2012 IvoTeixeiraGicoJunior
2012 IvoTeixeiraGicoJunior
2012 IvoTeixeiraGicoJunior
Tese de Doutorado
A TRAGDIA DO JUDICIRIO:
subinvestimento em capital jurdico e sobreutilizao do Judicirio
Candidato: Ivo Teixeira Gico Junior
rea de Concentrao: Economia Poltica
Professor Orientador: Bernardo Pinheiro Machado Mueller, Ph.D.
Departamento de Economia
Universidade de Braslia UnB
Braslia 2012
II
I
Programa de Ps-Graduao em Economia
A TRAGDIA DO JUDICIRIO:
subinvestimento em capital jurdico e sobreutilizao do Judicirio
Tese de doutorado apresentada ao Departa-
mento de Economia da Faculdade de Econo-
mia, Administrao, Contabilidade e Cincia
da Informao e Documentao da Universi-
dade de Braslia como requisito parcial para a
obteno do grau de Doutor em Economia
Poltica.
Braslia 2012
II
2012 Ivo Teixeira Gico Jr. Todos os direitos reservados.
proibida a reproduo, cpia ou distribuio sem prvia autorizao do autor ou da
Universidade de Braslia, nos termos da Cesso de Direitos.
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Braslia.
Acervo 1004904.
Gico Junior, Ivo Teixeira.
G452t A Tragdia do Judicirio: subinvestimento em capital jurdico e sobreu-
tilizao do Judicirio / Ivo Teixeira Gico Junior. 2012
xvi, 146 f. : il. ; 30 cm.
Tese (doutorado) Universidade de Braslia, Faculdade de Economia,
Administrao, Contabilidade e Cincia da Informao e Documentao. De-
partamento de Economia, Programa de Ps-Graduao em Economia, 2012.
Inclui bibliografia.
1. Direito e economia. 2. Poder Judicirio Investimentos Capital (Eco-
nomia). 3. Processo civil. 4. Garantia (Direito).
I. Mueller, Bernardo. II. Ttulo.
CDU 342
REFERNCIA BIBLIOGRFICA
GICO JUNIOR, Ivo Teixeira, 2012. A Tragdia do Judicirio: subinvestimento em ca-
pital jurdico e sobreutilizao do Judicirio. Tese de Doutorado, publicao 002/2012,
Departamento de Economia, Programa de Ps-Graduao em Economia, Universidade
de Braslia, Braslia, DF, 146 p.
III
A Tragdia do Judicirio:
subinvestimento em capital jurdico e sobreutilizao do Judicirio
Autor: Ivo Teixeira Gico Junior
Orientador: Orientador: Bernardo Pinheiro Machado Mueller, Ph.D.
Tese de doutorado submetida Universidade de Braslia, Faculdade de Economia, Ad-
ministrao, Contabilidade e Cincia da Informao e Documentao / Departamento de
Economia, como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Economia Po-
ltica.
APROVADA POR:
Bernardo Pinheiro Machado Mueller, Ph.D. (University of Illinois/Urbana)
Universidade de Braslia / Departamento de Economia
Orientador
Mauricio Soares Bugarin, Ph.D. (University of Illinois/Urbana)
Universidade de Braslia / Departamento de Economia
Paulo Du Pin Calmon, Ph.D. (Univesity of Texas/Austin)
Universidade de Braslia / Departamento de Instituto de Cincia Poltica
Csar Costa Alves de Mattos, Ph.D. (Universidade de Braslia)
Cmara dos Deputados / Consultoria Legislativa
Giacomo Balbinotto Neto, Ph.D. (Universidade de So Paulo)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul / Departamento de Economia
Defesa de tese realizada perante a banca examinadora acima designada em Braslia-DF,
22 de outubro de 2012.
IV
CESSO DE DIREITOS
NOME DO AUTOR: Ivo Teixeira Gico Junior
TTULO DA TESE DE DOUTORADO: A Tragdia do Judicirio: subinvestimento
em capital jurdico e sobreutilizao do Judicirio
GRAU: Doutor em Economia
ANO: 2012
concedida Universidade de Braslia permisso no exclusiva para reproduzir cpias
desta tese de doutorado e para emprestar ou vender tais cpias em papel ou formato
eletrnico somente para propsitos acadmicos e cientficos, desde que citado o Autor.
O Autor reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte desta tese de doutorado
pode ser reproduzida sem autorizao por escrito do Autor.
______________________________
IVO TEIXEIRA GICO JUNIOR
SRTVS, Qd. 701, Bl. O, n 100,
Ed. Centro Multiempresarial, Sala 564
CEP 70340-000 Braslia DF Brasil.
V
Aos meus filhos maravilhosos, que nasceram durante o doutorado,
Ivo Neto, que j sabe contar at 20 e o conceito de direito de propriedade,
Sofia Gico, que j sabe contar at 10 e a necessidade de um juiz independente, e
Por quem todo esforo de melhorar o amanh meritrio.
[Papai j pode brincar no domingo!]
VI
VII
Quem quer manter a ordem? Quem quer criar desordem?
No sei se existe mais justia, nem quando pelas prprias mos.
[...]
seu dever manter a ordem, seu dever de cidado,
Mas o que criar desordem, quem que diz o que ou no?
Marcelo Fromer / Srgio Britto / Charles Gavin, Desordem
(Jesus No Tem Dentes no Pas dos Banguelas, 1987)
VIII
IX
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas contriburam direta ou indiretamente para o presente tra-
balho. Provavelmente estou esquecendo algum, mas h algumas pessoas s quais no
poderia deixar de agradecer expressamente. Comeo agradecendo ao Prof. Bernardo
Mueller (ECO/UnB), por ter aceitado me orientar em um tema que, em princpio, pode-
ria parecer extico a outros economistas. Passados alguns anos, ainda no sei se o meio
sorriso com o qual aceitou o convite foi de satisfao, de vamos ver o que vai sair dis-
so... ou ambos. Aos Prof.s Joaquim Andrade e Roberto Ellery Jr. (ECO/UnB), o pri-
meiro por ter falado a verdade e dito que isso no era para mim e o segundo por no ter
falado a verdade dito que seria fcil, uma vez que eu j sabia o direito e s precisava
aprender a matemtica. Talvez no tivesse entrado ou terminado o doutorado sem estes
incentivos. Ao meu amigo Csar Mattos, que sempre me incentivou, desde que a tese
no fosse s jab. Aos Prof.s Rui Seimetz, Lineu da Costa Arajo Neto e Tnia Schmitt
(MAT/UnB) por terem me iniciado no fantstico mundo do clculo, lgebra linear, pro-
babilidade e otimizao, sempre me acordando com gentileza quando cochilava nos
pores do Departamento de Matemtica. Ao Prof. Ricardo Arajo (ECO/UnB), por ter
ensinado com muita pacincia anlise matemtica a um jurista e ao Prof. Joanlio
Teixeira (ECO/UnB), que sempre aceitou de bom grado discutir ideias, ainda que dia-
metralmente opostas s suas. Ao Prof. Jos Guilherme de Lara Resende (ECO/UnB),
por ter me mostrado a beleza da microeconomia e tudo que no sei, sem jamais ter re-
clamado de minha insistncia em frisar: dada a disponibilidade de pagar. A Paulo
Maurcio Siqueira e Sandra Dino, por no terem desistido da sociedade, mesmo quando
comecei a sumir de manh, tarde e noite para demonstrar teoremas, nem quando
frmulas comearam a aparecer em contratos sociais e pensei em substituir juros pro
rata por uma integral. Prometo que nossos clientes no vo mais encontrar paredes com
demonstraes matemticas, talvez s na mesa... Aos meus amigos da Associao Bra-
sileira de Direito e Economia ABDE que, por anos, esperaram ansiosamente o dia em
que eu ia desistir dessa loucura e, quando perceberam que talvez eu fosse aguentar, su-
portaram, sempre sorrindo, conversas sobre a Tragdia do Judicirio na praia, no bar, no
restaurante, em palestras etc., sempre dizendo: ok, agora escreve. Pronto, escrevi. A
todos, muito obrigado!
IG
X
RESUMO
Esta tese explora o subinvestimento em capital jurdico como uma explicao para o
problema de congestionamento dos tribunais brasileiros. A anlise indica que os magis-
trados brasileiros no possuem incentivos e mecanismos suficientes para investir em
capital jurdico e uniformizar regras jurdicas. A insegurana jurdica resultante, com-
binada com o livre acesso ao servio publico adjudicatrio constitucionalmente garan-
tindo, gera incentivos para a sobreutilizao dos tribunais, resultando no problema en-
dmico de congestionamento, a Tragdia do Judicirio. O congestionamento atrai liti-
gantes que desejam postergar suas obrigaes pelo sistema judicial, enquanto litigantes
legtimos so excludos, um problema trgico de seleo adversa.
Palavras-Chave: Judicirio, Morosidade, Capital Jurdico, Ciclo da Litigncia, Trag-
dia do Judicirio.
JEL: K40; K41; K49.
ABSTRACT
This thesis explores judicial underinvestment in legal capital as an explanation for the
court congestion problem in Brazil. The analysis indicates that Brazilian judges do not
have enough incentives and mechanisms to invest in legal capital and to unify legal
rules. The resulting legal uncertainty, combined with constitutionally granted free ac-
cess to public adjudicatory services, generate incentives for the overexploitation of
courts, hence, the endemic problem of court congestion, the Tragedy of Judiciary.
Court congestion attracts litigation to stall legal obligations while excluding legitimate
claims, a tragic adverse selection problem.
Keywords: Judiciary; Congestion; Legal Capital; Litigation Cycle; Tragedy of Judici-
ary.
JEL: K40; K41; K49.
XI
Sumrio
Lista de Siglas e Smbolos ........................................................................................... XII
ndice de Figuras e Tabelas ........................................................................................ XV
1 Introduo ............................................................................................................... 1
2 Capital Jurdico e o Ciclo da Litigncia ............................................................... 5
2.1 A Abordagem Neoinstitucionalista e a Relevncia Econmica do Direito ....... 6
2.2 A Funo Econmica do Judicirio ................................................................. 12
2.3 A Depreciao do Capital Jurdico e o Ciclo da Litigncia ............................. 21
2.3.1 A Aplicao e a Criao de Regras Jurdicas pelo Judicirio no Brasil ... 21
2.3.2 O Ordenamento Jurdico como um Bem de Capital ................................. 26
2.3.3 O Ciclo da Litigncia ................................................................................ 33
2.4 Ciclo Real de Litigncia Agregada: uma conjectura ....................................... 40
2.5 Concluses do Captulo ................................................................................... 43
3 Anarquismo Judicial e a Depreciao do Capital Jurdico .............................. 45
3.1 A Funo de Produo do Capital Jurdico e os Magistrados ......................... 45
3.2 A Estrutura Hierrquica do Judicirio Brasileiro ............................................ 52
3.3 Modelos de Comportamento Judicial: parceiros ou adversrios? ................... 57
3.3.1 A Formao de Capital Jurdico como um Problema Agente-Principal .. 60
3.3.2 A Formao de Capital Jurdico como um Problema de Time................. 74
3.4 Concluses do Captulo ................................................................................... 84
4 Subinvestimento em Capital Jurdico e Sobreutilizao do Judicirio ........... 88
4.1 A Crise (ou Sobreutilizao) do Judicirio ...................................................... 88
4.2 A Tragdia dos Comuns .................................................................................. 96
4.2.1 O Problema dos Recursos Comuns .......................................................... 96
4.3 Uniformizao de Conceitos Bsicos .............................................................. 99
4.4 A Tragdia do Judicirio ................................................................................ 107
4.4.1 O Judicirio como Recurso Comum ....................................................... 107
4.4.2 Insegurana Jurdica e Sobreutilizao do Judicirio ............................. 112
4.5 Seleo Adversa das Partes: a outra face da Tragdia do Judicirio ............. 119
4.6 Concluses do Captulo ................................................................................. 124
5 Concluses Gerais ............................................................................................... 127
6 Bibliografia .......................................................................................................... 132
XII
Lista de Siglas e Smbolos
Sigla ou Smbolo Descrio
Autor em um litgio em potencial.
