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Dr.

Maurice Bucaille
A Bblia, o Alcoro
e a Cincia
AS ESCRITURAS SAGRADAS
EXAMINADAS LUZ DOS
CONHECIMENTOS MODERNOS
Maurice Bucaille
A Bblia, o Alcoro
e a Cincia
AS ESCRITURAS SAGRADAS EXAMINADAS
LUZ DOS CONHECIMENTOS MODERNOS
apoio cultural:
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Rua Henrique Alves dos Santos, 161
Jardim das Amricas
Caixa Postal 242 - CEP: 09725-730
So Bernardo do Campo - SP - Brasil
Fone: (055) 11 - 4122-2400 / Fax: (055) 11 - 4332-2090
e-mail: [email protected]
Portal: www.islambr.com.br
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Est uma publicao do departamento religioso do Centro de Divulgao do Islam
Para Amrica Latina, que tem como objetivo educar, esclarecer e divulgar a crena, a
prtica e os ensinamentos da religio Islmica.
EDITORA MAKKAH
2012
IMPRESSO NO BRASIL
Editor Responsvel
Ziad Ahmad Saif
Produo Editorial
Editora Makkah
Projeto Grfco e Capa
Editora Makkah
Distribuio Gratuita
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
PREFCIO
O dilogo entre os mundos cristo e islmico, que tiveram lugar du-
rante os ltimos trinta anos do sculo vinte, representa um ponto convergente
nas relaes entre as religies monotestas. Isso aconteceu na forma de encon-
tros, tais como os de Crdoba e de outros lugares, dos quais muito se tem
falado. No devemos nos esquecer da recepo dos grandes ulems da Arbia
Saudita feita pelo Papa Paulo VI, no Vaticano, em 1974, ou do acordo entre os
grupos cristos e muulmanos, que tomaram a iniciativa no sentido de melhor
eles se conhecerem e se entenderem. Sculos de ignorncia e de disseminadas
mas falsas ideias concernentes ao Islam tm deveras prevalecido no Ocidente,
envenenando assim a atmosfera. Chegou a hora da mudana. O dilogo re-
centemente aberto tornou isso possvel, dando soluo a muitos problemas;
aqueles levantados pelas Sagradas Escrituras sobressaem-se predominentemente,
porque todos os outros so diretamente afetados por elas. Portanto, de vital
importncia conhecer-se e se entender a ideia que tanto os cristos como os
muulmanos tm das escrituras, uma vez que constituem a fundao das suas
respectivas crenas. No h como ignorar o ponto de vista dos exegetas.
O que se segue expressa de modo sucinto o ponto de vista cristo: os
livros da Bblia so obras da inspirao divina. No captulo intitulado "A Revela-
o da Verdade, A Bblia e os Evangelhos", dos livros de Jean Guitton, "Meu Pe-
queno Catecismo", ns lemos que "Deus, Ele mesmo, no escreveu esses livros,
mas teve-os escritos por meio de alentar nos apstolos e profetas as coisas que
Ele queria que soubssemos. Esse alento denominado 'inspirao'. Os livros
escritos pelos profetas so denominados Livros divinamente inspirados."
Esses autores, todos eles, escreveram seus trabalhos em diferentes per-
odos, e de acordo com as maneiras e os costumes do seu tempo. Por isso que
ns encontramos vrios "gneros literrios" espalhados pela Bblia. Essa noo
tem adquirido aceitao generalizada, de modo que no f camos surpresos ao
lermos seja o Velho Testamento ou os Evangelhos, para encontrarmos os as-
suntos divinamente inspirados, lado a lado com af rmaes derivadas de certas
crenas pags, continuadas das tradies cujas origens so, no mais das vezes,
obscuras. Isso se aplica, por exemplo, a uma das narraes da Criao, contida
no Gnese.
Agora, se examinarmos os ensinamentos dos exegetas muulmanos,
constataremos que eles apresentam o Alcoro duma maneira um tanto dife-
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rente. Cerca de catorze sculos atrs, num retiro meditativo perto de Makkah,
Mohammad recebeu uma primeira mensagem por intermdio do Arcanjo Ga-
briel. Apos um longo perodo de silncio, a primeira mensagem foi seguida por
sucessivas revelaes, estendendo-se por um perodo de mais de vinte anos.
Elas no apenas foram transcritas enquanto o Profeta ainda estava vivo, mas
eram tambm recitadas, de cor, pelos seus primeiros seguidores e, mais tarde,
por muitos crdulos que se juntavam ao redor dele. Aps a sua morte (em 632
a.C.), os vrios elementos foram juntados em livro, mais tarde conhecido como
Alcoro. Este contm a Palavra de Deus com a excluso de qualquer interven-
o humana. Os manuscritos que hoje possumos, vindos do primeiro sculo
do Islam, do autenticidade aos textos de hoje.
Uma feio que estritamente especf ca do Alcoro a existncia
- falando-se da Onipotncia Divina - de uma multido de ref exes quanto
a todas as espcies de fenmenos naturais: desde a astronomia, reproduo
humana, a terra, at aos reinos animal e vegetal -sem mencionarmos o que o
Alcoro tem a dizer quanto questo da criao. A existncia dessas ref exes
no deixam de atrair a ateno para assuntos que, na sua maioria, no so dis-
cutidos na Bblia. No caso de vrios outros tpicos comuns s duas escrituras,
eles inevitavelmente nos levam a uma comparao entre os dois.
Desse estado de ocorrncias, surgem consequncias que hoje podem ser ava-
liadas.
Nos tempos modernos, o progresso cientf co nos habilitou a adqui-
rirmos, def nitivamente estabelecidas e experimentalmente verif cveis, certas
ideias sobre o fenmeno natural, desse modo excluindo as teorias que, por sua
prpria natureza, esto sujeitas a mudanas. Tem sido ento possvel estudarem-
-se alguns aspectos dessas ideias, como so apresentadas na Bblia, e as com-
pararmos com o conhecimento moderno. Os resultados a que chegamos so
deveras conspcuos: no caso de questes como a formao do Universo (a
descrio da Criao), a data do aparecimento do homem na terra, o Dilvio (e
a sua localizao no tempo), patentemente bvio que os escritores da Bblia -
entre eles os evangelistas, Lucas em particular, quando ele fornece a Genealogia
de Jesus - expressaram ideias do seu tempo, as quais so incompatveis com o
conhecimento moderno. Hoje em dia impossvel no admitirmos erros cien-
tf cos na Bblia. luz de tudo o que exegetas bblicos nos tm ensinado no
tocante ao modo como os livros judaico-cristos foram compostos, como
possvel que os mesmos no contenham erros? Devemos, portanto, concordar
com Jean Guitton, quando ele diz: "Os erros Cientf cos, na Bblia, so os erros
da humanidade, porquanto, nos primrdios, o homem era igual a uma criana,
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ainda ignorante quanto cincia." Os conceitos defendidos pelos exegetas
cristos, quanto aos textos bblicos, parecem estar em completa concordncia
com o que as vrias cincias hoje nos dizem da falta de conformidade entre elas
e certos aspectos dos textos bblicos.
Pode a mesma coisa ser dita acerca das af rmaes dos exegetas muul-
manos em relao "Revelao Alcornica" (como oposta "Inspirao Bblica')?
Ser possvel que possamos encontrar no Alcoro testemunhos que ref itam
ideias prevalecentes h um tempo e que, mais tarde, venham a contradizer
o conhecimento contemporneo? Como j foi relatado, no Alcoro h uma
multido de ref exes quanto ao fenmeno natural. Inmeros erros cientf cos
concernentes a elas teriam sido possveis a priori - por causa da natureza dos
assuntos intrnsecos durante aquele perodo de obscurantismo cientf co -, pois
no nos devemos esquecer de que a revelao alcornica teve lugar mais ou
menos no mesmo tempo em que o Rei Dagobert reinava na Frana (629 -639
d. C.).
Uma vez que a comparao entre os dados cientf cos e os relatos
contidos nas Escrituras foi feita, algumas concluses foram apresentadas pelo
autor da primeira edio francesa, em 1976. Para ele, elas constituram inicial-
mente uma fonte de grande surpresa: o Alcoro def nitivamente no contm
uma simples propositura em variao com o mais f rmemente estabelecido co-
nhecimento moderno, nem tampouco contm qualquer das ideias vigentes na
poca quanto aos assuntos que ele descreve. Ademais, ainda, um grande nmero
de fatos so mencionados no Alcoro, os quais no foram descobertos a no
ser nos tempos modernos. So tantos, de fato, que em 9 de novembro de 1976,
o presente autor foi capaz de ler, perante a Academia Francesa de Medicina,
uma publicao sobre "Os Dados Fisiolgicos e Embrionrios do Alcoro." Os
dados - como muitos outros acerca de diferentes assuntos - constituram um
verdadeiro desaf o explicao humana - em vista do que conhecemos hoje
acerca da histria das vrias cincias, ao longo das pocas. As concluses do
homem moderno a respeito da ausncia de erros cientf cos esto, portanto,
em completa concordncia com as concepes dos "exegetas muulmanos" do
Alcoro como o Livro da Revelao. Trata-se de uma considerao que implica
em que Deus no poderia transmitir uma ideia errnea.
As ref exes que aparecem acima quanto s Sagradas Escrituras e
cincia no so as ideias presentes e pessoais do autor. Nada h de novo na
existncia de erros cientf cos na Bblia. O que talvez seja novidade o fato de
que eles tm sido compreensivamente descritos e explicados de acordo com
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as ideias tiradas das obras dos exegetas bblicos cristos. No que concerne ao
Alcoro, sua escritura e o conhecimento moderno esto em harmonia - no
em desacordo -; e essa concordncia talvez no passa ser explicada em termos
humanos. Isso parece haver sido inteiramente descurado pelos orientalistas.
Admitidamente, contudo, um conhecimento de muitas e diferentes disciplinas,
necessrio para se estudar essa questo em detalhes, coisa que os orientalistas,
com suas educaes literrias, geralmente no possuem. Somente um cientista
versado na literatura rabe poderia estabelecer pontos em comum entre o
Alcoro - que no precisa ser lido em rabe - e a cincia. O autor do presente
estudo tem fundamentado as suas observaes em fatos, e tem apresentado as
dedues lgicas necessrias para deles serem tiradas. Em outras palavras, se ele
no tivesse desenvolvido esta pesquisa, outros, mais cedo ou mais tarde, t-lo-
-iam realizado em seu lugar. Se Pasteur no tivesse descoberto a existncia dos
micrbios, algum outro t-lo-ia feito" Os fatos sempre af rmam a sua existncia
no f m, a despeito da resistncia imprimida por aqueles que se veem prejudica-
dos, ou incomodados ou chocados pela descoberta deles.
A parte da nova luz que o presente estudo derrama sobre o en-
tendimento do Alcoro difcil - num nvel mais generalizado - no sermos
surpreendidos pela grande vantagem que h em usarmos os dados cientf cos
quando so examinados certos aspectos das Sagradas Escrituras. Isso nos leva a
estabelecermos um acordo entre as concluses tiradas dos dados cientf cos e
os conceitos tidos pelos exegetas.
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PRLOGO
O dilogo entre os mundos cristo e islamita, que vem ocorrendo nos
ltimos trinta anos, comea a por f m ao desentendimento multissecular que
existe entre as grandes religies monotestas. A histria registra que em 1974
a f nado Rei Faisal Ibn Abdel Aziz Al-Saud, que Deus abenoe sua alma, enviou
seu Ministro da Justia Sheikh Muhammad Ali Al Harkan liderando os Grandes
Ulems da Arbia Saudita, para visitar o Papa Paulo VI no Vaticano e estabelecer
um dilogo entre cristos e muulmanos sobre os direitos humanos no Islam,
e um grande passo foi ento tomado na direo do estabelecimento de uma
melhor compreenso entre as duas religies.
No entanto, o Islam continua a ser pouco conhecido no Brasil, por falta
de literatura especializada. Em geral, tanto no Brasil, como em todo o mundo
cristo, como observa Maurice Bucaille, no presente trabalho, o Islam (que
signif ca submisso a Deus.) chamado de maometanismo (que signif ca
a religio do Maom) e a informao sobre o mesmo expressa atravs de
chaves que mais adequadamente revelam ignorncia do que conhecimento do
assunto.
Pondo de lado todos os chaves tradicionais sobre o islamismo, o Autor
faz no presente trabalho um erudito confronto entre o documento bsico do
judeu-cristianismo, a Bblia, e o islamismo, o Alcoro, estudo este que traz mui-
tas luzes ao assunto em pauta.
Mdico, e como tal interessado no aspecto cientf co da questo, Bu-
caille, utilizando o instrumento da chamada crtica histrica, estuda os textos
bblicos e atravs de estudos f lolgicos comprova que as Sagradas Escrituras,
no que se refere ao Velho Testamento, uma composio entre textos de duas
escolas de pensamento judaico - a Yavista, a mais antiga e a Elohista, a mais
recente - uma espcie de sntese ou contemporizao entre as duas.
Idntico estudo feito com o Novo Testamento, no que se refere aos
seus mais antigos manuscritos, e demonstra que as pesquises comparativas e
f lolgicas dos testos dos Evangelhos comprovam no apenas obvias discre-
pncias entre os mesmos, mas que tambm revelam acrscimos e modif caes
subsequentes, feitas por pessoas provavelmente interessadas em dar apoio s
suas escolas teolgicas. Esses estudos vm sendo conduzidos por telogos e
estudiosos cristos desde o Renascimento o e no apresentam grande surpresa
aos versados na questo.
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O que surpreendente, no entanto, o confronto entre as Escrituras
sagradas e o Alcoro, no que se refere cincia e ao que a mesma hoje diz sobre
a criao do Universo, do aparecimento do homem na face da terra e assuntos
correlatos.
Uma vez que a comparao estabelecida entre os dados cientf cos e o
que dizem as Sagradas Escrituras, o Autor demonstra o que para muitos uma
grande surpresa: que o Alcoro def nitivamente no contm uma s proposio
em desacordo com os conhecimentos da cincia moderna, nem apresenta ou
defende ideias cientf cas defendidas durante o perodo em que foram inspira-
dos, no sculo VII. Mais ainda, que muitos dos fatos cientf cos mencionados
no Alcoro s foram descobertos agora, em tempos modernos. Alguns desses
fatos so to modernos e to exatamente cientf cos que o Autor, em 1976,
baseado nos mesmos, apresentou um Trabalho perante a Academia Francesa
de Medicina, intitulado Dados f siolgicos e embriolgicos encontrados no
Alcoro. Esses dados - como muitos outros assuntos Semelhantes - so um
verdadeiro desaf o compreenso humana, tomando-se em considerao o que
sabemos sobre o desenvolvimento do conhecimento cientf co atravs dos tem-
pos.
O pleno acordo entre o que o Alcoro revela e o que diz a cincia mo-
derna leva os exegetas islamitas concluso de que o Alcoro um livro de
Revelao Divina, pois Deus no poderia revelar erros cientf cos.
To logo iniciamos a leitura do livro de Bucaille, sentimos o desejo de
que o mesmo fosse traduzido para o portugus, a f m de que outras pessoas
pudessem tambm comparar o Alcoro, a Bblia e a Cincia, como fez brilhan-
temente o Dr. Maurice Bucaille.
Quis a Providncia Divina que na casa do Professor Helmi Nasr conhe-
cssemos sua prima, a Professora Doutora Josef na Chaia Pereira, que embola
Titular de Administrao Escolar e Educao Comparada na UNESP, Campus
de Marlia em So Paulo, vivamente interessada no estudo das religies. Soli-
citamos-lhe a traduo do livro de Bucaille, que ai est pronto para servir aos
que desejarem conhecer o Islam atravs do livro sagrado dos muulmanos, o
Alcoro.
Tomamos o ensejo para agradecer tambm o auxlio e sugestes feitas
pelo Professor Doutor Rasheed Ahmad Malik do Departamento de Engenharia
da Universidade de Braslia, e ao Professor Doutor David Gueiros Vieira, estu-
dioso da histria das religies, tambm da UnB, pela leitura do manuscrito e
sugestes que apresentou.
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Cumpre registrar aqui nossos agradecimentos Sua Excelncia Ministro
Hassan Ibn Abdul Aziz Al-Sheikh, do Ministrio da Educao Superior da Ar-
bia Saudita, por sua orientao e auxlio na labuta da Seo Cultural da Embai-
xada Real da Arbia Saudita, em prol de uma melhor compreenso do islamismo
no Brasil.
Agradecemos a Deus pelo Rei Fahd Ibn Abdel Aziz Al Saud, que tem
seguido passo a passo a poltica estabelecida por seu pai, o Rei Abdel Aziz Al
Saud, o fundador da moderna Arbia Saudita, que trouxe nosso pas ao Sculo
XXI. Como Primeiro Ministro da Educao, durante o reinado do seu pai, o Rei
Fahd empenhou-se no desenvolvimento da educao superior, criando escolas
de todos os nveis e outorgando bolsas de estudo para jovens sauditas estuda-
rem no exterior, das quais fomos um dos agraciados, desta maneira preparando-
-os para assumir completa responsabilidade das sete instituies de educao
superior de nosso pas.
Essa publicao foi f nalizada por ns mesmos, para distribuio gratuita
s faculdades, Universidades e escolas brasileiras. Sentimo-nos como se tivsse-
mos cumprido uma misso a de contribuir para a divulgao dos sagrados
ensinamentos do Profeta Muhammad . Rogamos a Deus que um grande n-
mero de leitores possa se benef ciar dessa obra.
Mohamed Abou Alsamh
Conselho Cultural da Arbia Saudita no Brasil
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
INTRODUO
Cada uma das trs religies monotestas possui uma compilao das
escrituras que lhe prpria. Estes documentos constituem o fundamento da f
de todo crente. Seja judeu, cristo ou muulmano. Eles so para cada um destes
a transcrio material de uma Revelao divina, direta como no caso de Abrao
ou de Moiss, que receberam de Deus diretamente os mandamentos, ou indi-
retamente, no caso de Jesus e de Muhammad; o primeiro declarando falar em
nome do Pai e o segundo transmitindo aos homens a Revelao comunicada
pelo Arcanjo Gabriel.
Levar em conta os dados objetivos da histria das religies obriga a co-
locar sob a mesma categoria o Antigo Testamento, os Evangelhos e o Alcoro
como compilao da Revelao escrita. Mas esta atitude, em princpio partilhada
pelos muulmanos, no a admitida pelos crentes dos pases ocidental, de in-
f uncia judaico-crist predominantemente, que recusam atribuir ao Alcoro o
carter de um Livro Revelado.
Essas atitudes se explicam pelas posies tomadas em cada comunidade
crente em face das duas outras, no que concerne as Escrituras.
O Judasmo tem por livro santo a Bblia hebraica. Esta difere do Antigo
Testamento cristo pela soma operada, neste ltimo, de alguns livros que no
existem em hebraico. Na prtica, esta divergncia no traz muitas mudanas na
doutrina. Mas o Judasmo no aceita nenhuma revelao posterior sua.
O Cristianismo assumiu a Bblia hebraica e acrescentou alguns suplemen-
tos. Mas ele no aceitou todos os escritos publicados para dar a conhecer aos
homens a misso de Jesus. Sua Igreja efetuou cortes extremamente importantes
na grande quantidade de livros, relatando a vida de Jesus e os ensinamentos
que Ele deu. Ela no conservou no Novo Testamento, a no ser um nmero
limitado de escritos, onde os principais so os quatro Evangelhos cannicos. O
Cristianismo no toma em considerao uma revelao posterior a Jesus e seus
Apstolos. Ele elimina, portanto, nesse sentido, o Alcoro.
Vinda seis sculos depois de Jesus, a Revelao Alcornica retoma nume-
rosos dados da Bblia hebraica e dos Evangelhos, pois ela cita frequentemente a
Tora e o Evangelho. O Alcoro prescreve a todo muulmano crer na Escritura
anterior sua (Captulo 4, Versculo 136). Ele acentua a parte preponderante
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ocupada, na histria da Revelao, pelos Enviados de Deus como No, Abrao,
Moiss, os profetas e Jesus, que colocado entre eles numa posio particular.
Seu nascimento apresentado pelo Alcoro, tanto quanto pelos Evangelhos,
como um fato sobrenatural. O livro concede a Maria uma meno toda especial.
O Captulo n 19 do Alcoro no traz o seu nome?
foroso constatar que esses ltimos dados concernentes ao Isl so
geralmente ignorados nos pases ocidentais. Como se admirar disso, quando se
evoca a maneira como tantas geraes foram instrudas dos problemas religio-
sos da humanidade, e em que ignorncia elas foram mantidas em relao a tudo
que concerne ao Islam. A utilizao das denominaes de religio maometana
e de maometanos foi conservada - e at nossos dias - para manter, nos es-
pritos, a convico errnea de que se tratava de crenas divulgadas por obra
de um homem, e nelas Deus (no sentido cristo) no pode ter nenhum lugar.
Muitos de nossos contemporneos cultos esto interessados pelos aspectos
f losf cos, sociais, polticos do Islam, sem jamais se interrogar como eles deve-
riam estar sobre a Revelao Islmica propriamente dita. Coloca-se como dito
que Muhammad se apoiou sobre o que era anterior a ele para afastar, desta
maneira, toda abordagem do problema da Revelao.
Com que desprezo, alis, os muulmanos no so considerados em cer-
tos meios cristos. Eu pude fazer a experincia, procurando travar um dilogo
para um exame comparativo de narrativas bblicas e de narrativas alcornicas,
consagradas ao mesmo assunto, e constatar a recusa sistemtica de uma tomada
de considerao com o simples objetivo de ref exo, do que poderia conter o
Alcoro sobre o assunto considerado. E um pouco como se, citar o Alcoro,
fosse fazer referncia ao diabo!
Uma mudana radical parece, entretanto, produzir-se em nossos dias, em
escalo mais elevado do mundo cristo. Editado em consequncia do Conclio
Vaticano II, um documento do Secretariado do Vaticano para os no cristos,
Orientao Para um Dilogo Entre Cristos e Muulmanos, cuja terceira edio
data de 1970, atesta a profundidade da modif cao das atitudes of ciais. Depois
de haver convidado a afastar a imagem antiquada herdada do passado ou des-
f gurada pelos preconceitos e pelas calnias que os cristos faziam do Islam, o
documento do Vaticano se prope a reconhecer as injustias do passado onde
o Ocidente de educao crist sentiu-se culpado em relao aos muulmanos.
Ele critica as concepes errneas que foram as dos cristos sobre o fatalismo
muulmano, o jurisprudncia Islmica, seu fanatismo etc. Ele acentua a unicida-
de da crena em Deus e lembra a que ponto o cardeal Koenig, ao longo de uma
conferncia of cial em maro de 1969 na Universidade Muulmana Al-Azhar
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do Cairo, surpreendeu os ouvintes da Grande Mesquita, proclamando-a. Ele
lembra tambm que o Secretariado do Vaticano convidou, em 1967, os cristos a
cumprimentar os muulmanos, por ocasio do f m do jejum do Ramad, valor
religioso autntico.
Dessas premissas em favor de uma aproximao entre a Cria Romana
e o Islam, seguiu-se manifestaes diversas e encontros que a concretizaram.
Mas poucos foram advertidos desses acontecimentos to importantes que se
desenrolaram no mundo ocidental, onde, no entanto, no faltam os meios de
difuso da informao: imprensa, radiodifuso e televiso.
Os jornais, com efeito, concederam pequeno espao visita of cial que
fez, em 24 de abril de 1974, o cardeal Pignedoli, presidente do Secretariado
do Vaticano para os no cristos, ao Rei Faisal da Arbia Saudita. O jornal Le
Monde, de25 de abril de 1974, dedicou-lhe algumas linhas. No entanto, que
notcia importante quando se leu que o cardeal havia levado ao soberano uma
mensagem do papa Paulo VI, na qual este ultimo expressava a considerao de
Sua Santidade animada de uma f profunda na unifcao dos mundos islmico
e cristo que adoram um s Deus, Majestade Faisal, em sua qualidade de au-
toridade suprema do mundo islmico.
Seis meses mais tarde, em outubro de 1974, o Papa recebeu of cialmente
no Vaticano os Grandes Ulems da Arbia Saudita. Foi a oportunidade de um
colquio entre cristos e muulmanos sobre os Direitos Culturais do Homem
no Islam. O Jornal do Vaticano, o Observatore Romano, de 26 de outubro de
1974, relatou este acontecimento histrico dedicando-lhe, na primeira pgina,
um espao maior que dedicou ao relatrio do dia do encerramento do Snodo
dos Bispos, reunidos em Roma.
Os Grandes Ulems da Arbia Saudita foram, em seguida, recebidos pelo
Conclio Ecumnico das Igrejas de Genebra e pelo monsenhor Elchinger, Bispo
de Strasbourg. O bispo convidou os Ulems a fazerem a prece do meio-dia, em
sua frente, na sua catedral. Este acontecimento foi relatado e, aparentemente,
mais em razo do seu lado espetacular, que pela signif cao religiosa conside-
rvel que ele comportava. Muitos poucos so, em todo caso, aqueles que eu
interroguei sobre essas manifestaes e que me responderam ter tido conheci-
mento.
O esprito de abertura, face ao Islam, do papa Paulo VI, que se declarou,
ele mesmo, como animado de uma f profunda na unif cao dos mundos
islmico e cristo que adoram um s Deus, marcar, certamente, data nos
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relatrios entre as duas religies. Este apelo dos sentimentos do chefe da Igre-
ja catlica, em relao com muulmanos, pareceu-me necessrio, pois muitos
cristos educados num esprito de hostilidade declarada, como o lastimou o
documento do Vaticano citado acima so por princpio, hostis a toda ref exo
sobre o Islam: partindo da, eles f cam na ignorncia do que , na realidade, e
tm, sobre a Revelao Islmica, concepes absolutamente errneas.
Quando se estuda um aspecto de uma revelao de uma religio mo-
notesta, qualquer que seja, parece absolutamente legtimo, abord-lo por com-
parao com o que as duas outras oferecem nesse mesmo ponto de vista.
Um estudo de conjunto do problema apresenta mais interesse que um estudo
separado. A confrontao de certos assuntos tratados nas Escrituras com os
dados da cincia do sculo XX-, interessa, consequentemente, s trs religies,
sem excluso. Alm disso, no formam elas ou no deveriam formar, um bloco
mais compacto aproximando-se, j que todas esto, em nossos dias, ameaadas
pela invaso do materialismo? tambm mais nos pases de inf uncia judaico-
-crist que nos pases islmicos, que se sustenta e muito especialmente nos
meios cientf cos - que religio e cincia so incompatveis. A questo, para ser
tratada no conjunto, necessitaria de desenvolvimentos considerveis. Eu no
quero abordar aqui a no ser um assunto: o exame das Escrituras luz dos
conhecimentos cientf cos modernos.
Este objetivo obriga a propor uma questo prvia fundamental: qual a
autenticidade dos textos que possumos em nossos dias? Esta questo implica
um exame de circunstncias, que presidiram a redao dos textos e de sua
transmisso at ns.
O Estudo das Escrituras, sob o aspecto da crtica dos textos, de data
recente em nossos pases. No que concerne Bblia, Antigo e Novo Testamen-
tos, longos sculos passaram durante os quais os homens se contentavam em
aceit-la em seu estado. Sua leitura s dava ocasio a consideraes apologticas.
Teria sido pecado manifestar o mnimo esprito crtico sobre o assunto. Os
clrigos eram privilegiados que podiam facilmente ter dela um conhecimento
de conjunto. A maior parte dos leigos s recebia dela pedaos escolhidos nas
cerimnias litrgicas ou no decorrer dos sermes.
Organizada como especialidade, a crtica textual teve o mrito de des-
cobrir e de divulgar os problemas frequentemente muito graves que surgem.
Mas que decepcionante a leitura de tantas obras, que se declaram crticas, e
no oferecem diante de muitas reais dif culdades de interpretao, mais que os
desenvolvimentos apologticos destinados a encobrir o embarao do autor!
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Nessas condies, para quem mantm intactos sua capacidade de ref exo e
seu senso de objetividade, as inverossimilhanas e as contradies no f cam
menos persistentes e pode-se lastimar a atitude destinada a justif car, contra
toda lgica, a manuteno nos textos das Escrituras bblicas de certas passagens
maculadas de defeitos. Ela pode ser inf nitamente prejudicial crena em Deus
de certos espritos cultos. Todavia, a experincia prova que, se alguns so capa-
zes de revelar falhas dessa ordem, a imensa maioria dos cristos jamais tomou
conhecimento de sua existncia, e permaneceu na ignorncia de suas incompa-
tibilidades com os conhecimentos profanos que, contudo, so frequentemente
muito elementares.
O Isl possui, nos Hadiyths, o equivalente dos Evangelhos. Os Hadiyths
so compilao de propsitos e de narraes dos atos de Muhammad; os
Evangelhos no so nada mais que isto, no que concerne a Jesus. As primeiras
compilaes de Hadiyths foram escritas decnios aps a morte de Muhammad,
como os Evangelhos foram escritos decnios depois de Jesus. Nos dois casos,
so testemunhas humanas sobre os fatos passados. Veremos que, contraria-
mente ao que muitos pensam os quatro Evangelhos cannicos no tm como
autores os testemunhos dos fatos que eles relatam. Isto ocorre nas compilaes
dos Hadiyths mais srios.
A comparao deve parar aqui, pois, se foi discutida e ainda se discute
a autenticidade de um ou outro Hadiyth, nos primeiros sculos da Igreja, re-
solveu-se, de maneira def nitiva entre os mltiplos Evangelhos, proclamar como
of ciais ou cannicos quatro desses, apesar de numerosas contradies entre
eles sobre muitos pontos, e ordenando que todos os outros fossem escondidos;
da, o nome que a eles se deu de apcrifos.
Uma outra diferena fundamental entre o Cristianismo e o Isl no que
concerne s Escrituras , a falta no primeiro de um texto Revelado, e ao mesmo
tempo f xado, enquanto que o segundo possui o Alcoro que atende a esta
def nio.
O Alcoro a expresso da Revelao feita a Muhammad pelo Arcanjo
Gabriel, imediatamente transcrito, decorado e recitado pelos f is nas preces,
durante o ms do Ramad, em particular. Ele foi classif cado por Muhammad
em Suratas e estas foram reunidas, logo aps a morte do Profeta, para formar,
sob o califado de Othman (12 ao 24 anos que segui esta ultima), o texto
que ns possumos at nossos dias. Contrastando com o que se passou com
o lslam, a Revelao crist fundada sobre testemunhos humanos mltiplos e
indiretos, pois no possumos nenhum testemunho vindo de uma testemunha
17
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
ocular da vida de Jesus, contrariamente ao que imaginam muitos cristos. Assim
se apresentou o problema da autenticidade dos textos da Revelao Crist e da
Revelao Islmica.
A confrontao dos textos das Escrituras com os dados da cincia foi,
em todos os tempo, o motivo de ref exo para o homem.
A princpio, sustentou-se que a concordncia entre as Escrituras e a Ci-
ncia era um elemento necessrio autenticidade do texto sagrado. Santo Agos-
tinho, em sua Carta n82, que ser citada mais adiante, estabeleceu formalmente
o seu princpio. Depois medida em que a cincia se desenvolvia, percebeu-se a
existncia de divergncias entre a Escritura Bblica e a Cincia e ento decidiu-
se no se fazer aproximaes. Dessa maneira, foi criada uma situao grave que,
em nossos dias, ope, preciso reconhecer, exegetas bblicos e sbios. No se
poderia admitir, com efeito, que uma Revelao divina pudesse anunciar um
fato rigorosamente inexato. No haveria ento, a no ser uma possibilidade de
conciliao lgica; seria de admitir como inautntica uma passagem da Escritura
Bblica, enunciando um fato cientif camente inadmissvel. Esta soluo no foi
escolhida. Ao contrrio, obstinou-se a manter a integridade do texto e isto
forou os exegetas a tomar, sobre a verdade das Escrituras bblicas, as posies
que no so muito aceitveis para o esprito cientf co.
O Islam, como Santo Agostinho para a Bblia, sempre considerou que
havia concordncia entre os dados da Escritura Santa e os fatos cientf cos. O
exame do texto da Revelao Islmica, na poca moderna, no ocasionou uma
reviso desta posio. O Alcoro, como se ver adiante, evoca fatos para os
quais a cincia tem o que dizer, e isto em nmero considervel, em relao
Bblia no h nenhuma medida comum entre o carter restrito dos enunciados
bblicos, servindo confrontao com a cincia, e a multiplicidade de assuntos
tendo um carter cientf co evocados pelo Alcoro. Nenhum desses se presta
contestao do ponto de vista cientf co: eis, o dado fundamental que se
ressalta desse estudo. Ver-se- no f m deste livro como, para a compilao dos
propsitos do Profeta (Hadiyths) que se colocam fora da Revelao Alcornica,
ocorre o contrrio, pois que certos Hadiyths so cientif camente inadmissveis.
Semelhantes Hadiyths foram submetidos a estudos srios, seguindo-se os prin-
cpios rigorosos do Alcoro, ordenando sempre remet-los cincia e razo,
para retirar-lhes, se for o caso, toda a autenticidade.
Estas consideraes sobre o carter cientif camente aceitvel ou ina-
ceitvel de um enunciado da Escritura tornam necessrio um certo rigor.
preciso sublinhar que, quando se fala aqui de dados da cincia, entende-se da
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
o que estabelecido de uma maneira def nitiva. Esta considerao elimina as
teorias explicativas, teis a uma poca para fazer compreender um fenmeno
e podendo ser anuladas e substitudas em seguida por outras, mais conforme
o desenvolvimento cientf co. O que se pretende aqui so os fatos sobre os
quais impossvel voltar posteriormente, mesmo que a cincia traga apenas
dados incompletos, mas que so suf cientemente bem estabelecidos para serem
utilizados sem riscos de erro. Por exemplo, ignora-se a data, mesmo aproximada,
do aparecimento do homem sobre a terra, mas descobriu-se vestgios de obras
humanas que se situam, sem nenhuma dvida, anteriormente ao dcimo milnio
A.C. No se pode, logo, manter como compatvel com a cincia a realidade
do texto bblico do Gnesis, dando as genealogias e datas que fazem situar a
origem do homem (a criao de Ado), cerca de trinta e sete sculos A.C. A
cincia poder, talvez, dar no futuro, com preciso, datas maiores que nossas
avaliaes atuais, mas pode-se estar certo de que no se demonstrar, jamais,
que o homem apareceu sobre a Terra h 5.736 anos, como o quer, no ano
1975, o calendrio hebraico. Os dados bblicos concernentes antiguidade do
homem so, portanto, falsos.
Esta confrontao com a cincia exclui todo problema religioso, propria-
mente dito. A cincia, por exemplo, no tem nenhuma explicao a dar sobre o
processo pelo qual Deus se manifestou a Moiss, ou a propsito do mistrio em
torno da vinda ao mundo de Jesus, sem que existisse para Ele um pai biolgico.
Sobre fatos desse tipo, as Escrituras no do, alis, nenhuma explicao material.
O presente estudo trata do que nos ensinam as Escrituras sobre os assuntos de
fenmenos naturais extremamente diversos, que elas envolvem mais ou menos
de comentrios ou explicaes, e preciso opor, nesse sentido, a grande riqueza
da Revelao Alcornica descrio de duas outras revelaes sobre o mesmo
assunto.
Foi sem nenhuma ideia preconcebida e com uma objetividade total que
eu me debrucei sobre a Revelao Alcornica, procura do grau de compati-
bilidade do texto alcornico com os dados da cincia moderna. Eu sabia, por
tradues, que o Alcoro evocava sempre todo tipo de fenmenos naturais,
mas eu s possua deles, um conhecimento sumrio. Foi examinando muito
atentamente o texto em rabe, que eu f z um inventrio, ao f m do qual eu tive
de me render evidncia de que o Alcoro no continha nenhuma af rmao
que pudesse ser criticvel do ponto de vista cientf co, na poca moderna.
Eu f z o mesmo exame do Antigo Testamento e dos Evangelhos, com a
mesma objetividade. Para o primeiro, no foi preciso ir alm do primeiro livro,
O Gnesis, para encontrar, nele, af rmaes incompatveis com os dados mais
solidamente estabelecidos da cincia de nossa poca.
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Quando se abre os Evangelhos, de imediato, mergulha-se, com a genea-
logia de Jesus, que f gura na primeira pgina, num problema muito grave pois o
texto de Mateus est nesse ponto em evidente contradio com o de Lucas, e
este ltimo apresenta uma incompatibilidade evidente com os conhecimentos
modernos, relativos antiguidade do homem sobre a Terra.
A existncia dessas contradies, improbabilidades e incompatibilidades
no me parece alterar em nada a f em Deus. Ela compromete somente a res-
ponsabilidade dos homens. Nada se pode dizer do que poderiam ser os textos
originais, qual foi a parte fantasista das redaes, qual foi a parte da manipulao
deliberada dos textos pelos homens, como aquela das modif caes inconscien-
tes das Escrituras.
O que choca em nossos dias, ver que, diante de tais contradies ou
incompatibilidades com os dados bem estabelecidos da cincia, especialistas
do estudo dos textos ou f ngem s vezes ignor-los, ou relevam as falhas mas
tentam camuf -las com a ajuda de acrobacias dialticas.
A propsito dos Evangelhos de Mateus e de Joo, eu darei exemplos
deste uso brilhante de frmulas apologticas por eminentes exegetas. A tenta-
tiva de camuf ar por esses procedimentos de uma inverossimilhana ou de uma
contradio que se denomina pudicamente dif culdades e freqentemente
coroada de sucesso, o que explica que tantos cristos ignorem as falhas graves
de numerosas passagens do Antigo Testamento e dos Evangelhos. O leitor
encontrar na primeira e segunda partes deste livro exemplos precisos.
Ele encontra na terceira parte do livro a ilustrao de uma aplicao
inesperada da cincia ao estudo de uma Escritura Santa, a contribuio do
conhecimento profano moderno a uma melhor compreenso de certos versos
alcornicos, at agora enigmticos, e mesmo incompreensveis. Como admirar-
-se disto, quando se sabe que, para o Isl, a religio e a cincia sempre foram
consideradas como duas irms gmeas.
Cultivar a cincia faz parte das prescries religiosas desde as origens a
aplicao desse preceito acarreta o prodigioso impulso cientf co no grande pe-
rodo da civilizao islmica, da qual o Ocidente mesmo se nutriu antes da Re-
nascena. Em nossos dias, os progressos conseguidos graas aos conhecimentos
cientf cos na interpretao de certas passagens do Alcoro, incompreendidos
ou mal interpretados at agora constituem o apogeu dessa confrontao entre
as Escrituras e a Cincia.
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
ANTIGO TESTAMENTO
RESUMO GERAL
Quem o autor do Antigo Testamento?
Quantos leitores do Antigo Testamento, a quem esta pergunta seria feita,
no dariam respostas que repetem o que eles leram na introduo de sua Bblia,
a saber que esses livros tm todos Deus por autor, muito embora eles tenham
sido escritos por homens inspirados pelo Esprito Santo.
Ora o autor da apresentao da Bblia limita-se a instruir a seu leitor
com a ajuda dessa breve noo que corta toda interrogao, ora ele acrescenta
um corretivo, advertindo que os detalhes puderam, em consequncia, ter sido
acrescentados por homens ao texto primitivo, mas que, contudo, o carter liti-
gioso de uma passagem no altera a verdade geral que decorre dela. Insiste-se
sobre essa verdade pela qual se responsabiliza o Magistrio da Igreja, assistido
pelo Esprito Santo, o nico suscetvel de esclarecer os f is sobre esses pontos.
A Igreja promulgou, desde os conclios do sculo IV, a lista dos Livros Santos,
lista que foi conf rmada para formar o que se chama o Cnon pelos Conclios
de Florena (1441), Trento (1546) e Vaticano (1870). Recentemente, o ltimo con-
clio do Vaticano II, depois de tantas encclicas, publicou sobre a Revelao um
texto da primeira importncia, laboriosamente esclarecido durante trs anos
(1962-1965). A imensa maioria dos leitores da Bblia acha essas informaes
reconfortantes, nas introdues das edies modernas contenta-se com as ga-
rantias de autenticidade dadas no decurso dos sculos, e quase no pensa que
se possa discutir o assunto.
Mas quando se refere s obras escritas por religiosos que no so des-
tinadas grande vulgarizao, percebe-se que a questo da autenticidade dos
livros da Bblia muito mais complexa que se havia pensado a priori. Se se
consulta, por exemplo, a publicao moderna, em fascculos separados, da B-
blia traduzida em francs sob a direo da Escola Bblica de Jerusalm
1
, o tom
aparece muito diferente, e se percebe que o Antigo Testamento, como o Novo,
levanta problemas dos quais os autores dos comentrios no esconderam muito
os elementos que suscitam a controvrsia.
1 - Edio do Cerf, Paris.
21
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Encontram-se, igualmente, dados muito precisos nos estudos mais con-
densados e de uma grande objetividade, como aquela do professor Edmond Ja-
cob: o ANTIGO TESTAMENTO
2
. Este livro d uma perfeita viso do conjunto.
Muitos ignoram que havia na origem, como assinala Edmond Jacob, uma
pluralidade de textos e no um texto nico. L pelo sculo III A.C, havia, pelo
menos, trs formas do texto hebreu da Bblia: o Texto Massortico, o que ser-
viu, ao menos em parte, para a traduo grega e o Pentateuco Samaritano. No
sculo I A.C, tentou-se estabelecer um texto nico, mas ser preciso esperar at
um sculo D.C., para que o texto bblico seja f xado.
Se tivssemos essas trs formas do texto, as comparaes seriam poss-
veis e se chegaria, quem sabe, a uma opinio do que poderia ter sido o original,
mas infelizmente no se tem a mnima ideia. Com exceo dos rolos da gruta de
Qumran, datando da poca pr-crist prxima de Jesus, um papiro do Declogo
do sculo II D.C., apresentando variaes com o texto clssico, alguns fragmen-
tos do sculo V D.C. (Gniza do Cairo), o texto em hebreu mais antigo da Bblia
do sculo IX d.C.
Em lngua grega, a Septuaginta ser a primeira traduo. Datando do s-
culo III A.C, ela foi realizada pelos judeus de Alexandria. Sobre este texto que
se apoiaro os autores do Novo Testamento. Ele ter autoridade at, o sculo
VII D.C. Os textos gregos de base geralmente utilizados no mundo cristo so
os manuscritos conservados sob o nome de CODEX VATICANO, da cidade do
Vaticano, e o CODEX SINAITICUS, do British Museum de Londres, e que da-
tam do Sculo IV D.C. Em Latim, So Jernimo teria feito um texto a partir dos
documentos hebreus nos primeiros anos do Sculo V D.C. a edio chamada
mais tarde VULGATA, em razo de sua difuso universal depois do sculo VII
da era crist.
De memria, citemos as verses Aramaicas, Siracas (Peshitta), que s so
parciais.
Todas essas verses permitiram aos especialistas chegar confeco dos
textos que se chamam mdios, espcie de compromisso entre as verses
diferentes. Estabeleceu-se igualmente as compilaes em diversas lnguas, jus-
tapostas, dando lado a lado as verses hebraica, grega, latina, siraca, aramaica e
mesmo rabe. Assim a clebre Bblia de Walton (Londres, 1657). Para completar,
acrescentaremos que, entre as diversas Igrejas crists, as concepes bblicas
divergentes f zeram com que nem todas aceitassem exatamente os mesmos
2 - Presses Universitaires de France. Coll. Que Sais-Je?
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
livros e que elas tivessem at hoje, numa mesma lngua, as mesmas ideias sobre
a traduo. Obra de unif cao em fase de acabamento, a traduo ecumnica
do Antigo Testamento, realizada por numerosos especialistas catlicos e protes-
tantes, deveria chegar a um texto-sntese.
Assim, parece considervel a parte humana no texto do Antigo Testa-
mento. E verif ca-se, sem dif culdade, como, de verso, de traduo em traduo,
com todas as correes que resultam fatalmente, o texto original pde ser
transformado em mais de dois milnios.
ORIGEM DA BBLIA
Antes de ser uma compilao de livros, foi uma tradio popular que
no teve outro apoio a no ser a memria humana, agente exclusivo da origem
da transmisso das ideias. Esta tradio foi cantada.
Numa fase elementar, escreveu E. Jacob, todo povo canta; em Israel
como em outros lugares, a poesia precedeu a prosa. Israel cantou muito e bem;
levada pelas circunstancias de sua histria no auge do entusiasmo tanto quanto
nos abismos do desespero, participando com intensidade de tudo que lhe ocor-
ria, pois tudo tinha aos seus olhos um sentido, ele deu a seu canto uma grande
variedade de expresso. Cantou-se sob pretextos os mais diversos, e E. Jacob
os relaciona em certo nmero dos quais os cantos acompanhadores se reen-
contram no Antigo Testamento: cantos da refeio, canto da celebrao do f m
das colheitas, cantos acompanhando o trabalho como clebre canto do Poo
(Nmeros, 21:17), cantos de casamento como aquele do Cntico dos Cnticos,
cantos de luto, cantos de guerra extremamente numerosos na Bblia, entre os
quais o Cntico de Dbora (Juzes, 5:1-32), que exalta a vitria de Israel desejada
por Yahveh no f m de uma guerra Santa que Yahveh faz, ele mesmo. (Nmeros,
10:35): Quando a Arca (da aliana) partia, Moiss dizia: Levanta-te, Senhor e
dispersados sejam os teus inimigos! Que fujam diante de Tua Face aqueles que
Te Odeiam!
So ainda as Mximas e os Provrbios (Livro dos Provrbios, Provrbios e
Mximas dos Livros Histricos), as palavras de bno e de maldio, as leis que
os Profetas editam aos homens depois de haver recebido seu mandato divino.
23
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
E. Jacob nota que essas palavras eram transmitidas seja por via familiar,
seja atravs dos santurios, sob a forma de narrao da histria do povo eleito
por Deus. Esta tornou-se, logo, uma fbula como o Aplogo de Joato (Juzes,
9:7-21) onde as rvores tentam ungir para si um rei e dirigem-se alternativa-
mente oliveira, f gueira, videira, ao espinheiro, o que permite a E. Jacob
escrever ... animada pela funo fabulista da narrao, no se encontrou emba-
rao sobre assuntos e pocas das quais a histria era mal conhecida, e concluir:
E provvel que o que o Antigo Testamento conta a respeito de Moiss
e dos Patriarcas no corresponda, a no ser aproximadamente, ao desenvol-
vimento histrico dos fatos, mas os narradores souberam, j no estgio de
transmisso oral, concretizar tanta graa e imaginao para reler entre eles os
episdios mais diversos, que eles conseguiram apresentar como uma histria
em suma provvel para os espritos crticos, o que se passou nas origens do
mundo e da humanidade.
muito oportuno pensar que depois da f xao do povo judeu em
Cana, isto , no f m do sculo XIII A.C, a escrita empregada para transmitir
e conservar a tradio, mas sem um total rigor, mesmo quando se tratava do
que parece aos homens merecer a maior perenidade, isto , as leis. Entre esses
ltimos, a lei qual se atribuiu a escrita pela mo de Deus, o Declogo, trans-
mitida no Antigo Testamento segundo duas verses: xodo (20:1-21) e Deutero-
nmio (5:1-30). O esprito o mesmo, mas as variaes so patentes. Cuida-se
de f xar uma documentao importante: contratos, cartas, listas de pessoas
(juzes, altos funcionrios das vilas, listas genealgicas), listas de oferendas, listas
de esplios. Assim foram constitudos os arquivos que trouxeram uma docu-
mentao, quando da redao seguinte das obras def nitivas, que chegaram
livros que ns possumos. Assim, em cada livro, os gneros literrios diversos
so misturados: aos especialistas cabe pesquisar os motivos dessa reunio de
documentos originais.
interessante aproximar esse processo de constituio de conjunto
disparatado, que o Antigo Testamento, na base inicial da traduo oral do que
pde se passar sob outros cus e em outros tempos quando do nascimento de
uma literatura primitiva.
Tomemos, por exemplo, o nascimento da literatura francesa na poca
do reino dos Francos. A mesma tradio oral preside, no incio, a conservao
dos grandes feitos: as guerras que so sempre guerras de defesa da cristandade,
dramas diversos nos quais se ilustram os heris, os quais, sculos mais tarde,
vo inspirar trovadores, cronistas, autores de ciclos diversos. Assim, nascero,
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
a partir do sculo XI da era crist, as canes de gesta, onde o real se mistura
com a lenda, e que vo constituir o primeiro monumento de uma poca. Cle-
bre entre todas a Cano de Rolando, canto romanceado de um grande feito
de armas no qual se ilustra Rolando, comandando a retaguarda do Imperador
Carlos Magno, na volta de uma expedio espanhola. O sacrifcio de Rolando
no um episdio inventado pelas necessidades da narrativa. Situa-se em 15 de
agosto de 778; tratava-se, com efeito, de um ataque pelos montanheses bascos.
A obra literria no apenas legendria; ela tem uma base histrica, mas ela no
seria tomada em conta pelos historiadores.
O paralelo feito entre o nascimento da Bblia e uma tal literatura profana
parece corresponder muito exatamente a uma realidade. Ela no visa, de modo
algum, a rejeitar no conjunto, como fazem tantos negadores sistemticos da
ideia de Deus, o texto bblico possudo hoje entre os homens no mercado
das colees mitolgicas. Pode-se perfeitamente crer na realidade da criao,
na entrega dos mandamentos, a Moiss por Deus, na interveno divina nos
negcios humanos, no tempo do Rei Salomo, por exemplo, pode-se pensar que
a essncia desses fatos nos narrada, sempre considerando que o detalhe das
descries deve ser submetido a uma crtica rigorosa, tamanhas so as partici-
paes humanas na transcrio por escrito das tradies orais originais.
OS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO
O Antigo Testamento uma coleo de obras de tamanho muito de-
sigual e de gneros diversos, escritos durante mais de nove sculos em vrias
lnguas, a partir de tradies orais. Muitas dessas obras foram corrigidas e
completadas, em funo dos acontecimentos ou em funo de necessidades
particulares, em pocas s vezes bem distantes umas das outras.
verdade que a ecloso dessa abundante literatura situa-se no incio da
monarquia israelita, pelo sculo XI A.C, a poca onde aparecia na sociedade real
o corpo de escribas, personagens cultos cujo papel no se limitava escrita.
Dessa poca podem datar os primeiros escritos muito parciais, citados no cap-
tulo precedente, escritos em que havia um interesse particular a ser f xado pela
escritura: certos cantos que foram citados acima, os orculos profticos de Jac
e de Moiss, o Declogo e, mais geralmente, os textos legislativos que antes da
formao de um direito estabeleciam uma tradio religiosa. Todos esses textos
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
constituem os pedaos dispersos aqui e ali, nas diversas compilaes do Antigo
Testamento.
Um pouco mais tarde, talvez ao longo do sculo X A.C, que teria sido
redigido o texto dito Yahvista
3
do Pentateuco que vai formar a estrutura
dos cinco primeiros livros chamados de Moiss. Mais tarde, acrescentar-se- a
esse texto a verso chamada Elohista
4
e a verso dita Sacerdotal
5
. O texto
Yahvista inicial trata do perodo das origens do mundo at a morte de Jac.
Ele emana do reino do sul (Jud).
No f m do sculo IX e metade do sculo VIII A.C, no reino norte (Israel),
se elabora e se difunde a inf uncia proftica com Elias e Eliseu, dos quais ns
possumos os livros. tambm na poca do texto Elohista do Pentateuco (que
cobre um perodo muito mais restrito que o Yahvista, pois ele se limita aos
fatos concernentes a Abrao, Jac e Jos). Os livros de Josu e dos Juzes datam
desse perodo.
O sculo VIII A.C, o dos profetas escritores: Ams e Osias em Israel,
e Isaas e Miquias no reino de Jud.
Em 721 A.C, a tomada da Samria pe f m ao reino de Israel. O reino
de Jud recebe sua herana religiosa. A compilao dos Provrbios datar
desse perodo marcado, sobretudo, pela fuso em um s livro dos textos
Yahvista e Elohista do Pentateuco; assim constitudo o Tora. A redao do
Deuteronmio se situar nessa poca.
O Reino de Josias, na segunda parte do sculo VII A.C, coincidir com
os incios do profeta Jeremias, mas sua obra no tomar forma def nitiva a no
ser um sculo mais tarde.
Antes do primeiro degredo Babilnia de 598 A.C, colocam-se o ser-
mo de Sofonias, o de Naum e o de Habacuque. Ao longo desse primeiro de-
gredo, Ezequiel j profetiza. Depois ser a queda de Jerusalm em 587 A.C, que
marcar o incio da segunda deportao, esta se prolongando at 538 A.C.
O livro de Ezequiel, ltimo grande profeta, e profeta do exlio, no ser
redigido na sua forma atual a no ser depois de sua morte, por escribas que
sero seus herdeiros espirituais. Esses mesmos escribas retomaro em uma ter-
3 - Assim chamado porque Deus era chamado Yahveh.
4 - Assim chamado porque Deus era chamado Elohim.
5 - Ele provm dos padres do Templo de Jerusalm.
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
ceira verso, dita Sacerdotal, o Gnesis pela parte que se estende da criao
morte de Jac. Assim, vo ser inseridos, no meio mesmo dos dois textos
Yahvista e Elohista da Tora, um terceiro texto de onde se ver mais tarde um
aspecto de suas complexidades nos livros redigidos, aproximadamente quatro e
dois sculos mais tarde. Nessa poca, apareceu o Livro das Lamentaes.
Sob a ordem de Ciro (a deportao Babilnia termina em 538 A.C), os
judeus reconquistam a Palestina e o templo de Jerusalm reconstrudo. Uma
atividade proftica recomea, donde os livros de Ageu, de Zacarias, do Terceiro
Isaas, de Malaquias, de Daniel e de Baruch (este escrito em grego).
O perodo que se segue deportao tambm o dos livros da Sabedo-
ria: Os provrbios so redigidos def nitivamente perto de 480 A.C O Eclesias-
tes ou Qohlet data do sculo III A.C, que tambm aquele do Cntico dos
Cnticos, dos dois livros de Crnicas, dos de Esdras e Neemias; o Eclesistico
ou Sircida apareceu no Sculo II A.C, o livro da Sabedoria de Salomo e os
dois livros de Macabeus so redigidos um sculo A.C Os livros de Ruth, de
Ester e de Jonas so dif cilmente datveis, como os livros de Tobias e de Judith.
Todas essas indicaes so fornecidas sob reserva de remanejamentos seguintes,
porque no seno cerca de um sculo A.C, que se deu aos escritos do Anti-
go Testamento uma primeira forma que, para muitos, no se tornar def nitiva
seno no sculo I d.C..
Assim, o Antigo Testamento aparece como um monumento da literatura
do povo judeu das origens at a era crist: os livros que o compem foram redi-
gidos, completados, revistos entre o sculo X e o I A.C No apenas um ponto
de vista pessoal que dado aqui sobre a histria de sua redao. Os dados
essenciais desse apanhado histrico foram tirados do artigo Bblia, pela En-
ciclopdia Universal
6
por J- P. Sandroz, professor das Faculdades Dominicanas
do Saulchoir. Para compreender o que o Antigo Testamento, preciso ter na
memria noes perfeitamente estabelecidas em nossos dias por especialistas
altamente qualif cados.
Uma Revelao est inserida em todos esses escritos, mas ns no pos-
sumos hoje e o que bem quiseram nos deixar os homens que manipularem os
textos sua maneira, em funo das circunstncias nas quais eles se encontra-
vam e das necessidades que eles haviam d vencer.
Quando se comparam esses dados objetivos queles revelados nas diver-
sas Preliminares da Bblia, destinadas em nossos dias vulgarizao, constata-se
6 - Ed. 1974, Vol. 3, p. 244-253.
27
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
que os fatos a so apresentados de uma maneira diferente. H um silncio sobre
os fatos fundamentais relativos redao dos livros, equvocos so mantidos
e desviam o leitor, os fatos so minimizados a ponto de dar uma ideia falsa da
realidade.
Muitas Preliminares ou Introdues das Bblias disfaram assim a verdade.
Livros inteiros so reformados em vrias reprises (como o Pentateuco); con-
tenta-se em mencionar que os detalhes puderam ser acrescidos aps o corte.
Introduz-se uma discusso a propsito de uma passagem insignif cante de um
livro, mas silenciam-se fatos cruciais que mereceriam longos desenvolvimentos.
Causa af io verem-se mantidas pela vulgarizao noes de tal maneira
inexatas sobre a Bblia.
A TOR OU PENTATEUCO
Tor um nome semtico. A expresso grega que em portugus, deu
Pentateuco, designa uma obra em cinco partes: Gnesis, xodo, Levtico, N-
meros e Deuteronmio, que vo formar os cinco primeiros elementos da com-
pilao dos trinta e nove volumes do Antigo Testamento.
Esse grupo de textos trata das origens do mundo at a entrada do povo
judeu em Cana, terra prometida depois do exlio no Egito, mais exatamente at
a morte de Moiss. Mas a narrao desses fatos serve de quadro geral para a
exposio das disposies concernentes vida religiosa e vida social do povo
judeu; da, o nome Lei ou Tora.
O judasmo e o cristianismo, durante longos sculos, consideraram ser
Moiss mesmo seu autor. Pode ser que tenham se baseado para fazer essa af r-
mao no fato de que Deus tenha dito a Moiss (xodo, 17:14): Escreve isto (a
derrota de Amaleq) para memria no Livro, ou ainda a propsito do xodo
depois do Egito, que Moiss anotou os lugares de onde eles partiram (Nme-
ros,33:2), ou ento que Moiss escreveu esta lei (Deuteronmio, 31:9). A partir
do sculo I A.C, defendia-se a tese segundo a qual todo Pentateuco foi escrito
por Moiss; Flavius, Josephus, Philon de Alexandria a sustentavam.
Hoje, essa tese est absolutamente abandonada. Todos esto de acordo
28
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
sobre este ponto, o que no impede que o Novo Testamento atribua a Moiss
esta paternidade. Com efeito, Paulo, na Epstola aos Romanos (10:5), citando uma
frase do Levtico, af rma: Moiss mesmo escreve da justia que vem da lei...,
e Joo no seu Evangelho (5:46-47) diz a Jesus esta frase: Se Vs tivsseis visto
Moiss, tambm acreditareis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito.
Se, porm, no credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?.
Trata-se aqui de uma redao, o termo grego corresponde ao texto original
(escrito nessa lngua) episteute. Ora trata-se de uma af rmao totalmente
falsa posta pelo Evangelista na boca de Jesus: o que se segue o demonstra.
Eu atribuo os elementos dessa demonstrao a R.P. de Vaux, diretor da
Escola Bblica de Jerusalm, que fez preceder sua traduo do Gnesis de 1962
de uma Introduo Geral do Pentateuco, contendo valiosos argumentos, indo
ao encontro das af rmaes evanglicas sobre a paternidade da obra em ques-
to.
R.P. de Vaux lembra que a tradio judaica, que Cristo e os Apstolos
seguram, foi aceita at a Idade Mdia; Aben Esra foi, no sculo XII, o nico
contestador dessa tese. no sculo XVI que Carlstadt observa que Moiss no
pde escrever a narrativa de sua prpria morte no Deuteronmio (34:5-12). O
autor cita a seguir obras crticas que negam ser de Moiss ao menos uma parte
do Pentateuco, e sobretudo a obra de Richard Simon, do Oratrio, A Histria
Crtica do Velho Testamento (1678) que sublinha as dif culdades cronolgicas,
as repeties, as desordens das narraes e as diferenas de estilo do Pentateu-
co.
O livro foi um escndalo; tambm no seguimos a argumentao de R.
Simon: em seus livros de histria do comeo do Sculo XVIII, as referncias
alta antiguidade procedem frequentemente do que Moiss havia escrito.
Imagina-se o quanto era difcil combater uma lenda forte do apoio de
que Jesus mesmo teria introduzido no Novo Testamento, como ns vimos. De-
ve-se Jean Astruc, mdico de Luiz XV, o fato de haver fornecido o argumento
decisivo. Publicando em 1753 suas Conjunturas sobre as Memorias Originais
das quais parece que Moiss se serviu para compor o livro Gnesis, chamou a
ateno sobre pluralidade das fontes.
Ele no foi, sem dvida, o primeiro afazer essa observao, mas, em todo
caso, teve a coragem de tomar pblica uma contestao primordial: dois textos
29
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
marcados cada um por uma particularidade de se atribuir a Deus o nome de
YAHVEH e ELOHIM estavam lado a lado presentes no Gnesis; este ltimo
continha, pois, dois textos justapostos. Eichhorn (1780-1783) fez a mesma des-
coberta para os quatro outros livros; depois, Ilgen (1798) percebeu que um dos
dois textos individualizados por Astruc, aquele onde Deus chamado Elohlm,
deveria ser ele mesmo dividido em dois.
O Pentateuco explodia literalmente.
O Sculo XIX se empenhou numa pesquisa ainda mais minuciosa das
fontes. Em 1854, mais quatro fontes so admitidas. D-se-lhes os nomes de:
Documento Yahvista, Documento Elohista, Deuteronmio, Cdigo Sacerdotal.
Consegue-se atribuir-lhes as idades:
1 - O Documento Yahvista situa-se no sculo IX A.C (redigido no pas
de Jud);
2 - O Documento Elohista ser um pouco mais recente (redigido em
Israel);
3 - O Deuteronmio do sculo VIII A.C para uns (E. Jacob); da poca
de Josias (Sculo VII A.C), para outros (R.P. de Vaux);
4 - O Cdigo Sacerdotal da poca do exlio ou depois do exllio,
sco VI A.C
Assim, a organizao do texto do Pentateuco estende-se, pelo menos,
por trs sculos.
Mas o problema ainda mais complexo. Em 1941, A. Lods distingue trs
fontes no Documento Yahvista, quatro no Elohista, seis no Deuteronmio, nove
no Cdigo Sacerdotal, sem contar, escreve R.P. de Vaux, os acrscimos repartidos
entre oito autores.
Em uma data mais recente, chega-se a pensar que muitas das constitui-
es ou das leis do Pentateuco tinham paralelos extra bblicos, muito anteriores
s datas atribudas aos documentos e que numerosos relatos do Pentateuco
supunham outro meio - e mais antigo - que aquele de onde teriam originado
esses documentos, o que leva a se interessar pela formao das tradues.
30
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O problema aparece ento com uma complexidade tal que ningum mais se
reconhece nele.
A multiplicidade das fontes acarreta discordncias e repeties nume-
rosas. R.P. de Vaux d exemplos dessas imbricaes de tradues diversas
concernentes criao, aos descendentes de Caim, ao dilvio, ao rapto de
Jos, suas aventuras no Egito; discordncias de nomes referidos a uma mesma
personagem, apresentaes diferentes de acontecimentos importantes.
Assim, o Pentateuco aparece formado de tradies diversas reunidas
mais ou menos diretamente pelos redatores, tendo ora justaposto suas compi-
laes, ora transformado as narraes num propsito de sntese, mas deixando,
entretanto, aparecer com dvidas e discordncias que conduziram os modernos
a uma pesquisa objetiva das origens.
No plano da crtica textual, o Pentateuco oferece, sem dvida, o exemplo
mais evidente das correes efetuadas pelos homens, em diferentes perodos da
histria do povo judeu, das tradies orais e dos textos recebidos de geraes
passadas.
Tendo comeado no sculo X ou IX A.C com a tradio Yahvista que toma a
narrao a partir das origens, ele apenas esboou o destino particular de Israel,
como escreve R.P. de Vaux, para o recolocar no grande desgnio de Deus, con-
cernente humanidade. Ele termina no sculo VI A.C, pela Tradio Sacerdotal
preocupada com a preciso na citao de datas e genealogias
7
.
As raras narraes que esta tradio tem propriamente, escreve R.P. de
Vaux, testemunham suas preocupaes legalistas: o descanso no sbado no f m
da criao, a aliana com No, a aliana com Abrao e a circunciso, a compra
da gruta de Machpela
8
, que d aos patriarcas um ttulo imobilirio em Cana.
Lembramos que a tradio Sacerdotal situa-se em torno da deportao
Babilnia e ao momento da reinstalao na Palestina a partir de 538 A.C H,
7 - Veremos no prximo captulo a que erros na redao, aparecendo depois da con-
frontao com os dados modernos da cincia, so conduzidos os redatores da verso
Sacerdotal a propsito da anguidade do homem sobre a Terra, a situao no tempo e o
desenvolvimento da criao, os erros decorrentes evidentemente das manipulaes dos
textos pelos homens.
8 - Conhecida como o tmulo dos Patriarcas em Hebron, na Cisjordnia.
31
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
portanto, um emaranhado de problemas religiosos e de problemas de pura
poltica.
Apenas para o Gnesis, a fragmentao do Livro em trs fontes princi-
pais bem estabelecida: R.P. de Vaux, nos comentrios de sua traduo, enumera
para cada uma delas as passagens do texto atual do Gnesis que depende dele.
Fundando-se nesses dados podem-se def nir, no importa para qual captulo, as
contribuies das diversas fontes.
Para o que concerne, por exemplo, criao, ao dilvio e ao perodo
indo do dilvio a Abrao, que ocupam os onze primeiros captulos do Gnesis,
v-se suceder, cada um por sua vez, dentro da narrao bblica, uma poro de
texto Yahvista e uma poro do texto Sacerdotal; o texto Elohista no est
presente nesses onze primeiros captulos.
A imbricao dos acrscimos Yahvista e Sacerdotal aparece aqui com
toda clareza. Para a criao at No (cinco primeiros captulos), o arranjo
simples: uma passagem Yahvista alterna com a passagem Sacerdotal do comeo
ao f m da narrao.
Mas, para o dilvio e especialmente para os captulos 7 e 8, o corte do
texto segundo as fontes isola passagens muito curtas indo at a uma s frase.
Para um pouco mais de cem linhas do texto francs, passa-se dezessete vezes
de um texto para outro: da, as improbabilidades e as contradies na leitura
da narrao atual. (Ver adiante o quadro que esquematiza esta repartio das
fontes).
Detalhe da diviso do texto Yahvista e do texto Sacerdotal nos captulos
1 a 11 do Gnesis.
O primeiro nmero indica o captulo.
O segundo, entre parnteses, indica o nmero das frases, s vezes dividi-
das em duas partes designadas pelas letras a e b.
A letra Y designa o texto Yahvista.
A letra S designa o texto Sacerdotal.
Exemplo: a primeira linha do quadro signif ca: do Captulo 1, frase 1 ao
Captulo 2, frase 4 a, o texto atual publicado nas Bblias o texto Sacerdotal.
32
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Captulo Frase Captulo Frase Texto
1 (1) 2 (4a) S
2 (4b) 4 (26) Y
5 (1) 5 (32) S
6 (1) 6 (8) Y
6 (9) 6 (22) S
7 (1) 7 (5) Y
7 (6) - - S
7 (7) 7 (10) Y (modicado)
7 (11) - - S
7 (12) - - Y
7 (13) 7 (16a) S
7 (16b) 7 (17) Y
7 (18) 7 (21) S
7 (22) 7 (23) Y
7 (24) 8 (2) S
8 (2b) - - Y
8 (3) 8 (5) S
8 (6) 8 (12) Y
8 (13a) - - S
8 (13b) - - Y
8 (14) 8 (19) S
8 (20) 8 (22) Y
9 (1) 9 (17) S
9 (18) 9 (27) Y
9 (28) 10 (7) S
10 (8) 10 (19) Y
10 (20) 10 (23) S
10 (24) 10 (30) Y
10 (31) 10 (32) S
11 (1) 11 (9) Y
11 (10) 11 (32) S
Que ilustrao mais clara poder dar manipulaes da Escritura Bblica
pelos homens?
33
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
LIVROS HISTRICOS
Aborda-se com eles a histria do povo judeu depois da entrada na Terra
Prometida (que situamos mais aproximadamente no f m do sculo XIII A.C -),
at a deportao Babilnia, no sculo VI A.C.
