VER OU LER

Jacques Bertin
UM NOVO OLHAR SOBRE A CARTOGRAFIA
O primeiro objetivo da cartografia, objetivo milenar, foi de nos
dar a imagem dos rios, das montanhas, das cidades e das estradas,
isto , a imagem das referncias naturais, teis ao homem. Este
trabalho acaba de ser terminado. As "Terras Incgnitas"
desapareceram dos bons atlas na primeira metade do sculo XX e ns
vemos agora a cartografia moderna desenvolver-se em duas direes
principais.
Primeiramente ela aprimora a imagem dessas referncias
naturais medida que crescem as necessidades. a corrida
preciso "cobertura topogrfica" do mundo em escalas cada vez
mais finas: 1:5.000.000, depois 1:500.000, 1:50.000, 1:5.000... Em
que nvel deve-se parar? A resposta evidentemente fornecida pelo
equilbrio entre o servio prestado e o preo de venda. A fotografia
area e espacial torna-se ento o instrumento milagre desse
equilbrio.
Mas a cartografia se desenvolve tambm em uma outra
direo. Ela acrescenta s referncias naturais a multido dos
fenmenos que o homem deve levar em conta quando da deciso,
sejam esses fenmenos visveis e fotografveis, como a floresta, ou
no, como por exemplo as legislaes florestais.
A distribuio geogrfica com efeito uma das duas bases
constantes e universais de comparao que o homem dispe, a outra
sendo a cronologia. Ela permite registrar qualquer carter e torn-lo,
assim, comparvel a qualquer outro e sabe-se que o problema da
deciso repousa agora sobre a comparao de um nmero cada vez
maior de caracteres.
Mas esse novo desenvolvimento da cartografia coloca
problemas muito diferentes do precedente. Com efeito, aumentar a
preciso da imagem de uma estrada, de um rio ou de uma montanha,
um problema tcnico de medida que no tem limite no nvel da
imagem. suficiente ampliar a folha de papel, isto aumentar o
nmero dos "cortes".
Ao contrrio, aumentar o nmero de caracteres representados

sobre uma folha de papel um problema psicolgico. H um limite: o

das propriedades da percepo visual. Cada carter uma imagem.
Ora, pode-se superpor vrias imagens,por exemplo vrias fotografias
sobre um mesmo filme e entretanto separar cada imagem? Esta
impossibilidade uma barreira intransponvel. Quais so suas
conseqncias? Como reduzi-las? Como contornar esta barreira? o
problema da cartografia politemtica. um dos objetivos da
semiologia grfica.
Como toda cincia, a semiologia grfica desenvolveu-se a
partir das dificuldades encontradas e de constantes fracassos.
Acredita-se habitualmente que o nico erro cartogrfico
possvel enganar-se de posio geogrfica. Este erro quase
inexistente, exceto infelizmente em alguns meios que confundem
ainda decorao e cartografia, como a televiso que, sem dvida em
nome de esttica, localiza a Sria em Teer e o Lbano na
Mesopotmia! O erro mais corrente, e tambm o mais grave uma vez
que leva a decises erradas, consiste em enganar-se de carter
representar a ordem das quantidades por uma no ordem ou por uma
desordem e dar assim uma falsa imagem, isto uma falsa informao.
Mas no se fala da imagem, mostra-se a imagem. Eis pois
alguns erros cartogrficos cuja gravidade progressiva no escapar
ao leitor.
Transcrio de uma ordem por uma no ordem visual:
Informao: Ordem dos preos do terreno na Frana do leste.
Transcrio (1): A ordem dos preos transcrita pela noordem de signos de forma somente diferentes entre si.
Resultado: A carta (1) responde pergunta: qual o preo do
terreno em Vittel, em Epinal? Mas ela no responde pergunta: onde
esto os terrenos caros?
Correo (2): A ordem dos preos transcrita pela ordem
visual das superfcies de preto.
Resultado: As regies caras e por posio as regies menos
caras assim como as zonas intermedirias aparecem
instantaneamente. Alm disso, a carta (2) responde a pergunta: qual
o preo em Vittel, em Epinal? Esse primeiro exemplo permite fazer
duas observaes essenciais:

