Raul Brandão - As Ilhas Desconhecidas

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As Ilhas Desconhecidas

de Raul Brando



Notas e Paisagens



AOS MEUS AMIGOS DOS AORES




NDICE

Em trs linhas
De Lisboa ao Corvo
O Corvo
A floresta adormecida
A ilha azul
O Pico
A pesca da baleia
Homens e barcos
As Sete Cidades e as Furnas
O Atlntico aoriano
Visito da Madeira

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EM TRS LINHAS


Este livro feito com notas de viagem, quase sem retoques. A
penas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre no tirar a
frescura s primeiras impresses. Tinha ouvido a um oficial de
marinha que a paisagem do arquiplago valia a do Japo. E talvez
valha... No poder eu pintar com palavras alguns dos stios mais
pitorescos das ilhas, despertando nas leitores o desejo de os verem
com os seus prprios olhos!...

1926.

R.B.

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DE LISBOA AO CORVO

8 de Junho, 1924

A BORDO DO S. MIGUEL

Enquanto a gente v terra, no tira os olhos no pode dum resto de areal, dum
ponto violeta que desmaia e acaba por desaparecer na crista duma vaga. Um ponto e
acabou o mundo. O nosso mundo agora outro. Durante um momento calamo-nos
todos a bordo. A abbada esbranquiada fecha-se e encerra o disco azul onde espumas
afloram nos redemoinhos que nos cercam: s uma gaivota teima em nos acompanhar
descrevendo crculos por cima do navio. O rudo da hlice e a vasta desolao
montona...
A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegao vela:
a vida a bordo do Hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos
navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe quele mastro real. o
que vale a agitao tremenda que no cessa, a gua em vagalhes cada vez mais
cinzentos e maiores, que as velhas de penante e plumas, sentadas de bombordo a
estibordo, e que se atrevem com o oceano Atlntico, fazem o possvel por amesquinhar.
Mas vem a tarde, vem a noite nesta desolao amarga: o mar carrega-se e cospe-nos
salpicos; paira no cu uma tinta que se entranha nas guas e as escurece. Ar lvido, gua
revolta e uma grandeza com que no posso arcar. Mais escuro... J se no v a
ondulao perptua; s se ouve o rudo da hlice incansvel e o do esgoto rape-que-
rape, como uma grande vassoura sobre as guas. Isto acaba por uma coisa negra e des-
medida, por uma coisa ameaadora e cheia de vozes, que o Hotel Francfort no
consegue fazer esquecer com toda a sua banalidade. As estrelas nos ares agitados
parecem outras estrelas, o cu outro cu e as foras desencadeadas do caos nunca as
senti to perto como hoje, nesta voz montona que sai do negrume, nesta massa que nos
mostra os dentes no alto das vagas entre as chapadas de tinta na imensa solido
desolada. Isto acaba pela treva absoluta. Est ali est ali presente toda noite que no
tem fim. Ns bem fingimos que no vemos a solido trgica, o negrume trgico, mas eu
tenho-o toda a noite ao p de mim. Toda a noite esta coisa complicada que um
transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite
sinto a gua bater no costado e a mquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte
no nos larga: separa-nos do caos um tabique de no sei quantas polegadas. Todos os
passageiros se fingem despreocupados. S acol, sob o castelo da proa (3 classe),
embrulhada num xale e sentada sobre um ba de lata, aquela mulher do povo sente
como eu o terror sagrado do mar e no o oculta. Olha petrificada. Aqui s h uma
coisa a fazer, a gente entregar-se...


9 de Junho

Mas hoje acordo, subo ao convs e tenho uma alegria frentica. Tudo isto, todo
este azul, toda esta frescura, me entra em jorro pelos olhos dentro e pela alma dentro. A
tinta azul no s ondula estremece em pequenos gros vivos, duma aco
extraordinria, e o mundo sempre novo que me rodeia penetra-me do seu bafo e
comunica-me a sua vida.
Tomo posse do barco. Primeiro a vigia que me encanta, aquela pupila redonda e
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azul que me fita logo que acordo e por onde o mar espreita para dentro do camarote.
Depois a pequena cela toda branca onde todas as coisas esto nos seus lugares
medidos e calculados. A cabina reduz de propriedade e a sua beleza geomtrica consiste
em no ter de mais nem de menos: o espao exacto para a vida do passageiro ou do
frade. Quando saio do camarote acho-me logo no convs. Este mundo muito limitado
corre-se nalguns minutos. No castelo da proa, entre cabos embreados, ceroulas
penduradas numa corda, e gente de terceira classe, que a vida pitoresca do barco se
revela melhor. Marinheiros preparam os cabrestantes para a descarga de amanh, o
carpinteiro de bordo prega tbuas e a tinta azul corre aos lados do vapor misturada de
espuma superfcie. Olho o imediato na ponte dirigindo a manobra. Volto e acabo por
me fixar durante alguns momentos na coberta pintada a ripolm, camada de branco,
camada de verniz cheira a alcatro e a iodo com os olhos presos na massa uniforme
e fugidia, que se distingue do cu por ser mais condensada e mais azul. O panorama
imutvel, metade cu e metade mar, e l em baixo no costado o jorro do esgoto continua
a desfazer-se em milhares de prolas lquidas; a alma do barco que resfolga.
Para compreender melhor este engenho, hotel e mquina ao mesmo tempo, tenho
de descer ao interior e ver-lhe as tripas. Quando se abre a portinhola de ferro o quadro
muda instantaneamente. L vai o hotel e o navio! o que tenho diante de mim um
vasto espao de paredes indecisas que a luz coada por papel oleoso ilumina grande
nave onde se agitam esqueletos esbranquiados. Deso pela escada de caracol entre os
cabeorros de ao e engrenagens que mexem as pernas de aranhios, braos que se
movem por todos os lados, a escorrer leo, fazendo gestos desajeitados. Todas estas pe-
as que trabalham desordenadamente, subindo e descendo reluzentes de gordura, vo e
vm, remexem em conjunto para o mesmo fim. Os degraus da escada queimam, o ar
quente irrespirvel vibra, entrecortado s vezes dum resfolgar mais fundo que abafa os
outros rudos. Este complicado maquinismo ilumina o barco, transforma a gua e faz
mover as hlices. Complicado e delicado. Deitado no beliche, diz o maquinista, eu sei
perfeitamente qual a mquina que se desarranja e no trabalha como deve. Mas a
alma do transporte o fogo. o fogo que faz girar os dois grandes veios de ao, que
atravessam o barco em toda a sua extenso at s hlices. Entreabre-se uma pequena
porta de ferro e recuo sufocado. A tragdia do navio que se transformou em mquina
est aqui: para que o hotel viva, digira e se mova, preciso que algum sofra. Estou
dentro dum grande poo de ferro onde a atmosfera irrespirvel. Duas paredes lisas de
alto a baixo, cinzentas, e sem uma falha. A luz vem de cima, claridade duvidosa e suja,
e quando aqueles homens, que se agitam l dentro, abrem a porta da fornalha, um jorro
vermelho ilumina, cresta e deslumbra. No cho ardem escrias, um fogueiro negro e
curvado atira l para dentro pazadas de carvo, e logo a portinhola bate com estrondo
contra a alta parede de ferro. Fujo. Enquanto l em cima todos ns vivemos no Hotel
Francfort de Santa Justa, os outros c em baixo vivem no Inferno.


10 de Junho

Ainda de noite, acordo, com o cheiro a terra. Salto do beliche e subo ao convs,
que os marujos lavam a jorros de gua. Luz cinzenta, luz doirada transparncia azul
boiando cheia de cintilaes ao longe, e depois mais luz viva que nasce e estremece
diante da grande massa escura que sai do mar sob a magia do nascente: tenho diante de
mim dois morros espessos, um mais prximo, recortando o negrume no cu doirado, e o
outro ao fundo, todo roxo e picado de luzinhas como se lhe tivessem soprado falhas
que se pegam e reluzem. A primeira luz ilumina a imobilidade cinzenta do mar, e,
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medida que o vapor desfila na base do macio negro e disforme, desdobram-se os
planos e aparece intacto todo o pano de fundo. Um hlito azul... Mais claridade es-
tremecendo esta primeira luz delicada e viva, quando acorda a terra e acorda o mar
com o cu todo doirado e virgem para as bandas do nascente e nos deita o bafo cara. A
frescura que nos trespassa torna-nos tambm etreos. Para acol est tudo ainda doirado
e confundido, o morro maior e mais negro, e ao p de mim cinzento e azul. Andam nas
guas reflexos e espumas, e no fundo, donde o vapor saiu, ainda a luz do 56!, que se
irisa nas guas, se mistura com a nvoa e com um pouco de fumo da mquina que ficou
suspenso e imvel no ar. H um momento nico, um momento doirado, mar e cu
doirado e casto, e outro em que tudo fica plido e cinzento. H um momento em que
desejo que isto no mexa mais... Fundeamos e a Madeira abre-nos os braos, com a
ponta do Garajau num extremo e a ponta da Cruz no outro extremo. Adivinho as casas,
que por ora so fantasmas e descem l do alto at praia. Agora o tom cinzento
desapareceu, domina o azul e o oiro, e na minha frente o grande anfiteatro verde dos
montes ergue-se como um altar at ao cu. uma serra a pique, uma serra voluptuosa
e verde que se oferece lnguida e verde. Ao meio um grande monte entreaberto; por trs
a montanha enorme e escalvada. Algumas colinas vo terminar no farol e no forte sobre
um penedo destacado e corrodo.
Fico todo o dia a bordo, deslumbrado, contemplando a Madeira, a embeber-me no
espectculo da luz, que passa do cinzento ao azul, que ganha todos Os tons e se
modifica a todos os momentos, at ao fim da tarde, em que o mar se torna difano e os
montes transparentes, com uma grande nuvem pousada em cima. Vejo perder a cor,
desfalecer, sumir-se a terra, que no escuro cheira cada vez mais a fruta e me inebria. J
o primeiro plano est roxo, o segundo uma mancha enorme e indecisa, e o mar no
poente arfa como um seio, ainda iluminado. medida que o vapor se afasta, a
montanha que me atrai parece mais negra e maior: sobe, ergue-se e chega ao cu.
Largamos e vem a tarde, vem a noite, e o cair da noite no mar um espectculo
trgico. Este movimento que no cessa, das ondas avanando em colunas cerradas,
umas atrs das outras, sempre, pe-me diante do que mais temo no mundo do universo
como mistificao e acaso... L vo as cores as tintas o doirado... Sou aquele
fragmento de tbua que as ondas levam sem destino, sempre no mesmo negrume, no
mesmo movimento perptuo e intil... No s a ameaa, a grandeza da noite, do mar,
das vozes; outra coisa pior que se afirma a tragdia do universo descarnada e posta a
nu diante dos meus olhos. Com todas as suas complicaes e o seu gnio, as suas
mquinas portentosas, com as suas ideias e a arquitectura que tem erguido e que chega
aos cus o homem, nestes momentos, sente que vale tanto como um cisco para esta
coisa imensa e negra, para esta agitao incessante. Isto pior que implacvel, pior
que ameaador: no nos conhece.
De noite todo o barco geme. De quando em quando uma onda maior bate no
costado pah! ... Sinto-a contra mim, deitado no beliche, com um lamento que se
prolonga e me enche de pavor. Pah! ... o negrume, o mar imenso e desconhecido,
todo o mar. E o ah arrasta-se e desgrenha-se na noite, no vento, na profundidade.

...Uma manh transparente que hesita e flutua como um ser delicado, envolta em
neblinas. Cu dum azul-plido, forrado no horizonte de nuvenzinhas claras. Mar
desmaiado, que no foi feito para se ver mas para respirar, esparso, quieto e fundido. Ao
fundo uma mancha indecisa, envolta em nvoa, que logo se resolve em poeira
esbranquiada... H nas coisas uma hesitao, uma mescla, um abrir, como no princpio
do mundo quando a gua, a luz e a terra no estavam ainda separadas pela mo de Deus.
A tinta muito pouca quase nada de cor e de sonho. Santa Maria desvenda-se entre as
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nvoas: um monte alongado com uma parte mais baixa e a Vila do Porto saliente, tudo
azul emergindo do azul. medida que o S. Miguel se aproxima, reparo que a ilha
doirada, com sombras a escorrer pelos montes abaixo. Alguns riscos mais carregados,
algumas manchas roxas que pouco a pouco se acentuam. Fico perplexo e s quando
chegamos quase fala da povoao, Vila do Porto, que compreendo: a ilha um
torresmo de pedra negra, de areia negra, como se tivesse passado pelo fogo do Inferno,
mas o torresmo est coberto de giesta rasteira e doirada, de giesta em flor, que cheira a
uma lgua de distncia.

Subo por um caminho entre figueiras-do-diabo e solteiras, como se chamam aqui
as sardinheiras, que crescem por todos os lados. Colinas, campos de pastagem, e ao
longe um pico mais alto donde se descobre toda a ilha. Povoao de duas ou trs ruas e
casinhas, com a igreja, a ossada dum convento e o solar humilde de Gonalo Velho.
isolado e triste mas pedras, campos e furnas esto cheios de asas e de gritos: os
escarnentos, negros como melros, passam no ar com o biscato no bico, e a babosa enche
este negrume cinzelado de oiro e de perfume. H momentos em que se encobre o Sol e o
torresmo sai mais negro do mar: s fica o cheiro que impregna a terra e o cu.
aqui que os barcos de trs velas vm buscar o barro em bolas, para S. Miguel
fabricar grandes talhas, canecas porosas, vasilhas de todas as formas e feitios. Santa
Maria no s fornece os oleiros dos Aores mas fabrica tambm cntaros, pcaros,
caboucos, numa ruazinha escondida da vila. Processos primitivos: o homem numa
oficina escura prepara e amassa o barro, a que outros Vo lentamente dando feitio no
engenho. Trabalha a mo e o p: o p na grande roda que faz girar o prato com o barro
ainda informe, e a mo dando-lhe a forma.
Que importa que isto seja um ermo onde at s vezes a gua falta, sendo preciso
para matar a sede traz-la em navios de S. Miguel? Aqui se vive e aqui se morre. E devo
dizer que desta ilha silvestre duas coisas ficaro para sempre na minha memria: o
pcaro de barro poroso que torna a gua fresqussima, e o cheiro a giesta que a
embalsama. Fiquei-a conhecendo para o resto da minha vida pela ilha que cheira bem...

tarde, pelas sete horas, temos outra ilha vista, sob grossas nuvens amontoadas,
tudo da mesma cor, nuvens e ilha. Ao largo um pr do Sol dramtico enche o horizonte,
doira os bordos dos cerros e irrompe pelos interstcios caindo em feixes sobre as guas.
Assisto ao desenlace deste drama mudo e extraordinrio, quando ao mesmo tempo o ar
se incendeia cor de cobre e na vasta solido de estanho correm jorros de oiro fundido. J
no horizonte outra ilha se estende em biombo, baixa e enorme, toda da mesma cor. Mas
o que me interessa a luz que mudou, o cu que mudou a luz delicada dos Aores, o
cu dos Aores carregado de humidade e forrado de nuvens que um pintor imitaria na
tela com pequenos toques horizontais cor de chumbo, carregando-os e amontoando-os
cada vez mais at linha do horizonte. E esta luz que me acompanha e nunca mais me
larga, a mim que vivo de luz lmpida, e que acordo todas as manhs com o pensamento
na luz... Ilumina S. Miguel (13 de Junho), coada pelo cu pardo, e Ponta Delgada
estendida beira da doca, com um grande monte violeta ao lado. Ilumina na madrugada
de 15 a Terceira, ao p dum pinheiral e duma fortaleza, e atabafa-me quase at ao fim
da viagem cu inaltervel, nvoa que se chama alforra, luz discreta em que as coisas
perdem a importncia e o relevo.

As manhs so extraordinrias. Tons neutros quase o mesmo tom apagado
nvoas esbranquiadas e moles... Neste ar parado o prprio som amortece: envolve o
mundo uma pasta de algodo em rama, um vapor incorpreo que apaga as cores,
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imobiliza a paisagem e faz do mar atmosfera. um eterno dia de finados, recolhido e
atento, em que o vento pra e no sopra. Branco e quieto, branco e mole, branco
magoado, claridade to ntima que eu prprio desfaleo. E ao mesmo tempo esta luz,
que sais de pequeninas nuvens amontoadas no cu, revela-nos aspectos delicados em
que nunca reparmos: se o cu est velado, o mar deixa de ter peso e estanha-se at ao
horizonte enublado e fundido; o branco desfaz-se na gua como no ar e basta um fio de
azul coar-se pelas nuvens para que a vida exausta sorria com receio, num sorriso
amortecido que logo a transforma e logo a medo desaparece. Certos aspectos da terra
ficam sonmbulos, outros fantasmagricos e prestes a evaporarem-se nos ares ao
primeiro bafo.
...Pouco e pouco a luz insinua-se. Mais tons esbranquiados e cinzentos, sombras
plidas com reflexos molhados. No cu h um fundo de oiro tnue misturado ao branco,
pasmado e triste, e que mal se distingue. As coisas acentuam se um pouco mas a esta
luz delicada a mudana faz-se tambm duma maneira delicada. Todo o movimento nas
pontas dos ps. O branco-gris transe de roxo, deixando as sombras desmaiadas; o
branco-branco amarelece e logo se queda arrependido, o azul distingue um pouco sobre
o ar, e l para os fundos os verdes diludos estremecem duvidosos da cor que ho-de
tomar azul ou roxo... um momento nico em que no branco uniforme se geram
novas tintas quase imateriais e o cu se defende e concentra todo em branco, com uma
srie de cinzentos em que o oiro tenta penetrar. Ento a paisagem e at a vida parecem
fludas e abstractas: o panorama largo, a cinzento e branco com manchas leves
derretidas, flutua no mar infinito e cinzento, emborralhado e cinzento...
Abstraco e sonho. Porque neste amanhecer perpetuo a gente sonha mais do que
v. Divaga. Pouco e pouco a paisagem fica azulada dum azul desmaiado, dum azul
com gua. Divaga toda azul num mundo de sombras brancas, de hlitos tpidos, de
penas que esvoaam.. alguma coisa de perfeito, de incriado e sereno...
O que eu gostava de dar esta vida que no acaba por desvendar-se e que por isso
mesmo possui um encanto superior todo em branco e cinzento amortecidos! E ainda
os efeitos so o menos a vida ntima desta luz extraordinria que tudo. To pouco!
to imaterial! to exalao e alma! S abstraco e receio... outro mundo, que nos
deixa perplexos. outro mundo, em que os sentimentos devem ser mais amortecidos
povoados por fantasmas que sorriem e desaparecem. H pedaos de mar virginais: no
se sabe se de espuma se de cinza e pedaos de terra misteriosos. Um mundo s branco
e cinzento, um mundo bao, que no pode revelar-se, irresoluto e cujo encanto se
comunica mais pela alma do que pela vista...