Investimento bruto em capital jurdico na rea i do direito realizado no
perodo .
Estoque de capital jurdico na rea i do direito no perodo t.
Utilidade marginal do estoque de capital jurdico.
Taxa de retorno da utilidade marginal do estoque de capital jurdico.
+1
Equao 2-1
onde
constante.
Agora
etc., possvel
reescrever a Equao 2-1 da seguinte forma:
+1
+1
+ ... + 1
Equao 2-2
onde
e do
nmero
= (
) Equao 2-3
sendo que aqui se presume que
> 0 e
crescente em
. Logo,
= (
) Equao 2-4
onde se assume o custo marginal como positivo e no-decrescente. O custo marginal de
investimento positivo significa que quanto maior o investimento realizado, maior o cus-
to associado (
0).
Com base nesse modelo, podemos estabelecer a produo tima de capital jur-
dico como o seguinte problema de maximizao. Seja a diferena entre a utilidade do
fluxo de informao gerada pelo capital jurdico no perodo t e o custo do investimento
em cada perodo, sujeita condio prevista na Equao 2-1, supondo-se constante e
Equao 2-5
s.a.
= (1 )
Resolvendo esse problema de maximizao da maneira proposta por Landes e
Posner (1976, p. 23), obtemos as seguintes T condies de primeira ordem (de T=0 a T-
1):
(1 ) +
(1 )
+
+
(1 )
= 0
Equao 2-6
onde
= 1 (1 +)
o va-
lor do produto marginal do capital jurdico em t+j e
Equao 3-1
Para fins de anlise da funo de produo do capital jurdico, investimento de
particulares em litgio (
) so bens
complementares, pois o investimento em litgio s se converte em capital jurdico se o
magistrado produzir e seguir a jurisprudncia. Do contrrio, resolve-se a controvrsia
(lide), mas no so geradas ou reforadas regras jurdicas que guiem comportamentos
futuros. Por outro lado, como ao magistrado vedado agir de ofcio, isto , sem provo-
cao pelas partes, sem o investimento privado em litgio, no h como o magistrado
produzir e seguir a jurisprudncia. o que diz a vedao ao agir de ofcio do magistra-
do, prevista expressamente no CPC:
Art. 2. Nenhum juiz prestar a tutela jurisdicional seno quando a parte ou o interessado a re-
querer, nos casos e forma legais.
Art. 128. O juiz decidir a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de
questes, no suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
46
Art. 460. defeso ao juiz proferir sentena, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem
como condenar o ru em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.
Assumimos que
) e
o litgio s resultar em formao ou manuteno de jurisprudncia se o magistrado
investir nisso. Nesse sentido, do ponto de vista da produo de capital jurdico, as cur-
vas de indiferena dos insumos investimento em litgios (
) e em jurisprudncia (
)
podem ser representadas da seguinte forma:
Figura 8: Complementaridade entre Investimento em Litigncia e Jurisprudncia
Vale lembrar que as partes possuem incentivos para alocar recursos na atividade
litigiosa,
, que um sub-
conjunto de condutas X e no deveria ser permitido. A incerteza com relao ao tipo de
conduta a que a regra se aplica impe custos esperados de punio a praticantes de Y,
reduzindo sua oferta a um nvel subtimo, e diminui os custos esperados de punio a
praticantes de
, o que aumenta sua oferta acima do nvel timo (Posner, 1973, p. 449).
Alm disso, como visto no Item 2.3.3, a incerteza com relao regra aplicvel
provavelmente gerar um nmero maior de aes judiciais que no constituiro inves-
timento em capital jurdico, o que, por si s, constitui custos sociais trata-se de capital
morto. Na ausncia de formao de capital jurdico, os litgios apenas resolvem a con-
trovrsia, sem gerar segurana jurdica, isto , apenas redistribuem as perdas e danos
incorridos, que so custos irrecuperveis (sunk costs), sem mudar o comportamento
futuro. O custo mdio de cada ao tambm pode ser maior, se ex ante no se souber
qual a regra jurdica a ser aplicada a uma dada situao ftica, logo, se for necessrio
construir a regra caso a caso. Por outro lado, a dificuldade de antecipar o valor esperado
das demandas aumentar os custos dos acordos extrajudiciais, majorando consequente-
mente a litigiosidade e reduzindo a autocomposio. Tudo isso pode gerar um ciclo
vicioso que terminar em uma crise de segurana jurdica e no limite ameaar a
52
prpria sociedade civil. De um jeito ou de outro, sem previsibilidade, o direito perde
muito de seu valor enquanto instituio social.
Nesse sentido, a aplicao de uma regra para cada caso pode acabar por gerar
um tratamento altamente discriminatrio e injusto, pois duas pessoas na mesma situao
podem ser tratadas de forma completamente diversa pelo Judicirio. Uma tem seus di-
reitos protegidos e outra no. Uma ser punida e outra no. Ironicamente, esse resulta-
do discrepante a anttese da justificativa do ativismo judicial cujo mote, normalmente,
realizar justia no caso concreto. Como se pode ver, nem mesmo para os defensores
do ativismo judicial h argumentos para a anarquia judicial. Pode-se argumentar quem
o ente mais adequado para construir regras jurdicas, mas a ausncia de regras a in-
justia em ltimo grau. E, em termos econmicos, a no definio de direitos s au-
menta custos sociais.
Mecanismos de uniformizao de jurisprudncia vm sendo criados gradativa-
mente. Em 2004, com a Emenda Constitucional n 45, finalmente foi atribudo efeito
vinculante s decises definitivas de mrito do STF, bem como foi criada a figura da
smula vinculante, o impedimento de recurso em desconformidade com smula do STJ
ou do STF (1 do art. 518/CPC) e, posteriormente, a possibilidade de indeferimento
liminar de petio (art. 285-A/CPC), julgamento de recursos especiais repetitivos (art.
543-C/CPC) e a repercusso geral do recurso extraordinrio (art. 543-A e 543-B/CPC).
A eficcia de cada um desses mecanismos uma questo em aberto, mas, em maior ou
menor grau, todas essas medidas tm por funo estimular a formao de capital jurdi-
co.
3.2 A Estrutura Hierrquica do Judicirio Brasileiro
Antes de analisarmos melhor a estrutura de incentivos dos magistrados no Item
3.3, conveniente dar um panorama da complexa organizao judiciria brasileira, pois
para compreendermos a estrutura de incentivo dos agentes, precisamos antes conhecer o
arcabouo institucional no qual estes se inserem. Em seguida evolumos da anlise do
Judicirio como uma entidade para investigar o comportamento seus agentes para, por
fim, voltarmos ao comportamento da organizao como resultado dessa interao no
captulo seguinte.
53
O Poder Judicirio brasileiro composto pelos seguintes rgos (art. 92/CF), ca-
da qual com uma competncia especfica:
(i) Supremo Tribunal Federal STF: dar a ltima palavra em questes
constitucionais (art. 102/CF);
(ii) Conselho Nacional de Justia CNJ: controlar administrativa e finan-
ceiramente o Poder Judicirio e, inclusive, punir administrativamente
magistrados (art. 103-B);
(iii) Superior Tribunal de Justia STJ: dar a ltima palavra em matria de
legislao federal e uniformizar as interpretaes dos tribunais inferiores
(art. 105/CF);
(iv) Tribunais Regionais Federais (TRF) e Juzes Federais: responsveis
pelo julgamento em 1 e 2 instncia de questes federais, i.e., nas quais a
Unio, autarquias ou empresas pblicas federais sejam autoras, rs, assis-
tentes ou oponentes, exceto aquelas relativas falncia, acidentes de tra-
balho e quelas do mbito da Justia Eleitoral e da Justia do Trabalho
(art. 108 e 109/CF);
(v) Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunais e Juzes do Traba-
lho: responsveis pelo julgamento em 1, 2 e 3 instncia de questes
envolvendo relaes de trabalho (art. 111/CF);
(vi) Tribunal Superior Eleitoral (TSE); Tribunais e Juzes Eleitorais: res-
ponsveis pelo julgamento em 1, 2 e 3 instncia de questes envolven-
do questes eleitorais (art. 121/CF);
(vii) Superior Tribunal Militar (STM), Tribunais e Juzes Militares: res-
ponsveis pelo julgamento em 1, 2 e 3 instncia de crimes militares
(art. 124/CF); e
(viii) Tribunais (TJ) e Juzes dos Estados e do Distrito Federal e Territ-
rios: responsveis pelo julgamento em 1 e 2 instncia de questes esta-
duais (art. 125/CF).
Para uma melhor compreenso, a estrutura organizacional do Judicirio pode ser
representada de forma simplificada da seguinte maneira:
54
Figura 9: Estrutura Hierrquica do Judicirio
Note-se que, em verdade, a organizao judiciria brasileira muito mais com-
plexa do que retratado na figura acima. H uma grande quantidade de excees para
casos especficos, como, por exemplo, o julgamento das infraes penais comuns come-
tidas pelo Presidente da Repblica, realizado em instncia nica no STF (art. 102, inc. I,
b/CF), ou a Justia Militar que, em Minas Gerais, So Paulo e Rio Grande do Sul, tem
tribunal de segunda instncia, isto , um Tribunal de Justia Militar, cujo papel, nos
demais estados, desempenhado pelo Tribunal de Justia comum. No obstante, para
as questes debatidas no presente trabalho, esse modelo simplificador representativo
das relaes de julgamento e reviso (recurso) e, portanto, satisfatrio.
Nessa linha, interessante considerar o STF como o rgo mximo do Poder Ju-
dicirio, pois ele dar a ltima palavra em questes constitucionais e todas as questes
infraconstitucionais devem em ultima instncia estar de acordo com a Constituio.
Por outro lado, STJ, TST, TSE e STM desempenham papis semelhantes de garantido-
res ltimos de aplicao da legislao e de uniformizao de jurisprudncia em suas
respectivas jurisdies. Da mesma forma, a lgica e a dinmica entre magistrados de 1
grau e magistrados de 2 grau similar, se no igual, em cada uma das justias. Por
isso, sem perda de generalidade, a anlise a seguir se concentrar apenas na estrutura da
justia comum estadual e sua relao com o STJ e STF.
STF
STJ
TJ
Juiz
TRF
Juiz Federal
TST
TRT
Juiz do Trabalho
TSE
TRE
Juiz Eleitoral
STM
TJM
Juiz Militar / CJ
CNJ
Justia Comum Justia Especial
55
De uma forma esquemtica, o primeiro contato, a instruo e o julgamento de
um caso so realizados por um juiz singular, o qual conduzir o processo com o auxlio
dos advogados das partes. Ao final, o juiz decidir a questo em uma sentena (art.