O ponto principal aqui o que se pode chamar ponto nacional, apre-
sentado como realizao da palavra divina. Na narrao, alis, d-se pouco valor
exatido histrica: um livro como o de Josu obedece, antes de tudo, aos
motivos teolgicos. A esse respeito, o professor E. Jacob sublinha a contradio
aberta entre a arqueologia e os textos a propsito das pretendidas destruies
de Jeric e de AY.
O livro dos Juzes centrado na defesa do povo eleito contra os ini-
migos que o cercavam e sobre a ajuda dada por Deus. O livro foi muitas vezes
reformado, o que assinala muito objetivamente R.P.A. Lefvre, nas Preliminares
da Bblia de Crampon: os prefcios alternados e os apndices o testemunham. A
histria de Ruth prende-se a essas narraes dos Juzes.
O Livro de Samuel e os livros dos Reis so sobretudo as compilaes
bibliogrf cas, interessando Samuel, Saul, David e Salomo. Seu valor histrico
discutido. E. Jacob encontra nesse ponto de vista numerosos erros, onde
verses de um mesmo acontecimento podem ser duplas ou triplas. Os profetas
Elias, Eliseu, Isaas tm tambm seu lugar, mesclando os tratados histricos e as
lendas. Mas para outros comentadores, como R.P.A. Lefvre, o valor histrico
desses livros fundamental.
O primeiro e o segundo livros das Crnicas, os livros de Esdras e de
Neemias teriam um autor nico, diz o cronista, vivendo no f m do sculo IV
A.C Ele retoma toda a histria da criao at esta poca; suas genealogias no
iam, todavia, alm de David. Com efeito, ele utiliza, sobretudo, o livro de Samuel
e o livro dos Reis, ele as copia maquinalmente sem se preocupar com as incon-
sequncias (E. Jacob) mas acrescenta tambm fatos precisos que a arqueologia
conf rma. H nestas obras, o cuidado de se adaptar a histria s necessidades
teolgicas: o autor, escreve E. Jacob, faz s vezes histria a partir da teologia.
Assim , para explicar que o Rei Manasss, sacrlego e perseguidor, teve um
reino longo e prspero, ele postula uma conversao desse o rei ao longo de
uma jornada na Assria (Crnicas,29 livro,33:11), onde no se trata de nenhuma
fonte bblica ou extra bblica. Os livros de Esdras e de Neemias foram extre-
34
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
mamente criticados, porque plenos de obscuridade e porque dizem respeito a
um perodo que em si mesmo muito mal conhecido, por falta de documentos
extra bblicos, ao perodo do sculo IV A.C.
Classif cam-se entre os livros histricos, os livros de Tobias, de Judith, de
Ester, nos quais as maiores liberdades so tomadas vis--vis da histria: mudan-
as de nomes prprios, inveno de personagens e de acontecimentos, tudo
isto dentro do melhor desgnio religioso. So, com efeito, as novelas de vocao
moralista, enganosas, duvidosas histricas e inexatitudes.
Os outros so os dois livros de Macabeus, que do sobre os aconteci-
mentos do sculo II A.C uma verso to exata quanto possvel da histria desse
perodo e constituem, por isso, testemunhas de grande valor.
O conjunto de livros ditos histricos , portanto, muito disparatado. A
historia tratada de uma maneira to cientf ca quanto fantasista.
OS LIVROS PROFTICOS
Isolam-se sob, este nome as pregaes de diversos profetas classif cados
no Antigo Testamento, fora dos grandes primeiros profetas, cujo ensinamento
evocado em outros livros torno Moises, Samuel, Elias ou Eliseu.
Os Livros Profticos cobrem o perodo do sculo VIII ao II A.C
No sculo VIII A.C, so os livros Amos, Osias, Isaias e Miquias. O
primeiro clebre por sua condenao das injustias sociais, o segundo peia
condenao da corrupo religiosa que lhe valeu um sofrimento na prpria
pele (depois de haver esposado uma prostituta sagrada de um culto pago),
imagem de Deus que sofre a degradao de seu povo, mas lhe d sempre seu
amor. Isaas uma f gura da histria poltica: consultado pelos reis, ele domina
os acontecimentos; o Profeta da Grandeza. A essas obras pessoais, junta-se
a publicao de seus orculos por seus discpulos, e isso at o sculo III A.C:
protestos contra as iniquidades, temor do julgamentos de Deus, anncio da
libertao no tempo do exlio, anncio num perodo mais tardio da volta dos
judeus Palestina. certo que nos seus segundo e terceiro Isaas, o cuidado
proftico se dobra em um cuidado poltico que aparece em plena luz. A pre-
35
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
gao de Miquias, que contemporneo de Isaas, procede das mesmas ideias
gerais.
No sculo VII A.C, so Sofonias, Jeremias, Naum, Habacuque que se
ilustram na pregao. Jeremias acaba mrtir. Seus orculos foram copilados por
Baruch. Ele possivelmente o autor das Lamentaes.
O exlio na Babilnia, no incio do sculo VI A.C, deu nascimento a uma
atividade proftica intensa, onde Ezequiel uma grande f gura sob o ttulo de
consolador de seus irmos, entre os quais ele semeia a esperana. Suas vises
so clebres. O livro de Abdias uma relao com as desgraas de Jerusalm
conquistada.
Depois do exlio que termina em 538 A.C, a atividade proftica prosse-
gue com Ageu e Zacarias para exortar reconstruo do templo. Quando esta
termina, o que est escrito sob o nome de Malaquias comporta os orculos
diversos de natureza espiritual.
Por que o livro de Jonas includo nos livros profticos, j que o Antigo
Testamento no lhe atribui os textos propriamente ditos? Jonas e uma histria
de onde se ressalta um fato principal: a necessria submisso vontade divina.
Daniel um apocalipse desconcertante do ponto de vista histrico,
segundo os comentaristas cristos, escrito em trs lnguas (hebreu, aramaico
e grego). Seria uma obra do sculo II A.C, da poca Macabeana. O autor teria
querido convencer seus compatriotas da poca de, a abominao da desola-
o, que o tempo da libertao estava prximo, para manter sua f (E. Jacob).
OS LIVROS POTICOS E DE SABEDORIA
Eles formam compilaes possuidoras de uma indiscutvel unidade lite-
rria.
Na primeira linha deles, os Salmos, que so um monumento da poesia
hebraica. Compostos por David (para muitos, por alguns padres e, para outros,
alguns levitas) tm por tema os louvores, as splicas, as meditaes. Sua funo
era de ordem litrgica.
36
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O livro de J, o livro da sabedoria e da piedade por excelncia, dataria
de 400 ou 500 A.C.
As Lamentaes sobre a queda de Jerusalm, do incio do sculo VI A.C,
poderiam ter Jeremias como autor.
preciso ainda citar o Cntico dos Cnticos, cantos alegricos antes
de tudo sobre o amor divino, o livro dos Provrbios, coleo de parbolas de
Salomo e outros sbios da corte, Eclesiastes ou Qohelet no qual se debate a
felicidade terrestre e sabedoria.
Como este conjunto, extremamente disparatado pelo contedo, de livros
escritos durante um perodo de sete sculos pelo menos, provindo de fontes
extremamente variadas, que foram em seguida amalgamadas (juntas) no interior
de uma mesma obra, pde, no encadeamento dos sculos, vir a constituir um
todo indissocivel e resultar - com algumas variantes segundo as comunidades
- no livro da Revelao judeu-crist, o cnon, palavra grega qual o sentido
de intangibilidade (imaterial) ligado?
O amlgama no data do cristianismo, mas do judasmo mesmo, sem
dvida, uma primeira etapa no sculo VII A.C, com os livros posteriores vindo
a se juntar aos primeiros. preciso observar, entretanto, o lugar bem privile-
giado concedido em todo tempo aos cinco primeiros formadores da Tora ou
Pentateuco. Cumprindo-se os anncios dos profetas (promessa de um castigo
em funo das faltas), no foi muito difcil se acrescentar seus textos aos livros
precedentemente admitidos.
Houve mesmo promessas de esperanas prodigiosas, feitas pelos mesmos
pregadores. No Sculo II A.C, o cnon dos Profetas foi constitudo.
Os outros livros como os Salmos, em funo de seu papel litrgico,
foram integrados com os outros escritos, como as Lamentaes e os escritos
de sabedoria de Salomo ou de J.
O cristianismo, inicialmente judeu-cristianismo, to bem estudado - ver-
-se- mais adiante - pelos autores modernos como o cardeal Damlon, antes
de sofrer sua transformao sob a inf uncia de Paulo, muito normalmente
recebeu esta herana do Antigo Testamento ao qual os autores dos Evange-
lhos so estreitamente ligados. Mas isso foi feito o expurgo dos Evangelhos
eliminando-se os apcrifos, no se acreditou ser necessria a mesma triagem
para o Antigo Testamento, e aceitou-se tudo por assim dizer; tudo ou quase
tudo.
37
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Quem ousou contestar o que quer que fosse, concernente a este aml-
gama disparatado at o f m da Idade Mdia, no Ocidente, pelo menos? Nin-
gum ou quase ningum. Do f m da Idade Mdia ao incio dos Tempos Mo-
dernos, algumas crticas surgiram; verif cou-se isto, acima, mas as Igrejas sempre
conseguiram impor sua autoridade. Uma autntica crtica textual, certamente,
nasceu em nossos dias mas, se seus especialistas eclesisticos consagraram mui-
to talento para examinar uma inf nidade de pontos de detalhes, eles julgaram
prefervel no ir muito adiante naquilo que eles chamam com eufemismo de
dif culdades. Eles no parecem nada entusiasmados em estudar essas ltimas
luz dos conhecimentos modernos. Se o objetivo so paralelos histricos - prin-
cipalmente quando uma certa concordncia aparece entre eles e as narraes
bblicas -, no se engajou ainda na via de uma comparao franca e aprofundada
com as noes cientf cas, a qual, percebe-se, levaria a contestar a noo at
ento indiscutida da verdade das Escrituras Judeu-Cristos.
O ANTIGO TESTAMENTO E A CINCIA MODERNA
CONSTATAES
Poucos dos assuntos tratados no Antigo Testamento, como alis nos
Evangelhos, do lugar a uma confrontao com os dados dos conhecimentos
modernos. Mas quando h a incompatibilidade entre o texto bblico e a cincia,
a propsito de questes que podemos qualif car de maiores.
Ns j vimos no captulo precedente, que se encontravam na Bblia erros
de ordem histrica e citamos certos deles revelados por alguns exegetas judeus
e cristos. Estes ltimos tm uma tendncia natural de minimizar sua impor-
tncia; eles consideram bem normal que o autor sagrado possa apresentar os
fatos histricos em funo da teologia, escrevendo, portanto, a histria para as
necessidades da causa.
Sob o ngulo da lgica, mais adiante, a propsito do Evangelho de Ma-
teus, as mesmas liberdades tomadas com a realidade e os mesmos comentrios
tendo por objetivo fazer admitir como verdade o que uma contra verdade.
38
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Um esprito objetivo e lgico no pode estar satisfeito com essa maneira de
proceder.
Sob o ngulo da lgica, pode-se ressaltar na Bblia um nmero consider-
vel de contradies e incertezas. A existncia de fontes diferentes que serviram
para a confeco da narrativa pode ser a origem da narrao de um mesmo fato
sob duas apresentaes; mas h mais: os remanejamentos diversos, as adies
posteriores nos textos como os comentrios acrescidos a posteriori, includos
mais tarde na narrao quando de uma nova cpia, tudo isto bem conhecido
dos especialistas da crtica textual e muito honestamente sublinhado por alguns.
Apenas para o Pentateuco, por exemplo, R.P. de Vaux detalhou, na Introduo
Geral, precedendo sua traduo do Gnesis (pgs. 13-14) de numerosssimas
discordncias, que no parece til reproduzir aqui, porque sero feitas citaes
vrias, entre elas, neste estudo. Tira-se da a ideia geral de que no preciso
tomar o texto ao p da letra.
Aqui est um exemplo bem caracterstico:
No Gnesis (6:3), Deus decide, justamente antes do Dilvio, dali em
diante, limitar a vida do homem a cento e vinte anos. Seus dias sero cento e
vinte anos, escreveu Ele. Ora, nota-se mais adiante (Gnesis 10: 1-32) que os dez
descendentes de No tiveram durao da vida que vai de 148 a 600 anos (ver o
quadro no qual marcado nesse captulo, a descendncia de No at Abrao).
A contradio entre essas duas passagens manifesta. A explicao simples.
A primeira passagem (Gnesis 6:3) um texto Yahvista que, como vimos acima,
data, sem duvida, do sculo X A.C. A segunda passagem do Gnesis (11 : 10-32)
um texto muito mais recente (sculo VI A.C.) da tradio Sacerdotal, que ,
na origem destas genealogias, to precisas na enumerao da durao da vida,
quanto inverossmeis, quando se as toma em conjunto.
no Gnesis que existem as incompatibilidades mais evidentes com a
cincia moderna. Estas concernem a trs pontos essenciais:
1 - A criao do mundo e suas etapas;
2 - A data da criao do mundo e a data do aparecimento do homem
sobre a Terra;
3 - A narrao do Dilvio.
39
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A CRIAO DO MUNDO
Como acentua R.P. de Vaux, o Gnesis comea por duas narraes jus-
tapostas da criao. preciso, do ponto de vista do exame de sua compatibi-
lidade com os dados da cincia, examin-las separadamente.
A PRIMEIRA NARRAO DA CRIAO
A primeira narrao ocupa o captulo primeiro e todos os primeiros ver-
sculos do segundo captulo. Ele um monumento de inexatides do ponto de
vista cientf co. preciso encarar sua crtica, pargrafo por pargrafo. O texto
reproduzido aqui o da traduo, segundo a Escola Bblica de Jerusalm:
- Captulo 1, Versculos 1 e 2:
No princpio criou Deus os cus e a terra. E a terra era sem forma e
vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o esprito de Deus se movia sobre
a face das guas.
Pode-se bem admitir que, quando a Terra no havia sido criada, o que
vai transformar o universo, tal como ns o conhecemos, estava mergulhado
nas trevas, mas mencionar a existncia das guas nesse perodo uma alegoria
pura e simples: provavelmente a traduo de um mito. Ver-se- na terceira
parte deste livro que tudo leva a pensar que, no estgio inicial da formao do
universo, existia uma massa gasosa; colocar gua a um erro.
- Versculos 3-5:
Que haja luz e houve luz. Deus viu que a luz era boa e separou a luz
das trevas. Deus chamou a luz, Dia e s trevas, Noite. E houve uma tarde e uma
manh: primeiro dia.
A luz que percorre o universo a resultante de reaes complexas que
passam ao nvel das estrelas, sobre as quais voltaremos na terceira parte desse
livro. Ora, nesse estgio da criao, as estrelas no tinham ainda sido formadas,
segundo a Bblia, pois as luzes do f rmamento no so citadas no Gnesis, a
40
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
no ser no Versculo 14, como uma criao do quarto dia para separar o dia da
noite, para clarear a terra, o que rigorosamente exato. Mas ilgico citar
o efeito produzido (a luz) no primeiro dia, situando a criao do meio de pro-
duo desta luz (as luzes) trs dias mais tarde. Alm disso, colocar no primeiro
dia a existncia de uma tarde e uma manh puramente alegrico: a tarde e a
manh, como elementos de um dia, s so concebidos quando da existncia da
terra e sua rotao sob a iluminao de sua estrela prxima: o Sol.
- Versculos 6-8:
Deus disse: haja f rmamento no meio das guas e que ele separe as
guas e das guas e assim se fez. Deus fez o f rmamento, que separou as guas
que esto sob o f rmamento das guas que esto acima do f rmamento, e Deus
chamou f rmamento, o cu. E houve uma tarde e houve uma manh: segundo
dia.
O mito das guas continua aqui com a separao delas em duas camadas
por um f rmamento que, na narrao do Dilvio, vai deixar passar as guas de
cima que vo se despejar sobre a terra. Essa imagem de uma ciso das guas em
duas massas cientif camente inaceitvel.
- Versculos 9-13:
Deus disse: que as guas que esto debaixo do cu se renam em uma
s massa e que aparea o continente, e assim se fez. Deus chamou o continente
terra e a massa das guas mar e Deus viu que era bom. Deus disse: que a
terra produza verdura: as ervas dando sementes segundo sua espcie, as rvores
dando segundo sua espcie frutos contendo sua semente. E Deus viu que isto
era bom. E houve uma tarde e uma manh: terceiro dia.
O fato de que numa certa poca da histria da terra, quando ela estava
recoberta de gua. Continentes tenham emergido bem aceitvel cientif camen-
te. Mas que um reino vegetal bem organizado, com uma reproduo por gros,
aparea antes que exista o sol (isto ser, diz o Gnesis, pelo quarto dia) e que se
estabelea o revezamento dos dias e das noites absolutamente insustentvel.
- Versculos 14-19:
Deus disse: haja luzeiros no f rmamento do cu para separar o dia da
noite, que eles sirvam de sinais, tanto para as festas como para os dias e os anos;
41
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
que eles sejam os luzeiros no f rmamento do cu para clarear a terra. E assim
se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como potncia do
dia e o pequeno luzeiro como potncia da noite, e as estrelas. Deus os colocou
no f rmamento do cu para clarear a terra, para comandar o dia e a noite, para
separar a luz e as trevas, e Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manh:
quarto dia.
Aqui a descrio do autor bblico aceitvel. A nica crtica que se pode
fazer a esta passagem o lugar que ocupa no conjunto da narrao. Terra e
Lua surgiram, sabe-se, de sua estrela original, o Sol. Colocar a criao do Sol e
da Lua, depois da Terra, absolutamente contrrio s noes mais solidamente
estabelecidas sobre a formao dos elementos do sistema solar.
- Versculos 20-30:
Deus disse: Que as guas fervilhem um fervilhar de seres vivos e aves
voem por sobre a terra contra o f rmamento do cu, e assim se fez. Deus criou
as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que deslizem e que se
movem nas guas seguindo sua espcie, e toda raa alada segundo sua espcie
e Deus viu que isso era bom. Deus abenoou e disse: sejai fecundos, multiplicai-
-vos e enchei a gua dos mares e que os pssaros se multipliquem sobre a terra.
E houve uma tarde, uma manh: quinto dia.
Esta passagem contm af rmaes inaceitveis.
O aparecimento do reino animal se fez, diz o Gnesis, a princpio, a partir
dos animais marinhos e das aves. Segundo esta narrao bblica, somente no
dia seguinte - ver-se- nos versos subsequentes - que a prpria terra vai ser
povoada de animais.
Certamente, a origem da vida marinha: esta questo ser considerada
a terceira parte do livro. A partir da, a terra foi, se se pode dizer, colonizada
pelo reino animal, e desses animais vivendo na superfcie do solo, uma espcie
particular de rpteis chamados pseudosuchiens, que viviam na era secundria,
que provm pensa-se - os pssaros; numerosos caracteres biolgicos comuns
a essas duas classes autorizam esta deduo. Ora, os animais terrestres no so
mencionados pela Gnese a no ser no sexto dia, depois do aparecimento dos
pssaros. Esta ordem de apario dos animais terrestres e dos pssaros no
aceitvel.
42
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Versculos 24-31:
Deus disse: que a terra produza seres vivos segundo sua espcie: ani-
mais domsticos, rpteis, feras segundo sua espcie e assim se fez. Deus fez as
feras segundo sua espcie, os animais domsticos segundo sua espcie e todos
os rpteis do solo segundo sua espcie e Deus viu que isso era bom. Deus
disse: faamos o homem nossa imagem, como a nossa semelhana e que eles
dominem (sic) sobre os peixes do mar, as aves do cu, os animais domsticos,
todas as feras e todos os rpteis que se rastejam sobre a terra. Deus criou o
homem sua imagem, imagem de Deus, Ele o criou, homem e mulher. Ele os
criou. Deus os abenoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei
a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves do cu
e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra. Deus disse: Eu vos dou
todas as ervas que do semente, que esto sobre a face da terra; e todas as
rvores que tm frutas que do sementes; isto ser vosso alimento. A todas as
feras, a todas as aves do cu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que animado
de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas; e assim se fez. E
viu Deus tudo quanto tinha feito: e era muito bom. E houve uma tarde e uma
manh: sexto dia.
E a descrio da concluso da criao na qual o autor enumera todas as
criaturas vivas no mencionadas anteriormente, e evoca as subsistncias diversas
colocadas disposio dos homens e dos animais.
O erro, acabamos de ver, o de ter colocado o aparecimento dos ani-
mais terrestres depois dos pssaros. Mas o aparecimento do homem sobre a
terra situado corretamente depois da apario das outras classes vivas.
A narrao da criao termina pelos trs primeiros versos do Captulo 2:
Assim foram concludos o cu e a terra, com todo seu exrcito (sic).
Deus concluiu no stimo dia a obra que Ele tinha feito e no stimo dia Ele
descansou, depois de toda obra que Ele havia feito. Deus abenoou o stimo dia
e o santif cou, porque Ele tinha descansado depois de toda sua obra da criao.
Esta a histria do cu e da terra, quando foram criados.
Esta narrao do stimo dia pede comentrios.
Primeiro, sobre o sentido das palavras. O texto o da traduo da Es-
cola Bblica de Jerusalm. Exrcito signif ca aqui a multido de seres criados,
segundo toda probabilidade. Quanto expresso Ele descansou, a maneira
43
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
do diretor da Escola Bblica de Jerusalm traduzir a palavra hebraica Shabbath,
Que quer dizer exatamente Ele repousou, donde o dia do repouso judeu que
transcrito em francs por sbado.
bem evidente que esse repouso que Deus teria tido, depois de haver
efetuado um trabalho de seis dias, uma lenda, mas ela tem uma explicao.
preciso no esquecer que a narrao da criao, examinada aqui, a tradio
chamada Sacerdotal, escrita pelos padres ou escribas, herdeiros espirituais de
Ezequiel, o profeta do exlio na Babilnia, no sculo VI A.C Sabe-se que os
padres retomaram as verses Yahvista e Elohista do Gnesis, remodelaram-nas a
seu critrio, segundo suas prprias preocupaes, de onde R.P. de Vaux escreveu
que o carter legalista era essencial. Demos acima um sumrio disto.
Enquanto que o texto Yahvista da criao, de muitos sculos anterior ao
texto Sacerdotal, no fez nenhuma meno ao sbado de Deus fatigado de seu
trabalho da semana, o autor Sacerdotal o introduziu em sua narrao. Ele o divi-
de em dias, com o sentido muito preciso de dias da semana, e o eixo sobre esse
descanso sabtico, que preciso justif car aos olhos dos f is, sublinhando que
Deus foi o primeiro a respeitar. A partir dessa necessidade prtica, a narrao da
criao conduzida com sentido aparente lgica religiosa, mas de maneira que
os dados da cincia permitem qualif car de fantasista.
Essa integrao no quadro de uma semana de fases sucessivas da criao,
pretendida pelo autor Sacerdotal, num objetivo de iniciao observncia reli-
giosa, no defensvel do ponto de vista cientf co. Sabe-se perfeitamente, em
nossos dias, que a formao do universo e da terra, que ser tratada na terceira
parte do livro, a propsito dos dados alcornicos concernentes criao, foi
efetuada por etapas, estendendo-se em perodos de tempos extremamente lon-
gos, cuja durao os dados modernos no permitem determinar, nem mesmo
aproximadamente. Mesmo que a narrao terminasse na tarde do 6 dia, e no
comportasse a meno do 7 dia do sbado, onde Deus teria repousado, mes-
mo que, como para a narrao alcornica se estivesse autorizado a considerar
que se trata, de fato, de perodos no def nidos, em vez de dias propriamente di-
tos, a narrao Sacerdotal no seria menos aceitvel, porque a sucesso de seus
episdios est em contradio formal com as noes cientf cas elementares.
Assim, a narrao Sacerdotal da criao aparece como uma engenhosa
construo imaginativa, que tinha um objetivo muito diferente que o de fazer
conhecer a verdade.
44
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
SEGUNDA NARRAO
A segunda narrao da criao contida no Gnesis, que faz ligao
sem transio e sem comentrios narrao precedente, no serve s mesmas
crticas.
Lembremos que essa narrao de data muito mais antiga, de trs
sculos aproximadamente. Ela muito curta. Ela se estende muito mais sobre
a criao do homem e do paraso terrestre que sobre a criao da terra e do
cu, que ela evoca muito sucintamente. No tempo em que YAHVEH Deus fez a
terra e o cu, no havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e ne-
nhuma erva dos campos tinha ainda brotado, porque YAHVEH Deus no tinha
feito chover sobre a terra, e no havia homem para cultivar o solo. Entretanto,
YAHVEH modelou o homem com a argila do solo e insuf ou em suas narinas
um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente (Cap. 2:4b-7).
Tal a narrao Yahvista que f gura nos textos bblicos das Bblias
que ns possumos atualmente. Esta narrao, qual foi juntada mais tarde a
narrao Sacerdotal, era inicialmente to curta? Ningum poder dizer se o tex-
to Yahvista foi multiplicado no decorrer dos tempos; ningum poder dizer se
algumas linhas que ns possumos representam bem tudo que poderia conter
o texto mais antigo da Bblia sobre a criao.
Essa narrao Yahvista no menciona a formao da terra propria-
mente dita nem a do cu. Ela d a entender que, no momento em que Deus
criou o homem, no havia vegetao terrestre (e no havia ainda chuva), ainda
que as guas, vindas da terra, tivessem coberto a face do solo. A sequncia do
texto d a conf rmao: Deus planta um jardim ao mesmo tempo em que o
homem criado. Assim, portanto, o reino vegetal aparece ao mesmo tempo
que o homem sobre a terra, quando depois de muito tempo ela era portadora
de uma vegetao, embora no se possa dizer quantas centenas de milhes de
anos se passaram entre os dois acontecimentos.
Esta a nica crtica que se pode fazer ao texto YAHVISTA: no
situando no tempo a criao do homem em relao formao do mundo e da
terra, que o texto Sacerdotal coloca na mesma semana, ele escapa de uma crtica
grave que se endereava a esse ltimo.
45
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
DATA DA CRIAO DO MUNDO
DATA DO APARECIMENTO DO HOMEM SOBRE A TERRA
Estabelecido conforme os dados do Antigo Testamento, o calendrio
judeu situa essas datas com preciso: a segunda parte do ano cristo 1975 cor-
responde ao incio do ano 5.736 da criao do mundo. O homem, cuja criao
de alguns dias posterior, possui, portanto, a mesma antiguidade cifrada em
anos pelo calendrio judeu.
H certamente uma correo a fazer em razo dos clculos do tempo,
que se expressava inicialmente em anos lunares, enquanto o calendrio ociden-
tal baseado em anos solares. Mas a correo de 3% que ser efetuada, se se
quer ser absolutamente exato, de bem pouca importncia. Para no complicar
os clculos, prefervel se abster. O que conta aqui uma ordem de grandeza e
pouco importa se o nmero de anos de milnio calculado com uma margem
de erros de trinta anos. Para estar mais perto da verdade digamos que, nesta
avaliao hebraica, situa-se a criao do mundo por volta de trinta e sete sculos
A.C.
O que nos ensina a cincia moderna? Seria difcil de responder no
que concerne formao do universo. Tudo o que se pode calcular a poca
da formao do sistema solar, que susceptvel de ser situado no tempo com
uma aproximao satisfatria. Calcula-se em quatro bilhes e meio de anos o
tempo que dela nos separa. Mede-se, ento, a margem que separa a realidade,
hoje bem estabelecida (sobre a qual se discorda na terceira parte desta obra),
com os dados extrados do Antigo Testamento. Eles decorrem do exame minu-
cioso do texto bblico. O Gnesis fornece as indicaes bem precisas sobre o
tempo transcorrido entre Ado e Abrao. Para o perodo que vai de Abrao
era crist, as informaes fornecidas no so suf cientes. E preciso complet-las
com outras origens.
DE ADO A ABRAO
O Gnesis fornece, em Suas genealogias nos Captulos 4, 5, 11, 21 e
25, os dados extremamente precisos sobre todos os ancestrais de Abrao em
linha direta depois de Ado; fornecendo a durao da vida de cada um, a idade
do pai no nascimento do f lho, ele permite facilmente estabelecer as datas do
46
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
nascimento e da morte de cada ancestral em relao criao de Ado, como
est indicado no quadro seguinte:
Data de nascimento Durao de vida Data de falecimento aps
a criao de Ado
1 Ado - 930 930
2 Set 130 912 1042
3 Enos 235 905 1140
4 Cainan 325 910 1235
5 Mahalael 395 895 1290
6 Jared 460 962 1422
7 Enoque 622 965 987
8 Matusalm 687 969 1656
9 Lameque 874 771 1651
10 No 1056 950 2006
11 Sem 1556 600 2156
12 Arfaxade 1658 438 2096
13 Sel 1693 433 2122
14 ber 1723 464 2187
15 Pelegue 1757 239 1996
16 Re 1787 239 2026
17 Serugue 1819 230 2049
18 Nahor 1849 148 1997
19 Ter 1878 205 2083
20 Abrao 1948 175 2123
Este quadro estabelecido segundo os dados provenientes todos do
texto Sacerdotal do Gnesis: o nico texto bblico que d as precises desta
ordem. Deduz-se dele que Abrao, segundo a Bblia, teria nascido no ano 1948
depois de Ado.
47
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
DE ABRAO ERA CRIST
A Bblia no fornece, para este perodo, nenhuma informao cifrada,
susceptvel de conduzir as avaliaes to precisas quanto as do Gnesis para
os descendentes de Abrao. Para avaliar o tempo que separa Abrao de Jesus,
preciso recorrer a outras fontes. Situa-se atualmente a poca de Abrao, em
cerca de dezoito sculos A.C., com pequena margem de erro. Este dado, com-
binado com as indicaes do Gnesis sobre o intervalo que separa Abrao de
Ado, levar a situar Ado por volta de trinta e oito sculos A.C Esta avaliao
incontestavelmente falsa: sua inexatido vem de erro, contido na Bblia, sobre a
durao do perodo Ado-Abrao, sobre o qual a tradio judaica se fundamen-
ta, hoje, para estabelecer seu calendrio. Em nossos dias, podemos contestar a
incompatibilidade dos defensores tradicionais da verdade bblica com os dados
modernos dessas avaliaes fantasistas, apresentados pelos sacerdotes judeus do
sculo VI A.C. Estas avaliaes serviram de base, durante longos sculos, para
situar os acontecimentos da Antiguidade, no tempo, em relao a Jesus.
As Bblias, editadas antes da poca moderna, apresentam, geralmente,
aos leitores numa nota prvia explicativa, a cronologia dos acontecimentos
desenrolados desde a criao do mundo at a poca quando esses livros foram
editados; as cifras variam um pouco segundo a poca. Por exemplo, a Vulgate
Clementina de 1621 dava indicaes, situando, todavia, Abrao um pouco antes,
e colocando a criao por volta do sculo XI A.C. A Bblia Poliglota de Walton,
editada no sculo XVII, oferecia ao leitor, fora dos textos bblicos em vrias ln-
guas, quadros iguais queles estabelecidos aqui para os ascendentes de Abrao.
Um pouco, mais ou menos, todas as avaliaes concordavam com as cifras
citadas aqui. Quando chegou a poca moderna no foi mais possvel ao editor
manter tais cronologias fantasistas, sem estar em oposio com as descobertas
cientf cas, que colocam a criao em uma poca bem anterior. Contentou-se
em suprimir tais quadros e notas prvias explicativas, mas eximiu-se de prevenir
o leitor da caducidade dos textos brancos, sobre os quais se tinha baseado
anteriormente para redigir tais cronologias, e quais os que no se poderia mais
considerar como que expressando a verdade. Preferiu-se jogar sobre os olhos
um vu pudico e encontrar frmulas de sbia dialtica para que o texto fosse
aceito tal como era ele outrora, sem nenhuma diminuio. assim que as ge-
nealogias do texto Sacerdotal da Bblia encontram sempre uma sada honrosa,
ainda que no se possa mais racionalmente, no sculo XX, contar o tempo
fundamentando-se em tal f co.
48
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Quanto data do aparecimento do homem sobre a terra, os dados
cientf cos modernos no permitem sua def nio, a no ser alm de um certo
limite. Pode-se estar convencido de que o homem existia sobre a terra, com
sua capacidade de inteligncia e de ao, que o diferencia de seres vivos que
parecem anatomicamente vizinhos, posteriormente a uma data calculvel, mas
ningum pode situar de maneira precisa a data de seu aparecimento. Pode-se
af rmar, todavia, hoje, que foram encontrados vestgios de uma humanidade
pensante e atuante, cuja antiguidade se calcula por unidades da ordem de deze-
nas de milhares de anos.
Esta data aproximada se refere ao tipo humano pr-histrico, des-
coberto como sendo o mais recente, do gnero neo-antrpico (o homem de
Cro-Magnon). Na verdade, outras descobertas de restos aparentemente huma-
nos foram feitas em mltiplos pontos da terra, concernentes a tipos menos
evoludos (paleo-antrpicos), cuja ordem de grandeza de antiguidade poderia
ser de uma centena de milhares de anos. Mas, seriam eles homens autnticos?
No importa o que sejam, os dados cientf cos concernentes aos neo-
-antrpicos so suf cientemente precisos para situ-los muito alm de uma poca
onde o Gnesis situa os primeiros homens. H, portanto, incompatibilidade
manifesta do que se pode deduzir dos dados numricos do Gnesis quanto
data do aparecimento do Homem sobre a terra, e aos melhores conhecimentos
cientf cos estabelecidos em nosso tempo.
O DILVIO
Os Captulos 6, 7 e 8 do Gnesis so consagrados narrao do di-
lvio. Exatamente, h duas narraes no colocadas lado a lado, mas dissociadas
em passagens intricadas umas nas outras, com uma aparncia de coerentes na
sucesso dos diversos episdios. H, em realidade, nesses trs captulos, con-
tradies f agrantes. Aqui, ainda, elas se explicam pela existncia de duas fontes
claramente distintas: a fonte Yahvista e a fonte Sacerdotal.
Como j foi visto, elas formavam uma baguna contraditria: cada
texto original foi decomposto em pargrafos ou em frases, os elementos de
uma fonte alternando com os elementos de outra fonte, de forma que se possa,
49
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
por toda a narrao de uma fonte a outra, dezessete vezes em aproximadamente
cem linhas do texto francs.
A narrao , num conjunto, o que segue:
Sendo a perverso dos homens geral, Deus decidiu destrui-los com
todos os outros seres vivos. Ele preveniu No e lhe ordenou a construo de
uma Arca onde faria entrar sua mulher, seus trs f lhos e suas trs mulheres, as-
sim como outros seres vivos. Para estes ltimos, as duas origens so diferentes:
uma passagem da narrao (de origem Sacerdotal) indica que No tomar um
casal de cada espcie; depois, na passagem seguinte (de origem Yahvista), Deus
ordena que tomasse, dentre os animais ditos puros, sete de cada espcie, macho
e fmea, e, dentre os animais ditos impuros, um s par. Mas, um pouco mais
adiante, determinado que No no far entrar efetivamente na arca apenas um
casal de cada animal. Os especialistas, como R.P de Vaux, af rmam que se trata
aqui de uma passagem de narrao Yahvista modif cada.
Um pargrafo (de origem Yahvista) indica que o agente do dilvio a
gua da chuva, mas outra causa do dilvio (de origem Sacerdotal) apresentada
como dupla: a gua da chuva e das fontes terrestres.
A terra inteira f cou submersa at o cimo das montanhas. Toda vida
foi aniquilada. Depois de um ano, No saiu da arca, que estava pousada sobre o
monte Ararat depois da baixa das guas.
Acrescentamos ainda que, segundo as informaes, o dilvio tem
uma durao diferente: quarenta dias de elevao para o texto Yahvista, cento e
cinquenta dias para o texto Sacerdotal.
O texto Yahvista no determina em que poca se coloca o aconte-
cimento na vida de No, mas o texto Sacerdotal o situa quando No teria
seiscentos anos. Este mesmo texto d as indicaes, por sua genealogia, sobre
sua localizao em relao a Ado e em relao a Abrao. Tendo No nascido,
segundo clculos feitos aps as indicaes do Gnesis, 1056 anos depois de
Ado (ver o quadro dos ancestrais de Abrao), o Dilvio aconteceu, portanto,
1655 anos aps a criao de Ado. Em relao a Abrao, o Gnesis situa o dil-
vio 292 anos antes do nascimento desse patriarca.
Ora, segundo o Gnesis, o dilvio teria atingido todo o gnero
humano e todos os seres vivos criados por Deus teria sido destrudos sobre a
50
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
terra: a humanidade seria reconstruda a partir dos trs f lhos de No, de suas
mulheres, de tal maneira que, quando, cerca de trs sculos mais tarde, nascesse
Abrao, ele encontraria uma humanidade refeita em sociedade. Como, em to
pouco tempo, esta reconstituio poderia ter se produzido? Esta simples cons-
tatao tira do texto verossimilhana.
Mais tarde, os dados histricos demonstram sua incompatibilidade
com os conhecimentos modernos. Com efeito, situa-se Abrao nos anos 1800-
1850 A.C Se o dilvio teve lugar, como o Gnesis sugere, por suas genealogias,
aproximadamente trs sculos antes do Abrao, seria necessrio coloc-lo no
sculo XXI ou XXII A.C. a poca em que conhecimentos histricos moder-
nos permitem af rmar: j f oresciam civilizaes em vrios pontos da Terra e
cujos vestgios passaram posteridade.
, por exemplo para o Egito, o perodo que precede o Mdio Im-
prio (2100 A.C.), aproximadamente a data do primeiro perodo intermedirio
antes da 11 dinastia. na Babilnia a 3 dinastia de Ur. Ora, sabe-se perfeitamen-
te que no houve interrupo nessas civilizaes, portanto, nada de destruio
envolvendo toda a humanidade como a Bblia quer.
No se pode, por conseguinte, considerar os trs textos bblicos
como trazendo aos homens uma revelao dos fatos, conforme a verdade. For-
ado admitir, se se quer objetivo, que os textos em questo, chegados at ns,
no representam a expresso da verdade. Deus teria revelado outra coisa que
no a verdade? No se pode conceber, com efeito, a ideia de um Deus instruin-
do os homens com a ajuda de f ces e, mais ainda, de f ces contraditrias.
Chega-se ento, naturalmente, a levantar a hiptese de uma alterao pelos
homens, ou bem de tradies verbalmente de gerao a gerao, ou ento dos
textos quando essas tradies foram f xadas. Quando se sabe que uma obra
como o Gnesis foi modif cada pelo menos duas vezes, o espao de trs sculos,
como admirar-se de se encontrar nela dvidas ou narraes incompatveis com
a realidade das coisas, depois que os progressos dos conhecimentos humanos
permitiram, se no tudo saber, pelo menos, possuir de certos acontecimentos
um conhecimento suf ciente para que se possa julgar o seu grau de compatibi-
lidade com as narraes antigas concernentes a estes acontecimentos? Haveria
coisa mais lgica do que levar-se em conta esta interpretao dos erros dos
textos bblicos que ref etem apenas posies dos homens? pena que ela no
seja considerada pela maioria dos comentadores, tanto judeus como cristos.
Tampouco, os argumentos invocados por eles merecem que se lhes d ateno.
51
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
POSIO DOS AUTORES CRISTOS DIANTE DOS
ERROS CIENTIFICOS DOS TEXTOS BIBLICOS:
SEU EXAME CRTICO
Causa perplexidade a diversidade das reaes dos comentadores cris-
tos perante a existncia desse acmulo de erros, incertezas e contradies.
Alguns o admitem em parte e no hesitam, em suas obras, em abordar pro-
blemas espinhosos. Outros se desviam alegremente das af rmaes inaceitveis,
ocupam-se em defender o texto palavra por palavra e procuram convencer
com declaraes apologticas e grande esforo de argumentos frequentemente
inesperados, esperando fazer esquecer o que a lgica rejeita.
R.P. de Vaux admite, em sua Introduo Traduo do Gnesis a exis-
tncia dessas crticas e concorda at mesmo que elas so bem fundamentadas,
mas, para ele, a reconstituio objetiva dos acontecimentos do passado sem
interesse. Que a Bblia tenha tomado, escreve ele em suas anotaes, a lembran-
a de uma ou vrias inundaes desastrosas do vale do Tigre e do Eufrates, que
a tradio tivesse aumentado as dimenses de um cataclismo universal pouco
importa; somente, e o essencial, o autor sacro revestiu essa lembrana com
um ensinamento eterno sobre a justia e a misericrdia de Deus sobre a malcia
do homem e a salvao dada ao justo.
Assim justif cada a transformao de uma lenda popular em um
acontecimento em escala divina - e como tal prope-se a oferecer crena dos
homens a partir do momento em que um autor a utilizou para lhe servir
de ilustrao a um ensinamento religioso. Uma tal posio apologtica justif ca
todos os abusos humanos na confeco das escrituras, de onde se pretende
que elas sejam sagradas e contenham a Palavra de Deus. Admitir tais ingerncias
humanas no divino cobrir todas as manipulaes humanas dos textos bblicos.
Sob uma viso teolgica, toda manipulao torna-se legtima e justif cam-se,
assim, as dos autores Sacerdotais do sculo VI, com preocupaes legalistas
que culminaram nas narraes fantasistas que se conhecem.
Um nmero importante de comentadores cristos achou engenhoso
explicar os erros, incertezas e contradies nas narraes bblicas, dando prio-
ridade desculpa que tinham os autores bblicos de se expressar em funo
dos fatores sociais de uma cultura ou mentalidades diferentes, e disso resultou
a def nio de gneros literrios particulares. A introduo desta expresso
52
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
na dialtica sutil dos comentadores dissimula ento, todas as dif culdades. Toda
contradio entre dois textos teria como explicao a diferena na maneira
de se expressar de cada autor, seu gnero literrio particular. Certamente, o
argumento no admitido por todos, pois, verdadeiramente, falta-lhe seriedade.
Ele no est, entretanto, totalmente em desuso em nossos dias, e ver-se-, a pro-
psito do Novo Testamento, de que maneira abusiva se tentam explicar assim
as contradies f agrantes dos Evangelhos.
Uma outra maneira de fazer aceitar o que a lgica rejeitaria, se se
aplicasse ao texto litrgico, envolver o texto em questo de consideraes
apologticas. A ateno do leitor desviada do problema crucial da verdade
mesma da narrao, para se f xar em outros problemas.
As ref exes do cardeal Danilon sobre o Dilvio, apresentado na
revista Dieu Vivant
9
sob ttulo Dilvio, Batismo e Julgamento, decorrem desse
modo de expresso. Ele escreve: A mais antiga tradio da Igreja viu na teologia
do Dilvio uma f gura de Cristo e da Igreja. um episdio de uma signif cao
eminente... um julgamento que atinge a raa humana inteira. Aps ter citado
Orgenes que, nas suas Homlias sobre Ezechiel, fala do naufrgio do universo
inteiro salvo na Arca, o cardeal evoca o valor do nmero oito expressando o
nmero de pessoas salvas pela Arca (No e sua mulher, seus trs f lhos e suas
trs esposas). Ele retoma por sua conta o que escrevia Justino no Dialogo.
Eles ofereciam o smbolo do oitavo dia, no qual nosso Cristo apareceu res-
suscitado dos mortos, e ele escreveu: No, primognito de uma nova criao,
uma imagem do Cristo que realizou o que No havia representado. Ele pros-
segue a comparao entre, de uma parte, No, salvo pela madeira da Arca e
pela gua que faz f utuar e, de outra parte, a gua do batismo (gua do Dilvio
de onde nasce uma humanidade nova), e a madeira da Cruz. Ele insiste sobre
o valor desse simbolismo e conclui dando importncia riqueza espiritual e
doutrinal do sacramento do Dilvio (sic).
Haveria muito a dizer sobre todas essas aproximaes apologticas.
Elas comentam - lembremo-nos - um acontecimento, cuja realidade no de-
fensvel, em escala universal e na poca em que a Bblia o situa. Com um co-
mentrio como aquele do Cardeal Danilon, volta-se poca medieval, em que
era preciso receber o texto como ele era e em que toda interpretao, que no
a conformista, estava fora de propsito.
E reconfortante, entretanto, constatar que anteriormente a essa po-
ca do obscurantismo imposto, podem-se depreender tomadas de posio bem
9 - N 38, 1947, p. 95-112.
53
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
lgicas, como a de Santo Agostinho que procede de uma ref exo singularmen-
te adiantada para seu tempo.
A poca dos Padres da Igreja, os problemas de crtica textual tinham
sido colocados, pois Santo Agostinho os evoca em sua Carta n 82, da qual a
passagem mais caractersticas a seguinte:
Foi unicamente nesses livros da Escritura que chamamos cannicos
que aprendi a dar uma ateno e um respeito tais que eu creio f rmemente,
que nenhum dos seus autores se enganou, escrevendo. Quando nesses livros
eu reencontro uma af rmao que parece contradizer a verdade, ento no
duvido que, ou bem o texto (de meu exemplar) no seja falvel, ou ento que
o tradutor no reproduziu corretamente o texto original, ou ainda que minha
inteligncia no seja def ciente.
Para Santo Agostinho, no era concebvel que um texto sacro pu-
desse conter erros. Santo Agostinho def nia muito claramente o dogma da
inerncia. Diante de uma passagem parecendo contrria verdade, ele visualizava
a pesquisa de uma causa e no exclua a hiptese de uma origem humana. Uma
atitude assim a de um crente dotado de senso crtico. Na poca de Santo
Agostinho, no existia a possibilidade de confrontao entre o texto bblico e
a cincia. Uma ampla viso idntica sua permitiria superar muitas dif culdades
levantadas em nossa poca pela confrontao de certos textos bblicos com os
conhecimentos cientf cos.
Os especialistas de nosso tempo se esforam, muito ao contrrio, em
defender o texto bblico de toda acusao de erro. R.P. de Vaux nos d, na sua
Introduo ao Gnesis, as razes que o levaram a essa defesa a qualquer preo
do texto, mesmo se ele manifesta, histrica ou cientif camente inaceitvel. Ele
nos recomenda no olhar a histria bblica segundo as regras do gnero hist-
rico, como os modernos praticam, como se pudessem existir vrias maneiras
de escrever a histria. Contada de maneira inexata, a histria f ca - todo mundo
admite - um romance histrico. Mas aqui, ela escapa s normas decorrentes de
nossas concepes. O comentador bblico recusa todo controle das narraes
bblicas pela geologia, pela paleontologia, e pelos dados da pr-histria. A Bblia
no depende, escreve ele, de nenhuma dessas disciplinas, e se quisesse confron-
t-la com os dados dessas cincias, no se poderia chegar seno a uma oposio
irreal ou a um conformismo f ctcio
10
. preciso notar que suas ref exes so
feitas a propsito do que no Gnesis no est de modo algum de acordo com
os dados da cincia moderna, em especial os onze primeiros captulos. Mas,
10 - Introduo ao Gnesis, p. 35.
54
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
se algumas narraes so perfeitamente verif cadas em nossos dias, nesse caso
certos episdios dos tempos dos patriarcas, o autor no deixa de invocar os
conhecimentos modernos para apoiar a verdade bblica. Ele escreve
11
:
As suspeitas que recaam sobre essas narraes deveriam ceder dian-
te do testemunho favorvel que lhes trazem a histria e a arqueologia orientais.
De outro modo: se a cincia til para conf rmar a narrao bblica, ns a
invocamos, mas se ela a invalida, fazer-lhe referncia no admissvel.
Para conciliar o inconcilivel, isto , a teoria da verdade da Bblia com
o carter inexato de certos fatos relatados nas narraes do Antigo Testamento,
telogos modernos aplicaram-se em rever os conceitos clssicos da verdade.
Seria sair do plano deste livro, fazer uma exposio detalhada das consideraes
sutis desenvolvidas longamente nas obras que tratam da verdade da Bblia,
como a de O. Loretz (1972), Qual a Verdade da Bblia?
12
. Contentemo-nos em
mencionar simplesmente seu julgamento concernente cincia:
O autor nota que o Conclio Vaticano II evitou fornecer regras para
distinguir entre erro e verdade na Bblia. Consideraes fundamentais mostram
que isto impossvel, pois que a Igreja no pode decidir da verdade e da falsi-
dade dos mtodos cientf cos, de tal maneira que ela resolveria, em princpio e
de modo geral, a questo da verdade da Escritura.
E bem evidente que a Igreja no saberia se pronunciar sobre o valor
de um mtodo cientf co como meio de acesso ao saber. Trata-se aqui de ou-
tra coisa. No se trata de discutir as teorias, mas de fatos bem estabelecidos. E
necessrio ser um grande clrigo, em nossa poca, para saber que o mundo no
foi criado e que o homem no apareceu sobre a terra h trinta e sete ou trinta
e oito sculos, e af rmar que essa estimativa sada das genealogias bblicas possa
ser falsa sem risco de se enganar? O autor citado aqui no poderia ignor-la.
Suas af rmaes sobre a cincia no tm outro f m seno desviar o problema,
para no ter de trat-lo como deveria ser tratado.
A lembrana de todas essas posies, tomadas pelos autores cristos
diante dos erros cientf cos dos textos bblicos, ilustram bem o mal-estar que
elas trazem, e a impossibilidade de def nir uma posio lgica que no a de re-
conhecimento de sua origem humana, e da impossibilidade de as aceitar como
11 - Introduo ao Gnesis, p. 34.
12 - Do Centurion, Paris.
55
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
fazendo parte de uma revelao.
Este mal-estar reinante nos meios cristo, referente revelao, foi
traduzido por ocasio do Conclio Vaticano II (1962-1965), onde foi preciso nada
menos que cinco redaes, para que se chegasse a um acordo sobre o texto
f nal, depois de trs anos de discusses, e que f ndou esta dolorosa situao
que ameaou enterrar o Conclio, segundo a expresso de Monsenhor Weber,
na sua introduo do documento conciliar n94 sobre a Revelao
13
.
Duas frases desse documento, concernentes ao Antigo Testamento
(Cap. IV, p. 53), evocam as imperfeies e a caducidade de certos textos, de uma
maneira que no permite nenhuma contestao:
Considerada a situao humana que precede a salvao instaurada
por Cristo, os livros do Antigo Testamento permitem a todos conhecer quem
Deus e quem o homem, assim como a maneira pela qual Deus, em sua justia
e em sua misericrdia, age com os homens. Esses livros, apesar do que conte-
nham de imperfeito e de caduco (sic), so, entretanto, testemunhas de uma
verdade pedaggica divina.
No seria melhor dizer, pelos qualif cativos de imperfeito e de ca-
duco aplicados a certos textos, que estes podem prestar-se crtica e at serem
abandonados? O princpio est claramente admitido. Este texto faz parte de
uma declarao conjunta que, por ter sido def nitivamente votada por 2.344
votos contra 6, no perfaz essa aparente quase-unanimidade. Com efeito, encon-
tramos nos comentrios do documento of cial, sob a assinatura de Monsenhor
Weber, uma frase que corrige manifestamente a af rmao da caducidade de
certos textos, contidos na declarao solene do Conclio: Sem dvida certos
livros da Bblia israelita tm um alcance temporrio e contm neles qualquer
coisa imperfeita.
Caduco, expresso da declarao of cial, no seguramente sin-
nimo de alcance temporrio, expresso do comentador, e, quanto ao epteto
israelita, curiosamente acrescido por este ltimo, ele sugeriria que o texto
conciliar pde criticar a nica verso em hebreu, o que no exata pois foi
simplesmente o Antigo Testamento que, por ocasio desse Conclio, foi objeto
de um julgamento concernente imperfeio e caducidade de algumas de
suas partes.
13 - Do Centurion, 1966, Paris.
56
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
CONCLUSES
preciso olhar as Escrituras bblicas, no as revestindo artif cialmente
com qualidade que se queira que elas possuam, mas examinando objetivamente
o que elas so. Isto implica no somente o conhecimento dos textos, mas ainda
da sua histria. Esta ltima permite, com efeito, fazer uma ideia das circunstn-
cias que conduziram aos remanejamentos textuais ao longo dos sculos, lenta
formao da compilao tal, como ns a possumos, com subtraes e adies
numerosas.
Estas noes tornaram perfeitamente plausvel que se possa encon-
trar ao Antigo Testamento, em verses diferentes de uma mesma narrao,
contradies, erros histricos, dvidas e incompatibilidades com os dados cien-
tf cos bem estabelecidos. Estas ltimas so absolutamente naturais em todas as
obras humanas antigas.
Como no encontr-las nos livros escritos sob as condies em que
foi elaborado o texto bblico?
Antes mesmo que os problemas cientf cos pudessem ser colocados,
numa poca em que no se podia, portanto, julgar seno duvidosos ou contra-
dies, um homem de bom senso como Santo Agostinho, considerando que
Deus no podia ensinar aos homens o que no correspondia realidade, colo-
cou o princpio da impossibilidade da origem divina de uma af rmao contrria
verdade. Ele estava prestes a excluir de todo o texto sacro o que lhe pareceu
que, por esse motivo, devia ser excludo.
Mais tarde, em uma poca em que se constatou a incompatibilidade
com os conhecimentos modernos de certas passagens da Bblia, houve recusa
em seguir tal atitude. Assistiu-se ento ecloso de toda uma literatura, visando
a justif car a conservao na Bblia, contra tudo e contra todos, dos textos que
ali no teriam mais o seu lugar.
O Conclio Vaticano II (1962-1965) atenuou fortemente essa intran-
signcia, introduzindo uma ressalva para Os livros do Antigo Testamento que
contm o imperfeito e o caduco. Permaneceu, ela um voto piedoso ou ser
ela seguida de uma mudana de atitude perante o que no mais aceitvel no
sculo XX, nos livros que eram destinados a ser, fora de toda manipulao hu-
mana, apenas as testemunhas de uma verdadeira pedagogia divina?
57
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
EVANGELHO
INTRODUO
Muitos leitores dos Evangelhos f cam embaraados e mesmo descon-
tentes, quando ref etem sobre o sentido de certas narraes, quando efetuam
comparaes entre diferentes verses do mesmo acontecimento, que encon-
tram narrados em vrios Evangelhos. a constatao que faz em seu livro
Iniciao ao Evangelho
14
, R.P. Roguet. Com a grande experincia que lhe confere
o fato de ter sido, durante longos anos, encarregado de responder em um se-
minrio catlico a seus leitores dos Evangelhos, desorientados pelos textos, R.P.
Roguet pde avaliar, em seus correspondentes, a importncia das perturbaes
provocadas por suas leituras. Ele nota que os pedidos de esclarecimento de
seus interlocutores, que pertenciam a meios sociais e culturais muito variados,
versavam sobre textos considerados obscuros, incompreensveis, quando no
contraditrios, absurdos ou escandalosos. No h dvida, portanto, de que
a leitura dos textos completos dos Evangelhos susceptvel de perturbar
profundamente os cristos. Uma tal observao de data recente: o livro de R.P.
Roguet foi publicado em 1973. Em tempos que no so to distantes, a grande
maioria dos cristos no conhecia os Evangelhos, a no ser trechos escolhidos,
lidos nos ofcios ou comentados em plpito. O caso dos protestantes posto
parte, no era comum ler os Evangelhos em sua totalidade foram dessas cir-
cunstncias. Os manuais de instruo religiosa s continham extratos: o texto
in extenso no circulava muito. Ao longo de meus estudos secundrios em um
estabelecimento catlico, eu tive em mos as obras de Virglio e de Plato, mas
no o Novo Testamento.
E, no entanto, o texto grego dele teria sido bem instrutivo: eu compre-
endi, muito tarde, porque no nos davam para fazer tradues de livros santos
cristos. Eles poderiam nos levar a colocar aos nossos mestres questes s
quais eles f cariam embaraados em responder. Essas descobertas que se fazem,
se se tem esprito crtico, lendo in extenso aos Evangelhos, levaram a Igreja a
intervir e a ajudar seus leitores a superar seu embarao. Muitos dos cristos
tm necessidades de aprender a ler o Evangelho, constata R.P. Roguet. Que se
esteja ou no de acordo com as explicaes dadas, o mrito do autor grande
por enfrentar esses delicados problemas.
14 - Edions de Seuil, 1973.
58
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
No , infelizmente, sempre assim nos inmeros escritos sobre a Revelao
Crist.
Nas edies da Bblia destinadas a uma grande divulgao, as notcias
introdutrias expem, o mais comumente, um conjunto de consideraes, que
tenderiam a persuadir o leitor de que os Evangelhos no tm muitos proble-
mas quanto personalidade dos autores dos diferentes livros, autenticidade
dos textos e ao carter verdico da variao. Perante tantas lacunas existentes a
propsito dos autores, de cuja identidade no se pode, de modo algum, estar
seguro, que precises encontramos nesse gnero de notcias, que apresentam
frequentemente como certo o que no passa de simples hiptese, af rmando
que tal evangelista foi testemunha ocular dos fatos, enquanto que as obras
especializadas pretendem o contrrio? Reduziram completa e exageradamente
os detalhes entre o f m do ministrio de Jesus e o aparecimento dos textos.
Queriam fazer crer em uma s redao a partir de uma tradio oral, enquanto
que os remanescentes dos textos so demonstrados por especialistas. Fala-se,
aqui e ali, de certas dif culdades de interpretao, mas se desliza sobre contradi-
es manifestas, saltando aos olhos de quem ref ete. Nos pequenos dicionrios
explicativos colocados em anexo, a ttulo de complementos das preliminares
tranquilizadoras, constata-se sempre que dvidas, contradies ou erros f a-
grantes so escamoteados e dissimilados sob um hbil argumento apologtica.
Um tal estado de coisas, que evidencia o carter capital de seus comentrios,
consternador.
As consideraes desenvolvidas aqui vo surpreender, sem dvida, aque-
les meus leitores ainda no advertidos desses problemas. Assim tambm, antes
de entrar no centro vital do assunto, eu desejo ilustrar, desde j, meu propsito,
por exemplo, que me parece perfeitamente demonstrvel.
Nem Mateus, nem Joo falam da Ascenso de Jesus. Lucas a situa no
dia da Ressurreio em seu Evangelho e, quarenta dias mais tarde, no Ato dos
Apstolos do qual ele seria autor. Quanto a Marcos, ele a menciona (sem
precisar a data), num f nal atualmente considerado como no autntico. A As-
censo no tem, portanto, nenhuma base escriturria slida. Os comentadores
abordam, entretanto, esta importante questo com incrvel leviandade.
A Tricot, no seu Pequeno Dicionrio do Novo Testamento da Bblia
de Crampon, obra de grande difuso
15
, no consagra um artigo Ascenso.
A Sinopse dos Quatro Evangelhos de R.P. Benoit e R.P. Boismard, professores
15 - Descle et Cie, 1960.
59
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
da Escola de Jerusalm
16
, nos ensina em seu tomo II, pginas 451 e 452, qve a
contradio, em Lucas, entre seu Evangelho e os Atos dos Apstolos se explica
por um artifcio literrio. Compreenda quem puder!
Muito verossimilmente, R.P. Roguet, em sua Iniciao do Evangelho de
1973 (p. 187), no foi seduzido por tal argumento. Mas a explicao que nos
oferece , pelo menos, singular:
Aqui, como em muitos casos semelhantes, o problema no parece in-
solvel a no ser que se tome ao p da letra materialmente as af rmaes da
Escritura, esquecendo-se sua signif cao religiosa. No se trata de dissolver a
realizao dos fatos num simbolismo inconsciente, mas de pesquisar a inteno
teolgica do que nos revelam os mistrios, nos livrando dos fatos sensveis, dos
signos apropriados ao enraizamento carnal de nosso esprito.
Como se contentar como semelhante exegese? Frmulas apologticas
desse gnero s podem convir a incondicionais.
O interesse da citao de R.P. Roguet reside igualmente em seu parecer
de que h muitos casos semelhantes ao da ascenso nos Evangelhos. , portan-
to, necessrio abordar o problema globalmente, a fundo, em toda a objetividade.
Parece prudente pesquisar as explicaes, no estudo das condies em que
foram escritos os Evangelhos, assim como do clima religioso que reinava nessa
poca. A colocao em evidncia das reformulaes das redaes iniciais, efetu-
adas a partir das tradies orais, as alteraes dos textos desde a transmisso
at ns, torna muito menos surpreendente a presena de passagens obscuras,
incompreensveis, contraditrias, dvidosas, podendo ir, s vezes, at a obscu-
ridade, ou incompatveis com as realidades demonstradas em nossos dias pelo
progresso cientf co. De tais constataes so a marca de participao humana
na redao, depois na modif cao posterior dos textos.
Faz alguns decnios, um fato, tomou-se interesse pelo estudo das Escri-
turas sob um esprito de pesquisa objetiva. No livro recente, F na Ressureio,
Ressurreio da F
17
, R.P. Kannengiesser, professor no Instituto Catlico de Paris,
d um resumo dessa modif cao profunda nestes termos: A massa dos f is
sabe apenas que uma revoluo se operou nos mtodos de interpretao bblica,
desde a poca de PIO XII
18
. A revoluo da qual o autor fala , pois, recente.
Ela comea a ter prolongamento no ensinamento dos f is, mais ou menos, da
16 - Edio du Cerf, 1972.
17 - Beauchesne, coll. Le Point Thologique, 1974.
18 - Pio XII reina de 1939 a 1958.
60
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
parte de certos especialistas animados por esse esprito de renovao. Uma
mudana das perspectivas mais f rmes da tradio pastoral, escreve o autor, se
encaminha de algum modo para esta revoluo dos interpretativos.
R.P. Kannengiesser advertiu que no preciso mais tomar ao p da letra
os fatos relatados a respeito de Jesus pelos Evangelistas, escritos de circunstn-
cias ou de combate, nos quais autores consignam por escrito as tradies de
suas comunidades sobre Jesus. A propsito da ressurreio de Jesus, assunto de
livro, ele sublinha que a nenhum autor dos Evangelhos pode se atribuir a quali-
dade de testemunha ocular, dando a entender que, para o resto da vida pblica
de Jesus, deve ter acontecido o mesmo, pois nenhum dos apstolos - Judas
parte segundo os Evangelhos, separou-se do Mestre, a partir do momento
em que ele a exerceu at as suas ltimas manifestaes sobre a Terra.
Estamos, portanto, muito longe das posies tradicionais ainda af rmadas
com solenidades pelo Conclio Vaticano II, h precisamente dez anos, e que as
obras modernas de vulgarizao, destinadas aos f is, ainda retomam. Mas, pou-
co a pouco, a verdade vem luz.
No fcil apanh-la, devido pesada carga de uma tradio to du-
ramente defendida. Desejando-se liber-la, preciso retomar o problema peia
base, isto , examinar de incio as circunstncias que marcaram o nascimento do
cristianismo.
RETROSPECTO HISTRICO
- O Judeu-Cristianismo e So Paulo -
A maior parte dos cristos acredita que os Evangelhos foram escritos
por testemunhas diretas da vida de Jesus e que eles se constituem, por esse
motivo, em testemunhos indiscutveis dos acontecimentos que ilustraram sua
existncia e sua predicao. Em face de tais garantias de autenticidade, como
poderemos discutir os ensinamentos que eles se retiram, como poder-se-ia por
em dvida a avaliao da instituio Igreja pela aplicao das diretrizes gerais
dadas pelo prprio Jesus? As edies atuais de vulgarizao dos Evangelhos
contm os comentrios destinados a veicular essas noes ao pblico.
61
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Aos f is apresenta-se como um axioma a qualidade de testemunhas
oculares dos redatores dos Evangelhos. Os Evangelhos no foram chamados
por So Justino, em meados do sculo II, de As Memrias dos Apstolos?
Alm disso, registra-se tanta preciso sobre os autores, que se pergunta como
se poderia duvidar de sua exatido: Mateus era um personagem bem conheci-
do, Empregado do escritrio da alfndega ou do f sco de Cafarnaum; sabe-se
at que ele conhecia o aramaico e o grego. Marcos tambm perfeitamente
identif cado como colaborador de Pedro, ningum duvida que ele no seja
tambm uma testemunha ocular. Lucas o querido mdico do qual fala Paulo:
as informaes sobre ele so muito precisas. Joo, f lho de Zebedeu, o pescador
do lago de Genesar, o apstolo sempre ao lado de Jesus.
Os estudos modernos sobre o incio do cristianismo mostram que esta
maneira de apresentar as coisas no corresponde absolutamente realidade.
Ver-se- o que ocorreu entre os autores dos Evangelhos. Para o que concer-
ne aos decnios que se seguiram misso de Jesus, preciso saber que os
acontecimentos no foram absolutamente desenrolados como se disse e que a
chegada de Pedro a Roma no estabeleceu, de modo algum, a Igreja sobre seus
fundamentos. Muito ao contrrio, entre o momento em que Jesus deixa esta
terra ate a metade do sculo, isto , durante mais de um sculo, assiste-se a uma
luta entre duas tendncias, s quais se pode chamar de cristianismo paulineano
e o judeu-cristianismo; progressivamente, o primeiro suplantou o segundo e o
paulianismo triunfou sobre o judeu-cristianismo.
Um grande nmero de trabalhos remontando a todos os ltimos dec-
nios, fundados sobre as descobertas de nosso tempo, permitiram chegar a essas
noes modernas, s quais est ligado o nome do cardeal Danilon. O artigo
que ele publicou, em dezembro de 1967, na revista tudes, Uma viso nova
das origens crists, o judeu-cristianismo, retomando os trabalhos anteriores,
retraa a histria e nos permite situar o aparecimento dos Evangelhos num
contexto bem diferente daquele que resulta das expanses destinadas grande
vulgarizao. Encontrar-se-, mais adiante, uma condensao dos pontos essen-
ciais de seu artigo com amplas citaes.
Aps Jesus, o pequeno grupo dos apstolos forma uma seita judaica
f el s observncias e ao culto do templo. Todavia, quando se junta a eles o
grupo dos convertidos, vindo do paganismo, se lhes prope, pode-se dizer, um
regime especial: o Conclio de Jerusalm de 49 os dispensa da circunciso e das
observncias judaicas; muitos dos judeus-cristos se recusam a esta conces-
so. Esse grupo completamente separado de Paulo. Alm disso, a propsito
dos pagos vindos ao cristianismo. Paulo e os judeu-cristos se chocam (inci-
62
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
dente de Antioquia do ano 49), para Paulo, a circunciso, o sbado, o culto do
templo estavam dali por diante superados mesmo para os judeus. O cristianis-
mo devia se libertar de sua ligao poltico-religiosa ao judasmo para se abrir
aos Gentios.
Para os judeu-cristos que permanecem como leais israelitas, Paulo
um traidor: os documentos judeu-cristos o qualif cam de inimigo, acusando-
-o de duplicidade de ttica, mas o judeu-cristianismo representa, at 70, a
maioria da Igreja. e Paulo f ca isolado. O chefe da comunidade , ento,
Jac, parente de Jesus. Com ele, esto Pedro (no incio) e Joo. Jac pode ser
considerado como a coluna do judeu-cristianismo que fca deliberadamente
engajado ao judasmo em face do cristianismo paulineano. A famlia de Jesus
tem um grande lugar nesta igreja judeu-crist de Jerusalm. O sucessor de Jac
ser Simeo, f lho de Cleofas, primo do Senhor.
O cardeal Danilon cita a os escritos judeus-cristos, que ref etem como
era visto Jesus nessa comunidade formada inicialmente em torno dos apstolos:
o Evangelho dos Hebreus (dependente de uma comunidade judeu-crist do
Egito), os Hypotyposes de Clemente, os Reconhecidos Clementinos, o segundo
Apocalipse de Jac, o Evangelho de Thomas
19
. a esses judeu-cristos que
preciso, sem dvida, conectar os mais antigos monumentos da literatura crist,
da qual o cardeal Danilon faz uma meno minuciosa.
No somente em Jerusalm e na Palestina que o judeu-cristianismo
dominante durante o primeiro sculo da Igreja. Em toda a parte, a misso
judeu-crist parece ter sido desenvolvida anteriormente misso paulineana.
exatamente isso que explica porque as epstolas de Paulo fazem, sem cessar,
aluso a um conf ito. So os mesmos adversrios que ele reencontra em toda
a parte em Glata, em Corinto, em Colosso, em Roma e em Antioquia.