1. No se olha uma carta como se olha uma obra de arte. Faz-se

perguntas uma carta e qualquer leitor tem o direito de fazer dois tipos de
perguntas diante de uma carta:
- Em tal lugar (em Vittel), o que h? (1)
- Tal carter (o preo do terreno) qual sua geografia? (2)
Para concretizar esses dois tipos suficiente observar que uma
carta transcrio de uma quadro de dados (3) que pe em relao um
conjunto de pontos geogrficos, situados em X no quadro, com um
conjunto de caracteres, situados em Y no quadro. Presume-se pois que
toda carta responda:
- s perguntas em X: em tal lugar, o que h? (1)
-s perguntas em Y: tal carter, onde est? (2)
A redao de uma carta custa freqentemente ainda muito caro e
esse custo s plenamente justificado se a carta responde visualmente a
todas as questes que a informao transcrita permite colocar.
Todo leitor deve, pois, aprender a fazer s carta dois tipos de
pergunta. o instrumento de base da redao e da crtica cartogrfica. O
leitor ficar sem dvida surpreso de ver como difcil fazer esses
perguntar e como poucas cartas a elas respondem. Mas, o que uma
resposta visual?
2. A percepo visual sempre instantnea. Se ela no fosse, no
se dirigiria jamais um automvel. O que importa pois, a significao da
imagem instantnea.
Na carta (1), a imagem instantnea a dos pontos de enquete.
No aquela dos preos. Para encontrar uma significao preo nessa
carta preciso olhar uma forma elementar: forma de um signo. Para des-

cobrir todos os preos, seria pois necessrio recomear a operao de

percepo para cada signo, em outras palavras seria necessrio ler
sucessivamente... e memorizar 117 dados, o que impossvel.
A carta que responde instantaneamente aos dois tipos de
perguntas (2) uma carta para ver, enquanto aquela que s responde
ao primeiro tipo (1) uma carta para ler. Quando cartas para ler
acompanham um texto, o leitor percebe inconscientemente a perda de
tempo que representaria a leitura completa da carta. Ele percebe que
a relao entre o tempo transcorrido e a informao recebida beneficia
o texto e, em conseqncia, ignora a carta ou ento s lhe pede uma
parcela daquilo que poderia receber.
Uma carta com um s carter responde quase sempre ao
primeiro tipo de pergunta: em tal lugar... e freqentemente ainda o
leitor obrigado a se contentar com essa resposta. Mas a carta (2)
mostra que o leitor poderia tambm receber uma resposta visual para
o segundo tipo de pergunta. O leitor atento de uma carta tem, pois, o
direito de exigir desta uma resposta visual para a pergunta: tal carter,
qual sua geografia?
Ele descobre ento os trs erros possveis da cartografia:
- A pergunta: tal carter... no tem resposta visual.
- A resposta visual falsa.
- A pergunta: tal carter... praticamente impossvel de ser
feita.

O exemplo que se segue vai mostrar melhor ainda as

conseqncias do primeiro erro.
A questo: tal carter... no tem resposta visual:
(transcrio de uma ordem por uma no-ordem em uma
comparao de cartas).
Informao: a ordem das porcentagens de votos recolhidos na
Frana pelas trs grandes centrais sindicais.
Transcrio (4): transcrio da ordem pela no-ordem visual
de tramas somente diferentes entre elas.
Resultado: cartas informes que impossvel comparar e que
o leitor sequer olha.
Correo (5): transcrio da ordem da informao pela ordem
visual dos valores do branco ao preto.
Resultado: percepo instantnea das trs formas que o olho
compara facilmente.
V-se, assim, que as cartas para ler (4) impedem a
comparao com outras cartas. Elas impedem as multicomparaes
que fazem da cartografia moderna um dos instrumentos de base do
tratamento da informao. Para que as comparaes sejam
possveis, a carta deve responder ao segundo tipo de pergunta: tal
carter, onde est? A carta deve ser uma carta para ver (5). Mas
preciso ainda que a carta para ver no seja falsa.

A resposta visual falsa:

(transcrio de uma ordem por uma desordem)
Informao: ordem das porcentagens de bitos anuais em
Paris.
Transcrio: a ordem das porcentagens transcrita por uma
desordem visual de valores.
Resultado: a imagem (6). uma carta para ver que, em
conseqncia, memorizamos instantaneamente. E memorizamos
que o mximo de bitos est no centro de Paris e tambm a Oeste!
Constatemos que impossvel ver outra coisa. Ora, memorizamos
uma falsa distribuio. E ela que comparamos com outras
informaes, com outros caracteres. As concluses e decises
sero, pois, falsas.
V-se, pois como grande a responsabilidade do cartgrafo e
como falso crer que a carta no passa de uma conveno qualquer.
Esses exemplos mostram, ao contrrio, que a cartografia a nica

linguagem que no convencional. Mostram que o problema

transcrever a ordem da informao e que esse problema s tem uma
soluo.
- a ordem dos dados transcreve-se pela ordem visual,
- e as duas ordens devem corresponder.
Ora, s h duas ordens visuais: aquela do plano, que em
cartografia a imposta pela topografia, e a ordem do branco ao preto,
que pode alis passar por qualquer cor intermediria, desde que
esses valores sejam ordenados.
Correo: a ordem da informao transcrita pela ordem
correspondente dos valores do branco ao negro.
Resultado (7): a verdadeira distribuio de bitos em Paris.
Pode-se constatar que ela quase inversa em relao distribuio
memorizada em (6)! O erro do cartgrafo, em (6), evidente. Deixou
de fazer corresponder a ordem visual com a ordem da informao.

