Obra de Arte e Filosofia
Obra de Arte e Filosofia
Obra de Arte e Filosofia
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MERLEAU-PONTY
Obra de arte e filosofia
Marilena Cbaui
DESFAZENDO AS AMARRAS DA
TRADIfAO
Merleau-Pomy busca o Esgfrito Selvagem e o_Ser,Bruto. Sua imerrogacao vem exprimir-se numa espanfosa nota de trabalho de seu livro postumo e inacabado, O.viswel e o invisivel: "O Ser e o que exige de nos
criacjo para que dele tenhamos experiencia". Frase cujo prosseguimento
retine emblematicameme arte e filosofia, pois a nota continua.- "filosofia
e arte, juntas, nao sao fabricacoes arbitrarias no universe da cultura, mas
contatp com o ser justamente enquanto criacoes".
Por que criafdo? Porque entre a realidade dada como um fato, institui- [da, e a essencia secreta que a sustenta por dentro ha o momento instituinte
no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visfvel venha a visibilidade,'
solicita o trabalho do pintor: para que o ser da linguagem venha a expressao, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha a
inteligibilidade, exige o trabalho do filosofo. Se esses trabalhos sao criadores e justamente porque tateiam ao redor. de uma intencao de exprimir
alguma coisa para a qual nao possuem um modelo que Ihes garanta o acesso
ao Ser, pois e sua acao que se abre e abre a via de acesso para o contato
pelo qual pode haver experiencia do Ser. Por isso, em A linguagem indireta e as voZes do silencio, opondo-se a teoria de Malraux sobre o artista
como "genio e monstroincomparavel", Merleau-Ponty assinala que o problema da arte moderna nao e o surgimento do indivfduo, mas o da coniunica^ao com o Ser sem ojigoio numa J^atureza^preestabelecida e fonte
(*) Serao citadas as seguintes obras de MerJeau-Pomy: Le visible et I'hirisible, Paris.
Gallimard, 1964 (trad, brasileira, O lisirel e o invisivel, Sao Paulo, Perspectiva. 1971); "Lc
doiite de Cezanne", em Sens et non-sens, Genebra, Nagel, 1965: / 'oeit et /'esprit, Paris.
Gallimard, 1964; "Le langage indirect et les voix du silence", em Signes. Paris, Gallimard, 1960:
"L'algorithme et le mystere du langage", em La prose du motide, Paris, Gallimard, 19"!,
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J-'
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guram para que scja vcrdadeiro sendo o que e quaiu: > encontra quem sai^
ba vc-lo ou dixe-lo. isto e. quem consign arranca-lo de si mesmo para que
sen scntido venha a cxpressao. Em outras palavras. a invocacao das obras
de arte rompe com a tradicao filosofica que as julgara c_6pias imaginativas
/da perccpcao, sjmulacros.platoniccjs e, portanto, identificara ficcao, erro
> e ilusao. O imaginario nao e, como supusera Sartre, a presenca plenamente observavel, porque a imagem e pura construcao subjetiva herdeira da
sensacao e da memoria, mas, lemos em Oolho e o espfrito, e "o diagrama
do real em meu corpo" e a "textura do real que atapeta interiormeme"
a visao, a linguagerh e o pensamento, Desfazer a tradicao filosofica, gracas
ao ensinamento da arte, e famais esquecer que o artista tern seu corpo "como sentinela em vigflia as portas do sensivel" e que cabe a fiJosofia recuperar a :"dignidade^ontolj5gica do sensivel". '
Desamarrar^os nos da tradicao filosofica e, pois. renunciar aomodelo,
Cl3Sl_do(Espfrite que a fiJosofia ergueu sobre uma imagem da consciencia<
como purairansparencia de si consigo, pura identidade e coincidencia con-f
sigo.mesma, imanente aos pensamentos e as ideias postas por ela mesma, j
interioridade plena e pura que, por sua espontaneidade essencial, teria o'
poder para transformar as coisas exteriores em puros conceitos do enten- >
dimento, pondo-as como representacoes claras e distintas ou constituindo-as como significacoes. Trata-se, agora, de renunciar a ideia do Ser como "ser posto" pela conscidncia enquanto poder absoluto de posicjp,
derivado de seu poderio como reflexao completa portanto, como plena posse intelectual de si mesma e como subjetividade transcendental
portanto, como poder total para constituir o real enquanto cpnceitp,
ideia ou significacao. Rumar para o Espfrito Selvagem e abandonar a definicao do espfrito como consciencia de si, a da consciencia como reflexao
e a da reflexao como posse intelectual de si e do mundo.
Pe^taj^euja^tadigap_filos6fica e tambem renunciar ao modelo classico do Ser como^cols^ definida como pura exterioridade espaco-temporal
dada, mosaico de pairtes exteriores umas as outras ligadas por relacoes causais ou funcionais. como feixe de propriedades objetivas analisaveis ou
separaveis pelo pensamento e novamente reunidas por uma sfntese intelectual, analisee sfntese que seriam permitidas pelo uso dos instrumentos
tecnicos inventados pelas ciencias. E preciso abandonar o Ser como coisa
empfrica, mas tambem como resultadp da analise e da sfntese intelectuais
quepfazeni posto pelo entendimento. Trata-se, pois, de renunciar ao outro lado da Subjetividade pura, a Objetividade pura, construfda pelas operacoes de um pensamento que se julga desencarnado e de uma tecnica
reduzida apenas a sua superficie instrumental.
Desfazer pjecido da tradic.ap e, assim, renunciar a heranca filosoficoxrientffica que nos legou as dfeptprflja^a realidade como consciencia ou
coisa, como ideia ou fato, como exterioridade identica a si mesma ou inte-
noridade identica a si mcsma. E que crgucu essas dicotomias sobre aqucla, tida como fundadora: a oposicao entre essenci;u'realidade aparencia/ilu. sao, como se alguma essencia pudesse existir sem aparecer e como se uma
aparencia nao manifcstasse um modo de ser nosso e das coisas. E chegada
a hora de fazer o luto de uma filosofia ancorada na oposiy.ao entre o Para
Si e o Em Si para que possa nascer uma interrogacao filosofica nova cuja
terra natal sejam os paradoxes e as a_rnbigiiidads de uma consciencia encarnada e de um corpo dotado de interioridade.