O lado srio-palestino, de Gaza a Antioquia, judeu-cristo, como o
testemunham o Ato dos Apstolos e os escritos clementinos. Na sia Menor,
a existncia de judeu-cristos atestada pelas epstolas de Paulo aos Glatas e
aos Colossenses. Os escritos de Papias informam sobre o judeu-cristianismo, na
Frgia. Na Grcia, a primeira epstola de Paulo aos Corntios refere-se a judeu-
-cristos; a Apollo, em particular. Roma um centro importante, segundo a
epstola de Clemente e o Pastor de Hermas. Para Sutone e Tcito, os cristos
formam uma seita judia. O Cardeal Danilon pensa que a primeira evangelizao
19 - Relembramos que todos esses escritos vo ser mais tarde julgados apcrifos, quer dizer, como
devendo ser escondidos, pela Igreja triunfante que vai nascer do sucesso de Paulo. Fazendo cortes
obscuros na literatura evanglica, ela vai reter seno os quatro evangelhos cannicos.
63
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
da frica foi judia-crist. O Evangelho dos Hebreus e dos escritos de Clemente
de Alexandria referem-se a isso.
importante conhecer esses fatos para compreender em que ambiente
de luta entre comunidades foram escritos os Evangelhos. O aparecimento dos
textos que ns temos hoje, aps muitas modifcaes das origens, vai comear
em torno do ano 70, poca em que as duas comunidades rivais esto em plena
luta e os judeu-cristos dominam ainda. Mas, com a guerra judaica e a queda
de Jerusalm em 70, a situao vai se inverter. O cardeal Danilon explica a
decadncia:
Os judeus estavam desacreditados no Imprio, os cristos helensticos
tomam, ento, a dianteira: Paulo relatar uma vitria postula; o cristianismo se
desligar social e politicamente do judasmo; ele ser o terceiro povo, todavia,
at a ltima revolta judaica, em 140, o judeu-cristianismo continuar dominando
culturalmente.
De 70 a um perodo que se situa antes de 110, vo ser produzidos os
Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e Joo. Eles no constituem os primeiros
documento cristos f xos; as epstolas de Paulo lhes so bem anteriores. Segun-
do O. Culman, Paulo teria redigido em 50 sua epstola aos Tessalonicenses. Mas
ele j tinha falecido, sem dvida, h alguns anos quando o Evangelho de So
Marcos foi concludo.
A Figura mais discutida do cristianismo e considerado como traidor do
pensamento de Jesus pela famlia dele e pelos apstolos f xados em Jerusalm
em torno de Jac, Paulo fez o cristianismo s custas dos que Jesus havia reunido
em torno de si para propagar seus ensinamentos. No tendo conhecido Jesus
vivo, ele justif ca a legitimidade de sua misso, af rmando que Jesus ressuscitado
lhe havia aparecido no caminho de Damasco. Pode-se perguntar o que teria
sido o cristianismo sem Paulo e se poderia, a esse respeito, arquitetar mltiplas
hipteses. Mas no que concerne aos Evangelhos, h que se meditar que, se a at-
mosfera de luta entre comunidades criadas pela dissidncia paulineana ns no
tivesse existido, ns no teramos os escritos que temos hoje. Aparecidos num
perodo de luta interna entre as duas comunidades, esses escritos de combate
como os qualif ca R.P. Kannengiesser, emergiram da multido dos escritos apa-
recidos sobre Jesus, quando o cristianismo do estilo paulineano, def nitivamente
triunfante, constitui sua compilao de textos of ciais, o Cnon que exclui e
condena como contrrios ortodoxia todos os outros documentos que no
convinham linha escolhida pela Igreja.
64
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Embora os judeu-cristos tenham desaparecido como comunidade in-
f uente, ouve-se ainda falar deles sob o vocbulo geral de Judaizantes. O
cardeal Danilon evoca assim seu f m:
Cortados da Grande Igreja que se libera progressivamente de suas liga-
es judaicas, eles se delineiam muito depressa no Ocidente. Mas constatam-se
seus traos do sculo III e IV no Oriente, em particular na Palestina, na Arbia,
na Transjordnia, na Sria, na Mesopotmia. Alguns sero absorvidos pelo Isl,
que , em parte, seu herdeiro; outros se renem ortodoxia da grande Igreja,
mas conservando um fundo de cultura semtica e alguma coisa deles persiste
nas Igrejas da Etipia e da Caldia.
OS QUATRO EVANGELHOS
Suas Origens, Sua Historia
Nos escritos dos primeiros tempos do cristianismo, a meno aos Evan-
gelhos no se faz ano ser muito posteriormente s obras de Paulo. somente
no meio do sculo II, exatamente aps 140, que aparecem as testemunhas
relativas a uma coleo de escritos evanglicos, ao passo que, desde o incio
do sculo II, muitos autores cristos davam a entender claramente que conhe-
ciam um grande nmero de epstolas paulinienses. Essas constataes, expostas
na, Introduo a Traduo Ecumnica da Bblia, Novo Testamento, editada em
1972
20
, merecem ser relembradas de improviso, ao mesmo tempo em que til
sublinhar que a obra qual a referncia feita, e o resultado de um trabalho
coletivo, que agrupa mais de cem especialistas catlicos e protestantes.
Os evangelhos que mais tarde vo tornar-se of ciais, quer dizer canni-
cos, foram conhecidos muito tardiamente, embora sua redao estivesse ter-
minada no incio do sculo II. Segundo a Traduo Ecumnica, comeam-se a
citar as narraes que lhes pertencem l pela metade do sculo II, mas quase
sempre difcil decidir se as citaes so feitas, segundo os textos escritos que os
autores tinham sob os olhos, ou se eles se contentaram em evocar de memria
os fragmentos da tradio oral.
Antes de 140, l-se nos comentrios dessa traduo da Bblia, no existe
20 - Edies do Cerf et Les Berges et les Mages.
65
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
em todo caso nenhum testemunho, segundo o qual ter-se-ia conhecido uma
coleo de escritos evanglicos: Esta af rmao vai perfeitamente ao encon-
tro do que escreveu Tricot (1960) em seus comentrios da sua traduo do
Novo Testamento: Bem cedo, desde o incio do segundo sculo, escreve ele,
estabelecer-se-ia o uso de dizer o Evangelho para designar os livros que, l por
150, So Justino chamava tambm As Memrias dos Apstolos. As af rmaes
deste tipo so, infelizmente, bastante frequentes para que o grande pblico
tenha falsas noes sobre a data da coleo dos Evangelhos.
Os Evangelhos formam um todo, mais de um sculo depois do f m da
misso de Jesus, e no logo depois dela. A Traduo Ecumnica da Bblia calcula
ao redor de 170 a data em que os quatro Evangelhos adquiriram estatuto de
literatura cannica.
A af rmao de Justino, qualif cando seus autores de apstolos, no
mais admissvel hoje em dia, como se ver.
Quanto data da redao dos Evangelhos, A. Tricot af rma que o de
Mateus, o de Marcos e o de Lucas foram redigidos antes de 70: isto no
aceitvel, salvo, pode ser, para Marcos. Esse Comentador se esfora, aps muitos
outros, em apresentar os autores dos Evangelhos como apstolos ou compa-
nheiros de Jesus e recua, a partir da, as datas da redao, que os situam muito
perto da poca em que Jesus viveu. Quanto a Joo, que A. Tricot faz viver at
por volta do ano 100, os cristos esto habituados, h muito tempo, a v-lo
representado muito perto de Jesus em circunstncias solenes, mas bem difcil
af rmar que ele o autor do Evangelho que leva o seu nome. O apstolo Joo
(como Mateus) para A. Tricot e outros comentadores, a testemunha autoriza-
da e qualif cada dos fatos que narra, enquanto que a maioria dos crticos no
mantm a hiptese segundo a qual ele teria redigido o quarto evangelho.
Mas, ento, se os quatro evangelhos em questo no podem razoavel-
mente ser considerados como as memrias dos apstolos ou de companhei-
ros de Jesus, qual a sua origem?
O. Culmann, no seu livro O Novo Testamento
21
, escreve, a esse respeito
que os evangelistas eram apenas porta-vozes da comunidade crist primitiva
que f xou a tradio oral. Durante trinta ou quarenta anos, o Evangelho existiu
quase que exclusivamente sob a forma oral: ora, a tradio oral transmitiu, so-
bretudo, palavras e narraes isoladas. Os evangelistas urdiram as ligaes , cada
um sua maneira, cada um com personalidade prpria e suas preocupaes
21 - Presses Universitaires de France, 1967
66
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
teolgicas particulares, entre as narraes e as palavras que eles receberam da
tradio ambiente. O agrupamento das palavras de Jesus, como cadeia de narra-
es por frmulas de ligao muito vagas tais como depois disso, logo etc.;
em suma, o quadro de sinticos
22
so, portanto, de ordem puramente literria
e no de fundamento histrico.
O mesmo autor continua: preciso notar, enf m, que so as necessida-
des da predicao do ensinamento do culto, mais que um interesse biogrf co
que orientaram a comunidade primitiva na f xao dessa tradio sobre a vida
de Jesus. Os apstolos ilustravam as verdades da f que eles pregavam, contando
os acontecimentos da vida de Jesus, e seus sermes que davam lugar f xao
das narraes. As palavras de Jesus foram transmitidas particularmente num
ensinamento catequtico da Igreja primitiva.
Os comentadores da Traduo Ecumnica da Bblia no evocam de outro
modo a composio dos Evangelhos: formao de uma tradio oral sob a inf u-
ncia da pregao dos discpulos de Jesus e de outros pregadores; conservao
desses materiais que se encontrar af nal, nos Evangelhos para a pregao, para
a liturgia, para o ensinamento dos f is; possibilidade de uma consubstanciao
23
precoce sob a forma escrita de certas conf sses de f, de certas palavras de
Jesus, de narraes da Paixo, por exemplo; recursos dos evangelistas a essas
formas escritas diversas, assim como aos dados da tradio oral para produ-
zir os textos adaptando-se aos diversos meios, respondendo s necessidades
das Igrejas, exprimindo uma ref exo sobre a Escritura, retif cando os erros e
replicando ao mesmo tempo aos argumentos dos adversrios. Os evangelistas
teriam assim recolhido e escrito, segundo sua perspectiva pessoal, o que lhes
era dado pelas tradies orais.
Uma tal tomada de posio coletiva, que emana de mais de cem interpre-
tadores do Novo Testamento, catlicos e protestantes, difere notadamente de
linha def nida pelo Conclio do Vaticano II, na constituio dogmtica sobre a
revelao elaborada entre 1962 e 1965. Encontrar-se- mais adiante uma primeira
referncia a esse documento conciliar, relativo ao Antigo Testamento. O Conc-
lio pde declarar, a esse respeito, que os livros que o compuseram continham
o imperfeito e o caduco, mas ele no formulou semelhantes reservas a pro-
psito dos Evangelhos. Muito ao contrrio, pode-se ler o que segue:
No escapa a ningum que entre todas as Escrituras, mesmo aquelas
22 - Os trs Evangelhos: de Marcos, Mateus e Lucas.
23 - Presena de Cristo na eucarisa, como a entendem os luteranos; Unio de dois ou mais corpos
em uma s substncia
67
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
do Novo Testamento, os Evangelhos, possuem uma superioridade merecida no
sentido de que eles constituem o testemunho por excelncia sobre a vida e os
ensinamentos do Verbo encarnado, nosso Salvador. Sempre, e em tudo, a Igreja
manteve e mantm a origem apostlica dos quatro Evangelhos. Com efeito, o
que os Apstolos pregaram, sob a ordem de Cristo, em seguida, eles mesmos e
os homens de sua grei
24
, sob a inspirao divina do Esprito, nos transmitiram
em escritos que so o fundamento da f, a saber o Evangelho quadriforme,
segundo Mateus, Marcos, Lucas e Joo.
Nossa Santa Madre Igreja sustentou e sustenta f rmemente, e com a
maior constncia, que os quatro Evangelhos, dos quais ela af rma sem hesitar
a historicidade, transmitem f elmente o que Jesus, o f lho de Deus, durante sua
vida entre os homens, realmente, fez e ensinou para sua salvao eterna, at o
dia em que foi levado ao cu... Os autores sacros compem logo os quatro
Evangelhos de maneira a nos conf ar sempre sobre Jesus as coisas verdadeiras e
sinceras.
a af rmao, sem nenhuma ambiguidade, da f delidade da transmisso
dos atos e palavras de Jesus pelos Evangelhos.
No se nota muita compatibilidade entre esta af rmao do Conclio e
aqueles dos autores precedentes citados, notadamente:
No preciso tomar ao p da letra os Evangelhos, escritos de cir-
cunstncias ou de combate nos quais os autores consignam por escrito as
tradies de as comunidades sobre Jesus. (R.P. Kannengiesser).
Os Evangelhos so textos adaptados aos diversos meios, respondendo
s necessidades da Igreja, exprimindo uma ref exo sobre a Escritura, corrigindo
os erros, enfrentando ao mesmo tempo os argumentos dos adversrios. Os
evangelistas reconhecem tambm e puseram por escrito, segundo sua perspec-
tiva pessoal, o que lhes era dado penas tradies orais (Traduo Ecumnica da
Bblia).
evidentssimo que, entre conciliar a declarao e as tomadas de posio
mais recentes, nos ensinamentos em presena de af rmaes que se contradizem.
No possvel conciliar a declarao do Vaticano II, segundo a qual se dever
encontrar nos Evangelhos uma transmisso f el dos atos e palavras de Jesus,
com a existncia desses textos de contradies, incertezas, impossibilidades na-
turais e af rmaes contrrias realidade das coisas devidamente estabelecidas.
24 - Conjunto dos paroquianos ou diocesanos; Pardo; Sociedade.
68
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Ao contrrio, se olharmos os Evangelhos como a expresso de pers-
pectivas prprias dos coletores das tradies orais pertencentes a comunidades
diversas, como escritos de circunstncias ou de combate, no podemos nos
espantar por encontrar nos Evangelhos todos esses defeitos, que so a marca
de sua confeco pelos homens em tais circunstncias. Eles podem ser absolu-
tamente sinceros, embora relatem fatos dos quais eles no pem em dvida a
exatido, fornecendo-nos narraes em contradio com as dos outros autores
ou, ento por razes de rivalidades de ordem religiosa entre comunidades, apre-
sentam as narraes de vida de Jesus, segundo uma ptica bem diferente da dos
adversrios.
J vimos que o contexto histrico est de acordo com esta ltima ma-
neira de conceber os Evangelhos. Os dados que possumos sobre os prprios
textos a conf rmam totalmente.
EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
Dos quatro Evangelhos, o de Mateus ocupa o primeiro lugar na ordem
de apresentao dos livros do Novo Testamento. Isto perfeitamente justif -
cado, porque este Evangelho no , de certo modo, seno o prolongamento
do Antigo Testamento: est escrito para demonstrar que Jesus completou a
histria de Israel; como escreveram os comentadores da Traduo Ecumnica
da Bblia, qual faremos grandes citaes. Por isso, Mateus faz apelo constan-
temente a citaes do Antigo Testamento, mostrando que Jesus se comporta
como o Messias esperado pelos judeus.
Este Evangelho comea por uma genealogia de Jesus
25
. Mateus a faz re-
montar a Abrao por David. Ver-se- mais adiante o erro do texto, geralmente
esquecido ao silncio pelos comentadores. No importa o que ele seja, a inten-
o de Mateus era evidente: dar em conjunto, por esta f liao, o sentido geral
de seu livro. O autor segue a mesma ideia pondo constantemente em evidncia
a atitude de Jesus perante a lei judaica, da qual os grandes princpios - orao,
jejum e esmola - so aqui retomados.
Jesus pretende enderear seu ensinamento, acima de tudo e por priori-
dade, a seu povo. Ele fala assim aos doze apstolos: No tomeis o caminho dos
25 - A contradio da genealogia do Evangelho de Lucas ser tratada em um captulo especial
69
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
pagos e no entreis numa cidade de Samaritanos
26
; de preferncia, procurai as
ovelhas perdidas da casa de Israel (Mateus 10:5-6). Eu no fui enviado seno
s ovelhas perdidas da casa de Israel (Mateus 15:24). No f nal de seu Evangelho,
Mateus estende, secundariamente a todas as naes, o apostolado dos primeiros
discpulos de Jesus, dando-lhes esta ordem: Ide, portanto, por todas as naes
e fazer discpulos (Mateus 28:19), mas a partida deve-se fazer, por prioridade,
para a casa de Israel. A. Tricot diz desse Evangelho: Sob a vestimenta grega, o
livro judeu pela carne, pelos ossos e pelo esprito, trazendo dele alento e as
marcas distintivas.
Essas consideraes, por si s, situam a origem do Evangelho de Mateus
em uma tradio comunitria judeu-crist que, como escreve O. Culmann, se
esfora por romper, ainda que mantendo a continuidade com o Antigo Testa-
mento, as amarras que o prendiam ao judasmo. Os centros de interesse, o tom
geral desse Evangelho, sugerem a existncia de uma situao tensa.
Os fatores de ordem poltica no so possivelmente estranhos ao texto.
A ocupao romana da Palestina torna naturalmente vivo o desejo do pas
ocupado de ver sobrevir sua libertao e roga-se a Deus para intervir a favor
do povo, que Ele elegeu todos e do qual Elee o soberano todo poderoso, e
que pode, como Ele o fez muitas vezes, ao longo da Histria, trazer o seu apoio
direto aos negcios dos homens.
Qual a personalidade de Mateus? Digamos de passagem que no se
admite hoje que se traia de um companheiro de Jesus. A. Tricot o apresenta,
entretanto, assim em seu comentrio da traduo do Novo Testamento em
1960: Mateus, alis, Levi, por seu trabalho publicano
27
ou de f scalizao, era
empregado do escritrio da Alfndega ou de portagem de Cafarnaum, quando
Jesus o chamou pata fazer dele um de seus discpulos. o que pensavam os
Padres da Igreja, como Orgenes, Jernimo e Epifnio. No mais o que se cr
em nossos dias. Um ponto no contestado que o autor judeu; o vocabulrio
palestino, a redao grega. O autor se dirige, escreve O. Culmann, as pessoas
que, mesmo falando grego, conhecem os costumes judeus e a lngua aramaica.
Para os comentadores da Traduo Ecumnica, a origem desse Evangelho
parece ser a seguinte: Ordinariamente, pensa-se que ele foi escrito na Sria,
pode ser em Antioquia [...], ou na Fencia, porque nessas regies vivia um gran-
26 - Os samaritanos nham o cdigo religioso a Tor ou Pentateuco; eles esperavam a vinda do
Messias e eram a maior parte das observaes do Judasmo, mas eles nham edicado um templo
concorrente ao de Jerusalm
27 - Cobrador de rendimentos pblicos, entre os romanos; Homem de negcio.
70
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
de nmero de judeus
28
[...]. Pode-se entrever uma polmica contra o judasmo
sinagogal ortodoxo dos fariseus, tal como se manifesta na assembleia sinagogal
de Jamina pelos anos 80. Nessas condies, numerosos so os autores que
datam o primeiro Evangelho pelos anos 80-90; pode ser um pouco mais cedo,
no se pode chegar a uma inteira certeza sobre o assunto.
Em vista da impossibilidade de se conhecer precisamente o nome do
autor, conveniente que nos contentemos com alguns traos delineados no
prprio Evangelho: o autor reconhecido pela sua prof sso. Versados nas
Escrituras e nas tradies judias, conhecendo, respeitando, mas interpelando
rudemente os chefes religiosos de seu povo, experimentado mestre na arte
de ensinar e de fazer compreender Jesus aos seus ouvintes, insistindo sempre
sobre as consequncias prticas de ensinamento, ele corresponder muito bem
caracterizao de um letrado judeu tornado cristo, um senhor da matria
que tira do seu tesouro coisas novas e velhas, como Mateus evoca em 13:52.
Estamos bem longe do empregado do escritrio de Cafarnaum, chamado Levi
por Marcos e Lucas, e transformado em um dos doze apstolos.
Todos concordam em pensar que Mateus escreveu seu Evangelho a
partir de fontes comuns com Marcos e com Lucas. Mas sua narrao vai diferir,
e sobre pontos essenciais, como ns veremos a seguir. E, portanto, Mateus
utilizou largamente o Evangelho de Marcos que no era discpulo de Jesus (O.
Culmann).
Mateus torna srias liberdades com os textos. Constata-se isso no que
concerne ao Antigo Testamento, a propsito da genealogia de Jesus, colocada
no incio de seu Evangelho. Ele insere em seu livro narraes, propriamen-
te falando, incrveis. o qualif cativo que emprega, em sua obra citada mais
adiante, R.P.Kannengiesser a respeito de um episdio da ressurreio de Jesus:
o da vigilncia. Ele destaca a incerteza dessa histria de vigilantes militares do
tmulo, esses soldados pagos que relatam o sucedido, no a seus superiores
hierrquicos, mas aos grandes sacerdotes que lhes pagam para contar mentiras.
Ele acrescenta, entretanto: preciso abster-se de zombar, porque a interao de
Mateus inf nitamente respeitvel, e ele integra, sua maneira, um dado antigo
da tradio oral sua obra escrita. Mas sua mise en scne digna de Jesus cristo
Superstar
29
.
Esse julgamento sobre Mateus emana, lembremo-nos, de um eminente
28 - Pergunta-se se a comunidade judeu-crist de Mateus no poderia estar situada tambm em
Alexandria. O. Culmann cita esta hiptese, entre muitas outras.
29 - Edies de Cerf et Les Berges et les Mages.
71
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
telogo, professor do Instituto Catlico de Paris. Mateus d em sua narrao,
aos acontecimentos que acompanharam a morte de Jesus, um outro exemplo
de sua fantasia.
Eis que o vu do santurio se rasgou em dois, alto a baixo; a terra
tremeu, fenderam-se as rochas, abriram-se os tmulos, os corpos de numerosos
santos ressuscitaram, saindo dos tmulos depois de sua ressurreio, eles entra-
ram na cidade santa e apareceram a um grande nmero de pessoas.
Esta passagem de Mateus (27:51-53) no tem seu correspondente nos
outros Evangelhos. difcil imaginar como os corpos dos santos em questo
puderam ressuscitar depois da morte de Jesus ( vspera-do sbado, dizem os
Evangelhos), e sair de seus tmulos somente depois de suo ressurreio (o dia
seguinte ao sbado, segundo, as mesmas variaes).
, pode ser, em Mateus, que se encontra a inverossimilhana mais carac-
terizada e menos discutvel de todos os Evangelhos, que um de seus autores
tenha posto na boca do prprio Jesus. Ele relata assim, em 12:38-40, o esprito
do milagre de Jonas:
Jesus est no meio dos escribas e dos fariseus que se dirigem a ele
nesses termos: Mestre, ns queremos que voc nos faa ver um milagre.
Jesus lhes respondeu: Gerao m e adltera (sic) que pede um prodgio.
Mas nenhum prodgio lhe ser dado seno o do profeta Jonas. Porque assim
como esteve Jonas trs dias e trs noites no ventre do monstro, assim o f lho
do Homem estar no seio da terra trs dias e trs noites... (Texto da Traduo
Ecumnica).
Jesus anuncia portanto que f car enterrado trs dias e trs noites. Ora,
Mateus e com ele, Lucas e Marcos, situam a morte e a inumao de Jesus na
vspera do sbado, o que faz, certamente, considerar a sua permanncia na terra
em trs dias (trs meras no texto grego). Mas nesse lapso de tempo no se
podem compreender mais do que duas noites e no trs noites (treis nuktas no
texto grego).
30

Os comentadores dos Evangelhos fazem muito frequentemente silncio
diante desse episdio. No entanto, R. P. Roguet levanta a inverossimilhana, pois
ele nota que Jesus no f cou no tmulo seno trs dias (logo, um s completo)
e duas noites. Mas acrescenta ele.
30 - Em outra passagem do Evangelho, Mateus faz uma segunda meno desse episdio, mas sem
precisar o tempo (16:1-4). Sucede o mesmo em Lucas (11:29-32). Para Marcos, ver-se- mais longe,
Jesus teria declarado que no ser dado nenhum sinal por ele a esta gerao (Marcos 8:11-12)
72
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A expresso um clich e no quer dizer outra coisa seno trs dias. des-
gostante que os comentadores tenham se limitado a usar tais argumentos, que
no querem nada dizer de positivo, quando seria to satisfatrio para o esprito
sugerir que tal enormidade pudesse provir do erro de um escriba!
Alm dessas incertezas, o que caracteriza, antes de tudo, o Evangelho de
Mateus, que ele de uma comunidade judeu-crist que infringe o desterro do
judasmo, f cando na linha do Antigo Testamento. Tem ele, sob ponto de vista
da histria do judeu-cristianismo, uma importncia considervel.
EVANGELHO SEGUNDO MARCOS
o mais curto dos quatro Evangelhos. tambm o mais antigo, mas
nem por isso ele o livro de um Apstolo: , nada mais nada menos, que um
livro redigido por um discpulo de um apstolo.
O. Culmann escreveu que no considerava Marcos um discpulo de Jesus.
Mas o autor faz notar para quem a atribuio deste Evangelho ao apstolo
Marcos pode parecer suspeita, que Mateus e Lucas no teriam utilizado este
Evangelho como eles o f zeram, se no estivessem fundamentados efetivamente
sobre o ensinamento de um apstolo! Mas isto um argumento no decisivo.
O. Culmann cita igualmente, como apoio da reserva, que ele junta s frequentes
citaes do Novo Testamento, um certo o Joo chamado Marcos, mas essas
citaes no contm a meno de um autor do Evangelho, e o texto de Marcos
no menciona o autor.
A pobreza das informaes sobre esse ponto conduziram os comenta-
dores a tomar, como elementos de valor, pormenores, que parecem enredados,
tais como: sob o pretexto de que Marcos o nico evangelista a contar na
sua narrao da Paixo o esprito de um jovem, tendo apenas um lenol como
vestimenta e que, detido, tira um lenol e foge nu (Marcos 14:51-52), alguns con-
cluram que o jovem em questo poderia ser Marcos, discpulo f el que tenta
seguir o Mestre (Traduo Ecumnica); para outros, pode-se ver aqui: por
esta lembrana pessoal uma marca de autenticidade, numa assinatura annima,
provando que ele foi testemunha ocular (O. Culmann).
Para esse autor, os numerosos volteios de frases corroboram a hiptese
73
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
segundo a qual o autor era um judeu de origem, mas a presena de latinismos
pode sugerir que ele escreveu seu Evangelho em Roma. Ele se enderea, alis,
aos cristos que no vivem na Palestina e toma cuidado em lhes explicar as
expresses aramaicas que emprega.
Com efeito, a tradio quis ver em Marcos o companheiro de Pedro em
Roma, fundamentando-se no f nal da primeira epstola de Pedro (se de fato este
o seu autor). Pedro teria escrito aos destinatrios da Epstola: A comunidade
dos eleitos, que est em Babilnia, vos sada assim como Marcos, meu f lho.
Babilnia quer dizer provavelmente Roma, l-se nos comentrios da Traduo
Ecumnica por onde se cr autorizado a deduzir que o Marcos que tinha
estado com Pedro em Roma seria o Evangelista... Foi um raciocnio desse tipo
que levou Papias, bispo de Hierpolis, pelo ano 150, a atribuir o Evangelho em
questo a um Marcos, que dizia ter sido o intrprete de Pedro, e que teria
sido tambm um colaborador de Paulo?
Nessa perspectiva, situar-se-ia a composio do Evangelho de Marcos
depois da morte de Pedro, portanto mais cedo, entre 65 e 70, para a Traduo
Ecumnica, cerca de 70 para O. Culmann.
O texto mesmo deixa aparecer indiscutivelmente um primeiro grande
defeito: ele redigido sem o mnimo cuidado com a cronologia. Assim, Marcos
coloca no comeo de sua narrao (1:16-20) o episdio dos quatro pescadores
que Jesus convida a segui-lo, dizendo simplesmente: Vocs, sero pescadores de
homens, quando estes nem sequer o conheciam. O evangelista manifesta, alm
disso, uma ausncia completa de probabilidade.
Como disse R. P. Roguet, Marcos um escritor desajeitado, o mais
incipiente de todos os evangelistas, ele no sabe compor bem uma narrao e
o comentador apoia sua observao na citao de uma passagem, contando a
instituio dos doze apstolos, da qual a traduo literal a seguinte:
E, tendo subido a montanha, chamou a si aqueles que Ele mesmo quis e
eles vieram para junto dEle. E escolheu doze para que andassem com Ele e para
os enviar a Pregar e ter o poder de expulsar os demnios. E Ele fez os doze e
imps a Simo o nome de Pedro (Marcos 3:13-16).
Para certos episdios, ele est em contradio em Mateus e com Lucas,
como lembramos anteriormente a propsito do prodgio de Jonas. Alm disso,
a propsito dos milagres que Jesus oferece aos homens ao longo de sua misso,
Marcos conta (8:11-12) um episdio que no acreditvel.
74
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Os fariseus vieram e puseram-se a discutir com Jesus; para faz-lo cair
numa armadilha, pediram-lhe um sinal do cu. Arrancando um profundo suspi-
ro, Jesus disse: Por qu esta gerao pede um sinal? Em verdade eu vos digo,
no ser dado nenhum sinal a esta gerao. E deixando-os tornou a embarcar
e partiu para outra margem.
, sem dvida, a af rmao, vinda do prprio Jesus, de sua inteno de
no fazer nenhum ato que pudesse parecer sobrenatural. Tambm, os comenta-
dores da Traduo Ecumnica da Bblia se admiram que Lucas declare que Jesus
no dar a no ser um sinal, o de Jonas (ver o Evangelho de Mateus), julgando
paradoxal que Marcos diga que esta gerao no ter nenhum sinal, aps,
frisam eles, os milagres que o prprio Jesus apresenta como os sinais (Lucas,
7:22 e 11:20).
A totalidade do Evangelho de Marcos of cialmente reconhecida como
cannica. Nem por isso o f nal de seu Evangelho (16:9-20) deixa de ser conside-
rado pelos autores modernos como uma obra justaposta: a Traduo Ecumnica
o assinala muito explicitamente.
Este f nal no est contido nos dois mais antigos manuscritos comple-
tos dos evangelhos, o Codex Vaticanus e o Codex Sinaiticus, que datam do
Sculo IV. O. Culmann escreveu a esse propsito: Manuscritos gregos mais
recentes e certas verses juntaram, nessa parte, uma concluso sobre as apari-
es que no de Marcos, tirada de outros Evangelhos. Com efeito, as verses
justapostas desse f nal so numerosas. H nos textos, tanto uma verso longa
como uma verso curta (os dois foram reproduzidos na Traduo Ecumnica),
tanto a verso longa com um aditivo, como as duas verses.
R. P. Kannengiesser comenta assim este f nal: Devem ter sido suprimidos
os ltimos versculos por ocasio da aceitao of cial (ou da edio vulgarizada)
de sua obra na comunidade que a tomava como garantia. Nem Mateus, nem
Lucas nem, a fortiori, Joo, conheceram a parte que falta. Todavia, a lacuna era
intolervel. Muito mais tarde, uma vez os escritos similares de Mateus, Lucas
e Joo postos em circulao, copilou-se uma digna concluso de Marcos, re-
colhendo elementos direita e esquerda nos outros evangelistas. Ser fcil
identif car as peas deste enigma; especif cando Marcos, (16:9-20) ter-se-ia
uma ideia mais concreta da liberdade com que se tratou o gnero literrio da
narrao evanglica, at o limiar do Sculo II.
Que conf sso sem rodeios da existncia de manipulaes, por homens,
dos textos das Escrituras nos fornecem essas ref exes de um grande telogo!
75
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
EVANGELHO SEGUNDO LUCAS
Cronista para O. Culmann, Verdadeiro romancista para R. P. Kannen-
giesser, Lucas nos adverte em seu prlogo dirigido a Thef lo que vai, por sua
vez, depois de outras que compuseram as narraes sobre Jesus, redigir um
relato sobre os mesmos fatos, utilizando essas informaes de testemunhas
oculares o que implica que ele no era uma delas - assim como aquelas prove-
nientes das predicaes dos apstolos. , portanto, um trabalho metdico que
ele apresenta nestes termos:
Visto que muitos empreenderam compor uma narrao-dos aconteci-
mentos sucedidos entre ns, como foram transmitidos por aqueles que foram
desde o incio testemunhas oculares, e que se tornaram os servidores da palavra,
me pareceu bom, a mim tambm, aps ter cuidadosamente me informado de
tudo a partir das origens, escrever para ti uma narrao ordenada, muito hono-
rvel Thef lo, a f m de que tu possas constatar a solidez dos ensinamentos em
que tu foste instrudo.
Discerne-se desde as primeiras linhas tudo o que separa Lucas do med-
ocre escrivo que Marcos, do qual acabamos de evocar a obra. Seu Evangelho
uma incontestvel obra literria, escrita em um grego clssico sem barbaris-
mos. Lucas um letrado pago, convertido ao cristianismo. Sua orientao em
relao aos judeus imediatamente aparente. Como sublinha O. Culmann, Lucas
exime-se de retornar os versculos mais judaicos de Marcos e pe em destaque
as palavras de Jesus contra a incredibilidade dos judeus e seus bons relaciona-
mentos com os samaritanos, que os judeus detestavam, ao passo que Mateus,
como se viu, recomendava, em nome de Jesus, aos apstolos, fugir deles. Exem-
plo surpreendente, entre muitos outros, pelo fato de que, fazendo Jesus dizer
o que convm s suas perspectivas pessoais, os evangelistas, sem dvida, com
uma convico muito sincera, nos do as palavras de Jesus a verso adaptada ao
ponto de vista das comunidades s quais eles pertencem. Como negar diante
de semelhantes evidncias, que os Evangelhos no so escritos de combate ou
de circunstncias j evocadas? A comparao entre a maneira geral do Evange-
lho de Lucas e do Evangelho de Mateus traz a esse respeito uma demonstrao.
Quem Lucas? Quiseram identif c-lo ao mdico levado esse nome que
Paulo cita em algumas de suas epstolas. A Traduo Ecumnica observa que
muitas encontraram conf rmao de prof sso mdica do autor do Evangelho
na preciso da descrio das doenas. Esta apreciao completamente exage-
76
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
rada. Lucas no d descries desta ordem propriamente dita o vocabulrio
que ele emprega aquele de todo homem culto de seu tempo. Um certo Lu-
cas foi companheiro de viagem de Paulo. a mesma personagem? O. Culmann
assim pensa.
A data do Evangelho de So Lucas pode ser estabelecida em funo de
diversos fatores: Lucas se serviu do Evangelho de Marcos, e este do de Mateus.
Parece, l-se na Traduo Ecumnico, que ele teria conhecido o stio e a runa de
Jerusalm pelas armas de Tito no ano 70. O Evangelho seria, portanto, posterior
a essa data. As crticas atuais situam comumente sua redao pelos anos 80-90,
mas muitos lhe atribuem uma data ainda mais antiga.
As diversas narraes de Lucas apresentam diferenas importantes com
as de seus predecessores. Demos acima um apanhado delas. A Traduo Ecum-
nica, assinala pginas 181 e seguintes. O. Culmann cita no livro O Novo Testa-
mento, p. 18, narraes do Evangelho de Lucas que no so reencontradas em
outras partes. E no se trata de pormenores.
Os relatos da infncia de Jesus do Evangelho de Lucas lhe so prprias.
Mateus conta diferentemente de Lucas a infncia de Jesus. Marcos no diz uma
palavra a respeito.
Mateus e Lucas do diferentes genealogias de Jesus: a contradio to
importante, a inverossimilhana to grande do ponto de vista cientf co, que
um captulo especial ser consagrado aqui a esse respeito. explicvel que Ma-
teus, dirigindo-se aos judeus, faa iniciar a genealogia em Abrao e a faa passar
por David, e que Lucas, pago convertido, tenha o cuidado de remontar mais
alto. Ver-se- que, a partir de Davi, as duas genealogias so contraditrias.
A misso de Jesus contada diferentemente em diversos pontos por
Lucas, Mateus e Marcos.
Um acontecimento de importncia to capital para os cristos, como
a instituio da Eucaristia, sujeita a variantes entre Lucas e os dois outros
Evangelhos (No possvel se fazer a comparao com Joo, pois ele no fala da
instituio da Eucaristia por ocasio da Ceia precedente Paixo.). R. P. Roguet
nota em seu livro, Iniciao ao Evangelho (p. 75), que as palavras pelas quais a
Eucaristia instituda nos so relatadas por Lucas (22:19-24) numa forma muito
diferente daquelas que encontramos em Mateus (26:26-29) e em Marcos (1:22-
24), que so quase idnticas. Ao contrrio, a frmula transmitida por Lucas
muito prxima daquela que So Paulo evoca (1Epstola aos Corntios, 11:23-25).
77
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Lucas, como vimos, emite sobre a Ascenso de Jesus, em seu Evangelho,
uma verso em contradio com a dos Atos dos Apstolos, dos quais ele
o autor reconhecido, e que faz parte integrante do Novo Testamento. Em seu
Evangelho, ele situa a ascenso do dia de Pscoa e, nos Atos, quarenta dias mais
tarde. Sabe-se a que curiosos comentrios esta contradio conduziu os exege-
tas cristos.
Mas os comentadores que tm a preocupao da objetividade so fora-
dos a reconhecer, como aqueles da Traduo Ecumnica da Bblia sob um plano
muito geral, que, para Lucas, o cuidado principal no descrever os fatos em
sua exatido material... Comparando as narraes dos Atos dos Apstolos,
obra do mesmo Lucas, com as narraes de fatos anlogos de Paulo sobre
Jesus ressuscitado, R. P. Kannengiesser d sobre Lucas esta opinio: Lucas o
mais sensvel e o mais literrio dos quatro evangelistas; ele apresenta todas as
qualidades de um verdadeiro romancista.
EVANGELHO SEGUNDO JOO
O Evangelho de Joo radicalmente diferente dos trs outros, a tal
ponto que, no seu livro Iniciao ao Evangelho, R. P. Roguet, depois de haver
comentado os primeiros, d de improviso, do quarto Evangelho, uma imagem
expressiva: um outro mundo. , com efeito, um livro muito parte: diferena
na ordenao e na escolha dos assuntos, das narraes, dos discursos; diferenas
de estilo, diferenas geogrf cas e cronolgicas e, at, diferenas nas perspectivas
teolgicas (O. Culmann).
As palavras de Jesus so, portanto, diversamente relatadas por Joo e
pelos outros Evangelistas: R. P. Roguet faz observar, a esse propsito, que, en-
quanto os sinticos relatam as palavras de Jesus em um estilo direto, muito mais
prximo do estilo oral, em Joo, tudo ref ete a meditao, a tal ponto que ns
podemos nos perguntar, s vezes, se ainda Jesus que fala ou, ento, de seus
propsitos no so prolongados insensivelmente pelas ref exes do Evangelis-
ta.
Qual o autor? A questo muito debatida, as opinies mais diversas
so emitidas a esse respeito.
78
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A. Tricot e R. p. Roguet esto com aqueles a quem no surge a menor
dvida: O Evangelho de Joo obra de uma testemunha ocular; o autor Joo,
f lho de Zebedeu e irmo de Jac, o apstolo sobre o qual tantos detalhes so
conhecidos e expostos nos manuais de vulgarizao. A iconograf a popular o
coloca mantendo-se perto de Jesus como na Ceia precedente Paixo. Quem
imaginaria que o Evangelho de Joo no seja obra desse Joo Apstolo, cuja
f gura to comumente difundida?
A redao muito tardia desse quarto Evangelho no argumento formal
contra essa tomada de posio. A verso def nitiva deve ter sido redigida em
f ns do 1 Sculo. Situar a redao sessenta anos depois de Jesus ser compatvel
com a existncia de um apstolo muito jovem no tempo de Jesus e que teria
vivido perto de um sculo.
R. P. Kannengiesser, em seu estudo da Ressurreio, chega concluso
de que a nenhum autor do Novo Testamento, alm de Paulo, se pode atribuir
a qualidade de haver sido uma testemunha ocular da Ressurreio de Jesus.
Todavia, Joo relata a apario aos Apstolos, na qual ele estaria presente e que
estavam reunidos, com exceo de Thomas (20:19-24), oito dias mais tarde, com
todos os apstolos (20:25-29).
O. Culmann, em seu livro O Novo Testamento, no toma partido.
A Traduo Ecumnica da Bblia precisa que a maioria das crticas no
exclui a hiptese de uma redao pelo Apstolo Joo, cuja eventualidade no
pode ser, apesar de tudo, absolutamente excluda. Mas tudo leva a crer que o
texto atualmente divulgado teve vrios autores: provvel que o Evangelho,
tal como ns o possumos tenha sido publicado pelos discpulos do autor que
juntaram o Captulo 21 e, sem dvida, algumas anotaes (assim 4:2 e talvez 4:1;
4:44; 7:37b; 11:2; 19:35). Quanto narrao da mulher adltera (7:53-8:11), todos
esto de acordo em reconhecer que se trata de um trecho de origem desconhe-
cida, inserido mais tarde (mas que pertence, entretanto, Escritura Cannica).
A passagem 19:35 aparece como uma ratif cao de testemunha ocular (O.
Culmann), a nica explcita de todo o Evangelho de Joo, mas os comentadores
pensam que ela foi, sem dvida, acrescentada.
O. Clmann pensa que as adies posteriores so manifestas neste Evan-
gelho: assim, o Captulo 21 seria obra de um discpulo que teria dado retoques
tambm no corpo do Evangelho.
Sem evocar todas as outras hipteses feitas pelos exegetas, as nicas
79
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
observaes provenientes de autores cristos mais eminentes, aqui apresentados
sobre a questo do autor do quarto Evangelho, mostram que se encontra em
plena confuso a propsito do apadrinhamento.
O valor histrico das narraes de Joo foi muito contestado. As discordncias
com os outros trs Evangelhos so f agrantes. O. Culmann d-lhes explicao.
Ele reconhece em Joo perspectivas teolgicas diferentes das dos outros
evangelistas. Essa viso guia a escolha das interpretaes da Loga
31
apresenta-
das, da maneira pela qual elas so reproduzidas... Assim, o autor desenvolve-lhes
frequentemente, as linhas, fazendo o Jesus histrico dizer o que o Esprito Santo
mesmo lhe revelou. Tal , para este exegeta, a razo das discordncias.
De certo, conceber-se-ia que Joo, escrevendo depois dos outros evan-
gelistas, teria podido escolher certas narraes apropriadas para melhor ilustrar
suas teses, e no deveria causar admirao por no se encontrar em Joo tudo
o que as outras narraes contm. A Traduo Ecumnica destaca um certo
nmero de casos desse tipo (2:282). Mas o que choca muito mais so certas
lacunas. Algumas parecem apenas crveis, como aquela da narrao da instituio
da Eucaristia. Como poderemos imaginar que um episdio tambm primordial
para o cristianismo, que vai se tornar o pilar de sua liturgia - a missa - no seja
evocada por Joo, o evangelista, meditativo por excelncia? Ora, ele se contenta
em descrever somente, na narrao da ceia que precede a Paixo, a lavagem dos
ps dos discpulos, a anunciao da traio de Judas e a renegao de Pedro.
H, ao inverso, narraes prprias de Joo e que faltam nos outros
trs autores. A Tradio Ecumnica as menciona (p. 283). A, ainda, se poderia
arguir
32
que os trs autores teriam podido no discernir
33
, nesses episdios,
uma importncia que Joo teria destacado. Mas como no ser surpreendido
por encontrarem Joo numa narrao do aparecimento de Jesus ressuscitado a
seus discpulos, margem do Lago de Tiberades (Joo 2I:l-4), que no seno
a reproduo, com numerosos detalhes acrescidos, da pesca miraculosa apre-
sentada por Lucas (5:1-11) como um episodio ocorrido durante a vida de Jesus?
Nessa narrao, Lucas faz a aluso presena do apstolo Joo que, seguindo
a tradio, seria o evangelista. Da narrao do Evangelho de Joo, fazendo parte
desse Captulo 21, concorda-se em dizer que uma adio posterior; imagina-se
facilmente que a citao do nome de Joo, na narrao de Lucas, teria podido
levar a inclu-la artif cialmente, no quarto Evangelho: a necessidade, por isso,
31 - Palavras
32 - Cricar, censurar, condenar.
33 - Ver disntamente; discriminar, disnguir, conhecer; Avaliar bem; apreciar, medir;
Estabelecer diferena entre; disnguir, separar; Apreciar, julgar.
80
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
de transformar uma narrao de Jesus vivo em uma narrao pstuma, mesmo
forada, no deteve o manipulador do texto evanglico.
Uma outra divergncia considervel entre o Evangelho de Joo e os
outros trs a durao da misso de Jesus. Marcos, Mateus e Lucas a f xam em
um ano. Para Joo, ela se estende a mais de dois anos. O Culmann nota o fato.
A Traduo Ecumnica exprime-se assim a esse respeito:
Enquanto os sinticos evocam um longo perodo, Galileu, seguido de
uma marcha mais ou menos prolongada pela Judia, Joo, ao contrrio, relata
frequentes mudanas de uma regio outra e considera uma presena de longa
durao na Judia e, sobretudo, Jerusalm (1:19-51; 2:13-3,36; 5:147; 14:20-31). Ele
menciona diversas celebraes pascoais (2:13; 5:1; 6:4; 11:55) e sugere assim um
ministrio de mais de dois anos.
Ento, entre Marcos, Mateus, Lucas e Joo, em quem preciso acreditar?
A ORIGEM DOS EVANGELHOS
O apanhado geral que demos dos Evangelhos, e que emerge do exa-
me crtico dos textos, leva a adquirir a noo de uma literatura descosida
(desconexa), cujo plano se ressente de continuidade e cujas contradies pa-
recem insuperveis, para retomar os termos do julgamento exarado pelos
comentadores da Traduo Ecumnica da Bblia, a cuja autoridade importa fazer
referncia, to graves so as consequncias das apreciaes sobre esse assunto.
Viu-se que noes sobre a histria religiosa contempornea do nascimento dos
Evangelhos poderiam explicar certos caracteres dessa literatura desconcertante
para o leitor que ref ete. Mas preciso ir mais longe e pesquisar o que podem
nos apresentar os trabalhos publicados na poca moderna sobre as fontes que
os Evangelistas buscaram, para redigir seus textos; igualmente interessante,
examinar se a histria dos textos depois do seu estabelecimento susceptvel
de explicar certos aspectos que eles apresentam em nossos dias.
O problema das fontes foi abordado de modo muito simples na poca
dos Padres da Igreja. Nos primeiros sculos da era crist, a fonte no poderia
ser seno o Evangelho que os manuscritos completos apresentam como o
primeiro, quer dizer o Evangelho de Mateus. A questo das fontes se colocava
81
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
somente para Marcos e para Lucas; Joo consistia um caso completamente
parte. Santo Agostinho considerava que Marcos, segundo na ordem tradicional
de apresentao, tinha se inspirado em Mateus, que ele tinha resumido, e que
Lucas, vindo em terceira posio nos manuscritos, se serviu de dados de um e
de outro; seu prlogo, do qual falamos acima o sugere.
Os exegetas dessa poca podem, do mesmo modo que ns avaliar o
grau de convergncia dos textos e reencontrar um grande nmero de ver-
sculos comuns a dois ou trs dos sinticos. Os comentadores da Traduo
Ecumnica da Bblia os calculam, em nossos dias, aproximadamente assim:
Versculos comuns aos trs sincos 330
Versculos comuns a Marcos e Mateus 178
Versculos comuns a Marcos e Lucas 100
Versculos comuns a Mateus e Lucas 230
Ao passo que os versculos prprios a cada um dos trs primeiros evan-
gelistas so de
330 para Mateus, 53 para Marcos e 500 para Lucas.
Dos Padres da Igreja at o f m do sculo XVIII, um milnio e meio se
passa sem que seja levantado qualquer problema novo sobre as fontes dos evan-
gelhos: conformava-se com a tradio. No seno na poca moderna, que se
percebe, perante esses dados, que cada evangelista, retomando as informaes
encontradas nos outros, efetivamente construiu uma narrao sua maneira,
segundo suas perspectivas pessoais. Reservou-se, ento, um lugar importante
coleta dos assuntos da narrao, de um lado na tradio oral das comunidades
de origem e, de outro, numa fonte escrita comum aramaica, que no foi reen-
contrada. Essa narrao escrita teria podido formar um bloco compacto ou ser
constituda de mltiplos fragmentos de narraes diversas, que teriam servido
a cada evangelista para edif car sua obra original.
Pesquisas mais aprofundadas conduziram, aps cerca de um sculo, a
teorias mais precisas que vo se complicar com o tempo. A primeira das teorias
modernas aquela chamada das duas fontes de Hoitzmann (1863). Segundo
ele, como O. Culmann e a Tradio Ecumnica o acentuavam, Mateus e Lucas
foram inspirados, de um trado por Marcos e, de outro, por um documento
comum hoje perdido. Alm disso, os dois princpios tinham cada um sua
disposio uma fonte prpria. Chegamos ento ao esquema seguinte:
82
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Culmann critica o esquema nos seguintes pontos:
1. A obra de Marcos, da qual ser serviram Lucas e Mateus, no deveriam
ser o Evangelho desse autor, mas uma redao anterior;
2. Uma importncia suf ciente no foi atribuda nesse esquema tradio
oral, que capital, porque ela, s ela, conservou durante trinta ou quarenta anos
as palavras de Jesus e as narraes de sua misso, no tendo sido cada evange-
lista seno o porta-voz da comunidade crist que f xou a tradio oral.
Chega-se assim a esta noo: a de que os Evangelhos, tais como ns os
possumos, trouxeram-nos o ref exo do que as comunidades crists primitivas
conheceram da vida e de suas concepes teolgicas, dos quais os evangelistas
foram os porta-vozes.
As pesquisas mais modernas da crtica textual sobre as fontes dos Evan-
gelhos evidenciaram um processo muito mais complexo ainda que a formao
dos textos. A Sinopse dos Quatro Evangelhos, obra de R. P. Benoit e R. P. Bois-
mard, professores da Escola Bblica de Jerusalm (1972-1973), chama a ateno
sobre a evoluo dos textos em vrias etapas, paralelamente a uma evoluo
da tradio, o que implica consequncias que R. P. Benoit expe, nesses termos,
apresentando, parte do livro, obra de R. P. Boismard: [. . .] as formas de palavras
ou de narraes, resultantes de uma longa evoluo da tradio, no tm a
mesma autenticidade que aquelas que se encontram na origem. Alguns leitores
desta obra sero, possivelmente, surpreendidos ou perturbados ao se inteirarem
de que tal palavra de Jesus, tal parbola, tal prognstico de seu destino, no
tinham sido ditos, como ns os lemos, mas que foram retocados e adaptados
por aqueles que n-los transmitiram. Para aqueles que no esto acostumados
a esse tipo de enquete histrica, h nisso uma fonte possvel de admirao,
quando no de escndalo.
Esses retoques do texto e sua adaptao, praticados por aqueles que n-
Marcos Documentos Comuns
Fonte Prpria de Mateus Mateus Lucas Fonte Prpria de Lucas
83
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
-los transmitiram, efetuaram-se segundo um modo do qual R. P. Boismard nos
d o esquema muito complexo, que um desenvolvimento da teoria dita das
duas origens. O esquema foi estabelecido depois de um trabalho de exame e
de comparao de textos, que impossvel resumir. O leitor interessado dever,
para mais detalhes, reportar-se obra original publicada em Paris nas edies du
Cerf.
Quatro documentos de base, chamados A.B.C. e Q., representam as
fontes originais dos Evangelhos (ver o esquema geral).
O documento A. um documento emanado do meio judeu-cristo, que
inspirou Mateus e Marcos.
O documento B. uma reinterpretao do documento A., para uso das
igrejas pago-crists: ele inspirou todos os evangelistas, menos Mateus.
O documento C. inspirou Marcos, Lucas e Joo.
O documento Q. constitui a maior parte das fontes comuns a Mateus e
Lucas; o documento comum da teoria das duas origens citadas acima.
Nenhum desses documentos de base culmina na redao dos textos de-
f nitivos que ns possumos. Entre eles e a redao f nal se colocam as redaes
intermedirias que o autor chama: Mateus intermedirio, Marcos intermedi-
rio, Proto-Lucas e Joo. So esses quatro documentos intermedirios que vo
resultar nas ltimas redaes dos quatro Evangelhos e como sugesto para a
redao dos outros Evangelhos. preciso reportar-se ao esquema geral para
apanhar todos os circuitos complexos postos em evidncia pelo autor.
Os resultados dessa pesquisa escriturria so de uma importncia consi-
dervel. Eles demonstram que os textos dos Evangelhos que tm uma histria
(ela ser tratada mais adiante) tm tambm, segundo a expresso de R. P. Bois-
mard, uma pr-histria, quer dizer, que eles sofreram, antes do aparecimento
das ltimas redaes, modif caes, por etapas, dos documentos intermedirios.
Assim se explica, por exemplo que uma histria bem conhecida da vida de
Jesus, a pesca milagrosa, seja apresentada, j a vimos, para Lucas como um acon-
tecimento ocorrido durante a sua vida e, para Joo, como um episdio de suas
aparies depois da ressurreio.
84
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
M. E. BOISMARD
SINOPSE DOS QUATRO EVANGELHOS
ESQUEMA GERAL
Legenda:
- Doc. A, B, C, D e Q = Documentos que serviram para redao.
- Mt. Interm. = Redao intermediria de Mateus.
- Mc. Interm. = Redao intermediria de Marcos.
- Proto-Luc = Redao intermediria de Lucas.
Doc. Q Doc. C Doc. B Doc. A Doc. Q
Mc interm. Mt interm.
Proto - Lc
Jn
Ult. Red. Lc Ult. Red. Mc Ult. Red. Mt
Ult. Red. Jn
85
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Jn. = Redao intermediria de Joo.
- Ult. Red. Mt = ltima redao de Mateus.
- Ult. Red. Mc. = ltima redao de Marcos.
- Ult. Red. Lc. = ltima redao de Lucas.
- Ult. Red. Jn. = ltima redao de Joo.
A concluso de tudo isto que, lendo o Evangelho, no estamos mais
certos de receber a palavra de Jesus. R. P. Benoit, dirigindo-se ao leitor do Evan-
gelho, o adverte e lhe apresenta uma compensao:
Se ele deve renunciar, em muitos casos, a ouvir a voz direta de Jesus, ele
houve a da Igreja, e ele conf a nela como na intrprete divina autorizada pelo
Mestre, que, depois de ter falado outrora sobre a nossa terra, nos fala hoje em
sua glria.
Como conciliar esta constatao formal da inautenticidade de certos
textos com a frase da constituio dogmtica sobre a Revelao divina do
Conclio do Vaticano II, que nos assegura, ao contrrio, uma transcrio f el das
palavras de Jesus (Esses quatro Evangelhos dos quais ela (A Igreja) af rma sem
hesitar a historicidade, transmitem f elmente o que Jesus, o f lho de Deus, du-
rante sua vida entre os homens realmente fez e ensinou para a salvao eterna,
at o dia em que foi elevado ao cu)?
Parece bem claro que o trabalho da Escola Bblica de Jerusalm levou
declarao do Conclio um desmentido rigoroso.
HISTORIA DOS TEXTOS
Seria um erro crer que, desde que foram redigidos, os Evangelhos cons-
tituram as Escrituras fundamentais do Cristianismo nascente e aos quais se
referir no mesmo nvel em que se referiu ao Antigo Testamento. A autoridade
predominante foi ento a da tradio oral, veculo das palavras de Jesus e dos
ensinamentos dos apstolos. Os primeiros escritos que circularam e que preva-
leceram muito antes dos Evangelhos foram as epstolas de Paulo: no foram elas
redigidas muitos decnios mais cedo?
86
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Vimos que, antes de 140, no existia nenhuma testemunha, atestando
que se conhecia uma coleo de escritos evanglicos, ao contrrio do que es-
crevem ainda em nossos dias certos comentadores. preciso esperar 170, apro-
ximadamente, para que os quatro Evangelistas adquiram o status de literatura
cannica.
Circulavam assim, nesses primeiros tempos do Cristianismo, mltiplos
escritos sobre Jesus, que em seguida no foram retidos como dignos de au-
tenticidade, e que a Igreja ordenou esconder; da o nome de apcrifos. Restam
desses textos obras bem conservadas, porque elas gozavam da estima geral,
nos diz a Traduo Ecumnica como a didach ou epstola de Barnab, mas in-
felizmente outras foram descartadas de modo mais brutal, e no restam delas
seno fragmentos. Considerados como veculo de erros, eles foram subtrados
dos olhos dos f is. No entanto, obras como os Evangelhos dos Nazarenos, os
Evangelhos dos Hebreus, os Evangelhos dos Egpcios, conhecidos pelas relaes
dos Padres da Igreja, se apresentavam muito de perto com os Evangelhos ca-
nnicos. D-se o mesmo com o Evangelho de Toms, e com os Evangelhos de
Barnab.
Alguns desses escritos apcrifos contm detalhes fantasmagricos, pro-
dutos da imaginao popular. Assim, os autores de obras sobre os Apcrifos,
ao cit-los, tomam deles, com uma evidente satisfao, passagens, verdadeira-
mente falando, ridculas. Mas tais passagens podem ser encontradas em todos
os Evangelhos. Lembremo-nos simplesmente da descrio fantasista dos acon-
tecimentos, que Mateus pretende terem ocorrido por ocasio da morte de
Jesus. Podem-se encontrar passagens que falham em seriedade em todos os
escritos dos primeiros tempos do Cristianismo: preciso ter a honestidade de
reconhec-lo.
A abundncia da literatura sobre Jesus conduziu a Igreja, em fase de
organizao, a efetuar eliminaes. Talvez, cem Evangelhos foram suprimidos?
Quatro somente foram conservados para entrar numa lista of cial de escritos
neo-testamentrios, que constituem o que se chama de Cnon.
Marcion, na metade do sculo II, compeliu fortemente as autoridades
eclesisticas a tomar posio. Era um feroz adversrio dos judeus, que rejeitava,
ento, todo o Antigo Testamento e o que, dos escritos posteriores a Jesus, lhe
parecia ligar-se a ele muito de perto ou derivar da tradio judeu-crist. Marcion
reconhece como vlido somente a Evangelho de Lucas, porque, pensava ele, ele
era o porta-voz de Paulo, assim como dos escritos de Paulo.
87
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A Igreja declarou Marcion hertico e ps no Cnon todas as eps-
tolas de Paulo, mas com os outros Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e
Joo, e ajuntou, tambm, algumas outras obras como os Atos dos Apstolos.
Entretanto, a lista of cial varia com o tempo, nesses primeiros sculos da era
crist. Obras consideradas mais tarde como no vlidas (apcrifas) ali f guraram
momentaneamente, enquanto outras obras, que o Cnon atual do Novo Testa-
mento contm, estavam excludas naquela poca. As hesitaes duraram at os
Conclios de Hipona em 393 e de Cartago em 397. Mas os quatro Evangelhos
ali f guraram sempre.
Como R. P. Boismard, preciso lastimar o desaparecimento de uma pro-
digiosa soma de literatura declarada apcrifa pela Igreja, pois ela continha um
interesse histrico. Esse autor lhe d, com efeito, um lugar na Sinopse dos
Quatro Evangelhos, ao lado dos Evangelhos of ciais. Esses livros existiam ainda,
comenta ele, nas bibliotecas, em tomo do f m do sculo IV.
Esse sculo uma poca de sria colocao em ordem. dela que datam
os manuscritos completos mais antigos dos Evangelhos. Alguns documentos
anteriores, papiros do sculo III e um que poder datar do II, no nos transmi-
tem seno fragmentos. Os dois manuscritos em pergaminho mais antigos so
manuscritos gregos do sculo IV. So os Codex Vaticanus, do qual se ignora
o lugar da descoberta o que est conservado na Biblioteca do Vaticano, e o
Codex Snaiticus, descoberto no monte Sinai e que est conservado no Museu
Britnico de Londres. O segundo contm duas obras apcrifas.
Segundo a Traduo Ecumnica, existiriam no mundo duzentos e cin-
quenta outros pergaminhos conhecidos, os ltimos do sculo XI. Mas todas
as cpias do Novo Testamento que nos chegaram no so autnticas. Muito
ao contrrio, podemos discernir, entre elas, algumas diferenas que so de im-
portncia varivel, cujo nmero, em todo caso, considervel. Algumas dessas
diferenas no passam de detalhes gramaticais, o vocabulrio ou a ordem de
palavras, mas, outras vezes constata-se entre os manuscritos algumas divergn-
cias que afetam o sentido das passagens inteiras. Se se quiser tomar em con-
sideraes as divergncias de ordem textual, suf ciente percorrer o Novum
Testamentum Graecer
34
. Esta obra contm um texto grego chamado mdio,
que um texto-sntese com, uma nota, todas as variantes encontradas nas
diversas verses. A autenticidade de um texto, mesmo a dos manuscritos mais
venerveis, sempre discutida.
34 - Nestl et Aland. ed. 1971.
88
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O Codex Vatcanus fornece um exemplo digno. Sua reproduo fac-similada,
editada pela Cidade do Vaticano em 1965, acompanhada de uma notcia da
mesma procedncia que nos informam que vrios sculos depois da copia (em
redor do sculo X ou XI, acredita-se), um escriba repassou a tinta todas as le-
tras com exceo daquelas que ele julgava errneas. H algumas passagens do
texto onde, muito visivelmente, as letras primitivas de cor castanha persistem e
contrastam com o resto do texto, que de cor castanho-escuro. Nada permite
af rmar que a restaurao tinha sido f el. Alis, a nota prvia precisa: Ainda no
se distinguiu de maneira def nitiva as diferentes mos que, ao longo dos sculos,
corrigiram e anotaram o manuscrito; um certo nmero de correes foi cer-
tamente feito, no momento em que foi repassado o texto. Ora, em todos os
manuais, o manuscrito apresentado como uma cpia do sculo IV. preciso
ir s fontes vaticanas para perceber que algumas mos puderam, alguns sculos
mais tarde, alterar o texto.
Retrucar-se- que outros textos podem servir de comparao, mas como
escolher entre variantes que alteram o sentido? Sabe-se que a correo muito
antiga de um escriba pode comprometer a reproduo def nitiva do texto
corrigido. Verif car-se-, perfeitamente, mais adiante, que uma s palavra de um
texto de Joo, relativa ao Paracleto
35
, muda radicalmente o sentido da passagem
e modif ca inteiramente sua signif cao, sob o ponto de vista teolgico. Eis
o que O. Culmann escreveu a propsito das variantes em seu livro O Novo
Testamento:
Essas situaes resultam ora de erros involuntrios: o copista pulou
uma palavra, ou, ao contrrio, a escreveu duas vezes em segunda, ou, ainda, toda
uma sequencia da frase omitida por descuido, porque ela estava colocada
no manuscrito a ser recopiado, entre duas palavras idnticas. Ora, se trata de
correes voluntrias; ou o copista se permitiu corrigir o texto segundo suas
ideias pessoais, ou ele procurou harmonizar o texto com um texto paralelo, a
f m de reduzir-lhe mais ou menos, desajeitadamente, as divergncias. A medida
em que os escritos do Novo Testamento se separaro do resto da literatura
crist primitiva e vo sendo olhadas como Escritura Santa, os copistas hesita-
ro muito em se permitir tais correes de seus predecessores: eles acreditam
recopiar o texto autntico e f xariam assim as variantes. Ou, ento, f nalmente,
um copista anota o texto na margem para explicar uma passagem obscura. O
copista seguinte, pensando que aquela frase, que ele encontra a margem, havia
sido esquecida na passagem pelo predecessor, julga necessrio reintroduzir essa
anotao marginal no texto. Assim, o novo texto se torna, s vezes, ainda mais
obscuro.
35 - Esprito Santo; Mentor; Intercessor.
89
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Os escribas de certos manuscritos tomam, s vezes, grandes liberdades
com o texto. Foi o que ocorreu com um copista de um dos manuscritos mais
venerveis, depois, dos dois manuscritos referidos acima, o codex Bezae Conta-
brigienss, do sculo VI. Percebendo, sem dvida, a diferena entre as genealo-
gias de Jesus em Lucas e em Mateus, o escriba ps, em sua cpia do Evangelho
de Lucas, a genealogia de Mateus, mas como a segunda contm menos nomes
que a primeira, ele a preenche com nomes suplementares (sem, entretanto, res-
tabelecer equilbrio).
As tradues latinas, com a Vulgote de So Jernimo (seculo IV), e as
tradues mais antigas (Vetus ltalo), as tradues Siraca e Coptaso mais f is
que os manuscritos gregos de base? Elas poderiam ter sido feitas a partir de
manuscritos mais antigos que aqueles mencionados anteriormente, e que teriam
sido perdido sem nossos dias. No se sabe nada disso.
Conseguiu-se seriar o conjunto dessas verses em famlias, reunindo
um certo numero de caracteres comuns? assim que se pode def nir, segundo
Culmann:
- um texto dito srio, para cuja constituio poderiam ter sido usados
textos mais antigos, em grande maioria, manuscritos gregos; este texto
largamente divulgado, na Europa, desde o sculo XVI pela imprensa; ele
seria o pior, dizem os especialistas;
- um texto dito ocidental com suas antigas verses latinas e com o Codex
Bezae Contabrigiensis, simultaneamente em grego e em latim (segundo a
Traduo Ecumnica, uma tendncia pronunciada para explicaes, para
imprecises, para parfrases, para harmonizaes, uma de suas caracte-
rsticas);
- o texto dito neutro, ao qual pertencem o Codex Vaticanus e o Codex
Snaiticus, teria grande pureza; as edies modernas do Novo Testamento o
seguem tranquilamente, embora apresente, ele tambm, defeitos (Traduo
Ecumnica).
Tudo o que a crtica textual moderna pode nos oferecer, sob esse ponto
de vista, tentar reconstruir um texto, tendo as maiores chances possveis de
se aproximar do texto original. Est, de qualquer modo, fora de questo, esperar
remontar at o texto original mesmo (Traduo Ecumnica).
90
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
OS EVANGELHOS E A CINCIA MODERNA
AS GENEALOGIAS DE JESUS
Os Evangelhos contm pouqussimas passagens que possam conduzir a
uma confrontao com os dados cientf cos modernos.
Logo de incio, muitas das narraes dos Evangelhos que trataram de al-
guns milagres no se prestam muito a um comentrio cientf co. Esses milagres
interessam tanto a pessoas - a cura de doenas (possessos, cegos, paralticos,
leprosos, ressurreio de Lazaro) -, como a fenmenos puramente materiais,
margem das leis da natureza (o caminhar de Jesus sobre as guas que o
suportam, a transformao da gua em vinho). s vezes, pode ser um fen-
meno natural de aspecto incomum, em razo de sua realizao em um tempo
extremamente curto, como o apaziguamento imediato da tempestade, a seca
instantnea da f gueira, ou, ainda, a pesca miraculosa, como se todos os peixes
do lago estivessem agrupados em ponto preciso, onde as redes foram jogadas.
Em todos esses acontecimentos, Deus intervm como Todo-Poderoso,
no sendo de causar espanto o que ele capaz de fazer e que aos seres huma-
nos parece prodigioso, mas que, para Ele, no . Essas consideraes no signi-
f cam absolutamente que o crente no possa recorrer cincia. Crer no milagre
divino e crer na cincia so atitudes perfeitamente compatveis: uma da escala
divina; a outra, da escala humana.
Pessoalmente, eu creio sem objeo que Jesus pde curar o leproso, mas
eu no posso aceitar que se declare autntico e inspirado por Deus um texto
no qual eu li que vinte geraes somente existiram entre o primeiro homem
e Abrao, como Lucas, no seu Evangelho (3:23-25} n-lo disse. Veremos mais
adiante, as razes que estabeleceram que texto de Lucas, como o do Antigo
Testamento sobre o mesmo assunto, saiu, ingenuamente, da imaginao humana.