O navio fundeia na Terceira, num vasto semicrculo, fechado ao norte pelo monte
Brasil e do outro lado pela ilha das Cabras. Est um calor surdo. Demoro-me a olhar a
cidade, donde irrompe uma pirmide amarela, o monumento a D. Pedro IV. Num plano
mais afastado alguns montes escalvados. Braga, Braga com mais regularidade nas
ruas, mais cai nas paredes, e que lhe deu na veneta para ser praia, estendendo at
beira-mar os seus conventos e as suas igrejas pesadas, com um forte em cada
extremidade. Na rua andam mulheres de capote negro, apertado na cinta e formando
concha sobre a cabea, e raparigas do povo com o leno atado s com um n e deixando
ver as madeixas: so as solteiras; as casadas escondem todo o cabelo e atam duas
vezes o leno no pescoo. Foi aqui que vi as mais lindas figuras de mulheres dos Aores
tipos peninsulares, de cabelos negros e olhos negros retintos.
Tomei por uma estradinha ao acaso, onde florescem, nascendo nos muros, as
chagas e os alfinetes cor-de-rosa. Atravessei a Urze to branquinha, os caminhos
humildes de Figueiras Pretas e Bico de Cabo Verde, recolhida entre pinhais e accias, a
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que chamam pau-de-toda-a-obra. Fui seguindo entre saras da ilha. No caminho uma
carreada bois luzidios com ponteiras doiradas nos chifres e homens desempenados e
fortes frente dos carros.
Entro no quintal dum amigo. Gostei sempre de me perder nas quintas e nos jardins
entre quadros rsticos de lavoura. Sentei-me num pomar de deliciosas nsperas
amarelas e maduras, a vermelha mais cida, e a branca mais doce e que se desfaz em
sumo na boca. A vegetao reluz envernizada de novo. Espreitei o recanto abrigado da
vinha baixa, que produz com duas castas, a Isabela e o Vermelho, o vinho de cheiro e o
branco que tem fama. E depois passei por o jardim silencioso e hmido, pelas ruas altas
de faias de Holanda. E neste ar tpido, nesta luz difusa, apareceram-me as japoneiras
gigantescas em pirmide, o goifo branco com a flor amarela ou leitosa abrindo ao meio
das folhas estendidas superfcie das guas verdes e podres das bacias; a aromtica
espirradeira, que deixa cair as ptalas vermelhas, uma a uma, num canteiro de relva,
desfalecida como se a sangrassem. Isto cresce diante dos meus olhos numa atmosfera
quente e numa luz to verde que chega a dominar o cinzento. Os jardins so sempre
uma obra de arte, e quanto mais desordenados, mais belos. Devo at dizer que me
encantam ainda mais que os jardins imponentes, onde a arquitectura se sobrepe
natureza, e que mie infundem respeito os quintais com couves e flores, onde me sinto
mais vontade. Acabo de descobrir agora, mesmo aqui direita, uma horta. Sento-me
na rua onde cresce a malva vidrada ao lado da salsa. H por a abboras e flores, milho e
hortenses e um banquinho de pedra onde se ouve .a gua correr. um pingo, mas
enche-me de saudade... S falta uma rapariga que se ponha a sorrir para a gente. Falta
um vestido branco a aparecer e a desaparecer por trs dos laranjais. Nem vivalma.
Tenho de subir l cima, a este ponto da quinta dos Prazeres onde se descobre o mar e a
terra. V-se ao longe S. Jorge e Pico, e mais perto as lavouras dum verde negro e
satisfeito, e entre as casinhas brancas de S. Mateus a singular igreja erguida Fome e
Misria. Descobre-se a Terra Ch, e ao fundo a pesada lomba de Santa Brbara.
Despenham-se as verduras at ao mar. Saio devagarinho, para no acordar os grandes
fetos senhoris, um arbusto todo vermelho que se chama cardeal e que olha para mim
cheio de flores (e eu no sei o que lhe hei-de dizer) devagarinho, para no perturbar
este silncio verde onde a gente tem a impresso de mergulhar em carne mole, aquecida
numa atmosfera de estufa com os vidros embaciados. Sinto que me invade o torpor
aoriano, e dizem-me que, quando vem o tempo de o incenso dar flor, toda a ilha fica
to perfumada que se no pode dormir. Ouve-se um gemido de volpia (so os
grmenes que entreabrem) e o ar morno uma carcia de pele de encontro nossa pele e
que pesa sobre o peito como um bloco.

Embarco com a mesma luz. Estranho-a e s mais tarde lhe acho o encanto. Dez,
onze horas da manh, e sempre o mesmo tom e a mesma claridade suave; a gua, dum
verde-escuro ao p do morro, estremece em reflexos cinzentos para o largo, e a grande
baa cinzenta confunde-se com o cu, que se no despega da grossa mancha enublada
barrando todo o horizonte. Mas neste cinzento que parece uniforme reflecte-se o verde
hmido do grande monte imvel, tremulam outros verdes com reflexos metlicos e
cores apagadas a que se mistura um pouco do azul que irrompe a custo das nuvens.
Reparo melhor... Estes montes violetas at ilha das Cabras, toda violeta, e que me
seduzem tingidos de violeta no mar cinzento, saem dum lquido quase imaterial que ar
e cu. E estas cores um pouco tristes acabam por me deixar cismtico... Vou sentindo
melhor a luz dos Aores, a luz atenuada, os montes emborralhados, o ar atabafado e
magntico, uma trovoada sempre suspensa, as ilhas com uma nuvem pegada nos altos e
as mulheres encapuchadas. Tudo se harmoniza. meio-dia. O azul quer ser azul, mas
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no o consegue, a terra deseja a luz, e a luz apenas se entreabre e desaparece; as guas
fluidas, o horizonte vago arripiam-se, vo transformar-se a nossos olhos e quedam-se
logo num receio... Silncio. Uma cor que no chega a ser cor, que resignao e
saudade e que me obriga a falar mais baixinho...


16 de Junho

Na luz matutina e fria das quatro horas tenho diante de mim um espectculo
nico, quatro ilhas saindo do mar ao mesmo tempo a Graciosa dum verde muito tenro
acabando dum lado e do outro em penhascos decorativos; a Terceira muito ao longe
quase desvanecida; e a meu lado, por trs do biombo violeta de S. Jorge, que se estende
ao comprido nas guas, o cone do Pico aguado at ao cu, transparente como se fosse
de cristal. Isto frio, ntido e ao mesmo tempo irreal, num cu de esmalte onde se
destacam a buril as linhas regulares do Pico, com uma nuvenzinha quase pousada na
extremidade. s num ponto e passa num instante, porque o navio no pra no
instante em que o Pico se revela erguido at ao cu e as manchas violetas das ilhas tm a
cor passada da nuvem que vai desfazer-se enquanto a Graciosa ali perto se mostra
toda verde. Horizonte largo, mar e panorama luz da madrugada. A limpidez da atmos-
fera mantm-se apenas segundos: ao nascente mexe-se j, dotada duma vida
extraordinria, uma grande nuvem esponjosa e plmbea, doirada nos bordos. Em
aparecendo o Sol, as nvoas comeam a sua misso agitada.

um momento s um momento de transparncia e serenidade na primeira luz
matutina que toca o cu e hesita. Esta luz gelada de sonho dura um segundo: amontoam-
se logo farrapos sobre a Terceira, perdida ao longe...

Com o tempo que passa e a marcha do navio, deslocam-se as ilhas, aproximam-se
ou afastam-se as falsias. Digo adeus para sempre Graciosa grande plaino entre dois
montes redondos com a povoao branca no meio. J S. Jorge toma minha vista
deslumbrada outra posio e relevo. Esta ilha esguia, que parece um grande bicho tona
de gua, mostra-me no fochinho penedos aguados como dentes. D-lhe agora o sol.
Mas eu j sei que a luz que convm ao arquiplago no esta. O sol pior que a
sombra. Os cabos metidos pelo mar dentro tornam-se agressivos, quase negros e mais
duros... So dez horas: uma nuvem branca e esguia cortou o Pico pelo meio e o cone sai
da nuvem suspenso no ar por milagre. J se distinguem os montes do Faial envoltos em
nvoa como algodo em rama. Navegamos perto da muralha de S. Jorge, cortada a
pique sobre o mar. Alguns paredes esboroam-se. No alto, campinhos muito verdes.
medida que nos aproximamos, a temerosa falsia parece maior e mais escura, e, logo
que dobramos o cabo negro e dramtico desta ilha, todo o Pico emerge inteiramente
azul do mar esverdeado, tendo direita o Faial dum azul quase violeta. E entre estas
manchas desmaiadas que torneamos o cabo a prumo, rasgado de escrias cinzentas,
cortado de chapadas altas e sinistras, como se a ilha .tivesse bruscamente derrocado.
Mais montes abruptos tombados para o lado; uma elevao negra e vermelha com
estrias ferruginosas, onde palpita ainda a convulso vulcnica e se sente a aco
constante das guas e deparam-se-me as Velas ao fundo da temerosa ribanceira. O S.
Miguel fundeia, e o negrume das rochas desdobra-se no mar em negrume, onde a tinta
azul quer entranhar-se e no pode: fica negra, reflectindo a falsia toda negra. um
panorama do princpio do mundo, dum mundo desolado de pedra e mar. L no alto o
nevoeiro estendido derrete-se, apegado s rochas, e quando nas afastamos desvanece-se
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o verde dos grandes montes da ilha, tornam-se mais disformes as sombras que viajam
sobre a terra, e esta costa spera e brutal pouco e pouco empalidece, enquanto no Pico
um ou outro risco mais ntido sobressai no violeta. Distingo agora perfeitamente os
moinhos afadigados e os remendos das culturas: no meio da ilha, o pico, envolto no seu
manto cinzento, assume a majestade do monte onde Deus falou a Moiss. Arrasta-se
pela terra uma nuvem pegajosa que a engrandece e deforma. Ao lado, a sucesso de
colinas azuladas do Faial vai-se tornando mais ntida. Estas grandes rochas que mudam
de stio e de cor fundem-se no azul, enquanto outras se aproximam e avolumam; o
espectculo imenso que se desenrola diante de meus olhos atnitos d-me a impresso
de que as ilhas nascem do mar e se vo formando nossa vista pela mo do criador.
com febre que assisto gerao do panorama largo e renovado. De p, proa do barco,
vou aportando a novas ilhas que emergem das guas, sadas da madre a escorrer tinta.
Passamos pelos dois penedos avermelhados, entre o Pico e o Faial, que est a dois
passos. Um grande morro verde, colinas dum verde tenro ao fundo e uma fiada de
casinhas olhando todas para mim. Outro morro fecha a baia em semicrculo. Ponham
sobre isto um cu baixo e uma humidade constante. Chove. Mas no preciso chover: a
nuvem esponjosa desce, envolve, impregna e dissolve. At por dentro os seres e as
coisas devem criar bolor.
A noite irreal, a noite azulada dentro do porto, encerrado em chapadas de
negrume com farrapos agitados. Dum lado aquela escurido magntica cujo
desconhecido me atrai manchas sobrepostas de colinas, que se fundem num borro
imenso, mais escuro medida que as horas desfalecem. Ao fundo, do outro lado do
canal, destaca-se na atmosfera esbranquiada o tringulo imenso do Pico, que cada vez
se me afigura mais solitrio e maior, como uma gigantesca figura de guarda ao
Atlntico. A larga estrada do luar escorre, movendo-se num jorro de folhetas prateadas,
que se sucedem e agitam at ao costado do navio. De quando em quando um chuveiro
cai, numa profuso de jias. Ao longe ergue-se a vaga todo o cume cintila desfaz-se
a vaga ao p de mim em riachos de luar, que borbulham e se derretem por todos Os
lados na grande estrada de luar. Sucede-lhe e sobe logo outra vaga, sombria e enorme
e j a crista iluminada ascende, cintilando de pedrarias para redemoinhar em luz, para
se desfazer em luz. S no horizonte aquela grande esttua imvel e trgica enche o cu
de negrume e espanto.

Ainda de noite, seguimos a caminho do Corvo, com o mar chocalhado, como se
diz nos Aores. Este canal amargo. s cinco horas da manh do dia 17 estamos vista
de duas manchas azuladas, Flores e Corvo, sob um cu velado e em guas revoltas.
Uma hora depois distingo perfeitamente o cone de bronze truncado, com escorrncias
de verdete no alto. No se v uma rvore naquele enorme pedregulho batido pelas
vagas. com apreenso que desembarco no stio mais pobre e mais isolado do mundo.

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O CORVO


Quero que o meu corpo seja sepultado no cemitrio da ilha do Corvo, a mais
pequena das dos Aores, e se isto no puder ser por qualquer motivo, ou mesmo por
no querer o meu testamenteiro carregar com esta trabalheira, quero que o meu corpo
seja sepultado no cemitrio da freguesia da Margem, pertencente ao concelho de
Gavio; so gentes agradecidas e boas, e gosto agora da ideia de estar cercado,
quando morto, de gente que na minha vida se atreveu a ser agradecida.

(DO TESTAMENTO DE MOUZINHO DA SILVEIRA)


17 de Junho

Pedra negra, areia negra e um mar esverdeado, que de Inverno assalta, vagalho
atrs de vagalho, este grande rochedo a pique, com fragas cadas l no fundo e que as
guas corroem num rudo incessante de tragdia. Cu muito baixo, nuvens
esbranquiadas. Braveza, solido e negrume.
Uma nica povoao de meia dzia de ruelas ftidas, lajeadas do burgo, algumas
com meio metro de largura, onde se fabrica o estrume. A igreja, um largozinho, e, logo
por irs do povoado, o monte severo, erguido em socalcos e cado a um lado. A mesma
labareda devorou tudo isto: os interiores, as paredes, os telhados. Velhas de leno e,
sobre o leno, o xale escuro, homens de barrete, descalos e de pau na mo. De quando
em quando, duma pequena janela, espreita a cabea duma mulher ou o focinho duma
vaca. As casas denegridas, onde vive o homem e o boi, tresandam a leite e a corte. Os
rapazes cheiram a gado. volta dos casebres meia dzia de leiras de centeio e trigo
divididas por muros de pedra solta. E tudo to humilde, to feio, to s, que me mete
medo. Um penedo e vento na solido tremenda do Atlntico.
No h mercado nem estalagem. No h mdico, nem botica, nem cadeia. As
portas no tm chave. No h ricos nem h pobres, e neste mundo isolado tanto faz ser
rico como pobre: o homem mais rico do Corvo anda descalo como os outros e lavra a
terra com os filhos. O pedreiro pedreiro e lavrador, o ferreiro ferreiro e lavrador, e
morre fome quem no fabrica os currais por suas prprias mos. Ningum se sujeita a
servir mas todos os vizinhos se ajudam: quando toca o sino a rebate, o povo acode a
destelhar a casa, a construir a corte ou a levantar o socalco.
Olho para isto to pequeno c to pobre, para os campos retalhados de muros
escuros, para as eirinhas redondas com lajedo de lava e um pau ao meio, a que se junge
o boi que debulha o trigo; para os seres e as coisas do mesmo tom apagado e uniforme;
olho para a ilha descarnada pelo vento, to forte de Inverno que o sino tange sozinho, e
sinto-me como nunca me senti, isolado no mundo. Que vim eu aqui fazer? Foi esta
pedra isolada no mar com alguns seres agarrados s leiras que me levou viagem? Foi
este resto de vulco, sem paisagem nem beleza, que me trouxe? Mas aqui no h nada
que ver! Almas to descarnadas como o penedo e uma vida impossvel noutro mundo
que no seja este mundo arredado. A vida natural? O homem pode aguentar-se na vida
natural, ou na vida artificial que est a felicidade? Vestido ou nu? para a Fuso e a
mentira que devem tender os nossos esforos, e a verdade em osso ser a imagem da
inferioridade e da desgraa?... To longe to s to triste! Mas reparo melhor e
lembro-me daquelas palavras dum homem em debate com a prpria conscincia: No
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Corvo, quando me sento mesa, todos mesma hora se sentam para jantar, e noite
no h desgraado sem abrigo. Na verdade, no vi andrajos nem misria. Ningum
pede esmola. Se um adoece, os outros lavram-lhe as terras. Aos mais pobres acodem-lhe
com queijos para o sustento do ano e todos matam um porco. O maior lavrador colhe
cento e oitenta alqueires de milho e quarenta o maus pequeno.
s duas da madrugada, na noite funda, com um rebramir de mar sempre presente,
ouo a buzina do pastor que chama os outros l do alto, do porto. E partem juntos no
escuro: vo ordenhar as vacas Ribeira Funda, Ribeira da Vaca, Feijoa dos Negros,
baldios a noroeste da ilha, por montes e vales, onde s crescem algumas faias e cedros.
Cada lavrador tem dois boizinhos, os bois do carro, ao p da porta; os outros andam nos
currais, ao ar livre, at Fevereiro. As vaquinhas, encantadora raa do Corvo, so
mungidas nos pastos, e produzem este leite perfumado, que no me canso de beber e
que sabe a todas as ervas rasteiras que cobrem o cho como um tapete, e que os pastores
designam uma a uma pelo nome: sabem ao trevo enamorado de trs folhinhas esguias
em cada ponta, ao guedilho, ao azevm, ao feno, solda de florinhas amarelas, mo-
furada, lia vaca, lia vaquinha, milh, erva estrelinha do flores brancas, e s
variedades de fetos que eles distinguem pelos nomes de feto serrim, feto rato e molar,
feto porco e feto branco que do camadas sucessivas de pasto nesta humidade que
destila o cu. Duas vezes por dia as ordenham se mama o leite, como eles dizem e
s ao fim da tarde comea a bicha a descer a ngreme ladeira. todo o povo que desfila,
como vi num grande retbulo de pedra esculpida a cinzel por um artista ingnuo os
pastorinhos, as moas com os cabaos ao quadril, as mulheres com os carregos e os
velhos j gastos. Uma expresso arcaica e dura e ao mesmo tempo resignao e dor. E,
com o povo que regressa todas as tardes da lavoura, vejo os instrumentos de trabalho
os cestos, as cordas, o alvio. E com o povo os animais, as ovelhas, os bois, os burros
carregados e os porcos que recolhem s cortes, completam o grande retbulo aberto na
pedra do Corvo. Esta pedra brava produz milho, trigo e l, com que os sustenta e veste,
mas a maior parte das terras so no vale do Fojo, numa ch beira-mar, a duas horas de
distncia, e as pastagens ainda mais longe. Todos moram na vila para fugirem solido
tremenda, todos trabalham naquela fraga dura como bronze cinzelado, nos cantinhos
onde a terra se juntou todos caminham descalos, duas vezes por dia, pelo nico
caminho spero que leva ao interior. Vida dura.
A gente semeia e o vento leva!
O vento a preocupao constante desta gente.
Ele o poder do mundo!
Vida dura para elas, principalmente, que vo todos os dias para as terras de cima,
duas lguas de caminho, com o alvio s costas, e que regressam tarde para fabricar os
queijos e cuidar dos filhos. So mulheres activas e espertas. Todas cardam e fiam, e
quase todas, num tearzinho rudimentar, fabricam o pano de que se vestem a si e aos
homens. E fiam muito bem e tecem muito bem. Toda a roupa da ilha cortada por suas
mos, e das que no sabem talhar, dizem: Coitadinha, tem pouco prstimo! Dispem
da chave da caixa. O homem entrega-lhes o dinheiro dos bois e elas governam-no. E
quando acontece haver alguma de quem o homem no confia, logo as outras clamam
num espanto:
Ai Jesus, Maria, Jos! e ela est com ele!
Ora isto de ter a chave da caixa uma coisa muito sria na lavoura. A caixa da
limpeza, sempre duma madeira dura para lhe no entrar o rato, e no Corvo de cedro
petrificado que se encontra no fundo da terra, ou de tabues de naufrgio que do
costa, o mvel onde se guardam os melhores panos, as moedas que se juntam tirando-
o boca, as coisas de maior prstimo e valia e as recordaes dos mortos. A caixa
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herda-se. E, puda de tantas mos, quase sagrada. J tenho visto lavradores morrerem
com os olhos postos na caixa e a chave metida debaixo do travesseiro. Ter a chave da
caixa ter o ceptro e o prestigio. E uma vez entregue mulher, nunca mais se lhe pode
tirar...