A jnterro^cJoJllQSofica como recomego radical comega por abandonar os duallsmds inaugurados por Descartes cujo primeiro efeito havia
sido impedir um pensamento ancorado na uniao entre a alma e o corpo
e na relacao originaria do sujeito e do mundo. Abandonar a heranca cartesiana (vale dizer, o racionalismo classico e o que dele derivou-se no idealismo alemao) implica ultrapassar as ideias claras e distintas de sujeito e
pbjeto, a oposicao entre qualidades primarias (fisico-geometricas) e secundarias (sensoriais, como a cor, o odor, o sabor, a sonoridade, a textura),
a separacao entre conceito e ideia e entre ambos e as coisas, a posicao
da subjetividade transcendental que funda e acompanha todas as representacoes. Mas trata-se ainda de ir alem da cn'tica dos romanticos ao idealismo transcendental (cn'tica que os fizera desejar um retorno passive ao
seio da Natureza) e da cn'tica hegeliana aos romanticos (cn'tica que conduzira Hegel a fazer do sensfvel um momento alienado do espfrito), assim
como se trata de abandonar definitivamente o f6ssil do Grande Racionalismo exibido pelo Pequeno Racionalismo cientificista do ini'cio do seculo xx (que pretendeu erguer a racionalidade sem o fundamento que a tornara possfvel no Grande Racionalismo do seculo xvn, a ideia do infinite
positive no qual uniam-se as dualidades metafisicas, irreconciliaveis para
e nos entes finitos).
IXsmanchar as amarras da tradicao e romper com os erros gemeos
e rivais do idealismo e do realismo, do intelectualismo e do empirismo,
passando a interrogar os fendmHnbs e a exgeriencia^depois de haver re. nunciado a/iccao dafeflexJacfrgomo coincidencia entre pensar e ser. Espfrito Selvagem e Ser Bruto desvendam que aTeflexao tern o irrefletido nela
propria a irreflexao nao Ihe e exterior, mas interior, pois 6 a experifinqia muda de sua encarnacao num corpo e que o pensamento Vive simultaneamente dentro e fora de si, jamais repousando junto a si. A simul. , taneidade do sair de si e do entrar em si que Merleau-Ponty diz ser a
''d^2flwggflgerjaa^^^^Hi^ Transpafece quando aexperjincig e captada compiniciaao aos segredos do mundo.
"A palavra^gzmeHCHj^arece opor-se a palavra iniciafao. De fate, a
primeira, composta pelo prefixo latino ex para fora, em,diregao a
e pela palavra gregapmw limite, demarcate, fronteira , significa um
sair^de si rumoao exigxior, viagem e aventura fora de si, inspecao da exte472
Ao faxer falar a experiencia como /issc'io tin Set", Merlcau-Ponty levanos de volta ao recinto da encarnacao. abandonando aquela maneira clesenvoka com a qual a filosofia julgava poder explica-la, perdendo-a. Doravante, nao se trata. em primeiro lugar. de explicar a expericncia, mas
de decifr;Ha nela mesma, e nao se trata, cm segundo lugar, de separar-se
dela para compreende-la. Somos levados ao recinto da experiencia pelas
, cujo trab_a!hp e a iniciacao que nos ensina a decifrar zfissdo no Ser.
Fissao: as cosmologias e a ffsica nuclear decifram a origem do universo pela explosao da massa em energia cuja peculiaridade esta em que as
novas partfculas produzidas sao de mesma especie das que as produziram,
de tal maneira que O proprio Ser divide-se p^>r flentrp serg separar-se de
si mesmn ffitfefi-gpfia.s^ de si mesmo sem perder-se de si mesmo. *>&'
Quando invoca a experiencia do pintor, do musico ou do escritor,
para contrapo-las ao modo como a filosofia interpreta a experiencia, Merleau-Ponty se demora naqueles instantes em que ver, ouvir ou falar-escrever
atrayessam a carapaca da culturajostUuicJ^e desnudam o originario de um
mundo visfvel, sonoro e falante. A expressao/mao no Ser manifesta a divisao no interior da indivisao, a experiencia como aquele momento no
qual um visfvel (o corpo do pintor) se faz vidente sem sair da visibilidade
e um vidente se faz visfvel (o quadro) sem sair da visibilidade; no qual um
ouvinte (o corpo do musico) se faz sonoro sem sair da sonoridade e um
sonoro (a miisica) se faz audfvel sem sair da sonoridade; no qual um falante (o corpo do escritor) se faz dizfvel sem abandonar a linguagem e um
dizfvel (o texto) se faz falante sem sair da linguagem. A experifincia e cisao
que nao Separa o pintor traz seu corpo para olhar & que nao e ele, o
musico traz seu corpo para ouvir o que ainda nao tem som, o escritor traz
a volubilidade de seu espfrito para cercar aqutfe que ^e diz> senrqle ,
e e indivisao que nao identifica Cezanne 030 e a Montanha Santa Vitoria, Mozart nao e a Flauta Magica, Guimaraes Rosa nao e Diadorim. A experiencia e o ponto maximo de proximidade e de distancia, de inerdncia
e diferenciacao, de unidade e pluralidade em que p Mesmo ,se faz Outro.
.DP interior_de si mesmo.
^"O que e a experiencia da visao? E o ato de ver, advento simultaneo
do vidente e do visfvel como reversfveis e entrecruzados, gracas ao invisfvel que misteriojamente os sustenta. O que e a experiencia da linguagem? E o ato de dizer como advento simultaneo do dizente e do dizfvel,
gracas ao silencio que mistef losamente os sustenta. O que e a experiSncia
dapensamento? E o ato de pensar como advento simultaneo do pensante
e do pensavel, gracas ao impensado que misteriosamente os sustenta. h.
exrjeri|ncia e o que em n6s se ve quando vernos, o que em nos iB'fala
quando falamos, o que em nos se pensa quando pensamos. Nenhum dos
termos e origem: visfvel, dizfvel e pensavel nao existem egisj como eoiou ideias; vidente, falante e pensante nao sao operacoes de um sujeito
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' .