162/CPC), com ou sem resoluo do mrito (art. 267 e 269/CPC). Dessa deciso cabe
recurso da parte que sucumbir, parcial ou integralmente, para o tribunal que, por sua
vez, formado por colegiados, denominados turmas, cujos magistrados integrantes so
chamados desembargadores. Portanto, enquanto a deciso de 1 instncia singular, em
geral, a deciso de 2 instncia coletiva. Da deciso do Tribunal de Justia que, por ser
coletiva, se chama acrdo, cabe ainda Recurso Extraordinrio RE para o STF (art.
102/CF), em caso de violao da Constituio, e Recurso Especial REsp para o STJ
(art. 105/CF), em caso de violao de legislao federal ou interpretao divergente
entre Tribunais inferiores.
Como se pode ver, supondo-se por enquanto a unicidade de posicionamento
dentro do Tribunal de Justia, do STJ e do STF (alinhamento horizontal), o sistema pa-
rece estruturado para convergir uniformizao de regras jurdicas (alinhamento verti-
cal), j que todas as decises das etapas anteriores so passveis de reviso pelo STJ
e/ou pelo STF. Todavia, importante indagar se a simples possibilidade de decises
contrrias serem revertidas nas instncias superiores suficiente para uniformizar a ju-
risprudncia nas instncias inferiores e criar capital jurdico. Essa questo ser aborda-
da mais adiante, no Item 3.3.1. Por ora, foquemos a estrutura organizacional e nos me-
canismos processuais que nos informam a dinmica da litigncia.
Dentro dessa estrutura organizacional, podemos resumir simplificadamente a es-
trutura recursal. Encerrada a instruo processual, o juiz profere a sentena. A parte
que teve o seu interesse desatendido parcial ou integralmente, pode atacar essa sentena
por meio de um recurso ao tribunal superior. Esse recurso, na Justia comum, chama-se
apelao, a qual ser apreciada pelo tribunal. A deciso final do tribunal em relao
apelao se chama acrdo, que, por sua vez, s pode ser atacado em duas hipteses: (a)
na presena de uma violao lei federal ou de interpretaes discrepantes dentre tribu-
nais, quando caber REsp para o STJ; ou (b) na presena de uma violao a dispositivo
constitucional, quando caber RE para o STF. Por fim, do acrdo do STJ, que nor-
malmente tambm julga por meio de turmas compostas por ministros, ainda cabe um
RE para o STF, caso a deciso do STJ tenha violado a constituio.
56
Na sistemtica processual atual, RE e REsp podem e devem ser protocolados no
tribunal a quo (de origem) simultaneamente, se estiverem presentes as hipteses per-
missivas de ambos (questo de legalidade e de constitucionalidade). Portanto, mesmo
que uma questo possa ser resolvida do ponto de vista legal ou constitucional de forma
independente, a estrutura processual gera incentivos para que o agente interponha os
dois recursos simultaneamente. Do contrrio, a parte sucumbente perde a chance de ter
a questo revista pelo tribunal superior que no foi acionado, se o outro que foi aciona-
do no lhe der razo, no podendo recorrer dessa deciso posteriormente ( o que os
juristas chamam de precluso). Resumindo o exposto acima, podemos organizar a es-
trutura recursal da seguinte forma:
Figura 10: Estrutura Recursal Simplificada
Agora que a estrutura organizacional e processual na qual se inserem os magis-
trados brasileiros est mais clara, vamos modelar a estrutura de incentivos de cada ma-
gistrado e investigar os incentivos para que este produza capital jurdico. A literatura
tem abordado essa questo de duas formas: uma pressupondo que os magistrados coo-
peram naturalmente, mas possuem recursos limitados (agem, portanto, como times); e
outra supondo que em cada deciso pode haver uma divergncia de opinies e que o
juiz pode querer impor suas preferncias comunidade no caso concreto, a despeito da
Sentena
Apelao
Acrdo
RE
STF STJ
REsp
Juiz (1 instncia)
Tribunal (2 instncia)
Tribunal (3 instncia)
RE
57
posio contrria do tribunal (problema agente-principal). Essas duas abordagens so
discutidas a seguir.
3.3 Modelos de Comportamento Judicial: parceiros ou adversrios?
A literatura econmica sobre o comportamento dos magistrados no desempenho
da atividade adjudicatria aumentou substancialmente nos ltimos 20 anos. Hoje h
inmeros trabalhos tentando compreender e modelar como funcionam estes agentes
pblicos dentro de seu contexto institucional. Alguns estudos desse tipo so Cameron
(1993), Kornahauser (1995), Cameron, Segal e Songer (2000), Cameron e Kornhauser
(2005), Daughety e Reinganum (2006) e Epstein, Martin, Segal e Westerland (2007).
Todavia, a cultura jurdica, as regras processuais e a estrutura organizacional do Poder
Judicirio de cada pas variam substancialmente. Logo, a estrutura de incentivos dos
magistrados e seu contexto institucional so especficos a cada comunidade, devendo
ser modelados de forma particular. Um estudo individualizado do desempenho de cada
jurisdio, a partir de seu contexto institucional, deve aumentar substancialmente nossa
compreenso sobre a dinmica do Judicirio. Mesmo assim, apesar do grande avano
da literatura, as investigaes permanecem adstritas anlise das instituies judiciais
norte-americanas, como demonstra a reviso bibliogrfica realizada por Kornhauser
(1999a; 1999b), com poucas excees como Cooter e Ginsburg (1996), Ramseyer e
Rasmusen (2006) e Fon e Parisi (2006).
No Brasil essa linha de pesquisa ainda no se desenvolveu e pesquisadores naci-
onais tm alocado esforos na compreenso e modelagem dos Poderes Executivo e Le-
gislativo (e.g. Figueiredo & Limongi, 2001; Amorim Neto & Tafner, 2002; Pereira &
Mueller, 2004; Pereira, Singh, & Mueller, 2010; Cheibub & Limongi, 2011), sendo
Stepan (2000), Taylor (2007) e Jaroletto e Mueller (2011) notveis excees. J os tra-
balhos mais recentes sobre o Judicirio tm focado prioritariamente: (a) a mensurao
da eficincia dos tribunais brasileiros em termos de produtividade, como no estudo de
Yeung e Azevedo (2011) e de Fochezzato (PUCRS, 2011), ambos aplicando uma meto-
dologia de data envelopment analysis (DEA); (b) a ineficcia do Judicirio em fazer
valer as leis (enforcement), como no estudo sobre corrupo de Alencar e Gico Jr.
(2011); ou, ainda, (c) a identificao de eventuais vieses presentes nas decises judiciais
e suas consequncias sobre os custos de transao, como Rezende (2008), Rezende e
58
Zylbersztajn (2011), Yeung e Ferrante (2012) e Yeung, Carvalho e Silva (2012). Este
trabalho complementa e contribui para esta literatura.
Temos duas possibilidades de abordagem terica do problema de coordenao
entre instncias diversas que, potencialmente, podem ser testadas empiricamente: uma
baseada na Teoria dos Clubes e outra baseada na Teoria da Agncia (modelo Agente-
Principal).
A abordagem baseada na Teoria dos Times est preocupada com a organizao
eficiente dos indivduos que compartilham um objetivo comum, mas controlam vari-
veis diversas e potencialmente baseiam suas decises em informaes diferentes
(Marshack & Radner, 1972). A aplicao dessa abordagem ao Judicirio significa que
se modelam os magistrados sem quaisquer conflitos valorativos, i.e., como agentes com
valores e objetivos idnticos ou suficientemente prximos e cujo objetivo comum de-
cidir corretamente a maior quantidade de casos possvel em um mundo de incertezas e
custos de transao positivos. Em termos econmicos, todos os agentes so modelados
como se tivessem a mesma funo utilidade. Tradicionalmente, essa abordagem busca
verificar se caractersticas tradicionais do Poder Judicirio como o duplo grau de juris-
dio, a reviso por colegiados etc. emergiriam endogenamente como decorrncia natu-
ral dessa busca pelo bem-comum da organizao (e.g. Daughety & Reinganum, 2000).
Assim como muitos juristas tradicionais, muitas vezes os pesquisadores dessa aborda-
gem simplesmente pressupem que os juzes seguiro as posies dos tribunais ou pres-
supem que a segurana jurdica a consequncia lgica do modelo (e.g. Kornhauser L.
A., 1995).
Alguns dos resultados obtidos pela literatura de times decorrem da escassez de
recursos. Por exemplo, o alinhamento vertical com a jurisprudncia dos Tribunais em
parte um mecanismo de reduo de tempo e recursos judiciais, pois a segurana jurdica
dele decorrente reduz a litigncia mediante a celebrao de acordos e a reduo de ape-
laes com baixa probabilidade de xito. Outros resultados derivam da assimetria de
informao, pois alguns grupos (e.g. STF e STJ) possuem mais recursos que os nveis
inferiores para decidir certos casos. Segui-los, ento, facilita o trabalho de magistrados
inferiores com menos recursos e leva a decises na mdia mais corretas. relati-
vamente simples perceber as potenciais implicaes polticas e estratgicas dessa abor-
dagem e curioso notar, desde j, que esta tem sido a abordagem tradicional adotada
59
por economistas que pesquisam e lecionam em faculdades de direito nos EUA (e.g.
Shavell, 1995).
Por outro lado, o pressuposto bsico da Teoria da Agncia a presena de con-
flitos valorativos constantes em quaisquer organizaes. A criao e a aplicao das
regras, um problema tradicional de toda e qualquer organizao, so ocasies de disputa
e o resultado dessas contendas determinar o poder de cada parte da burocracia. Os
detalhes organizacionais e as regras procedimentais determinam o poder de cada grupo.
No contexto do Judicirio, essa abordagem significa que cada deciso uma oportuni-
dade para um conflito poltico entre instncias. Magistrados com preferncias diversas
e, portanto, funes utilidades distintas, deparam-se com insegurana jurdica e apren-
dem ao longo do tempo. Todavia, os modelos de agncia tradicionais normalmente
excluem a incerteza presente nos modelos de time e costumam focar as implicaes
decorrentes da divergncia de incentivos (e.g. Clark, 2009).
Essa literatura foca mais a investigao do desenho institucional e a eficcia de
mecanismos que permitam a convergncia e a divergncia de interesses entre agente e
principal, isto , que permitem que magistrados ajam secretamente (hidden action), ad-
quiram informaes exclusivas (acquisition of private information) ou evadam sanes,
aumentando seu espao de discricionariedade, em contraposio a mecanismos que re-
velem aes ou informaes escondidas ou aumentem a capacidade de sancionamento
pelas instncias superiores. Novamente, as implicaes polticas e estratgicas do mo-
delo de agncia tambm so instigantes e comum encontr-la em trabalhos de econo-
mistas e cientistas polticos que estudam Economia Poltica Positiva (e.g. Brent, 1999).
Tanto uma abordagem quanto a outra tem como vantagem chamar a ateno pa-
ra a natureza interdependente das decises judiciais, isto , seu contexto estratgico. As
decises judiciais no so tomadas em um vcuo institucional, todos os agentes envol-
vidos esto sujeitos a restries e reaes dos demais agentes. Por isso, antes de decidi-
rem, eles levam em considerao as preferncias e reaes provveis dos outros atores
relevantes, incluindo seus colegas, os membros de tribunais superiores, os membros dos
demais Poderes e mesmo a opinio pblica.