O leitor estar sem dvida surpreso com a necessidade de

sublinhar tais erros e evidncias. Mas ficar mais surpreso ainda quando
descobrir que esses erros so um fato corrente nos jornais, atlas,
publicaes, instncias de deciso tais como ministrios, servios
estatsticos, servios de informao.
Frequentemente preciso procurar a origem desses erros na
confuso entre cor e valor.
A carta (8) d um exemplo caracterstico disso. Ela produzida
pelos servios de informao da presidncia dos USA. Esses servios
dispem dos meios tcnicos os mais aperfeioados e podem fazer
aparecer quase instantaneamente sobre uma tela de televiso qualquer
carta, a um simples pedido. As cores so muito bonitas... mas as imagens
so to falsas quanto a carta (6)!
A percepo instantnea da carta (8) inscreve na nossa memria
que a gua mais dura est no norte. Mas uma leitura atenta nos mostra,
ao contrrio, que a gua mais dura est no sul! A imagem instantnea
no se constri com as cores mas sobre a ordem dos valores da cor,
isto , de sua distncia em relao ao branco e ao preto. Ora, aqui, como
na carta (6) a ordem dos valores no corresponde ordem dos dados.
A imagem que faz corresponder as duas ordens (9) restabelece a
verdade. Mas quem s v a carta (8) memoriza uma falsa geografia. E
quando se sublinha esses erros, no impossvel de se ouvir como
resposta: isso no tem importncia j que, com o computador, cada um
livre para colocar a cor que quiser
Esta resposta sublinha a extenso da confuso entre ver e ler.
Sublinha quanto seus autores ignoram que impossvel corrigir
mentalmente uma falsa imagem.
No! Esta liberdade no existe! E por isso que a cartografia
uma linguagem universal. uma linguagem acabada e rigorosa, que
s dispe de uma nica ordem visual. Consequentemente tomar uma
conveno outra que aquela imposta pela psicologia escrever que
2=5, justificar as cartas (4) e (6)... ou ser cego!

OS DOIS PONTOS DA CARTA POLITEMTICA

As cartas que acabamos de ver so cartas com um s carter.
Quando a carta superpe vrios caracteres, o leitor esbarra com dois
problemas estreitamente ligados: a legibilidade da legenda, a
resposta pergunta tal carter, qual sua geografia?
As perguntas so praticamente impossveis de serem
colocadas:
Para que o leitor possa colocar as questes s quais espera-se
que a carta responda, ele deve pelo menos saber quais so os
caracteres representados. Quanto tempo necessrio, na carta (10),
para saber do que se trata?
Com uma lupa descubra a legenda. Exagero? Infelizmente no!
Que o leitor olhe agora as cartas as mais diversas.
Ficar surpreso de descobrir que poucas so as legendas
facilmente acessveis.
Ficar surpreso de ver, em diversos casos, legendas
separadas da carta. E o que dizer ento das cartas, publicadas por
instncias cientficas, e que sequer tm legenda!
A legenda o nico meio de entrar na carta, isto , de lhe
colocar as questes s quais espera-se que ela responda. o
verdadeiro ttulo da carta. A legenda deve ser imediata e perfeitamente
legvel e, consequentemente, convm:
- reservar-lhe todo o espao necessrio,
- disp-la o mais prximo do leitor,
- evitar todo retorno intil (11),
- escolher os temas os mais imediatamente significativos,
- a naturalmente escrev-la em caracteres grandes.
Mas isso no parece ser ainda evidente.
A pergunta: tal carter... no tem resposta visual:
(A carta superpe vrios caracteres)
sempre possvel superpor vrios caracteres sobre uma carta.
Alguns superpem 20, outros 30 caracteres diferentes. Mas isso
uma habilidade do desenhista?
A carta (11) superpe 5 perodos, os perodos de fundao das