A experiencia e esse fundo que sustenta a manifestacao da propria
experiencia, sem o qual ela nao existiria como a figura nao existe sem
o fundo e gracas ao qual os termos que a constituem sao^eversfveis
como o fundo que se torna figura e a figura que se torna funcTo. Esse
fundo imemorial, essa ausfincia que suscita uma presenca, e inesgotavel:
nao W uma yosaoietal que veria tudo e completamente, pois para ver e
preciso a profundidadftque nunca pode ser vista; nao ha uma linguagem
otal que diria tudo c completamcnte. pojs para f'alar e precise o silencio
sem o qual nenhuma palavra poderia ser proferida; nao ha um pensamento total que pensaria tudo t completamente. pois para pensar e preciso
oNimpensado' que faz pensar e da a pensar. Assim. se oQbndo e uma ausencia
que pede uma presenca, um vazip que pede preenchimento, ele e tambem, c simultaneamente, um i^npei: o que nos leva a buscar novasexpressoes e o excesso do que gnetempa exprimir sobre o que ja foi expresso.
A cultura sedimenta e cristaliza as expressoes, mas o institufdo carrega um
vazio e um excesso que pedem nova institiucao, novasjxpressoes. Com
isto, o primeiro parentesco profundo entre filosofia e arte aparece: a obra
de arte como a obra de pensamento sao interminaveis. O pintor nap pode parar de pintar, o musico nao pode parar de compor, o poeta nao pode
parar de escrever, o pensador nao pode parar de pensar. Cada expressao
engendra de si mesma e de sua relacao com as expressoes passadas e com I
o mundo presente a necessidade de novas expressoes. A experiencia e as<
obras que ela suscita sem cessar sao, assim, iniciacao ao misterio do tempo como literalmente pura Jnguietacao, nao-quietude.
Esse parentesco, porem, nao se esgota na relacao entre filosofia e arte como interminaveis, como esse "irmaisjbnge" de que falava Van Gogh.
Tomar a experiencia como iniciacao ao misterio do mundo significa reconhecer que o sair de"fi 60 entrar ng^mundo, Resta saber, no entanto, como e por que esse entrar no mundo e tambem nosja volta a nos mesmos.
A pintura revela que a experiencia de pintar {f$if>erffflettll^ o que em n6s
se ve quando vemos (Cezanne dizia: "sou a corisciincia da paisagem"),
a literatura revela que a experiencia de escrever e experimentar o que em
nos se fala ou escreve quando falamos ou escrevemos (Guimaraes dizia-se
falado pela linguagem que o "empurrava" a escrever) e, assim, ambas ensinam 2 filosofia que
Experincia: algo age em nos quando agimos, como se fdssemos agidps no instante mesmo em que somos agentes. A obra,
de arte e a chave do enigma da experiencia e do espfrito e, dessa maneira,
ensina a filosofia o filosofar, ensinando-lhe a reversibilidade entre atividade e passividads, _quej.Itaj&cJiajulgara Qppjtas_.
Todavia, alem do parentesco entre obra de arte e obra de pensamento e do ensinamento artfstico para a interrogacao filospfica, uma terceira
relagao existe entre*arte e filosofia: as artes indicam como e por que, sendo parentes e mestras da filosofia, sao tambem diferentes dela, e esta
difraic^u^p_ermiie:a^^ filosofaa-ialar_epensansobre as artes. Pode haver
um discurso filosoficoj^^ as artes porque estas sao filosofia selvagem
que afilosofiatematiz^ Do lado das artes, podemos dizer artepensamento, enquanto do lado dafilosofiaprecisamos dizer arte e pensamento, conquista de uma diferenca prometida pela pr6pria arte. Todavia, por que a
difeTenca que permite dizer arte e filosofia e conquistada a partir do deci-
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framento da experiencia artistica, ha tambem diferenca entre crftica de arte e filosofia. A primeira chcga as artes sabendo o que sao. podendo julgalas e avalia-Ias. A segunda parece comecar como se tambem ja estivesse
na posse de um saber, mas, acolhendo o trabalho dos artistas, vai, pouco
a pouco, aprendendo com eles e, atraves de suas obras. alcanca uma via
de acesso a si propria como um saber que nao e outra coisa senao a experiencia interminavel da interrogacap. /_" i
,- ;
A OBRA
.A-
INTERMINAVEL
O ensaio "A duvida de Cezanne" realiza dois movimentos simultaneos: o primeiro interpreta a obra de arte como trabalho de transfiguracjp da vida a hereditariedade, as circunstancias, os habitos e as influencfas ou como passagem da necessidade a liberdade e como trabalho
motivado pela vida, isto e, como expressao livre do que e .neressario. O
segundo movimento, que abre e fecha o texto, expoe a essencia da obra
de arte como genese sem fim e trabalho interminave). Cezanne e Leonardo figuram esse duplo movimento.
Cezanne duvida do valor e do sentido de sua obra. Zola, seu amigo.
fala em "obra abortada", atribuindo o fracasso do pintor ao seu temperamento doentio, morbido e depressivo, efeito da hereditariedade e das condicoes de seu meio. Emile Bernard, outro amigo, comenta a duvida do
pintor a partir de suas dificuldades para ultrapassar as influencias do impressionismo. Para ambos, a obra de Cezanne e o efeito necessario de uma
C v causalidade bio!6gica, social e cultural. No polo oposto. interpretando a
obra de Leonardo, Valery a apresenta como expressao acabada de uma
liberdade plena e sem freios, de uma esppntaneidade que nada deve a situacao vital, familiar, social e cultural do pintor. A obra de Leonardo e
incausada, ou melhor, tem como causa aquilo que 6 desprovido de causa:
a pura liberdade de Leonardo.
Contra essas duas interpretacoes opostas e gemeas, Merleau-Ponty
enfatiza a liberdade de Cezanne e o peso da necessidade sobre a obra de
Leonardo. No entanto, ao faze-lo, opera duas mudancas fundamentals: mo;
difica a ideia de^causajjecessarlj e a dq liberdade imotivada. Com elas,
modifica inteiramente ano2ao_de^obra: esta nao e efeito da vida, mas aquilo
que exige esta vida determinada, seja a de Cezanne, seja a de Leonardo.