Os Evangelhos (como o Alcoro) nos do sobre as origens biolgicas de
Jesus a mesma narrao. O crescimento de Jesus no tero materno se operou
fora das leis da natureza comuns a todos os seres humanos, o vulo fecundado
pelo ovrio de sua me no teve necessidade de se conjugar comum espermato-
zoide que deveria vir de seu pai para formar em embrio e, depois, uma criana
perfeita. O fenmeno que acompanha o nascimento de um indivduo normal,
sem interveno do elemento fecundante masculino chamado partenognese.
91
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
No reino animal, a partenognese pode ser observada em certas condies. E
o caso de diversos insetos, de certos invertebrados e, muito excepcionalmente
de uma raa selecionada de pssaros. Em certos mamferos, se pode, experimen-
talmente, ente as coelhas, por exemplo, obter um incio de desenvolvimento do
vulo sem interveno do espermatozoide em um embrio em estado extrema-
mente rudimentar mas no se pode ir mais longe e no se conhece entre eles
nenhum exemplo de partenognese completa, nem experimental e nem natural.
Jesus um caso parte. Maria era virgem. Ela conservou sua virgindade e no
teve outros f lhos seno Jesus. Jesus uma exceo biolgica
36
.
As duas genealogias contidas nos Evangelhos de Mateus e de Lucas
apresentam problemas de probabilidade, de conformidade com os dados da ci-
ncia, e, consequentemente, de autenticidade. Esses problemas so extremamen-
te embaraosos para os comentadores cristos, porque eles se recusam a ver o
que evidentemente produto de imaginao humana: esta j havia inspirado os
autores sacerdotais do Gnesis no sculo VI A.C., para as suas genealogias dos
primeiros homens. ainda ela que inspira Mateus e Lucas para o que esses dois
autores no tomaram do Antigo Testamento.
preciso observar, de passagem, que essas genealogias masculinas no
tm nenhum sentido para Jesus. Se fosse preciso dar uma genealogia a Jesus,
f lho exclusivo de Maria, sem pai biolgico, essa deveria ser a de Maria, sua me.

36 - Os Evangelhos citam s vezes irmos e irms de Jesus (Mateus 13:46-50); (Marcos 6:1-6);
(Joo 7:3 e 2:I2). Os termos gregos ulizados adelphoi e adelphai signicam irmos e irms no sen-
do biolgico; trata-se certamente de tradues defeituosas de palavras de origem semca que tm
o sendo de familiares, simplesmente; tratava-se, talvez a, de primos.
92
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Eis aqui os textos segundo a Traduo Ecumnica da Bblica, Novo Testamento:
A genealogia segundo Mateus encabea o seu Evangelho:
Livro das Origens de Jesus Cristo Filho de David, Filho de Abrao
Abrao Gerou Isaac
Isaac Gerou Jac
Jac Gerou Judas e a seus irmos
Judas Gerou Fars e Zaro de Tamar
Fars Gerou Esron
Esron Gerou Aro
Aro Gerou Aminabad
Aminabad Gerou Naasson
Naasson Gerou Salmon
Salmon Gerou Boaz
Boaz Gerou Obed
Obed Gerou Jess
Jess Gerou Davi
Davi Gerou Salomo
Salomo Gerou Roboo
Roboo Gerou Abias
Abias Gerou As
As Gerou Josaf
Josaf Gerou Joro
Joro Gerou Ozias
Ozias Gerou Joato
Joato Gerou Acaz
Acaz Gerou Ezequias
Ezequias Gerou Manasss
Manasss Gerou Amon
Amon Gerou Josias
Josias Gerou Jecomias e seus irmos
93
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Isto foi at a deportao para a Babilnia. Aps a Deportao para a Babilnia:
Jecomias Gerou Salael
Salael Gerou Zorobabel
Zorobabel Gerou Abiud
Abiud Gerou Eleaquim
Eleaquim Gerou Azor
Azor Gerou Sadoque
Sadoque Gerou Achim
Achim Gerou Eliud
Eliud Gerou Eliazar
Eliazar Gerou Matan
Matan Gerou Jac
Jac Gerou
Jos, marido de Maria da qual nasceu Jesus,
que se chamava Cristo

O nmero total das geraes , portanto,: catorze de Abrao at Davi, catorze
de Davi at a deportao para a Babilnia, catorze da deportao para Babilnia
at Cristo.
Genealogia de Jesus antes de Davi

Segundo Lucas
Segundo Mateus (Ma-
teus no cita nenhum
nome antes de Abrao)
1 Ado Abrao
2 Set Isaac
3 Henos Jac
4 Cainan Judas
5 Malaquiel Fars
6 Jared Ezron
7 Henoe Aro
8 Matusalm Aminabad
94
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
9 Lamec Naasson
10 No Salmon
11 Sem Booz
12 Arfaxade Obed
13 Cainan Jess
14 Sale Davi
15 Heber
16 Fale
17 Regau
18 Sarug
19 Nacor
20 Tare
21 Abrao
22 Isaac
23 Jac
24 Judas
25 Fars
26 Esron
27 Aro
28 Admin
29 Aminabad
30 Naasson
31 Salmon
32 Booz
33 Obed
34 Jess
35 David
95
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Genealogia de Jesus, Aps Davi.
Segundo Lucas
35 David
36 Nat
37 Matata
38 Mena
39 Melia
40 Eleaquim
41 Jonas
42 Jos
43 Judas
44 Simeon
45 Levi
46 Matat
47 Jorim
48 Eliezer
49 Jesus
50 Her
51 Elmadan
52 Cosan
53 Adi
54 Melqui
55 Neri
56 Salael
57 Zaroababel
58 Reza
59 Joana
60 Jud
61 Jos
62 Semei
63 Mataas
64 Maat
Segundo Mateus
14 David
15 Salomo
16 Roboo
17 Abias
18 As
19 Josaf
20 Joro
21 Ozias
22 Joato
23 Acaz
24 Ezequias
25 Manass
26 Amon
27 Josias
28 Jeconias
Deportao Babilnia
29 Salael
30 Zaroababel
31 Abid
32 Eleaquim
33 Azor
34 Sadoc
35 Achim
36 Eliud
37 Eliazar
38 Matan
39 Jac
40 Jos
41 Jesus
96
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
65 Nage
66 Hesli
67 Naum
68 Ams
69 Mataas
70 Jos
71 Jane
72 Melqui
73 Levi
74 Matat
75 Heli
76 Jos
77 Jesus
VARIAES SEGUNDO OS MANUSCRITOS EM
RELAO AO ANTIGO TESTAMENTO
Postas parte algumas variantes ortogrf cas, preciso citar:
a) Evangelho de Mateus
A genealogia desapareceu do Codex Bezae Contabrigierusis, manuscrito
muito importante do sculo VI, bilngue grego-latim, totalmente para o texto
grego, em grande parte para o texto latino, mas pode tratar-se aqui de uma
simples perda das primeiras folhas.
preciso mencionar a grande liberdade de Mateus perante o Antigo
Testamento, ao qual ele amputa as genealogias a f m de atender a uma singular
relao numerada (que af nal ele no d, como se ver mais adiante).
b) Evangelho de Lucas
1. Antes de Abrao: Lucas menciona 20 nomes: O Antigo Testamento
no menciona alm de 19 (ver o quadro dos descendentes de Ado na parte
consagrada ao Antigo Testamento). Lucas acrescentou depois de Arfaxad (n
12) um certo Kainam (nQ l3), do qual no se encontra trao, no Gnese, como
f lho de Arfaxad.
97
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
2. De Abrao a David: encontram-se de 14 a 16 nomes, conforme os ma-
nuscritos.
3. De David a Jesus: a Variante mais importante a do Codex Bezae
Cantabrigiensis, que atribui a Lucas uma genealogia fantasista; baseava-se na de
Mateus, qual o escriba acrescentou cinco nomes. Infelizmente, a genealogia do
Evangelho de Mateus deste manuscrito desapareceu, o que no permite mais a
comparao.
EXAME CRTICO DOS TEXTOS
Estamos aqui em presena de duas genealogias diferentes, tendo por
ponto comum essencial o de passar por Abrao e David. Para facilidade desse
exame, dirigir-se- a crtica, dividindo o conjunto em trs partes:
- De Ado a Abrao
- De Abrao a David
- De David a Jesus
1. Perodo de Ado a Abrao
Mateus, comeando sua genealogia em Abrao, no ser considerado
aqui. Somente Lucas d indicaes sobre os ancestrais de Abrao at Ado: 20
nomes, dos quais 19 so encontrados, como se disse, no Gnesis (Captulos 4,
5 e 11).
Pode-se conceber que houve apenas 19 ou 20 geraes de seres hu-
manos antes de Abrao? O problema foi examinado a propsito do Antigo
Testamento. Se se quer bem se reportar ao quadro dos descendentes de Ado,
estabelecido de acordo com o Gnesis, e comportando as indicaes, em cifras
do tempo, que ressaltam do texto bblico, dezenove Sculos aproximados teriam
decorrido entre o aparecimento do homem sobre a terra e o nascimento de
Abrao. Ora, como se calcula atualmente que Abrao viveu em torno de 1850
A.C., deduz-se que as indicaes fornecidas pelo Antigo Testamento situam o
aparecimento do homem sobre a terra e trinta e oito sculos aproximadamente
A. C. Lucas foi, evidentemente, inspirado por esses dados para o seu Evangelho.
98
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Ele exprime, por t-los copiado, uma contra verdade f agrante. Viu-se mais acima
quais argumentos histricos peremptrios conduziram a esta af rmao.
Que os dados do Antigo Testamento sejam aqui inadmissveis para nos-
sa poca, ainda passa: caem no domnio do caduco, evocado pelo Conclio
Vaticano II. Mas que os evangelistas retomem por sua conta os mesmos dados
incompatveis com a cincia, uma constatao extremamente grave, oposta aos
defensores da historicidade dos textos evanglicos.
Os comentadores sentiram perfeitamente o perigo. Eles tentam contor-
nar a dif culdade, dizendo que no se trata de uma rvore genealgica completa,
que alguns nomes so pulados pelos evangelistas, de propsito, e que ocorre
somente a intenso de estabelecer, nas suas grandes linhas ou em seus elemen-
tos essenciais, uma sequncia fundada sobre a realidade histrica
37
. Nada nos
textos autoriza a levantar esta hiptese, porque est bem claro: um tal gera um
tal, ou um f lho tal dum tal. Alm disso, o evangelista, no que precede a Abrao,
notadamente, toma suas Informaes no Antigo Testamento, onde as genealo-
gias so expostas na forma seguinte:
X em tal idade, gerou Y... ...Y viveu tantos anos e gera Z. No h portanto
ruptura.
A parte da genealogia de Jesus, segundo Lucas, anterior a Abrao, no
admissvel luz dos conhecimentos modernos.
2. Perodo de Abrao a Davd
Aqui as duas genealogias correspondem ou quase, menos um ou dois
nomes: erros involuntrios dos copistas podem explicar a diferena.
A verossimilhana est a do lado dos evangelistas?
Davi situado pela histria em torno do ano 1000, Abrao l por
1850-1800 A.C.: 14 a 16 geraes para oito sculos aproximados; isto crvel?
Digamos que, para esse perodo, os textos evanglicos esto no limite das coisas
admissveis.
3. Perodo Posterior a Davi
Os textos no concordam mais inteiramente para estabelecer a ascen-
dncia davdica de Jos, f gurativa da ascendncia de Jesus para o Evangelho.
37 - A. Tricot. Pequeno dicionrio do Novo Testamento.
99
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Deixemos de lado a falsif cao evidente do Codex Bezae Contabrigensis
no que concerne a Lucas e comparemos os que nos relatam os dois manuscri-
tos mais vulnerveis: o Codex Vaticanus e o Codex Snaitcus.
Na genealogia de Lucas, 42 nomes tm seu lugar aps David (N 35) at
Jesus (N 77). Na gemealogia de Mateus, 27 so mencionados depois de Dad
(N 14) at Jesus (N 41).
O nmero de ascendentes (f ctcios) de Jesus , pois, diferente, poste-
riormente a David nos dois Evangelhos. Alm disso, os nomes so tambm
diferentes. Porm, h mais.
Mateus nos diz ter descoberto que a genealogia de Jesus se dividia,
depois de Abrao, em trs grupos de 14 nomes: o primeiro grupo de Abrao
a Davi; segundo grupo de David a deportao para a Babilnia; terceiro grupo,
da deportao para a Babilnia a Jesus. Seu texto comporta efetivamente 14
nomes nos dois primeiros grupos, mas, no terceiro grupo, da deportao para
a Babilnia a Jesus, h somente 13 nomes e no os 14 esperados, pois o quadro
mostra que Salathiel tem o N 29 e Jesus o N 41. No h uma variante em
Mateus que d 14 nomes para esse grupo.
Enf m, para conseguir 14 nomes no segundo grupo, Mateus toma gran-
des liberdades com o texto do Antigo Testamento. Os nomes dos seis primeiros
descendentes de David (N 15 a 20), esto conforme os dados do Antigo Testa-
mento. Mas os trs descendentes de Joro (N 20), que o duodcimo livro das
Crnicas da Bblia nos indica terem sido Ocasias, Joo e Amasias, so escamo-
teados por Mateus. Alm disso, Jeconias (N 28) , para Mateus, f lho de Josias
(N 27), enquanto, conforme o segundo livro dos Reis da Bblia, Eleaquim que
deve ser colocado entre Josias e Jeconias.
Assim est demonstrado que Mateus modif cou as sries genealgicas
do Antigo Testamento para apresentar um grupo f ctcio de 14 nomes entre
Davi e a deportao para a Babilnia.
Quanto ao fato de que falta um nome do terceiro grupo de Mateus,
assim como nenhum texto atual desse Evangelho contm os 42 nomes anun-
ciados, a perplexidade provm menos de lacunas em si (erro muito antigo de
um escriba que, se teria perpetuado, poderia explic-lo) que do silncio quase
geral dos comentadores a esse respeito. Como, com efeito, no se aperceber da
lacuna? O piedoso mutismo rompido por W. Trilling que, em seu livro - O
100
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Evangelho Segundo Mateus
38
, lhe consagra apenas uma linha. Ora, o fato est
longe de ser negligenciado, pois que os comentadores deste Evangelho, a
compreendidos os da Traduo Ecumnica e outros como o cardeal Danilon,
acentuam a importncia considervel do smbolo 3 vezes 14 de Mateus. Para
ilustr-lo, o evangelista no teria suprimido sem hesitao os nomes bblicos, a
f m de conseguir sua relao numerada?
No se detendo por isso, os comentadores vo construir uma apolog-
tica que tranquiliza, justif cando a escamoteao de nomes e deslizando sobre a
lacuna que faz cair o que o evangelista queria desmontar.
COMENTRIOS DE EXEGETAS MODERNOS
O cardeal Danilon atribui, em seu livro Os Evangelhos da Infncia
39
,
esquematizao numrica de Mateus, um valor simblico de primeirssima
importncia, pois ela que estabelece a ascendncia de Jesus, conf rmada tam-
bm por Lucas. Lucas e Mateus so, para ele, os historiadores que f zeram
sua enquete Histrica, a genealogia, como sendo recolhida nos arquivos
da famlia de Jesus. preciso acentuar que esses arquivos no foram jamais
encontrados
40
.
O cardeal Danilon lana o antema sobre os que criticam seu ponto de
vista: a mentalidade ocidental, escreve ele, ignorncia ao judeu-cristianismo,
falta de senso semtico que desgarraram tantos exegetas na interpretao dos
Evangelhos. Eles projetaram suas categorias (sic) platnicas, cartesianas, hegelia-
nas, heideggerianas. E por a se compreende porque tudo se tenha perturbado
em seu esprito. muito evidente que nem Plato, nem Descartes, nem Hegel,
nem Heidegger no intervm gratuitamente na atitude crtica que se pode ter
perante essas genealogias fantasistas.
O autor, procurando o sentido do 3 vezes 14 de Mateus, expande-se em
38 - Descle, Parole e Prire.
39 - Edions de Seuil.
40 - Ainda que o autor nos assegure conhecer a existncia desses pretensos arquivos familiares,
mediante a Histria Eclesisca de Euzbio, de sobre cuja seriedade ter-se-ia muito a dizer, dicil
duas rvores genealgicas que fossem necessariamente diferentes, visto que cada um dos pretensos
historiadores apresenta uma genealogia em grande parte diferente do outro, pelos nomes e pelo
nmero de ascendentes.
101
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
suposies singulares que no podemos seno citar: Pode-se tratar das dez se-
manas familiares ao apocalipse judeu, as trs primeiras correspondem ao tempo
que vai de Ado a Abrao, devendo ser subtradas: restam ainda sete semanas de
anos, as seis primeiras correspondem a seis vezes sete que representam os trs
grupos de catorze, e a stima como sendo inaugurada pelo Cristo, com quem se
abre a stima idade do mundo. Tais explicaes dispensam qualquer comentrio.
Os comentadores da Traduo Ecumnica da Bblia - Novo Testamento
nos oferecem, eles tambm, algumas variaes apologticas, igualmente inespe-
radas: Para as trs vezes catorze de Mateus:
a) catorze poderia ser a soma numrica de trs consoantes que formam
o nome de David em hebreu:
(D = 4, V = 6), de onde:
4+6+4=14.
b) trs vezes catorze igual seis vezes sete, e Jesus vem no f nal da sexta
semana da histria santa que comea com Abrao.
Para Lucas, esta interpretao d 77 nomes de Ado a Jesus, o que per-
mite fazer reintervir a cifra sete como divisor de 77 (7 x 11 = 77). Ora, parece
que para Lucas, o nmero das variantes, suprimindo nomes ou anexando-os,
tal que uma lista de 77 absolutamente artif cial, mas ela tem a vantagem de se
prestar a esse jogo de cifras.
As genealogias de Jesus, dos Evangelhos, so, talvez, o assunto que sus-
citou da parte dos comentadores cristos s acrobacias dialticas mais caracte-
rsticas, na justa medida da fantasia de Lucas e de Mateus.
CONTRADIES E DVIDAS DAS NARRAES
Cada um dos quatro Evangelhos comporta um nmero importante de
narraes dos acontecimentos que podem ser prprios a um s Evangelho,
ou bem, comuns a muitos ou a todos. Prprios a um s Evangelho, colocam,
s vezes, srios problemas; assim, no caso em que o acontecimento tem uma
grande alada, admira-se que apenas um Evangelista o comente: por exemplo,
102
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
a ascenso de Jesus ao cu, no dia da Ressurreio. Por outro lado, numerosos
acontecimentos so narrados diferentemente e, s vezes, muito diferentemente
por dois ou vrios evangelistas. Muito frequentemente, os cristos f cam cho-
cados com a existncia dessas contradies - quando as descobrem - entre
os Evangelhos, porque lhes repetiram com tanta segurana que seus autores
tinham sido as testemunhas oculares dos fatos que eles relataram.
Nos captulos precedentes, foram assinaladas algumas dessas incertezas e
contradies desconcertantes. Mas so, mui particularmente, os ltimos acon-
tecimentos que marcaram a vida de Jesus e que se desenrolam com a Paixo, o
assunto das narraes divergentes e contraditrias.
AS NARRAES DA PAIXO
R. P. Roguet mesmo, nota que a Pscoa est situada diferentemente no
tempo em relao ltima ceia de Jesus com os apstolos nos Evangelhos
sinticos e no quarto Evangelho. Joo coloca a ceia antes da festa da Pscoa e
os trs outros no decorrer da Pscoa. Resultam, alis, devido a essa divergncia,
algumas dvidas evidentes: tal episdio f ca inconcebvel em razo da situao
da Pscoa, assim f xada em relao a ele. Quando se sabe que importncia tinha
a Pscoa na liturgia judia e que importncia teve essa ceia de adeus de Jesus a
seus discpulos, como imaginar que a sua recordao tenha sido at esse ponto
dissipada, da parte de um em relao a outro, na tradio transmitida mais tarde
pelos evangelistas?
De uma maneira geral, as narraes da Paixo diferem segundo os Evan-
gelistas, muito particularmente entre os trs primeiros Evangelistas e Joo. A
ltima ceia de Jesus e a Paixo ocupam em grande lugar no Evangelho de Joo,
duas vezes mais que em Marcos e em Lucas; seu texto tem perto de uma vez e
meia o comprimento do texto de Mateus. Joo relata tambm um muito longo
discurso de Jesus a seus discpulos, cuja narrao ocupa quatro captulos (14 a
17) de seu Evangelho. Ao longo dessa conservao suprema, Jesus d a seus dis-
cpulos, que ele vai deixar, suas ultimas diretrizes e d seu testamento espiritual.
Ora, no h vestgio disso nos outros Evangelistas. Ao contrrio, Mateus, Lucas
e Marcos relatam a prece de Jesus em Getsmane: Joo no fala dela.
103
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A AUSNCIA NO EVANGELHO DE JOO
DA NARRAO DA INSTITUIO DA EUCARISTIA
O fato mais importante que impressiona o leitor da Paixo, no Evange-
lho de Joo, que ele no faz nenhuma meno da instituio da Eucaristia, no
decorrer da ltima ceia de Jesus com os apstolos.
No h um cristo que no tenha tido conhecimento da iconograf a
da Ceia, onde Jesus est mesa, no meio dos apstolos, pela ltima vez. Os
maiores pintores representaram essa reunio ltima com Joo ao lado de Jesus;
o Joo que se costuma considerar como o autor do Evangelho, que leva o seu
nome.
Por mais espantoso que isto possa parecer a muitos, o apstolo Joo
no pode ser considerado pela maior parte dos especialistas como o autor do
quarto Evangelho e este no menciona a instituio da Eucaristia. Ora, esta
consagrao do po e o vinho transformados em corpo e sangue de Jesus
alto litrgico essencial do cristianismo. Os trs outros evangelistas falam dela,
ainda que em termos diferentes como se mencionou mais acima. Joo no diz
uma palavra a respeito. As quatro narraes dos Evangelistas tm dois nicos
pontos comuns: o anncio da negao de Pedro e da traio de um dos aps-
tolos (Judas no designado nominalmente a no ser em Mateus e em Joo).
S a narrao de Joo comenta a lavagem dos ps de seus discpulos por Jesus,
no incio da refeio.
Como se explica a lacuna do Evangelho de Joo?
Se raciocinarmos objetivamente, o que vem imediatamente ao esprito,
supondo que a narrao dos trs primeiros Evangelistas seja exata, a hiptese
da perda de uma passagem do Evangelho de Joo que relatava o mesmo epis-
dio. Mas no o que chamou a ateno dos comentadores cristos.
Examinemos algumas tomadas de posio.
No seu Pequeno Dicionrio da Bblia, A. Tricot escreve o artigo Ceia.
ltima refeio que Jesus tomou com os Doze e durante a qual ele instituiu
a Eucaristia. Ns tempos a sua narrao nos Evangelhos sinticos (referncias
de Mateus, Marcos e Lucas) ...e o quarto Evangelho nos d alguns detalhes
complementares (referncias de Joo).
104
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
No artigo Eucaristia, o mesmo autor escreve: A instituio da Euca-
ristia brevemente narrada nos trs primeiros Evangelhos: era, na catequese
apostlica, um ponto da maior importncia. So Joo deu um complemento
indispensvel a essas narraes sucintas, relatando o discurso de Jesus sobre o
po da vida (6:32-58). O comentador no menciona, por consequncia, que
Joo no relatou a instituio da Eucaristia por Jesus. O autor fala de detalhes
complementares, mas no so alguns detalhes complementares da instituio
da Eucaristia (trata-se, essencialmente. de fato, da cerimnia do lava-ps dos
apstolos). Quanto ao po da vida do qual fala o comentador, a evocao
por Jesus - fora da Ceia - do donativo cotidiano por Deus do man no deser-
to, no tempo do xodo dos judeus dirigidos por Moiss, evocao que Joo
o nico dos Evangelistas a relatar. Certamente, na passagem que segue de seu
Evangelho, Joo menciona a aluso feita Eucaristia por Jesus sob a forma de
uma digresso a propsito do po, mas nenhum outro Evangelista fala desse
episdio.
Assim, pode-se f car perplexo, ao mesmo tempo, com o mutismo de
Joo sobre que os trs outros Evangelistas relatam, e do mutismo destes sobre
o que Jesus teria, segundo Joo, anunciado.
Os comentadores da Traduo Ecumnica da Bblia, Novo Testamento,
reconhecem esta grande lacuna do Evangelho de Joo, mas encontram a seguin-
te explicao para a falha da narrao da instituio da Eucaristia: De um modo
geral, Joo no atribui muito interesse s tradies e s instituies do antigo
Israel, o que, pode ser o tenha desviado de indicar o enraizamento da Eucaristia
na liturgia pascal. Com nos fazer crer que seja uma falta de interesse pela litur-
gia pascal judia, que levou Joo a no falar da instituio do ato fundamental da
liturgia da religio nova?
O problema embaraa tanto os intrpretes, que alguns telogos se es-
foram em pesquisar a pref gurao ou equivalentes da Eucaristia nos episdios
da vida de Jesus, contados por Joo. Assim, para O. Culmann, em seu livro O
Novo Testamento, o milagre de Cana e a multiplicao dos pes pref guram o
sacramento da Santa Ceia (a Eucaristia). Lembremo-nos de que se tratava, em
Cana, da mudana da gua em vinho, havendo falta dessa bebida a um casa-
mento (primeiro milagre de Jesus que, dentre os evangelistas, Joo o nico a
evocar em 2:1-12). Quanto multiplicao dos pes (Joo 6:1-13), ela teve por f m
alimentar 5.000 pessoas com 5 pes multiplicados pelo milagre. Joo no fez,
por ocasio da narrao desses acontecimentos, nenhum comentrio particular
e a aproximao puramente imaginada pelo exegeta. No se distingue a razo
da relao que ele estabelece, assim como causa muita perplexidade, quando
105
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
o mesmo autor acha que a cura de um paraltico e a do Cego de nascimento
anunciam o batismo, e que gua e o Sangue, saindo do lado de Jesus depois
de sua morte renem em um mesmo fato uma referncia ao batismo e Euca-
ristia.
Numa outra aproximao do mesmo intrprete a propsito da Euca-
ristia, R.P. Roguet cita em seu livro Iniciao ao Evangelho: Alguns telogos
bblicos como Oscar Culmann, escreve ele, veem na narrao do lava-ps, antes
da ceia, um equivalente simblico da instituio Eucarstica.
Mal se discerne a fundamentao de todas essas aproximaes imagi-
nadas pelos comentadores, para fazer aceitar mais facilmente a lacuna mais
desconcertante do Evangelho de Joo.
O APARECIMENTO DE JESUS RESSUSCIATADO
Um exemplo maior da fantasia na narrao j foi evocada a propsito do
Evangelho de Mateus, com sua descrio dos fenmenos anormais que teriam
acompanhado a morte de Jesus. Os acontecimentos que seguem a ressurreio
vo fornecer matria a algumas narraes contraditrias, e mesmo extravagan-
tes, da parte de todos os evangelistas.
R.P. Roguet, em sua Iniciao ao Evangelho, nos d (p. 182) alguns exem-
plos da confuso, da desordem, e da contradio que reinam nos escritos.
A lista das mulheres unidas ao tmulo no todavia a mesma nos trs
sinticos. Em Joo, no h alm de uma: Maria de Magdalena. Mas ela fala no
plural como se ela tivesse companheiras: Ns no sabemos onde eles o colo-
caram.
Em Mateus, o anjo anuncia s mulheres que elas vero Jesus na Galileia.
Ora, logo depois, Jesus vem a seu encontro ao lado do tmulo. Lucas deve ter
sentido essa complicao e retoca um pouco o seu depoimento. O anjo diz:
Lembrai-vos como ele vos falou, estando ainda em Galileia... E, de fato, Lucas
no menciona seno trs aparies... - Joo coloca duas aparies, com 8 dias
de intervalo, no cenrio de Jerusalm; depois, a terceira vez, junto ao lago, por-
tanto na Galileia. Mateus tem somente uma apario na Galileia. O comenta-
106
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
dor exclui deste exame o f nal do Evangelho de Marcos que fala das aparies,
porque pensa que ele sem duvida de urna outra mo.
Todos esses fatos esto em contradio com a meno das aparies de
Jesus, contida na primeira epstola de Paulo aos Corntios (15:5-7) a mais de qui-
nhentas pessoas simultaneamente, a Jac, a todos os apstolos, sem esquecer o
prprio Paulo. Causa espcie, aps isso, quando RP. Roguet estigmatiza, no mes-
mo livro, as fantasmagorias grandiloquentes e ingnuas de certos apcrifos a
propsito da ressurreio. Com efeito, esses termos no convm perfeitamente
a Mateus e ao prprio Paulo, que est em completa contradio com os outros
evangelistas a propsito das aparies de Jesus ressuscitado?
Alm dessas, h contradio entre a narrao do Ato dos Apstolos,
obra do Evangelista Lucas, sobre a apario de Jesus a Paulo e o que Paulo nos
informa sucintamente. Isso levou R.P. Kannengiesser a sublinhar no seu livro F
na Ressurreio, Ressureio da F (1974), que Paulo, nico testemunho ocular
da ressurreio de Cristo, cuja voz chega diretamente at ns atravs de seus
escritos
41
no fala jamais de seu encontro pessoal com o Ressuscitado - ... alm
de trs aluses extremamente discretas... - Melhor, ele se probe de descrev-
-la.
A contradio entre Paulo, nico testemunho ocular, porm, suspeito, e
os Evangelhos patente.
O. Culmann, em seu livro O Novo Testamento anota as contradies
entre Lucas e Mateus; o primeiro, situando suas aparies de Jesus na Judia, e,
o segundo, na Galilia.
Quanto contradio Lucas-Joo, lembremos que o episdio contado
por Joo (21:1-4) sobre a apario de Jesus ressuscitado aos pescadores, beira
do lado de Tiberades, os quais vo, em seguida, pegar todos peixes que no
podero mais carregar, no outra coisa seno a repetio do episdio da pesca
miraculosa, no mesmo lugar, quando Jesus ainda estava vivo, orientado tambm
por Lucas (5:1-11).
R.P. Roguet nos assegura, em seu livro, a propsito dessas aparies,
que esse (desconexo), essa f uidez, essa desordem lhe d conf ana, porque
somente esses fatores provam que os evangelistas no esto combinados; caso
contrrio eles no teriam deixado de pr em unssonos os seus violinos. O
41 - A Nenhum outro autor do Novo Testamento pode se atribuir semelhante qualidade faz ele
observar. dicil imaginar como alguns poderiam faz-lo?
107
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
arrazoado singular. Com efeito, todos puderam tambm relatar com total
sinceridade as tradies completamente remanseadas - a seu bel-prazer - de
suas comunidades: como no ser levado a levantar esta hiptese perante tantas
contradies e improvveis na exposio dos acontecimentos?
A ASCENSO DE JESUS
As contradies prolongam-se at o f m das narraes, pois nem Joo e
nem Mateus mencionam a Ascenso de Jesus. Somente Marcos e Lucas referem-
-se a ela.
Para Marcos (16.19), Jesus foi elevado ao cu e est sentado direita
de Deus, sem nenhuma preciso de data em relao sua ressurreio; mas
preciso notar que o f nal do Evangelho de Marcos, que contm essa frase, no
autntico, o texto postio para R. P. Roguet, embora, para a lgreja, ele seja
cannico!
Resta Lucas, o nico que evoca em um texto no discutido o episdio
da Ascenso (24:51): Jesus se separa deles
42
e foi elevado ao cu. O aconteci-
mento est colocado pelo evangelista no f m da narrao da ressurreio e do
aparecimento aos onze: os detalhes da narrao evanglica do a entender que
foi no dia da ressurreio que a ascenso ocorreu. Mas nos Atos dos Apstolos,
Lucas - do qual todo mundo pensa que ele o autor descreve (1:2-3), as apa-
ries de Jesus aos apstolos entre a Paixo e a ascenso, nestes termos: Eles
tiveram mais de uma prova quando, durante quarenta dias, ele se fez ver por
eles e lhes falou do reino de Deus.
Esta passagem dos Atos dos Apstolos a origem e f xao da festa crist da
ascenso, quarenta dias depois da Pscoa, em que festejada a Ressurreio. A
data assim f xada choca-se com b Evangelho de Lucas; nenhum texto evanglico
a justif ca em nenhum lugar. Quando toma conhecimento dessa situao, o cris-
to f ca desconcertado, pois a contradio evidente. A Tradio Ecumnica da
Bblia, Novo Testamento, reconhece, entretanto, os fatos, mas no ref ete sobre
a contradio, contendo-se em mencionar o interesse que possam ter esses
quarenta dias pura a misso de Jesus.
42 - Trata-se dos onze apstolos. Judas estava morto.
108
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Os comentadores, que querem tudo explicar e conciliar o inconcilivel,
nos oferecem a esse respeito singulares interpretaes.
Assim, a sinopse dos quatro Evangelhos editada em 1972 pela Escola
Bblica de Jerusalm contm (vol. 2, p. 451) comentrios muito curiosos.
A prpria palavra ascenso criticada nestes termos: Com efeito, no
houve ascenso no sentido fsico propriamente dito, porque Deus no est
mais no alto que em baixo... (sic)
Apanha-se mal o sentido desta observao, pois se pergunta como Lucas
teria podido se expressar de outra maneira.
Ademais, o autor do comentrio v um artifcio literrio no fato de
que, nos Atos, est dito que a ascenso teve lugar quarenta dias aps a ressur-
reio, tal artifcio destinado a sublinhar que o perodo das aparies de
Jesus sobre a Terra chega ao f m. Mas acrescenta ele, no fato que no Evangelho
de Lucas, o acontecimento se coloca tarde do domingo de Pscoa, pois que
o evangelista no pe nenhum intervalo entre os diversos episdios que ele
comenta, depois da descoberta do tmulo vazio na manh da ressureio..., ...
no tambm a um artifcio literrio, destinado a deixar um certo lapso de
tempo para as aparies do ressuscitado? (sic).
O constrangimento que resulta de interpretaes dessa natureza ainda
mais patenteado no livro de R.P. Roguet, que distingue... duas ascenses!
Enquanto a ascenso, do ponto de vista de Jesus, coincide com a Res-
surreio, ela no ocorreu sob o ponto de vista dos discpulos, a no ser quan-
do Jesus cessa completamente de se manifestar a eles, para que o Esprito lhes
seja enviado, e comece o tempo da Igreja.
Ao leitor que no seria capaz de perceber a sutileza teolgica de sua
argumentao, que no tem a mnima base nas escrituras, o autor enderea um
alerta geral, modelo de verborragia apologtica: Aqui, como em muitos casos
semelhantes, o problema no parece insolvel, a no ser que se tome ao p da
letra, materialmente, as af rmaes da Escritura, esquecendo-se sua signif cao
religiosa. No se trata de dissolver a realidade dos fatos num simbolismo in-
consistente, mas de procurar a intenso teolgica daqueles que nos revelam
mistrios, fornecendo-nos fatos sensveis, signos apropriados ao enraizamento
carnal de nosso esprito.
109
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
AS LTMAS PALAVRAS DE JESUS
O PARACLETO DO EVANGELHO DE JOO
Joo o nico evangelista a relatar, no f m da ltima refeio de Jesus e
antes de sua priso, o episodio das derradeiras entrevistas com os apstolos, o
qual se completa com discurso bem longo: quatro captulos do Evangelho de
Joo (14 a 17) so consagrados a essa narrao, da qual no se encontra nenhu-
ma citao nos outros evangelhos. E, no entanto, esses captulos de Joo tratam
de questes primordiais, de perspectivas de futuro de importncia fundamental,
expostas com toda a grandeza e a solenidade, que caracterizam essa cena das
despedidas do Mestre aos seus discpulos.
Como podemos explicar que esteja inteiramente ausente em Mateus,
Marcos e Lucas a narrao e despedidas to comoventes que contm o testa-
mento espiritual de Jesus? Pode-se questionar: o texto existiu inicialmente nos
trs primeiros evangelistas? Teria sido suprimido logo a seguir? E por qu? Di-
gamos, de passagem que nenhuma resposta pode ser fornecida; o mistrio f ca
insolvel sobre essa enorme lacuna, na narrao dos trs primeiros evangelistas.
O que rege esta narrao - isto se concebe num encontro supremo - a
perspectiva do futuro dos homens, evocada por Jesus, e o cuidado do Mestre
em dirigir aos seus discpulos, e atravs deles humanidade inteira, suas reco-
mendaes e seus mandamentos, e em def nir qual ser, em def nitivo, o guia
que os homens devero seguir depois do seu desaparecimento. O texto do
Evangelho de Joo, e somente ele designa, explicita o nome grego Paracletos,
tornado Paraclet em francs. Eis aqui, segundo a Traduo Ecumnica da Bblia,
Novo Testamento, as passagens essenciais: Se vs me amais, vs vos aplicareis
a observar meus mandamentos; de minha parte eu rogarei ao Pai: ele nos dar
um outro paracleto (14:15-16).
O que signif ca Paracleto? O texto que possumos atualmente do Evan-
gelho de Joo explica o seu sentido, nestes termos:
O Paracleto, o Esprito Santo que o Pai enviar em meu nome, vos
comunicar todas as coisas, e vos far relembrar de tudo o que eu vos tenho
dito (14:20).
Ele dar (tambm) testemunho de mim (15-16).
Para vs convm que eu me v; porque, se eu no partir, o Paracleto
110
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
no vir a vs; se ao contrrio, eu partir, eu v-lo enviarei. E ele, por sua vinda,
convencer o mundo a respeito do pecado, da justia e do julgamento... (16:7-
8).
Quando vier o Esprito da verdade, ele vos guiar a toda verdade; por-
que no falar por si mesmo, mas dir tudo o que tiver ouvido, e vos anunciar
as coisas que ho de vir. Ele me glorif car... (16:13-14).
( de se notar que as passagens no citadas aqui dos Captulos 14-17
do Evangelho de Joo no modif cam de modo algum o sentido geral essas
citaes).
Submetendo-o a uma leitura rpida, o texto francos que estabelece a
identidade Ca palavra grega Paracleto com o Esprito Santo no merece, mais
frequentemente, ateno. Alm disso, os subttulos do texto, geralmente em-
pregado nas tradues e nos termos dos comentrios apresentados nas obras
de vulgarizao, orientam o leitor para o sentido que a ortodoxia consagrada
quer dar a essas passagens. Qualquer dvida ou dif culdade de compreenso, ali
estaria, para oferecer quaisquer esclarecimentos, o Petit Dicionnaire du Noveau
Testament de A. Tricot. Da autoria desse comentador, no artigo Paracleto,
pode-se ler, efetivamente. o seguinte:
Este nome ou esse ttulo, transcrito do grego em francs. no em-
pregado no Novo Testamento seno por So Joo: Quatro vezes, quando ele
relata o discurso de Jesus depois da Ceia
43
(14:16 e 26; 15:26; 16:7) e, uma vez, na
sua primeira epistola (2:1). No Evangelho Junino, a palavra se aplica ao Esprito
Santo; na Epstola, ao Cristo. Paracleto era um termo comumente empregado
pelos judeus helenistas do sculo I no sentido de intercessor, de defensor. (...)
O Esprito, anuncia Jesus, ser enviado pelo Pai e pelo Filho e ter por misso
especf ca substituir o Filho no papel de salvao, exercido por este durante sua
vida mortal em benefcio de seus discpulos. O esprito intervir e agir como
substituto do Cristo, como Paracleto ou intercessor todo poderoso.
Este comentrio faz, portanto, do Esprito Santo, o guia ltimo dos
homens depois da desapario de Jesus. Estaria ele de acordo com o texto de
Joo?
A questo deve ser colocada porque, a priori, parece- curioso-que se
possa atribuir ao Esprito Santo o ltimo pargrafo citado mais adiante: Ele
43 - Em realidade, exatamente no decorrer da Ceia que, para Joo, Jesus pronunciou o
longo cujo assunto o Paracleto, discurso no relatado pelos outros evangelistas.
111
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
no falar por si mesmo, mas ele dir o que ouvir e ele vos comunicar tudo o
que de vir. Parece inconcebvel que se ouve dar ao Esprito Santo os poderes
de falar e dizer o que ele ouve... At onde vai meu conhecimento, esta questo
que a lgica manda por em destaque, no geralmente objeto de comentrios.
Para ter uma ideia exata do problema, necessrio repousar-se ao texto
grego de base. Isso muito importante, porque se atribui ao evangelista Joo
t-lo escrito em grego e no em outra lngua. texto grego consultado foi o
Novum Testamentum Graecer
44
.
Toda crtica textual sria comea pela pesquisa das variantes. Aqui parece
que, no conjunto dos manuscritos comuns do Evangelho de Joo, no existem
outras variantes susceptveis de alterar o sentido da frase seno aquela da passa-
gem 14: 26 da famosa verso em lngua siraca chamada Palimpsesto (Escrito no
sculo IV ou V e descoberto no monte Sinai, em 1812, por Agns S. Lewis, esse
manuscrito assim chamado porque o texto inicial tinha sido recoberto por
um outro texto que, apagado, fez aparecer o primeiro.). Nela no se menciona o
Esprito Santo, mas simplesmente o Esprito. O escriba fez uma simples omisso,
ou, no, colocado perante um texto a recopiar, o qual pretendia falar ouvir e
falar o Esprito Santo, no ousou escrever o que lhe pareceu um absurdo? Alm
dessa observao, no h jeito para insistir sobre outras variantes, a no ser
nas variantes gramaticais que no mudam em nada o sentido geral. O essencial
que o que aqui est, posto sobre a signif cao precisa dos verbos ouvir e
falar valha para todos os manuscritos do Evangelho de Joo, esse o caso.
O verbo falar da traduo portuguesa o verbo grego lale que teve
o sentido geral de emitir os sons e o sentido particular de falar. Este verbo
reaparece, muito frequentemente, no texto grego dos Evangelhos para designar
uma declarao solene de Jesus no curso de sua predicao. Parece, portanto,
que a comunicao aos homens, de que se tem conta a, no consiste de modo
algum em uma inspirao que seria o ativo do Esprito Santo, mas que ela tem
carter material evidente, em razo da noo da emisso de sua ligao palavra
grega que a def niu.
Os dois verbos gregos AKOU e LALE def nem, portanto, as aes
concretas que no podem ter relao seno a um ser dotado de um rgo de
audio e de um rgo da palavra. Aplicados, por consequncia, ao Esprito
Santo, no possvel.
44 - Nestl et Aland. 1971.
112
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Assim, tal como nos dado pelos manuscritos gregos, o texto dessa pas-
sagem do Evangelho de Joo perfeitamente incompreensvel se aceito, em sua
ntegra, com as palavras Esprito Santo da frase: (14:26): O Paracleto, o Esprito
Santo que o Pai enviar em seu nome... etc.; nica frase que, no Evangelho de
Joo, estabelece identidade entre Paracleto e Esprito Santo.
Mas se se suprimir Esprito Santo (to pneuma to agion) dessa frase,
todo o texto de Joo apresenta uma signif cao extremamente clara. Ela , alis,
concretizada por outro texto evanglico, a primeira epstola onde Joo utiliza
a mesma palavra Paracleto para designar simplesmente Jesus, enquanto inter-
cessor ao lado de Deus
45
. E, quando Jesus diz, segundo Joo (14:16): Eu rogarei
ao Pai: Ele vos enviar um outro Paracleto, ele quer dizer que Ele enviar aos
homens um outro intercessor como ele mesmo foi, ao lado de Deus, em seu
favor, quando de sua vida terrestre.
-se, ento, conduzido, com toda a lgica, a ver no Paracleto de Joo um
ser humano como Jesus, dotado de faculdades de audio e de palavra, facul-
dades que o texto grego de Joo implica de modo formal. Jesus anuncia, pois,
que Deus enviar mais tarde a esta terra, um ser humano para aqui ter o papel
def nido por Joo que , seja dito em uma palavra, o de um profeta escutando a
voz de Deus e repetindo aos homens sua mensagem. Tal a interpretao lgica
do texto de Joo, se dermos s palavras o seu sentido real.
A presena de Esprito Santo, no texto que ns possumos, hoje, pode-
ria, perfeitamente, decorrer de um acrscimo posterior, completamente volunt-
rio, destinado a modif car o sentido primitivo duma passagem que, anunciando
a vinda do profeta depois de Jesus, estava em contradio com os ensinamentos
das Igrejas crists nascentes, querendo que Jesus fosse o ltimo dos Profetas.
CONCLUSES
Os fatos que foram relacionados aqui e os comentrios citados de vrios
exegetas cristos muito eminentes refutaram as af rmaes da ortodoxia, tendo,
como apoio, a linha adotada pelo ltimo conclio, concernente historicidade
absoluta dos Evangelhos que teriam f elmente transmitido o que Jesus realmen-
te fez e ensinou.
45 - Muitas das tradies e comentrios, sobretudo, angos, dos Evangelhos, traduzem a
palavra por consolador, o que um erro completo.
113
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Os argumentos que foram apresentados so de vrias ordens. Em pri-
meiro lugar, as prprias citaes dos Evangelhos, estabelecendo algumas contra-
dies f agrantes. No se pode crer na existncia de dois fatos que se contra-
dizem. No podem ser aceitas certas improvveis ou algumas informaes que
no condizem com os dados perfeitamente estabelecidos pelos conhecimentos
modernos. As duas genealogias de Jesus que os Evangelhos apresentam e o que
eles implicam de contra verdade so, a esse respeito, perfeitamente demonstra-
tivas.
Muitos cristos ignoram essas contradies, improvveis ou incompa-
tibilidades com a cincia moderna e f cam estupefatos quando as descobrem,
inf uenciados como estavam pela leitura dos comentrios a oferecer sutis expli-
caes destinadas a tranquiliz-los, com apoio no lirismo apologtico. Alguns
exemplos bem caractersticos, foram fornecidos sobre habilidade de certos
exegetas em camuf ar o que eles chamam pudicamente de dif culdades. Muito
raras so, com efeito, as passagens dos Evangelhos reconhecidas como inautn-
ticas, quando a Igreja as declarou of cialmente cannicas.
Os trabalhos da crtica textual moderna colocaram em evidncia os da-
dos que, segundo R.P. Kannengiesser, constituem uma revoluo dos mtodos
exegticos e levam a no mais tomar ao p da letra os fatos comentados a
respeito de Jesus pelos Evangelhos escritos de circunstncias ou de com-
bate. Os conhecimentos modernos, tendo esclarecido a histria do judeu-
-cristianismo e as rivalidades entre a comunidade, explicam a existncia de fatos
que desconcertam os leitores de nossa poca. A concepo de evangelistas
testemunhas oculares no mais defensvel, mas ela , ainda em nossos dias, a
de numerosos cristos. Os trabalhos da Escola Bblica de Jerusalm (R.P. Benoit
e R.P. Boismard) demonstram muitssimo bem que os Evangelhos foram escritos,
revistos e corrigidos vrias vezes.
Tambm o leitor do Evangelho prevenido por eles de que deve renun-
ciar, em mais de um caso, a ouvir a voz direta de Jesus.
O carter histrico dos Evangelhos no discutvel, mas esses documen-
tos, acima de tudo, atravs das narraes concernentes a Jesus, sobre a menta-
lidade dos autores, porta-vozes da tradio das comunidades crists primitivas
s quais eles pertenceram e, em particular, sobre as lutas entre judeu-cristos e
Paulo, nos informam: os trabalhos do cardeal Danilon pesam com autoridade
sobre esses pontos.
Ento, como f car perplexo perante a deturpao de certos aconteci-
114
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
mentos da vida de Jesus por evangelistas, que tinham por f m defender um
ponto de vista pessoal, como f car espantado com a omisso de certos acon-
tecimentos, como f car espantado com o aspecto romanceado da descrio de
alguns outros?
Somos levados a comparar os Evangelhos s nossas canes de gestas da
literatura medieval. Sugestiva a comparao que se pode fazer com a cano
de Rolando, a mais conhecida de todas, que relata, sob um aspecto romanceado,
um acontecimento real. Sabemos que ela relata um episdio autntico: uma
emboscada que aniquilou a retaguarda de Carlos Magno, comandada por Ro-
lando na garganta de Roncevales. Este episdio, de importncia secundria, teria
acontecido, segundo a crnica histrica (Eginhard), a l5 de outubro de 778; foi
ampliado s dimenses de um grandessssimo feito de armas, de um combate
de guerra santa. A narrao fantasista, mas esta fantasia no pode eclipsar a
realidade de uma das lutas que Carlos Magno teve de empreender, para garantir
suas fronteiras contra as tentativas de penetrao dos povos vizinhos: a est o
que h de autntico; o modo pico da narrao no o desfaz.
Para os Evangelhos, d-se o mesmo: as fantasmagorias de Mateus, as con-
tradies f agrantes entre os Evangelhos, as improvveis, as incompatibilidades
com os dados da cincia moderna, as alteraes sucessivas dos textos fazem
com que os Evangelhos contenham alguns captulos e algumas passagens de-
pendentes exclusivamente da imaginao humana. Mas essas falhas no levam a
pr em dvida a existncia da misso de Jesus: as dvidas pairam somente sobre
a sua realizao.
115
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O ALCORO E A CINCIA MODERNA
INTRODUO
A priori, uma tal associao entre o Alcoro e a cincia surpreende; tan-
to mais, que de harmonia e no de discordncia que ela vai tratar. Confrontar
um livro religioso e consideraes profanas que a cincia chama, no , aos
olhos de muitos, coisa paradoxal em nossa poca? Com efeito, hoje, com natu-
ralmente algumas excees, os cientistas, imbudos, em sua maioria, por teorias
materialistas, no tm, muito frequentemente, seno indiferena ou desprezo pe-
las questes religiosas, consideradas por eles, comumente, como fundamentadas
em lendas. Alm do mais, em nossos pases ocidentais, quando se fala de cincia
e de religio, o dptico religioso engloba, sem problemas, Judasmo e Cristia-
nismo, mas no se imagina inserir a no Islam. Emitiram, alis, sobre ele, tantos
julgamentos inexatos, fundados em concepes errneas, que , em nossos dias,
muito difcil fazer-se uma ideia exata do que ele em realidade.
Como preludio a toda confrontao entre Revelao Islmica e Cincia,
parece absolutamente necessrio dar um resumo de uma religio to mal co-
nhecida em nosso pas.
Os julgamentos completamente errneos que se emitiram sobre a Re-
velao no Ocidente so o resultado tanto da ignorncia, quanto do denegri-
mento sistemtico. Porm, as mais graves de todas as falsidades difundidas so
as falsidades concernentes aos fatos, pois, se alguns erros de apreciao so
perdoveis, uma apresentao dos fatos contrria verdade no o . conster-
nador ler nas obras mais srias, vindas de autores a priori competentes, contra
verdades f agrantes. Eis aqui um exemplo: na Encclopdia Universalis, Vol. 6,
artigo Evangelhos, uma aluso feita s diferenas com o Alcoro, e o autor
escreve: Os evangelistas no pretendem [...], como o Alcoro, transmitir uma
autobiograf a miraculosamente ditada por Deus ao Profeta... Ora, o Alcoro
nada tem a ver com uma autobiograf a: ele
uma predicao; o auxlio da pior das tradues poderia revel-la ao autor. Essa
af rmao to contrria realidade como a que def nisse um Evangelho como
a narrao da vida de um evangelista. O responsvel por essa falsidade sobre o
Alcoro um professor da Faculdade de Teologia, Jesuta de Lyon! A emisso de
contra verdades dessa ordem contribui para dar uma imagem falsa do Alcoro
e do Islam.
116
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
H, entretanto, algumas razes para esperar, pois, hoje, as religies no es-
to mais, como outrora, voltadas sobre si mesmas e muitas procuram uma com-
preenso mtua. Como no se impressionar com o fato de que, nos escales
mais elevados da hierarquia, cristos catlicos dedicam-se a estabelecer contato
com os muulmanos, procuram combater a incompreenso, e se esforam para
reformar as representaes inexatas difundidas sobre o Islam?
Eu evoquei na Introduo deste livro, a considervel mudana que se
produziu nos ltimos anos e citei um documento emanado do Secretrio do
Vaticano para os no cristos, intitulado Orientaes Para Um Dialogo Entre
Cristos e Muulmanos, documento muito signif cativo das posies novas
adotadas perante o Islam. Elas exigem - leiamos na terceira edio (1970) des-
se estudo - uma reviso de nossa posio em relao a ele e uma crtica de
nossos preconceitos... ns devemos nos preocupar, primeiro, em mudar pro-
gressivamente a mentalidade de nossos irmos cristos. o que importa acima
de tudo... preciso abandonar a imagem envelhecida herdada do passado
ou desf gurada por preconceitos e por calnias... reconhecer as injustias
das quais o Ocidente cristo tornou culpado, em relao aos muulmanos.
46
.
O documento do Vaticano, que tem por volta de cento e cinquenta pginas,
desenvolve, assim, a refutaes das vises clssicas que os cristos tiveram sobre
o Islam e expe o que ele , em realidade.
Sob o ttulo Liberar-nos de Nossos preconceitos Mais Notrios, os
autores deste documento endeream este convite aos cristos: A, tambm,
temos que nos entregar a uma profunda purif cao de nossas mentalidades.
Ns pensamos em particular em certos julgamentos de valor que lanamos
muito frequentemente e levianamente sobre o Islam. Parece capital no cultivar
de modo algum, no ntimo de nosso corao, essas vises muito superf ciais,
quando no arbitrrias, onde o muulmano sincero no se reconhece.
Uma dessas vises arbitrrias, de maior ordem, justamente aquela que
conduz sistematicamente, em nossa lngua, a designar o Deus dos muulmanos
com o nome de Allah, como se os muulmanos acreditassem em um Deus que
46 - Toda forma de hoslidade voltada para o Islam, mesmo vinda de adversrios decla-
rados do crisanismo, recebeu, em uma certa poca, aprovao calorosa dos mais altos
signatrios da Igreja Catlica assim, que o Papa Benedito XIV, conhecido por ser o maior
ponce do sculo XVIII, no hesita em enviar a beno a Voltaire. Ele queria agradecer-
-lhe por ter dedicado sua tragdia Muhammad ou Fanasmo (1741), grosseira sra,
no se importando de que um negador de pena hbil e de m f possa escrever sobre no
importa qual assunto. A pea recebeu, aps apresentaes diceis, suciente presgio
para ser inscrita no repertrio da Comdie Franaise.
117
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
no fosse o dos cristos! Al-Lh, signif ca, em rabe, a Divindade; trata-se de uma
divindade nica, o que implica que uma transcrio francesa correta no pode
dar o sentido exato da palavra a no ser com a ajuda do vocbulo Deus
47
. Para
o muulmano, Al-Lh, no outro seno o Deus de Moiss e de Jesus.
O Documento do Secretariado do Vaticano para os no cristos insiste
nesse dado fundamental, nestes termos:
Parece intil sustentar com alguns ocidentais que Allah no verdadei-
ramente Deus! Os textos conciliares fazem justia a tal assero. No se saberia
melhor resumir a f islmica em Deus, como nestas frases do Lumen Gentium
48
:
Os muulmanos que professam a f de Abrao adoram conosco o Deus nico,
misericordioso, futuro juiz dos homens no ltimo dia....
Compreende-se, desde logo, o protesto dos muulmanos diante do cos-
tume muito frequente de nunca se dizer Deus, mas Allah, em lngua europeia.
Alguns muulmanos letrados elogiam a traduo do Alcoro de D. Masson
por ter enf m escrito Deus e no Allah. E o texto do Vaticano, por fazer
observar: Allah a nica palavra que tm os cristos de lngua rabe para dizer
Deus.
Muulmanos e cristos adoram um Deus nico. O documento do Vati-
cano retoma a seguir a crtica dos outros julgamentos falsos lanados sobre o
Islam.
O fatalismo do Islam, preconceito to difundido, examinado e, com
apoio em citaes do Alcoro, o documento lhe ope o sentido da responsabi-
lidade do homem que ser julgado por seus atos. Ele mostra que a concepo
de um juridismo do Islam falso e lhe ope, ao contrrio, uma sinceridade da
f, com a citao de duas frases do Alcoro, to mal conhecidas pelos ociden-
tais:
No h imposio quanto religio... (captulo 2, versculo 256).
... E (Deus) no vos imps dif culdade alguma na religio... (Captulo 22,
Versculo 78).
O documento ope ideia difundida do Islam, religio do temor, ao
Islam, religio do amor ao prximo, enraizado na f em Deus.
47 - Transcrio francesa Dieu.
48 - Lumen Genum, tulo de um documentrio do Conclio Vacano II (1962-1965)
118
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Ele refuta a ideia que propagaram falsamente, segundo a qual no h
moral muulmana, e esta outra dividida entre judeus e cristos, sobre o fana-
tismo do Islam, que ele comenta nestes termos: De fato o Islam no foi muito
mais fantico ao longo de sua histria do que as cidades sacras da cristandade,
quando a f crist ali recebia, de alguma sorte, valor poltico. Aqui, os autores
citam as expresses do Alcoro que mostram que o que os ocidentais traduzem
abusivamente por Guerra santa
49
, se diz, em rabe, Al Jihad Fi sabil Allah, o
esforo sobre o caminho de Deus, esforo para propagar o Islam e o defender
contra seus agressores. E o documento do Vaticano prossegue: O Jihad no
de modo algum o Kherem bblico, ele no tende exterminao, mas a estender
a novos lugares os direitos de Deus e dos homens - As violncias passadas do
Jihad seguiam, em geral, as leis da guerra; e no tempo das Cruzadas no foram
sempre os muulmanos que perpetraram as maiores matanas.
O documento trata, enf m, do preconceito, segundo o qual o Islam seria
uma religio f xadora, que mantm seus adeptos numa Idade Mdia superada,
e que os torna inaptos a se adaptar s conquistas da Idade Moderna. Ele com-
para algumas situaes anlogas que se observam em pases cristos e declara:
Ns encontramos [...] elaborao tradicional do pensamento muulmano um
princpio de evoluo possvel da sociedade civil.
Esta defesa do Islam pelo Vaticano espantar, estou certo disso, a muitos
de nossos contemporneos crentes, sejam eles, muulmanos, judeus ou cris-
tos. Ela una manifestao de sinceridade e de um esprito de abertura, que
contrasta singularmente com as atitudes passadas. Mas bem poucos ocidentais
so alertados por essas novas tomadas de posio pelas mais altas instncias da
Igreja Catlica.
Quando o fato se torna conhecido, o espanto menor por se conhece-
rem os atos concretos que levaram efetivao dessa reaproximao: Primeiro, a
visita of cial do presidente do Secretariado do Vaticano para os no cristos ao
rei Faisal, da Arbia Saudita.
49 - Os tradutores, bem clebres, do Alcoro no escaparam a este hbito secular de pr,
em sua traduo, o que, em realidade, no se encontra nos textos rabes. Com efeito,
sem alterar o prprio texto, podemos juntar os tulos que no existem no original; este
acrscimo modica o sendo geral Assim, R. Blachre, na sua traduo bem conhecida
(Editores Maisonneuve et Larose, Paris, 1966, p. 115), insere um tulo que no existe
no Alcoro: Obrigaes da Guerra Santa no incio de uma passagem que , incontesta-
velmente, uma chamada s armas, mas que no tem esse carter que se lhe d. Como,
depois disso, o leitor que no pode aceder ao Alcoro, seno pela traduo, no estaria
persuadido de que o muulmano tem a obrigao de fazer a Guerra Santa?
119
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Depois, a recepo ofcial do Papa Paulo VI aos grandes Ulems da Ar-
bia Saudita, durante o ano de 1974.
Percebe-se melhor, desde ento, o alto signif cado espiritual da recepo
aos Grandes Ulems pelo Msr. Elchinger, na Catedral de Strasbourg, durante a
qual o prelado convidou os Ulems a fazerem em sua prece, no coro da catedral,
o que eles f zeram diante do altar, voltados em direo a Meca.
Se os representantes dos escales mais elevados dos mundos muulmano
e cristo, na f delidade ao mesmo Deus e no respeito mtuo de suas divergn-
cias, entendem-se assim para travar um dilogo religioso, no natural que
outros aspectos de cada uma das Revelaes sejam confrontados? O objetivo
dessa confrontao , nesse caso, o exame das Escrituras luz dos dados cient-
f cos e dos conhecimentos relativos autenticidade dos textos. Esse exame deve
ser empreendido para o Alcoro, como o foi para a Revelao judeu-crist.
As relaes entre as religies e a cincia no foram as mesmas, em to-
dos os lugares e em todos os tempos. Consta que nenhuma escritura de uma
religio monotesta preceitua condenao cincia. Mas, na prtica, preciso
reconhecer, os cientistas, tiveram suas rusgas
50
com as autoridades religiosas
de certas conf sses. No meio cristo, durante numerosos sculos, por sua
iniciativa pessoal e sem se apoiar em textos autnticos das Escrituras, as autori-
dades responsveis opuseram-se ao desenvolvimento das cincias. Elas tomaram,
contra os que procuravam faz-las progredir, as medidas que ns conhecemos
e que frequentemente levavam cientistas ao exlio, se eles quisessem evitar a
fogueira, salvo se f zessem retratao pblica, retif cassem sua atitude e imploras-
sem o perdo. A esse propsito, cita-se sempre o caso do processo de Galileu,
perseguido por haver retomado as descobertas de Coprnico sobre a rotao
da Terra. Ele foi condenado em consequncia de uma interpretao errnea da
Bblia, porque nenhuma Escritura podia, validamente, ser evocada contra ele.
Para o Islam, a atitude perante a cincia foi, em geral, bem outra. Nada
pode ser mais claro que o famoso Hadith do Profeta: Pesquisa a cincia mesmo
na China; que exprime que a investigao do saber uma obrigao estrita, a
cada muulmano. Fato capital, como ns veremos mais tarde nesta parte do li-
vro, o Alcoro, que convida sempre a cultivar a cincia, contm mltiplas consi-
deraes sobre os fenmenos naturais, com detalhes explicativos que aparecem
rigorosamente conforme os dados da cincia moderna. No h equivalentes
desse gnero na Revelao judeu-crist.
50 - Barulho, briga, desordem, questo.
120
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Seria, entretanto, errado crer que, em nenhum momento da histria
do Islam, alguns dos seus f is no tenham tido jamais atitude diferente para
com a cincia. certo que, em algumas pocas, a obrigao de se instruir e
de instruir os outros foi mal entendida e que no mundo muulmano, como
alhures, tentou-se, s vezes, sustar o desenvolvimento cientf co. Mas quando
se lembra que, no perodo da Grandeza do Islam. entre o sculo VIII e XII da
era crist, enquanto as restries ao desenvolvimento cientf co eram impostas
em nossos pases cristos, uma soma considervel de pesquisas e descobertas
foram efetuadas nas universidades islmicas. nessa poca que se encontravam
extraordinrios centros de cultura. Em Crdoba, a Biblioteca do califa continha
400.000 volumes. Averris ensinava. Transmitiu-se a cincia grega, indiana. per-
sa. Eis porque se ia de diversos pases da Europa estudar em Crdoba, como
em nossos dias se vai para aperfeioar alguns estudos nos Estados Unidos.
Quantos manuscritos antigos chegaram at ns por intermdio dos letrados
rabes, vinculando a cultura nos pases conquistados! Quantas dvidas temos
ns em relao cultura rabe em matemtica (lgebra rabe), astronomia,
fsica (ptica), geologia, botnica, medicina (Avicenas) etc.! A cincia toma, pela
primeira vez, o carter internacional, nas universidades islmicas da Idade Mdia.
Por essa poca, os homens eram mais penetrados pelo esprito religioso, como
no o so em nosso tempo; e isso no os impedia de ser, no meio islmico,
simultaneamente crentes e sbios. A cincia era gmea da religio; nunca deveria
ter deixado de ser assim.
Em pases cristos, era a estagnao, nessa poca medieval, o conformis-
mo absoluto. A pesquisa cientf ca foi freada, no pela Revelao judeu-crist
propriamente dita, repetimos, mas por aqueles que pretendiam ser seus servi-
dores. Depois do Renascimento, a reao natural dos sbios foi a de tomar sua
desforra contra seus adversrios do passado, e a desforra prossegue ainda em
nossos dias. A ponto de que, atualmente no Ocidente, falar de Deus no meio
cientf co verdadeiramente se singularizar. Essa atitude tem repercusses em
todos os jovens espritos que recebem nossos ensinamentos universitrios, mu-
ulmanos inclusive.
Como deixaria de ser assim, quando sabemos quais as posies extre-
madas tomadas pelos nossos sbios mais eminentes? Certo prmio Nobel de
Medicina tentou, nestes ltimos anos, fazer admitir num livro destinado ao
grande pblico, que a matria viva pode se criar de si mesma por arte do acaso,
a partir de algumas constituies elementares, e que, partindo dessa matria
viva primitiva, ter-se-iam formado, sob a inf uncia de diversas circunstncias
exteriores, seres vivos organizados para culminar no formidvel complexo que
o homem.
121
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Os prodgios do conhecimento cientf co contemporneo, no domnio
da vida. no deveriam levar, aquele que ref ete, a uma concluso oposta? A
organizao que preside o nascimento da vida e a sua manuteno no se apre-
senta, a quem a estuda, cada vez mais complicada? Quanto mais se a conhece
em seus pormenores, mais admirao ela desperta! Seu conhecimento no leva
a considerar como , cada vez menos possvel, o fator acaso no fenmeno da
vida? Quanto mais se avana na posse do saber, mui particularmente no que
concerne ao inf nitamente pequeno, mais eloquentes so os argumentos em
favor da existncia de um Criador. Mas, em lugar de ser, diante de tais fatos,
cheio de humildade, de orgulho que o homem se reveste. Ele se cr autorizado
a achincalhar toda a ideia de Deus, assim como despreza tudo o que encontra
em seu caminho, se isso constituir um obstculo a tau prazer e a seu apetite de
gozo. Tal a sociedade materialista, em plena expanso atual no Ocidente.
Que foras espirituais opor a essa poluio do pensamento por muitos
sbios contemporneos?
Perante a onda materialista e a invaso do Ocidente pelo atesmo, tanto
o cristianismo como o judasmo apregoam sua incapacidade de represso. Tanto
um quanto outro esto em plena confuso e, de decnio, no se v gravemente
diminuda a resistncia corrente que ameaa tudo carregar. O materialismo
ateu no v no cristianismo seno um smbolo construdo pelos homens, h
cerca de milnios, para f rmar a autoridade de uma minoria sobre seus seme-
lhantes. No se encontraria, nas escrituras judeu-crists, uma linguagem que se
aparente, mesmo muito de longe, sua: elas contm tantas dvidas, contradi-
es e incompatibilidades com os dados cientf cos modernos, que se recusa a
levar em considerao alguns textos que a imensa maioria dos telogos quer
fazer passar como um todo indissolvel.
Falam-lhe do Islamismo? Ele sorri com uma suf cincia que s se iguala
insuf cincia de seu conhecimento do assunto. De acordo com a maior parte
dos intelectuais ocidentais, quaisquer que sejam suas crenas, religiosas, ele car-
rega uma impressionante de ideias falsas.
Sob esse ponto de vista, preciso lhe conceder algumas desculpas: em
primeiro lugar, exceo feita das tomadas de posio mais recentes nas mais al-
tas instncias do Catolicismo, o Islam , como sempre em nossos pases, objeto
do que chamamos uma difamao secular. Todo ocidental, que adquiriu sobre
ele conhecimentos aprofundados, sabe a que ponto sua histria, seu dogma,
seus f ns, foram mascarados. preciso igualmente levar em considerao o fato
de que os documentos publicados em lnguas ocidentais sobre o assunto, exce-
122
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
to os estudos mais especializados, no facilitam o trabalho dos que querem se
instruir.