20 de Junho

Vou-me habituando a ficar com a porta aberta. Na primeira noite tive medo.
Agora durmo de um sono num colcho de palha milha, com a janela escancarada, por
onde entra o jorro que sabe a mar e a que se mistura o cheiro bravo do monte. Tambm
vou com os pastores e os lavradores sentar-me no Outeiro, onde est a Cmara, o
Esprito Santo e a cadeia vazia (agora mora l uma vaca), e ouo-os de roda nas
banquetas tomando resolues sobre a lavoura e a terra. A se juntam de manh antes de
partirem para o Fojo ou tarde quando recolhem. Sinto-me pequeno ao p do Antnio
da Ana, de barba curta e grisalha, do Santareno, que parece um apstolo, do Joaquim
Valado, do Manuel Toms, do sapateiro a arrastar a perna, dos velhos baleeiros de pra
e barrete s riscas na cabea, todos duma grave compostura fisionomias de santos ou
pedintes, onde h qualquer coisa de empedrado.
Emprestas-me uma carrada de lenha?
Pda puz! (com o que tu vens agora!)
Ento?
Duas, at.
Axo! (inda melhor).
Um a quem falo do padre explica:
uma bs de virtude!
E este a meu lado conta-me a morte da filha pequena e concluiu:
Morreu, mas engraada! engraada criana que foi para o cu! (engraada
sinnimo de feliz).
Isto dito com pausas e silncios compenetrados todas as figuras em roda a
olhar para mim, e numa lngua gasta como as velhas moedas que passam de mo em
mo, j no tm curso, mas ainda retinem com um som muito puro. Os homens so
esttuas por concluir, as frases rudimentares. Mas fisionomias e palavras exprimem
outra vida que quero falar e no pode, outra vida que no compreendo... Diz-se avezada
por habituada, emprega-se bradou por chamou, guindo por salto, adregar, etc. Beija-se
uma criana e a me diz-nos:
Deus lhe queira bem! Deus lho pague! Exclama-se: Vai-te a requer e Deus
diante! (Vai para o diabo mas com Deus!) E empregam-se frases e termos que nunca
ouvi e desconheo.
Est ali o presidente da Cmara, tosco e descalo como os outros, o administrador
do concelho e duas dzias de velhos descalos, figuras de outro sculo, falando uma
lngua desenterrada. Olho para aquelas mos enormes e duras apoiadas nos cajados,
para as barbas de madeira, para as fisionomias abertas a escopro por um escultor de
gnio que no chegou a conclu-las, e tenho a ideia de que j vi isto nos altares ou nos
prespios. Pertencem a outras idades. Parecem, pela fixidez, animadas por sentimentos e
ideias fora do nosso ambiente. Moldou-as pouco e pouco a solido e o silncio. Quase
me metem medo, como se o passado se pusesse a olhar para mim e a interrogar-me.
Quase me acusam (ou sou eu que me acuso?) da minha frivolidade. Um destes lavrado-
res parece Herculano e outro tem mos enormes e gretadas, mos de terra quase
desumanas.
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O que est vivo diante de mim a histria, o passado. So os homens da fala ou
do acordo, os parlamentos que se juntavam ao ar livre nos adros, na velha terra
portuguesa, e que talvez se renam ainda nos stios ermos do Barroso, quando cada
povoado era uma pequena repblica com assembleias populares, as chamadas, que
superintendiam nas sementeiras para lhes fixar a poca, no concerto dos caminhos, do
moinho ou do forno comum, resolvendo os pleitos e as questes de guas. No
esqueamos que, dividindo o terreno, uma parte era de Deus e cavado por todos.
Alhore... diz-me um.
Acordo.
Alhore o qu?!
E no h mais nada! Olho para o cu o mesmo cu pardo e baixo; para os bois
que passam com solenidade e que vo moer po nas atafonas, e tenho de me fixar outra
vez nestes homens que suportam uma vida dura e montona, fazendo todos os dias os
mesmos gestos e repetindo sempre a mesma meia dzia de palavras at morte. Ouo
rondar o Tempo... Aqui s h uma coisa a fazer: no olhar para fora, olhar para as
almas. Nunca houve no Corvo um assassnio ou um roubo. Aqui nunca se matou
ningum! exclamam eles com orgulho. Os moinhos tm as portas abertas, para quem
quer ir l buscar a fornada depois de moda. A minha porta ainda hoje no tem chave
diz-me o maior proprietrio da ilha. Se acham alguma coisa perdida no caminho vo
pendur-la num prego porta da igreja. A famlia sagrada e as raparigas so puras. As
grandes questes resolvem-nas no adro, ao domingo, o padre e os homens mais velhos
da ilha. Quando um corvino morre, quatro vizinhos encarregam-se de lhe abrir a cova e
levar o caixo que serve para todos at ao cemitrio. O povo acompanha o defunto.
Nunca vi como nesta ilha to extraordinrio sentimento de igualdade. O Corvo uma
democracia crist de lavradores.

Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo que conheo; aqui neste tremendo
isolamento onde a vida artificial est reduzida ao mnimo s as coisas eternas perduram.
No se pode fugir monotonia da existncia, solido que nos cerca, slida
arquitectura dos montes que apertam e esmagam. Sempre presentes o plano revolto e
amargo das ondas e a povoao isolada e denegrida. Passam se meses sem notcias do
mundo, e com as Flores comunica-se com fogarus que se acendem nos altos, porque o
canal largo e to perigoso que arroja de Inverno os peixes mortos praia. aqui que o
Tempo assume propores extraordinrias. Vejo diante de mim a figura monstruosa,
que suprimimos da existncia ftil, arredando-a e esquecendo-a, o que no Corvo preside
a todos os actos da vida. O Corvo no tem peso no mundo, mas nunca senti como aqui a
realidade e o peso do Tempo. Sob o seu domnio todos caminham, repetindo os mesmos
gestos e as mesma palavras, e arrastando o mesmo fardo sem levantarem a cabea nem
desatarem aos gritos.
Estas figuras despidas e trgicas so tremendas como problemas insolveis.
Erguem-se diante de mim, e arredo tudo, esqueo tudo para os interrogar. No que eles
me saibam responder eu que hei-de responder a mim prprio, porque foi isto que me
trouxe ao Corvo.
o ermo que as torna grandes? a vida spera e comezinha? No h pior do que
meter alguns homens dentro dum barco na solido do mar. Ao fim de algum tempo
detestam-se. No tm que dizer uns aos outros, e detestam-se. Imaginem o que seria
atir-los para este rochedo e deix-los sozinhos para sempre: ao fim de algum tempo
matavam-se. A solido amarga o homem um bruto. Quando Rousseau se entranha
na floresta, procura e encontra o quadro dos primeiros tempos da humanidade e,
comparando o homem natural com o homem artificial e mostrando no seu pretendido
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aperfeioamento a verdadeira origem de todas as suas misrias Insensatos exclama
que vos queixais sem cessar da natureza, sabei que todos os males vm de vs pr-
prios! A natureza descarnada mete medo, a natureza s nos impele a actos horrveis
de instinto. Ao contrrio do que diz Rousseau, o que ns temos a fazer arredar a
natureza para confins ilimitados e tender para o homem ideal. Deus nos livre do homem
descarnado, ss a ss com a sua tragdia, diante do acaso e do absurdo do homem
subjugado pelas necessidades elementares sobre a fraga no meio do mar, para dela
extrair o necessrio vida, sem poder levantar a cabea! Reconheo agora nestas
figuras, escavacadas enx, outra expresso e leio-lhes nos olhos nsia que eles no
sabem interpretar... O preto, num meio ubrrimo, no foi condenado este homem
que foi condenado solido e ao trabalho. Ora na vida o essencial no o po, outra
coisa sem a qual mais nos valia morrer. O essencial o sonho que transforma o homem.
Ser ento Chateaubriand que tem razo quando diz esta coisa horrvel: certo
que ningum pode gozar de todas as faculdades do esprito seno quando se
desembaraa dos cuidados materiais da existncia o que s possvel nos pases onde
os ofcios e as ocupaes materiais so exercidos por escravos ? Toda a civilizao
um produto de dor. Para manter a vida artificial, sem a qual no podemos passar,
preciso que muitos sofram. J no concebemos a vida sem arte, sem livros de capa
amarela, sem bodegas de teatro at ao dia do terremoto universal. Mas era preciso
perguntar aos desgraados qual a sua opinio, consult-los e consultar a nossa prpria
conscincia para saber se o progresso material se no tem feito custa do progresso
moral e espiritual...

O que na solido os livra da natureza e do inferno a religio. ela que, alm da
vida montona, da vida horrvel, lhes mostra outra vida superior. ela que os une e os
salva.
Cada vez compreendo menos a existncia!... Ento se a religio produz isto este
homem puro , que andamos ns a complicar a vida? Cristo est aqui Cristo e a
pobreza Cristo mais descarnado do que eles um Cristo que mete medo. Todos
pobres, todos descalos, todos inexpressivos. E nem uma figura, nem um grito, nem
uma revolta! Este homem um produto do isolamento e da religio, e so as regras
catlicas que conseguem esta uniformidade e a monotonia das almas. Subordinar-se,
obedecer, no discutir... Apesar da beleza do sacrifcio, falta aqui alguma coisa... Do
rebanho no se destaca uma figura. Ser o Diabo to necessrio no mundo como Deus
para no abrirmos todos a boca com sono e para que se esculpam a gritos certos seres de
contradio e de desespero, que bradam aos cus e se dilaceram diante do universo
indecifrvel, atrevendo-se a levantar a cabea e dos quais no podemos arrancar os
olhos atnitos?!
Ou ser tudo intil? Ser tudo vazio e intil? Um grito diante deste espectculo
fantasmagrico do vasto mundo, entre foras cegas e com um deus presente e
monstruoso a quem tivessem arrancado os olhos para no ver?... Um grito e mais nada...

Agora sei que estes homens com fisionomias de painis, ossaturas enormes e
mos gretadas, me metem medo... Sua expresso diferente a expresso de ser que
vive sob o jugo de ferro do tempo e das necessidades primitivas. Tambm j sei o que
h no Corvo de importante: no so os costumes toscos nem a vida grosseira o que h
aqui de importante a Vida: mortos e vivos formam um corpo Mortos, vivos e pedra.
Mortos, vivos e Cristo. Somos completamente diferentes nas palavras, nos sentimentos,
nas ideias. Qual de ns melhor? qual a verdadeira vida? A deles ou a nossa?...
Noutra parte suprimo e arredo estas ideias como suprimo e arredo o tempo. Mas aqui
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tenho sempre presentes a ideia de Deus e a ideia da morte e vejo o tempo medir minuto
a minuto na ampulheta a vida que passa. A ilha pobre e escalvada, o silncio mete
medo, e o isolamento completo e fechado em roda pelo mar atormentado. Na verdade,
eu no podia viver como estes homens, mas na hora da morte queria ser um destes
homens.


22 de Junho

No Corvo no h estradas nem eles as querem. Subo o nico caminho a pique
que leva ao interior, por entre montes desolados, divididos por muros de pedra solta,
tantos que parece ser esta a vegetao natural da ilha. So as pastagens para a engorda
dos bois e dos gueixos. Apegado a um bordo com ponteira de ferro, atravesso os
Pastelos, onde nos dias do fio tosquiam as ovelhas, os baldios e mais montes vestidos de
queir escura, mais montes severos. Uma nuvem esponjosa arrasta-se pelos altos toda
a terra est empapada de humidade. o reino montono da erva. Depois de duas horas
de caminho chego cratera do monte Gordo, imenso circo perfeitamente arredondado, e
com um escoamento to regular que parece feito pela mo dos homens.
L no fundo reluz um lago com algumas ilhotas verdes o ilhu do Morcego, o
ilhu do Mato, as ilhas do Manquinho, do Brao, do Bracinho e do Marreca, que
figuram o arquiplago. Nem uma rvore, s erva verde tosquiada e junco vermelho. O
cu enfumado e muito baixo pousa sobre os bordos do vasto caldeiro. As rampas dum
verde-claro descem at ao fundo com escorrncias em fio de musgo branco e riscos
petrificados de escrias, que vm do alto e acabam no lago polido. Numa das margens
fixou-se um fantasma indistinto, todo branco. Olho o vasto coliseu. Pedras, calhaus
cobertos de lquenes, roxos como flores enormes, foram atiradas a esmo por todos os
lados. A regularidade da grande escavao com os bordos intactos, a cor estranha das
moitas enormes e redondas de musgo branco, os grandes paredes riscados de bronze e
verdes at baixo, a serenidade das guas quietas, o fantasma imvel, a luz fria e a
solido petrificada com o cu pousado sobre as nossas cabeas, transportam-me de
repente para outro planeta, para o interior estranho duma cratera lunar, para um mundo
de sonho, habitado pelos garajaus brancos que passam l em cima como plumas. O
nevoeiro cor de prola desce devagar dos bordos, arrasta-se pelas paredes deixando-as
todas molhadas, entranha-se e afoga o Caldeiro, transformando-o numa grande
fantasmagoria, dando-lhe personalidade e vida, para outra vez se erguer lentamente em
silncio, deixando mostra primeiro o lago com as ilhotas boiando como monstros
petrificados, depois todo o fundo, depois os enormes paredes at l acima. A alma
desta runa sem serventia, deste mundo espectral de que s restam estilhaos, deve ser o
silncio. o pas do silncio eterno, cratera iluminada por outra luz, com uma
vegetao rudimentar de musgos e lquenes: assim deve ser o Lago dos Sonhos, para l
do ter frio, na carcaa branca e inerte da lua...
Comea a ouvir-se a voz trgica do vento, que geme, adquire aqui dentro
sonoridade que pe medo e grita, chama l nos altos como se fosse a voz da cratera
pregando aos cus. Esta paisagem morta, esta cor de glicnia das pedras esparsas, o
nevoeiro que azula e corre em vagas fantsticas sobre os musges brancos, descendo ao
lago sem uma ruga, para ascender at aos bordos da cratera e ficar suspenso em velrio,
do-me uma cena irreal de que me custa a separar. No compreendo bem, no sinto bem
a vida desta coisa monstruosa e oculta no oceano, s para as aves e os pastores. H em
mim uma apreenso vaga, medo de interromper o grande silncio e de chegar a ouvir
esta grande mudez. Encosto-me pedra diante do mistrio, at que nos pomos outra vez
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a caminho descendo a pique pela outra parte da ilha. Aparecem algumas rvores muito
baixas: o majestoso cedro um arbusto a que chamam zimbreiro. O vento no o deixa
crescer: torce-se, geme, tem cem anos e seis palmos de altura. Sucedem-se as moitas de
queir e o musgo que absorve e conserva a humidade como esponjas. a parte
selvagem da ilha, Feij da Era e quebrada da Lomba, onde se encontram cabras bravas
que parecem coras, de plo curto cor de mel, com uma risca preta pelo lombo abaixo,
rbitas salientes, e dois pequenos chifres direitos e agudos, com que se defendem dos
ces. Regresso pelos baixos, pelos campos de cultura, cortando os vales do Fojo e do
Poo de gua.
Observo que grande a convivncia entre estes homens e os animais.
Comunicao to fcil com os bichos s devia ser assim no princpio do mundo. O
animal domstico mais inteligente e deixa-se guiar, donde depreendo que as histrias
do tempo em que os bichos falavam so uma coisa muito sria. Em primeiro lugar no
h na ilha um animal nocivo: nem mesmo o milhafre, que deu o nome ao arquiplago,
se atreve a passar o largo canal do Pico s Flores e Corvo. Depois, no encontrei um
caador: s aqui existe uma espingarda sem fechos. As pequeninas vacas originrias da
ilha que vo acabar e pena so duma inteligncia e duma meiguice extraordinrias:
falam-lhes e elas respondem; os porcos soltam-se de manh, saem o porto, vo para
o monte ganhar a vida e tarde cada um recolhe a sua casa. Os pssaros so familiares.
Ningum lhes faz mal. A toutinegra cinzenta de poupa escura canta num ramo ao fim da
tarde mesmo ao p de mim. O desconfiado estorninho anda aos bandos catando a rosca
do trigo, sem medo nenhum. Aqui arribam os aguarelhos, todos brancos. No canal, ao
p das tartarugas, biam cagarros aos milhares, cevando-se no banco do chicharro, e
recolhendo s pedras, para toda a noite se entreterem numa conversa de velhas
esganiadas, sobre o tempo, o mar, os peixes, que a gente chega a entender perfei-
tamente bem, e que ainda hei-de reproduzir um dia se vier. Na grande cratera pem
ovos os garajaus, que aparecem em Abril e emigram em Setembro. Dir-se-ia que uma
ndole extraordinria de mansido abrange os homens e os bichos, sujeitos s mesmas
leis severas da vida natural. As prprias cabras selvagens, ao fim de alguns dias de
comunicao, se tornam familiares.
Seguimos e reaparecem os muros, os eternos currais com a sua servido estreita a
que chamam canada, o porto, buraco para o gado entrar, que os pastores tapam com
pedras, e o chiqueiro onde noite recolhem os novilhos e pelo caminho fora
acompanha-me sempre dum lado o mar, do outro este labirinto inextricvel de
estilhaos sobrepostos. As raparigas acodem com as cabaas oferecendo-nos leite espu-
moso e morno e gritam s vacas: Oug trigueira! para elas porem os ps a par e as
ordenharem melhor.


23 de Junho

Nunca encontrei homens do campo cujo esprito se pusesse logo em comunicao
com o meu: h sempre uma parede de manha ou de inrcia a romper. Estes no, estes
olham-nos nos olhos e falam com desassombro. Nenhuma hipocrisia. A senhora Emlia
diz-me: Esta casa era do padre; tanto andei volta dele que me fez um filho. E ainda
no h cinquenta anos que as raparigas tomavam banho nuas diante do povo.
noite vm conversar comigo casa onde durmo. A luz escassa: ficam frente
o Hilrio, o Cabo do Mar, uma ou outra mulher e, ocultas na sombra, fisionomias que,
quando se aproximam da candeia, ressaltam cheias de relevo e carcter: a boca que quer
falar, a mo que reentra logo no escuro... Todas tm um ar de famlia. O senhor Manuel
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Toms, de setenta e cinco anos, barba grisalha e curta, olhos pequeninos e j velados
pela nvoa da idade, um dos grandes proprietrios da ilha, conta-me o Corvo de outros
tempos:
Fome! muita fome! ... A ilha andava avexada: pagava quarenta mios de trigo e
oitenta mil ris em dinheiro ao senhorio de Lisboa. A gente inda me lembro andava
vestida com umas ceroulas compridas, por cima um calo de l, tingido de preto com
mandrasto e uma jaqueta aos ombros, a barba toda e uma carapua na cabea. No havia
lumes. O lume conservava-se nas arestas do linho e quando sucedia apagar-se iam-no
buscar lmpada da igreja... Fome! muita fome! O mais que se comia era juna, uma
planta que d uma semente pequena debaixo da terra, de que se alimentam os porcos.
Moa-se nas atafonas e fazia-se farinha e bolos... s vezes trocava-se uma terra por um
bolo de juna. Fome!
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Est gente de p porta. Escutam da cozinha, e l para o fundo da sala h outros
atentos na sombra que remexe.
Muita fome! E as mes diziam: Deixa-me guardar este bolinho de juna para
os meus meninos comerem pelo dia fora! exclama um tipo curioso de mulher com a
pele lvida revestindo-lhe os ossos, uma fisionomia cheia de expresso e os olhos
cobertos por uma membrana to fina como a pelcula dum ovo. E continua: Chegavam
a comer razes de fetos... E saiba o senhor que o grande erro deste mundo vem de um
engano de S. Pedro. Nosso Senhor disse-lhe um dia: Pedro, vai fora da porta e diz ao
mundo: O pobre que viva do rico. Mas S. Pedro chegou porta, enganou-se e disse:
Ouam todos que tm ouvidos para ouvir o rico que viva do pobre!
E j outra, que est a soprar as brasas entre as pedras da cozinha, avana, morta
por falar, e pergunta de repente:
O senhor tem filhos?
Eu, no.
Ento o melhor era morrer, para me deixar alguma coisinha. E ri-se.
Uma, do lado, repreende-a:
Est calada!
No faz mal, que este senhor nosso.
No havia dinheiro continua o sr. Manuel Toms.
No se vendia nada, trocava-se tudo. Quem tinha uma casa a fazer, tocava o sino
e a casa fazia-se num instante. Sabo, tabaco e pano azul traziam-no os baleeiros, e o
povo dava-lhes cebolas e batatas. Os rapazes embarcavam no contrato da baleia, e as
mulheres e os velhos que faziam as terras. O mais que se comia era centeio, muito
pouco, e juna. Os boizinhos pesavam sessenta quilos e a l das ove1has era comum e
tosquiada em comum. Houve sempre um juiz nomeado pelo povo, a quem toda a gente
obedecia e que mandava fazer os servios da lavoura. Muita fome e muito vento, que
destrua como este ano todas as colheitas. O pasto era lambido em Setembro por uma
doena. Ia-se ento ao bracio, que s nasce nas rochas, para dar de comer ao gado...
Muita fome! muita fome! dizem todos os do escuro.
E aquela velha seca e nervosa, chegando-se mais frente, brada-me cara a cara
talvez me julgue empregado do Fisco:

1
Em Maio vieram do Corvo Terceira os ilhus mostrar ao filsofo o po negro que comiam, e
pedir proteco ao tirano. Era uma cena antiga: parecia uma das velhas repblicas da Grcia, e Mouzinho
de facto um Licurgo, um Slon, com doutrinas, porm, opostas s dos antigos. No po negro dos ilhotas
do Corvo, escravizados pelas rendas do donatrio da ilha, viu o ministro um verdadeiro crime, e a teoria
que o dominava embarcou-o em concluses temerrias. S reduzia a metade, no abolia o foro; mas
acrescentava: Vo passando os tempos em que se entendia que a terra tinha um valor antes de regada
com o suor dos homens, nem possvel o contrrio quando a broca da anlise vai penetrando o mundo.
Portugal Contemporneo OLIVEIRA MARTINS. O po era o de juna.
19
Olhe o senhor as dcimas!
Vejo melhor as figuras, o Hilrio tisnado, o Cabo do Mar ruivo e falazo, os
homens de idade, todos com a mesma expresso grave, a expresso nua de quem sabe o
que a vida e a morte. E olham para mim como para um ser diferente:
Olhe o senhor as dcimas!...
Depois, tambm houve aqui uma mulher que mandava tudo. D. Mariana da
Conceio Lopes, filha de padre, ia de capa para a igreja e de botas nos ps, quando
toda a gente andava descala. Isto deu-lhe um grande respeito; todos comearam a
obedecer-lhe. Era ela quem dizia: Uma pessoa no se deve gabar nem queixar. Se se
chora, os pobres lastimam-na: Coitada. Se se gaba, dizem: O que ela tem, e no d
nada gente!... Diabo de pobres! Chegou a ser a rainha do Corvo: aconselhava,
arranjava dispensas e punha e dispunha a seu grado.
Ensinava o povo.
Ensine-nos o senhor alguma coisa. O que ns queremos que nos ensinem a ser
ricos!
Ensinem-me vocs como se canta no Corvo.
E sempre aquela mulher alta e esperta diz:
Aqui canta-se a Chama do Ladro, a da Rita Comprida, a das Vacas Lavradas,
bailes de outros tempos. Oua a das Vacas Lavradas:

minhas vacas lavradas
Quando vo pra a sarradela
Do meia canada de leite,
Mas no cabe na panela.