E a obra que explic3*a vida e nao o contrario, pois a obra e a maneira como o artista transforma, num sentido figurado e novo. o sentido literal
e prosaico de sua s.ituagao-de fato. A obra de arte e existencia, isto e, o
_- j>ojder humano para transcender a faticidadejnua de uma situacao dada,
conferindo-lhe um sentido que, sem a obra, ela nao possuiria. El Greco
nao pinta figuras longilmeas e curvilfneas por ser astigmata e esquizoide,
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47O
atacava o quadro por todos os lados ao mesmo tempo, cercava com manchas coloridas o primeiro tra?o de carvao, o esqueleto geologico. A imagem
se saturava, ligava-se, desenhava-se, equilibrava-se, vindo_a maturidade de uma
so^ez. A paisagemrsepensa tm. mini, sou a consciencia dela.r. O pintor retoma e convene justamente em objeto visivel aquilo que, sem ele. ficaria encerrado na vida separada de cada^onsci6ncia: a vibracao das apardncias que
e o berco do mundo... Para esse pintor, ha um s6 sentimento de estranhexa,
um so lirismo: a existencia sempre recomecada.
SELVAGEM
"O pintor 'traz seu corpo'. Com efeito, nao vemos como um espirito
poderia pintar. E emprestando seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura." Com essas palavras, Merleau-Ponty abre o-,
ensaio O olho e o espirito.
A pintura e transubstanciacao entre o corpo do pintor e o corpo das
coisas. Como e isso possivel? E que a visao e o movimento sao inseparaveis, embora diferentes: ver nao e apropriar-se do mundo em imagem,
mas aproximar-se das coisas, te-las, mas ajiistancia; mover-se nao e realizar comandos que a alma envia ao corpo, mas o resultado imanente do
amadurecimento de uma visao. Nosso corpo e uma potencia vidente e mo-
triz que ve porque se move e se move porque re. Mas por que ha tranSubstanciac.ao entre nosso corpo e o mundo?
j
',
CKcorpo e um enigma. Entre as coisas visiveis, e um visivel, mas dotado do poder de ver e vidente. Visivel vidente, o corpo tem o poder
de ver-se quando ve, ve-se vendo, e um vidente visivel para si mesmo.
Entre as coisas tacteis, o corpo 6 um tactil, mas dotado do poder de tocar
e tocante. Tactil tocante, tem o poder de tocar-se ao tocar, e um tocante tactifpara si mesmo. Entre as coisas moveis, o corpo e movel, mas dotado do poder de mover e urn movente. Movel movente, o corpo tem
o poder de mover-se movendo e movel movente para si mesmo. O
corpo e sensivel para si.
Quando Cezanne afirma que a natureza esta no interior e que pensa
em pintura, quando Matisse se olha no espelho pintando-se a si mesmo,
quando Klee diz que deseja fazer uma linha sonhar para com o novelo
de linhas chegar ao elementar, quando Rodin afirma que o que da movimento a um quadro ou a uma escultura e a figura do corpo quando cada
uma de suas panes se encontra num instante temporal diferente, cada um
deles nao faz outra coisa senao celebrar o njist^rio do sensivel e do corpo
como reflexao.
A presence das coisas e um misterio porque reivindicam a existencia
como individuos e so podem te-la se forem mais ou menos do que indivfduos. Mais: sao campps ou configura^pes, famflias ou estilos de ser a
familia das cores, dos bdores, dos sonoros. Menos: sao pjurasLdiferenciacoes. Uma cor e pura diferenca entre cores, nao uma coisa, uma onda'lu-
minosa dotada de idcntidadc. As coisas se entrelagam e se cruzam: a superficie sc cnlac,a e se cruza com as cores e os sons que se enlagam e sc
cruzam com os odores e texturas que se enla^am e se cruzam em movimentos infindaveis, numa troca incessante na qual cada um e discernivel
porque pertence a uma famflia diferente, mas tambem cada um e indiscernivel dos outros porque juntos formam o tecido cerrado e poroso do
mundo.
Nosso corpo, coisa sensivel entre as coisas, e sensivel para si. E ele
que nos faz ver as coisas no lugar em que estao e segundo o desejo delas,
realizando o misterio do ver e do tocar, pois visao e tato tem o dom da
ubiqiiidade: a visao se efetua simultaneamente a partir das coisas e dos
olhos, o tato se realiza simultaneamente a partir das coisas e das maos.
Nossos sentidos operam por transitivicialJe, enlacando-se como as coisas:
o olho apalpa, as maos veem, os olhos se movem com o tato, o tato sustenta pelos olhos nossa mobilidade e imobilidade, compensando a imobilidade e a mobilidade das coisas.
O pintor e o escultor desvendam o misterio das coisas e do corpo
porque revelam o corpo como sensivel errante um sensivel entre os
sensiveis e um sensivel concentrado um sensivel sentiente que e sensivel para si mesmo. O trabalho_do.jjrtiia-destr6i a distinc.ao metafiska
entre tfajsugdaj^e ajiYidad_, desvendando-as como simultaneas e indiscerniveis. Pintura e escultura vao alem dessa destfuic.ao. Por elas, descobrimos que o corpo e misterioso: preso no tecido do visivel, continua a
se ver; atado ao tangivel, continua a se tocar; movido no tecido do movimento, nao cessa de mover-se. Sofre do visto, do tocado e do movido
a agap que exerce sobre eles. Sente de dentro seu fora e sente de fora seu
dentro. Sentindo-se, o corpo re/JexiOna. Pela primeira vez, na historia da
filosofia, graas_^obra de arte, descobrimos que asjeflexaj^nao e privile^
da consci6ncia, mas que esta recoIhfTurna
reflexao mais antiga que a enslna a refletff: a_reflggo_corgoral. Ora, o trabalhoselvagem do artista revela algo mais: a reflexapcorporal nao e plena_pjQsse_de_si^nem plena identidade do corpo consigo mesmoTfnasTnerencia e c^on/jisao o^lje^ajnagpjmesmo e com as coisas. Essa descoberta
ensina a filosofia a impossibilidade, para a consciencia, de realizar uma
reflexao completa e de ser posse intelectual de si e do murftlo. Os olhos
nos fazem descobrir quando a filosofia perdeu o foco: quando falou em
olho no singular e o designou como olho do espfritd, Ha os olhos.
Ha o olho e o espirito.