Realmente, o conhecimento da Revelao Islmica , sob este ponto de
vista, fundamental. Ora, encontram-se muitas passagens do Alcoro, em parti-
cular aquelas que tm relao com os dados da cincia, que so mal traduzidas
ou comentadas de maneira tal que um cientista teria o direito de emitir - apa-
rentemente com justia - crticas que o Livro no merece em realidade Por
menor digno de ser imediatamente destacado: essas inexatides de traduo
ou esses comentrios errneos (estando os dois, frequentemente, associados),
que no seriam de se admirar h um ou dois sculos, chocam, em nossos dias,
um homem de cincia que, diante de uma frase mal traduzida, contendo, por
esse motivo, uma af rmao cientif camente inadmissvel, levado, a se recusar
a tom-la seriamente, em consideraes Daremos no captulo consagrado
produo humana, um exemplo bem caracterstico desse tipo de erro.
Por que esses erros de traduo? Eles se explicam pelo fato de que
os tradutores modernos retomam frequentemente, sem grande esprito-crtico,
interpretaes de comentadores antigos. Estes tinham em sua poca, descul-
pas para ter dado a uma palavra rabe, possuindo vrios sentidos possveis,
uma def nio imprpria, porque no podiam compreender o sentido real da
palavra ou da frase, que se revela somente em nossos dias graas aos nossos
conhecimentos cientf cos. Em outras palavras, colocou-se assim o problema da
necessria reviso de tradues ou de comentrios, que no se era capaz de
efetuar convenientemente numa determinada poca, ao passo que, em nossos
dias, possumos os elementos que lhes podem dar o sentido verdadeiro. Tais
problemas de traduo no se colocam pala os textos da Revelao judeu-crist:
o caso evocado aqui absolutamente especial para o Alcoro.
Esses aspectos cientf cos, muito particulares do Alcoro, logo de incio,
deixaram-me profundamente atnito porque, at ento, eu no tinha jamais
acreditado ser possvel que se pudesse descobrir, num texto redigido h mais
de treze sculos, tantas af rmaes relativas a assuntos extremamente variados,
absolutamente conforme os conhecimentos cientf cos modernos. Eu no tinha,
de sada, nenhuma f no Islam. Abordei este exame dos textos com o esprito
livre de todo preconceito, com inteira objetividade. Se alguma inf uncia pde
ter se exercido em mim, foi a dos ensinamentos recebidos em minha juventude,
quando no falvamos de muulmanos, mas de maometanos, pala bem acentuar
que se tratava de uma religio fundada por um homem e que no podia, por
consequncia, ter nenhuma espcie de valor aos olhos de Deus. Como muita
gente no Ocidente, eu poderia ter conservado sobre o Islam as mesmas ideias
123
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
falsas to difundidas em nossos dias, que eu f co sempre admirado de encontrar,
fora dos especialistas, interlocutores esclarecidos sobre esses pontos. Confesso,
pois, que antes de ter-me dado uma imagem do Islam diferente daquela recebida
do ocidente, eu era, tambm, muito ignorante.
Se cheguei a perceber a falsidade dos julgamentos geralmente lanados
no Ocidente sobre o Islam, eu devo a circunstncias excepcionais. Foi na Arbia
Saudita, que me deram os elementos de apreciao que me demonstraram a que
ponto se podia ter uma opinio errada a seu respeito, em nossos pases.
Imensa f car minha dvida de gratido para com o saudoso Rei Faisal,
cuja memria eu sado com respeito: ter tido a extraordinria honra de ouvi-
-lo falar do Islam e ter podido evocar diante dele determinados problemas de
interpretao alcornica em relao cincia moderna: isto f car gravado para
sempre em minha lembrana. Ter recolhido to preciosos ensinamentos vindos
dele mesmo e de seu crculo. constituiu, para mim, um privilgio excepcional.
Tendo ento medido a margem que separava a realidade do Islam da
imagem que dele se faz em nossos pases ocidentais, experimentei a viva neces-
sidade de aprender o rabe, que no conhecia, para poder progredir no estudo
de uma religio to mal conhecida. Meu primeiro objetivo residiu na leitura do
Alcoro e no exame de seu texto, frase por frase, com a ajuda dos diversos co-
mentrios indispensveis a um estudo crtico. Eu o abordei, prestando ateno
muito particular descrio que ele faz de uma profuso de fenmenos natu-
rais: a preciso de certos detalhes do Livro sobre esses fenmenos, somente per-
ceptvel no texto original, me impressionou em razo de sua conformidade com
as concepes que podemos ter, em nossa poca, mas da qual um homem da
poca de Muhammad no poderia ter a menor ideia. Eu li, em seguida, diversas
obras consagradas por autores muulmanos aos aspectos cientf cos do texto
alcornico: eles me deram elementos mui uteis de apreciao, mas eu ainda no
descobri um estudo de conjunto efetuado sobre o assunto, no Ocidente.
O que logo impressiona o esprito de quem confrontado com um
texto, assim, pela primeira vez, a abundncia dos assuntos tratados: a criao,
a astronomia, a exposio de certos assuntos concernentes terra, aos reinos
animal e vegetal, reproduo humana. Ento, enquanto se encontram na Bblia
monumentais erros cientf cos, aqui eu no descobri nenhum. O que me obri-
gou a me interrogar: se um homem foi o autor do Alcoro, como teria podido,
no sculo VII da era crist, escrever o que se verif ca, hoje, conforme os conhe-
cimentos cientf cos modernos? Ora, nenhuma dvida ser possvel: o texto que
ns possumos hoje do Alcoro bem um texto de atualidade, se ouso dizer
124
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
(o captulo seguinte desta terceira parte tratar da questo). Qual explicao
humana dar a esta constatao? A meu ver, no h nenhuma, porque no h
razo particular de pensar que um habitante da Pennsula Arbica pudesse, no
tempo em que na Frana reinava o rei Dagoberto, possuir uma cultura cientf ca
que deveria, para alguns assuntos, estar adiantada uma dezena de sculos sobre
a nossa.
Est bem estabelecido que, no momento da Revelao Alcoranista, que
se situa em um perodo aproximativo de vinte anos antes da Hgira (622 D.C.)
os conhecimentos cientf cos da poca estavam em fase de estagnao, havia
sculos, e que o perodo ativo da civilizao islmica, com o despertar cientf co
que a acompanha, foi posterior ao f m da Revelao do Alcoro. preciso igno-
rar esses dados religiosos e profanos para fazer a curiosa sugesto seguinte, que
eu pretendi formular algumas vezes: se existem no Alcoro algumas informa-
es de aspecto cientf co que surpreendem, a razo o avano que tinham seu
tempo os cientistas rabes: Muhammad ter-se-ia inspirado em seus trabalhos.
Quem conhece um pouco da histria do Islam e sabe que o perodo do
progresso cultural e cientf co no mundo rabe na Idade Mdia posterior a
Muhammad, no se permitiria tais fantasias. Ref exes desse tipo so tanto mais
fora de propsito, visto que a maioria dos fatos cientf cos, sugeridos ou enun-
ciados muito distintamente no Alcoro, somente na poca moderna receberam
sua conf rmao.
Concebe-se desde logo que, durante sculos, os comentadores do Al-
coro (inclusive aqueles do grande perodo da civilizao islmica) tinham infa-
livelmente cometido erros na interpretao de certos versculos, dos quais eles
no podiam perceber o sentido exato. No foi seno muito mais tarde, em um
perodo prximo de nossa poca, que se pde traduzi-los e interpret-los cor-
retamente. Isto implica que, para compreender esses versculos alcornicos, s
conhecimentos lingusticos aprofundados no so suf cientes. preciso possuir,
alm disso, conhecimentos cientf cos bem diversos. Um estudo como este
pluridisciplinar, enciclopdico. Dar-se- conta, medida em que a exposio das
questes levantada, da verdade dos conhecimentos cientf cos que so indis-
pensveis, para se perceber o sentido de alguns versculos do Alcoro.
O Alcoro no tanto um livro, tendo, por f m, expor certas leis que
regem o universo; ele tem um f m religioso essencial. principalmente a pro-
psito das descries da Onipotncia Divina que os convites para ref etir sobre
as obras da criao so endereados aos homens. Eles so acompanhados por
aluses a fatos acessveis observao humana, ou a leis def nidas por Deus que
125
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
presidem organizao do universo, tanto no domnio das cincias da natureza
como no que concerne ao homem. Uma parte dessas af rmaes de compre-
enso fcil, mas, de uma outra parte, no se pode conceber a signif cao se no
se est na posse dos conhecimentos cientf cos indispensveis para isso. Quer
dizer que o homem dos Sculos passados
no podia discernir deles seno um sentido aparente, que o levou, em alguns
casos, a tirar as concluses, inexatas em razo da insuf cincia de seu saber na
poca considerada.
A seleo dos versculos alcornicos feita para o estudo de seus aspectos
cientf cos parecer, talvez, muito reduzida para alguns dos autores muulmanos
que, antes de mim, despertam sua ateno sobre esses fatos. No conjunto, creio
ter retido um nmero um pouco mais reduzido de versculos do que eles o
f zeram. Tenho, ao contrrio, destacado alguns versculos aos quais no tinham
atribudo, at o presente, a importncia que eles mereceriam, me parece, do
ponto de vista cientf co. Se cometi erros no levando em consideraes, para
este estudo, os versculos que eles tinham selecionado, espero que eles no me
julguem mal. Encontrei algumas vezes, tambm, em certos livros, interpretaes
cientf cas que no me pareciam exatas: com toda iseno de nimo e mui
consciente que eu lhes dei uma interpretao pessoal.
Eu pesquisei, igualmente, se existiam no Alcoro aluses aos fenmenos
que so acessveis compreenso humana, mas que no receberam conf rmao
da parte da cincia moderna: Assim, sob esse aspecto, pensei ter descoberto
que o Alcoro continha aluses presena no universo de planetas semelhantes
Terra. preciso dizer que numerosos sbios consideram o fato como perfeita-
mente aceitvel, sem que os dados modernos possam fornecer a menor certeza.
Julguei que deveria cit-los, com todas as reservas que se impem.
Se eu tivesse empreendido tal estudo h uns trinta anos, um outro fato
anunciado no Alcoro teria de ser juntado ao que acaba de ser citado, concer-
nente astronomia: a conquista do espao. Por essa poca, considerava-se, logo
aps os primeiros ensaios de foguete balstico, que um dia viria, talvez, em que
o homem teria as possibilidades materiais de escapar dos arredores terrestres
e de explorar o espao. Sabia-se ento que havia um versculo alcornico que
pressagiava que um dia o homem realizaria esta conquista. A verif cao agora
est feita.
Esta confrontao da Escritura santa com a cincia fez intervir para a
Bblia, como para o Alcoro, noes pertinentes verdade cientf ca. Para que a
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
confrontao seja vlida, preciso que o argumento cientf co, sobre o qual se
apoia, seja perfeitamente estabelecido, e que no se preste a nenhuma discusso.
Aqueles que tm m vontade em aceitar a interveno da cincia na apreciao
das escrituras negam que a cincia possa constituir um termo de comparao
vivel (quer se trate da Bblia, que no se submete confrontao sem danos
- vimos por quais motivos -, ou do Alcoro, que nada tem a temer dela): a
cincia, adiantemos, mutvel com o tempo e um fato um dia admitido pode
ser rejeitado mais tarde.
Essa observao determina a seguinte colocao: preciso distinguir
a teoria cientf ca e o fato da observao devidamente controlada. A teoria
destinada a explicar um fenmeno ou um conjunto de fenmenos dif cilmente
compreensveis. A teoria mutvel em muitos casos: ela susceptvel de ser mo-
dif cada, substituda por outra, quando o progresso cientf co permite melhor
analisar os fatos, e imaginar uma explicao mais vlida. Ao contrrio, o fato da
observao, verif cado experimentalmente, no susceptvel de ser modif cado:
pode-se def nir melhor os seus caracteres, mas ele permanece como era. Desde
que se estabeleceu que a Terra girava em torno do Sol e a Lua em torno da
Terra, o fato no precisa de reviso; no futuro, poder-se-, no mximo, def nir
melhor as suas orbitas.
O fato de ter levado em considerao o carter mutvel das teorias, me
levou a afastar, por exemplo, um versculo alcornico no qual um fsico muul-
mano pensou estar anunciando o conceito da antimatria, teoria atualmente
muito discutida. A{o contrrio, pode-se, muito legitimamente, concentrar toda
a ateno em um versculo do Alcoro que evoca a origem aqutica da vida,
fenmeno que no se poder jamais verif car, mas em favor do qual tantos argu-
mentos militam. Quanto aos fatos de observao, como a evoluo do embrio
humano, pode-se perfeitamente confrontar os diferentes estgios descritos pelo
Alcoro com os dados da embriologia moderna e descobrir a absoluta confor-
midade com a cincia dos versculos alcornicos a esse respeito.
Essa confrontao Alcoro/Cincia foi completada por duas outras
comparaes: de um lado, a confrontao com os conhecimentos modernos
dos dados bblicos, versando sobre os mesmos assuntos; de outro, a compara-
o do mesmo ponto vista cientf co dos dados do Alcoro, Livro da Revelao
comunicada por Deus ao Profeta, e os dados dos Hadiths, livros de narraes
de declaraes de Muhammad, que colocam fora da Revelao escrita.
Ao f nal da terceira parte da obra, encontrar-se-o os resultados porme-
norizados da comparao das narraes bblicas e das narraes alcornicas de
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
um mesmo acontecimento, e os da passagem pelo crivo da crtica cientf ca de
cada narrao. O exame foi feito, por exemplo, para a criao e para o diluvio.
Tanto para um como para outro, se ps em evidncia as incompatibilidades da
narrao bblica com a cincia. Notar-se- a perfeita concordncia com a cincia
moderna das narraes alcornicas que lhe concernam.
Notar-se-o as diferenas que, precisamente, fazem com que uma narra-
o seja admissvel na poca moderna, ao passo que em outra no o .
Esta constatao de primeirssima importncia, porque, nos pases ocidentais,
judeus, cristos e ateus, concordam unicamente em af rmar (sem, alis, a menor
duas provas) que Muhammad escreveu ou fez escrever o Alcoro, imitando a
Bblia; antecipam que as narraes alcornicas da histria religiosa retomam
as narraes bblicas. Esta tomada de posio to leviana quanto aquela que
levaria a dizer que Jesus teria enganado, ele tambm, seus contemporneos por
ter se inspirado no Antigo Testamento, no decorrer de sua predicao: todo
o Evangelho de Mateus j vimos - fundado sobre essa continuidade com
o Antigo Testamento. Que exegeta teria ideia de tirar de Jesus o seu carter
de enviado de Deus por esse motivo? E exatamente assim, no entanto, que no
Ocidente, com mais frequncia, se julga Muhammad: ele no fez seno copiar
a Bblia. Julgamento sumrio que no leva em considerao o fato de que, so-
bre o mesmo acontecimento, Alcoro e Bblia possam dar verses diferentes.
Prefere-se passar em silncio a divergncia das narraes. Declaram-nas idnticas
e assim os conhecimentos cientf cos no tm de intervir. Essas questes sero
desenvolvidas a propsito das narraes da criao e do dilvio.
As colees dos Hadiths so para Muhammad, o que so os Evangelhos
para Jesus: as narraes sobre os feitos e palavras do Profeta, cujos autores
no so testemunhas oculares (pelo menos, para as compilaes dos Hadiths
reputados mais autnticos, claramente posteriores poca de Muhammad). Eles
no constituem nenhuma espcie de livros, contendo a Revelao escrita. Eles
no so a Palavra de Deus, mas relatam os dizeres do Profeta. Nesses livros, co-
mumente difundidos, descobrem-se af rmaes que contm erros do ponto de
vista cientf co; em particular, as receitas mdicas. Mas quem poderia dizer com
certeza que essas declaraes atribudas ao Profeta so autnticas? Ns deixa-
mos de lado, naturalmente, tudo o que pode concernir aos problemas de ordem
religiosa, que no so considerados aqui a propsito dos Hadiths. Muitos Hadi-
ths tm uma autenticidade duvidosa: eles so discutidos pelos prprios sbios
muulmanos. Se o aspecto cientf co de alguns deles evocado nesta obra,
essencialmente para pr em destaque o que os diferencia, sob este ponto de
vista, do Alcoro, que no contm nenhuma af rmao cientf ca inadmissvel. A
diferena , ver-se-, surpreendente.
128
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Esta ltima constatao torna inaceitvel a hiptese daqueles que veem
em Muhammad o autor do Alcoro. Como um homem, antes iletrado, teria
podido, vir a ser, depois, sob o ponto de vista do valor literrio, o primeiro
autor de toda a literatura rabe, e enunciar verdades de ordem cientf ca que
nenhum outro ser humano podia elaborar naquele tempo, e isto sem fazer a
menor af rmao errada a esse respeito?
As consideraes que vo ser desenvolvidas neste estudo, exclusivamen-
te sob o ponto de vista cientf co, levaro a julgar inconcebvel que um homem,
vivendo no sculo VII da era crist, pudesse, sobre os assuntos mais diversos,
emitir no Alcoro ideias que no so s de sua poca e que concordam com o
que se demonstrar sculos mais tarde. Para mim, no existe explicao humana
para o Alcoro.
AUTENTICIDADE DO ALCORO
- Histria de sua Redao -

Uma autenticidade indiscutvel d ao texto alcornico um lugar parte
entre os livros da Revelao, lugar que ele no divide nem com o Antigo nem
com o Novo Testamento. Nas duas primeiras partes desta obra, passamos em
revista as modif caes que sofreram o Antigo Testamento e os Evangelhos,
antes de chegar ao estado em que eles se encontram hoje em dia. No se d
o mesmo com o Alcoro, pelo simples motivo que ele foi f xado no prprio
tempo do Profeta e ns vamos ver como essa f xao se operou.
As diferenas que separam, a esse respeito, a ltima porta da Revelao
das duas primeiras no abrangem, de modo algum, no que essencial, questes
de data que certas pessoas colocam sistematicamente em primeiro lugar, sem
dar importncia s circunstncias que presidiram o estabelecimento dos textos
da Revelao judeu-crist e da Revelao Alcornica, assim como no conside-
ram as circunstncias da transmisso do Alcoro ao Profeta. Admite-se que um
texto do sculo VII de nossa era tinha mais chances de nos chegar no alterado,
que outros textos que podem ter at uma quinzena de sculos de antiguidade
suplementar. A observao exata, mas ela no constitui uma explicao suf -
ciente. Ela , sobremaneira, feita para encontrar uma desculpa s modif caes
dos textos judeu-cristos, ao longo das idades, mais do que para sublinhar que
129
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
o texto alcornico, mais recente, se arriscaria menos que os primeiros a ser
alterado pelos homens.
Para o Antigo Testamento, a pluralidade dos autores para a mesma nar-
rao e as revises dos textos efetuados, por alguns livros, em diversas pocas
da era pr-crist, so outras tantas causas da inexatido e de contradies. Para
os Evangelhos, do qual ningum pode af rmar que eles contm a relao sempre
f el da Palavra de Jesus, ou uma narrao de seus atos rigorosamente conforme a
realidade, vimos que as redaes sucessivas dos textos davam a perceber a falta
de autenticidade. Alm do mais, seus autores no so testemunhas oculares.
preciso sublinhar igualmente a distino que deve ser feita entre o
Alcoro, Livro da Revelao escrita, e os Hadiths, compilaes das narraes
dos atos e palavras de Muhammad. Alguns dos companheiros do Profeta co-
mearam a redigi-los depois de sua morte; o erro humano, podia se insinuar.
Sua coleo teve de ser retomada mais tarde e submetida crtica mais sria,
de sorte que, na prtica, a esses documentos, muito posteriores morte de
Muhammad, que se d o maior crdito. Como os textos dos Evangelhos, eles
tm uma autenticidade varivel. Assim como nenhum Evangelho foi f xado no
tempo de Jesus (eles foram todos escritos bem depois do f m de sua misso
terrestre), nenhuma compilao de Hadiths teve seu texto ligado ao tempo do
Profeta.
Para o Alcoro, d-se o contrrio. O texto foi simultaneamente citado de
cor, a medida de sua Revelao, pelo Profeta pelos crentes em torno dele, e f -
xado por escrito pelos escribas e pelos que o cercavam. De incio, ele apresenta,
por consequncia estes dois elementos de autenticidade que no possuem os
Evangelhos. Ele ser assim at a morte do Profeta. A recitao, numa poca onde
nem todos escreviam, mas podiam guardar de cor, oferece uma vantagem consi-
dervel, pela pluralidade do controle possvel no momento do estabelecimento
do texto. A revelao Alcornica foi feita pelo Arcanjo Gabriel a Muhammad.
Ela se desenrola por mais de vinte anos na vida do Profeta. Ela comea pelos
primeiros versculos do Captulo 96, se interrompe ento durante trs anos e
retoma durante vinte anos, at a morte do Profeta, no ano 632 da era crist,
seja dez anos antes da Hgira. A primeira Revelao foi a seguinte (Captulo 96,
Versculos 1-5)
51
:
51 - Essas palavras emocionaram Muhammad. Veremos mais adiante sobre sua inter-
pretao, em ligao, em parcular, com o fato de que Muhammad no sabia nem ler e
escrever nesta poca.
130
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
L, em nome do teu Senhor Que criou; Criou o homem de algo que se agarra (cogulo).
L, que o teu Senhor Generosssimo, Que ensinou atravs a pena, Ensinou ao homem o
que este no sabia.
O professor Hamidullah fez observar, na introduo de sua traduo do
Alcoro, que um dos temas desta primeira Revelao era O elogio da pena
como meio do conhecimento humano e que assim explicaria o cuidado do
Profeta pela conservao do Alcoro por escrito.
Os textos estabelecem formalmente que, bem antes que o Profeta tenha
deixado Meca por Medina (quer dizer, bem antes da Hgira), o texto alcorni-
co j revelado estava f xado por escrito. Constatar-se- que o Alcoro merece
crdito. Ora, sabemos que Muhammad e os crentes ao seu redor tinham o
costume de recitar de memria o texto revelado. Ser, portanto, inconcebvel
que o Alcoro pudesse fazer aluso a fatos que no tivessem correspondido
realidade, quando eles eram muito facilmente controlados pelos acompanhantes
do Profeta, junto dos autores da transcrio.
Quatro captulos pr-hegirianos fazem aluso redao do Alcoro an-
tes que o Profeta tivesse deixado Meca, em 622 (Captulo 80, versculos 11-16):
Qual! Em verdade, (o Alcoro) uma mensagem de advertncia. Quem quiser, pois, que
preste ateno. (Est registrado) em pginas honorveis, Exaltadas, purif cadas, Por mos
de escribas, Nobres e retos.
Yusuf Ali escreveu, nos seus comentrios de sua traduo do Alcoro de
1934, que, no momento da Revelao deste captulo, existiam quarenta e dois
ou quarenta e cinco outros entre as mos dos muulmanos de Meca (sobre um
total de cento e catorze).
- Captulo 85, Versculos21-22:
Sim, este um Alcoro Glorioso, Inscrito em uma Tbua Preservada.
- Captulo 56, Versculos 77-80:
Este um Alcoro honorabilssimo, Num Livro bem guardado, Que no tocam, seno os
purif cados! uma revelao do Senhor do Universo.
- Captulo 25, Versculo 5:
E af rmam: So fbulas dos primitivos que ele mandou escrever. So ditadas a ele, de
manh e tarde!
131
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Trata-se aqui de uma aluso s acusaes levantadas pelos adversrios do
Profeta, que o tratavam de impostor. Eles propagavam que lhe ditavam histrias
da Antiguidade, que Muhammad escrevia ou fazia escrever (o sentido da pa-
lavra discutvel, mas preciso lembrar que Muhammad era analfabeto). No
importa o que seja, o versculo faz aluso a esse fato, por escrito, revelando os
adversrios de Muhammad.
Um captulo posterior Hgira faz uma meno dessas folhas sobre as
quais so inscritas as prescries divinas:
- Captulo 98, Versculos 2-3:
Um Mensageiro de Deus, que lhes recitasse pginas purif cadas, Que contivessem escrituras
corretas.
Assim, o Alcoro informa ele mesmo sobre sua colocao por escrito da
vida do Profeta. Sabemos que Muhammad tinha ao seu redor muitos escribas,
dos quais o mais clebre, Zaid Ibn Thabit, deixou seu nome posteridade.
No prefcio de sua traduo do Alcoro (1971), o professor Hamidullah
descreve bem as condies em que a transcrio do texto alcornico se efetuou
at a morte do Profeta:
As fontes esto de acordo para dizer que todas as vezes que um frag-
mento do Alcoro era revelado, o Profeta chamava um dos seus companheiros
letrados, e lhe ditava, com preciso, o lugar exato do novo fragmento no con-
junto j recebido... As compilaes esclarecem que, depois do ditado, Muham-
mad ordenava ao escriba que lhe lesse o que havia anotado, para poder corrigir
as def cincias, se as houvesse.
Uma outra clebre compilao nos diz que o Profeta recitava, cada ano
no ms do Ramadan, diante de Gabriel, todo o Alcoro (revelado at ento)..., e
que o Ramadan que precedeu sua morte, Gabriel o fez recitar duas vezes... Sabe-
se que, desde a poca do Profeta, os muulmanos tomaram o hbito da viglia,
no ms do Ramadan, por ofcios super-rogativos, recitando o Alcoro todo,
inteiro. Muitas fontes acrescentam que, nessa ltima colocao, seu escriba Zaid
estava presente. Outros falam de numerosas outras personagens tambm.
Serviram-se, para esse primeiro registro, de objetos muito variados: per-
gaminho, couro, pedaos de pau, omoplatas de camelos, pedras moles para
gravar etc.
132
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Mas, ao mesmo tempo, Muhammad recomendou que os f is aprendes-
sem de cor o Alcoro, o que eles f zeram para todo ou parte do texto, que era
recitado durante as preces. assim que houve os Haf zun que conheciam todo
o Alcoro de cor e o propagavam. O duplo mtodo de conservao de texto
pela escritura e por memria se revelou muito precioso.
Pouco tempo depois da morte do Profeta (632), seu sucessor, Abu Bakr,
primeiro califa do Islam, ordenou, ao antigo primeiro escriba de Muhammad,
Zaid Ibn Thabit. preparar uma cpia, o que ele fez. Sob a iniciativa de Omar (fu-
turo segundo califa), Zaid consultou toda a documentao que ele pde coletar
em Medina: testemunhos dos Haf zun, cpias do Livro feitas sobre diversos
assuntos e pertencentes a particulares, tudo isso para evitar todo erro possvel
de transcrio. Obtm-se assim, uma cpia muito f el do Livro.
As fontes nos informam que, a seguir, o Califa Omar, sucessor de Abu
Bakr em 634, reuniu tudo em um s volume (Mushaf), que ele conservou e
doou, quando morreu, sua f lha Hafsa, viva do Profeta.
O terceiro califa do Islam, Uthman, que exerceu seu califado de644 a
655, encarregou uma comisso de especialistas de elaborar a grande recenso
que traz seu nome. Ela controlou a autenticidade do documento estabelecido
sob Abu Bakr e em posse, at ento, de Hafsa. A comisso consultou os mu-
ulmanos que conheciam o texto de cor. A crtica da autenticidade do texto
se operou de uma maneira extremamente rigorosa. A concordncia dos teste-
munhos foi julgada necessria para destacar o menor versculo que pudesse
se prestar discusso: sabemos, com efeito, que alguns versculos do Alcoro
podem corrigir outros, no que concerne s prescries, o que se explica perfei-
tamente quando lembramos que o apostolado do Profeta alongou-se por vinte
anos, em nmeros redondos. Chegou-se, assim, a um texto em que a ordem dos
captulos ref etia aquela - pensamos hoje - que tinha seguido o Profeta, na sua
recitao completa do Alcoro durante o Ms do Ramadan, como vimos mais
acima.
Poderamos interrogar sobre os motivos que conduziram os trs primei-
ros califas, Uthman em particular, a elaborar as colees e recenses do texto.
Eles so simples: a expanso do Islam foi de uma extrema rapidez em todos os
primeiros decnios que se seguiram morte de Muhammad, e esta expanso se
fez no meio de povos dos quais muitos possuam lnguas que no eram o rabe.
Foi preciso tomar precaues indispensveis para se assegurar a propagao do
texto na sua pureza original: a recenso de Uthman teve esse objetivo.
133
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Uthman enviou alguns exemplares do texto dessa recenso ao centro do
Imprio Islmico e assim que, em nossos dias existem, segundo o professor
Hamidullah, algumas cpias que se atribuem a Uthman, a Tashkent e a Istambul.
A parte algumas eventuais falhas de cpia, as peas mais antigas, conhecidas em
nossos dias e reencontradas em todo o mundo islmico, so idnticas, dando-se
o mesmo para as peas que existem na Europa (na Biblioteca Nacional de Paris,
h alguns fragmentos datando, segundo os especialistas, dos sculos VIII e IX da
era crist, isto , dos sculos II e III da Hgira). A prof sso dos textos antigos
concorda, com mnimas variantes, que no mudam em nada o sentido geral do
texto, se o contexto admite, s vezes, muitas possibilidades de leitura, pelo fato
de que a escritura antiga era mais simples que a atual
52
.
Os captulos, em nmero de cento e catorze, foram classif cados por
ordem de extenso decrescente, com algumas excees, entretanto. A cronolo-
gia da Revelao no foi ento respeitada. reconhecida, entretanto, na grande
maioria dos casos. Um nmero importante de relatos evocado em vrios luga-
res do texto, o que d, s vezes, lugar a algumas repeties. Muito comum uma
passagem juntar detalhes a uma narrao relatada incompletamente em outra
parte. E tudo o que pode ter relao com a cincia moderna est, como para
muitos dos assuntos tratados no Alcoro, repartindo no Livro sem nenhuma
aparncia de classif cao.
A CRIAO DOS CUS E DA TERRA
- Diferenas e Analogias com a Narrao Bblica -
Diferente do Antigo Testamento, o Alcoro no oferece narrao de
conjunto da criao. Em lugar de uma narrao contnua, encontram-se, em
numerosos lugares do Livro, algumas passagens evocando alguns de seus as-
pectos e dando mais ou menos preciso sobre os acontecimentos sucessivos
que os marcaram. Para se ter uma ideia clara da maneira pela qual esses ltimos
so apresentados, preciso, portanto, reunir os fragmentos esparsos em um
nmero importante de captulos.
52 - A falta de pontos diacrcos poderia, por exemplo, fazer ler um verbo na voz ava ou
na passiva e, em certos casos, no masculino ou no feminino, mas, frequentemente, no
se prestava muito a consequncia importante: e o contexto restabelecia o sendo em um
grande nmero de casos.
134
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Essa disseminao no Livro de evocaes de um mesmo assunto no
particular ao tema da criao. Muitos dos grandes assuntos so assim tratados
no Alcoro, tratem-se de fenmenos terrestres ou celestes ou de questes
concernentes ao homem, que interessam ao cientista. Para cada um deles, um
mesmo trabalho de coleo de versculos foi empreendido.
Para muitos dos autores europeus, a narrao alcornica da criao
muito vizinha da narrao bblica e lhes apraz apresentar as duas narraes
paralelamente. Acho que essa concepo errnea pois existem algumas disse-
melhanas evidentes. Sobre questes que no so acessrias do ponto de vista
cientf co, descobriu-se no Alcoro af rmaes das quais se procura inutilmente
o equivalente na Bblia. Esta contm desenvolvimento que no tem equivalentes
no Alcoro.
Algumas analogias aparentes entre os dois textos so bem conhecidas.
Entre elas, a numerao das fases sucessivas da criao , primeira vista, idnti-
ca: aos seis da Bblia corresponderiam os seis dias do Alcoro. Mas, em realidade,
o problema mais complexo e merece maior ateno.
OS SEIS PERIODOS DA CRIAO
A narrao bblica
53
evoca sem a menor ambiguidade a criao em seis
dias seguidos de um dia de descanso, o sbado, por analogia com os dias da
semana. Verif cou-se que essa maneira de narrao pelos sacerdotes do sculo
VI A.C. atendia s intenes de exortao prtica do Sabat: devendo todo
judeu, no f m do sbado, descansa
54
como o Senhor havia feito depois de haver
trabalhado durante os seis dias da semana.
Assim compreendida pela Bblia, a palavra dia def ne o intervalo de tempo
compreendido entre dois sucessivos nascer do sol ou dois sucessivos pr do
sol para um habitante da Terra. O dia def nido desta maneira o dia da rotao
da Terra sobre si mesma. muito evidente que no se pode, em plena lgica,
falar de dias num sentido assim def nido, enquanto que o mecanismo que
53 - Narrao bblica, que tratada aqui, a narrao da qual falamos na primeira parte
desta obra; a narrao Yahvista, condensada em algumas linhas no texto atual da Bblia,
muito insignicante para que o tomemos aqui em considerao.
54 - Sabat quer dizer repousar em hebreu.
135
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
lhe vai provocar o aparecimento - isto , a existncia da Terra e sua rotao ao
redor do Sol - no estava ainda estabelecido nos primeiros estgios da criao,
segundo a narrao bblica. Esta impossibilidade foi sublinhada, na primeira
parte deste livro.
Referindo-se aos textos da maioria das tradues do Alcoro, l-se - por
analogia com o que nos informa a Bblia - que, para a Revelao islmica, o
processo da criao se desenrola igualmente num perodo de seis dias. No po-
deriam ser censurados os tradutores por tomarem a palavra rabe, no sentido
mais corrente. assim que as tradues o exprimem comumente e podemos
ler no Alcoro, no Versculo 54 do Captulo 7:
Vosso Senhor Deus, Que criou os cus e a terra em seis dias
Pouco numerosas so as tradues e comentrios do Alcoro, que
fazem notar que a palavra dias dever ser compreendida como signif cando
perodos. Sustentou-se, alis, que se os textos alcornicos sobre a criao, divi-
diam suas fases em dias, era com a inteno deliberada de retomar aquilo em
que todos acreditavam, na Aurora do Islam, entre os judeus e os cristos, e de
no ferir frontalmente uma crena to largamente difundida. Com efeito, e
sem rejeitar absolutamente esta maneira de ver, no se pode considerar mais de
perto o problema e examinar os sentidos possveis que pode ter, no Alcoro
mesmo e mais geralmente na linguagem da poca, a palavra que numerosos
comentadores continuam traduzindo por yawn, no plural ayyam em rabe
55
.
Seu sentido mais corrente dia, mas precisamos bem que ele tende a
designar mais a claridade do dia que a durao do tempo entre um pr do sol
e o do dia seguinte. O plural ayyam pode signif car no somente dias mas ainda
longa durao, perodo de tempo no f xado (mas sempre longo). O sentido
de perodo de tempo, que pode ter a palavra, encontra-se em outra parte do
Alcoro. assim que lemos:
- Captulo 32, Versculo 5:
...em um dia (yawm) cuja durao ser de mil anos, de vosso cmputo.
Nota-se que o versculo que precede o versculo 5 evoca precisamente a
criao em seis perodos.
55 - Encontraremos na lma pgina desta obra a correspondncia entre os caracteres
lanos e os caracteres rabes.
136
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 70, Versculo 4:
... em um perodo de tempo (yawm) cuja medida de 50.000 anos.
O fato de que a palavra yawm podia designar um perodo de tempo,
completamente diferente daquele a que ns damos o sentido de dia, havia
chocado os comentadores mais antigos que no possuam naturalmente o co-
nhecimento que ns temos da durao das fases da formao do universo.
assim, que, no sculo XVI D.C., Abu Al-Sued, que no podia ter noo do dia
difundida pela astronomia em funo da rotao da Terra, pensava que era pre-
ciso, para a criao, considerar uma diviso no em dias no sentido como ns
entendemos habitualmente, mas em acontecimento (em rabe nawbat).
Os comentadores modernos retomam essa interpretao. Yusuf Ali
(1934) insiste em seu comentrio de cada versculo, que trata das fases da
criao, sobre a necessidade de tomar as palavras algures interpretadas com o
sentido de dia, como signif cando, em realidade, longos perodos, idades.
Pode-se, portanto, admitir que o Alcoro considera, para as etapas da
criao do mundo, longos perodos de tempo, que ele calcula em nmero de
seis.
Certamente, a cincia moderna no admitiu aos homens estabelecer que
as diversas etapas dos processos complexos, que culminaram na formao do
universo, eram em nmero de seis, mas ela formalmente demonstrou que se
tratava de muito longos perodos de tempo, ao lado dos quais os dias, tais
como ns os concebemos seriam, uma derriso.
Uma das passagens mais longas do Alcoro, tratando da criao, a evo-
ca, justapondo uma narrao dos acontecimentos terrestres e uma narrativa
de acontecimentos celestes. Trata-se dos versculos 9-12 do Captulo 41. (Deus
dirigindo-se ao Profeta):
Dize-lhes (mais): Renegareis, acaso, Quem criou a terra em dois dias, e Lhe atribui-
reis rivais? Ele o Senhor do Universo! E sobre ela (a terra) f xou f rmes montanhas, e
abenoou-a e distribuiu, proporcionalmente, o sustento aos necessitados, em quatro dias.
Ento, abrangeu, em Seus desgnios, os cus quando estes ainda eram gases, e lhes disse, e
tambm terra: Juntai-vos, de bom ou de mau grado! Responderam: Juntamo-nos volun-
tariamente. Assim, completou-os, como este cus, em dois dias, e a cada cu assinalou a
137
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
sua ordem. E adornamos o f rmamento terreno com luzes, para que servissem de sentinelas.
Tal o decreto do Poderoso, Sapientssimo.
Esses quatro versculos do Captulo 41 apresentam vrios aspectos sobre
os quais voltaremos: estado gasoso inicial da matria celeste e a def nio toda
simblica de cus em nmero de sete. Veremos o sentido da cifra. Simblico
igualmente o dilogo entre, de um lado Deus e, de outro, os cus e a terra
primitivos: aqui, trata-se apenas de exprimir a submisso s ordens divinas dos
cus e da terra uma vez formados.
As crticas viram nessa passagem uma contradio com o enunciado de
seis perodos da criao. Adicionando-se os dois perodos da formao da terra,
os quatro perodos de repartio dessas substncias por seus habitantes e os
dois perodos da formao dos cus, atingir-se-ia o nmero de oito perodos, o
que estaria em contradio com os seis perodos def nidos mais acima.
Com efeito, o texto pelo qual o homem convidado a ref etir sobre a
Onipotncia divina, partindo da terra para concluir sua ref exo a proposito dos
cus, apresenta duas partes que so articuladas pela palavra rabe thumma tra-
duzida por ademais, mas que quer dizer, de preferncia, em seguida, ou de-
pois, alm disso. Pode, portanto, implicar um sentido de sucesso, aplicando-se
a uma sucesso de acontecimentos ou a uma sucesso na ref exo do homem
sobre os acontecimentos evocados aqui. Pode tratar-se, tambm, de uma simples
meno de acontecimentos que se justapuseram sem inteno de introduzir um
sentido de sucesso entre eles.
No importa o que seja, os perodos da criao do cu podem perfei-
tamente coincidir com os dois perodos da criao da terra: examinar-se-, um
pouco mais adiante, como evocado no Alcoro o processo da formao do
universo e veremos como ele se aplica conjuntamente aos cus e terra, em
conformidade com os conceitos modernos. Perceber-se-, ento, a perfeita legi-
timidade dessa maneira de conceber uma simultaneidade nos acontecimentos
evocados aqui.
Parece no haver oposio entre a passagem citada aqui e a concepo
decorrente de outros dois textos do Alcoro sobre a formao do mundo em
seis fases ou perodos.
138
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O ALCORO NO DEFINE UMA ORDEM
DE SUCESSO NA CRIAO DOS CEUS E DA TERRA
Nas duas passagens do Alcoro que acabam de ser citadas, menciona-
-se, em um versculo, a criao dos cus e da terra (Captulo 7, Versculo 54), e,
num outro lugar, a criao da terra e dos cus (Captulo 41, Versculos 9 a 12).
O Alcoro parece, portanto, def nir uma ordem na criao dos cus e da terra.
Existe um pequeno nmero de versculos nos quais a terra mencio-
nada em primeiro lugar, como no Captulo 2, versculo 29, e no Captulo 20,
Versculo 4, em que a aluso feita a aquele que criou a terra e os cus. H,
ao contrrio, versculos muito mais numerosos nos quais so os cus que so
mencionados antes da terra (Captulo 7, Versculo 54; Captulo 10, Versculo
3; Captulo 11, Versculo 7; Captulo 25, Versculo 59; Captulo 32, Versculo 4;
Captulo 50, Versculo 38; Captulo 57, Versculo 4;Captulo 79, Versculos 27 a
33; Captulo 91, Versculos 5-10).
A bem da verdade, posto parte o Captulo 79, nenhuma passagem
do Alcoro f xa de maneira formal uma sucesso: uma simples conjuno
de coordenao (wa) que tem o sentido do et em francs, que rene os dois
termos, ou ento a palavra thumma, j vista, que, na passagem citada acima
pode indicar uma simples justaposio ou mesmo sucesso.
Pareceu-me que existia uma s passagem no Alcoro em que a sucesso
nitidamente estabelecida entre os diversos acontecimentos da criao. So os
Versculos 27 - 33 do Captulo 79:
Qu! Porventura a vossa criao mais difcil ou a do cu, que Ele erigiu? Elevou a sua
abbada e, por conseguinte, a ordenou, Escureceu a noite e, (consequentemente) clareou o
dia; E depois disso dilatou a terra, Da qual fez brotar a gua e os pastos; E f xou, f rme-
mente, as montanhas, Para o proveito vosso e do vosso gado.
Essa enumerao das benfeitorias terrestres de Deus, destinadas aos ho-
mens, expressa em uma linguagem que convm aos agricultores ou aos nma-
des da pennsula Arbica, precedida de um convite a ref etir sobre a criao do
cu. Mas a evocao do estgio em que Deus estende a terra e a torna cultivvel
situada no tempo exatamente depois que a alternncia dos dias e das noites
realizada. H, portanto, aqui, evocao de dois grupos de fenmenos, uns ce-
lestes e outros terrestres, articulados no tempo. A meno que feita implica
139
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
que a terra devia necessariamente existir antes de ser estendida e que ela existia,
por consequncia, quando Deus construiu o cu. Destaca-se, ento, a noo de
uma concomitncia de duas evolues, celeste e terrestre, com emaranhar dos
fenmenos. No preciso, portanto, encontrar nenhuma signif cao particular
meno que feita no texto alcornico, a propsito da criao da terra antes
dos cus e dos cus antes da terra; o lugar das palavras no prejudica a ordem
na qual a criao se efetuou, se as precises no so, alis, dadas.
O PROCESSO FUNDAMENTAL DA FORMAO DO
UNIVERSO E SUA COLOCAO NA CONSTITUIO
DOS MUNDOS
O Alcoro apresenta em dois versculos uma sntese breve dos fenme-
nos que constituram o processo fundamental da formao do universo:
- Captulo 21. Versculo 30:
No veem, acaso, os incrdulos, que os cus e a terra eram uma s massa, que desagre-
gamos, e que criamos todos os seres vivos da gua? No creem ainda?
- Captulo 41, Versculo 11:
Ento, abrangeu, em Seus desgnios, os cus quando estes ainda eram gases, e lhes disse,
e tambm terra...
Seguem-se os mandamentos de submisso aos quais a aluso foi feita
mais acima.
Voltaremos mais adiante sobre a origem aqutica da vida, que ser exa-
minada ao lado de outros problemas biolgicos, evocados no Alcoro. E preciso
deter-se, agora, no que se segue:
a) A af rmao da existncia de uma massa gasosa com f nas partculas,
pois exatamente assim que se deve interpretar a palavra fumaa (dukhan, em
rabe). A fumaa geralmente constituda por um substrato gasoso com, em
suspenso mais ou menos estvel, f nas partculas que podem pertencer aos
estados slidos e menos lquido da matria e encontra-se em uma temperatura
140
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
mais ou menos elevada;
b) A meno de um processo de separao fatq que uma massa inicial
nica, cujos elementos estavam inicialmente ligados entre si (fatq). Esclareamos
que, em rabe, fatq a ao de romper, de dessoldar, de separar, e que fatq o
ato de ligai ou costurar os elementos para fazer um todo homogneo.
Este conceito de separao de um todo em vrias partes acentuado
em outras passagens do Livro pela evocao de mundos mltiplos. O primeiro
versculo do primeiro captulo do Alcoro proclama, depois da invocao da
abertura: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Louvado seja
Deus, Senhor dos Mundos.
A expresso Mundos reaparece dezenas de vezes no Alcoro. Os cus
so tambm evocados como mltiplos, no somente sob a forma do plural, mas
ainda com a numerao simblica sob a gide do nmero sete.
Sete empregado vinte e quatro vezes em todo o Alcoro para enu-
meraes diversas. Tem, em geral, o sentido de mltiplo sem que se conhea
de modo exato a razo do uso assim feito do nmero nesse sentido. Entre os
gregos, entre os romanos, o nmero sete parecia tambm ter o mesmo sentido
de pluralidade no def nida. No Alcoro, sete vezes o nmero sete se refere aos
cus, propriamente dito (samawaat); uma vez o nmero sete empregado ape-
nas para designar os cus que f cam subentendidos. Uma vez feita a meno
dos sete caminhos do cu:
- Captulo 2, Versculo 29:
Ele foi Quem vos criou tudo quando existe na terra; ento, dirigiu Sua vontade at o
f rmamento do qual fez, ordenadamente, sete cus, porque Onisciente.
- Captulo 23, Versculo 17:
E por cima de vs criamos sete cus em estratos, e no descuramos da Nossa criao.
- Captulo 67, Versculo 3:
Que criou sete cus sobrepostos; tu no achars imperfeio alguma na criao do Cle-
mente! Volta, pois, a olhar! Vs, acaso, alguma fenda?
- Captulo 71, Versculos 15-16:
141
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
No reparastes em como Deus criou sete cus sobrepostos, E colocou neles a lua reluzente
e o sol, como uma tocha?
56

- Captulo 78, Versculo 12 e 13:
E no construmos, por cima de vs, os sete f rmamentos? Nem colocamos neles um
esplendoroso lustre?
A lmpada muito ardente a o sol. Para todos esses versculos, os
comentadores alcornicos esto de acordo: o nmero sete designa uma plurali-
dade sem qualquer especif cao.
57

Os cus so, portanto, mltiplos; as terras so tambm e no uma das
menores surpresas do leitor moderno do Alcoro encontrar, num texto dessa
poca, o anncio do fato de que terras como a nossa pudessem se encontrar
no universo, o que os homens ainda no verif caram em nosso tempo.
O Versculo 12 do Captulo 65 indica o fato:
Deus foi Quem criou sete f rmamentos e outro tanto de terras; e Seus desgnios se cum-
prem, entre eles, para que saibais que Deus Onipotente e que Deus tudo abrange, com
a Sua oniscincia.
Com o sete indicando, como j vimos, uma pluralidade indeterminada,
podemos concluir o que o texto alcornico indica claramente que no existe
apenas uma terra, a terra dos homens (ard); h outras semelhantes no universo.
Outro motivo de perplexidade para o leitor do Alcoro no sculo 21: versculos
mencionam trs grupos de coisas criadas, que so:
- aquelas que se encontram nos cus;
- aquelas que se encontram sobre a terra;
- aquelas que se encontram entre os cus e a terra.
56 - Nota-se que a lua e o sol, chamados dois luzeiros na Bblia, so designados aqui, como
sempre no Alcoro, de maneira diferente; a primeira pela claridade (nur), enquanto que
a segunda comparada nesse versculo, tocha (sira), que produz a luz. Veremos mais
longe a aplicao ao sol de outros eptetos.
57 - Fora do Alcoro, nos textos da poca de Muhammad ou de todos os primeiros sculos
que a seguiram, relatando suas palavras (Hadiths), encontramos com frequncia o nme-
ro sete para indicar simplesmente uma pluralidade.
142
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Eis aqui alguns versculos:
- Captulo 20, Versculo 6:
Seu tudo o que existe nos cus, o que h na terra, o que h entre ambos, bem como o
que existe sob a terra.
- Captulo 25, Versculo 59:
... Quem criou, em seis dias, os cus e a terra, e tudo quanto existe entre ambos...
- Captulo 32, Versculo 4:
Foi Deus Quem criou, em seis dias, os cus e a terra, e tudo quanto h entre ambos
- Captulo 50, Versculo 38:
Criamos os cus e a terra e, quanto existe entre ambos, em seis dias, e jamais sentimos
fadiga alguma.
58

A meno no Alcoro o que est entre os cus e a terra encontra-se,
ainda, nos versculos seguintes: Captulo 21, Versculo 16; Captulo 44, versculos
7 e 38; Captulo 78, Versculo 37; Captulo 15, Versculo 85; Captulo 46, Vers-
culo 3; Captulo 43, Versculo 85.
Esta criao fora dos cus e fora da terra, mencionada repetidamente, ,
a priori, pouco imaginvel. preciso apelar para compreender o sentido desses
versculos, pelas constataes humanas modernas sobre a existncia de uma
matria csmica extragalctica e, para isso, tomar, procedendo do mais simples
ao mais complicado, as noes estabelecidas pela cincia contempornea sobre
a formao do universo. Isto ser objeto do pargrafo seguinte.
Mas antes de passar a essas consideraes puramente cientf cas, bom
resumir os pontos essenciais sobre os quais o Alcoro nos informa a propsito
da criao. Conforme o que precede, esses pontos so os seguintes:
1 Existncia de seis perodos palra a criao em geral;
58 - Esta armao, segundo a qual a criao no havia absolutamente fagado Deus,
aparece como uma evidente rplica ao pargrafo da narrao bblica, citada na primeira
parte deste livro, segundo a qual Deus teria repousado no smo dia do trabalho que
havia feito nos dias precedentes.
143
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
2 Enredamento de fases da criao dos cus e da criao da terra;
3 Criao do universo a partir de uma massa inicial nica, formando
um bloco que se separou a seguir;
4 Pluralidade dos cus e pluralidade das terras;
5 Existncia de uma criao intermediria entre cus e terra,.
ALGUNS DADOS DA CIENCIA MODERNA
SOBRE A FORMA DO UNIVERSO
O SISTEMA SOLAR
A Terra e os planetas, que giram em torno do Sol, constituem um mun-
do organizado, cujas dimenses parecem colossais nossa escada humana. A
Terra no est a uma distncia aproximada de 150.000.000 de quilmetros do
Sol? Esta distncia considervel para um ser humano, mas ela ainda muito
pequena em relao distncia mdia que separa o Sol do planeta mais dis-
tante dele no sistema solar: em nmeros redondos, quarenta vezes a distncia
Sol-Terra; isto aproximadamente 6 bilhes de quilmetros. O dobro dessa
distncia, isto , doze bilhes de quilmetros, representa a maior dimenso de
nosso planeta solar. A luz do Sol leva perto de seis horas para chegar a esse
planeta, Pluto, e, no entanto, ela completa seu trajeto na terrif cante velocidade
de 300.000 quilmetros por segundo. Mas a luz levar bilhes de anos para
nos chegar de estrelas situadas nos conf ns do mundo celeste conhecido.
AS GALXIAS
O Sol do qual somos um satlite, do mesmo modo que os outros pla-
netas que o rodeiam, no seno um pequeno elemento entre uma centena de
bilhes de estrelas que formam um conjunto chamado Galxia. Aquilo que se
144
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
v cobrindo todo o espao por uma bela noite de vero constitui o que cha-
mamos de Via Lctea. Esse grupo apresenta dimenses considerveis. Enquanto
a luz pode, em unidade da ordem de horas, percorrer todo o sistema solar, ela
requer um tempo da ordem de 90.000 anos para ir de uma extremidade a
outra do grupo mais compacto das estrelas que constituem nossa Galxia.
Ora, essa Galxia qual ns pertencemos, por to prodigiosamente vasta
que seja, no seno um pequeno elemento do cu. H aglomeraes gigantes
de estrelas anlogas Via Lctea fora de nossa Galxia. Elas foram descobertas
h pouco mais de cinquenta anos, quando a explorao astronmica pde
benef ciar-se de instrumentao ptica to aperfeioada como aquela que
permitiu realizar o telescpio do monte Wilson dos Estados Unidos. Desta
maneira, pde-se revelar um nmero prodigiosamente elevado de aglomeraes
de Galxias e de Galxias isoladas, situadas a distncias tais, que foi necessrio
constituir uma unidade especial de anos-luz, o parsec (distncia percorrida pela
luz em 3,26 anos, na velocidade de 300.000 quilmetros por segundo).
FORMAO E EVOLUO DAS GALXIAS
DAS ESTRELAS E DOS SISTEMAS PLANETRIOS
O que existiria originariamente no espao imensamente vasto ocupado
pelas Galxias? A cincia moderna no pode responder a esta questo, seno
a partir de uma certa poca da evoluo do universo, da qual ela no pode
calcular a durao que dela nos separa. Para os tempos mais recuados sobre
os quais ela capaz de se pronunciar, a cincia moderna toma a posio de
considerar que o universo era formado de uma massa gasosa, composta, prin-
cipalmente, de hidrognio e por uma parte de hlio em rotao lenta. Esta
nebulosa, a seguir, dividiu-se em mltiplos fragmentos de dimenses e massas
considerveis, a tal ponto que os astrofsicos podem calcul-los na ordem de
um bilho a 100 bilhes de vezes a massa atual do Sol (isto representa mais de
300.000 vezes a massa da Terra). Essas cifras demonstram a importncia des-
ses fragmentos de massa gasosa inicial que vo dar nascimento s Galxias.
Uma nova fragmentao vai formar as estrelas. Intervm, ento, um pro-
cesso de condensao no qual entram em jogo as foras da gravidade (porque
esses corpos esto em movimento de rotao cada vez mais rpido), as presses,
a inf uncia dos campos magnticos e das radiaes. As estrelas tornam-se bri-
145
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
lhantes, contraem-se, transformando em energia trmica as foras da gravidade.
As reaes termonucleares entram em logo e, pela fuso, tomos mais pesados
se formam s custas de outros mais leves; assim que se passa do hidrognio ao
hlio, depois ao carbono e ao oxignio, para chegar aos metais e aos metaloides
(semimetais). As estrelas tm, assim, uma vida, e a astronomia moderna fez uma
classif cao em funo de seu estgio evolutivo. As estrelas tm uma morte:
observou-se no ltimo estgio evolutivo a imploso brutal de certas estrelas
que se tornaram verdadeiros cadveres.
Os planetas, e a terra em particular, provm, eles tambm, de um proces-
so de separao a partir do constituinte inicial que foi a princpio, a nebulosa
primitiva. um dado que no mais controvertido, depois de quarto de sculo,
o fato que o sol foi condensado no meio da nebulosa nica e que os planetas
se formaram tambm no meio do disco nebuloso que o envolvia. Lembremo-
-nos - e de interesse capital para o assunto que nos preocupa aqui - de que
no houve uma sucesso na formao de elementos celeste como o Sol, e na
do elemento terrestre. H um paralelismo evolutivo com identidade de origem.
Aqui, a cincia nos informa sobre a poca durante a qual os aconteci-
mentos que acabam de ser evocados se passaram. Quando se calcula aproxi-
madamente em dez bilhes de anos a antiguidade de nossa galxia, em pouco
mais de cinco bilhes de anos mais tarde, nesta hiptese, teramos assistido a
formao do sistema solar. O estudo da radioatividade natural permite situar
idade da Terra e o momento da formao do Sol a 4,5 bilhes de anos, com
uma preciso atual, de, ao menos, 100 milhes de anos, segundo o clculo de
certos sbios. Esta preciso suscita a admirao porque, se 100 milhes de anos
representam um tempo muito longo, a relao erro mximo tempo total a me-
dir de , ou seja 2,2%.
Desse modo, para a formao do sistema solar, os especialistas da astrof-
sica chegaram a um grau elevado de conhecimento sobre o processo geral, que
pode ser assim resumido: condensao e contrao de uma massa gasosa em
rotao, separao em fragmentos, dando lugar ao Sol e aos planetas, entre eles,
a Terral
59
. Essas aquisies da cincia sobre a nebulosa primitiva de seu modo de
diviso em uma quantidade incomensurvel de estrelas, agrupadas em galxias,
no deixam a menor duvida sobre a legitimidade de um conceito de pluralidade
dos mundos, mas elas no trazem nenhuma espcie de certeza sobre a existncia
de um universo que poderia, de perto ou de longe, assemelhar-se Terra.
59 - Quanto Lua, reconhece-se como verossmil uma separao progressiva da Terra,
em consequncia da diminuio de sua rotao.
146
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O CONCEITO DE PLURALIDADE DOS MUNDOS
Entretanto, os astrofsicos modernos julgam extremamente provvel a
presena no universo, de planetas anlogos Terra. No que concerne ao siste-
ma solar, ningum mais considera razovel a possibilidade de se encontrar, em
um outro planeta deste sistema, condies gerais semelhantes s da Terra.
portanto, fora do sistema solar que se deveria pesquis-las. Julga-se provvel a
eventualidade de sua existncia fora dele, pelas razes seguintes.
Considera-se que, em nossa Galxia, a metade dos 100 bilhes de estrelas
deveria possuir, como o Sol, um sistema planetrio. Com efeito, estes cinquenta
bilhes de estrelas, tm, como o sol, uma rotao lenta, propriedade que leva a
pensar que outros planetas existem em torno delas como satlite. A distncia
dessas estrelas tal que os supostos planetas satlites no so observveis, mas
sua existncia considerada muito provvel por causa de certas caractersti-
cas de trajetria: uma ondulao ligeira da trajetria da estrela o ndice da
presena de um satlite planetrio associado. assim que a estrela de Barnard
possuiria, pelo menos, um companheiro planetrio de massa que ultrapassa de
Jpiter e, talvez, dois satlites. P. Gurin escreveu: Os sistemas planetrios so,
segundo toda evidncia, distribudos em profuso (abundncia) no universo. O
sistema solar e a Terra no so nicos... E como corolrio: A vida, como os
planetas que a abrigam, est propagada por todo o universo, em todo lugar
onde ela encontrou as condies fsico-qumicas necessrias para sua ecloso e
para seu desenvolvimento.
A MATRIA INTERESTELAR
O processo fundamental da formao do universo residiu, portanto, em
uma condensao da matria da nebulosa primitiva, depois em sua separao
em fragmentos que constituram, na origem, massas galcticas. Estas se frag-
mentaram, por sua vez, em estrelas, que daro subprodutos de fabricao, que
so os planetas. Essas separaes sucessivas deixaram, entre os grupos de ele-
mentos principais, o que se poderia chamar de restos. D-se-lhes o nome mais
cientf co de matria galctica interestelar. Descrevem-na sob diversos aspectos,
ora como o de nebulosas brilhantes, difundindo uma luz recebida de outras
147
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
estrelas e que poderia ser constituda por poeiras ou fumaas, segundo as
expresses dos astrofsicos, ora como o de nebulosas obscuras, de densidade
mais fraca, ora, tambm, como uma matria interestelar ainda mais discreta, co-
nhecida por atrapalhar as medidas fotomtricas em astronomia. A existncia de
pontos de matria entre as prprias galxias no deixa dvida. Por rarefeitos
que sejam esses gases, eles poderiam, em razo do espao colossalmente grande
que ocupam devido ao imenso distanciamento das galxias umas das outras,
corresponder a uma massa que, apesar de sua fraca densidade, seria capaz de
ultrapassar o conjunto de massas das galxias. H. Boichot d, presena dessas
massas intergalcticas, uma importncia primordial susceptvel de modif car
consideravelmente as ideias sobre a evoluo do universo.
preciso, agora, luz desses dados cientf cos modernos, retomar as
ideias fundamentais extradas do Alcoro sobre a criao do universo.
CONFRONTAO COM OS DADOS ALCORNICOS
SOBRE A CRIAO
Examinemos os cinco pontos essenciais em que o Alcoro d precises
a propsito da criao.
1. Os seis perodos da criao dos cus e da terra, segundo o Alcoro,
envolveriam a formao dos corpos celestes, da terra e seu desenvolvimento
at que ela se torne (com seus elementos) habitvel pelos homens. Para ela, na
narrao alcornica, os acontecimentos desenvolveram-se em quatro tempos.
Deveriam ser vistas a as eras geolgicas descritas pela cincia moderna, tendo
o homem aparecido. Sabe-se, na era quaternria? No seno uma simples hi-
ptese. Ningum pode responder a esta questo. Mas preciso notar que, para
formar os corpos celestes, assim como para formar a Terra, como o explicam
os Versculos 9-12 do Captulo 41, duas fases foram necessrias. Ora, a cincia
nos ensina que se toma como exemplo (nico exemplo acessvel), a formao
do Sol e de seu subproduto, a Terra; o processo decorreu por condensao da
nebulosa primitiva e separao. E preciosamente o que o Alcoro exprime, de
maneira explcita, pela meno dos processos que produziram, a partir da fu-
maa celeste, uma unio e, depois, uma separao. Registra-se, pois, aqui uma
identidade perfeita entre o dado alcornico e o dado cientf co.
148
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
2. A cincia mostrou a enredamento dos dois acontecimentos de forma-
o de uma estrela (como o Sol) e seu satlite, ou de um de seus satlites (como
a Terra). Essa intricao no apareceu no texto alcornico, como j vimos?
3. A correspondncia manifesta entre a af rmao da existncia, no
estgio inicial do universo, dessa fumaa da qual o Alcoro fala para designar
o estado com predominncia gasosa da matria, que o constitua ento, e a
concepo da nebulosa primitiva, segundo a cincia moderna.
4. A pluralidade dos cus expressa no Alcoro pelo smbolo do nmero
sete, do qual vimos a signif cao, recebe da cincia moderna sua conf rmao,
nas constataes feitas pelos astrofsicos sobre os sistemas galcticos e seu n-
mero considervel. Ao contrrio, a pluralidade das terras anlogas nossa, pelo
menos por certos aspectos, uma noo que se deduz do texto alcornico mas
do qual a cincia no deu a demonstrao da realidade; todavia, os especialistas
a consideravam como perfeitamente provvel.
5. A existncia duma criao intermediria entre cus e terra, ex-
pressa no Alcoro, pode ser ligada descoberta desses pontos de matria
presentes fora dos sistemas astronmicos organizados.
Se, no entanto, todas as questes postas pela narrao alcornica no
so, atualmente, inteiramente conf rmadas pelos dados cientf cos, no existe, em
todo caso, a menor oposio entre os dados alcornicos concernentes criao
e os conhecimentos modernos sobre a formao do universo. O fato merece
ser sublinhado para a Revelao alcornica quando se revela, com evidncia, que
o texto do Antigo Testamento que possumos em nossos dias deu, sobre esses
acontecimentos, af rmaes, que no so aceitveis do ponto de vista cientf co.
Como se admirar disso, alis, quando se sabe que o texto sacerdotal da narrao
da criao da Bblia (Esse texto eclipsa as poucas linhas da narrao Yahvista,
muito sucinta e muito vaga para ser levada em considerao por um esprito
cientf co.) foi escrito por sacerdotes do tempo da deportao Babilnia, que
tinham os f ns legalistas j especif cados e que, nesse perspectiva, confecciona-
ram uma narrao apropriada sua verso teolgica? interessante destacar
a existncia de tal diferena entre a narrao bblica e os dados alcornicos
sobre a criao, tambm diante das acusaes - todas gratuitas - que no foram
poupadas a Muhammad, desde os incios do Islam, de ter copiado as narraes
bblicas. A respeito da criao, a acusao no tem o menor fundamento. Como
um homem teria podido, h cerca de catorze sculos, corrigir at esse ponto
a narrao ento corrente, eliminando os erros do ponto de vista cientf co, e
enunciando de seu prprio parecer os dados dos quais a cincia demonstrar
149
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
f nalmente a exatido em nossa poca? Tal hiptese insustentvel! O Alcoro
fornece sobre a criao uma relao completamente diferente daquela da Bblia.
RESPOSTAS A CERTAS OBJEES
Indiscutvel a existncia de semelhanas entre as narraes bblicas e
as narraes alcornicas a propsito de outros assuntos, em particular no que
concerne historia religiosa. Alis, muito curioso notar, sob esse ponto de
vista, que se no se faz restrio a Jesus por ter retomado a evocao dos fatos
da mesma ordem e dos ensinamentos butlicos, no se sente nenhum constran-
gimento, em nossos pases ocidentais, em censurar Muhammad de os retomar
em sua predicao, sugerindo que ele impostor, visto que ele os apresenta
como uma Revelao. Mas onde est. Entretanto, a prova da reproduo por
Muhammad no Alcoro daquilo que os rabinos lhe teriam ensinado ou ditado?
Isto no tem mais fundamento que a af rmao segundo a qual um monge cris-
to lhe teria dado uma slida formao religiosa. Que se releia o que R. Blachre
diz sobre essa fbula, no seu livro o Problema de Maom
60
.
Aventa-se, tambm, um qu de identidade entre certos enunciados al-
cornicos e crenas, remontando a tempos muito recuados, sem dvida bem
anteriores Bblia.
De maneira mais geral, pretendeu-se ver um ressaibo de certos mitos
cosmognicos nas escrituras santas; por exemplo, a crena dos Polinsios na
existncia de guas primordiais mergulhadas nas trevas e que se separaram com
o aparecimento da luz. Ento cu e terra se formam. Que se compare esse mito
narrao da criao segundo a Bblia, encontrar-se-, seguramente, uma certa
semelhana, mas muito leviano acusar a Bblia de ter retomado esse mito
cosmognico.
Do mesmo modo seria considerar a concepo alcornica da diviso da
matria primordial constitutiva do universo no estgio inicial - concepo que
a da cincia moderna - como decorrente de mitos cosmognicos diversos que,
sob uma forma ou outra, exprimem coisa dessemelhante.
E interessante analisar mais de perto estas crenas e narraes mticas,
60 - Presses Universitaires de France, 1952.
150
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
porque nelas surge uma ideia de incio, em si mesma imaginvel e, para certos
casos, conforme a realidade do que sabemos atualmente ou do que ns supo-
mos saber; mas introduziram-se nela, no mito, descries fantasmagricas. Tal
o conceito muito largamente difundido do cu e da terra, que teriam sido
no incio unidos e, em seguida, separados. Quando, como no Japo, se lhe as-
sociaram a imagem do ovo e uma expresso catica como, naturalmente, para
todo ovo, um germe no seu interior, a adio imaginativa tira toda a seriedade
desse conceito. Em outros pases, associam-lhe a planta que cresce para elevar
o cu e separar o cu da terra; aqui, ainda, enfantasiado detalhe que d ao mito
sua marca bem especial. De qualquer modo, o carter comum permanece, com
a noo de uma massa nica no incio do processo evolutivo do universo que,
por divergncia, vai culminar nos diversos mundos que conhecemos.
Se esses mitos cosmognicos so evocados aqui, para sublinhar o seu
revestimento pela fantasia imaginativa do homem e marcar a diferena profunda
que existe entre os enunciados alcornicos sobre o assunto, isentos de todos
os detalhes fantasistas que acompanham essas crenas, marcadas, ao contrrio,
pela sobriedade verbal de seu enunciado e por sua concordncia com os dados
modernos da cincia.
Assim caracterizados, os enunciados alcornicos sobre a criao, por
terem sido expressos h cerca de catorze sculos, no parecem poder receber
uma explicao humana.
A ASTRONOMIA NO ALCORO
O Alcoro est repleto de ref exes sobre os cus. Vimos no captulo
precedente, concernente criao, que a multiplicidade dos cus e da terra
foi mencionada, assim como a existncia daquilo que o Alcoro def ne como
uma criao intermediria entre os cus e a terra, a qual a cincia moderna
demonstrou na realidade. Os versculos relativos criao j davam, de certo
modo, uma ideia geral sobre o contedo dos cus, isto , de tudo o que est
fora de nossa terra.
Alm dos versculos especif camente descritivos da criao, uns quarenta
outros versculos alcornicos trazem, sobre a astronomia, indicaes comple-
mentares desses dados. Certamente, no so seno ref exes gloria do Criador
151
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
e Organizador de todos os sistemas de estrelas e de planetas que, ns sabemos,
esto dispostos segundo posies de equilbrio, das quais Newton explicou a
manuteno com sua lei da atrao entre os corpos.