60
Investigamos a seguir quais as estruturas incentivam os magistrados brasileiros a
investir na produo de capital jurdico (M) e, assim, gerar segurana jurdica, ou seja,
quando um magistrado segue (ou no) a jurisprudncia do tribunal.
3.3.1 A Formao de Capital Jurdico como um Problema Agente-Principal
A resposta jurdica tradicional para qual o mecanismo de incentivo ao magis-
trado que este invista na produo de e obedincia jurisprudncia (M) a existncia de
um ordenamento jurdico, cuja definio j pressupe a inexistncia de antinomias (re-
gras jurdicas contraditrias). A discusso jurdica resume-se, ento, a como o magis-
trado deve resolver as antinomias identificadas que, quando resolvidas, so tidas como
meramente aparentes. Essa posio est presente implcita ou explicitamente nas clssi-
cas obras de Kelsen (1998 [1960]) e Bobbio (1995 [1982]). Essas teorias normativas
apenas expressam como seus propositores acham que o direito deve ser (proposio
normativa) e no como ele (proposio positiva). Elas supem implicitamente que os
magistrados seguiro a lei, mas a pergunta aqui justamente quais so os incentivos
para que estes o faam?
Uma evidncia anedtica talvez sirva de motivao inicial para a discusso te-
rica dessa seo. Em 2010, o Ministro do Supremo Tribunal, Marco Aurlio de Mello,
proferiu um discurso na cerimnia de comemorao de seus 20 anos de STF e fez a se-
guinte confisso: Idealizo para o caso concreto a soluo mais justa e posteriormente
vou ao arcabouo normativo, vou dogmtica buscar o apoio (CONJUR, 2010). O
que o Ministro disse que primeiro ele decide, conforme suas preferncias (justia),
depois, procura um fundamento na lei ou na doutrina que justifique o resultado que j
escolheu. Como se pode ver, essa sistemtica confessa o oposto do que pressupe a
lgica jurdica tradicional. Essa confisso ilustra que o pressuposto de que os magistra-
dos agiro necessariamente conforme a lei ou a jurisprudncia, a despeito de suas prefe-
rncias pessoais, pode no ser adequado. No h, porm, evidncias empricas de que
esse comportamento seja preponderante.
De qualquer forma, do ponto de vista terico, o pressuposto de que magistrados
seguiro a lei ou a jurisprudncia dominante, independentemente de qualquer coisa,
incompatvel com a abordagem econmica dos magistrados como agentes racionais
maximizadores. A abordagem jurdica tradicional no realista e no leva a previses
61
que se adquem realidade dos fatos, pois, como j visto, h inmeros exemplos de
magistrados que no esto seguindo a lei ou a jurisprudncia, o que no se explica por
aquela abordagem. Uma anlise positiva do Judicirio no pode partir do pressuposto
de que os magistrados no possuem preferncias pessoais e que, quando decidem, no
levam em considerao seus valores, sua histria, a reao dos demais magistrados etc.
Em outras palavras, a funo utilidade de um magistrado inclui preocupaes com re-
munerao, promoo, remoo, prestgio, preferncias polticas, justia etc. (no mesmo
sentido, cfr. Posner, 1993). Em que medida cada uma dessas variveis relevante de-
pender do contexto e do agente.
Dentro da estrutura organizacional exposta acima, no Item 3.2, ausente a insti-
tuio do stare decisis e reconhecendo que a lei no mais um parmetro dominante de
controle da atividade jurisdicional, a questo relevante : que incentivos tm os magis-
trados para seguir a jurisprudncia de um tribunal superior? De outra forma, quais so
os mecanismos de governana que cada nvel de hierarquia judiciria tem sobre o outro
inferior para fins de uniformizao de jurisprudncia e construo de capital jurdico?
A resposta simples e preocupante: quase nenhum.
A vitaliciedade, a irredutibilidade de vencimentos, a inamovibilidade e a promo-
o automtica por senioridade tornam cada magistrado no apenas imune s presses
polticas externas ao Judicirio, mas tambm imunes ao prprio Poder Judicirio. O
magistrado brasileiro talvez seja o mais independente do mundo, ele no apenas inde-
pendente politicamente, ele tambm independente em relao prpria lei e juris-
prudncia. Em um cenrio como esse, voltamos a perguntar: se cada magistrado pode
decidir da forma como quer, sem custo para si, como formado o capital jurdico?
Algum poderia supor que apesar de parte dos magistrados ser promovida por
senioridade, outra parte promovida por mrito, e isso pode levar a algum grau de con-
trole dos nveis superiores sobre a conduta dos nveis inferiores, o suficiente para que os
interesses dos magistrados a quo (agente) se alinhassem ao menos em parte com os
interesses dos magistrados ad quem (principal). Esse argumento comumente explora-
do na literatura (e.g. Cohen, 1992; Smyth, 2005; Maitra & Smyth, 2004; Schneider M.
R., 2005), mas como se ver a seguir parece no se aplicar no Brasil.
62
De acordo com o art. 4 da Resoluo n 106 do CNJ, de 6/4/10, os nicos crit-
rios que podem ser considerados para fins de promoo por merecimento so: (a) de-
sempenho (aspecto qualitativo); (b) produtividade (aspecto quantitativo); (c) presteza no
exerccio das funes (art. 7); (d) aperfeioamento tcnico (art. 8); e (e) adequao da
conduta ao Cdigo de tica da Magistratura Nacional CEMN (art. 9).
No aspecto qualitativo, que vale apenas 20% da avaliao (art. 11), deve ser
considerado (art. 5, e) o respeito s smulas do STF e dos tribunais superiores (STJ,
TST, TSE, STM), mas no a jurisprudncia do prprio tribunal a que pertence o magis-
trado e, em hiptese alguma, pode ser considerada a sua taxa de reversibilidade, isto , o
quanto ele errou segundo a instncia superior. o que dispe o art. 10:
Art. 10. Na avaliao do merecimento no sero utilizados critrios que venham atentar contra a
independncia funcional e a liberdade de convencimento do magistrado, tais como ndices de
reforma de decises.
Pargrafo nico: A disciplina judiciria do magistrado, aplicando a jurisprudncia sumulada do
Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com registro de eventual ressalva de en-
tendimento, constitui elemento a ser valorizado para efeito de merecimento, nos termos do prin-
cpio da responsabilidade institucional, insculpido no Cdigo Ibero-Americano de tica Judicial
(2006).
Ainda que no possa ser formalmente utilizada, seria interessante saber qual a
taxa de reversibilidade das decises dos magistrados promovidos e dos preteridos, pois
possvel que tal informao seja usada indiretamente, ainda que vedada pela regula-
o. No entanto, no h trabalhos investigando essa questo, talvez porque no exista,
no Brasil, uma organizao e catalogao de todas as decises judiciais proferidas que
facilite tal aferio. Acreditamos que os tribunais simplesmente no coletam e, portan-
to, no tm acesso a esse tipo de informao.
Alm da proibio expressa de se considerar a aderncia jurisprudncia como
um critrio para a avaliao de mrito, a remunerao do magistrado de qualquer ins-
tncia praticamente independente de promoo ou do nvel de atuao. A ttulo de
exemplo, de acordo com a Tabela de Remunerao dos Magistrados Federais emitida
pela Secretaria de Recursos Humanos SRH do Conselho da Justia Federal, em 1 de
fevereiro de 2010, um juiz federal substituto (primeiro estgio na carreira) ganhava R$
21.766,16, um juiz federal pleno (1 grau) ganhava R$ 22.911,74, ou seja, apenas 5,26%
a mais, e o juiz do TRF (1 grau) R$ 24.117,62, apenas 5,26% a mais. de se questio-
63
nar se essa pequena diferena salarial constitui incentivo suficiente para gerar conver-
gncia de interesses e, em ltima anlise, cooperao entre as instncias. A uma primei-
ra vista, ela tambm no parece substancial.
Se a aderncia jurisprudncia vertical no um fator relevante para a promo-
o ou para a remunerao do magistrado, ento, talvez, houvesse outros custos que
pudessem ser impostos ao menos em relao desobedincia s smulas vinculantes do
STF e dos Tribunais Superiores. Mas esse tambm no o caso, pois no h qualquer
penalidade imposta ao magistrado que desobedece a uma smula vinculante, razo pela
qual seu efeito sobre a estrutura de incentivos do magistrado tende a ser igual a uma
reverso normal no julgamento de um RE ou REsp. A divergncia no tem custo para o
magistrado, apenas para a sociedade e para as partes, que tero de arcar com os custos
incorridos pelo Tribunal no processo de reviso.
Outra explicao oferecida pela literatura para o seguimento da jurisprudncia
pelos magistrados a questo da reputao (e.g. Miceli & Cosgel, 1994). A magistratu-
ra seria uma comunidade pequena, no qual cada membro conheceria o outro e, por isso,
ser revertido reiteradamente no seria bem-visto nessa comunidade, o que geraria incen-
tivos para que os magistrados, ao menos em parte, seguissem a jurisprudncia. Por ou-
tro lado, um magistrado que no seguisse os precedentes dos seus pares no teria seus
precedentes seguidos. O problema da reputao como mecanismo de coordenao
que ela pressupe interao reiterada (para poder haver retaliao em outras rodadas),
baixos custos de monitoramento (para se identificar quem no est agindo de acordo) e
a possibilidade de punio (mecanismo para tornar desinteressante o comportamento
desviante).
Assumindo a baixa rotatividade de juzes e desembargadores e o fato de que ju-
zes normalmente so alocados para varas especializadas, cujos casos so revistos por
turmas especializadas de desembargadores, podemos pressupor que a interao entre
eles ser reiterada. No entanto, considerando a enorme quantidade de casos julgada por
cada magistrado por ano, o monitoramento individual do magistrado pelos demais pare-
ce ser bastante custoso e, portanto, plausvel, mas improvvel.
De acordo com os dados do CNJ (2011, p. 73), cada magistrado sentenciou
1.336 processos em 2010, isto , 3,6 processos por dia, incluindo domingos e feriados.
64
Esse nmero astronmico, na realidade, representa uma queda de produtividade em re-
lao a 2009, quando a mdia foi de 1.540 processos. Se olharmos apenas os dias teis
e lembrarmos que, em parte do dia, os magistrados devem comparecer a audincias,
veremos que a probabilidade de um magistrado efetivamente monitorar as decises de
seus pares, mesmo sendo a comunidade pequena, no parece grande. Alm disso, no
existe nos Tribunais qualquer mecanismo que informe ao prprio magistrado ou aos
demais a sua taxa de reversibilidade, isto , a taxa de reverso de suas decises pela
instncia superior. Nem o prprio magistrado sabe a sua taxa de reversibilidade, salvo
se construir um banco de dados prprio. Como as decises no Brasil no so cataloga-
das nem disponibilizadas em um banco de dados informatizado, na prtica, no existe
mecanismo de controle pblico ou privado da taxa de reverso. Sem a possibilidade de
monitorao, qualquer mecanismo reputacional incuo, o que incentiva comportamen-
tos oportunistas pelo fato de o magistrado possuir informaes privadas (hidden infor-
mation) e poder realizar aes ocultas (hidden action).