E bem gordos, bem formosos
Os bezerros atrs delas...

Toada e palavras inexpressivas mas eu vejo um pouco de nvoa pela manh, a
erva molhada a escorrer e frente do gado a pastora de olhos lmpidos que se parece
com os bichos... O sero acabou. Todas as noites se retiram a esta hora, quando as
cigarras comeam ao desafio, falando umas com as outras em dilogos roufenhos que s
acabam de madrugada. ento que eu sinto mais pesada a imensa solido entre montes
ermos, num povo perdido no mar.

Os costumes mudaram muito pouco. Ainda hoje os corvinos preferem trocar a
vender. S a ilha produz mais; produz tudo que esta gente precisa. Vem o jantar para a
mesa num grande alguidar, sopa com toucinho e batatas. Bebem o leite perfumado do
cabao que anda de mo em mo. O leite trabalha sempre, como eles dizem; bebem-no
de manh, ao fim da tarde com sopas, e l em cima com queijo e po. Vinho no h, e
mata-se um boi duas vezes por ano. A cozinha negra, com a caixa e a peneira, o lar e o
forno tudo coberto de fumo. Num rescaldo a grelha e o caldeiro; no tecto o toucinho
pendurado na tombaralha e as varas com espigas de milho. O vento entra por todos os
buracos da casa primitiva, com armao de cedro e canas entrelaadas de junco. Moem
o po nos moinhos de vento ou nas atafonas, em lojas escuras onde um boi calcando
estrume, com os olhos tapados e preso a uma grossa trave que se chama castalho, faz
mover o pio e o almanjar. H cinco atafonas na terra, e cada uma tem cinquenta ou
sessenta proprietrios, que as vo recebendo dos pais e as transmitem aos filhos. O
sentimento da propriedade levado ao ltimo extremo, at ao ponto de dividirem as
ruas por cancelas, e campos de meia dzia de metros quadrados por muros de pedra
20
solta. S h um vestgio de comunismo, que ningum se recorda que existisse: a l, que
foi comum, ainda hoje tosquiada em comum. E o dia do fio subsiste. Na ltima
segunda-feira de Abril e na ltima semana de Setembro, toda a populao se rene para
tosquiar as ovelhas, que distinguem pelos cortes das orelhas: cada famlia tem o seu
sinal registado nos livros da junta.
Toda a gente se submete s deliberaes dos velhos e do padre. grande a
influncia do vigrio, e em troca dos seus servios do-lhe trigo, centeio e batatas, e
num dia combinado levam-lhe leite e fabricam-lhe queijos para todo o ano. Na igreja as
mulheres esto ao meio do templo, de leno na cabea, separadas por balaustradas de
madeira, e acabada a missa esperam que os homens esvaziem o altar-mor e a porta do
adro para depois sarem. O respeito l dentro extraordinrio. Depois do casamento os
convidados juntam-se em casa dos noivos, volta dos ovos cozidos, vinho e massa da
noite, que esto na mesa. E vo comendo e pondo as cascas de lado, dizendo uns para os
outros, compenetrados: Manares de Deus! Dana-se at tocar missa do outro dia,
com os noivos sempre presentes e guardados pela famlia porque tm Nosso Senhor
no peito e s no dia seguinte que os deixam dormir um com o outro.
No h pescadores: quem quer peixe pega numa linha e vai pesc-lo.
Vais ao peixe?
Uai como quem diz: sim.
O mar abundantssimo. Vi pescar chernes negros, de olhos salientes, do tamanho
de rapazes, pargos, bonitos, bicudas, bocas-negras, escobares, gorazes, albafares de que
aproveitam os fgados para derreterem e se alumiarem. Tambm vi apanhar bejas
vermelhas com uma mancha escura no dorso (o macho), e a fmea cinzenta, o godio
azul, que tem muita espinha, garoupa, lambaz, rainha, castanha, patuscas, rocaz e
carapau. A tripulao divide a pesca em quinhes iguais que se chamam soldadas. E
alm da linha usam a tarrafa, atirando-a gua, e segurando a ponta da corda no brao.
H aqui muitos velhos que vo ao mar como rapazes, talvez porque vivem ao ar livre e
se alimentam de leite. O Xexa tem noventa e trs anos, a Catarina Vicente noventa e
um, a Ana Canoca noventa e seis, e os cabelos pretos, a Machada oitenta e cinco, o
Fraga e o Loureno Jorge oitenta e sete. Um deles diz-me, rindo com a boca desdentada:
Eu no tenho dentes nem para que os queira. Bebe leite. Se esto doentes, metem-se
na cama, sustentam-se de leite e esperam a sade ou a morte.

Um clima rspido. De Inverno o salitre entranha-se nos homens e nas pedras.
Quase sempre chove. Chove no dia seguinte ao da minha chegada, chove a 19 e a 20 e,
mesmo nos dias de sol, h uma baforada de nuvens pousadas sobre a ilha e em volta do
horizonte um rolo formando parede. O cu amanhece sempre nublado; se clareia at s
dez horas temos sol, seno conserva-se todo o dia forrado de nvoas. Ventanias speras
varrem o morro. O cu muda de aspecto todos os dias e quase a todas as horas. tarde
aquela fumarada espessa despega-se l de cima e arrasta-se sobre as pedras. Para alm o
cu azul est quase lmpido, mas a nuvem, que se no sabe donde vem, toma todas as
formas, e, sempre da mesma cor, fixa-se e no larga os montes do Corvo. s vezes pra,
volta atrs, introduz-se nas gargantas e nos vales, dotada duma vida estranha. Sempre
nuvens, sempre vento e em cada ano dois meses de Vero. s vezes um ciclone. Juntem
a isto o rudo eterno do mar que ecoa nos paredes e nas almas. O sentimento de
tragdia. Tudo se curva s leis essenciais da natureza neste rochedo vulcnico, erguido
no meio do mar amargo, e com espiges de granito at profundidades desconhecidas;
neste grande desterro, domnio do Tempo, onde a paisagem no sorri nem as raparigas
cantam. Todos os dias se fazem as mesmas coisas desde o nascimento morte. No h
uma questo vivem unidos como irmos quem precisa dum arado vai busc-lo a
21
casa do vizinho. As leis da necessidade impem-se no Corvo como em nenhuma outra
parte que conheo. a solido que as impe, a solido que lhes ensina a ordem, a
disciplina ou os sentimentos cristos? Ns, se no conseguimos suprimir o tempo,
arredamo-lo. Eles no. Tambm s aqui entrou em mim como uma realidade o que esta
palavra quer dizer: o po. O po preciso arranc-lo pedra ou morrer no meio do
oceano amargo. Tudo isto certo tudo isto comove tudo isto me no basta. Sinto-me
encerrado num presdio e a minha vontade fugir: a vida montona tem uma grandeza
com que no posso arcar. J no suporto a existncia natural. Nem sequer poderia viver
como os corvinos ali preso aos vivos e aos mortos, com o Tempo l no alto a presidir a
todos os actos necessrios e fatais da vida rudimentar. Inteis?... Se no fossem cristos
desatavam aos tiros uns aos outros. O problema tremendo no sai diante de mim, nu e
cinzelado como o prprio rochedo. Um minuto e a morte. Um minuto sem sabor e a
eternidade. Tenho a responder a diferentes perguntas... melhor que o tempo exista ou
que o tempo no exista? Suprimi-lo ou v-lo correr diante de mim, hora a hora, como
uma tragdia que no tem fim? O que vale a pena: viver pobre e ignorado com a
conscincia s ou extrair da vida todos os gozos que ela nos pode dar? S muito tarde
que se consegue satisfazer, melhor ou pior, a estas perguntas mas qual de ns no
quereria reduzir a vida material, com os seus progressos, para aumentar a vida moral e
espiritual e possuir a vida interior desta gente rude? Isto to pequeno e to grande que
eu olho, debato-me, e debalde tento explicaes.
Aqui no h desgraa aqui no h fome aqui no h injustia. E, no entanto, eu
no suporto a ideia de ficar no Corvo, que tem alguma coisa de monstico, de convento
erguido no meio do mar. O bem talvez a vida mais pura talvez menos sofrimento
talvez mas tambm eu quero ser deus, embora me dilacere e sofra!

E este debate, que me no larga, enche-me de tristeza. A pedra negra, a
vegetao utilitria, a vida grosseira mas com uma religiosidade como nunca vi em
outra parte. Estes seres isolados no mundo unem-se. Num Inverno em que at os
aguarelhos, que vivem no mar, morrem se no emigram a tempo, eles encontram refgio
no sentimento cristo de irmandade, que lhes faz suportar a repetio dos mesmos
gestos e dos mesmos actos grosseiros durante toda a existncia e o abandono a que esto
votados. Melhor: amam a sua ilha. Quando as raparigas embarcam para a Amrica at
das pedras se despedem abraando-as. O Corvo um mundo.

Populao exacta: 660 habitantes. J houve 900 mas a emigrao leva muita gente. Se a Amrica
abrisse as portas fugia tudo. Ainda assim dentro em pouco o Corvo deve estar despovoado. A natalidade
tambm pequena. Nascem de 15 a 18 e morrem de 18 a 20. H bastantes doidos, naturalmente por causa
da consanguinidade.
Li todos os papis da administrao, os da cmara arderam. Efectivamente no h notcias de
crimes e o administrador farta-se de mencionar todas as semanas, desde i844: No h ocorrncias. No
h crimes. Percorro os papis do juiz de fora desde 1836: pequenas questes de partilhas sem
importncia, de que saem conciliados. Todos os pleitos com rarssimas excepes so resolvidos na
ilha. Ainda h pouco tempo o preo da vida era o seguinte: uma dzia de ovos custava um vintm, uma
galinha um tosto, a carne de vaca oitocentos ris a arroba.
Os corvinos no querem nada do Estado seno uma bateria elctrica que falta no posto da T.S.F.
para poderem comunicar com o mundo e responder aos navios que lhes pedem informaes. Notem que
j existe um posto e um empregado, mas h anos que, por falta duma bateria, esto incomunicveis, tendo
visto naufragar vapores que em ocasies de tempestade perguntam por que costa devem seguir, sem lhes
poderem responder. Em geral o vapor da carreira, durante o ano s carrega os quatro meses de Vero
porque o acesso difcil. No Inverno o correio atirado gua, indo busc-lo a nado com uma corda o
cabo-de-mar. Ora durante esses quatro, cinco meses, pedem que lhes seja permitido embarcar o gado
que vem sem preo para Lisboa, e aqui vendido por o mximo, sendo-lhes remetido pelo agente o que
ele lhes quer mandar.
22

A FLORESTA ADORMECIDA

30 de Junho

As Flores e o Corvo erguem-se uma defronte da outra, separadas por um canal de
quinze milhas, o Corvo espesso e nu, as Flores violeta e verde com rochas violetas e os
cimos dum pasto delicado. Pelos altos das falsias povoaes esparsas, o Monte, a
Fazenda, Cedros, Ponta Ruiva, entre colinas arredondadas e renques de hortenses que
dividem os campos. L para o fundo trs pinculos escuros e mais longe alguns cerros
de um azul quase negro.
A costa vai-se aproximando com salincias e negrumes, e o verde tenro das ervas
cada vez mais tenro, destacando-se da massa espessa, onde emergem os pncaros cada
vez mais escuros. Um esguicho de sol cai de entre nuvens pesadas, ilumina e doira,
desfaz-se em poeira sobre o primeiro piano, enquanto o outro se conserva esfumado.
Mais pesada a massa dos montes, o recorte dos penedos; s a gua dum verde-claro
estremece a meus ps. Entramos pelas rochas afiadas do porto de Santa Cruz. Duas ou
trs ruas muito limpas, a igreja, a praa, o convento, e logo por trs uma colina
esmeralda de formas regulares e perfeitas como um seio tmido apontando o bico para o
cu.


1 de Julho

Hoje, outro dia enevoado. Com este tempo turvo, amanhece tudo cheio de
orvalho, as rvores, os milhos, o trevo em flor, as fitas prateadas da erva, cujas hastes
estremecem e no podem com o peso. Olho num espanto a volpia do monte verde
cortado por sebes azuis de hortenses, com uma grande nuvem cor de chumbo em cima;
a falsia monstruosa em roxo e verde, a luz carregada de humidade com clares
esbranquiados de nevoeiro, que alastram e se desfazem em nvoa peneirada e fina; o
Corvo ao longe, desaparecendo na humidade e reaparecendo, quando a cortina se
descerra a fisionomia estranha da terra, a vida efmera da gua, da chuva e do tempo
fantasmagrico. O carcter desta paisagem a serenidade com uma pontinha de tris-
teza... Sempre. enevoada e fresca, hmida, como aquele monte voluptuoso ao fundo,
uma paisagem casta, que se oculta e revela, uma paisagem feminina no momento nico
em que se desnuda com pudor. A chuva leve, as nvoas molhadas no passam de
orvalho doirado que o sol ilumina e atravessa. E quando cai (cai muitas vezes), em
borrifos que vm l de cima de uma brancura, sobre o calor abafado. De repente aparece
o Sol de repente tudo muda vista, como um cenrio, tornando-se difuso e turvo.
As nuvens nos Aores tm uma vida extraordinria, uma vida que no percebo
bem! Hoje uma sobre o Corvo lembra uma aurola magntica. Amontoam-se no
horizonte, surgem outras em bando, esguias nas extremidades, a que chamam baleotes e
que indicam mudana de tempo. H-as escuras com claridades extraordinrias pelo lado
de trs; h-as que viajam no cu com importncia de deuses... Tenho a impresso de que
h nas Flores a luz mais delicada dos Aores, a luz vaporizada que se sensibiliza a todos
os momentos. talvez da cor, que nica, do p roxo, do verde dos pastos sempre
tenro e uniforme talvez da mistura dos nervos do mar, da chuva de Vero, do sol que
se desfaz em oiro sobre tudo isto, e destas nuvens mgicas que interceptam a luz
ruborizando-se como grandes velrios de cor para logo se desfazerem diante de meus
olhos em arabescos, em fios tnues, em farrapos... Todas as cores se fundem e acabam
23
por se apagar em cinzento, deixando s resqucios na atmosfera hmida. Nunca assim vi
ambiente to rico em prestigio, sempre diverso e sempre em movimento. o cinzento
que predomina mas um cinzento colorido onde biam cores hmidas, principalmente
o verde e o violeta jorrando, atabafando em pardo e violeta montes verdes a escorrer.
o que d prestigio a esta terra molhada, onde o prprio sol parece molhado molhado e
doirado, to leve que mal trespassa o cinzento... Ento, um momento iluminado, o
panorama respira, arfa devagarinho como um seio, ainda orvalhado do banho e aquecido
pelo Vero, ruborizado e sorrindo por ter de despir a camisa diante da gente. Outras
vezes tudo desaparece ou toma propores fantasmagricas e a gua goteja doirada.
gua, ar e bruma intimamente se casam para produzirem esta impresso casta e
cinzenta ou toda violeta como a obra de arte de uma individualidade estranha.
Esta atmosfera explica que a ilha esteja quase toda a regime pastoril. Deixam de
cultivar os campos para obter mais erva: o menor esforo. O gado que no d leite,
farta-se e engorda para o mercado. Anda durante o Vero, dia e noite, nas relvas; s de
Inverno o trazem para a porta e o metem nos palheiros. Quase no h lavrador, mesmo
pobre, que no tenha trs vacas leiteiras. Erva erva erva fofa que cresce, logo
devorada e sai pelas tetas dos bichos. De todo este verde casto brota, incha, corre um
jorro constante de leite que todos os dias se transforma em manteiga. No se v correr
como as guas da Fazenda ou da Ribeira, mas o seu volume muito maior. Carne e
leite, eis o resultado do calor abafadio e da nuvem persistente que cobre a ilha e no a
larga, amornando-a e humedecendo-a. Todas as aldeias do litoral, viradas para o mar,
tm uma dzia de campos de milho e de batata-doce e cultivam alguns olheiros de
inhames necessrios para a sua alimentao. O resto pasto. volta e sempre, relvas,
ondulaes verdes de colinas. Do leite os montes e vales, e at do leite as crateras dos
pacficos vulces, que s vezes abrigam uma aldeia no seio. Um grande jorro branco
corre de toda a parte para as fbricas, se transforma em manteiga e embarcado para
esse mundo. A grande canseira da lavoura florentina ordenhar duas vezes por dia as
vacas enormes que trazem a rasto um bere monstruoso como uma doena. Da
transparncia verde e oiro, mgica e area, toda molhada e calma, com grandes pncaros
aparecendo e desaparecendo nas nuvens desgrenhadas quase imaterial sai leite
branco e tpido, como se o ar, o verde, a chuva, os clares esbranquiados, a atmosfera
mvel, se convertessem em leite, e esta fantasmagoria cinzenta e roxa que a gente s v
nas nuvens fugidias, doiradas pelo sol e que arremedam todas as imagens, fosse gerada
de propsito para ama de criao. Tudo tende para o mesmo fim. A erva v-se crescer
dum dia para o outro, regada pelo cu e sob uma luz velada de estufa. Por isso aquele
grande monte voluptuoso se me afigura simblico. um seio que se tumifica: do bico
apontado para o cu escorre um jorro perene de leite.
A vida no me interessa. Algumas florentinas esbeltas, de xale escuro pela cabea,
alguns tipos de homens fortes e mais nada. De ilha a ilha Corvo e Flores vo
quinze milhas mas que distncia as separa!... Aqui h escrives de fazenda
empregados pblicos senhores e plebe. Compreendo o Corvo, no compreendo os
interesses mesquinhos, modos e remodos numa pequena vila isolada a cem lguas do
mundo. Vejo s janelas, por dentro das vidraas, fisionomias tristes de velhos que esto
desde que se conhecem espera de quem passa e no passa ningum. aqui que o
hbito deita razes de ferro. Oh, meu Deus! descubro que a gente enterrada h cinquenta
anos se encontra outra vez nas Flores, viva e aferrada s mesmas palavras e s mesmas
manias do passado, numa meia-sombra em que se cria bolor. Estou talvez no Purgatrio
o Inferno mais ao norte... Certos seres mortos na minha mocidade, e que eu no
sabia onde se tinham metido, foram desterrados para as Flores. At personagens de
romance! At a D. Felicidade do Ea aqui habita e exala os seus gases, e outras damas
24
antediluvianas com broches ao pescoo e barrigas to grandes como j hoje no existem
barrigas no mundo! Visitei uma senhora de idade que nunca saiu de casa e at a
paisagem da ilha desconhece. Quem no trabalha s pode fazer uma coisa:
sentar-se nos bancos de pedra da Misericrdia e esperar a morte. E na verdade
aqui tanto faz estar vivo como morto e sepultado num jazigo de famlia.