Os primeiros versculos citados aqui no oferecem muita matria re-
f exo cientf ca: eles tm simplesmente por f m chamar a ateno sobre Todo
o Poder de Deus. preciso mencion-los, entretanto, para dar uma ideia real da
maneira pela qual o texto alcornico apresentou, h perto de catorze sculos, a
organizao do universo.
Essas aluses constituem um fato novo para a Revelao divina. Nem
os Evangelhos, nem o Antigo Testamento (fora as noes das quais vimos a
inexatido de conjunto na narrao bblica da criao) tratam da organizao do
mundo. O Alcoro considera demoradamente esse assunto. O que ele contm
importa, mas, igualmente, importa o que ele no contm. Ele no contm, com
efeito, relao das teorias atuantes na poca sobre a organizao do mundo
celeste e das quais a cincia demonstrou, mais tarde, a inexatido. Daremos, mais
adiante, um exemplo delas. Este aspecto de ordem negativa deve ser sublinha-
do
61
.
A REFLEXES GERAIS SOBRE O CU
- Captulo 50, Versculo 6 - Ele trata dos homens em geral:
Porm, no reparam, acaso, no cu que est acima deles? Como o construmos e o ador-
namos, sem abertura aparente?
- Captulo 31, Versculo 10:
(Deus) Criou os cus, sem colunas aparentes.
61 - Ouvi, frequentemente, pessoas que se empenham em procurar uma explicao hu-
mana e somente uma explicao humana - dizerem sobre todo problema que o Alcoro
apresenta, que, se o Livro convesse fatos precisos surpreendentes sobre a astronomia,
porque os rabes seriam muito sbios no assunto. apenas esquecer que o desenvol-
vimento da cincia, em geral, em pas islmico, bem posterior ao Alcoro, e que, de
todo modo, os conhecimentos, ciencos dessa grande poca no teriam permido a um
ser humano escrever certos versculos sobre a astronomia, que encontramos no Alcoro.
Essa demonstrao ser dada nos pargrafos seguintes.
152
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 13, Versculo 2:
Foi Deus Quem erigiu os cus sem colunas aparentes; logo assumiu o Trono e submeteu
o sol e a lua ( Sua vontade).
Esses dois ltimos versculos so uma refutao crena, segundo a qual
a abbada celeste devia sua existncia a pilares de sustentao para no desabar
sobre a Terra.
- Captulo 55, Versculo 7:
E (Deus) elevou o f rmamento (cu) e estabeleceu a balana da justia.
- Captulo 22, Versculo 65:
Ele sustm o f rmamento, para que no caia sobre a terra, a no ser por Sua vontade.
Sabe-se que o afastamento das massas celestes, a distncia considerveis
e proporcionais importncia das prprias massas, constitui o fundamento
de seu equilbrio. Quanto mais afastadas estejam as massas, mais as foras de
atrao de umas sobre as outras so mais fracas. Quanto mais prximas, mais
elas se interferem: o caso da Lua, prxima da Terra (entende-se, no contexto
astronmico), que inf ui, pela lei da atrao, sobre a posio da gua nos mares,
donde o fenmeno das mars. Se dois corpos celestes se aproximassem demais,
a coliso seria inevitvel. A submisso a uma ordem a condio sine qua non
62
,
da ausncia de perturbaes.
Desse modo, a submisso dos cus ordem divina constantemente
citada.
- Captulo 23, Versculo 86: Deus fala ao Profeta:
Pergunta-lhes: Quem o Senhor dos sete cus e o Senhor do Trono Supremo?
Vimos que preciso entender por sete cus os cus mltiplos e no em
nmero f nito.
- Captulo 45, Versculo 13:
E vos submeteu tudo quanto existe nos cus e na terra, pois tudo dEle emana. Em verdade,
nisto h sinais para os que meditam.
62 - Sem o qual no pode ser, em lam.
153
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 55, Versculo 5:
O sol e a lua giram (em suas rbitas).
- Captulo 6, Versculo 96:
...( Deus que) vos estabelece a noite para o repouso; e o sol e a luz, para cmputo (do
tempo).
- Captulo 14, Versculo 33:
(Deus) Submeteu, para vs, o sol e a luz, que seguem os seus cursos; submeteu para vs,
a noite e o dia.
Aqui, um versculo completa o outro: os clculos que so evocados tm,
por consequncia, a regularidade do curso dos corpos celestes considerados,
expressa pela palavra rabe daib, particpio presente de um verbo que signif ca,
no sentido de se dedicar a fazer qualquer coisa. Deram-lhe aqui o sentido de
se dedicar a fazer qualquer coisa com cuidado e de maneira continua, invari-
vel, segundo um hbito estabelecido.
- Captulo 36, Versculo 39: Deus fala:
E a lua, cujo curso assinalamos em fases, at que se apresente como um ramo seco de
tamareira.
Aluso feita curvatura do galho da palmeira que, secando, toma a for-
ma crescente da Lua. Contemplaremos mais adiante o comentrio.
- Captulo 16, Versculo 12:
E (Deus) submeteu, para vs, a noite e o dia; o sol, a lua e as estrelas esto submetidos
s Suas ordens. Nisto h sinais para os sensatos.
A incidncia prtica dessa organizao celeste perfeita mencionada,
insistindo-se sobre seu interesse de facilitar os movimentos do Homem sobre
a Terra e no mar, assim como o clculo do tempo. Esta observao se explica
quando se lembra que o Alcoro foi, na origem, um sermo endereado a ho-
mens que no poderiam compreender seno a linguagem simples, que era a sua
vida comum. Tal a razo da presena de ref exes, como as que seguem:
- Captulo 6, Versculo 97:
154
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Foi Ele (Deus) Quem deu origem, para vs, s estrelas, para que, com a sua ajuda, vos en-
caminhsseis, nas trevas da terra e do mar. Temos esclarecido os versculos para os sbios.
- Captulo 16, Versculo 16:
Assim como os marcos, constituindo-se das estrelas, pelas quais (os homens) se guiam.
- Captulo 10, Versculo 5:
Ele foi Quem originou o sol iluminador e a lua ref etidora, e determinou as estaes do
ano, para que saibais o nmero dos anos e seus cmputos. Deus no criou isto seno com
prudncia; ele elucida os versculos aos sensatos.
Aqui uma observao se impe. Enquanto a Bblia qualif cou o Sol e a
Lua como luzeiros, juntando, apenas, a um qualif cativo o grande e, a outro, o
pequeno, o Alcoro atribui, tanto a um como a outro, outras diferenas alm
das de dimenso. Na verdade, a distino no seno verbal. Mas como se en-
derear aos homens daquela poca, sem os confundir, e expressar de sbito a
ideia de que o Sol e a Lua no so luzeiros de natureza idntica?
B NATUREZA DOS CORPOS CELESTES
O SOL E A LUA
O Sol uma luz (Diya) e a Lua uma claridade (Nur). Esta traduo
parece ser mais exata que aquela dada por outras, que invertem os signif cados
dos termos. Na verdade, a diferena do sentido fraca, enquanto que Diya
pertence a uma raiz (DW) que signif ca, segundo o clssico dicionrio de Kazi-
mirski, brilhar, luzir (diz-se do fogo etc.), ainda que esse autor d igualmente,
ao substantivo em questo, o sentido de claridade ao lado daquele de luz.
Mas a diferena entre o Sol e a Lua ser acentuada no Alcoro com
auxlio de outras comparaes:
- Captulo 25, Versculo 61:
Bendito seja Quem colocou constelaes no f rmamento e ps, nele, uma lmpada em uma
lua ref etidora.
155
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 71, Versculos 15-16:
No reparastes em como Deus criou sete cus sobrepostos, E colocou neles a lua reluzente
e o sol, como uma lmpada?
- Captulo 78, Versculos 12-13:
E no construmos, por cima de vs, os sete f rmamentos? Nem colocamos neles um
esplendoroso lustre?
A lmpada muito brilhante , evidentemente, o Sol.
Aqui, a Lua def nida como um corpo que clareia (munir), da mesma
raiz que nur (a claridade aplicada Lua). Quanto ao Sol, ele comparado a uma
tocha (siraj) ou uma lmpada muito brilhante (wahhaj).
Um homem da poca de Muhammad poderia certamente fazer a dis-
tino entre o Sol, o astro brilhante bem conhecido das gentes do deserto, e
a Lua, astro do frescor das noites. As comparaes que se encontram a esse
propsito no Alcoro so, portanto, naturais. O que interessante notar aqui,
a sobriedade das comparaes e a ausncia, no texto alcornico, de qualquer
elemento comparativo que poderia ter ocorrido naquela poca e que apareceria
em nossos dias como fantasmagrico.
Sabe-se que o Sol uma estrela, produtora por suas combustes internas
de um calor intenso e de luz, ao passo que a Lua no luminosa por si mesma,
no faz seno ref etir a luz que recebe do Sol e constitui um astro inerte (pelo
menos em suas camadas exteriores). Nada, no texto alcornico, contradiz a tudo
o que ns sabemos em nossos dias desses dois corpos celestes.
AS ESTRELAS
As estrelas so, como se sabe, como o Sol, corpos celestes, sedes de
fenmenos fsicos diversos dos quais, o mais facilmente observvel, o da pro-
duo da luz. So astros tendo um brilho prprio.
Treze vezes, a palavra aparece no Alcoro (najm, no plural nujum); ela de-
riva de uma raiz signif cando aparecer, deixar-se ver. A palavra designa um corpo
celeste visvel sem prejudicar sua natureza: emissor de luz ou simples ref etor da
luz recebida. Para esclarecer que o objeto designado exatamente o que ns
156
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
chamamos de estrela, um qualif cativo ali se ajunta como em:
- Captulo 86, Versculos 1-3:
Pelo cu e pelo visitante noturno; E o que te far entender o que o visitante noturno?
a estrela fulgurante!
63
A estrela da Noite qualif cada no Alcoro pelo nome de Thagib, que
signif ca arde, consome-se, e que penetra atravs de qualquer coisa (aqui, as
trevas da noite). A mesma palavra , alis, encontrada para designar as estrelas
cadentes (Captulo 37, Versculo 10): que so o resultado de uma combusto.
OS PLANETAS
difcil de se dizer se estes so, no Alcoro, bem evocados, com o sen-
tido preciso que damos a esses corpos celestes.
Os planetas no so luminosos por si mesmos. Eles giram em torno do
Sol. Nossa terra faz parte deles. Presume-se que possam existir fora deste siste-
ma, mas so conhecidos apenas os do sistema solar.
Cinco planetas, alm da Terra, eram conhecidos na Antiguidade: Merc-
rio, Vnus, Marte, Jpiter e Saturno. Trs so de conhecimento moderno: Urano,
Netuno e Pluto.
O Alcoro parece design-los sob o nome de Kawkab (plural, Kawakib)
sem precisar-lhes o nmero. O sonho de Jose (Captulo 12), menciona exatamen-
te onze deles, mas trata-se, por def nio, de uma narrao imaginria.
Uma boa def nio da signif cao da palavra, no Alcoro, parece estar
dada num celebrrimo versculo, cujo sentido profundo aparece eminentemente
espiritual e, no mais, muito discutido pelos interpretadores. Ele apresenta, no
obstante, um grande interesse, em razo da comparao que ali feita e prop-
sito da palavra, parecendo designar um planeta. O texto que nos interessa aqui
o seguinte:
63 - Aqui, o cu e uma estrela so tomados como testemunhas para acentuar a importn-
cia do que vir a seguir no texto.
157
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 24, Versculo 35:
Deus a Luz dos cus e da terra. O exemplo da Sua Luz como o de um nicho em que
h uma candeia; esta est num recipiente; e este como uma estrela brilhante.
Trata-se aqui de uma projeo da luz sobre um corpo que a ref etiu (o
vidro) e dando-lhe o brilho da perola, como o planeta que clareado pelo sol.
E, o nico pormenor explicativo, concernente palavra, que se pode encontrar
no Alcoro.
O termo citado em outros versculos. Em alguns, no se pode deter-
minar de quais corpos celestes se trata (Captulo 6, Versculo76; Captulo 82,
Versculos 1-2).
Mas, em um Versculo, parece perfeitamente, luz dos conhecimentos
modernos, que no se trata seno dos corpos celestes que ns sabemos serem
os planetas.
L-se, com efeito, no Captulo 37, Versculo 6: Em verdade, adornamos
o cu aparente com o esplendor das estrelas.
A expresso alcornica de cu mais prximo poderia designar o sis-
tema solar? Sabe-se que no h, entre os elementos celestes mais prximos de
ns, outros elementos permanentes como os planetas: o Sol a nica estrela do
sistema que leva seu nome. No se v de que outros corpos celestes se poderia
tratar, a no ser dos planetas. Parece, portanto, que a traduo dada seja exata e
que o Alcoro menciona a existncia dos planetas, segundo a def nio moder-
na.
O CU MAIS PRXIMO
O Alcoro menciona vrias vezes o cu mais prximo e os corpos celes-
tes que o constituem, os quais, em primeiro lugar, parecem ser como acabamos
de ver, os planetas. Mas quando ele associa s noes materiais que so aces-
sveis ao nosso entendimento - esclarecidos como estamos hoje pela cincia
moderna -, consideraes de ordem puramente espiritual tornam o sentido
muito obscuro.
158
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Assim, o ltimo versculo citado poderia ser facilmente compreendido,
mas, quando o versculo seguinte (7) desse mesmo Captulo 37 fala duma pro-
teo contra todo demnio rebelde, proteo tambm evocada no Captulo
2I, Versculo 32 e Captulo 41, Versculo 12, encontramo-nos em presena de
consideraes de uma outra ordem.
Que sentido dar igualmente a essas pedras de lapidao do demnio
que o Versculo 5 do Captulo 67 situa no cu mais prximo? Os luzeiros
evocados nesse versculo relacionar-se-iam com as estrelas cadentes
64
citadas
mais acima?
Todas essas consideraes parecem situar-se fora do assunto deste es-
tudo. A meno foi feita aqui para ser completa, mas no parece que os dados
cientf cos possam lanar, no estado atual das coisas, alguma luz sobre um as-
sunto que ultrapassa a compreenso humana.
C ORGANIZAO CELESTE
O que encontramos sobre esta questo no Alcoro concerne principal-
mente ao sistema solar, mas as aluses so feitas, tambm, a fenmenos que ul-
trapassam o prprio sistema solar e que foram descobertos na poca moderna.
Dois versculos muito importantes so relativos s rbitas do Sol e da
Lua:
- Captulo 21, Versculo 33:
Ele foi Quem criou a noite e o dia, o sol e a lua; cada qual (dos corpos celestes) gravita
em sua respectiva rbita.
- Captulo 36, Versculo 40:
No dado ao sol alcanar a lua; cada qual gira em sua rbita; nem a noite, ultrapassar
o dia.
Assim, evocado com clareza um fato essencial: a existncia de rbitas
para a Lua e para o Sol e uma aluso feita ao deslocamento desses corpos no
64 - Sabemos que um meteorito, chegando nas camadas superiores da atmosfera, pode
desencadear o fenmeno luminoso da estrela cadente.
159
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
espao com um movimento prprio.
Alm do mais, um fato de ordem negativa aparece, leitura desses
versculos: est indicado que o Sol se desloca sobre uma rbita sem nenhuma
indicao sobre o que esta rbita estaria em relao Terra. Ora, acreditava-se,
na poca da Revelao Alcornica, que o Sol se deslocava, com a Terra, como
ponto f xo. Era o sistema do geocentrismo em vigor desde Ptolomeu, no sculo
II A.C., e que seria o dominante at Coprnico, no sculo XVI. Essa concepo,
entretanto, vigente na poca de Muhammad, no aparece em nenhuma parte no
Alcoro, nem aqui e nem algures.
A EXISTNCIA DE ORBITAS PARA A LUA E PARA O SOL
O que traduzido aqui por rbita a palavra rabe falak, qual muitos
tradutores do Alcoro, em francs, do o sentido de esfera. , efetivamente, o
sentido inicial do termo. Hamidullah o traduziu por rbita.
A palavra perturbou os comentadores antigos do Alcoro que no po-
diam imaginar o custo circular da Lua e do Sol e ento representaram, por
imagens mais ou menos exatas ou completamente errneas, o curso, no espao,
dos dois astros.
Se Hamza Boubekeur cita, na sua traduo do Alcoro, a diversidade das
interpretaes dadas Uma espcie de eixo como a haste de ferro em torno
do qual gira um moinho; esfera celeste, rbita, signo de zodaco, velocidade,
onda..., ele acrescenta esta ref exo de um clebre comentador do sculo X,
Tabari: nosso dever nos calarmos quando ns no sabemos (XVII, 15). dizer
o quanto os homens estavam ainda incapazes de compreender esta noo de
rbita para o Sol e para a Lua.
bem evidente que, se a palavra tivesse traduzido uma noo de astro-
nomia, corrente na poca de Muhammad, as interpretaes desses versculos
no teriam conduzido a tais dif culdades. Existia, portanto, aqui no Alcoro,
uma noo nova que seria esclarecida somente sculos mais tarde.
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
1 PARA A LUA
A noo, muito difundida em nossos dias, que, satlite da Terra, ela
gira em torno desta com uma periodicidade de vinte e nove dias. preciso,
no entanto, propor uma correo circularidade absoluta da rbita, porque a
astronomia moderna lhe d uma certa excentricidade, de forma que a distncia
Terra-Lua, avaliada em 384.000 km, no seno uma distncia mdia.
Vimos mais acima que o Alcoro punha em relevo, pata a medida do
tempo, a utilidade da observao dos movimentos da Lua (Captulo 10, Verscu-
lo 5, citado no incio deste captulo).
Muitas vezes, criticou-se esse sistema de clculo como arcaico, no prti-
co, anticientf co, em relao ao nosso sistema, fundado sobre a rotao da Terra
em torno do Sol, que se expressa, em nossa poca, no calendrio Juliano.
Esta crtica provoca duas observaes:
a) O Alcoro se endereava, h perto de catorze sculos, aos habitantes
da Pennsula Arbica, que tinham em uso o clculo lunar do tempo. Era con-
veniente lhes assegurar a nica linguagem que eles podiam compreender e de
no os perturbar em seus hbitos, na tomada de referncias espaciais que, em
suma, eram plenamente ef cazes. Sabemos que os homens do deserto so afeitos
a observaes do cu, orientao de acordo com as estrelas e marcao do
tempo de acordo com as fases da Lua, meios mais simples e mais seguros para
eles.
b) Postos parte os especialistas destas questes, ignora-se, geralmente,
a perfeita correspondncia que existe entre o calendrio Juliano e o calendrio
lunar: 235 meses lunares correspondem exatamente a 19 anos Julianos de 365
dias e um quarto; a durao dos nossos anos de 365 dias no perfeita porque
tem a necessidade de ser corrigida a cada quatro anos (anos bissextos). Com o
calendrio lunar, os mesmos fenmenos se repetem a cada 19 anos Julianos: o
ciclo de Mton, astrnomo grego, que fez, no sculo V A.C., a descoberta da
concordncia exata dos tempos solar e lunar.
2 - NO QUE CONCERNE AO SOL
A existncia de uma rbita mais dif cilmente concebvel, habituados
como estamos a considerar que nosso sistema solar est organizado em torno
dele. Para compreender o versculo Alcornico, preciso considerar a situao
161
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
do Sol em nossa galxia e fazer apelo, por consequncia, s noes da cincia
moderna.
Nossa galxia compreende um nmero considervel de estrelas repar-
tidas segundo um disco - mais espesso em seu centro que na periferia. O Sol
ocupa ali uma posio distanciada do centro do disco. Como a galxia gira
sobre si mesma, tendo como eixo seu centro, resulta que o Sol gira em tor-
no desse mesmo centro seguindo uma rbita circular. A astronomia moderna
calculou-lhe os elementos. O Sol foi considerado por Shapley, em 1917, distando
do centro da galxia em 10 Kiloparsecs, ou seja, em quilmetros, aproximada-
mente o nmero 3 seguido de 17 zeros. Para girarem completamente sobre si
mesmos, a galxia e o Sol levam mais ou menos 250 milhes de anos e, nesse
movimento, o Sol se desloca a uma velocidade aproximada de 250 quilmetros
por segundo.
Este o movimento orbital do Sol anunciado pelo Alcoro, h perto
de catorze sculos, cuja demonstrao da existncia e coordenadas so uma
aquisio da astronomia moderna.
A ALUSO AO DESLOCAMENTO DA LUA E DO SOL
NO ESPAO COM UM MOVIMENTO PRPRIO
Esta noo no aparece nas tradues do Alcoro feitas por homens
letrados, que, ignorantes da astronomia, traduziram a palavra rabe, exprimindo
esse deslocamento por um dos seus sentidos que nadar. Isto ocorre tanto
nas tradues francesas como na traduo inglesa, alis, to notvel, de Yusuf
Ali.
A palavra rabe que faz aluso a um deslocamento com movimento
prprio o verbo sabaha (yasba huna no texto dos dois versculos). Todos os
sentidos do verbo implicam um deslocamento, associado a um movimento pr-
prio do corpo que se desloca. E nadar, se o deslocamento tem lugar na gua;
se deslocar por movimento de suas prprias pernas, se o deslocamento
terrestre. Para um deslocamento no espao, no se v bem como ter a ideia
implicada por esta palavra, a no ser empregada no sentido primitivo. Desta
maneira, no parece que um contrassenso foi cometido, pelas razes seguintes:
162
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- A Lua faz seu movimento de rotao sobre si mesma ao mesmo tempo
em que completa uma evoluo em torno da Terra, isto , em 29 dias e meio
aproximadamente, de forma que ela apresenta sempre a mesma face aos nossos
olhos;
- O Sol gira sobre si mesmo em 25 dias aproximados. Existem algumas
particularidades de rotao para o Equador e para os Polos, sobre os quais no
se insistir aqui, mas o astro ativo por um movimento de rotao em qualquer
circunstncia.
Parece, portanto, que uma nuance verbal faz aluso no Alcoro aos mo-
vimentos prprios do Sol e da Lua. Esses movimentos dos dois corpos celestes
so conf rmados pelos dados da cincia moderna e no se concebe que um
homem do sculo VII de nossa era - por mais sbio que fosse em sua poca, o
que no era o caso de Muhammad - pudesse imagin-los.
Costuma-se s vezes, opor a este ponto de vista certos exemplos de
grandes pensadores da Antiguidade, que incontestavelmente anunciaram certos
fatos que a cincia moderna reconheceu como exatos. Eles no podiam, alis,
se apoiar de modo algum na deduo cientf ca e procederam mais por racio-
cnio f losf co. Apresenta-se assim constantemente o caso dos pitagricos que
defendiam, no sculo VI A.C., a teoria da rotao da Terra sobre si mesma e o
movimento dos Planetas em redor do Sol, teoria que a cincia moderna conf r-
mar. Fazendo-se uma aproximao com o caso dos pitagricos, fcil levantar
a hiptese de que Muhammad, pensador genial, teria pessoalmente imaginado o
que a cincia moderna descobriria sculos depois dele. Fazendo-se assim, esque-
ce-se simplesmente de citar os outros aspectos da produo intelectual desses
gnios do raciocnio f losf co, e de mencionar os erros de grande porte que
emanam de suas obras. assim que no devemos esquecer que os pitagricos
defendiam tambm a teoria da f xidez do Sol no espao, do qual eles faziam o
centro do mundo, no concebendo a organizao celeste, seno em torno dele.
comum encontrar nos grandes f lsofos antigos uma mistura de ideias justas
e de ideias falsas sobre o universo.
A importncia que conferem a tais obras humanas as concepes avan-
adas que puderam conter no deve fazer esquecer os conceitos errneos que
elas igualmente nos legaram. exatamente isso, sob o ponto de vista da cincia,
o que os separa do Alcoro, no qual os mltiplos assuntos so colocados em
relao aos conhecimentos modernos, sem que uma nica af rmao possa ser
encontrada em contradio com o que a cincia de nossa poca estabeleceu.
163
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A SUCESSO DOS DIAS E DAS NOITES
Numa poca em que se considerava que a Terra era o centro do mundo
e que o Sol era mvel em relao a ela, que ser humano no teria evocado o
movimento do Sol a propsito da sucesso dos dias e das noites?
Ora, uma tal considerao no aparece no Alcoro, que trata desse as-
sunto, como segue:
Captulo 7, Versculo 54:
(Deus) ensombrece o dia com a noite, que o sucede incessantemente.
Captulo 36, Versculo 37:
E tambm sinal, para eles, a noite, da qual retiramos o dia, e ei-los mergulhados nas
trevas!
Captulo 31, Versculo 29:
No tens reparado, acaso, em que Deus insere a noite no dia e o dia na noite, e que
submeteu o sol e a lua, e que cada um (destes) gira em sua rbita at um trmino pref xado,
e que Deus est inteirado de tudo quanto fazeis?
- Captulo 39, Versculo 5:
Enrola a noite com o dia e enrola a noite com o dia e enrola o dia com a noite.
O primeiro versculo dispensa comentrios. O segundo quer dar sim-
plesmente uma imagem.
So principalmente o terceiro e o quarto versculos que podem apresen-
tar um interesse no que concerne ao processo de penetrao e, sobretudo, de
enrolamento da noite sobre o dia, e do dia sobre a noite (Captulo 39, Versculo
5).
Enrolar (Em francs, corresponde ao verbo enrouler (N.T.)) parece ser,
como na traduo de R. Blachre, a melhor maneira de traduzir em portugus o
verbo rabe Kawwara. A signif cao primitiva desse verbo enrolar em espiral
um turbante sobre a cabea; em todos os outros sentidos, a noo de enrola-
mento conservada.
164
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Ora, o que se passa, na realidade, no espao? Como os astronautas
americanos viram muito bem e fotografaram de seus veculos espaciais, em
particular a grande distncia da Terra, desde a Lua, por exemplo, o Sol clareia
permanentemente (eclipses excetuados) a semiesfera terrestre colocada em face
dele enquanto a outro semiesfera permanece na obscuridade. Como a Terra gira
sobre si mesma, ao passo que a claridade f ca f xa, uma rea iluminada em forma
de semiesfera faz, vinte e quatro horas, sua rotao em torno do Sol, enquanto
a semiesfera permanecia na obscuridade completa, durante o mesmo tempo,
o mesmo priplo. Essa ronda incessante do dia e da noite est perfeitamente
descrita pelo Alcoro. Ela facilmente acessvel em nossos dias compreenso
humana, pois que temos a noo da f xao (relativa) do Sol e da rotao da
Terra.
Esse processo de rolamento permanente com penetrao contnua de
um setor a outro expresso no Alcoro, como se, naquela poca, j se tivesse
concebido o conhecimento da redondeza da Terra, o que evidentemente no
o caso.
preciso acrescentar a essas consideraes sobre a sucesso dos dias
e das noites, as evocaes, em alguns versos alcornicos, sobre a pluricidade
dos orientes e dos ocidentes, cujo interesse apenas descritivo, porque esses
fenmenos podem ser constatados pela observao mais banal. Eles so men-
cionados aqui, no intuito de reproduzir, o mais completamente possvel, o que
o Alcoro contm a esse respeito, por exemplo:
- No Captulo 70, Versculo 40, a expresso: Senhor dos Orientes e dos
Ocidentes;
- No Captulo 55, Versculo 17, este: Senhor dos dois Orientes e dos
dois Ocidentes;
- No Captulo 43, Versculo 38, a evocao da distncia dos dois Orien-
tes, imagem para expressar a imensidade de uma distncia entre dois pontos.
O observador dos nascentes e dos poentes do Sol sabe bem que o Sol
se levanta em pontos diferentes do Oriente e se deita em pontos diferentes do
Ocidente, segundo as estaes. As marcas tomadas a cada um dos horizontes,
def nindo os pontos extremos, marcam dois Orientes e dois Ocidentes, entre
os quais se colocam, ao longo dos anos, os pontos intermedirios. O fenme-
no descrito aqui, , por assim dizer, banal. Mas, o que merece principalmente
chamar a ateno o que se relaciona com os outros assuntos tratados nesse
165
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
captulo, em que a descrio dos fenmenos astronmicos, evocados no Alco-
ro, aparece conforme as noes modernas.
D - A EVOLUO DO MUNDO CELESTE
Lembrando as ideias modernas sobre a formao do universo, mostra-
da aqui a evoluo que se produziu desde a nebulosa inicial at a formao das
galxias, das estrelas e, para o sistema solar, at o aparecimento das plantas a
partir do Sol em um certo estgio de evoluo. Os dados modernos permitem
pensar que, no sistema solar e no universo mais geralmente, a evoluo prosse-
gue ainda.
Quando temos conhecimento dessas noes, como no fazer uma apro-
ximao com certas af rmaes que encontramos no Alcoro, quando invoca-
das as manifestaes do Todo-Poderoso divino?
Em vrias retomadas, o Alcoro lembra que (Deus) submeteu o Sol e a Lua;
cada um se move at um termo f xado.
Encontra-se essa frase no Captulo 13, Versculo 2; Captulo 31, Versculo
29; Captulo 35, Versculo 13; Captulo 39, Versculo 5.
Mas, alm disso, a ideia do termo f xado associada a uma ideia de lugar
de destino:
- Captulo 36, Versculo 38:
E o sol, que segue o seu curso at um local determinado. Tal o decreto do Onisciente,
Poderosssimo.
Lugar f xo a traduo da palavra mustaqarr. No h dvida de que a
ideia de lugar preciso est ligada a essa palavra.
Como se apresenta a confrontao dessas af rmaes com os dados
estabelecidos pela cincia moderna?
O Alcoro d ao Sol um termo evolutivo e um lugar de destino. Lua,
ele designa tambm um termo. preciso, para compreendei o sentido possvel
166
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
dessas af rmaes, lembrar os conhecimentos modernos sobre a evoluo das
estrelas em geral, do Sol em particular e, por via de consequncia, as formaes
celestes que seguem necessariamente seu movimento no espao, e das quais a
Lua faz parte.
O Sol uma estrela cuja idade estimada em aproximadamente 4 bi-
lhes e meio de anos pelos astrofsicos. Como para todas as estrelas, pode-se
def nir para ele um estgio evolutivo. O Sol est atualmente, num primeiro
estgio, caracterizado pela transformao dos tomos de hidrognio em tomos
de hlio: este estgio atual dever, teoricamente, durar ainda 5 bilhes e meio
de anos, segundo clculos efetuados que do a esse primeiro estgio, para uma
estrela do tipo do Sol, uma durao total de 10 bilhes de anos. A este estgio
segue-se, como se observou para outras estrelas do mesmo tipo, um segundo
perodo caracterizado pelo trmino da transformao do hidrognio em hlio,
tendo, por consequncia, a dilatao das camadas extremas e o esfriamento do
Sol. No estgio f nal, a luminosidade consideravelmente diminuda e a densi-
dade consideravelmente elevada: o que se observa no tipo de estrelas s quais
se deu o nome de ans brancas.
De tudo isto o que preciso guardar no so as datas, que no so in-
teressantes a no ser para dar uma estimativa aproximada do fator tempo, mas
o que ressalta, sobretudo, a noo de uma evoluo. Os dados modernos per-
mitem predizer que, em alguns bilhes de anos, as condies do sistema solar
no sero as de nossos dias. Como para outras estrelas das quais se registraram
as transformaes at o estgio ltimo, pode-se prever um f m para o Sol.
O segundo versculo citado aqui (Captulo 36, Versculo 38) evocou o
Sol, vagando para um lugar que lhe pertence.
A astronomia moderna o situa perfeitamente (e at lhe deu o nome de
pex solar): o sistema solar evolui, com efeito, no espao, em direo a um pon-
to situado na constelao de Hrcules, na vizinhana da estrela Vega (a Lyrae),
cujas coordenadas esto bem estabelecidas; o movimento tem uma velocidade
que foi f xada e que da ordem de 19 quilmetros por segundo.
Todos esses dados da astronomia mereciam ser relatados a propsito
de dois versculos alcornicos, dos quais se pode dizer que parecem concordar
perfeitamente com os dados cientf cos modernos.
167
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A EXPANSO DO UNIVERSO
A expanso do universo o fenmeno mais grandioso descoberto pela
cincia moderna. E uma noo hoje bem estabelecida; as nicas discusses ver-
sam sobre o modelo segundo o qual ele se efetua.
Sugerida a partir da teoria da relatividade geral, a expanso do universo
tem um suporte fsico nos exames do espectro das galxias; o deslocamento
sistemtico para o vermelho de seu espectro se explicaria por uma separao
das galxias umas das outras. Assim, a extenso do universo ser, sem cessar,
crescente e esta expanso ser tanto mais importante quanto se distancia de
ns. As velocidades em que os corpos celestes se deslocaram nessa expanso
contnua poderiam ir de fraes de velocidade da luz a valores superiores a esta.
O Versculo seguinte do Alcoro (Captulo 51, Versculo 47), onde Deus
fala, pode ser confrontado com essas noes modernas?
E construmos o f rmamento (cu) com poder e percia, e Ns o expandimos
O cu, traduo da palavra samaa no precisamente o mundo fora da
Terra da qual se trata?
O que foi traduzido por ns o alargamos o particpio presente do
plural muusieuuna do verbo ausaa, que signif ca: alargar, estender, tornar mais
vasto, mais espaoso, quando se trata de objetos.
Alguns tradutores, incapazes de compreender o sentido dessa ltima
palavra, do signif caes, que me parecem errneas, como: Ns somos plenos
de largueza (R. Blachre). Outros autores adivinham a signif cao mas no
ousam se pronunciar: Hamidullah, na traduo do Alcoro, fala do alargamento
do cu, do espao, mas com um ponto de interrogao. E h, enf m, aqueles que,
cercando seus comentrios de opinies cientf cas autorizadas, do a signif ca-
o apontada aqui. Tal o caso dos comentrios do Muntakhab, editado pelo
Conselho Superior dos Negcios Islmicos do Cairo; eles evocam, sem a menor
ambiguidade, a expanso do universo.
E - A CONQUISTA DO ESPAO
Trs versculos do Alcoro merecem, deste ponto de vista, reter toda a
168
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
nossa ateno. Um deles expressa de maneira ambgua o que caber aos ho-
mens realizar nesse domnio, e que eles realizaro. Nos dois outros versculos,
Deus evoca, em relao aos inf is de Meca, a perplexidade que seria a deles, se
pudessem elevar-se ao cu, fazendo aluso a uma hiptese de que ela no ser
seguida de efeito para estes ltimos.
1. O primeiro versculo o Versculo 33, do Captulo 55:
assembleia de gnios e humanos, se sois capazes de atravessar os limites dos cus e da
terra, fazei-o! Porm, no podereis faz-lo, sem autoridade.
A traduo dada aqui requer alguns comentrios explicativos:
a) A palavra portuguesa se exprime, em nossa lngua, uma condio
que implica tanto uma eventualidade quanto uma hiptese realizvel ou uma
hiptese no realizvel. A lngua rabe capaz de graduar a condio de ma-
neira muito mais explcita. H uma palavra para exprimir eventualidade (idhaa),
uma outra para exprimir hiptese realizvel (in) e uma terceira para introduzir
hiptese no realizvel (law). O versculo considerado trata de uma hiptese
realizvel expressa por in. O Alcoro evoca, portanto, aqui, a possibilidade ma-
terial da realizao concreta. Essa distino lingustica elimina de modo formal
a interpretao puramente mstica que alguns quiseram dar, erradamente, a esse
versculo.
b) Deus se dirige aos espritos (Jinn) e aos seres humanos (lns) e no a
f guras alegricas, essencialmente.
c) Passar ao oposto a traduo do verbo nafadha, seguido da prepo-
sio min que, segundo o dicionrio de Kasimirski, signif ca penetrar, atravessar
de ponta a ponta e sair do outro lado de um corpo (diz-se do tiro que sai pela
culatra, por exemplo).
Evoca, portanto, a penetrao profunda e a sada em uma outra extremi-
dade das regies consideradas.
d) O poder (sultan) que tero os homens de realizar esta empresa parece
ser um poder emanado do Todo Poderoso (Este versculo seguido de um
convite ao reconhecimento das benfeitorias de Deus; o assunto de todo o
captulo.).
No duvidoso que esse versculo indica a possibilidade que tero os
homens, um dia, de efetuar o que ns chamamos, atualmente, talvez muito
169
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
impropriamente, de conquista do espao? E preciso considerar que o texto
alcornico encara no somente a penetrao atravs das regies dos cus, mas
tambm atravs das regies da Terra, isto , a explorao das profundezas.
2. Os dois outros versculos so extrados do Captulo 15 (Versculos 14-
15). Deus fala aos inf is de Meca, como o contexto dessa passagem do captulo
indica:
E se abrssemos uma porta para o cu, pela qual eles ascendesse, Diriam: Nossos olhos
foram ofuscados ou fomos mistif cados!
a expresso de espanto diante de um espetculo inesperado, diferente
daquele que o homem poderia imaginar.
A frase condicional introduzida aqui pela palavra law, que exprime uma
hiptese, que no ser jamais seguida de realizao, para aqueles a quem essa
passagem se refere.
Ns nos encontramos, portanto, a propsito da conquista do espao,
em presena de duas passagens do texto alcornico do qual uma faz aluso ao
que se realizar um dia graas aos poderes que Deus dar inteligncia e ao
engenho humano e a outra evoca um acontecimento do qual no participaro
os inf is de Meca, donde o carter de condio que no ser realizada. Mas o
acontecimento ser vivido por
outros, como o primeiro versculo citado o deixe supor. Ele d a descrio das
reaes humanas, diante do espetculo inesperado que ser oferecido aos via-
jantes do espao, vistas perturbadas, impresso de estar enfeitiado...
exatamente assim que os astronautas viveram essa prodigiosa aventura
em 1961, data do primeiro voo humano em torno da Terra. Sabe-se, com efeito,
que, quando nos encontramos alm da atmosfera terrestre, o cu no aparece
absolutamente com sua imagem de azul, oferecida aos terrestres, que o resul-
tado dos fenmenos da absoro da luz solar pelas camadas da atmosfera. O
observador humano, colocado no espao alm da atmosfera terrestre, v o cu
negro e a Terra lhe aparece envolvida em um halo de cor azulada, devido aos
mesmos fenmenos de absoro da luminosidade pela atmosfera terrestre, ao
passo que a Lua, que no tem atmosfera, aparece com suas cores prprias sobre
o fundo negro do cu. , portanto, um espetculo inteiramente novo que se
apresenta para o homem no espao; espetculo cujas fotograf as se tornaram
clssicas para os homens de nosso tempo.
170
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A, tambm, quando confrontamos o texto alcornico com os dados
modernos, como no f carmos impressionados com as exatides encontradas?
Exatides as quais no podemos supor que tenham sido emanadas do pensa-
mento de um homem que viveu h cerca de catorze sculos.
A TERRA
Como nos assuntos at aqui tratados, os versculos alcornicos que se
relacionam com a terra esto dispersos em todo o Livro. Sua classif cao
difcil; esta apresentada aqui toda Pessoal.
Para clareza da exposio, pode-se destacar, primeiramente, um certo
nmero de versculos que, tratando sempre de vrios assuntos, tm, sobretudo,
uma conotao geral, constituindo-se igualmente como convites endereados
aos homens para ref etir sobre a benef cncia divina com a ajuda de exemplos
apresentados.
Outros grupos de versculos podem ser isolados, referentes a assuntos
mais particulares:
- o ciclo da gua e os mares;
- o relevo terrestre;
- a atmosfera terrestre.
A - VERSICULOS DE CONOTAO GERAL
Ao mesmo tempo em que oferecem argumentos que devem conduzir os
homens a meditar sobre as benfeitorias de Deus para suas criaturas, esses vers-
culos contm aqui e acol af rmaes que so interessantes para se confrontar
com os dados da cincia moderna. Mas, sob esse ponto de vista, eles so, quem
sabe, mais interessantes em vista do fato de que eles no expressam todos os
171
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
tipos de crenas, relativos a certos fenmenos naturais que estavam em repu-
tao entre os homens da poca da Revelao Alcornica, crenas diversas das
quais o conhecimento cientf co vai demonstrar mais tarde o carter errneo.
Esses versculos exprimem, de um lado, ideias simples, facilmente acess-
veis compreenso daqueles a quem o Alcoro se dirigiu de incio por razes
geogrf cas os habitantes de Meca e de Medina, os Bedunos da Pennsula
Arbica - e, de outro lado, ref exes de ordem geral, das quais um pblico mais
culto, em todo os pases e em todos os tempos, pode retirar ensinamentos,
desde que assuma o trabalho de ref etir; e isso a marca da universalidade do
Alcoro.
Nenhuma classif cao desses versculos se apresenta no Alcoro; eles
so apresentados aqui na ordem numrica dos captulos.
- Captulo 2, Versculo 22:
Ele fez-vos da terra um leito, e do cu um teto, e envia do cu a gua, com a qual faz
brotar os frutos para o vosso sustento. No atribuais rivais a Deus, conscientemente.
- Captulo 2, Versculo 164:
Na criao dos cus e da terra; na alterao do dia e da noite; nos navios que singram o
mar para o benefcio do homem; na gua que Deus envia do cu, com a qual vivif ca a terra,
depois de haver sido rida e onde disseminou toda a espcie animal; na mudana dos ven-
tos; nas nuvens submetidas entre o cus e a terra, (nisso tudo) h sinais para os sensatos.
- Captulo 13, Versculo 3:
Ele foi Quem dilatou a terra, na qual disps slidas montanhas e rios, assim como esta-
beleceu dois gneros de todos os frutos. Ele Quem faz o dia suceder noite. Nisso h
sinais para aqueles que ref etem.
- Captulo 15, Versculos 19-21, Deus fala:
E dilatamos a terra, em que f xamos f rmes montanhas, fazendo germinar tudo, comedida-
mente. E nela vos proporcionamos meios de subsistncia, tanto para vs como para aqueles
por cujo sustento sois responsveis. E no existe coisa alguma cujos tesouros no estejam
em Nosso poder, e no vo-la enviamos, seno proporcionalmente.
172
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 20, Versculos 53-54:
Foi Ele Quem vos destinou a terra por leito, traou-vos caminhos por ela, e envia gua do
cu, com a qual faz germinar distintos pares de plantas. Comei e apascentai o vosso gado!
Em verdade, nisto h sinais para os sensatos.
- Captulo 27, Versculo 61:
Ou quem fez a terra f rme para se viver, disps em sua superfcie rios, dotou-a de
montanhas imveis e ps entre as duas massas de gua uma barreira? Poder haver outra
divindade em parceria com Deus? Qual! Porm, a sua maioria insipiente.
Aqui Ele faz aluso estabilidade geral da crosta terrestre. Sabemos que,
nas primeiras idades da terra, sua camada superf cial era instvel, antes de seu
esfriamento. A estabilidade da crosta terrestre no , todavia, rigorosamente
absoluta, porque h zonas onde os tremores de terra se produzem por inter-
mitncia. Quanto barreira entre os dois mares, uma imagem para marcar a
ausncia de mistura das guas dos rios e das guas do mar ao nvel de certos
esturios, como se ver um pouco mais adiante.
- Captulo 67, Versculo 15:
Ele foi Quem vos fez a terra manejvel. Percorrei-a pois, por todos os seus quadrantes e
desfrutai das Suas mercs; a Ele ser o retorno!
- Captulo 79, Versculos 30-33:
E depois disso dilatou a terra, Da qual fez brotar a gua e os pastos; E f xou, f rmemente,
as montanhas, Para o proveito vosso e do vosso gado.
Em muitos desses versculos, a importncia da gua e a consequncia
prtica de sua presena sobre o solo da terra, a fertilidade do solo, sublinha-
da. A gua , certamente, nos pases desrticos, o elemento nmero um que
condiciona a sobrevivncia do homem. Mas a evocao pelo Alcoro ultrapassa
esta particularidade geogrf ca. O carter de planeta rico em gua, nico no
sistema solar, segundo os melhores dados estabelecidos pelos conhecimentos
modernos, posto em relevo. Sem gua, a terra seria um astro morto como a
lua. O Alcoro d gua o primeiro lugar na evocao dos fenmenos naturais
da terra. O ciclo da gua a descrito com acentuada exatido.
173
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
B - O CICLO DA GUA E DOS MARES
Quando, em nossos dias, lemos, um aps outro, os versculos alcornicos
relativos ao papel das guas na vida do homem, tudo nos parece exprimir-ideias
absolutamente evidentes. A. razo simples: em nossa poca, todos ns conhe-
cemos, com aproximada preciso, qual o ciclo da gua na natureza. Mas, se
levamos em considerao o que eram os diversos conceitos antigos sobre esse
assunto, percebemos que os dados alcornicos no comportam elementos de
conceitos msticos vigentes, em cuja elaborao a especulao f losf ca tinha
uma parte maior que os dados da observao. Se, de uma maneira emprica
65
,
conseguira-se adquirir conhecimentos prticos, teis, em escala restrita, para
melhorar a irrigao dos solos, havia, por outro lado, sobre o ciclo da gua em
geral, conceitos que seriam pouco aceitveis em nossos dias.
Dessa maneira, teria sido simples imaginar que as guas subterrneas
pudessem provir da inf ltrao das precipitaes do solo. Mas citam como uma
exceo, no tempo antigo, a concepo de um certo Vitrvio que, em Roma, no
sculo I.A.C., havia sustentado essa ideia. Assim, durante longos sculos, entre
os quais se situa a poca da Revelao Alcornica, os homens tinham concep-
es absolutamente erradas sobre o regime das guas.
Esse seu artigo Hidrogeologia da Encyclopeda Universalis, dois espe-
cialistas desses problemas, G. Gastany e B. Blavoux, fazem da questo o histrico
edif cante que segue:
Com Thales de Milet, era, no sculo VII A.C., a teoria do lanamento da
gua ocenica, sob o efeito dos ventos, no interior dos continentes, sua queda
sobre as terras e sua penetrao no solo. Plato partilhava dessas ideias e pensa-
va que o retorno ao oceano se efetuava por um grande abismo, o Trtaro. Dessa
teoria, haver numerosos adeptos at o sculo XVIII, com Descartes. Aristteles
supunha que o vapor dgua do solo se condensava nas cavidades resfriadas das
montanhas e formava os lagos subterrneos que alimentavam as fontes.
Ele ser seguido por Sneca (sculo I) e ter numerosos participantes
at 1877, entre os quais Volger... A primeira concepo verdadeira sobre o ciclo
dgua reaparecer, em 1580, com Bernard Palissy, que af rma que as guas sub-
terrneas provm das inf ltraes das guas da chuva no solo. Essa teoria ser
conf rmada por E. Mariotte e por P. Perrault no sculo XVII.
65 - Baseado na experincia; sem carter cienco.
174
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Das concepes inexatas que circulavam durante a poca de Muhammad,
no encontramos eco nas passagens do Alcoro que se seguem:
- Captulo 50, Versculos 9-11:
E
66
enviamos do cu a gua bendita, mediante a qual produzimos jardins e cereais para
a colheita. E tambm as frondosas tamareiras, cujos cachos esto carregados de frutos em
simetria, Como sustento para os servos; e fazemos reviver, com ela, (a gua) uma terra
rida. Assim ser a ressurreio!
- Captulo 23, Versculos 18-19:
E fazemos descer, proporcionalmente, gua do cu e a armazenamos na terra; mas, se
quisssemos, poderamos faz-la desaparecer. E, mediante ela, criamos, para vs, jardins
de tamareiras e videiras, dos quais obtendes abundantes frutos, de que vos alimentais.
- Captulo 15, Versculo 22:
E enviamos os ventos fecundantes e, ento, fazemos descer gua do cu, da qual vos damos
de beber e que no podeis armazenar (por muito tempo).
H para o ltimo versculo duas possibilidades de interpretao. Os ven-
tos fecundantes podem ser considerados como fecundadores das plantas por
meio do transporte do plen, mas pode tambm tratar-se de uma expresso
imaginada, evocando por analogia o papel do vento, fazendo de uma nuvem que
no d a chuva uma nuvem liberando os aguaceiros: esse papel frequentemen-
te evocado, como nos versculos seguintes:
- Captulo 35, Versculo 9:
E Deus Quem envia os ventos, que movem as nuvens (que produzem chuva). Ns as
impulsionamos at a uma terra rida e, mediante elas, reavivamo-la, depois de haver sido
inerte; assim a ressurreio!
Notar-se- que, na primeira parte do Versculo, o estilo o da narrao e
que, sem transio, lhe d sequncia uma declarao de Deus. Tais modif caes
sbitas na forma do discurso so frequentes no Alcoro.
- Captulo 30, Versculo 48:
66 - Cada vez que Ns aparece nos versculos do texto alcornico citado aqui, o prono-
me se aplica a Deus.
175
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Deus Quem envia os ventos que agitam as nuvens, e as espalha no cu como Lhe apraz;
logo as fragmenta, e observas a chuva a manar delas, e quando a envia sobre quem Lhe
apraz, dentre os Seus servos, eis que se regozijam.
- Captulo 7, Versculo 57:
Ele Quem envia os ventos alvissareiros, por Sua misericrdia, portadores de densas
nuvens, que impulsiona at uma comarca rida e delas faz descer a gua, mediante a qual
produzimos toda a classe de frutos. Do mesmo modo ressuscitamos os mortos, para que
mediteis.
- Captulo 25, Versculos 48-49:
Ele Quem envia os ventos alvissareiros, merc da Sua misericrdia; e enviamos do cu
gua pura, para com ela reviver uma terra rida, e com ela saciar tudo quanto temos
criado: animais e humanos.
- Captulo 45, Versculo 5:
E na alternao do dia e da noite, no sustento que Deus envia do cu, mediante o que
vivif ca a terra depois de haver sido rida, na variao dos ventos, h sinais para os que
raciocinam.
- Captulo 13, Versculo 17:
Ele faz descer a gua do cu, que corre pelos vales, mesuradamente; sua corrente arrasta
uma espuma f utuante.
- Captulo 67, Versculo 30: Deus ordena ao Profeta:
Dize-lhes (ainda): Que vos parece? Se a vossa gua, ao amanhecer, tivesse sido toda
absorvida (pela terra), quem faria manar gua potvel para vs?
- Captulo 39, Versculo 21:
No reparas, acaso, em que Deus faz descer a gua do cu e a transforma, em fontes, na
terra? Logo produz, com ela, plantas multicores.
- Captulo 36, Versculo 34:
Nela produzimos, pomares de tamareiras e videiras, em que brotam mananciais.
176
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A importncia das fontes e de sua alimentao pela gua da chuva, que
encaminhada para elas, considerada nos trs ltimos versculos. O fato merece
que nos detenhamos aqui para relembrar a predominncia, na Idade Mdia, de
concepes como as de Aristteles, para quem as fontes eram alimentadas por
lagos subterrneos.
Em seu artigo Hidrologia da Encyclopedia Universalis, M.R. Rmeniras,
professor da Escola Nacional do Gnio Rural das guas e Florestas, descreve
as principais etapas da hidrologia e evoca os magnf cos trabalhos antigos de
irrigao, em particular no Oriente Mdio, notando que o empirismo ali tinha
tudo presidido, que as ideias de ento procediam de concepes errneas.
Ele prossegue: preciso esperar a Renascena (entre 1400 e 1600, apro-
ximadamente), para que os conceitos puramente f losf cos cedam lugar s
pesquisas fundadas sobre a observao objetiva dos fenmenos hidrolgicos.
Leonardo da Vinci (1452-1519) se insurgiu contra as af rmaes de Aristteles.
Em seu Discurso Admirvel na Natureza das guas e Fontes tanto Na-
turais como Artif ciais (Paris 1570), Bernard Palissy d uma interpretao correta
do ciclo da gua e, muito especialmente, da alimentao das fontes pelas chuvas.
No muito exatamente esta ltima meno que ns encontramos no
Versculo 21 do Captulo 39, indicando o caminho da gua das chuvas atravs
das nascentes da terra?
Chuva e Granizo so objetos do Versculo 43 do Captulo 24:
Porventura, no reparas em como Deus impulsiona as nuvens levemente? Ento as junta,
e depois as acumula? No vs a chuva manar do seio delas? E que Ele envia massas (de
nuvens) de granizo, com que atinge quem Lhe apraz, livrando dele quem quer? Pouco falta
para que o resplendor das centelhas lhes ofusque as vistas.
A passagem seguinte merece um comentrio (Captulo 56, Versculos 68-70):
Haveis reparado, acaso, na gua que bebeis? Sois vs, ou somente somos Ns Quem a faz
descer das nuvens? Se quisssemos, f-la-amos salobra. Por que, pois, no agradeceis?
Evocar o fato de que Deus teria podido transformar salobre uma gua,
que no o naturalmente, uma maneira de exprimir a Onipotncia Divina.
uma outra maneira de relembrar essa mesma Onipotncia, lanando ao homem
o desaf o de fazer chuva da nuvem. Mas enquanto a primeira no passa de
177
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
simples capricho, a segunda no seria mais uma na poca moderna, em que a
tcnica permitiu desencadear artif cialmente a chuva? A capacidade dos huma-
nos em produzir essas precipitaes estaria em oposio af rmao alcornica?
No o caso, porque parece que preciso levar em considerao os
limites das possibilidades do homem nesse domnio. M.A. Facy, engenheiro geral
da Meteorologia Nacional escreveu, em seu artigo Precipitaes, da Encyclo-
peda Universalis: No faremos cair a chuva de uma nuvem que no apresente
as caractersticas de uma nuvem precipitante ou de uma nuvem que no tenha
ainda alcanado o grau de evoluo conveniente.
O homem no pode, por consequncia, seno acelerar, com o auxlio dos
meios tcnicos apropriados, o processo de precipitao, cujas condies natu-
rais j estejam completas. Se fosse diferente, a seca no existiria na prtica, o que
no evidentemente o caso. Ser o dono da chuva e do bom tempo continua
sempre um sonho.
O homem no pode romper, sua vontade, o ciclo estabelecido que
assegura a circulao da gua na natureza, ciclo que podemos resumir como se
segue, segundo os ensinamentos da hidrologia moderna.
A irradiao calorf ca do Sol provoca a evaporao dos oceanos e de
todas as superfcies terrestres recobertas ou embebidas dgua. O vapor dgua
assim desprendido se eleva na atmosfera e, por condensao, forma as nuvens.
Intervm, ento, a ao dos ventos para deslocar, sobre as distncias variveis,
as nuvens assim formadas. Elas podem, ora desaparecer sem dar a chuva, ora
juntar seu volume a outros para dar maiores condensaes, ora se fragmentar
para dar nascimento chuva num certo estgio de evoluo da nuvem. Com
a chuva atingindo os mares (que formam 70% da superfcie do globo terres-
tre), o ciclo logo encerrado. A chuva, atingindo as terras, pode ser em parte
absorvida pelos vegetais e participao seu crescimento; estes, por sua vez, pela
sua transpirao, devolvem uma parte da gua atmosfera. Outra parte penetra
mais ou menos no solo, de onde ela pode, dirigir-se aos oceanos pelos cursos
dgua ou se inf ltrar no solo para retornar superfcie pelas fontes e outras
nascentes.
Se compararmos esses dados da hidrograf a moderna com os que ressal-
tam dos numerosos versculos alcornicos, citados nesse pargrafo, constar-se-
a existncia de uma notvel concordncia entre os dois.
178
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
OS MARES
Se, no que concerne ao ciclo da gua na natureza em geral, os versculos
alcornicos oferecem matria para comparao com os conhecimentos moder-
nos, o mesmo no se d no que concerne aos mares. Nenhuma proposio al-
cornica referente a eles convida a uma confrontao com os dados cientf cos,
propriamente ditos. De outro lado, no deixa de ser necessrio acentuar que
nenhuma proposio do Alcoro sobre os mares contm referncias a crenas,
mitos ou supersties da poca.
Um certo nmero de versculos, referentes aos oceanos e navegao,
oferecem como assuntos de ref exo indcios da Onipotncia divina, que
emanam de fatos da observao comum. So eles:
- Captulo 14, Versculo 32:
(Deus) Submeteu, para vs, os navios que, com a Sua anuncia.
- Captulo 16, Versculo 14:
E foi Ele Quem submeteu, para vs, o mar para que dele comsseis carne fresca e reti-
rsseis certos ornamentos com que vos enfeitais. Vedes nele os navios sulcando as guas,
procura de algo de Sua graa; qui sejais agradecidos.
- Captulo 55, Versculo 24:
E suas so as naves, que se elevam no mar, como montanhas.
- Captulo 36, Versculos 41-44:
Tambm um sinal, para eles, o fato de termos levado os seus concidados na arca
carregada. E lhes criamos similares a ela, para navegarem. E, se quisssemos, t-los-amos
afogada, e no teriam quem ouvisse os seus gritos, nem seriam salvos, A no ser com a
nossa misericrdia, como proviso, por algum tempo.
Trata-se evidentemente aqui no navio que leva os homens sobre o mar,
como a Arca levou outrora No e os ocupantes do navio, e lhes permitiu atin-
gir a terra f rme.
Um outro dado de observao, concernente ao mar, pode ser tirado de
todos os versculos do Alcoro que lhe so consagrados, porque ele apresenta
179
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
um aspecto particular. Trs versculos fazem, assim, aluso a certos caracteres
dos grandes rios, quando eles desembocam nos oceanos.
E muito conhecido o fenmeno, comumente verif cado, da no mistura
imediata das guas salgadas nos mares e das guas doces dos grandes rios.
O Alcoro o assinala, pensa-se, a propsito da embocadura do Eufrates
e do Tigre que, por sua reunio, formam, por assim dizer, um mar amplo de
mais de 150 quilmetros, o Chat Al Arab. No fundo do golfo, a inf uencia das
mars produz o fenmeno do ref uxo da gua doce no interior das terras, asse-
gurando uma irrigao satisfatria. Para a boa compreenso do texto, preciso
saber que mar, em portugus, apanha o sentido geral da palavra bahr que quer
dizer grande massa dgua e se aplica tanto ao oceano como aos grandes rios:
Nilo, Tigre, Eufrates, por exemplo.
Os trs versculos que evocam o fenmeno so os seguintes:
- Captulo 25, Versculo 53:
Ele foi Quem estabeleceu as duas massas de gua; uma doce e saborosa, e a outra sal-
gada e amarga, e estabeleceu entre amas uma linha divisria e uma barreira intransponvel.
- Captulo 35, Versculo 12:
Jamais se equipararo as duas guas, uma doce, agradvel de ser bebida, e a outra, que
salobra e amarga; porm, tanto de uma como da outra comeis carne fresca e extras
ornamentos com que vos embelezais - e vedes nela os navios sulcando as ondas, procura
da Sua graa, para que, qui, Lhe agradeais.
- Captulo 55, Versculos 19-20 e 22:
Liberam os dois mares, para que se encontrassem. Entre ambos, h uma barreira, para que
no seja ultrapassada. De ambos saem as prolas e os corais.
Alm da evocao do fato principal, esses versculos mencionam os
recursos tirados das guas doces e das guas salgadas: o peixe, os ornamentos
indumentrios: coral, prolas. Quanto ao fenmeno da no mistura das guas
f uviais no mar, na embocadura, preciso saber que ele no especf co ao Tigre
e ao Eufrates, que no so mencionados no texto, mas aos quais, pensamos, este
se refere. Os cursos dgua com forte caudal, como o Mississipi ou Yang-Ts,
apresentam a mesma particularidade: a mistura das guas no se opera para eles
s vezes, seno longe e em alto mar.
180
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
C - O RELEVO TERRESTRE
A constituio da terra complexa. Podemos hoje grosseiramente ima-
gin-las como formada de uma camada profunda onde reinam temperaturas
muito elevadas com, em particular, uma parte central - onde as rochas esto em
fuso - e uma camada superf cial, a crosta terrestre, solida e fria. Esta camada
muito f na: de alguns quilmetros a algumas dezenas de quilmetros a mais, ao
passo que o raio da Terra um pouco superior a 6.000 quilmetros: quer dizer
que a crosta no apresenta, em mdia, um centsimo do raio da esfera. E sobre
esta pelcula, se se pode dizer, que ocorreram os fenmenos geolgicos. base
disto, as dobras que esto na origem das cadeias de montanhas: sua formao
chamada orogenia em geologia porque, ao aparecimento de um relevo que
vai constituir uma montanha, corresponde, em profundidade, um rompimento
proporcional da crosta terrestre, que lhe assegura um embasamento na camada
subjacente.
A histria da repartio dos mares e das terras pela superfcie do glo-
bo de aquisio recente e ainda muito incompleta, mesmo para os perodos
menos atingidos que so os melhores conhecidos. provvel que o apareci-
mento dos oceanos, constituindo a hidrosfera, dataria de meio bilho de anos,
aproximadamente. Os continentes teriam formado uma massa nica, no f m da
era primria, e teriam, em seguida, se dispersado. Alm disso, os continentes ou
pores de continentes surgiram pelo jogo da formao de montanhas na zona
ocenica (caso do continente norte-atlntico e de uma parte da Europa, por
exemplo).
O que preside toda a histria da formao das terras emersas , segundo
as ideias modernas, o aparecimento das cadeias de montanhas. Classif ca-se toda
a evoluo das terras, da primria quaternria, em funo das fases orog-
nicas, elas mesmas agrupadas em ciclos do mesmo nome, toda formao
do relevo montanhoso, tendo tido suas repercusses sobre o equilbrio entre
mares e continentes. Ela fez desaparecer certas partes das terras emersas para
fazer aparecer outras e modif cou h centenas de milhes de anos a repartio
das reas continentais e ocenicas; as primeiras no ocupam atualmente seno
trs dcimos da superfcie do planeta.
Assim, podem ser resumidas, muito imperfeitamente e muito incom-
pletamente, as transformaes que se produziram nas precedentes centenas de
milhes de anos.
181
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
No que concerne ao relevo terrestre, o Alcoro no evoca, por assim
dizer, seno a formao das montanhas. Com efeito, h pouca coisa a dizer sob
o ponto de vista que nos preocupa aqui, dos versculos que exprimem somente
a solicitude de Deus para com os homens em relao formao da terra, como
em:
- Captulo 71, Versculos 19-20:
Deus vos fez a terra como um tapete, Para que a percorrsseis por amplos caminhos.
- Captulo 51, Versculo 48:
E dilatamos a terra; e que excelente Dilatador tendes em Ns!
O tapete que foi estendido, desdobrado, a crosta ou casca terrestre,
concha solidif cada sobre a qual ns podemos viver; as camadas subjacentes do
globo, sendo muito quentes, f uidas, eram imprprias a todo tipo de vida.
Muito importantes so as proposies alcornicas relativas s montanhas
e as aluses sua estabilidade, em consequncia dos fenmenos de dobramento.
- Captulo 88, Versculos 19-20:
O contexto convida os mpios a voltar seus olhos em direo a certos
fenmenos naturais, entre os quais:
E nas montanhas, como foram f xadas? E na terra, como foi dilatada?
Aqui se ressalta do texto, claramente, a noo de raiz no interior do
solo.
Os versculos seguintes o precisam, alis:
- Captulo 78, Versculos 67:
Acaso, no f zemos da terra um leito, E das montanhas, estacas?
As estacas s quais feita a aluso so as que servem para f xar uma
tenda no solo (awtaad, plural watad).
Os gelogos modernos descrevem os dobramentos do solo, conside-
rando a base rochosa dos relevos, e que tm dimenses variveis, indo at um
quilmetro ou menos a quinze quilmetros. Desse fenmeno de dobramento
182
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
resulta a estabilidade da crosta terrestre.
Assim, no nos admiramos aa ler em certas passagens do Alcoro algu-
mas ref exes sobre as montanhas, tais como:
- Captulo 79, Versculo 32:
E f xou, f rmemente, as montanhas.
- Captulo 31, Versculo 10:
Fixou na terra f rmes montanhas, para que no oscile convosco.
A mesma frase repetida no Captulo 16, Versculo 15. A mesma ideia
expressa de maneira pouco diferente no Captulo 21, Versculo 31:
E produzimos f rmes montanhas na terra, para que esta no oscilasse com eles.
Esses versculos exprimem que a maneira pela qual so dispostas as
montanhas favorvel estabilidade, o que est perfeitamente de acordo com
os dados da geologia.
D - A ATMOSFERA TERRESTRE
Em inmeros aspectos, concernentes mais precisamente ao cu e que
foram examinado, nos captulos procedentes, o Alcoro contm algumas pas-
sagens relativas aos fenmenos que se produzem na atmosfera. Quanto sua
confrontao com os dados da cincia moderna, notar-se- somente que, aqui
como outra parte, h ausncia de toda contradio com os conhecimentos
cientf cos que possumos atualmente dos fenmenos evocados.
A ALTITUDE
, a bem da verdade, uma ref exo bem banal sobre a dif culdade experi-
mentada em altitude, cada vez mais premente medida que nos elevamos e que
expressa no Versculo 125, do Captulo 6:
183
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A quem Deus quer iluminar, dilata-lhe o peito para o Islam; a quem quer desviar (por tal
merecer), oprime-lhe o peito, como aquele que se eleva na atmosfera. Assim, Deus cobre
de abominao aqueles que se negam a crer.
Alguns pretenderam que a noo da dif culdade em altitude era des-
conhecida dos rabes no tempo de Muhammad. Parece, no entanto, que no
bem assim: a existncia, na Pennsula Arbica, de altos cumes com mais de
3500m, torna pouco plausvel a ignorncia da dif culdade respiratria quando
se sobe (A cidade de Sanaa, capital do Imen, que era habitada no tempo de
Muhammad, est situada a uma altitude aproximada de 2.400m.) H tambm
comentadores que quiseram ver a um anncio da conquista do espao, o que,
parece, deve ser categoricamente rejeitado, para essa passagem pelo menos.
A ELETRICIDADE DA ATMOSFERA
A eletricidade atmosfrica - e suas consequncias: o raio, o granizo d
lugar s menes seguintes:
- Captulo 13, Versculos 12-13:
Ele Quem mostra o relmpago como temor e esperana, e faz surgir as nuvens saturadas
de chuva. O trovo celebra os Seus louvores e o mesmo fazem os anjos, por temor a Ele, o
Qual lana as centelhas, fulminando, assim, quem Lhe apraz enquanto disputam sobe Deus,
apesar de Ele ser poderosamente Inexorvel.
- Captulo 24, Versculo 43 (j citado neste captulo):
Porventura, no reparas em como Deus impulsiona as nuvens levemente? Ento as junta,
e depois as acumula? No vs a chuva manar do seio delas? E que Ele envia massas (de
nuvens) de granizo, com que atinge quem Lhe apraz, livrando dele quem quer? Pouco falta
para que o resplendor das centelhas lhes ofusque as vistas.
H nesses dois versculos a expresso de uma correlao manifesta entre
a formao de nuvens pesadas ou de granizo e a produo do raio: a primeira,
objeto de esperana pelo benefcio que ela representa; a segunda, objeto de
temor, sua queda est submissa determinao do Todo-Poderoso. A ligao
entre os dois fenmenos est conforme o conhecimento que se tem, em nossos
dias, da eletricidade atmosfrica.
184
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A SOMBRA
O fenmeno, de explicao banal em nossa poca, da sombra e seu des-
locamento, objeto de ref exes tais como as seguintes:
- Captulo 16, Versculo 48:
No reparam, acaso, em tudo quanto Deus tem criado, entre as coisas inanimadas, cujas
sombras se projetam ora para a direita ora para esquerda, prostrando-se ante Ele humil-
demente?
- Captulo 25, Versculos 45 e 46:
No tens reparado em como o teu Senhor projeta a sombra? Se Ele quisesse, f-la-ia
estvel! Entretanto, f zemos do sol o seu regente. Logo a recolhemos at Ns, paulatina-
mente.