Em um cenrio como o apresentado, diante do caso concreto, o magistrado depa-
ra-se com a seguinte escolha: (i) divergir da jurisprudncia e impor suas preferncias,
havendo apenas uma probabilidade p de ser revertido (sendo p < 1, j que rever casos
tem custo para o rgo revisor) e uma probabilidade independente q de ser observado
por seus pares, caso seja revertido; ou (ii) seguir a jurisprudncia, perdendo a oportuni-
dade de impor as suas preferncias comunidade no caso concreto e enfrentar a mesma
probabilidade independente q de ser observado por seus pares seguindo a jurisprudncia
e, assim, construir reputao.
Pelo exposto, apesar de o Judicirio brasileiro estar estruturado de forma hierar-
quizada, do ponto de vista de produo de jurisprudncia, no existem mecanismos cr-
veis de uniformizao, devendo esta ser produzida com a reviso individual de cada
caso pelos tribunais superiores, o que gera elevados custos, pois os tribunais no contam
com o mesmo nmero de desembargadores ou ministros que juzes. Nesse contexto
institucional, a reviso direta das decises de 1 instncia no permite o estabelecimento
de uma relao direta entre incentivo e desempenho. O controle ser proativo e centra-
lizado no prprio tribunal. Ser como um policiamento (police patrol), na linguagem de
McCubbins e Schwartz (1984), quando o ideal seria desenvolver algum mecanismo de
controle que disparasse apenas nos casos de divergncia, uma espcie de alarme de in-
65
cndio (fire alarm). Tal mecanismo seria reativo, descentralizado e realizado de forma
indireta e, portanto, menos custosa.
Em tese, o sistema de apelaes poderia ser uma forma de monitoramento do ti-
po alarme de incndio, desde que houvesse custos para apelar e o Tribunal revisse as
decises de 1 instncia apenas em caso de erro. Nos Estados Unidos, os Tribunais no
podem rever questes probatrias, mas apenas a correo da aplicao da regra jurdica,
enquanto, no Brasil, o CPC estabelece que toda a matria ftica e probatria devolvida
para anlise:
Art. 515. A apelao devolver ao tribunal o conhecimento da matria impugnada.
1 Sero, porm, objeto de apreciao e julgamento pelo tribunal todas as questes suscitadas e
discutidas no processo, ainda que a sentena no as tenha julgado por inteiro.
Se fosse possvel sinalizar aos litigantes que apelaes seriam providas apenas
em caso de erro e supondo que as partes saibam quando um erro foi cometido, o sistema
de apelaes funcionaria como um sistema de controle no estilo alarme de incndio dos
desembargadores sobre os juzes. Essa proposio pode ser testada empiricamente ave-
riguando-se a taxa de apelao das sentenas e a taxa de sucesso das apelaes interpos-
tas. O resultado esperado seria uma baixa taxa de apelao e uma alta taxa de sucesso
das apelaes interpostas.
Por outro lado, o modelo proposto acima pressupe que o tribunal tem uma po-
sio definida e sinaliza de forma clara aos litigantes que reverte uma sentena apenas
em casos de erro. Se o tribunal no tiver posio consolidada ou sinalizar de forma
equivocada, os litigantes interpretaro essa sinalizao como uma possibilidade de re-
discutir todos os casos e apelaro sempre que perderem (assumindo-se baixos custos
para recorrer). Essa proposio tambm pode ser testada empiricamente averiguando-se
a taxa de apelao das sentenas e a taxa de sucesso das apelaes interpostas. O resul-
tado esperado seria uma alta taxa de apelao e uma baixa taxa de sucesso das apelaes
ou uma taxa semelhante taxa de sucesso em 1 instncia. Neste caso, teramos um
custoso sistema de monitoramento do agente (juiz) no estilo policiamento que pode,
inclusive, ser inviabilizado pelo excesso de revises, j que h mais juzes que desem-
bargadores.
66
3.3.1.1 O Comportamento do Juiz Estratgico
Feitas essas consideraes acerca da estrutura de incentivos dos agentes e dos
custos de monitoramento, propomos um modelo agente-principal para ilustrar as difi-
culdades relacionadas ao monitoramento dos juzes (agentes) pelo tribunal (principal).
A questo fundamental de um problema agente-principal surge quando os interesses do
agente no coincidem com os do principal.
Seja
(, ) = ( )
. Em princpio, o agente
), suponha
que a funo utilidade do juiz seja
(, , ) = ( )
apelar,
() ()
()
Equao 3-2
As condies de primeira ordem desse problema leva o agente
a divergir em suas
decises em grau ou quantidade at que o seu benefcio marginal em divergir (
) se
iguale ao seu custo marginal em divergir (
), ou seja, at que
no incor-
rer em qualquer custo adicional se for revertido. A carreira do juiz no ser afetada
por isso, nem sua remunerao e, como o custo de monitoramento da taxa de reverso
alto, nem mesmo sua reputao ser atingida. Se a reverso no impe qualquer tipo de
custo adicional a
.
O agente tem cincia de que os recursos da turma so limitados, que o monito-
ramento imperfeito (
> 0) e que k < i, logo, ele sabe que nem todos os casos sero
69
revistos e aqueles que no forem traro mais utilidade ao juiz estratgico do que sim-
plesmente seguir a jurisprudncia, ou seja, o problema de
()
Equao 3-3
Em um cenrio como o apresentado, o investimento judicial na formao e cria-
o de regras jurdicas (M) ser inferior quantidade necessria para a formao do
estoque timo de capital jurdico J*, pois apenas as decises que a turma
conseguir
reverter integraro a funo de produo do capital jurdico e necessariamente a um
custo maior do que se
<
. Todas as
demais decises no revertidas so diversas de d e, portanto, no contribuem para a pre-
visibilidade da regra aplicvel, i.e., no constituem capital jurdico. Denominamos
o nvel de investimento judicial em capital jurdico em um contexto no qual no
h incentivos para o juiz seguir a jurisprudncia.
Agora suponha que as polticas judicirias mudem e que, por exemplo, o critrio
adotado pelo CNJ passe a incluir um ndice de reversibilidade para fins de promoo do
magistrado, ou que, em funo da nova Lei de Transparncia (Lei Complementar n
131, de 27/5/09), os tribunais passem a informar de maneira clara todas as decises ju-
diciais e se elas foram revertidas (ou no), para que o pblico e a comunidade de magis-
trados possam monitorar o desempenho de cada agente. Se a reverso de uma deciso
pela turma tambm impuser algum custo adicional ao juiz (i.e.,
> 0) e no apenas a
>
). Como um
nmero maior de decises convergir para uma mesma regra, o resultado ser uma mai-
or formao de capital jurdico do que na hiptese anterior (
<
).
Note que no sendo essas medidas isoladamente perfeitas, ainda haver algum
grau de divergncia na prtica adjudicatria de
) necessria para
que o juiz
Incentivo Perfeito
()
0
71
divergncia muito pequena ( <
), no mais racional
divergir e
, o custo margi-
nal de divergir (
),
enquanto de
, no qual
. O juiz
estratgico apenas alterar sua conduta na presena de algum choque que modifique o
custo esperado de divergir.
Uma analogia desse equilbrio pode ser traada com o Judicirio como um todo
e os demais Poderes, tomando-se a lei escrita aprovada e sancionada como uma nica
posio clara e definida dos Poderes Executivo e Legislativo. Nesse caso, o STF pode-
ria discordar dessa posio dentro de um espao de divergncia racional. Pases que, a
ttulo de exemplo, parecem ter construdo um bom equilbrio intra e extrajudicirio so
os Estados Unidos (common law) e a Alemanha (civil law). Este equilbrio depende
fundamentalmente das condies sociopolticas de cada sociedade.
O terceiro caso a ser analisado quando h incentivos perfeitos para que o juiz
siga a jurisprudncia e, assim haja a formao mxima de capital jurdico. Para que
os incentivos do agente estejam perfeitamente alinhados com os interesses do principal,
i.e., para desincentivar os juzes a no seguirem a jurisprudncia, simplesmente reverter
as decises divergentes pode no ser suficiente, pois apenas uma parte das sentenas
examinada. Logo, para () < 1, o custo esperado da reverso ()
() deve ser
estabelecido em patamar superior a
>
, ). Assim, da Equa-
o 3-2 temos que o comportamento racional do juiz ser sempre seguir a jurisprudn-
cia, gerando o mximo de capital jurdico.
O comportamento maximizador do juiz racional nesse contexto est ilustrado na
Figura 12:
72
Figura 12: Incentivo Perfeito para Seguir a Jurisprudncia
H democracias maduras em pases desenvolvidos nas quais a estrutura judici-
ria se assemelha justamente ao modelo acima, sendo o melhor exemplo o caso japons.
A SaikSaibansho pode ser considerada a mais conservadora Suprema Corte do mundo
(Beatty, 1998, p. 121), em um pas democrtico. Desde sua criao em 1947, a
SaikSaibansho declarou inconstitucional apenas oito leis (Satoh, 2008, p. 609), en-
quanto sua equivalente alem, a Bundesverfassungsgericht, criada apenas em 1951, at
maio de 2009, j havia declarado a inconstitucionalidade de 611 dispositivos normati-
vos (The Economist, 2009). Por outro lado, a marca brasileira uma incgnita, j que o
STF no mantm um controle de quantos dispositivos normativos j declarou inconsti-
tucional, mas no deve ficar atrs do desempenho alemo. Ao contrrio, a declarao
de inconstitucionalidade no Brasil se tornou um fenmeno to frequente que foi neces-
srio criar a figura da Ao Declaratria de Constitucionalidade, isto , uma ao cujo
objeto declarar que uma lei promulgada pelo Congresso Nacional realmente consti-
tucional e, portanto, deve ser seguida.
Na estrutura judiciria japonesa, existem inmeros mecanismos formais e infor-
mais de coordenao entre as instncias superiores e as instncias inferiores, que inclu-
em: a formao jurdica dos magistrados, a poltica de recrutamento, as regras de pro-
moo, o processo de seleo dos Ministros da SaikSaibansho, as limitaes de recur-
sos e a concentrao de poder nas mos do Ministro-Presidente da SaikSaibansho
(Law, 2009). Tais mecanismos, distintos dos implementados no contexto brasileiro,
Grau de Divergncia
Custo Esperado
45
Incentivo Perfeito
()
0
73
geraram no um Judicirio necessria ou essencialmente conservador, mas um Judici-
rio altamente sensvel e coordenado com suas lideranas, justamente o modelo ilustrado
na Figura 12, sendo que a independncia do Judicirio foi mantida, ainda que a do juiz
de 1 grau no (Ramseyer & Rasmusen, 2006, p. 1.929). Vale notar que o conservado-
rismo judicial japons pode ser interpretado muito mais como um conservadorismo po-
ltico em geral, j que salvo alguns breves perodos, a poltica japonesa tem sido domi-
nada por um nico partido conservador (Law, 2009), o que apenas refora a necessidade
de modelos que levem em considerao a interao estratgica entre Judicirio e outros
Poderes. interessante perceber que em um estudo comparativo recente sobre a crise
do sistema judicial no mundo, justamente o Japo, juntamente com a Holanda, era apon-
tado como o sistema jurdico com melhor desempenho (Zuckerman, 1999, pp. 13-14).
Em resumo, na primeira hiptese, em que no h qualquer custo adicional im-
posto ao juiz
incorre em
custos para rever tais decises (
<
<
).
J na segunda hiptese, em que h algum custo adicional imposto ao juiz
caso
no siga a jurisprudncia (
. Nesse ponto,
<
<
), logo,
<
<
.