Subo l acima quele seio tmido e doirado, cuja pele atinge a magnificncia dos
veludos. L do alto abrange-se parte da ilha, os vales cheios de rvores, a costa
recortada, os grandes plainos do fundo retalhados como uma manta pobre, farrapo mais
claro de trigo, farrapo amarelo de centeio j maduro. s vezes vem do mar um chuveiro
e toda a amplido desmaia ou se turva e afasta. Entre a cortina vaporosa distingo o
dorso arredondado das relvas, uma casota branca donde irrompe um cedro dum verde de
sepulcro, riscos escuros de pinheirais, e pouco a pouco desvendando-se, toda a amplido
sossegada, o anfiteatro da Ribeira de Barqueiros, a chapada quase negra da falsia, o
Corvo violeta, e a meus ps a vila em relevo. A impresso de frescura e calma, de
nvoas misturadas de oiro. Esta paisagem molhada e verde vaga como um sonho:
entreabre-se, fecha-se, sorri e adormece... Um silncio enorme (todos os rudos so
abafados pela nvoa), uma amplido de ervas gotejando, uma luz serena e toldada.
Duas estradinhas de alguns quilmetros acabam logo ali, uma no Boqueiro, outra
na Ribeira da Cruz, seguindo por entre casinhas brancas, quintalejos, hortas, milhos
envernizados de novo, renques de faias formando abrigo para o vento. Pastos e mais
pastos, e os tourinhos deitados na erva com a barriga cheia e que j no podem comer
mais. Todos os bichos esto fartos. Dos taludes rebentam moutas de sardinheiras, ps de
malves ou de hortenses viosas. Mais postos sempre... o paraso das vacas: negras,
amarelas, malhadas, com uma grande dignidade e o sentimento da sua importncia,
tomam o caminho, com o extremo das pontas doirado e os beres enormes a rasto pelo
cho. Outras afogam-se na erva tenra e comem e digerem, dormem e comem de dia e de
noite, olhando quem passa com desprezo. Por um rasgo v-se o mar espelhado onde a
luz esbranquiada das nuvens se reflecte, e l no fundo a Ribeira de Barqueiros com um
biombo de montes muito verdes. Todos os tons do verde esto aqui representados,
cheios de vio e frescura o verde-azul e derretido nos fundos, o verde-escuro dos
lagos de inhames, o verde macio das relvas, o verde-negro das faias, apagados e
fundidos no orvalho. Em direco oposta segue outra estrada pelas Alfavacas,
cultivadas a milho, a batata-doce e a tabaco, disposto em linhas regulares e com as
folhas pontiagudas entreabertas. Sempre a mesma humidade e a mesma cor... E este
verde sossegado insinua-se pouco e pouco e pacifica. Fica-nos na retina a cor verde e
nos ouvidos a flauta afastada dos melros que assobiam sem interrupo no arvoredo
formando biombo aos campos de milho. Esta linda estrada estaca de repente diante da
falsia e em frente da baiazinha de S. Pedro. Espero o pr do Sol doirado por trs das
nuvens cinzentas, espero a irrealidade do crepsculo nesta luz sempre cheia de sur-
presas. A costa para o nascente desdobra-se em cinzento, em roxo e negro no primeiro
p
1
ano, com uma grande nuvem cor de chumbo a desfazer-se-lhe em cima e um rasgo
de cu mais alto e claro, de plancie etrea cor-de-rosa. Da nvoa esfarrapada sai um
claro de fogo riscos de oiro atravessam a poeira incendiando tudo em exploso. Por
baixo a falsia alta derruba-se sobre o mar, com filamentos verdes derretidos nas guas.
No segundo plano o azul mistura-se ao roxo e ao negro requeimado de grandes penedos.
E no fundo anda p verde do mar entranhado no p roxo que dilui tudo na mesma
tonalidade as guas, o cu, as rochas aguadas e dramticas. Mais um momento e o
drama chega ao auge: um crepsculo em que a gente v as cores despenharem-se num
abismo uma atrs da outra o azul, o roxo, o lils, enquanto o horizonte se incendeia.
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Tudo isto, diante dos meus olhos deslumbrados, escurece, torna-se violeta, afoga-se em
nvoa, morre num estertor violeta e cinzento. E, por trs dos montes j negros, levanta-
se, aumenta e nunca mais cessa a fumarada prodigiosa das nuvens...


5 de Julho

Como no h estradas para ir Lomba, vou de barco pela costa. Os montes
despenham-se l de cima e estacam de repente, esboroando sobre o mar. So paredes de
barro vermelho, rochas vulcnicas, pedras dramticas (Escaninhos), falsias cortadas a
pique e revestidas de queir e inhames um grande panorama que desfila diante de
mim medida que o barco avana. s vezes a crosta amarelada entreabre-se e pelo
rasgo brutal da parede lisa (Faj do Conde) v-se um cantinho rstico que faz cismar...
Ora so socalcos cavados no paredo temeroso, ora so morros inclinados que ameaam
desabar, ora a imensa muralha violcea sobe a prumo at ao cu (e vacas minsculas
pastam l em cima beira do abismo). Quando o barco se chega mais perto olho a pedra
compacta duma altura que mete medo, os buracos abertos l para dentro, furnas e
cavernas, at a escurido incgnita cheia de vozes e rumores naqueles corredores infi-
nitos de mistrio. Mas dobrada a Ponta da Caveira a ilha muda de aspecto. Aparecem as
relvas do Congro, da Faj de Antnio Vieira, a Ribeira da Silva, a Ribeira da Boa-Vista,
e os fetos revestem totalmente as paredes, onde a gua escorre em fios azulados que se
despenham e reluzem em baba. Surgem mais pedras torturadas, as mil formas com que a
gua esculpe a rocha um arco de pedra e, perto da Lomba, a figura negra da Senhora
Dona, imobilizada sobre um pedestal branco. Desembarco e subo por um carreirinho
cortado na rocha em pequenos degraus. Ao lado o abismo. Subo sempre por entre
incenso e sara das ilhas, calcando a cidreira brava e o mentrasto, que esmagados
embalsamam. Atravesso os campos pela base dum penedo solitrio e enorme, a rocha
do Touro, e a ribeira da Faj, que faz mover engenhos primitivos e corre por entre
pedras, humedecendo os fetos brancos, de que se alimenta o gado, salpicando o feto
molar e o cabreiro com que se faz a cama aos bichos, e acabando por reflectir, numa
srie de poas lisas como espelhos, toda a verdura recortada das margens. Outra subida
e estamos na povoao da Lomba, duas vezes perdida no mundo, perdida no mar e
perdida nos montes. Uma igrejinha, um punhado de casas escuras, alguns campos
esparsos... Aqui nem o eco do mundo chega.

A nica devoo do povo aoriano, ou pelo menos a mais arreigada, o Santo
Esprito, que tem por fim principal dar de comer aos pobres culto remoto que vem do
fundo dos sculos, desaparecido no continente, mas que, levado pelos primeiros
colonos, perdura nos Aores. A abadia do Paracleto, fundada por Abailard com esmolas
do povo, foi a primeira e a ltima igreja elevada em Frana ao Santo Esprito. No sei
de outra no mundo. S nas ilhas no h freguesia onde Ele no tenha casa com altar e
coroa, sem imagens, fora da igreja e independente da igreja. O padre tolera o culto e
assiste s festas mas vo busc-lo a casa e marcha entre quatro varas grossas,
simbolizando os quatro apstolos, em que o povo o encerra...
Dizem nos Aores, e di-lo tambm o missionrio P. Marie H. Taque, no seu livro
recente sobre o serto brasileiro
2
, que foi a Rainha Santa quem introduziu o culto do
Esprito Santo em Portugal. Tentara erguer um templo ao Divino Paracleto, mas a obra,
por falta de recursos, ia ser abandonada. Ento, por terra, invocou o seu divino protector

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Chez les Peaux-Rouges. Gomes de Amorim, nas notas sobre o interior do Brasil, apensas a um
seu drama, de que me no recorda o ttulo, fala-nos tambm do mesmo culto do Santo Esprito no serto.
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numa orao fervorosa. Ao acab-la ordenou que todas as manhs lhe trouxessem
braadas de pequenas rosas vermelhas do campo, e todas as manhs orando
transformava em moedas de oiro as flores bravas do regao. A catedral, rapidamente
construda, cantava pelas flechas e pelas torres, erguidas at s nuvens, a glria e o
poder do Esprito da Luz e do Amor. Esta devoo espalharam-na os nossos
navegadores pelo mundo e, mesmo depois de extinta no reino, onde no deixou
vestgios, que eu saiba, continuou no serto e nos Aores, oculta como um cisma. Nas
ilhas e no Brasil todos os anos se elege um imperador para fazer a festa, que dura da
Pscoa a Pentecoste do ano seguinte. Procura-o em casa a multido e leva-o coroado e
de ceptro at igreja, onde o clero o recebe sentando-o no trono ao lado do santurio e
incensando-o como a um bispo (Brasil). Este imperador dos imperadores tem, porm,
uma misso que lhe impem os pobres: dar de comer a toda a gente nos dias da festa.
s vezes arruina-se para encher os ventres insaciveis da freguesia que o elegeu. As
roscas do Santo Esprito so aos montes levadas pelas mulheres em tabuleiros; a casa
do culto transformada em aougue. Ao lado dos carros de folhagem, danam os
folies, de balandraus vermelhos e altas coroas na cabea. De ilha para ilha a festa varia
de pormenores, como varia no serto. O que no varia o seu extraordinrio carcter
popular. No o padre que celebra o culto o povo que o celebra, o povo grosseiro e
rude, que traz para diante do Santo Esprito a Santa Matria. O padre apenas co
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abora.
Na Idade Mdia a Igreja tolerou-o e tolerou a Festa dos Loucos e do Burro, que entrava
no templo de solidu na cabea, acabando a missa por o padre desatar aos zurros, ao que
o povo respondia em coro com zurros mais altos. S pouco e pouco a Igreja substituiu
estas farsas, que em certas dioceses duraram sculos, pelo culto da Trindade, e o culto
ao Divino pelo culto de Jesus, Maria, Jos...
Mas ainda hoje h neste aparato, na intruso da gente que faz a festa, a comenta e
a celebra, nas cantigas e nos tipos admitidos ao altar, um grande carcter da igreja rude
e primitiva. Um momento o passado sai intacto do tmulo, com as multides que
invadiam o templo, misturando ao rito tragdia, chacota, medo de morte, e
comunicando-lhe uma vida grosseira e extraordinria...
O Santo Esprito festejam-no as irmandades no dia prprio, mas quem faz um
voto e o cumpre, recebe a coroa em casa, e se abonado d uma vasta comezaina a toda
a freguesia em qualquer domingo at S. Pedro. Hoje o imperador um americano que
voltou terra com dinheiro e que mandou matar dois bois e cozer quatro sacos de
farinha. V de encherem-se at lhe tocarem com o dedo! J cozeram a carne e as sopas.
Ainda de noite, vazou-se numa terrina a sopeira do encontro a primeira carne e as
primeiras sopas do caldeiro e uma rapariga saiu ao alpardo (amanhecer) e ofereceu-as
primeira pessoa que encontrou no caminho. De vspera os folies com bandeiras e
tambores trouxeram a coroa para casa do imperador e da imperadora, que mandaram
armar o altar na sala, paramentando-o com vasos de flores, fitas de seda, cordes de oiro
e uma bancada com velas acesas. Espreito. Nas ruelas da terrinha escura escoam-se
fantasmas. Duma ladeira surgem mais sombras. Todos se dirigem para a mesma casa,
onde os folies cantam a alvorada tocando bombo e testos, sete av-marias, diante do
Esprito Santo, danadas roda com extraordinria gravidade e sem nunca voltarem as
costas ao altar. Cheira um pouco a monte. A povoao est sentada em roda, os pastores
velhos ajoelhados atrs de mim e os mais pequenos agarrados banqueta... O cu
figurado no tecto por um paninho cor-de-rosa com uma pomba de papel dourada a meio.
Isto termina pelo oferecimento, comeando em tom menor e concluindo em terceira
maior, conforme os motes de pocas passadas.
Seja pelas almas dos defuntos do imperador!
Estas coisas exercem em mim uma influncia extraordinria. S grotesco o que
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perdeu a significao mas os folies com balandraus e coroas na cabea vm do
passado em linha recta e humedecem-me os olhos. Por trs de mim est gente em bicos
de ps. Todas as cabeas espreitam umas por cima das outras. E nos olhos daquele
pastor pequenino e esfarrapado que atento porta no se atreve a entrar com receio,
como se estivesse porta do cu, leio adorao e espanto. Ele escuta os versos para os
repetir no futuro.
Segue logo a ceia, cada prato festejado com a montona cantoria e por fim a
cerimnia do levantar das mesas. No fundo da cozinha enegrecida s vejo, como nos
antigos painis das almas, caras sem corpos que olham para mim. So tipos de terra,
feitos de terra, sujos de terra. Espreito para fora: pelos crregos e montes descem
luzinhas que se aproximam pouco e pouco. a gente que se esteve a enfeitar e que vem
Chama Rita. A meu lado, sentados num banco, reparo em quatro velhos, todos juntos,
muito graves, todos de barba branca, todos descalos e dois com grandes culos de aro
de folheta. Indaguei e soube que eram os sebastianistas. Estendo a mo devagarinho e
toco-lhes com receio, para ver se esto vivos. A nossa conversa foi muito simples. Nos
olhos daqueles homens havia uma candura e uma f que me infundiam respeito. Tinham
alguma coisa de diferente. Alguma coisa de extraordinrio que os estremava como
fidalgos da plebe. No era a atitude nem os culos enormes. Era o ar. Era a alma. Era
um idealismo, ridculo e amargo como o de D. Quixote. No me atrevi a discutir com
eles. Todos esperam pelo D. Sebastio como esperam pelo reino dos cus, e um
assevera-me despedida: No ano em que houverem trs Invernos e um Vero, vem D.
Sebastio. E saem pela porta fora, descalos, graves, agarrados aos paus, juntos e
vivendo daquele sonho desconforme. E eu fiquei a olhar para eles espantado... Vento de
aqui, vento de acol; no mesmo dia, em Julho, todas as estaes sol, chuva, calor, frio,
trovoada, nevoeiro... Quem sabe nada, neste mundo enigmtico, nesta fantasmagoria
onde todos nos perdemos com as nossas explicaes e subterfgios? Quem sabe?... Eu
mesmo me sinto influenciado e perdido no meio de figuras que no so do meu tempo e
de costumes antigos como o mundo.
Tudo aqui neste stio escondido est pautado do nascimento morte. A famlia
s, a casa asseada, e a mulher ouvida em todos os contratos. No h criados, porque
ningum quer servir. Na boda, ao fim do jantar, vem uma rosquilha mesa, em cima
duma bandeja. A noiva corta-a dum lado com uma faca, o noivo do outro sinal de
igualdade e duas raparigas pegam cada qual no toro dos bem-casados e levam-no a
dois pobres. Quando uma pessoa est para morrer, a casa enche-se-lhe de gente: vai para
l metade da freguesia conversar e cheirar rap. Chegado o momento trgico da agonia,
uma das velhas, que rodeiam a cama como avantesmas, salta para cima do moribundo,
j de olho vidrado, e abraa-se a ele, repetindo: Jesus! Jesus! Jesus! para espantar os
maus espritos e obrig-los a afastarem-se do leito. E logo que diz: Morreu! a
gritaria dos espectadores ensurdecedora. Tambm, desde que a criatura agoniza, no
se acende mais o lume nem se bebe mais gua, que se despeja dos cntaros, para que a
alma no se creste nem se possa banhar nos potes...


7 de Julho

Da Lomba vou s Lajes, das Lajes s Caldeiras ao interior da ilha.
O que nas Flores se chama mato, uma srie de ondulaes despovoadas e
verdes, todas riscadas de hortenses e revestidas de borreca, que forma montculo, e de
bracs, que d espigas brancas. As ribeiras precipitam-se l de cima, do planalto,
correndo e caindo nos pulos e escavando a terra at encontrarem o leito de lajedo, quase
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sempre apertadas entre ribanceiras e revestidas de incenso ou faia a Ribeira Funda, a
da Fazenda, a Seca, a Grande, entre a Fajzinha e a Faj Grande, a de Ponta Delgada, a
do Casca
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.ho, a Ribeira da Cruz, a Ribeira da Silva, a do Pomar, a de Barqueiros, e
ainda outros veios que do ilha uma verdura constante e uma voz de oiro. Por todos os
lados brotam fontes e todas as caldeiras, excepo da Ribeira Seca, tm gua no
fundo. A parte mais alta da ilha o Morro Grande (novecentos e quarenta m.) que fica
prximo duma cratera a gua Branca. De l se avista o mar roda da ilha. ele que
limita o horizonte. Pode-se seguir como numa carta o relevo da terra os chanfros, as
ondulaes da costa, os cortes, os baluartes. Nuvens aqui e acol saem dos fundos,
arrastam-se pelas encostas e evaporam-se. O incomparvel tablado est sempre a mudar
de cenrio. Montanhas, gargantas profundas se abaixam gradualmente at ao mar
negras ou iluminadas; colinas em catarata despenham-se e com a nvoa cria-se um
panorama de sonho um panorama de luz sempre a rarefazer-se. O oceano ao longe no
se distingue do cu, ligado ao cu pela bruma esbranquiada. No muito distante se
ergue o Pico Touro, no centro da plancie chamada o Rocho do Junco, onde corre, no
lugar da Fonte Frade, a gua mais fria que tenho bebido (dez graus de temperatura) e se
escoa em prata lquida por entre ervas vergadas com o peso. este o caminho que leva
rocha da Faj Grande, ao stio denominado o Portal, vasto semicrculo de pedra, donde
se avistam l no fundo do abismo, a quatrocentos ou quinhentos metros, Os telhados do
povo, a baa e o mar. Um carreirinho cm ziguezague, escavado no monte, serve para se
descer; e pela esquerda, sempre por cima da rocha, vai-se aos Terreiros e dos Terreiros
descobre-se a maravilha da Fajzinha encastoada no interior da cratera. Este termo Faj
ou Fajzinha significa sempre desmoronamento cultivado e frtil. Aqui foi um lado da
parede tenebrosa que desabou e os homens transformaram em vastos campos de milho.
Duas grandes quedas de gua, da Ribeira Grande, despenham-se l em baixo num
boqueiro com grande estrondo, desfazendo-se em roda numa nvoa de gotas lquidas.
Desce-se a calada de pedra no gorjo, carro de bois sem rodas. Perto, e tambm
beira-mar, h o pequeno povoado da Ponte sob uma rocha colossal que o circunda e o
esmaga. Estes paredes parece que pouco e pouco se apertam, deixando apenas uma
fisga por onde entra o azul e com ele a respirao. Srie de panoramas, de paisagens, de
quadros ermos, muralhas de cidades arruinadas, montes e pncaros dilacerados, que
acabam por desaparecer nos farrapos das nuvens ou colinas solitrias, ermos e pastos
verdes...
A maior impresso com que sa destas terras metidas nos vulces, povoados com
a montanha por trs a amea-los de submerso, como uma onda de pedra que vai cair
na mudez, foi o medo ao isolamento: sente-se a gente perdida e s para todo o sempre,
com o mesmo panorama restrito diante dos olhos. Uma vida inteira ao p disto sem se
poder fugir seno para a morte! Uma vida, outra vida, outra gerao sem aventuras nem
sonhos. Antes a floresta e os seus perigos, a frica e o seu mistrio! Sobre estas
pequenas terras isoladas pesa o chumbo dum silncio maior e um abandono sem
limites... Todas as aldeias beira-mar e viradas para o mar esperam os navios, as
notcias e os emigrantes Santa Cruz, Fazenda dAlm da Ribeira, Cedros, Ponta
Ruiva, Ponta Delgada, Faj Grande, Fajzinha, Mosteiro, Lajedo, Costa, Lajens,
Fazenda das Lajens, Lomba e Caveira.
As crateras ficam a oeste da ilha, com excepo das Lajes e da Lomba a sudoeste
a Seca, a gua Branca, a Comprida e a Funda. A Seca um simples reservatrio das
chuvas no inverno, a gua Branca um lago permanente superfcie da terra, a
Comprida e a Funda cortadas a pique na rocha tisnada. A gua empoa l em baixo em
tinta negra. A Funda chega a ser trgica. um quadro a duas cores, uma gua-forte a
borres, ali espera no sei de que catstrofe. Modelada e viva, dum negro vivo cheio
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de pensamento e absorto em maldade. Atrai-nos, e nunca mais o esquecemos, aquele
olhar que parece humano e vem do fundo dos fundos, dum subterrneo parecido com o
que trazemos connosco e no conseguimos arredar para longe... Todos estes antigos vul-
ces esto cheios de vida, de aves e de carpas; reservatrios de gua fitam o cu com o
olhar lquido e vago; alguns transformaram a ferocidade em erva e do leite; outros abri-
gam povoaes e os seus terrenos so os mais frteis da ilha.