Alm do que se refere humilhao perante Deus de toda coisa criada,
inclusive sua sombra, e da retomada por Deus, como lhe apraz, de toda a ma-
nifestao de Seu poder, o texto alcornico faz aluso s relaes da sombra
com o Sol. E preciso lembrar, a esse propsito, que se acreditava, na poca do
Muhammad, que o deslocamento da sombra era condicionado pelo desloca-
mento do Sol de leste para oeste. A aplicao era o quadrante solar para medir
o tempo entre o nascer e o pr do Sol. Aqui, Alcoro fala do fenmeno
sem mencionar sua aplicao corrente na poca de sua Revelao: essa explica-
o foi muito acatada pelos homens durante muitos sculos, depois da poca
de Muhammad. Mas, af nal, ela teria sido reconhecida como inexata. Assim, o
Alcoro fala somente do papel indicador da sombra que o Sol lana. Constata-
-se aqui a ausncia de toda discordncia entre a maneira pela qual o Alcoro
considera a sombra e o que sabe do fenmeno na poca moderna.
REINOS VEGETAL E ANIMAL
Foram reunidos neste captulo numerosos versculos evocando a origem
da vida, alguns aspectos do reino vegetal e assuntos gerais ou particulares rela-
tivos ao reino animal. O agrupamento, numa classif cao racional de versculos,
185
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
dispersos em todo o Livro, parece susceptvel de dar uma ideia de conjunto dos
dados alcornicos sobre todas essas questes.
Para os assuntos deste captulo, como para os do captulo seguinte, o
exame do texto alcornico , s vezes, particularmente delicado, em razo de
certas dif culdades inerentes ao vocabulrio. Essas dif culdades no so supe-
radas, seno depois de se considerar os dados cientf cos relativos ao assunto
tratado. mui especialmente no que concerne aos seres vivos - vegetais, animais
e homem -, que a confrontao com os ensinamentos da cincia se demonstra
indispensvel para encontrar um sentido para certas asseres alcornicas nes-
ses domnios.
Compreende-se desde logo que numerosas tradues dessas passagens
do Alcoro, feitas por literatos, sejam julgadas inexatas por um cientista. D-se
o mesmo com os comentrios, quando seus autores no possuem os conheci-
mentos cientf cos indispensveis para a compreenso do texto.
A - A ORIGEM DA VIDA
A questo, em todos os tempos, preocupou o homem em relao a si
mesmo e em relao aos seres vivos que o rodeiam. Examinar-se- aqui a ques-
to, sob o ponto de vista geral. O caso do homem, cuja apario na terra e sua
reproduo so objetos de consideraes muito importantes, ser tratado no
captulo seguinte.
Examinando a origem da vida num plano muito geral, o Alcoro a evoca,
com uma conciso externa, em um versculo que concerne igualmente ao pro-
cesso, j citado e comentado, da formao do universo.
- Captulo 21, Versculo 30:
No veem, acaso, os incrdulos, que os cus e a terra eram uma s massa, que desagre-
gamos, e que criamos todos os seres vivos da gua? No creem ainda?
A noo de procedncia no apresenta dvidas. A frase pode tambm
signif car que toda coisa viva foi feita com a gua, elemento essencial, ou que
toda coisa viva tem por origem a gua. Os dois sentidos possveis esto rigo-
rosamente conforme os dados cientf cos: considera-se precisamente que a vida
186
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
tem uma origem aqutica e que a gua o primeiro constituinte de toda clula
viva. Sem gua, nenhuma vida possvel. Discute-se sobre a possibilidade de
vida em um planeta e logo se coloca a questo: teria ele, para tanto, gua em
quantidade suf ciente?
Os dados modernos permitem pensar que os seres vivos mais antigos
deveriam pertencer ao reino vegetal: encontraram algas da poca pr-cambriana,
quer dizer, das terras mais antigas que se conhecem. Os elementos do reino
animal devem ter aparecido mais tarde: eles vieram tambm dos oceanos.
O que traduzido aqui por gua a palavra maa, que designa tanto a
gua do cu, como a gua dos oceanos, ou um lquido qualquer. No primeiro
sentido, a gua um elemento necessrio a toda vida vegetal:
- Captulo 20, Versculo 53:
Foi Ele Quem vos destinou a terra por leito, traou-vos caminhos por ela, e envia gua
do cu, com a qual faz germinar distintos pares de plantas.
Primeira citao de pares entre vegetais, noo qual voltaremos.
Num segundo sentido, no de lquido sem nenhuma preciso, o termo
empregado sob sua forma indeterminada, para designar o que est na base da
formao de todo animal.
- Captulo 24, Versculo 45:
E Deus criou da gua todos os animais.
Veremos mais adiante que a palavra se aplica tambm ao lquido seminal
(Segregado pelas glndulas destinadas reproduo, ela contm os espermato-
zoides.). Assim, tratando da origem da vida em geral, do elemento que faz nas-
cer as plantas do solo ou do germe do animal, todas as proposies, do Alcoro
sobre a origem da vida esto rigorosamente conforme os dados cientf cos
modernos. Nenhum dos mitos que pululavam naquela poca sobre a origem da
vida tem lugar no texto do Alcoro.
B - O REINO VEGETAL
No podem ser citadas aqui, na totalidade, as numerosas passagens do
Alcoro onde a benfeitoria divina evocada a propsito do carter benf co da
187
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
chuva, que faz crescer a vegetao. Escolhamos trs versculos sobre esse tema:
- Captulo 16, Versculos 10-11:
Ele Quem envia a gua do cu, da qual bebeis, e mediante a qual brotam arbustos
com que alimentais o gado. E com ela faz germinar a plantao, a oliveira, a tamareira, a
videira, bem como toda a sorte de frutos. Nisto h um sinal para os que ref etem.
- Captulo 6, Versculo 99:
Ele Quem envia a gua do cu. Com ela, f zemos germinar todas as classes de plantas,
das quais produzimos verdes caules e, destes, gros espigados, bem como as tamareiras,
de cujos talos pendem cachos ao alcance da mo; as videiras, as oliveiras e as romzeiras,
semelhantes (em espcie) e diferentes (em variedade). Reparai em seu fruto, quando fruti-
f cam, e em sua madureza. Nisto h sinais para os f is.
- Captulo 50, Versculos 9-11:
E enviamos do cu a gua bendita, mediante a qual produzimos jardins e cereais para a
colheita. E tambm as frondosas tamareiras, cujos cachos esto carregados de frutos em
simetria, Como sustento para os servos; e fazemos reviver, com ela, (a gua) uma terra
rida. Assim ser a ressurreio!
A essas consideraes de ordem geral, o Alcoro acrescenta outras,
versando sobre aspectos mais restritos.
O Equilbrio Reinante no Reino Vegetal
- Captulo 15, Versculo 19:
E dilatamos a terra, em que f xamos f rmes montanhas, fazendo germinar tudo, comedi-
damente.
A Diferenciao dos Alimentos
- Captulo 13, Versculo 4:
E na terra h regies fronteirias (de diversas caractersticas); h plantaes, videiras,
sementeiras e tamareiras, semelhantes (em espcie) e diferentes (em variedade); so rega-
das pela mesma gua e distinguimos umas das outras no comer. Nisto h sinais para os
sensatos.
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
interessante notar a existncia desses versculos para pr em destaque
a sobriedade dos termos empregados e a ausncia de toda meno, que pudes-
se traduzir mais as crenas da poca que as verdades fundamentais. Mas, so,
sobretudo, as proposies alcornicas, relativas reproduo no reino vegetal,
que prendem a ateno.
Reproduo dos Vegetais
preciso lembrar que a reproduo no reino vegetal se efetua de duas
maneiras: sexual e assexualmente. Para bem dizer, s a primeira merece o nome
de reproduo, porque ela def ne o processo biolgico, tendo, por f m, o apa-
recimento de um novo indivduo, idntico aquele que lhe deu o nascimento.
A reproduo assexual uma simples multiplicao, porque ela resulta
da fragmentao de um organismo que, separado da prpria planta, vai adqui-
rir um desenvolvimento, tornando-o semelhante quele do qual se originou.
Guilliermond e Mangenot o consideram como um caso particular do cresci-
mento. Um outro exemplo muito simples fornecido por tanches: um ramo
cortado da planta, colocado no solo convenientemente irrigado se regenera
pelo desenvolvimento das razes novas. Algumas plantas tm rgos especiali-
zados para isso, outras soltam esporos que se comportam, se que se possa
dizer, como gros (que, convm lembrar, so o resultado de um processo de
reproduo sexual).
A reproduo sexual dos vegetais se opera por acasalamento de elemen-
tos fmeas, pertencentes a formaes geradoras reunidas na mesma planta ou
separadas. Somente ela considerada no Alcoro.
- Captulo 20, Versculo 53:
Foi Ele Quem vos destinou a terra por leito, traou-vos caminhos por ela, e envia gua
do cu, com a qual faz germinar distintos pares de plantas.
Elemento de acasalamento a traduo da palavra zawj (plural azwaaj),
cujo sentido primitivo aquele que, com mais um outro, forma o par; a pala-
vra se aplica tanto aos esposos como aos sapatos.
- Captulo 22, Versculo 5:
E observai que a terra rida; no obstante, quando (Ns) fazemos descer a gua sobre
189
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
ela, move-se e se impregna de fertilidade, fazendo brotar todas as classes de pares de
viosos (frutos).
- Captulo 31, Versculo 10:
E enviamos a gua do cu, com que fazemos brotar toda a nobre espcie de casais.
- Captulo 13, Versculo 3:
Assim como estabeleceu dois gneros de todos os frutos.
Sabe-se que o fruto o termo do processo de reproduo dos vegetais
superiores que tm a organizao mais elaborada, mais complexa. O estgio que
precede o fruto o da f or, com seus rgos masculinos (estames) e feminino
(vulos). Estes ltimos, aps a colocao do plen, so frutos, que, depois da
maturao, liberam as sementes. Todo fruto inclui, portanto, a existncia de
rgos, masculinos e femininos. o que esse versculo alcornico quer dizer.
preciso notar, entretanto, que, em algumas espcies, os frutos pode
provir no fecundadas (frutos partenocrpicos) como a banana, certos tipos
de abacaxis, de f go, de laranja e de vinhas. Elas, no entanto, provm de vegetais
sexuados.
A concluso da- reproduo se faz pelo processo de germinao do
gro, depois da abertura de seu envelope exterior (que pode ser condensado
em um caroo). Esta abertura permite a sada de razes, que vo sugar, no solo,
o que necessrio planta de vida incipiente - o gro -, para que ela se desen-
volva e d um novo indivduo.
Um versculo alcornico faz aluso a esta germinao:
- Captulo 6, Versculo 95:
Deus o Germinador das plantas granferas e das nucleadas! Ele faz surgir o vivo do
morto e extrai o morto do vivo. Isto Deus! Como, pois, vos desviais?
O Alcoro que, com frequncia repetiu a existncia desses elementos
aos pares no reino vegetal, inscreveu essa noo de casal no quadro mais geral,
aos limites no f xados:
- Captulo 36, Versculo 36:
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Glorif cado seja Quem criou pares de todas as espcies, tanto naquilo que a
terra produz como no que eles mesmos geram, e ainda mais o que ignoram.
Podemos levantar mltiplas hipteses sobre a signif cao dessas coisas
que os homens no conheciam na poca de Muhammad e das quais descobri-
mos, em nossos dias, estruturas e funcionamento acoplados na ordem do inf -
nitamente pequeno, como na do inf nitamente grande, tanto no mundo vivente,
como no mundo no vivente. O essencial examinar as noes claramente
expressas e constatar, mais uma vez, que a no encontramos discordncias com
a cincia da atualidade.
C - O REINO ANIMAL
Muitas questes relativas ao reino animal so objeto, no Alcoro de
consideraes que exigem que se proceda a uma confrontao com os conhe-
cimentos cientf cos modernos sobre esses pontos particulares. Mas, aqui ainda,
dar-se-ia uma viso incompleta do que o Alcoro contm a esse respeito, se
no relatamos uma passagem, como a que vem em seguida, em que a criao de
certos elementos do reino animal lembrada, com o f m de levar os homens
a ref etir sobre as benfeitorias divinas a seu respeito. Esta passagem citada
essencialmente para dar um exemplo da maneira pela qual o Alcoro evoca essa
harmoniosa adaptao da criao s necessidades dos homens, em particular no
caso dos rurais, porque ela no oferece matria a um exame de outra ordem.
Captulo 16, Versculos 5-8:
E criou o gado, do qual obtendes vestimentas, alimento e outros benefcios. E tendes nele
encanto, quer quando o conduzis ao apriscos, quer quando, pela manh, os levais para o
pasto. Ainda leva as vossas cargas at as cidades, s quais jamais chegareis, seno custa
de grande esforo. Sabei que o vosso Senhor Compassivo, Misericordiosssimo. E (criou)
o cavalo, o mulo e o asno para serem cavalgados e para o vosso deleite, e cria coisas mais,
que ignorais.
Ao lado dessas consideraes de ordem geral, o Alcoro expe alguns
dados sobre assuntos bem diversos:
- reproduo no reino animal;
191
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- meno da existncia de comunidades animais;
- ref exes sobre as abelhas, a aranha, os pssaros;
- enunciado sobre a provenincia do leite animal.
1. Reproduo no Reino Animal
Ela muito sumariamente evocada nos Versculos 45-46 do Captulo 53:
E que Ele criou (tudo) em pares: o masculino e o feminino, De uma gosta de esperma,
quando alojada (em seu lugar).
Elemento de par a mesma expresso que encontramos nos versculos
que tinham tratado da reproduo vegetal, os sexos so assim designados.
O pormenor notavelmente acentuado est na preciso dada sobre a pe-
quena quantidade necessria para a reproduo. A mesma palavra que designa
o esperma, sendo empregada para o homem, est no captulo seguinte em que
um comentrio ser dado sobre o interesse dessa observao.
2. A Existncia de Comunidades Animais
- Captulo 6, Versculo 38:
No existem seres alguns que andem sobre a terra, nem aves que voem, que no cons-
tituam naes semelhantes a vs. Nada omitimos no Livro; ento, sero congregados ante
seu Senhor.
Vrios pontos deste versculo devem ser comentados. Primeiro, o desti-
no dos animais depois de sua morte, parece bem ser evocado: O Islam no tem
sobre esse ponto, aparentemente nenhuma doutrina. Em seguida, a predestina-
o geral (Vimos, na introduo da terceira parte deste livro, o que, para o caso
do homem, seria necessrio para pensar sobre a predestinao.), que parece ser
tratada a, poderia se conceber como predestinao absoluta ou como predesti-
nao relativa limitada a estruturas e a uma organizao funcional, condicionan-
do um modo de comportamento: o animal reage a impulsos exteriores diversos
em funo de um condicionamento particular.
192
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Segundo Blachre, um comentador antigo como Razi pensava que esse
versculo no considerava seno os atos instintivo pelos quais os animais ren-
dem homenagem a Deus.
O Sheikh Boubakeur Hamza, nos comentrios de sua traduo do Alco-
ro, fala do instinto que impele, segundo a sabedoria divina, todos os seres a se
unir para sua reproduo e a se organizar em comunidades que exigem, para
serem viveis, que o trabalho de cada membro sirva a todo grupo.
Esses comportamentos animais foram minuciosamente estudados nestes
ltimos decnios e chegou-se a pr em evidncia verdadeiras comunidades ani-
mais. Certamente, o exame do resultado do trabalho de uma coletividade pode,
j faz muito tempo, fazer admitir a necessidade de uma organizao comunitria.
Mas no foi seno em um perodo recente, que foram descobertos os
mecanismos que presidem a tais organizaes entre certas espcies. O caso
melhor estudado, e o mais conhecido, sem dvida o das abelhas, a cujo com-
portamento o nome de Von Frisch est ligado. Von Frisch, Larenz e Tinbergen
receberam, a esse ttulo, o prmio Nobel em 1973.
3. Refexes Concernentes s Abelhas, s Aranhas e aos Pssaros
Quando especialistas do sistema nervoso querem dar frisantes exemplos
da prodigiosa organizao que rege o comportamento animal, os animais, talvez
mais comumente citados so as abelhas, as aranhas e os pssaros (sobretudo os
migradores). Em todo caso, podemos af rmar que esses trs grupos constituem
belssimos modelos de uma alta organizao.
Que texto do Alcoro faa meno a essa trade exemplar, no mundo
animal, responde perfeitamente ao carter excepcionalmente interessante do
ponto de vista cientf co de cada um dos animais citados aqui.
A ABELHA
193
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
ela que, no Alcoro, objeto do mais longo comentrio:
- Captulo 16, Versculos 68-69:
E teu Senhor inspirou as abelhas, (dizendo): Constru as vossas colmeias nas montanhas,
nas rvores e nas habitaes (dos homens). Alimentai-vos de toda a classe de frutos e
segui, humildemente, pelas sendas traadas por vosso Senhor! Sai do seu abdmen um
lquido de variegadas cores que constitui cura para os humanos. Nisto h sinal para os
que ref etem.
67
df cit saber o que signif ca exatamente a ordem de seguir humilde-
mente os caminhos do Senhor, a no ser de um ponto de vista geral. Tudo o
que podemos dizer, em funo do conhecimento que se tem do estudo de
seu comportamento, que aqui - como em cada um dos trs casos de animais
mencionados a ttulo exemplar no Alcoro -, uma extraordinria organizao
nervosa o suporte do comportamento. Sabe-se que, por sua dana, as abelhas
tm um meio de comunicao entre si; elas so capazes de dar a conhecer,
assim, aos congneres, em que direo e a que distncia se encontram as f ores
a despojar. A famosa experincia de Von Frisch demonstrou a signif cao dos
movimentos do inseto, destinados transmisso da informao entre abelhas
obreiras.
A ARANHA
Faz-se meno aranha no Alcoro para acentuar a fragilidade de sua
morada, a mais tnue de todas. um refgio to precrio, diz o texto alcorni-
co, como aquele a que se do os homens ao escolher senhores alm de Deus.
- Captulo 29, Versculo 41:
O exemplo daqueles que adotam protetores, em vez de Deus, igual ao da aranha, que
constri a sua prpria casa. Por certo que a mais fraca das casas a teia de aranha. Se
o soubessem!
67 - O lmo verso o nico do Alcoro, seja dito, de passagem, que menciona uma pos-
sibilidade de um remdio para os homens. O mel pode, com efeito, ter sua ulidade em
certas infeces. Em nenhuma parte, alis, o Alcoro faz aluso a qualquer arte de curar
que seja, contrariamente a tudo o que dissemos.
194
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A teia de aranha, com efeito, constituda de f os de seda segregados
pelas glndulas que o animal possui e cujo calibre nf mo. Sua tenuidade
inimitvel pelo homem. Os naturalistas se interrogam sobre o extraordinrio
piano de trabalho registrado pelas clulas nervosas do animal e que lhe permi-
tem elaborar uma teia cuja geometria perfeita; mas, disso, o Alcoro no fala.
OS PSSAROS
Os pssaros so objetos de frequentes menes no Alcoro, onde eles
intervm em episdios da vida de Abrao, de David, de Salomo e de Jesus. Essas
menes no tm relao com o assunto tratado aqui.
Constatamos mais acima o versculo que concernia existncia de co-
munidades de animais terrestres e de pssaros:
- Captulo 6, Versculo 38:
No existem seres alguns que andem sobre a terra, nem aves que voem, que no consti-
tuam naes semelhantes a vs.
Dois outros versculos pem em relevo a estrita submisso dos pssaros
aos poderes de Deus:
Captulo 16, Versculo 79:
No reparam, acaso, nos pssaros dceis, que podem voar atravs do espao? Ningum
seno Deus capaz de sustent-los ali! Nisto h sinal para os f is.
Captulo 67, Versculo 19:
No reparam, acaso, nos pssaros que pairam sobre eles, protraindo e recolhendo as suas
asas? Ningum os mantm no espao, seno o Clemente, porque Onividente.
A traduo de uma palavra de cada um desses versculos delicada. A
que foi dada aqui exprime a ideia que Deus mantm em seu Poder os pssaros.
O verbo rabe de que se trata , amsaka, cujo sentido primitivo pr a mo
sobre, apanhar, ter, reter algum.
195
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Podemos perfeitamente cotejar esses versculos, que pem em desta-
que a dependncia particularmente estreita do comportamento do pssaro em
relao ordem divina com os dados modernos, que mostram o ponto de
perfeio atingido por algumas espcies de pssaros, quanto programao de
seus deslocamentos. exatamente a existncia, de um programa de migrao,
inscrito no cdigo gentico do animal, que pode informar os trajetos compli-
cados e muito longos que os pssaros muito jovens, sem experincia anterior,
sem nenhum guia, sejam capazes de cobrir para voltar, em data certa, ao ponto
de partida. No seu livro, O Poder e a Fragilidade (Flammarion, 1972, Paris.), o
professor Hamburger cita, a ttulo de exemplo, o caso clebre do mutton-bird,
do Oceano Pacf co, cuja revoada de 25.000 quilmetros toda feita na forma
do nmero 8 (Ele efetua esse percurso em seis meses, para voltar ao seu ponto
de partida, com um atraso mximo de uma semana, sem ajuda de um guia.).
Admite-se que as diretivas muito complexas para uma tal viagem estejam ins-
critas, necessariamente, nas clulas nervosas do pssaro. Elas foram certamente
programadas. Quem programador?
4. Provenincia dos Constituintes do Leite Animal
A provenincia do leite animal def nida pelo Alcoro (Captulo 16,
Versculo 66) em rigorosa conformidade com os dados do conhecimento mo-
derno. A maneira de traduzir e interpretar esse versculo toda pessoal, pois as
tradues, mesmo modernas, lhe do habitualmente uma signif cao que no
muito aceitvel, na minha opinio. Eis dois exemplos:
Traduo de R. Blachre:
Na verdade, tendes no gado um ensinamento. Ns vos damos a beber um leite puro, que
vem de suas entranhas, delicioso para os que bebem, dentre os alimentos digeridos e do
sangue. (G. P. Maisonneuve et Larose, 1966, Paris.)
Traduo do Professor Hamidullah:
Certamente que sim, nos vossos animais h sobre o que ref etir. Daquilo que est em seus
ventres, entre o excremento e o sangue. Ns vos damos a beber um leite puro, de leve
digesto para quem o bebe. (Clube Francs do Livro, 1971.)
Todo f siologista a quem se apresentava esses textos responde que eles
eram obscuros, porque a no aparece muita concordncia com as noes mo-
196
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
dernas, mesmo as mais elementares. Essas linhas so, no entanto, obra de emi-
nentssimos arabistas. Mas, sabe-se muito bem que um tradutor, por experiente
que seja, susceptvel de cometer um erro na traduo de enunciados cientf -
cos, se ele no especializado na disciplina da qual se trata.
A traduo-que me parece vivel a seguinte:
Em verdade, h para vs, em vossos rebanhos, um ensinamento: Ns vos damos
de beber do que se encontra no interior de seus corpos (e que) provm da conjuno entre
o contedo do intestino e o sangue, um leite puro, fcil de ser tomado por aqueles que o
bebem.
Esta interpretao est muito prxima daquela que d, na sua edio de
1973, o Muntakhab, editado pelo Conselho Supremo dos Negcios Islmicos do
Cairo, e que se apoia sobre os dados da f siologia moderna.
Do ponto de vista do vocabulrio, a traduo proposta justif cada
assim:
Traduzi no interior de seus corpos e no, como R. Blachre ou o pro-
fessor Hamidullah, em seus ventres, porque a palavra batn quer dizer tanto
meio, interior de uma coisa, como ventre. Essa palavra no tem aqui um
sentido anatmico preciso. No interior do corpo me parece enquadrada per-
feitamente com o contexto.
A noo de provenincia dos constituintes do leite expressa pela pa-
lavra min e a de conjuno por bayni; esta ltima signif ca somente no meio
de ou entre, como nas duas outras tradues citadas, mas serve tambm para
exprimir que se colocam em presena duas coisas ou duas pessoas.
Do ponto de vista cientf co, preciso fazer apelo para perceber o senti-
do desse versculo.
As substncias essenciais, que asseguram a nutrio do organismo em
geral, provm de transformaes qumicas que se operam ao longo do tubo
digestivo. Essas substncias provm de elementos presentes no contedo do
intestino. Quando no intestino, elas chegam a um estgio apropriado de trans-
formao qumica e passam atravs de sua parede para a circulao geral. Essa
passagem se faz de duas maneiras: quer diretamente pelo que chamamos de
vasos linfticos, quer indiretamente pela via circulatria que as conduz antes ao
197
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
fgado onde elas passam por modif caes; dali elas emergem para reencontrar,
enf m, a circulao geral. Dessa maneira, tudo transita f nalmente pela circulao
sangunea.
As constituintes do leite so segregadas pelas glndulas mamrias. Estas
se nutrem, se pode dizer, dos produtos da digesto dos alimentos que lhe so
levados pelo sangue circulante. O sangue faz o papel de coletor e de transpor-
tador de materiais extrados dos alimentos, para levar a nutrio s glndulas
mamrias produtoras de leite, como a no importa qual outro rgo.
Aqui, tudo procede a partir de uma colocao do contedo intestinal
e do sangue ao nvel mesmo da parede intestinal. Esta noo exata decorre
das conquistas da qumica e da f losof a da digesto. Ela era rigorosamente
desconhecida no tempo do Profeta Muhammad: seu conhecimento remonta ao
perodo moderno.
Quanto descoberta da circulao do sangue, a obra de Harvey se situa
dez sculos aproximadamente aps a Revelao Alcornica.
Eu penso que a existncia, no Alcoro, de versculos que fazem aluso a
essas noes no pode ter explicao humana, em razo da poca em que elas
foram formuladas.
REPRODUO HUMANA
A reproduo um assunto sobre o qual toda obra humana antiga, a
partir do momento em que ela tratada, quando muito superf cialmente, emite
infalivelmente concepes errneas. Na Idade Mdia - e mesmo num perodo
que no to recuado -, todo tipo de mitos e supersties envolviam a repro-
duo. Nem poderia ser diferente, pois que, para compreender esses mecanis-
mos complexos, foi preciso que o homem conhecesse a anatomia, descobrisse
o microscpio e que nascessem as cincias chamadas fundamentais, das quais se
nutrem a f siologia, a embriologia, a obstetrcia etc.
Para o Alcoro, tudo diferente. O Livro evoca em numerosos lugares
198
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
mecanismos precisos e menciona as fases bem def nidas da reproduo, sem
oferecer leitura o menor enunciado maculado pela inexatido. Tudo a ex-
presso, em termos simples, facilmente acessveis compreenso dos homens e
rigorosamente de acordo com o que ser descoberto muito mais tarde.
Evocada em vrias dezenas de versculos alcornicos, sem nenhuma or-
denao aparente, a reproduo humana exposta com a ajuda de enunciados,
versando cada um sobre ou vrios pontos particulares. Deve-se reagrupa-los
para se fazer uma ideia do conjunto. Aqui, como para outros assuntos j trata-
dos, o seu comentrio ser facilitado.
RECOLOCAO DE CERTAS NOES
A reviso de algumas noes, que eram ignoradas na poca da Revelao
Alcornica e nos sculos posteriores, indispensvel.
A reproduo humana assegurada por uma srie de processos, comuns
aos mamferos, no incio dos quais existe a fecundao, na trompa, de um vulo
que se destaca do ovrio no meio do ciclo menstrual.
O agente fecundante o esperma do homem ou mais exatamente um
espermatozoide, porque uma nica clula germinal suf ciente: preciso, por-
tanto, para assegurar a fecundao, uma quantidade nfma desse lquido esper-
mtico, que contm os espermatozoides em nmero considervel (de dezenas
de milhes para uma ejaculao).
O lquido reproduzido pelos testculos e momentaneamente estocado
num sistema de reservatrios e canais que se ligam f nalmente s vias urinrias;
as glndulas anexas, dispostas ao longo dessas ultimas, ajuntam ao esperma uma
secreo suplementar, mas sem elementos fecundantes.
em um ponto preciso do aparelho genital feminino que se produz o
nidamento do ovo assim fecundado: ele desce atravs das trompas no tero e ali
se aninha ao nvel do corpo do tero, onde no tarda a se agarrar literalmente,
inserindo-se em sua espessura, na mucosa e no msculo, depois da formao
da placenta e com a ajuda dela. Se a f xao do ovo fecundado tem lugar, por
exemplo, na trompa, em vez de se produzir no tero, a gravidez ser interrom-
pida.
199
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O embrio, desde que comea a ser observvel a olho nu, se apresenta
sob o aspecto de uma pequena massa de carne, no seio da qual a aparncia de
um ser humano inicialmente indiscernvel. Ele se desenvolve progressivamente
por estgios sucessivos, hoje em dia bem conhecidos, o que vai dar ossatura
do corpo humano: o sistema sseo, com ao redor de si, os msculos, o sistema
nervoso, o sistema circulatrio, as vsceras etc.
So essas noes que vo servir de termos de comparao com o que
podemos ler, no Alcoro, sobre a reproduo.
A REPRODUO HUMANA NO ALCORO
Fazer-se uma ideia do contedo alcornico sobre esse assunto no
coisa fcil. Uma primeira dif culdade vem da disperso, por todo Livro, dos
enunciados que lhe concernem, como assinalamos; mas no se trata de uma
complicao capital. O que muito mais susceptvel de desnortear o investiga-
dor , ainda aqui, um problema de vocabulrio.
Com efeito, so sempre difundidos em nossa poca tradues e comen-
trios de algumas passagens, que podem dar aos cientistas que os leem uma
ideia completamente falsa da Revelao Alcornica sobre o assunto em questo.
assim que a maior parte das tradues evocam a formao do homem a partir
de um cogulo de sangue, de aderncia; tai enunciado , para um cientista
especializado nesse domnio, rigorosamente inadmissvel. Jamais o homem teria
uma tal origem. Veremos, no pargrafo que trata do nidamento do ovo no tero
materno, as razes pelas quais distinguidos arabistas, sem cultura cientfca, so
levados a cometer tais erros.
Uma tal constatao deixa supor como vai ser importante a associao
dos conhecimentos concernentes lngua e aos conhecimentos cientf cos, para
que se d a perceber o sentido dos enunciados alcornicos sobre a reproduo.
O Alcoro ressalta, em primeiro lugar, as transformaes sucessivas que
o embrio sofre, at o f m, no tero materno.
- Captulo 82, Versculos 6-8:
humano, o que te fez negligente em relao ao teu Senhor, o Munif centssimo, Que te
criou, te formou, te aperfeioou, E te modelou, na forma que Lhe aprouve?
- Captulo 71, Versculo 14:
200
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Sendo que Ele vos criou gradativamente?
Ao lado dessas consideraes bem gerais, o texto alcornico chama a
ateno sobre diversos pontos concernentes reproduo, que parecem poder
se classif cados assim:
1 - A fecundao se opera graas a um bem pequeno volume de lquido;
2 - A natureza do lquido fecundante;
3 - O nidamento do ovo fecundado;
4 - A evoluo do embrio.
1-A Fecundao se opera graas a um bem pequeno volume de lquido
Onze vezes o Alcoro volta a essa noo, empregando a expresso que
encontramos em:
- Captulo 16, Versculo 4:
Criou o homem de uma gota de smen, e o mesmo passou a ser um declarado opositor.
Somos obrigados a traduzir por gota
68
(de esperma) a palavra rabe
nutfat, por no existir em portugus o vocbulo rigorosamente apropriado.
preciso dizer que esta palavra vem de um verbo que signif ca escorrer, destilar;
ele serve para indicar o que pode restar em um recipiente, uma vez que o es-
vaziamos. Ele indica, portanto, exatamente uma pequena quantidade de lquido,
de onde o sentido de gota dgua e, aqui, gota de esperma, porque a palavra
associada num outro versculo palavra esperma.
- Captulo 75, Versculo 37:
No foi a sua origem uma gota de esperma ejaculada?
Um outro versculo indica que a gota em questo posta em um lugar
de morada f xa (qaraar),que, com toda evidncia, designa o aparelho genital.
Captulo 23, Versculo 13. Deus fala:
68 - Em francs, foi traduzido goue.
201
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Em seguida, f zemo-lo uma gota de esperma, que inserimos em um lugar seguro.
E preciso acrescentar que o qualif cativo que, no texto, se relaciona a essa
moda f xa makiyn no absolutamente traduzvel, me parece, em portugus. Ele
exprime ideia de lugar distinto, elevado, estabelecido solidamente. Qualquer que
seja, trata-se do lugar de crescimento do homem no organismo materno. Mas
o que importa, sobretudo, acentuar essa noo de uma pequena quantidade
de lquido, necessrio fecundidade, rigorosamente de acordo com o que se
conhece em nossa poca.
2 - A Natureza do Lquido Fecundante
O Alcoro menciona esse lquido, que assegura a fecundao com os
qualif cativos interessantes de examinar.
a) Esperma, como acaba de se precisar (Captulo 75, Versculo 37).
b) Lquido emitido: (O homem) foi formado de um lquido emitido
(Captulo 86, Versculo 6).
c) Um lquido vil (Captulo 32, Versculo 8 e Captulo 77, Versculo 20).
O qualif cativo vil(mahiyn) pode ser interpretado, parece, no sob o pon-
to de vista da qualidade do prprio lquido, mas, antes, em funo do fato de
que ele emitido pela terminao do aparelho urinrio, servindo do conduto
que d sada urina.
d) As misturas ou o que misturado (amchaaj): Em verdade, criamos
o homem, de esperma misturado, para prova-lo, e o dotarmos de ouvidos e
vistas. (Captulo 76, Versculo 2).
Muitos comentadores, como professor Hamidullah, viram nessas mistu-
ras o elemento masculino e o elemento feminino. Deu-se o mesmo com os au-
tores antigos que no poderiam ter a menor ideia da f siologia da fecundao e,
particularmente, do que so essas condies biolgicas do lado da mulher; eles
consideravam que a palavra evocava simplesmente a reunio de dois elementos.
Mas os comentrios modernos, como o de Muntakhab, editado pelo
Conselho Supremo dos Negcios Islmicos do Cairo, retif cam essa maneira de
ver, e discernem a que a gota de esperma dotada de vrios elementos. O
comentrio de Muntakhab no d detalhes mas, a meu ver, sua observao
muito judiciosa.
202
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Quais so, portanto, os elementos diversos do esperma?
O lquido espermtico formado de secrees diversas, provenientes das
glndulas seguintes:
a) os testculos (a secreo da glndula genital masculina contm os
espermatozoides, clulas alongadas providas de um longo f agelo e imersas num
lquido (seroso);
b) as vesculas seminais: rgos, reservatrios de espermatozoides, dis-
postos perto da prstata, tm tambm uma secreo prpria, sem elementos
fecundantes;
c) a prstata ela segrega um lquido, dando ao esperma seu aspecto cre-
moso e seu odor particular;
d) as glndulas anexas das vias urinrias: as glndulas de Cooper ou de
Mry so segregadoras de um lquido condutor, as glndulas de Litr segregam
o mucus.
Essas so as fontes dessas misturas, das quais o Alcoro parece tanto
falar.
Porm, h ainda mais. Se o Alcoro fala de um lquido fecundante forma-
do de diversos elementos, ele nos adverte sobre o fato de que a descendncia
do homem ser assegurada por qualquer coisa que pode ser extrada desse
lquido. o sentido do Versculo 8 do Captulo 32:
Ento, formou-lhe uma prole da essncia de smen sutil.
A palavra rabe traduzida aqui por quinta essncia (sulaatat) designa um
objeto extrado, sado de outro, a melhor parte de uma coisa. Que se o traduza
de uma maneira ou de outra, trata-se da parte de um todo.
O que produz a fecundao do vulo e assegura a reproduo uma
clula de forma muito alongada, de dimenso calculada, em uma escala de
1/10.000 de milmetro. Um s elemento entre vrias dezenas de milhes, emi-
tidos pelo homem em condies normais
69
, conseguir penetrar no vulo; um
nmero considervel f car, no caminho e no conseguir percorrer o trajeto,
que, da vagina, conduz ao vulo atravs da cavidade do tero e da trompa. Ser,
69 - Podemos avaliar que um cenmetro cbico de esperma contm 25 milhes de es-
permatozoides, nas condies normais de uma ejaculao de alguns cenmetros cbicos.
203
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
portanto, uma nf ma parte extrada dum lquido, de formao muito complexa,
que manifestar sua atividade.
Como, por consequncia, no se admirar com a concordncia entre o
texto alcornico e o conhecimento cientf co, quo temos em nossa poca, des-
ses fenmenos?
3 - O Nidamento do Ovo no Aparelho Feminino
O ovo, uma vez fecundado na trompa, desce para se aninhar no interior
da cavidade uterina: o que se chama nidamento do ovo. O Alcoro denomina
tero, onde o ovo fecundado se localiza:
Ns
70
vos criamos... de algo que se espera
A f xao do ovo no tero realizada pelo desenvolvimento de vilosi-
dades (Salincia delgada do crio, atravs da qual passa a nutrio do embrio),
verdadeiros prolongamentos do ovo que vo, como as razes no solo, sugar,
na espessura do rgo, o que necessrio ao desenvolvimento do ovo. Essas
formaes agarram literalmente o ovo ao tero. Seu conhecimento data dos
tempos modernos.
Essa ao de agarrar mencionada cinco vezes no Alcoro.
- Primeiramente dos dois primeiros versculos do captulo 96:
L, em nome do teu Senhor Que criou; Criou o homem de algo que se agarra.
Qualquer coisa que se agarra a traduo da palavra alaq. o seu
sentido primitivo. Um sentido derivado deste, posta de sangue, que f gura
comumente nas tradues, uma inexatido, contra a qual convm se precaver,
o homem jamais passou por um estgio de posta de sangue. E o mesmo ocorre
com outra traduo dada: aderncia, que tambm um termo improprio. O
sentido primitivo (..qualquer coisa que se agarra), responde perfeitamente
realidade hoje bem estabelecida.
Essa noo lembrada em quatro versculos, evocando as transforma-
es sucessivas desde o estgio de gota do esperma at o f m.
70 - Deus quem fala
204
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 22, Versculo 5:
(Ns) vos criamos... de algo que se agarra.
- Captulo 23, Versculo 14:
Ento, convertemos a gota de esperma em algo que se agarra.
- Captulo 40, Versculo 67:
Ele foi Quem vos criou do p, depois do smen, depois de algo que se agarra.
- Captulo 75, Versculos 37-38:
No foi a sua origem uma gota de esperma ejaculada No foi a sua origem uma gota de
esperma ejaculada?
O rgo onde se desenvolve a gravidez qualif cado no Alcoro, como
j vimos, por uma palavra sempre empregada em rabe para designar o tero.
Ele recebe, em certos captulos, o nome de morada f xa (Captulo 23, Versculo
13, que foi citado anteriormente, e o Captulo 77 , Versculo 21
71
.
4. A Evoluo do Embrio no Interior do tero
Tal como descrita pelo Alcoro, ela responde perfeitamente ao que
sabemos hoje em dia de algumas etapas do desenvolvimento do embrio e ela
no contm nenhum enunciado que a cincia moderna poderia criticar.
Aps o que se agarra, expresso qual vimos at que ponto est bem
fundamentada, o embrio, diz o Alcoro, passa pelo estgio de came (como a
carne amorfa) e depois aparece o tecido sseo que recoberto de carne (def -
nida por uma palavra diferente da precedente e que signif ca carne fresca).
71 - Em um outro versculo (Captulo 6, Versculo 98), trata-se, para o homem, de um lugar
de morada xa, expressa por um termo muito vizinho do procedente e que parece bem
designar igualmente o tero materno. Pessoalmente, penso que esse o sendo do ver-
sculo, mas sua interpretao detalhada implicaria excessivo desenvolvimento, que no
tem lugar neste estudo. De interpretao extremamente delicada, tambm o versculo
seguinte: (Deus) Congura-vos paulanamente no ventre de vossas mes, entre trs tre-
vas. (zulumaat). (Surat 39:6) Interpretaes modems do Alcoro veem a os trs planos
anatmicos que protegem a criana em gestao: a parede do abdome, o tero mesmo,
os envoltrios do feto (placenta, membrana e lquido amnico). Eu me permito citar
esse versculo para ser completo: A interpretao dada aqui no me parece discuvel
anatomicamente, mas ser exatamente o que o texto alcornico queria dizer?
205
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- Captulo 23, Versculo 14:
Ento, convertemos a gota de esperma em algo que se agarra, transformamos o cogulo
em feto e convertemos o feto em ossos; depois, revestimos os ossos de carne; ento, o
desenvolvemos em outra criatura. Bendito seja Deus, Criador por excelncia.
O feto foi traduzido da palavra mudghat; a carne (como a da carne
fresca), foi traduzida da palavra lahm. Esta distino merece ser destacada: O
embrio inicialmente uma pequena massa que, a olho nu, em certo estgio
de desenvolvimento, tem a aparncia de carne amorfa. O sistema sseo se
desenvolve no seio dessa massa no que chamamos de mesnquima. Os ossos
formados so revestidos por massas musculares: a elas que se aplica a palavra
lahm.
Sabemos que, no curso desse desenvolvimento embrionrio, algumas
partes aparecem bastante desproporcionadas com o que ser mais tarde o indi-
vduo e outras restam proporcionadas.
No o sentido que tem a palavra mukhallaq, que signif ca formado
com propores, que empregado no Versculo 5 do Captulo 22 para evocar
esse fenmeno?
(Ns) vos criamos... algo que se agarra e, f nalmente, em feto, com forma ou amorfo...
O Alcoro evoca tambm o aparecimento dos sentidos e das vsceras:
- Captulo 32, Versculo 9:
Dotou a todos vs da audio, da viso e das vsceras.
Ele faz aluso formao do sexo:
- Captulo 53, Versculos 45-46:
E que Ele criou (tudo) em pares: o masculino e o feminino, De uma gosta de esperma,
quando alojada (em seu lugar).
A formao do sexo tambm evocada no Captulo 35, Versculo 11 e
Captulo 75, Versculo 39.
Todos esses enunciados alcornicos devem ser, como vimos, comparados s
noes estabelecidas na poca moderna: sua concordncia com elas evidente.
206
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Mas , igualmente, extremamente importante confront-los com as crenas ge-
rais sobre esse assunto, que eram comuns no perodo da Revelao Alcornica,
para se compreender at que ponto os homens daquele tempo estavam longe
de ter noes semelhantes sobre esses problemas.
Ningum duvida que eles no saberiam, ento, interpretar essa Revelao
como ns a compreendemos em nossos dias, visto que os dados do conheci-
mento moderno hoje no ajudam nisso. , com efeito, somente no decorrer do
sculo XIX que se ter sobre questes, uma viso um pouco mais clara.
Durante toda a Idade Mdia, mitos e especulaes sem fundamento esta-
vam na origem das doutrinas mais variadas: elas foram ainda acatacas por mui-
tos sculos depois. Sabemos que a etapa fundamental da histria da embriologia
foi a af rmao, por Harvey, em 1651 , de que tudo que vive vem inicialmente de
um ovo e que o embrio se forma progressivamente parte, aps parte. Naquela
poca - em
que a cincia nascente tinha, no entanto, grandemente se benef ciado, para o
assunto que nos interessa, com a inveno recente do microscpio -, s discutia,
ainda, sobre os papis respectivos do ovo e do espermatozoide. O grande
naturalista Buffon era do cl dos ovistas, em cujo nvel Bonnet sustentava a
teoria do encaixe dos germes: o ovrio de Eva, me da espcie humana, teria
contido os germes de todos os seres humanos, encaixados uns nos outros. Esta
hiptese era de certo modo aprovada no sculo XVIII.
H mais de um milnio antes dessa poca, em que as doutrinas fanta-
sistas estavam ainda em vigor, os homens j tinham conhecimento do Alcoro.
Seus enunciados sobre a reproduo humana exprimiam, em termos simples,
verdades primrias, que os homens levaram tantos sculos para descobrir.
ALCORO E A EDUCAO SEXUAL
crena de nossa poca terem sido feitas muitas descobertas, em todos
os domnios. Ela considera que inovou em matria de educao sexual e pensa
que a abertura dos jovens ao conhecimento dos problemas da vida uma aqui-
sio do mundo moderno e que os sculos passados foram marcados, sobre
esse assunto, por um obscurantismo intencional sobre o qual muito dizem que
207
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
as religies - sem precisar - so responsveis.
Ora, tudo que acaba de ser exposto aqui, constitui a prova de que h
aproximadamente catorze sculos, as questes tericas, se se pode dizer, concer-
nentes reproduo humana, foram trazidas ao conhecimento dos homens, na
medida em que se podia faz-lo, levando-se em conta o fato de que no se pos-
suam dados anatmicos e f siolgicos, permitindo amplos desenvolvimentos, e
que era necessrio, para ser compreendido, empregar uma linguagem simples e
apropriada capacidade de compreenso dos ouvintes da Predicao.
Os aspectos prticos no foram tampouco silenciados. Encontramos
no Alcoro uma inf nidade de detalhes sobre a vida prtica em geral, sobre o
comportamento que devem ter os homens em mltiplas circunstncias de sua
existncia. A vida sexual no foi excluda.
Dois versculos do Alcoro concernem relao sexual propriamente
dita. Ela evocada em termos que aliam o desejo do impulso com a necessria
decncia. Quando nos reportamos s tradues e aos comentrios explicativos
que foram feitos, nos espantamos com suas divergncias. Durante muito tempo
hesitei sobre a traduo desses versculos. Eu devo a que eu proponho ao Dr. A.
H. Giraud, antigo professor da Faculdade de Medicina de Beirute.
- Captulo 86, Versculos 6-7:
Foi criado de uma gota ejaculada, Que emana da conjuno das regies sexuais do homem
e da mulher.
A regio sexual do homem designada no texto alcornico pela palavra
sulb (singular). A regio sexual da mulher designada pelo Alcoro pela palavra
taraaib (plural).
Esta a traduo que parece mais satisfatria. Ela difere daquela dada,
em geral, pelos tradutores franceses ou ingleses como: (O homem) foi criado
de um lquido derramado que sai da espinha dorsal e dos ossos do peito. Isto
parece mais uma variante interpretativa que uma traduo e, alm disso, pouco
compreensvel.
O comportamento dos homens em suas relaes ntimas com suas mu-
lheres em circunstncias diversas explicitado.
, em primeiro lugar, a orientao para o perodo das regras que dada
nos Versculos 222-223 do Captulo 2: Deus d esta prescrio ao Profeta:
208
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Consultar-te-o acerca da menstruao; dize-lhes: uma impureza. Abstende-vos, pois,
das mulheres durante a menstruao e no vos acerqueis delas at que se purif quem;
quando estiverem purif cadas, aproximai-vos ento delas, como Deus vos tem disposto,
porque Ele estima os que arrependem e cuidam da purif cao. Vossas mulheres so vossas
semeaduras. Desfrutai, pois, da vossa semeadura, como vos apraz; porm, praticai boas
obras antecipadamente.
O incio dessa passagem tem uma signif cao muito clara: e interdio
das relaes sexuais com uma mulher menstruada formal. A segunda parte
evoca o trabalho que, para o semeador, precede ao depsito da semente que
vai germinar uma planta nova. A advertncia dominante est, portanto, posta
indiretamente pela imagem sobre a importncia de se ter em mente: o objetivo
f nal da relao sexual a procriao. A traduo da ltima frase aquela de R.
Blachre: esta frase contm uma prescrio que parece se referir aos preparati-
vos da relao sexual.
As orientaes dadas aqui so de ordem muito geral. Colocou-se, a pro-
psito desses versculos, o problema da anticoncepo: aqui, como em nenhum
outro lugar, o Alcoro no fez aluso ao assunto.
O aborto no muito evocado, mas as numerosas passagens citadas
mais acima sobre as transformaes sucessivas do embrio so suf cientemente
claras para que o homem seja considerado como formado a partir do estgio
caracterizado pela existncia de qualquer coisa que se agarra. Nessas condi-
es, o respeito absoluto da pessoa humana, to frequentemente difundida no
Alcoro, envolve a condenao radical do aborto. Essa tomada de posio ,
alis, a mesma de todas as religies monotestas de nossa poca.
As relaes sexuais so permitidas durante o perodo noturno do jejum
do ms do Ramad. O Versculo que se refere ao Ramad o seguinte:
- Captulo 2, Versculo 187:
Est-vos permitido, nas noites de jejum, acercar-vos de vossas mulheres, porque elas so
vossas vestimentas e vs o sois delas. Deus sabe o que vs fazeis secretamente; porm,
absorveu-vos e vos indultou. Acercai-vos agora delas e desfrutai do que Deus vos pres-
creveu.
Ao contrrio, nenhuma exceo considerada para os peregrinos de
209
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Meca durante os dias solenes da Peregrinao.
- Captulo 2, Versculo 197:
A peregrinao realiza em meses determinados. Quem a empreender, dever abster-se das
relaes sexuais, da perversidade e da discusso.
A interdio , portanto, formal, como so formais durante esse mesmo
perodo outras interdies tais como a caa, as disputas etc.
A menstruao tambm evocada no Alcoro a propsito do divrcio.
O Livro se exprime assim:
- Captulo 65, Versculo 4:
Quanto quelas, das vossas mulheres, que tiverem chegado menopausa, se tiverdes dvi-
da quanto a isso, o seu perodo prescrito ser de trs meses; o mesmo se diga, com respeito
quelas que ainda no tiverem chegado a tal condio; e, quanto s grvidas, o seu perodo
estar terminado quando derem luz.
O perodo de espera de que se trata aqui, aquele que ocorre entre o
anncio do divrcio e o momento quando se torna efetivo. As mulheres das
quais se diz: elas j no esperam estar regradas, so aquelas que chegaram
menopausa. Para elas, um tempo de observao de trs meses , no entanto, pre-
visto. Passado esse prazo, as mulheres divorciadas menopausadas podem ento
se casar de novo.
Para as mulheres que no tiveram ainda as regras, preciso aguardar
o tempo de uma gravidez. Para as mulheres grvidas, o divrcio no pode se
efetuar a no ser no f m da gravidez.
Toda essa legislao est perfeitamente em harmonia com os dados f sio-
lgicos. Alis, podemos encontrar no Alcoro, nos textos que regem a viuvez,
as mesmas judiciosas disposies legais.
Assim, para os enunciados tericos concernentes reproduo, como
para as direes prticas formuladas a propsito da vida sexual do casal, no-
tamos que nenhuma das formulaes que foram consignadas aqui est em
oposio aos dados dos conhecimentos modernos, nem com tudo o que pode
logicamente delas decorrer.
210
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
NARRAES ALCORNICAS E NARRAES BBLICAS
RESUMO GERAL
Encontramos no Alcoro um nmero importante de assuntos j ex-
postos na Bblia. So, sobretudo, as narraes concernentes aos profetas No,
Abrao, Jos, Elias, Jonas, Jac, Moiss e aos reis de Israel: Saul, Davi, Salomo;
para no mencionarmos seno, as principais narraes comuns, excetuando o
que no passa de citao. So, como veremos, mais especif camente, narraes
sobre os grandes acontecimentos, na marcha do quais o sobrenatural fez inter-
veno: por exemplo, a criao dos cus e da terra, criao do homem, o dilvio,
o xodo de Moiss. , enf m, tudo o quanto se refere a Jesus, sua me Maria,
no que concerne ao Novo Testamento.
Que ref exes esses assuntos tratados pelas duas Escrituras podem suge-
rir, em funo dos conhecimentos modernos, que podemos ter alm aos textos
sagrados?
PARALELO ALCORO - EVANGELHO
E CONHECIMENTO MODERNO
No que concerne a um paralelo entre o Alcoro e o Evangelho, preci-
so observar, antes, que nenhum ds assuntos dos Evangelhos que provocaram
crticas sob o ponto de vista da cincia e sobre os quais f zemos meno na
segunda parte desta obra encontram-se citados no Alcoro.
Jesus objeto, no Alcoro, de referncias mltiplas. por exemplo: A
Anunciao da Natividade de Maria a seu pai, a Anunciao da Natividade
milagrosa de Jesus a Maria, a natureza de Jesus, Profeta na primeira categoria
de todos, sua qualidade de Messias, a Revelao que ele dirigiu aos homens,
conf rmando e modif cando a Tora, sua predicao, seus discpulos, os apstolos,
os milagres, sua ascenso f nalmente ao lado de Deus, seu papel no julgamento
f nal etc.
O captulo 3 do Alcoro e o Captulo 19 (que traz o nome de Maria),
consagram longas passagens famlia de Jesus. Elas narram a natividade de sua
211
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
me, Maria, sua juventude, o anncio a Maria de sua maternidade miraculosa. Je-
sus sempre chamado Filho de Maria. Sua ascendncia dada essencialmente
em relao sua me, o que perfeitamente lgico, pois Jesus no teve um pai
biolgico. O Alcoro se separa aqui dos Evangelhos de Mateus e de Lucas que,
como expusemos, deram a Jesus genealogias masculinas, alis, diferentes, por sua
genealogia materna, Jesus colocado pelo Alcoro na linha de No, Abrao, o
pai de Maria (Imran, no Alcoro)
- Captulo 3, Versculos 33 e 34:
Sem dvida que Deus preferiu Ado, No, a famlia de Abrao e a de Imran, aos seus
contemporneos, Famlias descendentes umas das outras.
Assim, Jesus descende de No e de Abrao por sua me, Maria, e do pai
dela, Imran. Os erros nominais dos Evangelhos concernentes ascendncia de
Jesus, as impossibilidades de ordem genealgica do Antigo Testamento no que
concerne ascendncia de Abrao, que se examinou na primeira e na segunda
parte, no se encontram no Alcoro.
Uma vez mais, a objetividade obriga a assimilar o fato porque, uma vez
mais, ele toma toda a sua importncia diante das af rmaes sem fundamentos
daqueles que pretendem que Muhammad, autor do Alcoro, teria grandemente
copiado a Bblia. Perguntemos ento o qu ou qual argumento teria podido
dissuadi-lo de copia-Ia, a propsito da ascendncia de Jesus, e de inserir aqui no
Alcoro o corretivo que pe seu texto acima de toda crtica, suscitada pelos
conhecimentos modernos, enquanto, em oposio, os textos evanglicos e oi
textos do Antigo Testamento so, sob esse ponto de vista, rigorosamente ina-
ceitveis.
PARALELO ALCORO - ANTIGO TESTAMENTO
E CONHECIMENTOS MODERNOS
Para o Antigo Testamento, alguns aspectos desse paralelo j foram trata-
dos. Assim que a criao do mundo, segundo a Bblia, foi objeto de um estudo
crtico, na parte desta obra consagrada ao Antigo Testamento. O mesmo as-
sunto foi examinado na verso dada pela Revelao Alcornica. As comparaes
foram feitas. No h porque voltar a esse assunto.
212
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Os conhecimentos histricos so, ao que parece, muito frgeis e os da-
dos da arqueologia muito reduzidos, para que esses paralelos sejam feitos luz
dos conhecimentos modernos sobre problemas pertinentes aos reis de Israel,
assunto das narraes comuns ao Alcoro e Bblia.
Em relao aos Profetas, na medida em que os acontecimentos rela-
tados tiveram (ou no tiveram) uma traduo histrica, que deixaram (ou no
deixaram) traos que chegaram at ns, que podemos ou no abordar esses
problemas com os dados modernos.
Dois assuntos que foram objeto de narraes comuns ao Alcoro e
Bblia so susceptveis de prender nossa ateno e de serem examinadas luz
dos conhecimentos de nosso tempo. So eles:
- O Dilvio;
- O xodo de Moiss.
- O primeiro, porque no deixou na histria das civilizaes as marcas
que o relato bblico endossaria, ao passo que dados modernos suscitam crticas
perante a narrao alcornica.
- O segundo, porque a narrao alcornica e a narrao bblica parecem,
em grandes linhas, completarem-se uma outra e que os dados modernos pa-
recem fornecer a ambas um suporte histrico considervel.
O DILVIO
RESUMO DA NARRAO BIBLICA
E DAS CRTICAS QUE ELA SUSCITA
O exame da narrao do dilvio, segundo o Antigo Testamento, na pri-
meira parte do livro. conduziu s seguintes constataes:
No h um relato do dilvio na Bblia, mas dois relatos que foram redi-
gidos em pocas diferentes:
- A narrao Yahvista, datando do sculo IX A.C.;
213
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- A narrao, dita Sacerdotal, datando do sculo VI A.C., e assim chama-
da porque ela foi obra dos sacerdotes da poca.
Essas duas narraes no so justapostas, mas intricadas; os elementos
de uma, se intercalando entre os elementos de outra, com alternncia dos par-
grafos pertencentes a uma fonte, e dos pertencentes outra fonte. Os comen-
trios da traduo do Gnesis por R.P. de Vaux, professor da Escola Bblica de
Jerusalm, mostram perfeitamente esta repartio dos pargrafos entre as duas
fontes: a narrao comea e acaba por um pargrafo Yahvista. Dez pargrafos
Yahvistas existem no total; entre cada um deles, intercalado um pargrafo
Sacerdotal (isto , nove pargrafos Sacerdotais ao todo). Este mosaico de textos
no apresenta coerncia, a no ser sob o aspecto da sucesso dos episdios,
porque h, entre as duas fontes, contradies f agrantes. So, escritas por R.P. de
Vaux, duas histrias do Dilvio, onde o cataclismo produzido por agentes di-
ferentes e com uma durao diferente, onde No embarca na Arca um nmero
diferente de animais.
Em seu conjunto, a narrao do Dilvio inaceitvel, por duas razes,
luz dos conhecimentos modernos:
a) O Antigo Testamento lhe d, o carter de um cataclismo universal;
b) Enquanto que os pargrafos da fonte Yahvista no lhe do a data,
a narrao Sacerdotal o situa, no tempo, a uma poca em que um cataclismo
dessa ordem no poderia se produzir.
A narrao Sacerdotal acentua que o dilvio teve lugar quando No
tinha 600 anos. Ora, sabemos que, de acordo com as genealogias do Captulo
5 do Gnesis (de fonte Sacerdotal, elas tambm, e que foram consignadas na
primeira parte do livro), No teria nascido 1056 anos depois de Ado. Em
consequncia, o Dilvio teria tido lugar 1656 anos depois da criao de Ado.
Por outro lado, o quadro da genealogia de Abrao dada peio Gnesis (11:10-32),
segundo a mesma fonte, permite avaliar que Abrao viveu 292 anos depois do
Dilvio.
Como sabemos que Abrao viveu aproximadamente em 1850 A.C., o
Dilvio se situaria, portanto, segundo a Bblia, no sculo XXII ou XXI A.C. Este
clculo est rigorosamente conforme as indicaes das Bblias antigas, nas quais
essas precises cronolgicas f guravam em destaque no texto bblico, em um
perodo em que a ausncia de conhecimentos humanos sobre esse assunto
fazia com que os dados cronolgicos bblicos fossem, na falta de argumentos
214
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
contrrios, aceitos sem discusso por seus leitores
72
.
Como se poderia atualmente conceber que um cataclismo universal ti-
vesse destrudo a vida sobre toda a superfcie da terra (com exceo dos
passageiros da Arca) no sculo XXII ou XXI A.C.? Por essa poca, tinham j
f orescido, em diversos pontos da Terra, civilizaes, cujos vestgios passaram
posteridade. Para o Egito, por exemplo, o perodo intermedirio que segue o
f m do Antigo Imprio e o comeo do Mdio Imprio. Levando-se em conta o
que sabemos da histria dessa poca, seria ridculo sustentar que toda civiliza-
o foi ento destruda pelo Dilvio.
Assim, do ponto de vista histrico, podemos af rmar que a narrao
do Dilvio, tal como a Bblia a apresenta, est em contradio evidente com os
conhecimentos modernos. A existncia das duas narraes a prova formal da
manipulao das Escrituras pelos homens.
A NARRAO ALCORNICA DO DILVIO
O Alcoro no oferece uma narrao contnua sobre o Dilvio. Nu-
merosos captulos falam da punio inf igida ao povo de No. O relato mais
completo est no Captulo 11, Versculos 25-49. O Captulo 71, que leva o nome
de No, evocou principalmente a predicao de No, como o fazem os Vers-
culos 105-115 do Captulo 26. Mas, antes de considerar o desenvolvimento dos
acontecimentos propriamente dito, preciso situar o Dilvio tal como o relata
o Alcoro a respeito do contexto geral das punies inf igidas por Deus s
coletividades culpadas de terem afrontado, gravemente, Suas recomendaes.
Enquanto a Bblia estabelece um Dilvio universal para punir toda a hu-
manidade mpia, o Alcoro menciona, ao contrrio, diversas punies inf igidas
a coletividades bem def nidas.
- Os Versculos 35-39 do Captulo 25 informam:
72 - Depois que possumos certas noes sobre a cronologia dos termos angos e que
essas fantasias cronolgicas dos autores Sacerdotais do Ango Testamento no so mais
aceitas, apressou-se em suprimi-las das Bblias, mas os comentadores modernos dessas
genealogias que as conservaram no chamam a ateno dos leitores dos livros de
divulgao sobre os erros que elas contm.
215
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Havamos concedido o Livro a Moiss e, como ele, designamos como vizir seu irmo,
Aaro. E lhe dissemos: Ide ao povo que desmentiu os Nossos Sinais. E os destrumos com-
pletamente. E afogamos o povo de No quando desmentiu os mensageiros, e f zemos dele
um sinal para os humanos; e destinamos um doloroso castigo aos inquos. E (exterminamos)
os povos de Ad, de Thamud, e os habitantes de Arras e, entre eles, muitas geraes. A
cada qual narramos parbolas e exemplif camos, e a casa um aniquilamos por completo,
devido (aos seus pecados).
O Captulo 7, Versculos 59-93, contm uma relao das punies que
feriram o povo de No, os Aditas, os Thamuditas, Sodoma, Madi, isoladamente.
Assim, o Alcoro apresenta o cataclismo do Diluvio como uma punio
reservada especif camente ao povo de No: isto constitui a primeira diferena
fundamental entre as duas narraes.
A segunda diferena essencial que o Alcoro, contrariamente Bblia,
no situa o Diluvio no tempo e no d nenhuma indicao da durao do ca-
taclismo.
As causas da inundao so mais ou menos as mesmas nas duas nar-
raes. A narrao Sacerdotal da Bblia (Gnesis, 7: 11) cita duas delas que so
conjugadas: Naquele dia jorraram as fontes do grande abismo e as eclusas do
cu se abriram. O Alcoro f xa, nos versculos 11-12 do captulo 54:
Ento abrimos as portas do cu, com gua torrencial (que f zemos descer). E f zemos brotar
fontes da terra, e ambas as guas se encontraram na medida predestinada.
O Alcoro muito explcito sobre o contedo da Arca. A ordem foi dada por
Deus a No e executada f elmente, colocando a bordo o que ia sobreviver do
cataclismo:
At que, quando se cumpriu o Nosso desgnio e jorraram as fontes (da terra), dissemos (a
No): Embarca nela (a arca) um casal de cada espcie, juntamente com a tua famlia, exceto
aquele sobre quem tenha sido pronunciada a sentena, e embarca os que creram. Mas no
creram com ele, seno poucos.
O excludo da famlia um f lho maldito de No, a respeito do qual os
Versculos 45-46 desse mesmo captulo, nos esclarecem que os rogos de No,
feitos a Deus, no poderiam modif car a deciso. O Alcoro menciona, a bordo
da Arca, alm da famlia amputada de seu f lho maldito, outros passageiros,
pouco numerosos, que haviam acreditado em Deus.
216
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
A Bblia no cita esses ltimos, entre os ocupantes da Arca. Ela apresenta,
com efeito, trs verses do contedo da Arca:
- segundo a narrao Sacerdotal: No, sua prpria famlia, sem exceo, e
um casal de cada espcie;
- segundo a narrao Yahvista, feita distino entre, de um lado, animais
puros e pssaros e, de outro lado, animais impuros (dos primeiros, a Arca co-
lheu sete
73
de cada espcie, machos e fmeas; dos segundos, um casal somente);
- segundo um versculo Yahvista modif cado (Gnesis 7:8), um casal de
cada espcie, puro ou impuro.
A narrao da inundao propriamente dita contida no Captulo 11, Ver-
sculos 25-49 e no Captulo 23, Versculos 23-30 e a narrao bblica no apre-
sentam diferenas particularmente signif cativas.
O lugar onde a Arca encalha , para a Bblia, os montes do Ararat (G-
nesis 8:4); para o Alcoro, o Joudi (Captulo 11, Versculo 44). Essa montanha
seria o ponto culminante dos montes do Ararat na Armnia, mas ningum
prova que os homens no procederam a troca de nomes para igualar as duas
narraes. R. Biachre af rma. Segundo esse autor, haveria uma montanha com o
nome Joudi, na Arbia. A concordncia dos nomes pode ser artif cial.
Em def nitivo, existem divergncias importantes entre as narraes al-
cornicas e nas narraes bblicas. Algumas escapam a qualquer exame crtico
por falta de dados objetivos. Mas quando se trata de verif car os enunciados
das Escrituras com a ajuda de dados certos, a incompatibilidade da narrao
bblica - na apresentao do Diluvio no tempo e sua extenso -, com as aquisi-
es do conhecimento moderno posta nitidamente em evidncia. Ao contrrio,
a narrao Alcornica se verif ca isenta de todo elemento que suscite a crtica
objetiva. Entre a poca da narrao bblica e a narrao alcornica, os homens
teriam adquirido as informaes que poderiam lanar alguma luz sobre tal
acontecimento? Seguramente no, porque, do Antigo Testamento ao Alcoro, a
nica documentao em posse dos homens sobre essa histria antiga era pre-
cisamente a Bblia. Se fatores humanos no podem explicar as modif caes nas
narraes, operadas visando concordncia com os conhecimentos modernos,
preciso aceitar uma outra explicao: uma Revelao posterior quela contida
na Bblia.
73 - Sete no signicava, como frequentemente nessa poca nas lnguas semcas, uma
muldo.
217
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O XODO DE MOISS
Com o xodo de Moiss e seu grupo fora do Egito, primeira etapa de
sua instalao em Cana, aborda-se um acontecimento de capital importncia;
um acontecimento histrico, verdico, inserido num contexto conhecido, a des-
peito de alegaes que encontramos aqui e ali e que tentam conferir-lhe apenas
um carter legendrio.
No Antigo Testamento, o xodo forma, com a narrao da marcha no
deserto aps a sada do Egito e aquela da aliana que Deus concluiu no Monte
Sinai, o segundo livro do Pentateuco ou Tora. O Alcoro lhe d, naturalmente,
tambm um lugar muito grande: a narrao das relaes de Moiss e de seu
irmo Aaro com o Faro, e mesmo a da sada do Egito, so encontradas em
mais de dez captulos, com longas narraes, como nos Captulos 7, 10, 20 e 26,
ou ento em narraes mais condensadas ou mesmo de simples referncia. O
nome do Fara, personagem central do lado egpcio, repetido setenta e quatro
vezes no Alcoro e em vinte e sete captulos, salvo engano.
O estudo das duas narraes, alcornica e bblica, apresenta aqui um in-
teresse particular, porque, diferena do que vimos para o Dilvio, por exemplo,
as duas narraes so aqui superpostas, no que essencial. H, seguramente,
algumas divergncias, mas a narrao bblica tem um valor histrico consider-
vel, como veremos, pois que ela esclarece a identif cao do Fara, ou melhor,
dos dois faras concernentes e o Alcoro pode, nesta hiptese, como ponto
de partida bblico, trazer uma informao complementar. A essas duas fontes
escriturrias acrescentam-se os dados modernos da egiptologia, e assim que,
confrontando o Alcoro, a Bblica e os conhecimentos de nosso tempo, chega-
-se a situar o episdio das Escrituras Santas num contexto histrico.
O EXODO SEGUNDO A BBLIA
A narrao bblica comea por lembrar a entrada no Egito dos Judeus
que, com Jac, ali reencontraram Jos. Depois, um novo rei sobe ao poder no
Egito, que no tinha conhecido Jos (xodo, l: 8). E o perodo da opresso, o
fara impondo aos judeus a construo de cidades s quais a Bblia d os nomes
218
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
de Pitom e de Ramss. Para evitar uma expanso demogrf ca entre os Hebreus,
o fara determina jogar no rio toda criana recm-nascida do sexo masculino.
