O País e o Armário
O País e o Armário
O País e o Armário
25/08/2014 03h00
"Todo ano, um milho de mulheres fazem aborto na Frana. Eu sou uma dessas
mulheres. Eu abortei." O manifesto foi assinado por 343 mulheres e publicado no
Nouvel Observateur, em 1971.
O Estado francs tinha duas opes: prender essas mulheres ou reconhecer que elas no
fizeram nada de errado. O Estado no prenderia 343 mulheres. Ou melhor: no essas
mulheres. Dentre as assinaturas, estavam as de Ariane Mnouchkine, Catherine Deneuve,
Jeanne Moreau, Marguerite Duras. A redatora do manifesto era ningum menos que
Simone de Beauvoir. No prenderam ningum.
A esse manifesto, seguiram-se outros: 331 mdicos assumiram-se a favor da causa. Na
Alemanha, mais 374 mulheres assinaram um manifesto em que diziam: Wir haben
abgetrieben. Ns abortamos. Entre as mulheres, Romy Schneider e Senta Berger. Em
1975 o aborto deixa de ser crime na Frana e passa a ser chamado de "interrupo
voluntria de gravidez". A interrupo passa a ser "livre e gratuita" at a dcima semana
de gestao.
Estamos muito longe dessa lei por aqui. Nenhum dos candidatos a presidente parece
interessado em discuti-la. Tampouco a classe artstica est interessada em sair do
armrio nesse assunto.
O Brasil vai na direo oposta. constrangedor ver todos os principais candidatos se
estapeando pelo eleitorado conservador. No se trata de propor mudanas, trata-se de
vender apego tradio. "Voc me conhece, sabe que eu sou o que mais acredita em
Deus, o que mais passou longe de dar a bunda, de cheirar p, olhem s como a minha
filha virgem, olhem s como o meu filho htero." Todos esto desesperados pelo voto
conservador. Estranhamente, ningum est nem a pro voto aborteiro.
Se as eleies, como anuncia o planto da Globo, so a festa da democracia, essa festa,
Dona Globo, est meio cada -ou fui eu que bebi pouco. Na minha opinio, tem pastor
demais e maconha de menos. A maioria dos candidatos no fede nem cheira -a no ser
um deles, que cheira. Um amigo gay outro dia disse que "levantar bandeira cafona e
quem sai do armrio porque quer ateno". Amigo, tudo bem, ningum obrigado a
sair do armrio. Mas voc no precisa trancar a porta por dentro.
Sair do armrio no um ato exibicionista. Levantar bandeira tambm no. O manifesto
das 343 vagabundas, como ficou conhecido, no permitiu s manifestantes que elas
fizessem um aborto. Elas j o tinham feito. Permitiu s suas filhas e netas.
Ateus, maconheiros, vagabundas, pederastas, sapates e travestis do mundo: uni-vos.
Porque o lado de l t bem juntinho.
Bem-vindo ao sculo 19
26/08/2014 02h00
Em sua coluna desta segunda-feira (25), Gregorio Duvivier levantou um tema de grande
relevncia a respeito dos embates eleitorais brasileiros, a saber, o conservadorismo das
pautas ligadas a costumes. A seguir as declaraes ou o silncio covarde da maioria de
nossos polticos, tem-se a impresso de habitarmos o sculo 19. Mesmo comparado a
seus vizinhos, como Uruguai e Argentina, o Brasil parece em vias de se transformar em
um pas exemplar no quesito arcasmos sociais.
Isto no deveria nos impressionar. Um dos espaos fundamentais de atuao do poder
o aparato jurdico que regula os corpos, desejos e sexualidade de seus cidados.
Como nos lembram filsofos como Michel Foucault (1926-1984) e Judith Butler, 58,
trata-se de decidir que tipos de vidas podem ser vividas, como elas devem ser vividas e
quais, ao contrrio, sero excludas como inumanas, "no-naturais", aberrantes.
Por exemplo, quais sero as formas de vida afetiva garantidas pelo direito e quais sero
aquelas que o direito no reconhecer, tratando-as como juridicamente inexistentes.
Quais sero as substncias que posso aplicar a meu corpo, ingerir, tragar e quais sero
as que no posso. Que roupa posso usar, quem decide sobre o que se passa no corpo de
uma mulher.
A possibilidade de viver de outra forma (e mesmo de morrer de outra forma como, por
exemplo, por deciso prpria) vista por alguns como a pior de todas as afrontas, a
mais perigosa das sedies polticas. Por isso, uma questo poltica central diz respeito
visibilidade desta plasticidade prpria vida social.
Uma das formas de coibir tal visibilidade consiste em criar um regime peculiar de
permissividade no interior do qual a distino entre o permitido e o proibido funcionar
de maneira flexvel.