Nunca mais esqueo a faia do norte em flor, a Ribeira Funda, que corre entre
bananeiras e inhames o vermelho de folha comprida, o branco de folha mais curta e
mais negra os lamos esguios e nervosos que acompanham os ribeiros no seu trajecto,
o pontilho rstico que atravesso sobre o mugido da gua, e a encosta ngreme revestida
de incenso e onde o pessegueiro bravo cresce espontaneamente. As Lajes ainda
dormem, um ou outro pastor vem dos matos, a p ou de burrico, com as vasilhas cheias
de leite. Na minha frente tenho por pano de fundo um monte denticulado. Cheira-me ao
cubro que d flor amarela, s fcsias e aos zimbros que cobrem os murinhos de pedra
solta, e que ao abrir da manh exalam a primeira respirao, e subo por um vale at
chegar ribeira do Encharro e a um corredor de terra calcinada e negra. Mais dois
passos e estou no bordo da Caldeira. Tenho a impresso de que aquele grande lago
verde olha para mim como eu olho para ele, fixo e imvel, no fundo dos montes
cortados a pique e revestidos de teir. A gua escorre em fios esbranquiados pelas
fendas dos paredes, sem o mais leve rudo. No se ouve o canto duma ave nem o grito
do pegureiro, o lago parece fascinado e absorto numa grande contemplao. Nem sequer
aquela queda na minha frente, por onde a Caldeira Rasa se esvazia, interrompe o
silncio. L em baixo a gua no tem uma ruga e no cu viaja uma nuvem cuja sombra
sobe devagarinho as encostas. Mais para longe ficam outros montes todos rasgados
pelas guas invernosas, as pedras do Cabao, Tabaivos, Pedras dAlface, o Cruzeiro, o
Pico de Sete Rios, solitrios, desertos e lavrados de alto a baixo pelos grutes. S a teir
em moutazinhas cor de cipreste nasce da terra. S a teir e a rosmnia, que d uma baga
preta, revestem de escuro as paredes da cratera e descem at gua dum verde mais
claro, que talvez nos contemple e nos julgue. Isto imenso e despovoado, misterioso.
E o silncio pesa, s agora interrompido pelo gado alfeiro que anda na engorda, pelos
touros que se pem a atitar a-a sob o cncavo mudo do cu.


13 de Julho

Para ir Fazenda de Santa Cruz passa-se pela povoao do Monte, no alto do
Farrobo, donde o panorama largo vai desde a vila s pedras do Boqueiro, entranhadas
em nuvens cinzentas. O caminho desenrola-se beira-mar, num socalco muito alto, e,
numa curva, surge de repente o borro violeta da arriba, saindo do mar violeta, e envolta
em p violeta. Logo a estradinha se torce e aparece diante de ns um grande monte
verde com a ponta da S erguida at ao cu: por trs, a escarpa monstruosa da Ponta
Ruiva, com duas casinhas penduradas sobre o mar, dum violeta cada vez mais carre-
gado. Nunca vi esta luz violeta, estas gradaes de roxo que parecem empoados, nem
este extraordinrio contraste do verde dos montes e das rochas, cobertos de queir quase
negra, com a atmosfera violeta e o fundo violeta at ao largo.
novo e estranho violeta e verde largo panorama a roxo onde distingo fios de
esmeralda de pastos Mas principalmente roxo; no s nos fundos, lodo no primeiro
plano, dum roxo transparente e luminoso como a luz que se extingue dum roxo que
vai da arriba at ao mar e acaba no poente imenso e todo roxo. Atravs da poalha
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distingue-se o campo de erva verde e orvalhada, os penedos donde escorrem os inhames
dum verde carregado, at que a neblina se adensa e acaba num borro. Mistura-se a isto
o doirado do sol em poeira doirada que custa a irromper da tinta e esplende enfim em
cataratas de fogo sobre o roxo das guas cintilando, enquanto a costa, os montes, a ilha
se transforma numa ilha de sonho.
J se ouve o rudo das guas da Ribeira, j se avista a povoao no panorama de
montes e penhascos azulados. A gua quase negra dum regato despenha-se de pedra em
pedra at s patelas dos moinhos. Uma pontezinha romntica, meio arruinada, rene
vrios socalcos e algumas casinhas de pedra solta. A gua espadana esbranquiada ao p
das rodas entre figueiras acocoradas. O ar cheira a limonete, que aqui se chama lusa.
Subo e olho: logo por trs da aldeia da Fazenda, plida, numa paisagem que lembra os
montes asturianos e Covadonga, se erguem escarpas imensas dum roxo violento e negro
contrastando com a meiguice dos campos e o verde-claro dos pastos iluminados por
uma luz fria. o Monte da Vigia, o Pico da S envolto em nuvens e o Francisco, cone
perfeito de pedra, aguado at extremidade. A fumarada da nvoa entra por uma
garganta, afasta os cerros para um fundo longnquo e torna ainda mais violeta e mais
slida a arquitectura dos montes. Quando por momentos se adelgaa e esvai, a torna o
grande cenrio dos macios, os pncaros de rochas estranhas, a serra recortada... S no
primeiro plano um monte isolado e mais pequeno no muda de aspecto nem de cor,
afastado da regio da nvoa: conserva-se verde e imvel, arredondado e verde, solitrio
e pacfico, enquanto o cone da S muda de cor a todos os instantes, levado para as
regies fantsticas do sonho.
Isto parece despovoado. S encontro uma mulher do campo magra e triste, que se
queixa da sua pobreza e diz:
O homem trabalha e uma mulher cobre os filhinhos com a sua sainha.
Traz uma pequenita pela mo, que se esconde atrs dela.
muito mamantona explica.
Reparo na casinha de lavoura, com a cabana ao lado formada de varas, onde se
guardam as espigas de milho em camalhes para secar, na cozinha limpa, com o
armrio, a que chamam amassaria, o alguidar do po e o lar. Aqui fabricam a manteiga,
o queijo e o crostes.
As terras so alugadas pelos proprietrios, que vivem na vila. A lavoura
pequena: o maior trabalho que d lavar (regar) uma horta de inhames. O pior o gado.
Quem no possui terras que o sustentem trabalha a terra dos outros em troca de pastos.
De Inverno do aos bois ramas de incenso e folhas secas de milho.
E mais nada me diz esta mulher magra e triste que se despede de mim para a
eternidade com esta nica palavra:
Pacincia.
A figura no tem nada de atormentado e trgico. uma mulher inexpressiva e
gasta, cujos traos desapareceram para sempre da minha memria to gasta como o
seixo que, fora de ser rolado, perdeu todas as arestas. Pacincia... As figuras horrveis
da Vida e do Inferno no so as atormentadas so aquelas cujos traos se esquecem.
Pacincia no! Eu sou um impaciente que no compreendo a pacincia diante da
desgraa, da escravido ou da dor. Pacincia nem diante do cu!...

Caminho despreocupado pela estrada que vai dar Ribeira, e de repente a terra
falta a meus ps numa fenda aberta at ao mar entre muros a pique. Ao meio deste vale
apertado e fundo um cone isolado e perfeito, e dos lados as escarpas verdes carregadas
de pinheiros, de castanheiros e de faias. Da grande muralha selvtica que tapa o vale, ao
longe, despenham-se, de trezentos, de quatrocentos metros de altura, trs fitas azuladas
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de gua, que caem em baixo em silncio. No outro extremo recorta-se a baa sem uma
ruga, e o mar largo reflecte a brancura das nuvens at se confundir com a nvoa no
horizonte. Isto de repente, l em baixo, isolado do mundo e perdido no mundo... Parece
um stio onde ningum ps os ps depois que os navegadores aqui abordaram verde-
azulado, em catadupas de verde-azulado, com as quedas despenhando-se de toda a
altura do paredo entre silncio e nuvens. uma paisagem imaculada. Esta gua ainda
no trabalhou para ningum: est a para completar o quadro virgem que os montes
parecem contemplar em silncio. um sonho verde que ameaa fundir-se na grande
nuvem cinzenta que se arrasta nos pncaros um sonho que vive numa solido
integral, ele e as nvoas que descem devagar e vo submergi-lo. s vezes descobre-se o
sol, mas o sol um acto brutal de impudor, como o de arrancar um vu e desnudar uma
virgem. Aqui s a luz velada, que cheira a gua e a bravio, e quase no distingo da
flauta mgica que ouo l para o fundo, desta msica das aves que no cessa rechio,
bio rechio, bio e que nunca ouvi assim. Chego a confundi-la com a voz da paisagem
hmida e verde, da paisagem casta e melanclica, a que s o canto d vida e cor. As
aves ligam e tecem fio a fio a humidade, a nvoa constante, o recolhimento, a solido e
o sonho meio adormecido. So a voz da floresta encantada, da floresta submersa e
perdida num recanto da ilha. Agora vai desaparecer vai-se afastando e sorri extenuada,
em tons cada vez mais atenuados e ao morrer ainda canta... So verdes, rvores em
borro so verdes molhados, quietos e adormecidos. Por vezes um fio de sol doira a
nvoa a medo, escoa-se, funde-se no cinzento e no verde, reluz, morre diante de mim
depois de tocar as folhas escorregadias, as gotas suspensas, o farrapo cinzento que ficou
preso das rvores. S os pncaros emergem ao longe. Deso por um caminho de cabras,
por entre castanheiros em atitudes de quadro romntico entranho-me na humidade
verde at ao pontilho rstico que atravessa a ribeira. Solido pingue-que-pingue das
gotas que caem e sob os ps a podrido mole das folhas cheirando a morte.
Outro tom agora outro tom, no tom primitivo, o das gotas a escorrer das rvores.
Afastado e triste, quase to verde como este verde parado e hmido. No distingo j o
som da cor, o som da luz: tudo se funde no rudo de lgrimas que caem devagarinho no
cho, porque as folhas no suportam o peso tudo se funde na floresta verde e imvel
metida neste buraco formidvel onde no h vivalma. H momentos em que o choro
doirado e transparente o chuveiro cai doirado e muito leve, cai em fiapos de aranha e
logo a cor desaparece no cinzento e s fica diante de mim a floresta gotejando, todas as
formas dissolvidas, medida que o vale foge azul e hmido e se converte em som, at
que da paisagem casta e encerrada entre montes, da paisagem oculta e intil, fica s
saudade e o rudo de quem no acaba de chorar de quem chora devagarinho, doirado e
cinzento. No uma grande dor. H mesmo nesta tristeza no sei que inocncia. o
momento nico em que as crianas passam do choro para o riso, que comea a abrir-se-
lhes nos olhos entre a gua e na face cheia de lgrimas que a gente tem vontade de
limpar...
A isto vem juntar-se, medida que avano, a msica das guas que se despenham
l do alto em grandes fitas azuladas e que parecem imveis, to longe ficam, formando,
com as centenas de melros que assobiam ao mesmo tempo, a melodia que os faunos
escondidos tiram das flautas mgicas rechio, bio entre a verdura toda molhada e
quieta. Tudo se passa numa luz toldada em que o rudo da gua e o canto das aves
estremece e se funde no tom verde da paisagem que no bole a escuta enlevada
gotejando. Um momento no sei se a gua cai em gotas das folhas das rvores ou do
bico dos pssaros, e sinto que a msica to distante das grandes quedas de gua me
entra ao mesmo tempo, medida que me aproximo, pelos ouvidos e pelos olhos. a
msica pastoril e sagrada, a voz da floresta adormecida, o seu sonho musical, que me
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extasia juntamente com o rudo das guas, o mais lmpido e o mais belo que conheo
para esquecer o tempo e a eternidade!...

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A ILHA AZUL

16 de Julho

J vejo a Horta ao fundo da baa limitada por dois morros, o Monte Queimado
numa extremidade e na outra o Monte da Espalamaca. uma cidade de uma s rua,
como eles dizem, a branco e cinzento. Alguns conventos, algumas igrejas pesadas,
velhas e simpticas casas de provncia com varandas de madeira e reixas: s vezes na
varanda um postiguinho para a mulher falar ao namoro acocorada no cho. Cheguei-
me ao ralo dizem as meninas. Caladinhas desertas e ruas solitrias, atravessadas de
quando em quando por um meteoro loiro: so as raparigas americanas do cabo, a galope
de cavalo, com os cabelos ao vento. Onde a onde um solar de provncia com o granel ao
lado. uma terra de gente ilustrada e hospitaleira. Em frente da Horta, o Pico
formidvel... Do alto do Monte das Moas melhor se v a baa arredondada e o Monte
Queimado que a separa de outra concha mais pequena o Porto Pim.
O que d um grande carcter a esta terra o capote. A gente segue pelas ruas
desertas, e, de quando em quando, irrompe duma porta um fantasma negro e disforme,
de grande capuz pela cabea. So quase sempre as velhas que o usam, mas as raparigas,
metidas na concha deste vesturio, que pouco varia de ilha para ilha, chegam a
comunicar encanto ao capote monstruoso. um ser delicado e loiro e o contraste reala
a figurinha que saltita em passo de ave condenada quele pesadelo, como certos bichos
de aspecto estranho que trazem a carapaa s costas. Comeo a achar interesse a este
fantstico negrume e resolvo que devia ser o nico trajo permitido s mulheres
aorianas. sada da missa gosto de ver a fila de penitentes que se escoa pelas ruas...
Tambm me explicam que uma coisa ao mesmo tempo monstruosa e cmoda: vai-se
com ele pela manh missa, usam-no as velhas aferradas aos seus hbitos; e uma
rapariga pode visitar uma amiga na intimidade, porque est sempre vestida: basta lan-
lo sobre os ombros. Envolve todo o corpo, e, puxando o capuz para a frente, ningum a
conhece. O que uma mulher que use o capote precisa de andar muito bem calada,
porque tapada, defendida e inexpugnvel, s pelos ps se distingue; pelo sapato e pela
meia que se sabe se bonita a mulher que vai no capote. O capote herda-se, deixa-se
em testamento e passa de mes para filhas. O capote numa casa serve s vezes para toda
a famlia. Mulher que precisa de ir rua de repente, pega nele e sai como est. Este j
foi de minha av diz-me uma rapariga. Era dum pano ingls escuro, dum pano
magnfico que dura vidas.
A outra coisa que exerce aqui uma verdadeira fascinao o Pico to longe que
a luz o trespassa, to perto que quer entrar por todas as portas dentro. Na verdade,
parece um efeito mgico de luz, um fantasma posto ai de propsito para nos iludir e
mais nada. Toma todas as cores: agora est violeta, logo est rubro. A cada momento
uma nova transformao. Todo o cu doirado e o Pico roxo. Tarde, e a lua enorme a
nascer por trs daquele paredo imenso que chega ao cu. majestoso e magntico.
Est ali presente como um vagalho que vai desabar sobre o Faial. Esta noite um
sonho: o cone muito ntido emerge de nuvens brancas que o rodeiam e parecem elev-lo
num triunfo ao cu. s vezes, de Inverno, a neve brilha l no alto com reflexos de jias,
outras so as nuvens que lhe do formas extraordinrias. Se eu vivesse aqui, queria uma
casa e uma cama onde s visse o Pico. Ele enchia-me a vida.

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18 de Julho

Do Cabeo Gordo v-se toda a ilha roda: os Flamengos no interior, e no litoral
Praia do Almoxarife, Pedro Miguel, Ribeirinha, o Salo celeiro da ilha dividido em
retalhos de cores Cedros, Praia do Norte, Capelo, Castelo Branco, Feteira, todas entre
chs de centeio e trigo e farrapos esverdeados de milho. A propriedade est muito
dividida e quase toda nas mos de remediados. O dinheiro da Amrica tornou estes
homens independentes. A propriedade avalia-se por alqueires de terra duzentas braas
quadradas produzindo, em mdia, cada uma trinta alqueires de cereal. A casinha limpa
e aconchegada tem ao p a eira redonda de terra calcada, com pedregulhos de lava a
circund-la para o gro no poder fugir; o eirado da cisterna, com o bocal por onde se
tira a gua sempre caiado de fresco, e a casa de palha colmada para guardar o carro, os
arados e s vezes tambm os bois. A terra d-lhes a bananeira, o anans, a laranja, o ch,
e produes sucessivas de batatas; nas encostas algum vinho, nos vales trigo e milho. O
campo, dum verde sossegado, claro e muito calmo, dividido em lavouras e pastagens,
mas o homem do Faial muito mais lavrador que pastor.
Vejo passar nas estradas esta gente afadigada, as raparigas com a lata do leite, os
homens que regressam do trabalho de chapu de aba larga, jaleco e varapau, as moas
que vem da fonte, vestidas, principalmente no Capelo e na Praia do Norte, com uma saia
de l que elas prprias fabricam, de barras roxas, verdes ou vermelhas, casaquinho
curto, leno na cabea e chapu de palha, de copa muito pequena e aba muito larga,
afitado de preto. s vezes partem um cntaro e exclamam: Mgoas tamanhas!... Riem
to felizes e discretas como o campo, que meigo. Todos estes retalhos so en-
cantadores com as rvores em mancha, o poo e a casinha. a terra dividida, a terra
cultivada com amor pelo pequeno proprietrio que a ganhou com o suor do seu rosto e a
disps sua feio, pequenina e ajeitada. No s a luz que lhe d esta cor o
trabalho compensado cada um no seu bocado de terra bem unido a si, o bocado para
que se deita o primeiro olhar ao amanhecer e o ltimo, de despedida, ao ir para a cama
quando tudo est regado, sachado e farto. Mas tambm a luz valoriza a paisagem, a luz
que torna a paisagem delicada, plida, um pouco triste e sem nervos. O carcter de todo
este verde, sempre verde, que adormece molhado, a mansido e a serenidade.
Vou pela estradinha entre abrigos de faias e moitas de incensos muito verdes, at
freguesia dos Flamengos, junto a uma pontezinha de lava, sobre a ribeira da
Conceio. O fio de gua corre l em baixo pelos rodilhes de hidrngeas. uma terra
de lavadeiras, que encontro no caminho com cestos de carga cabea, cheios de roupa.
Mesmo as casinhas pobres tm persianas e um ar de intimidade e conforto. Alguns
moinhos holandeses batem as asas nas colinas. O fumo que sai das cozinhas cheira a
incenso. Esta paisagem repousa como um banho morno. Nos campos, os bois deitados
na erva olham para a gente, deixando os estorninhos que lhes pousam nas cabeorras
catar-lhes a mosca. Satisfeitos e cal.. mos no bolem engordam. Aqui no h pardais,
mas o estorninho faz com muita competncia o papel do pardal. Pousa nos telhados e
anda no campo familiarizado com o lavrador. Outras aves alegram as culturas que
descem at ao mar o pombo bravo, o torcaz e o pombo da rocha, mais pequeno, ambos
eles cinzentos, o canrio, o tentilho, o melro preto, o pintassilgo, a vinagreira e a
lavandeira, que cobriu as pegadas de Nossa Senhora. A ave negreira, a que o povo
chama vinagreira e o pssaro mais pequeno da ilha, canta como um rouxinol. Difere
da toutinegra, que tem poupinha preta, em ser escura at ao meio do corpo. Dizem Os
rapazes que, quando a toutinegra, que em geral pe seis ovos, chega aos sete, do ltimo
sai sempre ave negreira.
35

