva do Neo-Realismo. Mais: essa
perspectiva associ a reivindicacoes de genero as sociais. Isto e, as articulacoes feministas subordinavam-se as sociais, da mesma forma
que as de natureza etnica, tao presentes no contexto africano. Neste
momenta de globalizacao, a tendencia dominante e a articulacao
comunitaria, que envolveriam as mulheres independentemente de
suas condicoes sociais. Ha fragmentacao, mas a articulacao toma-se
mais enfatica e especifica, em face do enfraquecimento dos estados
nacionais. Se se afinna de forma dominante a logica da corporacao,
o feminismo nao deixa de ser uma resposta a ela. Entretanto, em Orlanda Amarilis continua a visao totalizadora do Neo-Realismo, com
suas vinculacoes politico-sociais ligadas diretamente a esfera do
trabalho. 0 feminismo articulado, assim, a reivindicacoes mais gerais, de ordem social. Andresa, portanto, nao se ve identificada com
a inglesa ruiva, que - apesar de mulher - era diferente dela do ponto
de vista etnico e lingiiistico.
A identidade individual e nacional prende-se, assim, a cultura. Nao a cultura em geral, mas de como esta e apropriada as margens do sistema - outro topico Neo-Realista. Trata-se de uma apropriacao feminista e de carater popular. 0 trabalho artistico de Orlanda Amarilis pauta-se justamente por essas fonnas de produtividade. 0 diferente vern do fato de que as marcas feministas e que se
articulam ao social e nao 0 contrario, como acontecia nas obras de
autoria masculina. A condicao social agrava uma distonia anterior,
que seria de genero, Tudo, e claro, dentro dos horizontes da nacao e
das questoes politico-sociais por ela delimitadas. Observe-se 0 seguinte "causo" em tome de Zinha, irma de Tonha:
Zinha andava doente ha Iongos meses de uma doenca esquisita. A
pele virara-se baca e de cor suja. 0 noivo Ia para Guine e 0 povo
murmurava. Doenca assim nao podia ter outra origem senao malfeitico feita pela amante preta de Bissau. Voces nao sabiam? Gente da Guine fazia mal-feitico por tudo e por nada. Tambem nao
era novidade: Qualquer rapaz solteiro costumava arranjar a sua
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rapariga e, muitas vezes, urn ou dois filhos antes de casar com outra. Quanto a Zinha, mal-feitico ou nao, a verdade era ela estar
doente. Mal-feitico ou nao, muita gente nova de Soncente morria
tuberculosa e, se criancas ainda, morriam de febre tif6ide, e se
meninos de mama, morriam com desinteria. Entao, pi! mode que
tanta tolice de boca para fora?"
A adesao empatica vern, pois, dentro das condicoes da migracao. Como se sabe, ha mais cabo-verdianos fora do que dentro
de seu pais. E articulacoes de carater comunitario, como a das narradoras de Orlanda Amarilis, podem ser manifestacoes das potencialidades de articulacoes supranacionais onde se preservem as diferencas. 0 caminho suburbano aponta a direcao, Para quem observa
em sua perspectiva, e possivel visualizar alguma luz no horizonte.
Para finalizar, parece-nos importante relevar alguns pontos
indicados neste nosso percurso:
1. As formulacoes utopicas que envolveram a formacao da
literatura cabo-verdiana, com urn horizonte voltado entre 0 partir e
o ficar, revestem-se hoje de atualidade, quando antigas fronteiras
14 Idem,
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Ibidem. p. 19.
Idem. Ibidem. p. 21.
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com esse horizonte, nos - brasileiros, portugueses e africanos - podemos comecar relevando 0 comum de nossas diferencas.
4. A ficcao de Orlanda Amarilis, com sua otica feminina, e
tambem uma forma de articulacao supranacional. Entretanto, sua
perspectiva nao se restringe aos horizontes mais cirscunscritos da
chamada "literatura de genero", porque aspira ao sentido da totalidade - uma totalidade imaginada, conforme 0 desejo (potencialidade subjetiva) do neo-realismo. Sua otica, entretanto, nao deixa de
ser de "genero": da maneira equivalente as producoes paradigmaticas da tendencia estetico-ideologica neo-realista, que procura discutir 0 geral atraves do particular, a nacao atraves da regiao, 0 coletivo
atraves do individual, em tensoes que se pretende sejam problematizadoras, Orlanda Amarilis ve seu povo de migrantes atraves da mulher - da adversidade de sua condicao olha para uma adversidade
mais geral.
5. lei se escreveu sobre 0 nosso tempo classificando-o como
proprio de uma epoca de indiferenca: uma pretensa democracia nao
como forma de respeito ao "outro", mas como ideologia da indiferenca. A ficcao de Orlanda Amarilis recoloca 0 homem no centro de
suas preocupacoes. 0 "papia" que the serve de estrategia discursiva
e uma forma de encontro, de aproximacao. A perspectiva anomica
da dispersao, solidao, individualismo, opoe a solidariedade, procurando, assim, analogicamente, a discursividade dos contadores de
estorias. Assim, alem de memoria cultural de seu povo, sua ficcao
constitui producao simbolica solidaria (enquanto tal, concretiza lacos de solidariedade), pela intercalacao de multiplas vozes e multiplos "causos".