74
Por fim, na terceira hiptese, desenham-se mecanismos suficientes para que o ju-
iz
, eliminando-se o problema de
agente-principal. Esse alinhamento perfeito gerar cooperao entre as instncias e re-
duzir substancialmente os custos com o processo de apelao, aproximando-se o inves-
timento em capital jurdico do nvel timo com o menor custo possvel (
<
<
).
Apesar de citar i juzes e k turmas, o modelo proposto acima sups implicita-
mente que uma nica turma sempre avaliaria a sentena de um nico magistrado, no
levando em considerao que pode haver mais de uma turma no tribunal e que elas po-
dem ter entendimentos diversos. Outra forma de ver a questo supor que
seja o
tribunal e no a turma, j com uma nica posio consolidada. A anlise acima se man-
teria vlida. Esse modelo pode, ento, ser expandido para incluir k turmas com enten-
dimentos diversos, ou ainda para analisar o comportamento das prprias turmas como
agentes e o Pleno do tribunal como principal, ou, ainda, para tentar modelar as intera-
es estratgicas em um contexto em que as composio dos tribunais vo se alterando
no tempo e as implicaes disso para o alinhamento horizontal (obedincia jurispru-
dncia pelo prprio tribunal) e para o alinhamento vertical (obedincia jurisprudncia
pelos juzes).
No obstante, uma questo permanece: se excluirmos da anlise o conflito de in-
teresses inerente a qualquer hierarquia burocrtica, ser que a necessidade de investi-
mento em capital jurdico deixaria de ser um problema? Se supusermos que os magis-
trados so inerentemente cooperativos e, como um time, desejam aplicar o direito da
melhor forma possvel, isso seria o suficiente para eliminar o problema de incentivos
para investimento em capital jurdico? A prxima seo analisa essa questo.
3.3.2 A Formao de Capital Jurdico como um Problema de Time
Olson (1971 [1965], p. 2) criticou a Teoria da Ao Coletiva dizendo que a no
ser que o nmero de indivduos seja bem pequeno, ou haja coero, ou algum outro ins-
trumento especial que faa os indivduos agirem em seu interesse comum, indivduos
racionais com interesses prprios no agiro para atingir seus interesses comuns ou de
75
grupo.
10
. Nesse sentido, como poderiam magistrados, que so muitos, agir como um
grupo e, sem mecanismos coercitivos de coordenao, atingir os interesses coletivos e
formar jurisprudncia? Esse o desafio da Teoria dos Times aplicada ao Judicirio.
De incio, importante alertar que o modelo do Judicirio como um time pres-
supe que a formao de capital jurdico emerge como uma consequncia endgena em
uma hierarquia judicial como o resultado da assimetria de informaes ou de restries
de recursos. A necessidade de investimento em capital jurdico, isto , segurana jurdi-
ca no deixa de existir, ela apenas deixa de ser forada por algum mecanismo de contro-
le como no modelo agente-principal para ser uma consequncia natural do modelo (e.g.
Kornhauser L. A., 1995), mas a necessidade de algum mecanismo de coordenao per-
manece.
Na literatura de times no existe o fenmeno da desobedincia, pois todos os
agentes possuem a mesma funo utilidade, i.e., possuem o mesmo objetivo, ento, ana-
lisa-se a questo de divergncia jurisprudencial com uma abordagem diferente, que
chamaremos desvio jurisprudencial. O desvio jurisprudencial acontece quando uma
instncia inferior, por alguma razo que no o conflito de interesses, no segue a instn-
cia superior (e.g. Bhagwart, 2000). Esse desvio pode ocorrer porque as circunstancias
que deram origem regra inicial mudaram de tal forma que no faz mais sentido mant-
la e uma nova regra deve ser formulada ou porque novas evidncias desenvolvidas ou
adquiridas posteriormente indicam que a regra era ruim ou estava errada (e.g. exame de
DNA). Fato que tais desvios jurisprudenciais ocorrem no mundo da natureza e preci-
sam ser explicados em um contexto de time.
Dentre as vrias abordagens possveis, seguindo uma estratgia utilizada por ou-
tros autores como, por exemplo, Daughety e Reinganum (1999) e Talley (1999-2000),
usaremos o mecanismo da cascata de informaes, com base no trabalho de Bikhchan-
dani, Hirshleifere Welch (1992) sobre modismos e ondas de comportamento. Uma cas-
cata de informaes como um comportamento coletivo no qual as pessoas comeam
gradualmente a agir da mesma forma (adotar um mesmo comportamento), que vai se
replicando at que esse comportamento se torne dominante e se consolide como uma
10
[U]nless the number of individuals is quite small, or unless there is coercion or some other special
device to make individuals act in their common interest, rational, self-interested individuals will not act
to achieve their common or group interests.
76
tendncia (trend ou fad). Ela ocorre quando timo para um indivduo seguir o com-
portamento dos demais membros de seu grupo aps ter observado a ao de outros antes
de si, independentemente de suas informaes privadas.
No contexto judicial, esse modelo especifica em que condies uma jurisprudn-
cia se torna dominante como o resultado do efeito cascata. Ele tambm deve indicar
quando esse efeito deixa de ocorrer, de forma que possa acontecer o desvio jurispruden-
cial. Considerando que para fins do presente trabalho, o que nos importa so apenas as
condies necessrias para que a coordenao (jurisprudncia dominante) ocorra e, por-
tanto, os mecanismos que devem estar presentes, apresentamos a seguir uma verso
adaptada do modelo.
Seja
>
temos = 1; por outro lado, se = 2, ento, = 2 com probabilidade
> . A Ta-
bela 1 abaixo descreve esse caso de sinal binrio:
Tabela 1: Probabilidade dos Sinais
Pr ( = 1|) Pr ( = 0|)
= 1 (1) 1 (1)
= 0 1 (1) (1)
Analisando-se o caso especial em que os sinais so igualmente distribudos,
(
= para todos os i), temos que, tendo percebido o sinal s, a utilidade esperada da
adoo da regra 1
2
,
,
1 +
2
e, depois de um nmero par de decises judiciais k:
1 ( +
)
2
, ( +
)
,
1 ( +
)
2
Equao 3-4.
Perceba que, depois de duas decises judiciais sobre a mesma questo, uma ju-
risprudncia no formada se uma delas foi pela aplicao da regra 1 e a outra pela
aplicao da regra 2. A partir da Tabela 1, esse valor pode ser calculado assumindo
= 1 (ou 0). A ocorrncia do conjunto de decises judiciais 1-2 ou 2-1 envolve uma
distribuio binomial (jogar uma moeda), de forma que a probabilidade total (1
) +(1 ) = (1 ). Para os outros dois valores, basta notar que como as
probabilidades no so condicionadas a
)
2(1 +
)
, (
)
,
( 2)( 1)1 (
)
2(1 +
)
Equao 3-5
A primeira expresso a probabilidade de formao de uma jurisprudncia correta
(aplicao de regra 1 para o estado da natureza 1), sendo possvel se demonstrar que
essa probabilidade crescente em p e em k, como ilustrado na Figura 13 abaixo.
Figura 13: Acuidade do Sinal e Formao de Jurisprudncia
Essa figura ilustra a probabilidade de formao de uma jurisprudncia correta
( = 1) e de formao de uma jurisprudncia incorreta ( = 2) como uma funo de p,
sendo p a probabilidade de que o magistrado receba o sinal de aplicao da regra 1
( = 1), dado que o verdadeiro estado da natureza 1 ( = 1) e de acordo com a Equa-
o 3-4. Note que mesmo para um p grande, a probabilidade de formao de uma juris-
prudncia incorreta considervel.
O problema da formao de jurisprudncia como o resultado do acmulo de de-
cises anteriores (efeito cascata) que ela impede a agregao de informaes de in-
meros magistrados. Se a informao de muitos magistrados fosse agregada, aqueles
decidindo em momentos posteriores deveriam convergir para a deciso correta. Toda-
via, uma vez estabelecida uma jurisprudncia dominante, as decises posteriores no
trazem novas informaes, razo pela qual os magistrados no melhoram as decises
seguintes.
1,0
0,8
0,6
0,4
0,2
0,0
Acuidade do sinal (p)
Jurisprudncia Correta
Jurisprudncia Incorreta
0,0 0,2 0,4 0,6 0,8 1,0
Prob
82
O trao distintivo desse modelo de jurisprudncia dominante que rapidamente
a informao recebida dos magistrados anteriores por meio de suas decises supera o
valor dos sinais privados recebidos pelo prprio magistrado no caso concreto. A partir
desse momento, a conduta racional do magistrado a decidir passa a ser desprezar os
sinais privados que recebe e aplicar a regra jurdica determinada pelos sinais anteriores,
dando incio cascata de informao, ou seja, formao de uma jurisprudncia domi-
nante. Desse ponto em diante, nenhuma informao nova revelada pela conduta dos
magistrados subsequentes, pois estes no aprendem nada com as decises dos magistra-
dos que decidiram aps o incio da formao de jurisprudncia. quando uma juris-
prudncia se torna dominante e a maioria dos magistrados passa a segui-la. Est forma-
do o capital jurdico, mesmo na ausncia de mecanismos coercitivos de coordenao
entre magistrados.
O modelo de Bikhchandani, Hirshleifer e Welch (1992, p. 1.009) tambm de-
monstra que, quanto mais precisos forem os sinais, mais rpida formada a cascata, isto
, em nossa aplicao, mais clere formada a jurisprudncia dominante e, portanto, o
capital jurdico. Nesse sentido, em uma abordagem de times, o Judicirio brasileiro
deveria construir mecanismos de reduo de rudos de sinal enviado por cada magistra-
do, ou seja, melhorar substancialmente a clareza e a qualidade de cada deciso, bem
como as formas de circulao dessas informaes. A reduo de rudos do sinal pode
ser realizada por mecanismos internos e externos ou simplesmente pela alocao de
recursos em M.
Chamamos mecanismos internos de formao de jurisprudncia todos os in-
vestimentos que cada magistrado pode realizar individualmente na melhor elaborao
de sua prpria deciso, tais como realizar pesquisa jurisprudencial prvia; escrever em
portugus claro e objetivo, para evitar ambiguidades; atacar todos os argumentos apre-
sentados pelas partes, para que tais informaes decisionais sejam transmitidas; identifi-
car de forma clara, precisa e separadamente cada questo jurdica e cada questo factu-
al, para que fique bem claro o que uma deciso de fato e uma deciso de direito etc.
J os mecanismos externos de formao de jurisprudncia podem ser realiza-
dos pelos tribunais para que no apenas as decises de 2 instncia fiquem disponveis
para pesquisa pela comunidade, mas tambm as decises de 1 instncia; que sejam cri-
ados indexadores que permitam a identificao de decises prvias e quantas vezes elas
83
so citadas por outras decises, quantas vezes so revertidas etc. A capacidade de per-
ceber a um baixo custo a taxa de reversibilidade de cada magistrado e a taxa de reversi-
bilidade para o tipo de regra aplicada reduziria substancialmente o rudo de cada sinal e
permitiria aos magistrados que esto decidindo e aos que decidiro no futuro uma viso
dinmica instantnea da direo na qual est caminhando a jurisprudncia. Alm disso,
o acesso a informaes acerca da taxa de apelabilidade e da taxa de sucesso das apela-
es interpostas tambm facilitaria a comunicao entre as vrias instncias e reduziria
o rudo dos sinais recebidos. Tudo isso facilitaria a formao de jurisprudncia e, por-
tanto, representa investimento em capital jurdico (M).