\s Merleau-Ponty:
A humanidade nao e produzida como feit$> de nossas aniculacoes, nem da
implantacao de nossos olhos, nem pela existencia dos espelhos que, no entanto, sao os unices a tornar nosso corpo inteiramente visivel para nos. Essas
hom:;m sua ca.sa... Hnquanto pinta, o pintor pratica uma teorin magici: da
visao (...] uma mesma co;^a esta la longe, no coragao do mundo e aqui perto,
no coracao da visao, a mesma coisa aqui e la, genese e metamorfose do Ser
em sua visao. E a propria montanha que, la de longe, se faz ver pelo pintor,
e e ela que ele interroga cam o olhar. Que Ihe pede ele? Que desvende os
meios puramente visiveis pelos quais ela se faz montanha aos nossos oihos.
Luz, iluminacao, sombras, reflexos, cor: todos os objetos da investigacao e
da busca do pintor nao sao seres completamente reais. Sao como os fan t asj^as, pois so tern existencia visual [...] o olhar do pintor Ihes pergunta como
e que eles fazem para que, de repente, haja algurnaj:oisa, e para que esta coi# sa componha o talisma do mundo, fazendo-nos ver o visivel.
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A psicanalise descreve a troca contfnua entre o passado e o futuro. mostrando que cada v'fda"sonha enigmas cujo sentido final nao se cncontra
inscrito em parte alguma e exige a liberdade como retomada criadora de
nos mesmos, fazendo nossa vida sempre fiel a si mesma. Como Cezanne,
Leonardo esta jituado, mas sua situacao e um campo aberto de possfveis
sobre os quais exerce a decisao livre ou de apenas repetir o dado inicial
ou de transcende-lo, clando-lhe um sentido figurado novo. A obra de arte
nao e efeito das condicoes dadas, mas resposta a elas, por isso e enraizarnento e ultrapassamento, isto e, rigorosamente, cjrjgc.ao radical.
Se assim e, compreendemos por que a obra e interminavej.
Em 1906, aos 6~ anos, um mes antes de morrer, Cezanne escreve:
"Encontro-me num tal estado de perturbacao que temo perder a razao...
Parece que agora estou melhor e penso com mais justeza sobre a orientacao de meus estudos. Chegarei ao objetivo tao longamente procurado?
Estudo sempre sobre a natureza e me parece que faco lentos progresses".
O filosofo Husserl. poucos dias antes de sua morte, proferiu uma conferencia na qual afirmava que sua obra gigantesca estava equivocada
e que iria recomeca-la, pois havia, finalmente, compreendido o que deveria ser o objeto da filosofia.
O diario de Cezanne e a confere"ncia de Husserl, assim como os trabaIhos inacabados de Leonardo, revelam que os ire's submeteram os acontecimentos e as experidncias a significagao que tinham para eles como um
fulgor vindo de parte alguma e que, em certos mementos, os iluminava
por inteiro. O artista, como o fi!6sofo, nuncaesta_no centro de si mesmo,
v eSJ3o_em^r.ejfqrajii, rodeados pela misena empfrica do mundo e pelo
mundo que devem realizar e revelar pela obra. Sempre duvidarao dos resultados, pois somente p" assentlmento dos outros confere valor a obra.
Por isso interrogam o mundo, a si mesmos, seu proprio trabalho, nao podendo parar de pintar, compor, dangar, escrever. Sua obra e interminavel
porque nunca abandonamos nossa vida e o mundo, nuncjryemos a ideia,
_d sentid_o e j_liberdade_cara a cara.
Escreve Merleau-Pont\-, no prefacio a Sens et non-sens:
Na presenca de um romance, de um poema, de uma pintura, de um filme
yjilidos, sabemos que houve, CQntaio com alguma coisa, que alguma coisa
- tornou-se urn* aquisicao para os homens e a obra comeca a emitir uma mensagem ininterrupta... Mas, para o artista e para o publico, o sentido da obra
so e formulavel por ela mesma; nem o pensamento que a fez nem o pensamento que a recebe sao senhores de si [.7.'f com que riscos cumprem-se a ex- /
pressao e a comunicacao... t como um passo na-hruma, sobre o qual ninguem pode dizer se levara a alguma parte. Mesmo nossa jrnaterhatTCa, cessou
de ser longas cadeias de razoes. Os seres matematicos so se deixam apanhar
porrocedimentos^bjliqups, metodos improvisados-<ao op&cos quanto um
mineral desconhecido. O mundo da cukura i descontinub como o outro,
l\STITUI\TFS:
Filosofia e ciencia sonham com o ideal de uma linguaggniputautransrjaj-ente, docil aos conceitos e as operagoes cientfficas, puramente instrumental, cuja funcao seria a de traduzir perfeitamente ideias em si mesmas
silenciosas. Sonham com uma linguagem que dissesse tudo e o dissesse
tao completamente que seria a perfeita transcricao de um texto original
cuja expressao estivesse terminada. Sonham com uma lingua bcm-feita,
reduzida a algoritmos unfvocos como os da matematica, direta, t ompleta
e sem ambiguidades.
O sonho da filosofia e da ciencia faz com a linguagem o mesmo que
fez com o sensfvel: perde-a, como o perdeu.
Como o sensfvel, como o visfvel, a linguagem e misteriosa:
Num certo sentido, a linguagem so tem a ver consigo mesma: no monologo
interior como no dialogo, nao ha jsensamentos, sao palavras que as palavras
suscitam e, na medida mesma em que pensamos mais plenamente. as palavras preenchem tao exatamente nosso espirito que nao ihe deixam um canto
vazio para pensamentos puros e para significances que nao sejam lin^uagelras. O misterio e que, no exato momento em que a linguagem esta assim obcecada consigo mesma, e-lhe dado, como que por excesso; abrir-nos para
uma significacao. Num instante, esse fluxo de palavras se anula como ruido,
lanca-nos em cheio no que queremos dizer e, se respondemos, e ainda por
palavras, sem querer: nao pensamos nos vocabulos que dizemos e nos dizem, como nao pensamos na matxque apertamos. Esta nao e um pacote de
ossos e carne, mas a p"r6pria presenga de outrem. Ha, pois, um singular significado da linguagem, tanto mais evidente quanto mais a ela nos entregamos,
tanto menos equivoco quanto menos pensamos nele, rebelde a toda captura
direta, mas d6cif ao encantamento da linguagem, sempre ali quando nos diri-,
gimos a ela para evoca-lo, mas sempre urn pouco mais diwanie do ponto onde acreditamos agarra-lo.