Isto j foi muito mais animado e rico. Tudo volta da Horta e dos Flamengos
eram casas, quintas cheias de laranjais, de plantas e flores, a quinta de S. Loureno, a
quinta da Silveira, a quinta dos Dabney, depois abandonadas quando a Inglaterra deixou
de comprar Os frutos no Faial indo busc-los ao Cabo.
Entro ao acaso nalguns destes jardins. Primeiro no do Pilar, erguido ao alto pelo
monte, terrao maravilhoso donde se apanha toda a luz do mundo. Jardim ao abandono,
com grandes faias de Holanda, to unidas que ao princpio da tarde j noite fechada
debaixo delas. daqui que eu gosto de ver as cores que toma o Pico. Espero. noite
quase. Tudo desfalece em violeta, o semicrculo perfeito da bafa, a sombra do Pico l no
fundo e, por trs da cidade plida, as colinas dum verde-escuro recortadas no cu
doirado. No terrao as hortenses desfalecem ao mesmo tempo que a paisagem em volta
desfalece. A tarde morre numa tinta to melanclica que a custo no grito para me
deixarem s. um desmaio de tintas apagadas, de escurido que no ainda escurido,
de roxo que a toda a hora se transforma e transe. O vale dos Flamengos adormece em
bruma e o Pico no sai dali, como um grande fantasma minha espera. As cores da terra
e do cu entranham-se umas nas outras em tons delicados que vo fundir-se em roxo-
escuro, mas que se aguentam diante de mim um momento nico, plidas e exangues,
sufocadas... Depois vou a uma casa abandonada, a um jardim ao abandono no Monte
Queimado. Nos buracos dos muros crescem parietrias, uma raiz levantou a soleira da
porta... O que me interessa nos jardins selvagens a atitude que tomam as rvores
solta, o drama secreto, mas feroz, que se passa entre meia dzia de troncos crescendo
em liberdade. Por fim, entro noutro, muito diferente, nos Flamengos. um velho jardim
com ruas de enormes japoneiras. Os troncos torcidos pela poda, as pequenas folhas
acamadas, formam sebes impenetrveis e espessas. Est um dia sem sol e o calor surdo
pesa mais neste silncio entranhado entre as rvores metlicas e tristes. No fundo da rua
principal fica um pavilho abandonado. Isto pertenceu talvez a um poeta ou a um
contemplativo. O pavilho cai, nos muros muito altos a era corre em desalinho. Das
ruazinhas sempre fechadas e que tomam direces imprevistas sai um cheirinho a
humidade e sepulcro. Enegrece mais a luz subterrnea e verde que s entra pelos
interstcios das folhas sem transparncia. Este homem a quem no sei o nome e que
delineou os caminhos, as rotundas, as salas fechadas de sombra e flor no consentiu no
seu jardim seno camlias. Baniu daqui todas as outras flores. Camlias e sombra por
toda a parte, camlias admirveis, brancas, vermelhas, rseas, flores geladas que
amarelecem e de que as rvores se despojam devagarinho. Ergueu mais alto os muros,
para que s a sombra se ceve nesta carne fria de mortas, sem expresso.
Este foi o sonho dum homem original... Querem-me dizer o nome, mas eu no
quero saber-lhe o nome. Foi o sonho dum homem que passou a vida a plantar camlias,
chegando a obter camlias com cheiro enxertadas em magnlias. Terminada a sua obra,
morreu. A casa passou para outras mos, as japoneiras, na humidade da ilha, cresceram
e atingiram propores desmedidas. Se as deixassem cobriam a casa, as ruas, o cu. A
falta do dono sente-se no desalinho, nas ervas, no musgo que invadiu o jardim, na
melancolia das coisas solitrias. Mas eu gosto mais disto assim... Palpo a fragilidade dos
nossos actos, sinto a tristeza da vida efmera, parece-me que todo este jardim de
camlias se transformou num cemitrio de camlias onde se enterrou o sonho do poeta.
O que me vale que saio e dou logo com o Pico, que eterno. Encontro-o sempre: ao
voltar duma esquina, a sair de casa, ao saltar da cama. Hoje decidiu morrer em violeta,
mas, antes de morrer, passa por todos os tons do violeta. Desfalece e por fim envolve-se
numa nuvem para o no vermos exalar o ltimo suspiro. Desconfio que foi posto ali de
propsito e distncia calculada para nos atrair e encantar. Nas noites de luar um
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fantasma branco e imvel. A gente espera que ele se mexa. Nas noites negras um
fantasma negro e trgico que vai pregar na escurido. Passo dias a olhar para ele. No dia
19 est escondido por uma nuvem por a nuvem que lentamente se descerra, como a
cortina dum altar onde se celebra todos os dias um mistrio. No dia 26 tarde corta-o a
nuvem cinzenta pelo meio... Devo explicar que todas estas ilhas tm uma nuvem sua,
uma nuvem prpria, independente das outras nuvens e do cu, e com uma vida parte
no universo. Pode, por exemplo, estar o vento que estiver, vento que arraste todos os
farrapos do ar, que a nuvem l est presente tomando vrias formas e feitios. Hoje
branca e pequena. tarde muda de aspecto, ao mesmo tempo que o Pico muda de cor.
No sei que posio toma a nuvem, que em cima fica azul e na base doirada. Espero a
hora de assombro em que esta montanha enorme emerge toda vermelha do mar verde,
num cu que empalidece e com a nuvem cor-de-rosa agarrada a um dos flancos. um
espectculo extraordinrio delicado e extraordinrio: a vida da nuvem e a cor da
montanha. Na base, manchas roxas verdura de pinhais, e no alto o barrete vermelho
aguado at a extremidade.


24 de Julho

Sigo pela estrada, quase sempre beira-mar, que d volta ilha. No automvel
tudo desfila como no cine: Feteira e o seu branco campanrio, as tamargueiras beira
do caminho, os campos de milho entre canaviais, e logo as casinhas de Castelo Branco...
Quero, mas no posso, fixar um quadrinho que mal distingo: um homem de grandes
barbas brancas, guiando duas juntas de bois que calcam o trigo no eirado, e ao p dele
duas raparigas que riem s gargalhadas. S me fica a impresso alegre dos olhos e a
boca do velho e tudo desaparece na vertigem. Hortenses, figueiras, um ou outro casta-
nheiro e ao fundo j avana para mim um grande monte Capelo. Hoje, neste dia
turvo, as hortenses parecem mais azuis e mais frescas. uma estrada de sonho entre
sebes interminveis. E o automvel corre... Dum lado j surge um grande monte escuro,
Cabeo Verde, povoado na base, do outro, o morro de Castelo Branco entrando no mar.
Atravesso a cinza dos mistrios, sempre por entre elas de hortenses cada vez mais azuis.
O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas devia ter uma esttua
na ilha. Em nenhum outro lugar elas prosperam melhor: querem luz velada, humidade e
calor esto no seu meio. O seu azul o azul esmaltado dos Aores nos dias lmpidos.
Nos dias turvos substituem a cor do cu: so o azul desta terra enevoada e uma das suas
maiores belezas. Imaginem o cinzento que se derrete e alastra e torna o cu mais escuro,
a atmosfera mais hmida, e sob isto o azul cada vez mais azul, as molhadas de flores
duma cor cada vez mais intensa e mais fresca. H-as por toda a parte: nas estradas
formando alas e nos campos formando sebes; servindo para dividir os terrenos e de
tapagem aos animais pacficos. Enchem a terra de exuberncia e de azul. E o automvel
segue... Onde vo dar estas estradinhas, orladas de noveles e por onde no passa
ningum? Parecem caminhos de sonho, abertos para jardins encantados. O automvel
voa e eu tenho diante de mim montes que se erguem, doirados, no fundo do horizonte:
a vegetao nova do incenso que parece oiro. Desfilam os mistrios cinzentos entre
hidrngeas aos montes, cada vez mais hidrngeas, cada vez mais azul entrando-me em
jorros pelos olhos. Esta linda estrada do Capelo fica-me para sempre na retina com o
alteroso Monte Verde e o Cabeo de Fogo, todo vermelho, ao lado, paisagem estranha
de biombo japons, que se prolonga pela esplanada at Entre Cabeos. Na base do
Cabeo Verde mostram-me uma fonte que s destila a custo um fio de gua, que nunca
aumenta nem diminui. a fonte dos Namorados. Aqui vm as raparigas encher os
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cntaros, porque os cntaros levam muito tempo a encher... Mas tudo desaparece. A fita
trepida e desenrola-se sempre: Norte Pequeno, a povoao mais pobre da ilha, meia
dzia de casebres colmados, e uma rocha enorme, o Costado da Nau, tomando todo o
horizonte. L est no alto o poleiro da baleia e no fundo o farol esguio, sobre pedras
vermelhas e romnticas formando arco. Todas as falsias da ilha so estranhas e
ameaam desabar sobre as guas. Torres enormes destacam-se no mar, assaltadas pelas
vagas, cujo estrondo mete medo. Rasgam-se cavernas nas paredes talhadas em fatias,
dilaceradas e trgicas, com tons amarelos, acinzentados e negros, ou descendo com
suavidade at ao mar em campos cultivados para logo adiante reaparecerem colunatas,
ogivas, entradas de templos monstruosos, penedos negros e corrodos, boqueires
amarelados de pedra esponjosa. S os garajaus e os pombos brancos habitam estas
arribas atormentadas... Mas o automvel segue a sua carreira e fica-me nos olhos o
veludo da paisagem sob o cu pardo e uniforme, com aquele monte vermelho, ao fundo,
que parece vomitar ainda fogo e um bocado de mar dum violeta muito leve. Seis horas.
Passamos a Praia do Norte e outra povoao de que no sei o nome, estonteada entre o
azul das hidrngeas. As raparigas arrancam flores das sebes e atiram-nos com elas.
Agora o automvel s pra um momento na Ribeira das Cabras, diante dum abismo
cortado a pique, de quatrocentos metros de altura. H l em baixo um plaino roxo e
verde, junto gua avermelhada, cuja cor se harmoniza com o negrume da pedra e o
violeta dos montes. uma coisa parada, uma coisa assombrada, l para o fundo do
despenhadeiro que se espraia em mosto at ao Monte Verde, numa extenso de
quilmetros e que me faz estacar de imprevisto pela irrealidade da situao e da cor e
pela luz dum poente delicado que morre com uma doena violeta e verde, entre
arabescos de oiro e farrapos plmbeos, magoado, fantstico e febril. A pedra
requeimada reluz como ardsia ou absorve a claridade como pedra-pomes. A plancie
roxa, com pinceladas mais escuras, acaba no mar e num fundo de nvoa roxa, e toda e
1
a
esmorece sob a abbada dorida e fantstica, traada de raios decorativos.
Na ltima luz do dia surpreendo de corrida Cedros, Salo, as freguesias ricas da
ilha, a Ribeirinha, outro aspecto da estrada sempre azul, cada vez mais azul, sob olaias,
fechadas em cima com montes azuis riscados de sebe, ao longe. So enormes, so
anainhas e toda a moita s numa flor. So redondas e acocoradas; formam paredes e
novelos. Irrompem por toda a parte e apanham-se s braadas. Entrevejo de relance a
Praia do Almoxarife, muito branquinha ao p do mar. Mas de estonteado j no reparo
seno no azul que me deslumbra, em todos os tons do azul que me entram pelos olhos, o
azul-ferrete das hortenses o azul que enche a terra e nunca mais acaba e que talvez o
verdadeiro cu dos Aores. De comeo no distingo seno uma mancha e acabo por no
distinguir seno uma mancha. Uma mancha e frescura. Uma impresso de volpia e
frescura: tinta imvel e viva que me atrai. E logo depois da impresso do azul, a maior
impresso a da vida que nos envolve em silncio e que espera de ns no sei o qu e
quer comunicar connosco. Como possvel extrair da terra seca este jorro que nunca
mais acaba? Sob a pele que calcamos corre um rio azul inesgotvel, que ascende
superfcie pelas hastes das plantas? Sinto-me tentado a esfuracar a crosta at encontrar a
tinta, que deve formar o ncleo da ilha, e que logo, amanh, vai explodir pelos vulces,
numa fantasmagoria de azul. Azul puro que se amontoa, sai aos jorros da terra, cerca-
nos, espera-nos por todos os cantos, afoga-nos por todos os lados... Eu disse puro, mas
creio que me enganei: esta carne delicada exposta nas ribanceiras, nua atravs dos
campos, crescendo solta pelos atalhos; esta carne que nos circunda e acaba por invadir
a ilha e subir ao cu voluptuosa e exige de ns deslumbramento e beijos exige
talvez um estupro... Ao mesmo tempo cansa-me... Um sentimento novo pouco e pouco
se insinua, deixando-me alheado e confuso. Fico surpreso com o azul e cinzento?
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Esperem, esperem... Vejam como esta luz humedecida e vaga se infiltra no azul e o
derrete. Azul e cinzento confundem-se. s vezes as hidrngeas reaparecem e gotejam
ou o cinzento em gases to transparentes que deixam ver por trs um fantasma azul e
imvel... De novo a paisagem molhada e triste volta e se queixa, para logo devagarinho
se dissolver magoada. O que eu sinto afinal apreenso ou receio?... tristeza e
cansao que me vm mais da exuberncia que da cinza desfolhada em silncio sobre
todo este azul frgil. um sentimento que goteja como o orvalho e ao mesmo tempo me
acalma. Falta-me no sei o qu mas to longnquo, to areo como a paisagem.
tristeza mas no chega a magoar-me: a cinza empoeira tambm os meus sentidos e
converte-a logo em saudade.

Ao outro dia atravesso de novo os Flamengos pela estrada municipal, entre
casebres e rocas-de-Hrcules de florao amarela. A estrada sobe e do alto vejo melhor
o cncavo recolhido e verde, Farrobo, Santo Amaro, o largo vale da Praia e Cho Frio,
dividido em talhes de milho e centeio nota de abundncia e de paz dum verde sempre
fresco e vioso, sob cu muito azul, o cu esmaltado dos Aores. Mal reparo nas casotas
de madeira com matas, sebes arruadas, arcos rsticos de rosinhas-de-toucar, onde os da
Horta vo passar os dias no Vero, porque a estrada logo me assombra, toda azul-
ferrete. um muro, dum lado e de outro, de hidrngeas em flor, um muro que nos
acompanha e nunca mais nos larga. s vezes rasga-se diante de mim a amplido
iluminada pelo sol, mas os meus olhos j se no destacam da parede azul que desce do
alto em borbotes. No h uma falha: esta mancha fofa, azul, esplndida, aperta-nos at
ao Cabeo Gordo, que se avista entre bosques de pinheiros, de accias negras e
incensos, subindo a novecentos e cinquenta metros de altura. Um tentilho canta.
Responde-lhe outro, entranhado na carne verde das rvores ou na carne azul das sebes.
Calco o cho onde nascem morangos silvestres, cujo aroma inebria, para contemplar o
vale de terra gorda e hmida. Verde apagado, verde sempre verde, acabado de borrifar
pela chuva coada, dividida em tomos to leves que fazem parte do ar que se respira
quadros atenuados, passados pelo tempo ou surpreendidos de manh quando a paisagem
acorda. Depois olho o extraordinrio Pico irrompendo de entre nuvens magnticas, que
parecem iluminadas por uma luz forjada no seu seio. E entranho-me mais neste azul
parado, sob o cu um momento azul e a luz azul. E isto no tem fim. So quilmetros de
hortenses carregadas de flor, onde apetece a gente entrar at acabar a estrada e acabar o
mundo... Subo at ermida de S. Joo. O mato severo, encostas revestidas de
mofedos, de junco de vassoura, de rapa, que d uma flor roxa, de trevo bravo, de
rosmaninho cheio de bagas vermelhas... Tenho diante de mim, dum lado a cratera, com
duas lguas de circunferncia e trezentos metros de fundo; ao outro, o amplo panorama
mar e terra, montes e vales O mar e o Pico, um Pico estranho, suspenso no cu e
pousado num oceano de nuvens brancas. S cume, mas o cume uma montanha enorme
e esguia, porque, medida que fomos subindo, o Pico foi crescendo tambm. Volto-me
e a meus ps abre-se o enorme buraco verde-negro revestido de cedros e de urze at ao
charco de gua choca e lama esverdeada, donde irrompe um cabeo com outra cratera
minscula dum tom acastanhado. O espectculo sombrio e belo. S a caldeira mais
pequena, perfeita como miniatura, uma nota de ternura neste isolamento: parece filha
da outra. Est ali a cri-la, sabe Deus para que destinos, naquele buraco ao mesmo
tempo potico e feroz. Se arranco os olhos da cratera, encontro a amplido infinita, o
altar majestoso do Pico, as nuvens que ele apanha no cu e a que d formas imprevistas,
e o mar liso at ao horizonte, fechado pela barra roxa de S. Jorge e pela mancha
desvanecida da Graciosa. Violeta das guas imveis, verde-plido da terra, cu de
esmalte por cima... Despeo-me do abismo solitrio. Na parede fronteira a sombra negra
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e trgica cresce e avana at ao fundo. Recolhe a casa e, cosida com a parede, vai
recomear com a cratera o concilibu
1
o secreto de todas as noites!
A volta na luz da tarde um assombro. Vejo o Salo e Pedro Miguel, todos azuis
de hidrngeas; sigo extasiado pela estrada azul, com o Pico ao fundo e S. Jorge
esquerda formando a enorme baia. o horizonte de Npoles mais escuro, a esta hora
iluminado por uma luz rica de efeitos. Em baixo colinas, sempre colinas no como as
montanhas solenes das Flores em picos aguados pelo raio, mas arredondados e mansos.
Borbotes de azul despenham-se por todos os lados. O Faial adormece em azul sob o
cu de cinza e com o Pico todo violeta ao lado.

noite no posso dormir; estou encharcado de azul. Vou a p pela estrada fora
sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas. Nasceu,
subiu a lua numa paz extraordinria, apagando o brilho dos diamantes, mas entre os
ltimos reflexos vibram os fios das vagas quebrando na costa e desaparecendo logo no
boqueiro todo negro. Mais luar e o silncio que espera de ns qualquer comunicao
sobrenatural. Olho. Todas as hortenses se puseram brancas, dum branco perfeito, todas
as hortenses no desfitam os olhos de mim, quietas e brancas, imveis e brancas.
Avano com receio. uma paisagem sem mcula. Os melros enganam-se nestas noites
de lua redonda e branca e desatam a cantar, desvairados, O Pico, entontecido, cheio de
luz e enorme, inchou e toma todo o horizonte. Escuto... Bem quero surpreender o
mistrio destas flores que vivem no silncio hmido e branco. Fecho os olhos. A
existncia obscura das plantas, que no tiram os olhos de mim, faz-me perder a cons-
cincia da prpria personalidade; sinto outra vida estonteada, dispersa no mundo e mais
lcida talvez mais lcida ainda... Caminho, caminho sempre, entre renques brancos,
assombrado pelo espectculo de brancura e sonho. Uma senhora americana no teve
mo em si que no desatasse a beij-las, transportada... Eu, de mim, no me atrevo.
Tenho agora medo delas, brancas e puras, oferecendo-se desmaiadas ao luar dum
branco extraordinrio, dum branco mudo onde se sente um reflexo tnue e doirado do
sol. Tudo parou; s o melro desvairado canta entre esta brancura virginal. No se cala
at ficar exausto. E quando deixa sair do bico o fio de harmonia, logo outro melro
escondido o apanha e ergue, continuando a tecer o arabesco musical sobre a paisagem
branca e exttica.