Por outro lado, a ideia de que, nas rodadas seguintes, os magistrados passaro a
decidir em cascata, sem mais refletir sobre a regra jurdica aplicada apesar de formar
jurisprudncia pode parecer preocupante. No obstante, o prprio modelo prev que
uma jurisprudncia dominante (cascata) pode ser alterada em funo de uma informao
pblica disponvel a todos em um momento posterior (Bikhchandani, Hirshleifer, &
Welch, 1992, p. 1.004 e ss.), o que refora a necessidade de mecanismos de comunica-
o mais precisos entre magistrados. De qualquer forma, a formao de jurisprudncia
dominante pelo efeito cascata relativamente frgil. A chegada de nova informao,
ainda que pouca, ou a mera possibilidade de mudana de preferncias (que alterar a
utilidade associada a cada estado da natureza), ainda que no seja real, pode interromper
o ciclo de vida de uma jurisprudncia. A disponibilizao de informao pblica a to-
dos os magistrados de que uma dada jurisprudncia incorreta pode ser suficiente para
construir uma nova jurisprudncia, desde que haja um nmero grande o suficiente de
decises (para um exemplo com agricultores, cfr. Bikhchandani, Hirshleifer, & Welch,
1992, p. 1.006 e ss.).
Por fim, a presena de indivduos com alta-preciso (e.g. magistrados ou doutri-
nadores de prestgio) que internalizem informaes novas, pode alterar a trajetria de
uma jurisprudncia. A uniformidade de entendimento jurisprudencial causada por uma
cascata de informao pode ser similar a ou coexistir com a uniformidade jurisprudenci-
al causada por outros mecanismos de coordenao, como os mencionados no Item 3.3.1
quando discutimos o problema agente-principal (e.g. reputao, promoo etc.). Nesse
caso, apesar de a jurisprudncia dominante no trazer nova informao, uma alterao
84
de posio nas instncias superiores pode alterar o curso dessa jurisprudncia, o que
novamente requer o investimento em facilitao da comunicao entre as instncias.
Mais uma vez, a presena de mecanismos no-coercitivos como a disponibiliza-
o da taxa de apelabilidade associada a certos tipos de deciso e/ou da taxa de reversi-
bilidade associada a cada magistrado, ainda que no associada a qualquer tipo de sano
formal, como preterimento em caso de promoo, transfere informao para a comuni-
dade judiciria e pode ativar um mecanismo de cooperao reputacional discutido no
Item 3.3.1. A reduo substancial de rudos acerca desses sinais relevantes pode levar a
uma diminuio de incertezas e, assim, formao e/ou correo mais rpida de juris-
prudncia, logo, contribui positivamente para a formao de capital jurdico (J).
Pelo discutido acima, possvel que a conformidade e, no nosso caso, a juris-
prudncia dominante, surja como o resultado da interao social espontnea, sem a ne-
cessidade de mecanismos de coordenao coercitivos. Cascatas de informao so uma
forma de explicar como convenes sociais e jurisprudncias dominantes podem ser
formadas, mesmo em um contexto sem coordenao, como o brasileiro. Esse modelo
compatvel no apenas com o surgimento de uma jurisprudncia dominante, mas tam-
bm com mudanas bruscas de entendimento. Em uma situao como essa, o consenso
um equilbrio frgil que pode mudar a qualquer tempo, no necessariamente por boas
razes, pois cascatas de informao tambm podem impor regras jurdicas indesejveis
com igual probabilidade.
3.4 Concluses do Captulo
No Captulo 2 vimos que a reduo do estoque de capital jurdico, seja por de-
preciao, seja por obsolescncia, gera insegurana jurdica, uma forma de incerteza.
Essa insegurana, por sua vez, aumenta os custos privados de transao para a realiza-
o de acordos extrajudiciais (autocomposio) e, portanto, gera incentivos para que os
particulares iniciem litgios, isto , levem questes para serem decididas pelo Judicirio
(heterocomposio). Esses incentivos do origem a um perodo de expanso da litign-
cia (L), que provocar, por fim, a produo de decises judiciais definitivas. Caso os
magistrados invistam na produo e manuteno das regras jurdicas comuns nesse pe-
rodo de expanso (M), elas se convertero em jurisprudncia e passaro a orientar o
comportamento prospectivo dos agentes. Agora, estes sabero como o Judicirio se
85
portar no futuro, caso conflitos daquela natureza surjam novamente. Essa certeza jur-
dica diminui custos de cooperao e incentiva a celebrao de acordos extrajudiciais
que emulam a sentena esperada, a custos menores. Estar formado, ento, capital jur-
dico (J). Nesse sentido, a reposio do capital jurdico depreciado traz segurana jurdi-
ca que, a seu turno, leva a um perodo de retrao da litigncia. Essa oscilao entre
perodos de expanso e retrao da litigncia o ciclo da litigncia.
No Item 3.1 acima, argumentamos que o funcionamento regular do ciclo de li-
tigncia depende fundamentalmente da produo de capital jurdico que, por sua vez,
depende de dois bens complementares: investimentos das partes privadas em atividades
litigiosas (L) e investimentos dos magistrados na produo e manuteno de jurispru-
dncia (M).
Ao investir em atividades litigiosas, as partes privadas se beneficiam apenas da
utilidade gerada pelo bem da vida em discusso, no podendo se apropriar inteiramente
dos benefcios gerados para o bem-estar social decorrentes da formao de capital jur-
dico. Tais benefcios so externalidades positivas da atividade litigiosa. Dados os bai-
xos custos para litigar no Brasil, a busca de benefcios privados pode ser suficiente para
a realizao de investimento timo em L, sendo que a jurisprudncia ser apenas um
subproduto desse investimento.
Por outro lado, o mesmo no pode ser esperado dos magistrados. Com toda a es-
trutura de proteo e independncia poltica, administrativa e financeira de que gozam
os magistrados brasileiros, existem poucos incentivos para que estes aloquem recursos
adicionais na formao e manuteno de jurisprudncia, j que eles podem resolver o
conflito (lide) a sua frente sem necessariamente realizar tais investimentos. essa ques-
to que o presente captulo buscou responder no Item 3.3, modelando os incentivos dos
magistrados de duas formas.
Primeiro, reconhecendo o conflito de interesses imanente a qualquer organizao
burocrtica hierarquizada, usamos uma abordagem agente-principal (Item 3.3.1) para
retratar as hipteses em que h um conflito de interesses entre graus de jurisdio diver-
sos e suas implicaes para a formao de capital jurdico. Segundo, reconhecendo que,
em algumas situaes, os magistrados podem tentar cooperar espontaneamente, adota-
mos uma abordagem de times (Item 3.3.2) para estudar as condies necessrias para
86
que capital jurdico fosse formado a partir dessa cooperao, mesmo na ausncia de
mecanismos de uniformizao de jurisprudncia.
O modelo agente-principal mostra que a depender dos mecanismos de coordena-
o presentes, pode ou no haver incentivos ao magistrado para a formao e manuten-
o da jurisprudncia. Nestes casos, a produo de capital jurdico ser uma funo da
capacidade dos graus superiores de jurisdio de reverem as decises anteriores e de
imporem custos aos magistrados revertidos. Exemplos de mecanismos que podem ser
considerados so: indexao das informaes; criao de ndices de reversibilidade por
magistrado e por tese jurdica; controle das taxas de apelao e das taxas de sucesso das
apelaes; utilizao do ndice de reversibilidade para fins de promoo por mrito;
maior escalonamento dos salrios dos magistrados; imposio de penalidades adminis-
trativas para magistrados com elevadas taxas de reversibilidade; etc. Todas essas medi-
das imporiam custos adicionais ao magistrado em caso de reverso ou diminuiriam cus-
tos de monitoramento pelo tribunal, facilitariam o autocontrole ou mesmo viabilizariam
a criao de um mecanismo de reputao na comunidade judiciria.
J o modelo de time mostra que, nos casos em que h identidade ou proximidade
ideolgica entre os diversos graus de jurisdio, mesmo na ausncia dos mecanismos de
uniformizao, possvel que seja produzido capital jurdico como o resultado da livre
interao de magistrados, ainda que essa jurisprudncia seja relativamente frgil. O
investimento na produo e transmisso de informao permite a gerao mais clere de
jurisprudncia, bem como a correo mais rpida em caso de formao de uma jurispru-
dncia equivocada. Nesse sentido, mecanismos como indexao das decises; criao
de ndices de reversibilidade por magistrado e por tese jurdica, controle das taxas de
apelao e das taxas de sucesso das apelaes; etc., ainda que no fossem usados como
mecanismos de uniformizao, reduziriam os custos de informao entre magistrados e
instncias, facilitando a coordenao dos membros do time.
O estudo dessas abordagens no apenas ilustra que o comportamento do magis-
trado pode ser passvel de anlise econmica, mas e principalmente informa sob
quais condies podemos esperar a realizao de investimentos em M. Nos casos em
que houver identidade ou similitude de posies, a jurisprudncia pode surgir como um
resultado natural da cooperao entre as instncias, sendo recomendada a instalao de
mecanismos que reduzam ao mximo os custos associados com a obteno de informa-
87
es dos magistrados a respeito do desempenho de seus pares e a seu prprio respeito.
Quanto mais transparncia e circulao de informaes, melhor. Por outro lado, nos
casos em que houver divergncia de posies, a forma de gerar os investimentos neces-
srios em capital jurdico pela implementao de mecanismos de uniformizao de
jurisprudncia que reduzam custos de monitoramento dos Tribunais e imponham custos
aos magistrados na hiptese de reverso.
Desse modo, dada a estrutura de incentivos dos magistrados brasileiros e a au-
sncia de mecanismo que imponham custos adicionais aos mesmos em caso de rever-
so, conclumos que s ser formado capital jurdico suficiente (mais prximo do nvel
timo,
o benefcio
que espera obter desse litgio a um custo esperado
seu retorno desse litgio, que na maioria das vezes negativo ( um custo),
mas no necessariamente. Os custos incorridos por para utilizar o sistema judicial
como mecanismos de soluo de controvrsia so denotados por
. Logo, na eventua-
lidade de um litgio, o retorno mximo do Autor
e do Ru
.
Se as partes forem capazes de prever com perfeio qual ser o resultado do jul-
gamento, i.e., em um mundo em que houvesse mxima segurana jurdica (informao
perfeita e um Judicirio perfeito), no houvesse assimetria de informao entre as partes
e, considerando que o julgamento uma questo meramente distributiva, a perda do
Ru igual ao ganho do Autor e vice-versa (
Equao 4-1
Equao 4-2
onde
> VR
, isto :
>
Inequao 4-3
que, assumindo-se
) > (
) (
) Inequao 4-4
Esse simples modelo traz algumas implicaes diretas e importantes. Primeiro,
ceteris paribus, quanto maior a utilidade do bem em disputa (), maior a probabilidade
de haver um litgio. Segundo, a probabilidade de um litgio uma funo crescente do
hiato de expectativas, isto , da distncia entre a avaliao da chance de xito pelo au-
tor e pelo ru (
) e pelo ru (
. Por
outro lado, se a regra jurdica aplicada a cada caso varia com o posicionamento ideol-
gico do magistrado (subinvestimento em capital jurdico) e a distribuio de casos
feita de forma aleatria, ento, autor e ru podem ter muita dificuldade em estimar
. No limite, tal estimativa pode ser impossvel e as partes estariam diante de uma
incerteza.