escolas normais, para duas categorias: rapazes e moas. H, pois, 10

caracteres superpostos sobre essa carta, como indica a legenda,
nada fcil de ler, alis. Retomemos nossos dois tipos de perguntas:
- Em tal departamento, quais so as datas de fundao? A
resposta, sem ser fcil entretanto, possvel.
Faamos agora o segundo tipo de pergunta:
- Em tal data, quais so os departamentos interessados?
A carta (11) no fornece resposta visual. Como a carta dos
preos (1) ou a carta (10) ela s permite reler ponto por ponto todos os
signos representados. uma carta para ler. Alis voc, leitor, o que
retem dessa carta? Falando francamente, praticamente nada.
Ou sim! O sentimento da inutilidade da Cartografia!
A explicao evidente. A superposio de vrios caracteres
sobre uma carta destri a imagem de cada um dos caracteres, da
mesma maneira que a superposio de vrias fotografias sobre um
mesmo filme destri cada imagem particular. O que impossvel de
ver em (11) so as imagens (13).
Atingimos aqui os limites da percepo visual. O olho s v uma
nica forma de cada vez. Quando vrias formas encontram-se
superpostas o olho s v a forma no seu todo e para separar um dado
carter, preciso selecion-lo ponto por ponto, o que alias pode ser
perfeitamente impossvel, nos clichs fotogrficos por exemplo.
Esto a todo o problema da cartografia politemtica. Como
melhorar a percepo de conjunto de um carter, de cada carter em
uma carta que superpe vrios?
fcil constatar que a confuso aumenta com o nmero de
caracteres e com a complexidade de sua distribuio.
Procura-se, pois, reduzir essa confuso:
-reduzindo o nmero de caracteres superpostos, seja por
simples supresso, seja procedendo a tratamentos prvios,
matemticos e grficos que permitem agrupar vrios caracteres de
distribuies vizinhas e definir tipologias,
- simplificando a distribuio geogrfica, isto ,
esquematizando-a,
- escolhendo um carter que se pe em evidncia e relegando
assim todos os outros leitura ponto por ponto,
- utilizando os trs tipos de implantao que o olho pode sepa-

separar facilmente: pontos, linhas e zonas.

A perda de informao particular em cada uma das solues pode
ser definida com preciso (teoria das questes pertinentes) e a escolha
da informao perdida (escolha das perguntas que no tero respostas)
explica a diversidade aparente da cartografia politemtica.
A nica soluo que no acarreta nenhuma perda de informao
evidente:
- fazer uma carta de superposio para responder pergunta em
tal lugar, o que h? (12) isto , a pergunta em X no quadro de dados (14);
- fazer uma carta por carter para responder pergunta tal
carter, onde est? (13) isto , a pergunta em Y. E descobre-se ento
como a pergunta em Y pode ser til compreenso. No exemplo (13) ela
faz aparecer imediatamente o surpreendente atraso da promoo dos
professores, a curiosa distribuio das criaes, o atraso, ou
inversamente o avano de certas regies, e em alguns casos
excepcionais o avano das moas em relao aos rapazes.
Tudo isso legvel sobre a carta (12), mas como no visvel,
ningum v.

A pergunta: Tal carter... no tem resposta visual:

(segundo exemplo)
Vimos o erro da carta (10). A legenda muito difcil de ler. Aqui (15)
esse erro corrigido e fcil ver que se trata da distribuio, por
departamento, das populaes agrcolas, industriais e tercirias.
Como toda carta de superposio ela responde primeiro
pergunta: em tal lugar, o que h? Mas a segunda pergunta: tal carter,
qual sua geografia? S tem resposta na coleo de cartas (16).
A primeira pergunta a que faz o viajante, o automobilista, o
arquiteto ou o militar. Para eles, uma carta para ler, geralmente
suficiente.
A segunda pergunta a que faz todo pesquisador, toda pessoa que
decide, que quer informar-se e que tem o direito de definir sua prpria lista
de comparaes teis, isto , sua prpria lista de caracteres.
Esse necessita de cartas para ver. E estas so oferecidas.
suficiente acrescentar, nas bordas da carta de superposio, a srie de
cartas por carter, que podem ser muito pequenas e em uma s cor.
O leitor conhece agora os dois tipos de perguntas que tem direito
de fazer diante de qualquer carta. Como costuma acontecer o leitor ficar
ainda mais surpreso ao descobrir que a 2 pergunta tal carter, qual sua
geografia? s raramente encontra resposta e que o emprego moderno
da cartografia, que deveria permitir comparar qualquer lista de
caracteres, est ainda esmagada sob o peso dos hbitos milenares da
leitura topogrfica.
Extrado de Cartes Et Figures de La Torre,
Centre Georges Pompidou, Paris, 1980