,
um fundo primordial e inesgotavel de silencio. Sem duvida, temos o sentimento de que nossa lingua exprime completa e diretamente as significagoes. Quando em ingles se diz "The man 1 love", nossa tenddncia espontanea e julgar que falta na frase inglesa algo que existe na portuguesa e
que a faria exprimir mais completamente o sentido "O homem que eu
amo". Todavia, esse sentimento de falta alheia e completude nossa devese apenas ao fato de que nossa lingua nos insere num mundo cultural onde ehparece exprimir completamente e nap porque realmente o faca ou
possa faze-lo. E por ser indireta_ealusiya,
-arum fundo interior de silencio, que a palavra e exessFva:aTinguagern
diz peremptoriamente quando renuncia a jizer a or ooria coisa [...] significa quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-se fazer e refazer
por ele".
Porem, que linguagem e esta cuja forca existe somente quando nao
se reduz a ser mera designacao de coisas nem mera copia de pensamentos? Nao e a linguagem empirica e costumeira de nossa vida cotidiana, ja
instituida em nossa cultura. E a linguagem jCfjjdiQfiyiOperante, instituinte. ,
E a linguagern do escritor quando esteJmprime uma^orcjk^na liriguagenT
existente, obriga-a a umak!,'jdlefpspac^)>coerente'?, rouba-lhe o equilfbrio
para fa/e-la significar e dizer~q||p;ijffc "Como o tecelao, o escritor trabalha
pelo avesso: s6 tem a ver com a linguagem e e assim que, subitamente,
encontra-se rodeado de sejjtida^O misterio da linguagem esta em quefc
s6 exprime quando se fazfesquecjer e s6 se deixa esquecer quando conse-jf
gue exprimir. Quando spiLcativada por um livro, ngo vejo letras sobre'
uma pagina, nao olho sinais, mas participo de uma aventura) que e pura
significacao e, no entanto, ele nao poderia oferecer-se a mim senao como
linguag*em. Um livro, escreve Merleau-Ponty, e "uma m^quina infernal de
produzir significances". A virtude gloriosa da linguagem esta exatamente
nisto, nesse ppder para esconder-nps suas operacoes como o tecelao
que s6 nos oeixa^er o direito da tapecaria, embpra esta so exista gracas
ao trabalho feito pelo avesso. O triunfo da linguagem e o de nos fazer crer,
ao termino de um livro, que nos comunicamos com o autor de espirito
a espirito, sem palavras.
Preguigosarrffente, comedo a ler um livro. Contribuo com alguns pensamentos, julgo entender o que esta escrito porque conheco a lingua e
as coisas indicadas pelas palavras, assim como sei identificar as experi^n'-, X
cias ali relatadas. Escritor e leitor possuem qjriesmg rejjertdrio y^
vdde^alaynis, coisas, fatos, experifincias, depositados pela cultura instituida e sedimentados no mundo de ambos. De repente, porem, algumas
palavras me "pegam". Insensivelmente, o escritor as desviou de seu sentido comum e costumeirq e elas me arrastam, como num turbilhap, para
urrTsentido novo que alcanco apenas gracas a elas. O escritor me invade,
passo a pensar de den&eKdcif e nao apenas com ele, ele s<Fpensa em mim
ao falar cm mim com palavras cujo sentido ele fez mudar. O livro que eu
parecia dominar soberanamente apossa-se de mim. interpcla-me, forca-me
a passar da lingua falada a linguagem raiante, arrasta-me do instituido ao
instituinte. Somente depois, ao termino da leitura, tenho o sentimento de
uma comunicacao que se teria feito sem palavras, pois, agora, as palavras
do escritor tornaram-se minhas, nao cpnsigo distinguir-me dele, separar
suas palavras e as minhas. Neste momento, uma^gquTsicabjiPi teita,"T~
' livro, doravante, pertence as si^njlicatpesjjisppniveis da cultura. Se eu
tambem for escritora, uma tradigao foi instituida e eu a recolherei para,
ao retoma-la, reabrir a linguagem numa nova instituicao. *-A obra literaria, como a obra de pensamento, pane de uma cumplicidade ehtre escritor e leitor, do eco das palavras do primeiro no segundo,
do "enfrentamento entre os corpos gloriosos e impalpaveis de minha palavra e a do autor". Como e por que isto e possfvel? Como e por que a
palavra instituinte a obra desloca, deforma e descentra a palavra instituida e carrega o leitor para o recinto do livro? Como e possfvel a cumplicidade inicial entre autor e leitor, o enfrentamento inicial, a fascinagao
e, finalmente, a mdistincao entre ambos que s6 sera desfeita quando a diferenca entre ler e escrever for reposta por um leitor que se torne escritor? Por que a assimetria inicial e final entre leitor e escritor aparece sob
a forma (ilusoria) da soberania no inicio, a do leitor sobre o autor; no
fim, a do escritor sobre o leitor? que a linguagem e retomada sublimada
da percepgao, reconquistando-a numa ordem diferente-dela. Porque a linguagem recolhe e transforma um mundo maisjmjgo, onde vivem leitor
e escritor, entre ambos se instala a cumplicidade, a assimetria experimentada como rivalidgde de soberanias, a fascinacao e a diferenga que permitira a um leitor tornar-se escritor. Como a pintura, a literatura e retomada
de"^JgjdlilftiPai^^^
ejeaber- \a de u
tateia entre finhas e cores para fazer surglr no visivel um novo visivel, assim tambem o escritor tateia entre sons e sinais para fazer surgir na linguagem uma nova linguagem. Essas operac.6es instituem o mundo cultural
como mundo hist6rico no qual o momento instituinte se enraiza no instituido, abrindo uma nova instituicao que se tornara, a seguir, instituida e
uma tradicap djsrjojiiydLpara todos.
CjPintolfe 0 escritbr tateiam em torno de uma intenc.ao de significar que
nao se guia por um modelo pr6vio: o pintor escolhe um visivel arrancando-o de um fundo invisiyel; o escritor escolhe um dizivel arrancando-o de
um fundo silencipso. Realizam a operacao da(prigemi O primeiro efetua *
a acao livre que 'Beseem*? e reagrupa as coisaspcTsegundo, a acao livre
que descentra e reagrupa as palavras. Por isso o primeiro nos ensinap que
e ver e o segundo, o que 6 dizer. Ao faze-lo, ambos ensinam ao filosofo
tfjue^o verdadeiro: "e essencial ao verdadeiro sempre apresentar-se,
- falta pclos que viraq dcpois deles c que rctornanlo o t'tritn atraves do naofftfjgt*rtdjgrsf)licita nossa imagcm ^
primeiro, num
feitp,_do por-fazcr solicitado pela propria obra. O advento e aquilo que,
do mundo mmcLa^Sais sentido".t<
do interior da obra. clama por uma postcridade, pede para ser acolhido.