Moises ser, entretanto, conservado trs meses depois de seu nascimento por
sua me, mas ela deve f nalmente ter se resolvido a deix-lo em uma cesta de
junco borda do rio. A f lha do fara ali o descobre, o recolhe e o deixa para
que o amamente, precisamente, na casa sua prpria me, porque a irm de
Moiss, que f cara feliz por ver que recolheram o beb, f ngiu no o conhecer
e recomendou princesa uma ama, que no ela outra seno me da criana. Ele
tratado como f lho do fara e o nome de Moiss lhe dado.
Moiss, ainda jovem, parte para o pas de Madi, onde se casa e perma-
nece muito tempo. Detalhe importante: No decorrer desse longo perodo, o
rei do Egito morreu, l-se no livro xodo (2:23).
Deus ordena a Moiss ir procurar o fara e fazer sair seus irmos do
Egito (a narrao desta ordem feita no relato do episdio da sara ardente).
Aaro, irmo Moises o ajudar nessa tarefa. porque, de retorno ao Egito,
Moiss se encontra com seu irmo junto ao fara, que o sucessor daquele
sob o reino do qual ele havia nascido, h muito tempo.
O fara recusa aos judeus do grupo de Moiss a deixar o Egito. Deus
se manifesta de novo a Moises e lhe ordena renovar ao fara o mesmo pedido.
Moiss tem ento oitenta anos, segundo a Bblia. E1e demonstra ao fara, por
magia, que tem poderes sobrenaturais. Isto no suf ciente: Deus envia ento
sobre o Egito as pragas bem conhecidas: as guas dos rios se transformaram
em sangue, a invaso de sapos, mosquitos, gafanhotos, a morte dos rebanhos, o
aparecimento de tumores sob a pele dos homens e dos animais, a chuva de pe-
dras, as trevas, a morte dos primognitos; mas o fara continua a no permitir
a sada dos hebreus.
Eles escapam ento da cidade de Ramss, em nmero de 600.000 ho-
mens
74
, sem contar suas famlias (xodo 12:37).
ento que o fara fez atrelar seu carro e conduziu seu exrcito. Ele
tomou seiscentos de seus melhores carros e todos os carros do Egito, com
of ciais sobre todos eles... O rei do Egito se lanou em perseguio aos israelitas,
que saram de brao erguido (xodo, 14 6 e 8). Os egpcios alcanaram o grupo
de Moiss junto ao mar. Moiss levanta seu basto, o mar se abriu diante dele,
seus homens por ali passaram com os ps secos. E os egpcios seguiram-nos
e entraram atrs deles com todos os cavalos do fara, os seus carros e os seus
74 - Veremos mais adiante que a cifra foi manifestadamente aumentada.
219
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
cavaleiros, at o meio do mar (xodo 14:23). As guas retornaram e recobriram
os carros e os cavaleiros de todo o exrcito do fara, que havia penetrado atrs
deles no mar. No restou um s (xodo 14 28 e29).
O texto do Livro do xodo perfeitamente claro: o fara se encontrava
frente dos perseguidores. Ele morre, visto que o Livro do xodo acentua
No restou um s. A Bblia retoma, alis, esse detalhe nos Salmos de Davi:
Salmo 106, Versculo 11 e Salmo 136, Versculos 13-15, que so uma ao de graa
a Aquele que cortou em dois o Mar Vermelho, que fez passar Israel ao meio
e precipitou fara e seu exrcito no Mar Vermelho. No h dvida, portanto,
que, segundo a narrao bblica, o fara do xodo morreu no mar. A Bblia no
diz uma palavra sobre o que aconteceu com o seu corpo.
O EXODO SEGUNDO O ALCORO
Nas grandes linhas, a narrao alcornica do xodo anloga narrao
bblica. preciso reconstitui-la, porque ela feita de elementos dispersos em
numerosas passagens do Livro.
No mais que a Bblia, o Alcoro no menciona um nome de persona-
gem, que permita identif car qual era o fara reinante, no momento do xodo.
Tudo o que sabemos, que uma das personagens do Conselho se chamava
Ham; ele citado seis vezes no Alcoro (Captulo 28,Versculos 6,8 e 38;Ca-
ptulo 29,Versculo 39; Captulo 40, Versculos 24 e 36).
O fara opressor dos judeus:
- Captulo 14, Versculo 6:
Recordai-vos de quando Moiss disse ao seu povo: Lembrai as graas de Deus para
convosco ao libertar-vos do povo do Fara, que vos inf igia o pior castigo, sacrif cando os
vossos f lhos e deixando com vida as vossas mulheres. E nisso tivestes uma grande prova
do vosso Senhor!
A opresso d relembrada, nos mesmos termos, no Versculo 141 do Cap-
tulo 7. Mas o Alcoro no menciona, como o faz a Bblia, os nomes das cidades
construdas pelos judeus, submetidos ao trabalho forado.
220
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
O episdio de Moiss depositado beira do rio contado no Captulo
20, versculos 39-4O e no captulo 28, Versculos 7-13. Na narrao alcornica,
Moiss recolhido pela famlia do fara. Lemos com efeito, nos Versculos 8-9
do Captulo 28:
A famlia do Fara recolheu-o, para que viesse a ser, para os seus membros, um adversrio
e uma af io; isso porque o Fara, Haman e seus exrcitos eram pecadores. E a mulher
do Fara disse: Ser meu consolo e teu. No o mates! Talvez nos seja til, ou o adoremos
como f lho. E eles de nada se aperceberam.
A tradio muulmana pretende que a mulher do fara, que tomou
Moiss a seus cuidados, seja Asiya. Para o Alcoro, no foi a mulher do Fara
que o recolheu, mas suas gentes (Alu), isto , os habitantes da casa.
A mocidade de Moiss, sua morada no pas de Madi, seu casamento,
so relatados no Captulo 28, Versculos 13-28.
O episdio da sara ardente notadamente reencontrado na primeira
parte do Captulo 20 e nos Versculos 30-35 do Captulo 28.
O Alcoro no menciona as dez pragas enviadas ao Egito, a ttulo de
castigo divino, como a Bblia os descreve longamente, mas evocada muito sus-
cintamente cinco pragas (Captulo 7, Versculo 133): a inundao, os gafanhotos,
os piolhos, as rs e o sangue.
A fuga do Egito contada no Alcoro, sem as precises geogrf cas
dadas na narrao bblica e sem as citaes numricas pouco acreditveis dessa
narrao. No se concebe como 600.000 homens e suas famlias teriam podi-
do, como pretende a Bblia, fazer uma longa permanncia no deserto.
A morte do fara em perseguio aos Hebreus assim evocada:
O Fara os perseguiu com os soldados; porm, a gua os tragou a todos!, l-se
no versculo 78 do Captulo 20. Os judeus escaparam. O fara morreu, mas
seu corpo foi encontrado: detalhe muito importante que a narrao bblica no
menciona.
- Captulo 10, Versculos 90-92. Deus fala:
E f zemos atravessar o mar os israelitas; porm o Fara e seu exrcito perseguiram-no
inqua e hostilmente at que, estando a ponto de afogar-se, o Fara disse: Creio agora que
no h mais divindade alm de Deus em que creem os israelitas, e sou um dos submissos! (E
221
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
foi-lhe dito): Agora crs, ao passo que antes te havias rebelado e eras um dos corruptores!
Porm, hoje salvamos apenas o teu corpo, para que sirvas de exemplo tua posteridade.
Em verdade, h muitos humanos que esto negligenciando os Nossos versculos.
Esta passagem evoca dois pontos:
a) O esprito de furor e de hostilidade, de que se trata, se entende em
relao s tentativas de persuaso feitas por Moiss diante do fara.
b) A salvao do fara se aplica a seu cadver porque est bem claro, no
Versculo 98 do Captulo 11, que o fara e os seus foram condenados:
Ele encabear o seu povo, no Dia da Ressurreio, e os far entrar no fogo infernal. Que
infeliz entrada a sua!
Assim, pelos fatos que so susceptveis de serem confrontados com os
dados histricos, geogrf cos ou arqueolgicos, preciso notar que a narrao
alcornica difere da narrao bblica nos seguintes pontos:
- a ausncia, no Alcoro, de citaes de nomes, de lugares, tanto para as
cidades construdas pelos Hebreus do grupo de Moiss, como para o itinerrio
do xodo;
- a ausncia, no Alcoro, de meno da morte do fara, quando Moiss
habitava Madi;
- a ausncia, no Alcoro, de dados sobre a idade de Moiss, quando ele
se dirigiu ao fara;
- a ausncia, no Alcoro, de precises numricas sobre o grupo de Moi-
ss, manifestamente aumentada, na Bblia, a dimenses inverossmeis (600.000
homens e suas famlias teriam formado um grupo de mais de dois milhes de
habitantes);
- a ausncia de meno, na Bblia, da recuperao do corpo do fara
depois de sua morte.
Os pontos comuns das duas narraes, que so destacveis para o que
nos interessa aqui so:
- a conf rmao pelo Alcoro da opresso pelo fara aos judeus do gru-
po de Moiss;
222
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- a ausncia nas duas narraes de meno do nome do rei do Egito;
- a conf rmao, pelo Alcoro, da morte do fara por ocasio da sada
do Egito.
CONFRONTAAO DOS DADOS DAS ESCRITURAS
COM OS CONHECIMENTOS MODERNOS
As narraes alcornicas e bblicas relativas permanncia dos f lhos de
Israel no Egito e sua sada do pas apresentam aspectos que podem ser objeto
de confrontao com os conhecimentos modernos. A bem da verdade, de uma
maneira muito desigual, pois que alguns aspectos levantam inmeros problemas,
enquanto outros no oferecem muita matria discusso.
1 - O exame de certos pormenores da narrao - Os Hebreus no Egito
Parece que se pode perfeitamente dizer, sem risco de muito engano, que
conforme est escrito na Bblia (Gnesis, 15: 13 e xodo 12:40) - os hebreus
f caram morando no Egito durante 400 ou 430 anos. No importa qual seja
essa discordncia entre o Gnesis e o xodo, o que alis pouco importante,
sua permanncia comeou com a instalao, muito depois de Abrao, de Jos,
f lho de Jac e de seus irmos no Egito. Tirando a Bblia, que d as informaes
que eu acabo de citar, e o Alcoro, que menciona esta instalao sem dar a
menor indicao cronolgica, no possumos, por assim dizer, nenhum outro
documento susceptvel de nos esclarecer sobre esse ponto.
Pensa-se atualmente, de P. Montet a Daniel Robs, que, segundo toda a
probabilidade, com o movimento dos Hicsos em direo ao Egito no sculo
XVII A.C., que coincide essa chegada de Jose e dos seus e que em Avaris, no
Delta, do Nilo estaria um soberano Hicsos, que teria dado bom acolhimento a
Jos e a seus irmos.
Esta af rmativa est, certamente, em contradio aparente com o que nos
indica o primeiro Livro dos Reis da Bblia (6:1) que situa a sada do Egito 480
anos antes da construo do templo de Salomo (aproximadamente 971 A.C.).
223
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Esta estimativa situaria, portanto, o xodo aproximadamente em 1450 A.C. e,
por consequncia, a entrada em 1850-1880. Ora, precisamente a poca em
que teria vivido Abrao, de quem 250 anos aproximados deveriam, segundo
outros dados bblicos, separ-lo de Jos. Essa passagem do primeiro Livro dos
Reis da Bblia , portanto, cronologicamente inaceitvel
75
. Veremos que a teoria
sustentada aqui no poder ter contra ela seno esta objeo tirada desse livro,
mas a inexatido manifesta desses dados cronolgicos retira todo o valor dessa
objeo.
O que os hebreus deixaram como traos de sua permanncia no Egito
muito vago, postos parte os dados das Escrituras Santas. H, entretanto,
alguns documentos hieroglf cos mencionando a existncia, no Egito, de tra-
balhadores chamados os Apiru ou Hapiru ou Habiru, que foram identif cados,
errnea ou razoavelmente, aos hebreus. Designavam-se sob esse termo os ope-
rrios das construes agrcolas, os vindimadores (colhedores de uvas) etc. De
onde vieram eles? muito difcil dizer. Como o escreveu R.P. de Vaux, eles no
so membros da populao local, eles no se identif cam em nenhuma classe da
sociedade, eles todos no tm a mesma ocupao ou o mesmo estatuto.
Sob Tutms III, um papiro cita-os como gente de estrebaria. Sabe-se
que Amenophis II, no sculo XV A.C., conduziu 3.600 deles a ttulo de prisio-
neiros procedentes de Cana, porque eles constituam, escreve R.P. de Vaux, uma
frao notvel da populao da Sria-Palestina. L por 1.300 A.C., sob Sethi I,
esses mesmos Apiru fomentavam em Cana distrbios na regio de Beth-Shean.
Sob Ramss II, eles so empregados como canteiros ou no transporte de estacas
para as obras do fara (grande pilone de Ramses Miam). Sabe-se pela Bblia que
os Hebreus vo, sob Ramses II, construir a capital do norte, a cidade de Ramss.
Nos escritos egpcios, far-se- ainda meno a esses Apiru no sculo XII e, pela
ltima vez, sob Ramss III.
Mas os Apiru no so mencionados a no ser no Egito. O termo poderia,
portanto, se aplicar s aos Hebreus? Pode ser que haja aqui lugar para lembrar
que a palavra poderia designar, inicialmente, os trabalhadores forados, sem
considerar sua origem, e que, em seguida, o termo serviu como qualif cativo
prof ssional. No estaramos autorizados a fazer uma aproximao com os
sentidos diversos com que, em francs, a palavra suisse, designa perfeitamente
um habitante da Sua, um soldado suo da monarquia francesa, um guarda do
Vaticano ou um zelador da Igreja crist?
75 - Voltaremos mais adiante sobre o que preciso pensar, com R.P. de Vaux, sobre essa
referencia ao 1 Livro dos Reis.
224
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
De qualquer modo, sob Ramss II, os Hebreus (segundo a Bblia), os
Apiru (segundo os textos hieroglf cos) participam dos grandes trabalhos or-
denados pelo fara, e, podemos dizer, dos trabalhos forados dos Judeus: as
cidades de Ramss e de Piton. citadas no Livro do xodo, so situadas na parte
oriental do delta no Nilo. Tanis e Qantir atuais, a 25 quilmetros aproximados
uma da outra, correspondem essas antigas citadas. L estava a capital do Norte,
construda por Ramss II. Ramss II o fara da opresso.
E nesse contexto que vai nascer Moiss. Ns vimos mais acima as cir-
cunstncias que cercam a sua salvao das guas do rio. Seu nome egpcio. P.
Montet o demonstrou cabalmente no seu livro O Egito e a Btblia (LEgypte et
la Bible. Delechaur and Niestl. Neufchatel, 1959.): Mesw ou Mesy so, no rol do
dicionrio, nomes de pessoas, na lngua dos hierglifos de Ranke. Musay a sua
transliterao no Alcoro.
AS PRAGAS DO EGITO
A Bblia faz meno, sob esse ttulo, a dez castigos inf igidos por Deus
e d sobre cada uma dessas pragas muitos detalhes. Muitos tm um aspecto
e uma dimenso sobrenatural. O Alcoro enumera cinco pragas que so, na
maior parte. O exagero de fenmenos naturais: inundao, gafanhotos, piolhos,
rs e sangue.
As outras pragas (mosquitos, moscas, lceras da pele, granizo, trevas,
morte do primognito nascido e do gado) descritas pela Bblia revelam origens
diversas como foi o caso da narrao do Dilvio, constitudo por uma justapo-
sio de elementos de origens mltiplas.
O ITINERRIO DO XODO
Nenhum itinerrio fornecido pelo Alcoro, enquanto a Bblia o men-
ciona com muita preciso. R. P. de Vaux e P. Montet, por sua vez, retomaram-lhe
o estudo. O ponto de partida seria a regio de Tanis-Qantir, mas, para o resto
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do itinerrio, no encontramos, em nenhuma parte, indcios que possam con-
f rmar a narrao bblica e no saberemos dizer em que direo o mar se abriu
para deixar passar o grupo de Moiss.
O MILAGRE DO MAR
Imaginou-se um maremoto que teria decorrido de injunes astronmi-
cas ou de causas ssmicas relacionadas a uma longnqua erupo vulcnica. Os
Hebreus teriam se aproveitado da vazante do mar e os Egpcios, lanados em
sua perseguio, teriam sido aniquilados pelo retorno das guas; tudo isto no
seno pura hiptese.
2 - Situao do xodo na cronologia faranica
Podemos muito mais validamente chegar a dados positivos, no que con-
cerne situao do xodo no tempo.
Considerou-se durante muito tempo que Mineptah, sucessor de Ramses
II era o fara do xodo de Moiss. Maspero, o celebre egiptlogo do comeo
do sculo, escreveu, em 1900, no seu Guia do Visitante do Museu do Cairo,
que Mineptah seria, segundo uma tradio, de origem alexandrina, o fara do
xodo, aquele que, dizem, teria morrido no Mar Vermelho? Eu no consegui
encontrar os documentos sobre os quais Maspero teria fundamentado sua
assero, mas a seriedade do autor impe que se atribua maior valor ao que ele
afumou.
P. Montet parte, muito raro encontrar egiptlogos ou especialistas
da exegese bblica moderna que procuram argumentos a favor ou contra essa
hiptese.
Muito ao contrrio, assistiu-se, nos ltimos decnios, a uma ecloso de
hipteses diferentes umas das outras e que, parece, foram emitidas a no ser
com o propsito de satisfazer a uma concordncia com pormenores da narra-
o das Escrituras, sem que seus autores se preocupassem com outros aspectos
dela. Assim, vemos surgir uma ou outra hiptese, que parecem concordar com
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
um aspecto de uma narrao, sem que seu autor tenha tido o cuidado de
confront-la com todos os outros dados das Escrituras (no somente, por con-
sequncia, com a Bblia) e, ao mesmo tempo, com todos os dados fornecidos
pela Histria, peia Arqueologia etc.
Uma das hipteses mais curiosas que vieram luz aquela de J. de Miceli
(1960), que pretende ter chegado a f xar o xodo num dia certo, isto , o dia 9
de abril de 1495 A.C., e isso exclusivamente mediante clculos sobre calendrios.
Tutms II, reinante ento no Egito, seria determinado por esse autor como sen-
do o fara do xodo. Visto que se constataram na mmia de Tutms II, leses
cutneas que esse autor qualif ca - no sabemos bem porque - de lepra, e que
uma das pragas do Egito descritas na Bblia consiste em fstulas cutneas, eis a
hiptese conf rmada. Esta chocante elaborao no presta nenhuma ateno a
outros fatos da narrao bblica, em particular meno da cidade de Ramss
pela Bblia, o que torna caduca qualquer hiptese sobre a f xao da data do
xodo antes que um Ramss tenha reinado.
Quanto s leses cutneas de Tutms II, no h possibilidade de se pro-
por um argumento a favor da designao desse rei do Egito como o fara do
xodo, pois seu f lho Tutms III e seu neto Amenophis II apresentam, eles tam-
bm, borbulhas cutneas
76
, para as quais certos autores levantaram a hiptese
de uma doena familiar. A hiptese de Tutmds II no , pois, defensvel.
O mesmo se d com aquela levantada por Daniel Rops no seu livro O
Povo do Bblia
77
, atribuindo a Amenophis II o papel de fara do xodo. Ela no
parece mais fundamentada do que a precedente. Sob o pretexto de que seu pai
Tutms III era muito nacionalista, Daniel Rops proclama Amenophis II persegui-
dor dos Hebreus e a sogra deste ltimo, a celebre rainha Hatshepsout, passa,
no sabemos por que, por aquela que recolheu Moiss.
sobre uma base mais slida, que R.P. de Vaux faz repousar sua hiptese
sobre Ramss II, que estudou no livro Histria Antiga de Israel
78
, porque, se
ela no concorda com todos os pontos da narrao bblica, tem, pelo menos,
o mrito de antecipar um dado importante: a construo, sob Ramss II, das
cidades de Ramss e de Piton citadas no texto bblico. No se poderia, portanto,
considerar que o xodo possa ser anterior ao advento de Ramss II, advento
que se situa, segundo a cronologia de Drioton e Vaudier, no ano 1.301 A.C. e,
76 - Essas leses so perfeitamente visveis nas mmias dos faras no Museu Egpcio do
Cairo.
77 - Descle de Brouwet. 1970, Paris.
78 - J. Gabalda e Cie, 1971, Paris.
227
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
segundo a de Rowton, em 1290 A.C. As duas outras hipteses evocadas acima
so inaceitveis, devido a esse imperativo: Ramss II o fara da opresso de
que fala a Bblia.
Para R.P. de Vaux, seria na primeira metade ou l por meados do reinado
de Ramss II que o xodo teria acontecido. A f xao da data por R.P. de Vaux
absolutamente imprecisa: o autor sugere esse perodo, a f m de dar tempo, se
se pode dizer, para o grupo de Moiss, de se instalar em Cana e ao sucessor de
Ramss II, o fara Mineptah, que devia levar a ordem s fronteiras por ocasio
da morte de seu pai e expulsar os f lhos de Israel, como atesta uma estela do
ano V do seu reinado.
Dois argumentos podem ser opostos a esta hiptese:
a) A Bblia indica, no xodo (2:23), que o rei do Egito morreu durante a
permanncia de Moises no pas de Madi. Esse rei do Egito descrito no livro
do xodo como aquele que, por trabalho forado, fez construir pelos Hebreus
a: cidades de Ramss e de Piton; Ramss II. O xodo no pode ter acontecido
a no ser sob o sucessor deste ltimo. Mas R.P. de Vaux nos diz duvidar da
narrao bblica do Versculo 23 do Captulo 2 do Livro do xodo.
b) O que causa maior perplexidade que o Diretor da Escola Bblica de
Jerusalm, R.P. de Vaux, nem sequer menciona, na exposio de sua teoria do
xodo, duas passagens essenciais da Bblia: as duas atestam que o fara morreu
na perseguio aos retirantes, detalhe que torna incompatvel a ocorrncia do
xodo em outro momento a no ser no f m do seu-reinado.
Com efeito, no duvidoso, preciso repetir, que o fara ali perdeu
sua vida. Os Captulos 13-14 do Livro do xodo so formais sobre esse ponto:
O Fara fez atrelar seu carro e dirigiu seu exrcito. . . (14:6). O rei do Egito
se lanou em perseguio aos Israelitas, que estavam sob alta proteo (1a:8).
As guas ref uram e cobriram os carros e os cavaleiros de todo o exrcito do
fara, que tinha penetrado atrs deles no mar. No restou um sequer (1428-29).
Alm disso, o Salmo 136 de Davi conf rma a morte do fara, invocando Yahveh
que precipitou o fara com seu exrcito no mar dos canios (136:15).
Assim, durante a vida de Moises, um fara morreu quando ele estava no
pas de Madi, um outro morreu durante o xodo. No h um fara de Moiss,
h dois: o da opresso e o da fuga do Egito. A hiptese nica de Ramss II de
R.P. de Vaux no satisfatria, pois ela no explica tudo. As consideraes que
vm a seguir tero os argumentos suplementares a seu favor.
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
3 - Ramss II, fara da opresso - Mineptah, Fara do xodo.
P. Montet retomou muito oportunamente a tradio inicial alexandrina
79
,
mencionada por Maspero, que se encontra muito mais tarde na tradio islmi-
ca, assim como na tradio crist clssica
80
. Exposta no livro O Egito e a Bblia
81
,
essa teoria reforada por seus argumentos complementares particularmente
pelas contribuies da narrao alcornica, qual o clebre arquelogo no
fazia nenhuma aluso. Antes de examin-los, voltemos Bblia.
O Livro do xodo contm a meno palavra Ramss e, na Bblia, o
nome de uma das duas cidades citadas, como tendo sido construdas pelo tra-
balho forado dos Hebreus.
Sabemos hoje que essas duas cidades pertenciam regio do Tanis-
-Qantir, na parte oriental do delta do Nilo, l onde Ramss II fez construir sua
capital do Norte. Certamente havia nessa regio outras construes antes de
Ramss II, mas competia a ele ter feito dali um lugar importante. As escavaes
realizadas nesses ltimos decnios, trazem-lhe a prova formal: na sua construo,
ele fez trabalhar os Hebreus subjugados.
Ler a palavra Ramss na Bblia no fere o esprito de nossos dias: a
palavra tornou-se comum depois que Champollion - h um sculo e meio
- descobriu a chave dos hierglifos, precisamente estudando os caracteres es-
senciais que o exprimam. Estamos, portanto, atualmente, habituados a l-los e
pronunci-los, sabendo o que eles signif cam. Mas preciso ter em mente que
o sentido dos hierglifos foi perdido, aproximadamente, no sculo III da era
crist e que o nome de Ramss no tinha sido conservado, a no ser na Bblia e
em alguns livros gregos e latinos que lhe deformaram, mais ou menos, o nome:
assim que Tcito, nos seus Anais, fala de Rhamsis. A Bblia conservou-lhe exa-
tamente o nome: ela o cita quatro vezes no Pentateuco ou Tora (Gnesis 47:11;
xodo 1:11 e 12:37; Nmeros 33.3 e 33:5).
79 - No h dvida de que, na poca dos Ptolomeus, possuam-se em Alexandria, antes
das destruies da conquista romana, os documentos histricos sobre a anguidade que
hoje fazem cruel falta.
80 - Nas Histrias Santas do incio do sculo XX, como na do Abb H. Lesetre, desnadas
ao ensino religioso, o xodo mencionado como ocorrido enquanto Minept reinava no
Egito.
81 - Delachaux e Niestl, Neuchatel, 1959.
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Em hebreu, a Bblia registra a palavra Ramss de duas formas: R (e) mss
ou Remss
82
. Na edio grega da Bblia, chamada a Septuaginta, Rmess. A
Bblia latina (Vulgata) registra Ramesses. Na edio da Bblia Clementina em
francs (1 edio, 1621), a pilavra escrita do mesmo modo: Ramesses; essa edi-
o francesa circulava ainda por ocasio dos trabalhos de Champollion. No seu
Elementos do Sistema Hierglifo dos Antigos Egpcios (24 edio, 1828, p.276),
Champollion fala da ortograf a bblica da Palavra.
Assim a Bblia havia maravilhosamente conservado o nome de Ramss
nas verses em hebreu, em grego e em latim
83
.
Os dados acima permitem portanto, s por eles, estabelecer que:
a) O xodo no poderia ser concebido antes da Asceno ao poder, no
Egito, de Ramss;
b) Moiss nasceu sob o reino do construtor das cidades de Ramss e de
Piton; quer dizer, sob Ramss II;
c) Quando Moiss estava no pas de Madi, o fara reinante, isto , Ra-
mss II, morreu. A continuao da histria de Moiss se situa sob o reinado do
seu sucessor, quer dizer, de Mineptah.
Alm disso, a Bblia traz um outro elemento de extrema importncia
para situar o xodo na cronologia faranica: o registro de que Moiss tinha
80 anos quando empreendeu, sob a ordem de Deus, tentar obter do fara a
libertao de seus irmos: Moiss tinha idade de 80 ano e Aaro 83, quando
eles falaram ao fara (xodo 7:7). Ora, a Bblia nos ensina em outra parte (xo-
do 2:23) que o fara sob cujo reino Moiss nasceu, morreu quando Moiss
estava no pas de Madi, embora a narrao bblica continue sem mencionar
nenhuma mudana no nome do soberano. Essas duas passagens da Bblia impli-
cam que a soma da durao do reino dos dois faras, sob os quais Moiss viveu
no Egito, deve ser de, no mnimo, 80 anos.
Ora, sabemos que Ramss II reinou 67 anos (isto , de 1301 a 1235, segun-
do a cronologia de Drioton e Vaudier, ou de 1290 a 1224 segundo a de Rowton).
82 - A letra e, representado o ayin hebreu.
83 - curioso, alis, constatar, nas velhas Bblias, que os comentadores no compreendiam
rigorosamente nada do sentido da palavra. Por ex.: na edio francesa de 1621. na Bblia
Clementina, do essa interpretao da palavra Ramesses, o que constui uma ridcula
tolice: Esplendor da Vermina.
230
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Para Mineptah, seu sucessor, os egiptlogos no podem fornecer a durao
precisa do reinado. mas ele foi, pelo menos, de dez anos, pois o dcimo ano de
seu reinado atestado por documento, como o assinala R. P. de Vaux. Manethon
lhe d vinte anos de reinado. Drioton e Vaudier do, para Mineptah, duas possi-
bilidades: ou um reinado de dez anos, de 1234 a 1224, ou, conforme Rowton, um
reinado de vinte anos de 1224 a 1204. Os egiptlogos no sabem precisamente
como foi o f m do reinado de Mineptah: tudo que se sabe que, depois dele,
o Egito atravessou uma crise interna extremamente grave, durante cerca de um
quarto de sculo.
Mesmo que as cronologias dos reinados sejam imprecisas, no h duran-
te o Novo Imprio, outros perodos reinados sucessivos tenham podido atingir
ou ultrapassar 80 anos, como o perodo Ramss II - Mineptah. Os dados da
Bblia relativos idade de Moiss, quando ele empreende a libertao de seus
irmos, no pode, portanto, estar inserida seno na sucesso dos reinados de
Ramss II e de Mineptah. Tudo permite pensar, portanto, que Moiss nasceu no
incio do reinado de Ramss II e se encontrava ainda em Madi, quando esse
ltimo morreu aps 67 anos de reinado e foi, em seguida, junto a Mineptah,
f lho e sucessor de Ramss II, o advogado dos Hebreus do Egito. Esse episdio
pode ter ocorrido na segunda metade do reinado de Mineptah, se ele reinou
vinte anos, fato perfeitamente possvel e como pensa Rowton. Moiss; dirigiu
a sada do Egito no f m do reinado de Mineptah, em todo caso, pois o fara
perdeu sua vida perseguindo os Hebreus, retirando-se ao pas como o indicam
o Alcoro e a Bblia.
Este esquema concorda perfeitamente com o que as Escrituras relatam
sobre a primeira infncia de Moiss e de seu acolhimento pela famlia do fara.
Sabe-se, com efeito, que Ramss II tinha uma idade avanada no momento de
sua morte. Fala-se de 90 ou cem anos. Nessa hiptese, ele poderia ter 23 a 33
anos, no incio de seu reinado, que foi de 67 anos. Nessa idade, ele poderia
estar casado e no h contradio com a descoberta, por um membro da casa
do fara, segundo o Alcoro, de Moiss recm-nascido, margem do Nilo
e a interveno da mulher do fara junto quela pessoa, pedindo-lhe para o
conservar vivo. A Bblia pretende que uma f lha do fara que a teria encon-
trado. Ramss II, considerando-se a sua idade no incio de seu reinado, poderia
perfeitamente ter tido uma f lha que teria sido capaz de descobrir a criana
abandonada. Narrao alcornica e a narrao bblica no se contradiz e, por-
tanto, absolutamente, sobre essa questo.
A hiptese formulada aqui ser de maneira absoluta de acordo com o
Alcoro. Ela no ser, ao contrrio, em contradio, a no ser com uma s
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
passagem da Bblia, que , como vimos, no primeiro Versculo do Capitulo 6
do primeiro livro dos Reis (que, preciso sublinhar, no faz parte da Tora). Essa
passagem muito discutida e R.P. de Vaux rejeita o dado cronolgico desse livro
do Antigo Testamento, situando no tempo a sada do Egito em relao cons-
truo do templo de Salomo. Esse dado, que no merece crdito, impede que
se lhe atribua o valor de um argumento decisivo contra a teoria desenvolvida
aqui.
O PROBLEMA DA ESTELA DO ANO 5 DE MINEPTAH
Acreditou-se poder encontrar no texto da famosa estela do ano 5, de
Mineptah, uma objeo tese exposta sobre a sada do Egito como constituin-
do o ltimo ato do reinado desse fara.
Essa estela oferece um interesse extraordinrio, pois constitui o ltimo
documento hieroglf co conhecido onde a palavra Israel mencionada
84
. A
estela, que data da primeira parte do reino de Mineptah, foi descoberta em
Tebas no templo funerrio do fara. Ela menciona uma srie de vitrias que ele
obteve sobre os vizinhos do Egito e, em particular, no f m do documento, uma
vitria sobre Israel arrasada e que no tem sementes...
Sustentou-se, a partir desse dado, que a existncia da palavra Israel im-
plicava que os judeus deveriam estar instalados em Cana, no ano 5 de Minep-
tah, e que, por conseguinte, a sada dos hebreus do Egito j havia acontecido
naquele momento.
Essa objeo no parece aceitvel, pois ela implica que no poderia ter
havido judeus em Cana, enquanto os Hebreus estavam no Egito, o que insus-
tentvel. Todavia, partidrio da tese Ramss II, R.P. de Vaux escreveu no seu livro
Histria Antiga de Israel, a propsito da instalao em Cana: Para o Sul, a data
da instalao, na regio de Cades, de grupos aparentados aos Israelitas indeter-
minada e anterior ao xodo. Ele encara, portanto, a probabilidade da instalao
de alguns grupos sados do Egito em um outro momento e no naquele da
sada do grupo de Moiss. Os Apiru ou Habiru, que alguns identif cam com os
israelitas, j estavam na Sria-Palestina muito antes de Ramss II, portanto, bem
84 - A palavra seguida de um determinavo que no deixa dvida sobre a designao,
por esse vocabulrio, de uma colevidade humana.
232
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
antes do xodo: Amenophis II, sabe-se por um documento, trouxe prisioneiro
um grupo de 36.000 que ele empregou como trabalhadores forados no Egi-
to? So eles situados tambm em Cana sob Sethi I, onde fomentam conf itos
na regio de Beth-Shean: P. Montet lembra disso em seu livro O Egito e a Bblia.
Seria, portanto, muito plausvel que Mineptah fosse implacvel contra esses ele-
mentos em suas fronteiras, enquanto que, no interior do pas, se encontravam
sempre aqueles que, mais tarde, se agrupariam em torno de Moiss para deixar
o pas. A existncia da estela do ano 5 de Mineptah no contraria, portanto, de
modo algum, a hiptese feita aqui.
Alis, o aparecimento na histria do povo judeu da palavra Israel no
est absolutamente ligada instalao em Cana do grupo de Moiss. A origem
da palavra a seguinte:
Segundo o Gnesis (32:29), Israel o segundo nome que recebe Jac,
f lho de Isaac e neto de Abrao. Seu sentido, segundo s comentadores da
Traduo Ecumnica da Bblia Antigo Testamento (1975), provavelmente
que Deus se mostra forte. Depois de ter sido aplicado a um homem, nada de
surpreendente que venha a qualif car em seguida, em memria de um grande
ancestral, uma coletividade.
O nome de Israel surgiu, portanto, muito anterior a Moiss; quer dizer,
vrias centenas de anos antes dele. V-lo citado numa estela datando do reina-
do do fara Mineptah no deve causar espanto. Esta citao no constitui de
nenhuma maneira um argumento a favor de uma data do xodo de Moiss,
antes do ano 5 do fara Mineptah.
Com efeito, ao mencionar uma coletividade que ela denomina Is-
rael, a estela de Mineptah no pode fazer aluso a uma coletividade poltica
estabelecida, porque a inscrio data do f m do sculo XIII A.C. e o reinado de
Israel no ser formado a no ser no sculo X A.C. Ela evoca necessariamente
um conjunto humano mais modesto
85
.
Sabemos em nossos dias que um longo perodo de formao de 8 ou 9
sculos precedeu a entrada de Israel na Histria. Esse perodo foi marcado pela
instalao de numerosos grupos seminmades, os Amorites e os Arameus, e
pelo aparecimento, no seio de suas comunidades, de Patriarcas entre os quais
85 - Como faz notar R.P.B. Couroyer, professor da Escola Bblica de Jerusalm, em seus
comentrios da criao do Livro do xodo (Ed. do Cerf, 1968, p.I2), o nome de Israel
ali acompanhado do determinavo povo em lugar do determinavo pas, como os
outros nomes prprios da estela.
233
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
so encontrados Abrao e Jac-Israel. O segundo nome deste ltimo patriarca
serviu para designar o grupo inicial, ncleo o de uma futura entidade poltica
que aparecer bem depois do reinado de Mineptah, pois o reino de Israel durar
de 930 a721 A.C.
4 - A evoluo pelas Escrituras santas da morte do Fara.
A morte do Fara, por ocasio do xodo, constitui um ponto muito im-
portante nas narraes alcornica e bblica. Ela ressalta dos textos com a maior
evidencia. No que pertence Bblia, ela evocada no somente no pentateuco
ou Tora, mas, tambm, nos Salmos de Davi: as referncias foram dadas mais aci-
ma.
extremamente singular que os autores cristos passem-na em silncio.
assim que RP. de Vaux sustenta a tese, segundo a qual sada do Egito teria
tido lugar na primeira parte ou no meio do reinado de Ramss II, sem levar em
conta que o fara morreu na ao, o que, sob todas as hipteses, no permite
situar o acontecimento seno no f m do reinado. Na sua Historia Antiga de
Israel, o Diretor da Escola Bblica de Jerusalm no parece se preocupar com
qualquer tipo de contradio entre a tese que ele defende e os dados dos livros
da Bblia.
P. Montet, em seu livro O Egito e a Bblia, situa o xodo sob o reino de
Mineptah, mas no diz uma palavra sobre a morte do fara que comandou a
perseguio dos retirantes.
Essa chocante atitude contrasta com a dos judeus. O Salmo de Davi n
136, em seu Versculo 15, d graas a Deus que precipitou o fara e seu exr-
cito no mar Vermelho; isto sempre recitado na sua liturgia. Eles conhecem
a concordncia entre esses versculos e a frase do xodo (14:28-29): As aguas
ref uram, cobriram os carros e os cavaleiros de todo o exrcito do fara, que
havia penetrado atrs deles no mar: no restou um sequer. Para eles, no h
menor dvida de que o fara foi exterminado com suas tropas. Esses mesmos
textos existem tambm em Bblias crists.
Os comentadores cristos eliminam, de maneira deliberada e contra a
evidncia, a morte do fara. Mas, alm disso, h alguns que lembram a meno
que sobre o fato se faz no Alcoro, incitando seus leitores a fazerem singulares
234
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
aproximaes. Assim que se pode ler, na traduo da Bblia de Jerusalm
86
,
o seguinte comentrio de R.P. Couroyer, professor da referida Escola, sobre a
morte do fara:
O Alcoro (10:90-92) ali faz aluso e, segundo as tradies populares, o fara
submerso com seu exrcito (o que o texto sagrado
87
no diz) alojado no
fundo do mar e reina sobre os homens marinhos: as focas.
O leitor no informado do contedo do Alcoro estabelece, bvio,
uma relao entre uma af rmao alcornica contrria - para o comentador - ao
texto bblico, e a lenda ridcula emergente supostamente de tradies populares,
mencionadas no comentrio depois da referncia ao Alcoro.
A realidade do enunciado alcornico a esse respeito no tem nada a ver
com o que sugere esse autor: os Versculos 90-92 do Captulo 10 do Alcoro
informam, de fato, que os f lhos de Israel passaram o mar, enquanto que o fara
e suas tropas os perseguiam, e que ento, no momento de ser submerso, o
fara exclamou:
Creio agora que no h mais divindade alm de Deus em que creem os israelitas, e sou
um dos submissos. (E foi-lhe dito): Agora crs, ao passo que antes te havias rebelado e
eras um dos corruptores! Porm, hoje salvamos apenas o teu corpo, para que sirvas de
exemplo tua posteridade.
tudo o que contm esse captulo a propsito da morte do fara. Aqui,
como em outras partes do Alcoro, no se encontram fantasmagorias como as
colocadas pelo comentador bblico. O texto alcornico registra simplesmente,
de modo bem claro, que o corpo do fara ser salvo: Este o dado capital.
Da poca em que o Alcoro foi comunicado aos homens pelo Profeta,
at a era moderna, suspeitou-se, mais ou menos, de que todos os faras impli-
cados no xodo se encontravam nas tumbas da Necrpole de Tebas, do outro
lado do Nilo, em face de Luxor. Ora, nesse interim, ignorara-se tudo sobre a
realidade e no foi seno no f nal do Sculo XIX, que ali eles foram descober-
tos. Como est dito no Alcoro, o corpo do fara do xodo foi preservado
perfeitamente: no importa qual seja esse fara, em nossos dias ele est na Sala
das Mmias reais do Museu Egpcio do Cairo, acessvel contemplao dos
visitantes. A realidade , pois, muito diferente da risvel lenda falsamente ligada
ao Alcoro por R. P. Couroyer.
86 - 1968, p. 73, Les Edions du Cerf, Paris.
87 - No h dvida de que, para o autor do comentrio, trata-se aqui da Bblia.
235
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
5 - A Mmia do Fara Mineptah.
O corpo mumif cado de Mineptah, f lho de Ramss II, o qual tudo per-
mite pensar que o fara do xodo, foi descoberto em 1898 por Loret, em
Tebas, no Vale dos Reis. Ela foi de l transportada ao Cairo, onde Elliot Smith
retirou-se seus envoltrios em 8 de julho de 1907. Ele d, em seu livro As M-
mias Reais (1912) o protocolo dessa operao e do exame do corpo. O estado de
conservao da mmia era, na poca, satisfatrio apesar da decomposio-em
vrios lugares. Desde essa data, a mmia est exposta aos visitantes no Museu
do Cairo, cabea e pescoo descobertos, o resto do corpo dissimulado sob uma
espcie de tecidos, de modo que, at os ltimos meses, o museu no possua
fotograf as gerais tiradas do corpo da mmia, seno aquelas tiradas por E. Smith
em 1912.
Em julho de 1975, as altas autoridades egpcias quiseram por bem me
permitir examinar as partes do corpo do fara, at ento recobertas, e tirar
fotograf as. Quando se compara o estado atual ao estado da mmia h mais de
60 anos, torna-se evidente que nela se produziram danif caes e que alguns
fragmentos tinham desaparecido. Os tecidos mumifcados tinham sofrido mui-
to, de certo modo pelas mos dos homens, ou ento, se se pode assim dizer,
pela ao do tempo.
Esta danif cao natural perfeitamente explicada pela modif cao das
condies de conservao, desde que os homens descobriram a mmia no f m
do sculo XIX na tumba da Necrpole de Tebas, onde ela repousou durante
mais de trs mil anos. Atualmente exposta sob uma simples proteo de vidro
que no a separa hermeticamente do exterior e no impede a poluio de
microrganismos, sujeita a mudanas de temperatura e no protegida do al-
cance da umidade, a mmia est longe de se encontrar nas condies que lhe
permitiram atravessar aproximadamente trs milnios ao abrigo de todas essas
causas de deteriorao. Ela perdeu a proteo de seus envoltrios e a vantagem
da permanncia em meio fechado num tmulo onde a temperatura era mais
constante e o ar menos mido, o que no Se d no Cairo em certos perodos
do ano. Certamente, ela teve de sofrer, mesmo na necrpole, segundo toda ve-
rossimilhana muito antiga, a visita de ladres de tmulos ou de roedores que
causaram certos estragos, mas as condies eram relativamente - parece - mais
favorveis que hoje para resistir prova do tempo.
Durante esse exame da mmia em julho de 1975, investigaes particula-
res foram empreendidas por minha iniciativa. Um excelente estudo radiografado
foi efetuado pelos doutores El Meligy e Ramsiys, enquanto o doutor Mustaf
236
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Manialawiy efetuou, por uma perda de substncia ao nvel da parede do trax, o
exame do interior da caixa torcica e do abdmen, realizando a primeira endos-
copia aplicada a uma mmia. Pode-se, assim, ver e fotografar certos pormenores
muito importantes do interior do corpo, com o exame ao microscpio de
alguns pequenos fragmentos, cados espontaneamente do corpo da mmia, exa-
me que ser efetuado em Paris pelo professor Mignot e pelo doutor Durigon,
sendo completado um estudo mdico-legal geral efetuado com o professor
Ceccaldi. As concluses no podem - para grande pesar meu - ser tiradas no
momento em que se conclui a redao desta obra.
O que pode, imediatamente, ser retirado desse estudo a constatao de
leses sseas mltiplas com perdas importantes de substncia - o que em parte
teria sido mortal - sem que seja ainda possvel af rmar se algumas ocorreram an-
tes ou depois da morte do fara. Este deve ter, mais possivelmente, morrido por
afogamento, conforme as narraes das Escrituras, ou devido a traumatismos
muito violentos que procederam sua submerso no mar, ou ento, simultanea-
mente, devido a ambas as causas.
A associao de todas essas leses s deteriorizao, cujas causas foram
evocadas, torna problemtica para o futuro a boa conservao do corpo mumi-
f cado do fara, se medidas de salvaguarda e de restaurao no forem tomadas
imediatamente. Essas medidas deveriam evitar que o nico testemunho material
restante ainda em nossos dias da morte do fara do xodo e da salvao de seu
corpo determinada por Deus, desaparea num prazo mais ou menos f xo.
sempre desejvel que o homem se aplique em preservar os testemu-
nhos de sua histria, mas aqui se trata de qualquer coisa a mais: a materia-
lizao num corpo mumif cado daquele que conheceu Moiss, resistiu a suas
splicas, perseguiu-o em sua fuga e ali deixou sua vida, sendo, seus despojos,
salvos da destruio pela vontade de Deus, tornando-se uma advertncia para
os homens, como est escrito no Alcoro
88
.
Que ilustrao magnf ca dos versculos alcornicos referentes ao corpo
do fara oferecida, na Sala das Mmias Reais do Museu Egpcio do Cairo, para
quem pesquisa nos dados das descobertas modernas, as provas da veracidade
das Escrituras Santas!
88 - A Mmia de Ramss II, outra testemunha da histria de Moiss, foi objeto de um
estudo comparado com a mmia de Mineptah; foram recomendadas para ela idncas
medidas de preservao. Comuniquei os resultados desses estudos mdicos, realizados
no Cairo em 1975, a diversas sociedades de sbios franceses, entre os quais a Academia
Nacional de Medicina, na primeira parte do ano de 1976. O conhecimento desses resul-
tados levou as autoridades egpcias a conar a mmia de Ramss II Frana. Assim foi,
que ela chegou em Paris aos 26 de setembro de 1976 para ali passar por um tratamento.
237
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Alcoro, Hadiths e Cincia Moderna
O Alcoro no constitui a nica fonte da doutrina e da legislao do
Islam. Com efeito, mesmo durante a vida de Muhammad e depois de sua morte,
um complemento legislativo foi pesquisado no estudo dos atos e das palavras
do profeta.
Essas informaes ressaltam da tradio oral. Aqueles que tomaram a
iniciativa de reuni-las em textos dedicaram-se a levantamentos muito delicados,
pois que se tratava de escrever aps os acontecimentos uma narrao deles.
Mas o cuidado da exatido, que eles podiam ter em sua rdua tarefa de coleta
das informaes, ilustrado pelo fato de que, para cada episdio da vida do
Profeta e para cada um de seus preceitos, so mencionados nas coletneas,
honestamente, os nomes daqueles que relataram a narrao, remontando at
quem, no seio da famlia ou entre os companheiros de Muhammad, recolheu a
primeira informao.
Uma multiplicidade de narraes, atos e discursos do Profeta veio assim
luz sob o nome de Hadiths. Seu sentido exato conceito mas o uso fez com
que o termo englobe igualmente a narrao dos atos.
As primeiras coletneas foram publicadas nos decnios que decorreram
aps a morte de Muhammad. As que surgiram, no primeiro sculo depois dele,
so relativamente restritas ao ponto de vista do alcance dos fatos relatados. Foi
preciso esperar um pouco mais de dois sculos aps a morte do Profeta, para
que aparecessem as compilaes mais importantes. Frisemos, por consequncia,
que no so as obras mais prximas do tempo de Muhammad que parecem
dai as informaes mais completas. So as compilaes de Al Bukhari e de
Muslim, datando de mais de duas centenas de anos depois de Muhammad,
que do a documentao mais vasta e mais verdica, sendo a obra do primeiro
autor citado geralmente considerada como a mais autntica depois do Alcoro.
Houdas e Maraii deram entre 1903 e 1914 uma traduo francesa sob o ttulo
As Tradies Islmicas. Nestes ltimos anos, uma publicao foi feita em rabe,
com traduo inglesa, pelo doutor Muhammad Mushin Khan, da Universidade
Islmica de Medina. Os Hadiths so, portanto, acessveis a quem no conhece a
lngua rabe. Mas preciso sei extremamente cauteloso sobre o valor de certas
tradues efetuadas pr-ocidentais, inclusive, nesse caso, a traduo francesa,
porque pode-se nelas constatar certas inexatides e inverdades decorrentes
mais das interpretaes do que das verdadeiras tradues; s vezes elas alteram
238
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
consideravelmente o sentido real do Hadith, a ponto de faz-lo expressar o que
ele no signif ca.
Do ponto de vista de sua origem, pode-se legitimamente comparar as
compilaes de Hadiths aos Evangelhos. Uns e outros tm como carter co-
mum haverem sido redigidos por autores, que no foram testemunhas oculares
dos fatos que narraram, e de terem vindo luz algum tempo aps os aconteci-
mentos que eles relatam. Como os Evangelhos, as compilaes dos Hadiths no
foram todas aceitas como autnticas. Somente, um pequeno nmero merece a
quase unanimidade dos especialistas da tradio muulmana e, numa mesma
compilao, podemos encontrar, ao lado dos Hadiths admitidos como autnti-
cos, os Hadiths duvidosos ou os Hadiths formalmente rejeitveis.
Diferentes dos Evangelhos cannicos que no foram contestados, as
compilaes do Hadiths, mesmo aqueles considerados como particularmente
dignos de serem olhados como autnticos, so objeto - e isso muito cedo na
histria do Islam - de uma crtica aprofundada por parte dos mestres do pen-
samento islmico, ao passo que o livro-base, o Alcoro, permanecia o livro de
referncia, que no podia ser discutido.
Pareceu-me interessante, pesquisar nessa literatura dos Hadiths como,
fora da Revelao escrita, a Muhammad atribui-se ter falado de assuntos que
os progressos cientf cos revelaram, nos sculos que lhe so posteriores. Eu me
limitei, estritamente, nessa pesquisa, aos textos dos Hadiths que consideramos,
geralmente, como os mais autnticos, como os de Al Bukhari, tendo sempre em
mente a noo de que, redigidos por homens segundo os dados da tradio
oral, eles podiam relatar mais ou menos exatamente alguns fatos, em vista dos
erros daqueles que transmitem individualmente a narrao. Estes se separam
dos outros, Hadiths, cuja transmisso obra de uma maioria e cuja autenticida-
de formal
89
.
Eu aproximo as constataes feitas ao longo do exame dos Hadiths da-
quelas anteriormente expostas, concernentes ao Alcoro e Cincia Moderna.
O resultado dessa comparao muito eloquente. A diferena , com efeito,
frisante entre a exatido dos dados alcornicos, confrontados com os da cin-
cia moderna, e o carter eminentemente criticvel de algumas af rmaes dos
Hadiths sobre os assuntos, que ressaltam essencialmente do domnio cientf co,
os nicos que so objeto deste estudo.
89 - Os especialistas muulmanos qualicam os primeiros de Znniyy e, os segundos, de
Qa Teiy.
239
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Os Hadiths, que tm por objeto a interpretao de alguns versculos
alcornicos, provocam s vezes comentrios que no podem absolutamente ser
aceitos em nossos dias.
De um versculo (Cap. 36, Vers. 38) que menciona que o sol se dirige
para um lugar determinado, e cuja signif cao vimos mais acima, um Hadith
d esta interpretao: No pr do sol, o astro vem se prosternar sob o trono
de Deus; ele pede permisso para retomar seu curso, se prosterna de novo;
f nalmente retoma para l de onde ele veio e se levanta de novo a leste. O texto
original (Livro do Comeo da Criao, Ttulo 54, Cap.4, n 421) obscuro e di-
f cilmente traduzvel. De qualquer maneira, essa passagem contm uma alegoria
que implica a noo de um percurso do sol em relao terra: a cincia mos-
trou a realidade do contrrio. Esse Hadith se apresenta com uma autenticidade
mais do que duvidosa (Zanniyy).
Uma outra passagem desse mesmo Livro (Livro do Comeo da Criao,
Ttulo 54. Cap. 6, n 430), avalia mui bizarramente, no tempo, as fases iniciais
do desenvolvimento do embrio: uma fase de quarenta dias de reunio dos
elementos constitutivos do ser humano, uma fase de mesma durao em que o
embrio representado por qualquer coisa que se agarra, uma terceira de mes-
ma durao em que o embrio representado pela carne amorfa. Em seguida,
depois da interveno dos anjos para def nir o que ser o futuro desse ser, uma
alma insuf ada. A descrio do desenvolvimento embrionrio no conforme
os dados modernos.
Enquanto o Alcoro - parte uma s observao (cap. 16, vers. 69) sobre
a possibilidade de encontrar no mel o agente teraputico (sem alis nenhuma
espcie de indicao) - no d sobre a arte de curar, rigorosamente nenhuma
orientao prtica, os Hadiths reservam um grande espao a tais assuntos.
Existe toda uma parte da compilao de Al Bukhari (Ttuio 76) consagrada
medicina. Ocupa, na traduo de Houdas e Marais, as pginas 62-91 do volume
4 e, no livro do doutor Muhammad Mushin Khan, com a traduo inglesa, as
pginas 395-452 do volume 7. Estas pginas contm, fora de dvida, certos
Hadiths no autnticos (Zanniyy), mas o conjunto interessa porque fornece
um apanhado sobre as opinies, que na poca se poderia ter sobre os diversos
assuntos medicinais. A eles poder-se-iam juntar alguns Hadiths referentes
medicina, inseridos em outras partes da compilao de Al Bukhari.
E assim que ali se descobrem consideraes sobre os malefcios, o mau-
-olhado, o enfeitiamento e a possibilidade de exorcizar, assim como uma certa
restrio formulada contra o uso remunerado do Alcoro para esse f m. Um
240
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Hadith acentua que certas tmaras podem proteger contra os efeitos da magia
e a que a magia pode ser utilizada contra as picadas venenosas.
Entretanto, no de causar admirao, constatar que uma poca em
que as possibilidades da tcnica e da farmacopeia eram reduzidas, se tenha
recomendado recorrer prtica simples ou a medicamentaes naturais, tais
como a sangria, as ventosas escarif cadas, a cauterizao, a depilao contra os
piolhos, utilizao do leite do camelo, de certos gros como a nigela, de certas
plantas como o costus indiano, assim como cinza de cabelo (por suas virtudes
hemostticas); era preciso, em circunstncias crticas, utilizar todos os meios de
que se podia dispor e que podiam ser, realmente, ef cazes. Mas no parece - a
priori - excelente recomendar beber urina de camelo.
Admite-se, dif cilmente, em nossos dias, certas explicaes sobre alguns
assuntos concernentes patologia. Entre elas destaquemos, as seguintes:
- a origem da febre: quatro testemunhos autentif cam a af rmao segun-
do a qual a febre provm do braseiro do inferno (Livro da Medicina, Cap.28);
- a existncia de um remdio para todas as doenas: Deus fez provir uma
doena sem ter feito ao mesmo tempo, provir um remdio (Livro da Medicina,
Cap. 1). A ilustrao dessa concepo dada pelo Hadith da mosca (Livro da
Medicina, cap. 58 e o Livro do Comeo da Criao, Tt. 54, Caps. 15-16): se uma
mosca cai num recipiente, preciso ali afund-la inteiramente, porque uma de
suas asas contm o veneno e a outra o seu antdoto;(a mosca) traz primeiro o
veneno e a seguir o remdio.
- o aborto provocado pela viso de certa serpente (que tambm cega):
meno feita no Livro do Comeo da Criao, Caps. 13-14;
- as perdas de sangue fora das regras. O Livro das Menstruaes, Tt.
6, contm, dois Hadiths sobre a origem das perdas de sangue fora das regras
(Caps. 21 e 28). Eles fazem referncia a dois casos de mulheres: na explicao do
primeiro caso, sem nenhum pormenor sobre os sintomas, est af rmado que a
perda de sangue decorre de um vaso sanguneo (eirq); no outro caso, trata-se
de uma mulher apresentando perda de sangue fora das regras durante sete anos:
aqui tambm a mesma origem vascular af rmada. Poder-se-ia perfeitamente
levantar hipteses sobre a causa real dos incmodos, mas com dif culdade que
imaginamos sobre que argumento se poderia naquela poca apoiar tal diagns-
tico; no obstante, teria podido ser exato;
- a ausncia de contaminao das doenas. A compilao dos Hadiths de
241
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Al Bukhari a menciona em vrios lugares (Caps. 19, 25, 30, 31, 53 e 54, do Livro
da Medicina, Tt. 76) a propsito de casos particulares, tais como a lepra, a pes-
te, a clera, a sarna do camelo ou ainda sob o ponto de vista geral. Mas, essas
consideraes acarretam af rmaes contraditrias: com efeito, recomenda-se
no ir 1 onde h a peste e expulsar os leprosos.
Em consequncia, pode-se concluir pela existncia de certos Hadiths
cientif camente inadmissveis, mas deixando de lado a dvida sobre sua autenti-
cidade, o interesse de sua meno reside somente na comparao que eles sus-
citam com os enunciados cientf cos do Alcoro, os quais no contm nenhuma
af rmao inexata. Esta constatao parece ter uma importncia considervel.
preciso, com efeito, lembrar-se que, por ocasio da morte do Profeta,
os ensinamentos recebidos dele se dividiam em dois grupos:
- de um lado, um nmero importante de f is conheciam de cor o Al-
coro, que eles tinham, como o Profeta, recitado muitas e muitas vezes; alis, j
existiam transcries do texto alcornico, efetuadas durante a vida do Profeta,
e isso mesmo antes da Hgira (Hgira se situa em 622, isto dez anos antes da
morte de Muhammad.);
- do outro lado, os membros mais prximos de seus companheiros e os
f is, que tinham sido testemunhas de seus atos e de suas palavras, conservaram-
-nos em sua lembrana e sobre eles se apoiaram, alm do Alcoro, para def nir
uma doutrina e uma legislao nascentes.
Nos anos que vo seguir a morte do Profeta, os textos vo ser elabo-
rados, relatando os dois grupos de ensinamentos que ele tinha deixado. As
primeiras compilaes de Hadiths viro luz uma quarentena de anos depois
da Hgira, mas j se tinha efetuado, anteriormente, uma primeira coleo dos
textos alcornicos sob os califas Abu Bakr e, sobretudo, Uthman, tendo este
ltimo publicado um texto def nitivo durante seu califado, quer dizer, entre os
12 e os 24 anos que decorreram aps a morte de Muhammad.
O importante a sublinhar , a dissemelhana entre essas duas categorias
de textos, simultaneamente sob o ponto de vista literrio e sob o ponto de
vista do contedo. Com efeito, toda comparao entre o estilo do Alcoro e
o estilo dos Hadiths ser impossvel. Alm disso, se compararmos o contedo
dos dois textos e os confrontarmos com os dados da cincia moderna, f camos
impressionados pelas oposies, cuja existncia pretendo ter conseguido de-
monstrar, entre:
242
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
- de um lado, as af rmaes em aparncias muitas vezes banais e do Alco-
ro mas que, examinadas luz dos conhecimentos modernos, encerram dados
que a cincia objetivar mais tarde;
- do outro lado, alguns enunciados de Hadiths, que parecem absoluta-
mente conforme o esprito de seu tempo, mas que contm af rmaes julgadas
hoje cientif camente inaceitveis. Essas af rmaes se insinuaram num conjunto
de enunciados da doutrina e da legislao do Islam, sobre os quais se est de
acordo em reconhecer a autenticidade considerando-os fora de discusso.
E preciso saber, enf m, que a prpria atitude de Muhammad foi bem
diferente perante o Alcoro e perante os seus propsitos pessoais. O Alcoro,
que constitua sua predicao, era proclamado por ele Revelao Divina. O Pro-
feta ordenou-lhe as partes durante um perodo de aproximadamente vinte anos
com o maior cuidado, como vimos. O Alcoro representava o que deveria ser
escrito durante a sua vida e aprendido de cor para fazer parte da liturgia das
preces. Para os Hadiths, que so apresentados como fornecedores, em princpio,
de suas ref exes pessoais e de seus atos, ele deixou aos outros o cuidado de
neles se inspirar para sua conduta e public-los como os entendessem. Ele no
deu nenhuma diretriz a esse respeito.
Uma vez que apenas um nmero restrito desses Hadiths pode ser con-
siderado como expressando, com certeza, o pensamento do Profeta, os outros
expressam o que poderiam crer os homens de seu tempo, em particular so-
bre os assuntos cientf cos evocados aqui. Comparando-os ao texto alcornico,
mede-se tudo que separa este ltimo desses Hadiths inautnticos ou duvidosos.
Esta comparao traz luz, de sobejo, a diferena surpreendente entre esses
escritos de circunstncia, repletos de enunciados errneos de ordem cientf ca,
e o Alcoro, Livro do Revelao escrita, isento de qualquer inexatido desta
ordem
90
.
90 - A verdade dos Hadiths, sob o ponto de vista religioso, no est absolutamente em
causa. Mas, quando estes tratam de questes profanas, no h diferena a estabelecer
entre o Profeta e os outros humanos. Um Hadith relata a seguinte declarao do Profeta
Muhammad; Quando eu vos dirijo alguns mandamentos em relao Religio, obede-
ceis, e se eu vos prescrevo qualquer coisa que decorra de minha opinio pessoal, lembrai-
-vos que eu sou um ser humano. Al Sataksi em seus princpios (Al Usuul) transmiu
esta tomada de posio nestes termos: Quando eu vos parcipo qualquer coisa relava
vossa Religio, agi em conformidade com minha declarao, e quando se trata de coisas
concernentes a este mundo, ento sois os melhores conhecedores de vossos prprios
negcios terrestre!
243
CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
CONCLUSES GERAIS
Ao trmino deste estudo, parece com evidncia que a opinio mantida
em nossos pases sobre os textos das Escrituras Santas, que hoje possumos,
no corresponde muito realidade. Vimos em que condies, em que poca
e de que maneira os elementos que constituram o Antigo Testamento, os
Evangelhos e o Alcoro foram compilados e transcritos; tendo as circunstn-
cias, que precederam ao nascimento das Escrituras das trs Revelaes, diferido
enormemente para cada uma delas consequncias extremamente importantes
resultaram disso, no que pertence autenticidade dos textos e em alguns as-
pectos de seu contedo.
O Antigo Testamento representa uma soma de obras literrias, produzi-
das ao longo de nove sculos aproximadamente. Ele forma um mosaico extre-
mamente disparatado, cujos elementos foram ao longo das idades modif cados
pelos homens, peas que vieram juntar-se quelas j existentes, de forma que,
em nossos dias, identif car as provenincias , s vezes, muito difcil.
Os Evangelhos tiveram por f m, dar a conhecer aos homens, mediante
a narrao dos atos e das palavras de Jesus, o ensinamento que Ele lhes queria
deixar, ento, para cumprimento de sua misso terrestre. O mal que eles no
tiveram testemunhas oculares dos fatos que eles relatam. So simplesmente a
expresso, por seus porta-vozes, do que as diversas comunidades judeu-crists
conservaram de informaes sobre a vida pblica de Jesus, sob forma de tra-
dies orais ou escritas, hoje desaparecidas, que foram intermedirias entre a
tradio oral e os textos def nitivos.
sob essa luz que devemos olhar atualmente as Escrituras judeu-crists
e se quisermos ser objetivos - preciso abandonar as concepes exegticas
clssicas.
A multiplicidade das fontes tem como resultante inevitvel as contradi-
es e as oposies, das quais apresentamos muitos exemplos. Os autores dos
Evangelhos tiveram, a respeito de Jesus, as mesmas tendncias para enaltecer
certos fatos, como os autores da literatura pica da Idade Mdia francesa com
as canes de gesta, resultando que os acontecimentos so apresentados com
um destaque particular, em cada um dos narradores, e a autenticidade dos fatos
relatados se revela, em muitos casos, extremamente duvidosa. Nessas condies,
alguns enunciados das Escrituras judeu-crists, que podem ter alguma relao
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
com os conhecimentos modernos, devem sempre ser examinados com a reserva
que se impe pelo aspecto discutvel de sua autenticidade.
Contradies, incertezas, oposies com os dados da cincia moderna se
explicam perfeitamente em funo de tudo o que precede. Mas, a perplexidade
dos cristos grande, quando percebem o quanto foi profundo e continuo o
esforo empreendido at agora por muitos comentadores of ciais para camuf ar,
sob hbeis acrobacias dialticas, centradas num lirismo apologtico, o que vem
tona pelos modernos estudos. Damos, a propsito notadamente das genealogias
de Jesus, dos Evangelhos de Mateus e de Lucas, contraditrios e cientif camente
inaceitveis, os exemplos perfeitamente indicados desse estado de esprito. O
Evangelho de Joo chamou, particularmente, a ateno por suas divergncias
muito importantes com os trs outros Evangelhos e, especialmente, a respeito
da lacuna em geral mal conhecida referente instituio da Eucaristia.
A Revelao Alcornica tem uma histria fundamentalmente diferente
das duas primeiras. Estruturando-se no decorrer de uns vinte anos, sempre
comunicada ao Profeta pelo Arcanjo Gabriel, foi aprendida de cor pelos f is e,
ao mesmo tempo, f xada por escrito ainda em vida de Muhammad. As ltimas
recenses do Alcoro, que sero feitas depois de 12 a 24 anos da morte do
Profeta, sob o califado de Uthman, foram benef ciadas pelo controle exercido
por aqueles que j sabiam o texto de cor, tendo-o recebido no exato tempo da
Revelao, e o recitado constantemente em seguida. E sabemos que o texto foi,
a partir da, conservado de maneira rigorosa. O Alcoro no coloca o problema
da autenticidade.
Tomando em seguida as duas Revelaes que a haviam precedido, a
Revelao Alcornica no somente isenta das contradies dos relatos dos
Evangelhos, que trazem as diversas marcas de injunes humanas, mas ela tam-
bm oferece a quem empreende o seu exame, objetivamente, luz da cincia, o
carter que lhe prprio duma concordncia perfeita com os dados cientf cos
modernos. De mais a mais, descobrem-se nelas, como foi demonstrado, enun-
ciados de ordem cientf ca, dos quais inconcebvel que um homem na poca
de Muhammad tivesse podido ser o autor. Assim os conhecimentos cientf cos
modernos permitem compreender certos versculos alcornicos, at o presente
no interpretveis.
A comparao de diversas narraes da Bblia com as narraes sobre os
mesmos temas do Alcoro revela diferenas fundamentais entre as af rmaes
bblicas cientif camente inaceitveis e os enunciados alcornicos em perfeita
concordncia com os dados modernos: como vimos, para a Criao e para o
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CENTRO DE DIVULGAO DO ISLAM PARA AMRICA LATINA
Dilvio, por exemplo. Enquanto que, para a histria do xodo de Moiss, en-
contrava-se no texto alcornico um complemento precioso narrao bblica,
harmonizando-se o conjunto mui felizmente com os dados da Arqueologia para
situar no tempo a poca de Moiss, j as diferenas muito importantes entre o
Alcoro e a Bblia para outros assuntos se inscreviam, ao encontro de tudo o
que se pde sustentar - sem o mnimo de provas - sobre uma pretendida cpia
da Bblia por Muhammad para elaborar o texto do Alcoro.
Enf m, o exame comparativo, de um lado das af rmaes pertinentes
cincia, reencontradas nas compilaes de Hadiths, conceitos atribudos a
Muhammad, no mais das vezes de autenticidade duvidosa - ref etindo no obs-
tante as crenas da poca - e de outro lado dos dados alcornicos da mesma
ordem, pe em evidncia a dissemelhana que permite descartar uma comuni-
dade de origem.
No se pode conceber que muitos enunciados alcornicos, que tm
um aspecto cientf co, foram obra de um homem em vista do estado dos
conhecimentos na poca de Muhammad. Assim, perfeitamente legtimo no
apenas considerar o Alcoro como a expresso duma Revelao, mas, tambm,
dar Revelao Alcornica um lugar absolutamente parte, em razo do aval
de autenticidade a que ela oferece, e da presena de enunciados cientf cos que,
examinados em nossa poca, se apresentam como um desaf o explicao hu-
mana.

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