Por exemplo, um pas autoritrio no necessariamente aquele que impede seus
cidados de fazerem certas prticas. Todos ns sabemos que o aborto legal no Brasil.
Todo mundo conhece o endereo de uma clnica de aborto, inclusive a polcia, e se a
filha adolescente do deputado conservador engravidar sem querer ele ser o primeiro a
aparecer por l. O que proibido no Brasil reconhecer tal prtica. Proibido dar
visibilidade, quebrar o discurso consensual, ao menos na classe poltica. Assim, o
autoritarismo encontra-se no fato de aceitarmos a lgica do: "pouco importa o que voc
realmente faz, desde que voc continue a falar e dar a impresso de agir como quem
defende nossos 'valores'".
Desta forma, o Brasil conseguiu protagonizar o espetculo deprimente de uma poltica
que no cria nem produz mudanas, mas repete compulsivamente os arcasmos de sua
sociedade.
A completa inverso de valores de Gregrio Duvivier
um espanto. Descubro, com Gregrio Duvivier, que s temos candidatos
conservadores na disputa presidencial, e que o problema do Brasil no termos a
legalizao do aborto e das drogas. Emir Sader foi outro que resolveu acusar Marina
Silva de nova direita. Em que planeta esses cones do esquerdismo boal vivem?
Em sua coluna de hoje na Folha, o criador do Porta dos Fundos acha que o Brasil um
pas muito conservador porque no libera geral. Para ele, o mundo seria muito melhor
se qualquer mulher pudesse simplesmente entrar numa clnica legal e retirar o feto
intruso, ou parasita, ou se pudesse entrar em uma loja e pedir 200 gramas de coca
no o refrigerante, mas o p branco.
Greg ignora ainda as bandeiras progressistas que dominam a cena cultural brasileira, e
o prprio PT, no poder h 12 anos, que endossou o relativismo moral como nunca antes
na histria deste pas. Mas o escritor e humorista no est satisfeito. Enxerga
reacionrios em todo canto, at na Marina e em Dilma, pois, afinal, no pregam o vale
tudo imediato. Diz ele:
O Brasil vai na direo oposta. constrangedor ver todos os principais candidatos se
estapeando pelo eleitorado conservador. No se trata de propor mudanas, trata-se de
vender apego tradio. Voc me conhece, sabe que eu sou o que mais acredita em
Deus, o que mais passou longe de dar a bunda, de cheirar p, olhem s como a minha
filha virgem, olhem s como o meu filho htero. Todos esto desesperados pelo voto
conservador. Estranhamente, ningum est nem a pro voto aborteiro.
Se as eleies, como anuncia o planto da Globo, so a festa da democracia, essa festa,
Dona Globo, est meio cada -ou fui eu que bebi pouco. Na minha opinio, tem pastor
demais e maconha de menos. A maioria dos candidatos no fede nem cheira -a no ser
um deles, que cheira. Um amigo gay outro dia disse que levantar bandeira cafona e
quem sai do armrio porque quer ateno. Amigo, tudo bem, ningum obrigado a
sair do armrio. Mas voc no precisa trancar a porta por dentro.
Sair do armrio no um ato exibicionista. Levantar bandeira tambm no. O manifesto
das 343 vagabundas, como ficou conhecido, no permitiu s manifestantes que elas
fizessem um aborto. Elas j o tinham feito. Permitiu s suas filhas e netas.
Ateus, maconheiros, vagabundas, pederastas, sapates e travestis do mundo: uni-vos.
Porque o lado de l t bem juntinho.
Quando leio algo to idiota, confesso ter certa vergonha de ser ateu e liberal, que
defende as minorias no os movimentos coletivistas que falam em nome das minorias.
Morro de medo de ser confundido com um sujeito como o Greg! Prefiro at mesmo
ficar do lado dos conservadores reacionrios de verdade. Bolsonaro ou Jean Wyllys?
No difcil escolher.
Para Gregrio Duvivier, critrio de valor moral ser gay, ateu, viciado em drogas ou
prostituta. Esses seriam seres moralmente superiores aos caretas defensores de uma
famlia tradicional e do bom comportamento. Se voc no for indiferente entre ter
uma filha prostituta ou mdica, ento voc um reacionrio. E est bem representado
pelos candidatos atuais!
Como pode algum inverter tanto a realidade e subverter tanto os valores morais?
Parece at Richard Dawkins, que fez um papelo recentemente ao dizer em seu Twitter
que era imoral uma me no interromper a gravidez se soubesse que seu filho ter
sndrome de Down. Se os atestas militantes e relativistas morais continuarem assim,
vou ter que correr para dentro de algum armrio conservador, pois essas bandeiras
passam mais longe do liberalismo clssico do que Pluto da Terra!
Rodrigo Constantino