Cada obra de arte visual ou literaria. do movimento ou do som
exige uma retomada porque o que foi deixado como heranca torna-se doa retoma uma tradicao: a da percepcao, as obras dos outros, as obras ancao, o dom para ir alem cielu. Ha advento quando ha obra e ha obra quanteriores do mesmo artista, numa especie de "etcrnidade provisoria"; mas,
do o que foi feito, dito ou pensado da a fazer, da a dizer e da a pensar.
simultaneamente, ins^ga-umi tradicao: abre o tempo e_ajusiorla. funda
Q_3dventjQ_,e "promessa de acontecimentos".
j novamente seu camgo H<- trphalh^ e, incidindo sobre as questoes que o
A hjstQria dp adyentp, debruca-se sobre o artista e o pensador no traf>resente Ihe colocaTresgata o passado ao criar o porvir. Exprimir e em-'
balho quando, num so gesto, agarram a tradicao e instituem uma outra
pregar os meios disponfveis oferecidos pelo instituido o mundo da percepcao e da cultura para deforma-los, instituindo uma nova coerencia
v que sera agarrada pelos posteros. Nc(j^^al^, artistas e pensadores ree um novp^equilibrio que, a seguir, serao retomados numa nova expres^c^rjcjliarnjgdas.as_Qbras as suas e as~3os outros porque cada uma
delas exprime uma existencia inteira e nao uma colecao de objetos finitos
sao qne os recolheu como falta e excesso do que deseja exprimir. Sob ese gestos vaos.
do como
acontecimento,
ta perspectiva, a distincao entre sincronia e diacronia ganha outro senti- \. Ja nao estamos diante da oposicao
entreAohistoria
presente
totalidade ao contrario, possui duas maneiras de perder as obras: ou quebrando a temporalidade imanente que
simultanea e o (tempo corner mercLescoamemo, porem mergulhados nuas sustenta, submetendo-as ao tratamento analitico para, depois, tentar
Iporque nela o presente, como falta e
i*unj-lajyjela Si'ntesejntelectual (como se a, unidade da cultura viesse da
excesso, pede um porvir,-exigindo o future nao como telos, mas como
soma sintetica de obras despedacadas pelo entendimento); ou dando a cada
restituicao instituinte do passado. A diacronia nao e diferenca dos temuma delas um lugaf hum sistema geral do desenvolvimento do Ss^ijijto
pos, mas diferenca temporal entre o que jamais podera ser repetido e, no
que permite a lembranca delas sob a condicao expressa de roubar-lhes a
alma, isto e, o essencial. O esquecjmemo: lemos numa nota de trabalho
entanto, evoca um porvir ao ecoar no presente, e o que ainda nao foi reade O visivel e o invisivel, e djesdiferenciacao, perda de relevo e de contorlizado, mas invoca o passado dando-lhe um future.
,
Eis por que a historia das obras de arte e de pensamento nao e uma
no. ^ memoria do Espfritg_jjg^ge^sque^imeritn_rle'fcriB^s qu^-sf rnramv
; hjst^ria^mpirica de acontecimentos, nem uma historia racionatespiritual
sem deixar cicatrizes.
! de desenvolvimento ou progresso linear: e uma historia d4~advento$) Por(r)
"u esquecimento i pura repeticao, pompa e cerimonia... funebres. A
esse motive, escreve Merleau-Ponty, nem sempre o museu e a biblioteca
forma nobre da memoria, porem, e a retomada das obras pelos artistas
e pensadores, que as retomam para nao repeti-las, mas para criar. A unidasao benfazejos. Por um lado, criam a impressao de que as obras estao acade temporal das artes, da literatura, da filosofia e a percepcao, obliqua e
badas, existindo apenas para serem contempladas, e que a unidade hist6indireta, que cada artista, escritor ou filosofo possui de seu trabalho corica das artes e a do pensamento se fazem por acumula^ao e reuniao de
obras; por outro lado, substituem a historia como advento pela hipocrisia
mo momento de uma tarefa unica e, por isso mesmo, infinita. Quando
da historia pomposa, oficial e celebrativa, que e esquecimento e perda da
foi feito o primeiro desenho na parede da caverna, foi prometido um mun' forma nobre da memoria. Seria precise ir ao museu e a biblioteca como
do a pintar que os pintores nao fizeram senao retomar e afenj. Quando
ali vao os artistas, os escritores e os pensadores: na alegria e na dor de
foi proferido o primeiro canto e o primeiro poema, foi prometido um mundo a cantar e a dizer que musicos e escritores nao fizeram senao retomar
uma tarefa interminavel em que cada comeco e promessa de recomeco.
e abrir. Quando foi feito o primeiro gesto cerimonial, foi prometido um
Qual a diferenca entre acontecimento e advento, esquecimento e memundo
a dancar
a esculpir que
dangarinos
m6ria? Se o temrJb for tornado como sugessao .empirica e escoamento de \j ou se for tornado como forma
a priori
da esubjetividade
trans(f-;! e escultores nao fizeram senao retomar e abrir. Quando o primeiro pensamento foi expresso, foi procendentai que organiza a sucessao num sistema de.retenc.pes e proiensoes, /
metido um mundo a pensar que cientistas e fildsofos nao fizeram senao
, nao Tiavera senao a s6tietde acpntecirn,entQs. O acontecimento fecha-se
retomar e abrir.
; em sua diferenca empirica ou rite diferenca dos tempos, esgota-se ao acofiAJiistdria como esquecirnento, historicidade da morte, toma a obra
' \tecer. 6 Advento, porem, e o(]exces^)da obra sobre as intencoes signifiacabada como" prodfgicTa ser confemplado e a hist6ria vista pelo mero
espectador. A historia como forma nobre da memoria, historicidade da
cadoras'do arffsta; e aquilo que sem o artista ou sem o pensador n3o povida, e a que capta as obras como excesso do que se queria f'azer, dizer
deria existir, mas tambem o que eles deixam como ainda nao realizado, f
algo excessivo contido no interior jje_suas obras e experimentado comoj
(Tpensar, excesso que abre aos outros a possibilidade da retomada e da
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cria^ao como carencia c yazip no interior do excesso e a historia efctuada pelo trabalho dos artistas, escritores e pensadores. Inquietacao instituinte sempre aberta.