A dificuldade de estimar a probabilidade de xito de uma demanda pode acionar
uma limitao cognitiva conhecida como vis de otimismo ou otimismo irrealista ou,
ainda, otimismo comparativo (e.g. Armor & Taylor, 1998). O vis de otimismo uma
limitao cognitiva j identificada na literatura em diversos contextos e, segundo o qual,
o crebro humano est programado para ser otimista, isto , em mdia, as pessoas acre-
ditam que esto expostas a riscos menores de ocorrncia de eventos negativos do que as
demais pessoas. Justamente por serem otimistas, pessoas podem, por exemplo, investir
menos em preveno, usando menos contraceptivos (Burger & Burns, 1988) ou no
usando cintos de segurana ou dirigindo em excesso de velocidade (McKenna, Stanier,
& Lewis, 1991). No presente caso, um autor otimista e um ru otimista podem superes-
timar suas respectivas chances de xito, diminuindo ou simplesmente eliminando a pos-
sibilidade de realizao de um acordo. Quanto mais difcil estimar tais probabilidades,
maior a chance de o vis de otimismo ser mais relevante.
117
A insegurana jurdica, todavia, no afeta apenas a capacidades de as partes es-
timarem suas chances de sucesso, ela tambm afeta a capacidade de estimar o que est
juridicamente disponvel como resultado do prprio litgio, isto , U. Diante da inexis-
tncia de regras jurdicas, autores potenciais otimistas ou no podem iniciar aes
para que magistrados reduzam os juros de um financiamento, ainda que tais juros este-
jam de acordo com o mercado; podem pedir para que um magistrado obrigue a outra
parte a negociar um desconto na mensalidade escolar; pode pedir R$ 500 mil de um
hospital por supostos danos morais decorrentes de um atendimento mdico supostamen-
te grosseiro, ainda que eficaz; etc. Sem uma parmetro claro acerca do que que ou
no um interesse juridicamente protegido, ou seja, o que vivel pedir ao Judicirio e,
hoje, a imaginao dos autores o limite do que pode ser pedido e, portanto, de U.
Nesse sentido, a existncia de um dficit de capital jurdico e a decorrente inse-
gurana jurdica leva a uma reduo do nmero de acordos e a uma expanso no nme-
ro de litgios. Essa expanso ser contida apenas quando o prprio Judicirio comear a
aplicar as mesmas regras aos mesmos casos e, assim, a sinalizar de forma clara s pros-
pectivas partes. Sem a formao de capital jurdico, a insegurana jurdica poder levar
a um incremento do uso do Judicirio e, ao fim e ao cabo, a sua sobreutilizao. Velhas
questes sero litigadas de novo e de novo e de novo, em um crculo vicioso que se rea-
limenta e, cada vez mais, gera insegurana e, portanto, (sobre)utilizao do Judicirio.
O problema da sobreutilizao do Judicirio decorrente da insegurana jurdica
ainda mais provvel quando consideramos que, via de regra, as polticas pblicas de
livre acesso ao Judicirio, como a assistncia judicirio gratuita (AJG), defensoria p-
blica, criao de juizados especiais, custas processuais subsidiadas, aumento do nmero
de advogados (e esperado decrscimo no valor mdio dos honorrios advocatcios) atu-
am no lado direito da Inequao 4-4, isto , diminuem o termo (C
+C
) (A
+A
).
Como quanto mais barato litigar, mais demanda haver pelos servios pblicos adjudi-
catrios, as polticas pblicas inclusivas, de forma isolada (i.e. mantidas todas as demais
variveis constantes), apenas contribuem para a sobreutilizao do Judicirio.
Essas polticas pblicas de ampliao ao acesso focam a reduo do custo priva-
do de utilizao do sistema pblico adjudicatrio, aumentando a probabilidade de litgio
em um primeiro momento. Seguindo o ciclo de litigncia, esse aumento inicial de lit-
gios apenas se refletiria em maior garantia aos direitos da comunidade em geral se con-
118
vertido em segurana jurdica (capital) e consequentemente gerasse uma retrao de
litgios em um segundo momento, com o aumento da conformidade espontnea (auto-
composio). Do contrrio, tais polticas reforam e subsidiam o livre acesso ao princi-
pal (resource system), mas geram escassez de prestao jurisdicional (frutos) devido ao
excesso de demanda (congestionamento).
Como visto, o Judicirio um recurso escasso rival, quanto mais usado, mais
difcil que outros o usem. No entanto, quando um litigante individual decide levar o
seu caso aos tribunais, ele leva em considerao apenas seus custos e benefcios priva-
dos. O agente no computa o custo social de seu litgio, incluindo o tempo que outras
aes mais ou menos importantes, mais ou menos meritrias, tero de aguardar at que
seu caso seja decidido. Assim como o vaqueiro na Tragdia dos Comuns possui incen-
tivos para colocar quantas cabeas de gado conseguir no pasto, os litigantes tm incenti-
vos para acionar o Judicirio enquanto seu benefcio individual esperado for maior que
seu custo individual esperado. A sua contribuio individual para o congestionamento
substancialmente externalizada.
A conjuno de insegurana jurdica com baixos custos para litigar gera incenti-
vos para que as partes litiguem em demasia, demandando servios pblicos adjudicat-
rios acima da capacidade instalada do Judicirio. O excesso de demanda gera efeitos
semelhantes ao congelamento de preos abaixo do preo de equilbrio em um mercado
competitivo: filas. Litigantes que no arcam inteiramente com o custo social do litgio,
mas apenas os custos e benefcios privados, geram filas, i.e., pagam com o seu tempo.
O resultado a dificuldade judicial para resolver questes em um perodo razovel
(congestionamento), tem-se a famosa Crise do Judicirio. Todavia, como no h inves-
timento suficiente em capital jurdico pelos magistrados para repor a depreciao dos
perodos anteriores, a expanso da litigncia no acompanhada de um perodo de re-
trao decorrente de maior segurana jurdica. O subinvestimento em capital jurdico,
portanto, contribui diretamente para a sobreutilizao do Judicirio. a Tragdia do
Judicirio.
119
4.5 Seleo Adversa das Partes: a outra face da Tragdia do Judici-
rio
A demora em ter acesso ao servio pblico adjudicatrio apenas um aspecto
mais bvio da Crise do Judicirio. H outro aspecto que, do ponto de vista da justia
social, bem como da funo econmica do Judicirio como garantidor das barganhas
polticas e privadas, pode ser ainda mais grave e pernicioso: a seleo adversa decorren-
te da Tragdia do Judicirio e a transformao do Judicirio em um mecanismo de burla
ao direito.
Na seo 4.4.2 acima, analisamos a estrutura de incentivos de autor e ru para
realizarem ou no um acordo e o impacto do subinvestimento em capital jurdico sobre
essa estrutura de incentivos. Como demonstrado, o resultado foi um aumento do incen-
tivo para litigar, o que leva sobreutilizao do Judicirio (congestionamento) e a cha-
mada Tragdia do Judicirio. Todavia, naquele momento, no levamos em considera-
o que o simples fato de haver um hiato temporal entre o incio e o fim de uma deman-
da reduziria por si s o valor presente de uma eventual ao e, portanto, o retorno espe-
rado de litigar. Em outras palavras, as partes no so indiferentes morosidade judicial
no momento de decidir entre celebrar ou no um acordo; quanto mais uma ao demora
a ser julgada, menor seu valor presente para quem tem direito. O efeito desincentivador
da morosidade judicial foi notado primeiramente por Posner (1973, p. 448) e, posteri-
ormente desenvolvido por Priest (1989, p. 533 e ss.).
Nessa linha, podemos modificar o modelo incluindo uma taxa de desconto sobre
o valor , fazendo com que o valor presente da demanda dependa da magnitude da mo-
rosidade e do valor temporal do dinheiro, consubstanciado em uma taxa de juros ou de
desconto. Adaptando, ento, a Inequao 4-4, temos:
Pr Litgio (com hiato) = f(
)
()
> (
) (
) Inequao 4-5
onde r a taxa de desconto por perodo e t o nmero de perodos entre o ajuizamento da
ao e o seu julgamento. Aqui o hiato temporal entre a data do dano e a data do ajuiza-
mento desprezado para fins de simplicidade.
A Inequao 4-5 mostra que a morosidade judicial por si s reduz a demanda por
servios pblicos adjudicatrios ao diminuir o valor presente de demandas e, portanto, a
120
probabilidade de ocorrncia de um litgio. Mantendo-se todos os demais fatores cons-
tantes, h uma relao inversa entre morosidade e probabilidade de litgio. A demora de
um julgamento aumenta a probabilidade de realizao de um acordo e a sua celeridade
aumenta a probabilidade de um litgio. Essa relao inversa no intuitiva sugere a exis-
tncia de uma inter-relao dinmica entre morosidade e litigiosidade.
Quanto mais rpido for o Judicirio (menor t), maior o valor presente de um po-
tencial litgio e, portanto, maior a probabilidade de uma ao ser ajuizada. S que quan-
to mais aes so ajuizadas, maior a sobrecarga do Judicirio que deve se tornar mais
lento, o que reduz o valor presente das aes judiciais e reduzir a demanda futura por
servios adjudicatrios. Assim, espera-se que mudanas na morosidade judicial gerem
efeitos compensatrios no volume de casos iniciados e vice-versa. Essa relao sugere
que, dada uma capacidade produtiva adjudicatria instalada, deve haver um nvel de
equilbrio entre litigncia e morosidade em cada jurisdio, um congestionamento de
equilbrio.
Da mesma forma que a depreciao do capital jurdico gera insegurana jurdica,
que leva litigncia, e sua recomposio gera segurana jurdica, que leva a uma retra-
o da litigncia (ciclo da litigncia), o nvel de litigncia deve flutuar acima ou abaixo
do nvel de congestionamento de equilbrio medida que a morosidade se altera. A
diminuio da morosidade (celeridade processual) faz com que litigantes marginais co-
mecem a litigar, pois o valor presente das demandas
()
). A Inequao 4-5 ilustra como os efeitos de cada uma dessas relevantes di-
menses da condio de litigncia podem ser estimados. Por exemplo, qual o impacto
de se contratar mais juzes sobre o nmero de litgios? Mantidas todas as demais carac-
tersticas constantes, o aumento de nmero de magistrados reduz o tempo de deciso de
cada caso, ou seja, t. Todavia, a reduo de t significa que o retorno esperado da li-
tigncia aumenta, pois o valor presente do litgio
()
):
Pr Litgio (com juros)= f(
)
(
> (
) (
)
Inequao 4-6
Nessa hiptese, a morosidade judicial continua a reduzir a probabilidade de litgio, mas
em menor escala, supondo-se que a taxa de juros legais (
), i.e.,
<
. J se
>
, o valor esperado do litgio sobe e, quanto mais moroso for o Judicirio, maior a
probabilidade de litgio.
Pelo exposto, conclui-se que a melhor estratgia para aumentar o nmero de
acordos extrajudiciais e reduzir a utilizao do Judicirio, sem excluir usurios pelo
custo de se usar o sistema, ou seja, garantindo livre acesso, pelo investimento em capi-
tal jurdico e a decorrente convergncia de