Donde, escreve Merleau-Ponty, o parentesco profundo entre arte, filosofia e politica:
O que faz de uma obra de arte algo insubstituivel e mais do que um instrumento de prazer e que ela e um 6tgao doje^r^itp, cujo analogo se encontra
em toda pbra filos6fica e politica^ se fofem produtivas, se contiverem nao
ideias, mas matriz& de /tMas.iemblemas cujo sentido jamais acabaremos de
desenvolver, Justamente porque elas se instalam em n6s e nos instalam num
mundo cuja cnave nao possuimos (...) O que julga um homem artista, fJ16sofo, politico nao e a imencao nem o fato, mas que tenha conseguido ou
nao fazer passar os valores nos fatos. Quando isto acontece, o sentido da acao
nao se esgota na situacao que foi sua ocasiao, nem em algum vago juizo de
valor, mas ela permanecera exemplar e sobrevivera em outras situacoes, sob
uma outra aparencia. Abre umicaflity?, as vezes, institui um rnundo, e, em
todo caso, desenha um porvir.
A historia das artes, da literatura, da filosofia e da acao politica e maturacuo de um futuro e nao sacrificio do presente por um futuro desconhecido. A regra, e unica regra, de agao para o artista, o escritor, o filosbfo e o politico nao e que sua ac.ao seja eficaz, mas que sefefecunda, matriz_
e matriciaj.
:^
Acao fecunda,(qejscncjade nossa carne e da carne do mundo, gravidez e Raito interminaveis, promessa de acontecimentos, instituigao dead7
ventos:Todos esses termos exprimem a mesma significacao, o excesso do
sentido sobre o sentido ji realizado, fazendo com que arte, literatura, filosofia e politica sejam sempre elucidacao de uma percepgao historica aberta sorjre o enigma de uma plenitude excessiva e carente.
O que a oferajJejute^instituinte nos ensina, afinal?
Toda acao e todo conhecimento que nao quiserem ser uma elucidacao/elaboracao abertas e interminaveis, que quiserem estabelecer valores sem corpo em nossa historia individual e coletiva, ou, o que da1 no mesmo, que queiram escolher os meios por um caJculo e por um procedimento tecnico, caem
aquem dos problemas que pretendiam resolver. A vida pessoal, a expressao
arti'stica, a aclo polftica, o conhecimento filos6fico e a hist6ria avancam obligjjamente, nunca v3o diretamente aos fins e aos conceitos. Aquilo que^uscamosm'liito deliberadamente, nao conscguimos obter, mas as ideias e os valores nao faltarao a quem souber, em sua vida meditante, liberar-lhes afonte I
espontanea.
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SOBRE OS AUTORES
EVGEN BAVCAR Nasceu em Lobravec (ex-Iugoslivia) em 1946. Ficou cego entre os dez e os
doze anos. Doutor em filosofia esttica. Pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique desde 1976. Colaborador de L'/mprononfable, Reveu d'esthfrique,
France Culture. Publicou os seguintes artigos, entre outros, "Mots pour Jabes"; "L'esthetique ca^me anthropologie"; "L'Art en tarn qu'acte d'amoun".
WILLI BOLLE Professor de literatura na USP. Publicou: Fisiognomia da metr6pole moderna
Representafao da bistdria em Walter Benjamin, Edusp, 1994.
GERD BORNHEIM Professor de fllosofla na UFRJ. Publicou: Dialitica: teoria e praxis, Globo;
O idiota e o espirito objetivo, Globo; Sartre, Perspectiva; Brecbt, a est&ica do teatro,
Graal, 1992, alem de ensaios em O olbar, O desejo, ttca. Rede tmagindria Televisdo e democracia, Tempo e histdria, Companhia das Letras,
MARILENA CHAUi Professora de hist6ria da filosofia e de filosofia politica na USP. Foi secrctSria
de Cultura do Municfpio de Sao Paulo na gestao da prefeita Luiza Erundlna de Souza
(1989-92). Publicou, entre outros, Cultura e democracia: o discurso competente e otrasfalas, Moderna (1? a 3? eds.), 1980, eCortez(4? a7?eds.), 1989; Oqueeideologia, Brasiliense, 1980; Da realidude sem misterios ao misterio do mundo (Espinosa.
Voltaire e Merleau-Ponty), Brasiliense, 1981; Introducao a bistoria da filosofia, vol.
i, Dos Pre-socrdticos a Aristdteles, Brasiliense, 1994; Convite a filosofia, Atica, 1994,
alem de ensaios em Os sentidos da paixao, O olbar, O desejo, tica, Companhia das
Letras. Atualmente prepara o lancamento de Nervura do real: Espinosa e a idiia de
liberdade, Companhia das Letras.
JORGE COLI Professor de hist6ria da arte no Departamento de Histdria da Universidade Estadual de Campinas. Mestre pela Universidade de Provence e doutor pela USP. Publicou:
O que 6 arte, Brasiliense, 1981, e Van Gogh, a noite estrelada, Brasiliense, 1985.
PAULO SERGIO DUARTE Professor, ciftico de artc, ex-diretor do Instituto de Anes Plisticas da
Funarte. Publicou artigos sobre arte moderna e contemporanea.
*
RODRIGO A. P. DUARTE Professor adjunto do Departamento de Filosofia da UFMG. Publicou: Marx
e a natureza em "O capital", Loyola, 1986; Mimesis e ractonaHOad*. A concepcOo
de dominio da natureza em Tbeodor W. Adorno, Loyola, 1993; Anaisdo Coloquio
National Morte da Arte Hoje (como organlzador), LabDratorio de Estetica, 1993ALAIN GROSRICHARD Diretor do Departamento de Literatura Francesa na Universidade Genebra. Presidentc da Sociedade Jean-Jacques Rousseau e rnembro da Escola da Causa Freudiana. Publicou no Brasil A estrutura do barem, Brasiliense.
LEON KOSSOVITCH Professor de esietica e dc histdria da ane na USP. Publicou diversos anigos
e o livro Signos e poderes em Nietzsche, Atica, 1980.