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O PICO

26 de Julho

Isto que de longe era roxo e difano, violeta e rubro, conforme a luz e o tempo,
aparece agora, medida que o barco se aproxima, negro e disforme, requeimado e
negro, devorado por todo o fogo do Inferno. um torresmo. Nunca labareda mais forte
derreteu a pedra at cair em pingos e desfazer-se em cisco. uma imagem a negro e
cinzento que me mete medo. H .por a buracos e furnas onde a lava formou colunatas e
estalactites azuladas, grandes cachos pendentes, derretidos pelo calor e solidificados
pelo resfriamento. Esta ilha a maior dos Aores negra at s entranhas, na prpria
terra, na bagacina das praias, no p das estradas, nas casas, nos campos divididos e
subdivididos por muros de lava, nas igrejinhas das aldeias, requeimadas e tristes, O
aspecto dum grande luto, duma grande desolao. A fuligem caiu sobre a vasta terra e
s de quando em quando um grande plaino cinzento, os mistrios, sucede ao negrume
como a lepra ao incndio.
Mas o azul mais azul nos stios em que um corredor de basalto tem uma sada
para a amplido do mar (stio da Furna), O esguicho que entra por ali dentro tem uma
vida extraordinria. De repente surge tambm neste inferno um souto verde de
castanheiros, um campinho de milho, figueiras redondas e baixinhas, ou irrompe, por
trs dum muro calcinado, uma trepadeira lils. Depois pedra, mais negrume e pedra.
Mais desolao e negrume, mais pedra vulcnica e sinistra que d o ch e o caf e todas
as culturas tropicais; os frutos do continente, e laranjas e nsperas mais deliciosas ainda
pelo sofrimento, O dragoeiro enorme e copado, gigantescos os fetos e bambus. Cria-se
a oliveira e o castanheiro ao lado do anans silvestre, que amadurece ao ar livre e enche
a horta de perfume. A vinha tem fama no mundo, O vinho branco do Pico, feito de
verdelho e criado na lava, um liquido com um pique amargo, cor de mbar e que
parece fogo. Levantam uma pedra, atiram um punhado de terra para o buraco e a videira
deita razes como pode, abrigada no curral pelos muros e estendida no cho sobre
calhaus. S lhe levantam um pouco as varas quando o cacho est perto de amadurecer.
O Pico j deu milhares de pipas de vinho, que exportava quase na totalidade para a
Rssia.
As duas estradas que partem da Madalena pelo litoral e abraam a ilha, acabando
uma um pouco adiante de S. Miguel Arcanjo e a outra nas Lajes, servem algumas das
freguesias do Pico, quase todas beira-mar, e todas elas com a sua especialidade: Santa
Luzia a freguesia das figueiras, S. Roque a dos vinhos, Prainha a do milho e do trigo,
Santo Amaro, perita na construo de embarcaes, trabalha tambm em esteiras, e o
Cais do Pico e as Lajes passam por as duas grandes freguesias da pesca da baleia. Os
picarotos so os mais destemidos homens do mar do arquiplago, tisnados, secos,
graves e leais. Nos altos, no mastro com uma espcie de cesto de gvea, todo o dia um
homem, de culo em punho, vigia o mar e espera a baleia.

Vai-se muito bem pelas estradas no carrinho de duas rodas puxado por uma mula,
sobretudo de manh, quando cai do cu todo forrado o inevitvel orvalho, que as
plantas, que vivem na secura e no negrume, esperam toda a noite e sorvem com volpia.
O ar do Pico maravilhoso de finura e graa. Chove e seca logo. Esta pedra porosa
absorve a humidade como uma esponja.
Nas subidas o cocheiro salta a terra e fala ao bicho. O mar est espelhado e o cu
to espelhado como o mar, com brancuras de algodo, e nuvens meio adormecidas,
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orladas de cinzento. Tudo to branco e parado que parece que o tempo suspendeu a sua
marcha. Olho para o mar, com rastejados de caracol e pedaos brancos iluminados por
dentro. Ao longe vai aparecendo e acompanha-me sempre outra ilha, S. Jorge,
estiraada a todo o comprimento. J percebi que o que as ilhas tm de mais belo e as
completa a ilha que est em frente o Corvo, as Flores, Faial, o Pico, o Pico S. Jorge,
S. Jorge, a Terceira e a Graciosa...
Cada vez me seduz mais pela estrada fora um campo de milho sachado e
arrendado com as hastes direitas e verdes e o quadrinho vulgar das hortas, pela cor de
satisfao dos legumes, pelo fio de gua reluzindo em conversa com as couves, como se
sentisse o benefcio que lhes presta: a gua parece inteligente e piedosa, e a vinha e o
souto, neste grande deserto, entre a pedra devorada, representam o triunfo do homem
sobre as foras brutas da natureza. H stios que parecem escondidos e receosos entre
tanto negrume: a o verde ainda mais verde e mais vivos os malves junto pedra
queimada. Vi duas ou trs povoaes muito viosas ao lado de montes tremendos cor de
chumbo, e entre todas S. Miguel Arcanjo, que chega a ser voluptuosa depois de tanta
tinta negra metida pelos olhos dentro. Sentei-me num quintalrio com japoneiras
envernizadas de fresco e do tamanho de rvores, num terrao muito alto sobre o mar e
sobre o mundo. A fiquei horas esquecidas, envolto em poeira azul, absorto no mar
cheio de reflexos de oiro, em S. Jorge estendido ao sol, doirado e longnquo, cheio de
crateras inofensivas e roxas, abrindo as bocas diante mim, com um pouco de azul l
dentro. Avancei pela estrada, que d uma volta entre moitas de rvores e hortenses dum
azul ainda mais ferrete que as outras, criadas na fuligem duma chamin; sentei-me
sombra dos castanheiros muito baixos e com uma copa enorme e fui at trgica baa
dos Mistrios, silenciosa e cinzenta, abandonada e leprosa, e mais longe at Prainha,
que avistei do alto da estrada, com as suas vinhas e adegas minsculas, na baia de
Canas. A esta paisagem, mesmo quando pretende ser risonha, preside sempre a ideia da
destruio e da morte. H aqui uma angstia que s se tem em Npoles, num quadro
mais voluptuoso e perfeito, com o Vesvio a fumar no fundo. Estes montes oprimem-
me. Esmaga-me esta negra solido. Procuro o oceano para desabafar: toda a costa, de
penhascos negros como carvo, me mete medo. Acabo por regressar ao quintalrio com
alguns degraus musguentos e o terrao esplndido. um stio para estar calado...
Algumas casas sobem ao lado pela ruela ngreme, e numa delas mora um velho baleeiro
reformado, de pra branca armada em leque na cara seca e rapada. a nica nota
humana deste dia, o encontro dum martimo que finda a existncia de olhos fixos num
passado cada vez mais vivo diante dele. Comprou esta casinha nos rochedos. Ergueu um
mastro com um catavento no quintal para acenar aos navios e vai acabar com os olhos
turvos presos quela agitao infinita a que ligou para sempre a existncia. E na verdade
s h uma coisa mais belo no mundo o cu; mas esse est muito longe e o mar vive na
nossa companhia.

s seis da tarde regresso ao Cais do Pico, enquanto este torresmo se afunda em
mais tristeza e sombra. No tiro os olhos, no posso, de S. Jorge iluminado pelo ltimo
sol, riscado de sombras e quase transparente. Sento-me nos degraus do antigo convento
dos franciscanos, com a ilha etrea em frente. O Pico desapareceu, S. Jorge poeira e
sonho, onde distingo algumas crateras escancaradas uma delas derrubada e toda azul
por dentro e montes inclinados para o mar, at que tudo se dilui em cinzento e
mergulha na escurido. Fica-me a tristeza do anoitecer numa aldeia incaracterstica.
Sinto que a noite me hostil. Com a luz que se apaga, todas as sombras se acolhem a
este convento deserto, metendo-se pelas portas escancaradas. Remexem ali no claustro.
E quase grito de isolamento e de frio...
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A noite no Cais do Pico, fiada de casas negras beira do mar onde biam carcaas
de baleia, terra que cheira a uma lgua, besuntada de fumo e de gordura, aumenta-me a
tristeza mortal. Vale-me algum que se pe a falar na extraordinria festa de S. Marcos,
que se faz no Pico, no Faial, no Corvo e nas Flores no dia 25 de Abril... Eu j tinha
estado na botica a olhar para os frascos, um a um, j contemplara as casas banais e as
figuras banais, j descera ao barraco cheio de postas de gordura onde se destila a baleia
e o meu nico pensamento, mais fixo com o cerrar da noite, era fugir, fugir para muito
longe destas pequenas terras de provncia, piores que a cadeia e o degredo, e onde a
gente sente pesar-lhe a vulgaridade de todos os dias, o hbito mesquinho de todos os
dias, as palavras que se empregam todos os dias , quando tudo, de repente, se
transfigurou diante de meus olhos atnitos, como se espelhos convexos deformassem as
figuras apagadas, transformando-as em figuras de espanto e dor, de chacota e dor. Tudo
est assolapado, tudo obedece mesma regra, tudo se subordina s mesmas leis e no
dia de S. Marcos acabam os gestos pautados, as palavras medidas, e vem outro mundo
c para fora, mais grotesco que o entrudo, mais profundo que o entrudo, porque a aco
neste dia representada pelos mortos painel onde se vem as fisionomias gastas dos
piteireiros e atrs delas outras caras em osso que teimam em vir superfcie; folia
estranha, onde alm do homem h outro homem no tablado, onde os gritos e a chacota
da malta pertencem mais aos fantasmas que aos vivos. A irmandade de S. Marcos, s de
homens casados, armou um altar com coroa de cornos muito bem ornamentados e um
corno maior em evidncia no alto. porta a malta espera e agarra-se ao primeiro que
passa na rua lbrega e que obrigado a beijar o emblema retorcido.
Venha beijar o corno, que bem o merece!
da confraria este nosso compadre!
E os outros riem-se, e toda a gente se ri, e, se algum protesta e se debate, a chacota
aumenta, os risos alvares soam mais alto.
Todas aquelas barrigas que se sacodem parecem maiores, todas aquelas ventas
mais largas. Vejo nos olhos daquele diabo gordo uma claridade que no do vinho...
Cuidado!... Esta chufa talvez sagrada, primeiro porque secular, depois porque
representa o fundo grotesco da humanidade, a maldade assolapada que se ri, a desgraa
que faz rir, a farsa que acaba em dor.
Esperem pela noite... A noite sai tudo para a rua com fogarus, archotes, clamores,
e no s as fisionomias a vermelho e a negro tomam outro relevo, como este povo enfu-
mado redobra de propores e parece maior: todos os fantasmas acudiram chamada. O
homem importante da confraria leva o corno erguido nos ares sob um plio armado com
um lenol e quatro varas, a que se agarram outros tantos piteireiros que perderam a
noo da realidade... Um frente bamboa um turbulo em que se queima a raspa de
corno que outro matula lhe oferece da naveta... Agora completem o quadro: a turba
violenta e espessa a cair de bbeda porque um dos devotos mais ricos do Pico pe
neste dia a adega disposio da irmandade a mescla de negrume, fumarada e
labaredas vermelhas, a vociferao nocturna, o rodilho de mortos e de vivos que corre
as ruelas at encontrar algum desgarrado, que tem por fora de beijar, entre risadas,
aquele grande emblema conduzido em procisso.
Este dos nossos!
Beija-o outra vez!
E a gritaria atinge o auge quando chegam em frente das casas apontadas a dedo
a malta nessa noite percorre toda a vila. Param. Reclamam o irmo que est l dentro e
que eles entendem que pertence de direito confraria. Venha! venha! A surge a
mulher, furiosa, que abre de repente o postigo e os cobre de insultos:
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Malandros! O meu homem!... Eu nunca lhe preguei desfeitas vocs que o
so!...
Redobram os brados, os gritos, a risota, e o delrio cresce. Os archotes
empunhados sacodem-se na noite, enfumam e incendeiam os farrapos escuros, que
tomam corpo e se agitam e danam com os seres, fazendo parte da festa. As panas
cheias de vinho rebolam-se de prazer.
Venha c para fora!
Viva! viva!
Ide para as vossas mulheres! Ponham as mos na cabea!
Eu j vi isto melhor que nas quermesses de Rubens, onde homens e mulheres
em plo se escancaram de riso nos quadros flamengos do sabat, em que o diabo feito
bode preside a cenas nocturnas de delrio e velhas feiticeiras chegam pelos ares
montadas em cabos de vassoura. Foi l que me apareceu tambm um homem
extraordinrio, que se ria com um riso doloroso um homem que nunca mais esqueci,
um morto a rir-se dos vivos. o estranho prazer de chafurdar na vasa que leva a besta,
todo o ano dentro da regra e da lei, aos excessos de S. Marcos, ou so os primeiros
habitantes flamengos da ilha que espreitam pelos olhos dos vivos e os obrigam a gestos
seculares?...
Uma pausa. Aquieta-se a canalha. Comea o sermo. Aquele sobe a um muro, a
uma pedra, a uma mesa que puxada para a rua, e toda a multido espera em volta que
aponte os podres ocultos da freguesia. E ele no recua... um homem bem falante, que
demonstra primeiro as vantagens de fazer parte daquela honrada confraria, embora
certas pessoas o no queiram confessar... Ningum lhe escapa. Mas fulano pergunta
de tanta considerao, que ?...
cornudo! brada num entusiasmo toda a turba.
Fulano, nosso vizinho e nosso amigo, onde devia estar que o no vejo?
Aqui!...
E viva! e viva! E o sermo l segue, at que a canalha, com o toldo, a tripea e o
coro de piteireiros, se esgueira por uma ruela mais escura e a primeira luz da madrugada
dissolve o quadro, de que no ficam vestgios, como se pertencesse ao domnio do
pesadelo ou do sonho.
E isto que eu acho mais extraordinrio. Acaba sem deixar vestgios e s dura
algumas horas. Cumpre-se como um dever desaparece como uma sombra. Durante
algumas horas perderam por arte mgica a noo da realidade. Aquela injria noutro dia
dava uma morte. Nesse dia a loucura e a dor andam de mos dadas a passear em plena
rua.
De manh tudo est nos seus lugares, cada um retomou os seus hbitos e no se
diz uma palavra mais alta. Esta extraordinria galhofa, esta arruaa da noite de S.
Marcos, alucinada e violenta, sumiu-se num sopro. Resta a fiada de casas escuras do
Cais do Pico, o mar ensanguentado onde biam carcaas e o horrvel cheiro a gordura
que nunca passa... Era uso antigamente nas terras alapardadas da provncia algum ir
para cima dos montes clamar por um funil os escndalos da vila cheia de terror Fulano
dorme com fulana! e o eco amplificava o som no cncavo dos vales. Talvez o acto
fosse a maneira de corrigir os costumes e de obrigar as mulheres a terem tento na bia.
Mas, aqui, a coisa outra. No se trata dum acto individual; todo o povo que toma
parte na festa extraordinria, compenetrado e como quem cumpre um rito
3
. Ponham

3
O coronel Afonso Chaves publicou um folheto interessantssimo sobre esta festa, que se realiza
nas ilhas em que predominou a colonizao flamenga, derivando-a de festas anlogas da Flandres:
Hoje em dia j no grande o nmero de localidades onde se celebra esta festa, sendo evidente
que o brilhantismo dela depende principalmente dos dirigentes da confraria.
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esta cena nas vielas da Flandres e a populaa desvairada entre archotes e negrumes
agitados e entre a populaa aquele homem que ri o homem que no pode reprimir o
riso de maldade que vem da treva amontoada no fundo da alma humana o riso que
fao por repelir, mas que tambm ouo c dentro, como se um estranho parentesco me
ligasse a mim e a ele, a mim e ao mal, apesar de todos os esforos para dominar o
egosmo e a animalidade brutal. Apupos, chufas, e a figura que nunca mais esqueo.
Tenho feito tudo para a matar, sem o poder conseguir.
O Pico perdi-o. A maravilha em negro e cinzento sada das entranhas do mar,
nunca mais, desde que pus os ps em terra, a tornei a ver. Tudo se reduziu a fragmentos,
a quadros restritos e recantos de paisagem. Ansioso, rebusco aquela primeira impresso
de conjunto e no a encontro. No a encontro mais? No se encontra na ascenso que se
faz, s duas horas da manh, da trrida Madalena ao alto do Pico, com o cu puro e
limpo, como so quase sempre as noites dos Aores. Negrume e estrelas. Dois vultos
acompanham as bestas, o mestre Narciso e o homem que leva os mantimentos. Meio
adormecida, a caravana mergulha no ar gelado da manh, na amplido imensa que a
envolve e s as patadas das cavalgaduras lascam a calada. claridade ou poeira que se
levanta na frente, quando se toca na regio das pastagens, vasta extenso at ao Cabeo
Vermelho? Depois de quatro horas de marcha chega-se Pedra Mole ermo com mato,
urze, queir e uma florinha dum branco-azulado e para l o mar indeciso de nvoa
leitosa a que a claridade d aco, fluidez e vida. Um momento parece que se concentra
e depois, com a luz aberta, toma o aspecto estranho de mar branco, de nuvens brancas,
de mar fofo, que, de quando em quando, se descerra e mostra um pico severo, uma
rocha isolada flutuando. Para l deste oceano vaporoso, mal se distingue outro, todo
violeta. Mais perto, nuvens todas brancas e imveis, de gelo branco, ao norte estendidas
como banquises, escorrendo fios de gua azul pelos interstcios. Nesta grande solido
algodoada, ergue-se ao longe uma montanha toda branca, e l de baixo ascende mais
fumarada, enquanto o Sol ilumina nos altos os montes escuros. Por momentos o
nevoeiro mais denso, que veio de baixo e ascende com o Sol, cada vez mais cerrado,
forma um estranho mar unido at ao horizonte, um mundo branco e polar que nos isola
do mundo. Imobilidade e frio. Espero, e de repente ouo... - ouves?... Do fundo do
abismo branco chega at ns, nesta grande solido, o tanger dum sino debaixo de gua,
chamando para a missa.
talvez na freguesia de S. Mateus, na Candelria, em qualquer das terrinhas
submersas na extenso unida e branca. Outro... outro mais longe, to cristalino e puro
que me surpreende e encanta. um som que d uma impresso extraordinria de vida,
como se os sinos encantados da Atlntida comeassem a chamar por ns. Ouves?
ouves? e quase logo a cortina vaporosa se descerra para desvendar toda a paisagem na
manh violeta...

No Pico, h anos, havia um devoto que punha os vinhos da sua adega (e era rica) ao dispor dos
Irmos de S. Marcos, no dia 25 de Abril, e da terem ento tido grande nomeada as festas daquela ilha,
como especialmente por tal causa, ali ou noutra parte, ainda podem vir a ter.
Na Horta, at 1870, as freiras do convento da Glria mandavam no dia de S. Marcos aos membros
da colegiada da igreja matriz, antes da hora das ladainhas maiores que se celebram em tal dia, uma ban-
deja com uma coroa formada por pequenos cornos de alfenim, tendo no centro flores artificiais e um
corno maior destinado ao Vigrio.
Durante a ladainha, na qual era celebrante o beneficiado mais moderno, que em tal acto estava
revestido com pluvial roxo e era precedido por dois cantores, estes, ao entoarem a invocao de S. Mar-
cos, voltavam-se para o celebrante, e faziam-lhe uma reverencia, ao que ele correspondia com outra.
Na bandeja, com a oferta das freiras da Glria, vinham sempre uns versos alusivos festa dos
maridos atraioados. A colegiada agradecia por escrito o presente, e enviava tambm versos referentes
festa. As festas de S. Marcos em algumas ilhas dos Aores e a sua origem provvel, por Francisco
Afonso Chaves.
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Dorme-se numa furna para ver amanh o nascer do Sol no alto do Pico. Quem
quer, dorme s estrelas. Vamos... O que eu procuro, pela ltima vez na minha vida, no
o panorama a exaltao da vida livre. Acende-se a fogueira, sobre a qual se
curvam sombras iluminadas, cheira ao fumo da urze no acampamento em desordem.
Tudo adquire um sabor novo, os olhos rebuscam como aos vinte anos os blocos
desrticos, o ouvido aguado recolhe o menor rudo da noite, a vista encontra a acuidade
da vida primitiva. Mais, melhor, a alma encontra a plenitude vital na existncia
selvagem para que fomos criados, e aspira para os cimos. Mais uma vez a luz antes do
mergulho definitivo na escurido! Vamos!... A spera subida leva outras quatro horas a
p, cortando a direito e calcando pedra dura, at base da caldeira, coberta de bagao
vermelho e da cheirosa erva de Santa Maria. A vegetao rasteirinha diminui de
tamanho: uma rapinha muito mida como se a tivessem tosquiado. L de dentro da
caldeira, que tem trinta metros de fundo, sai o Pico pequeno, de pedra vermelha e
queimada. A sua ascenso s possvel pelo lado ls-sueste. A cratera pequena e as
fendas deitam um fumo tnue. Dum grande rochedo do lado norte desabam de quando
em quando pedregulhos. Faz aqui frio em pleno Vero. Espero toda a claridade para ver
o mar e o Pico, o Faial, S. Jorge, a Graciosa, e no fundo a Terceira, quase a desaparecer.
E, mais que isto, a sombra imensa e azulada deste grande monte talhada no mar para o
lado da freguesia de S. Mateus. um extraordinrio fantasma que ali est presente
desde que nasce o Sol at passar uma hora depois de ele aparecer.

Pela estrada sul at s Lajes o aspecto mais escuro e mais severo, lombadas cor
de lousa e terra dividida e retalhada por muros de lava, que nunca mais acabam.
Passamos por eiras de fuligem onde o trigo atado aos molhos parece mais doirado, por
castanheiros anes que irrompem como manjericos da terra feita de carvo. E de todo
este negrume, de tanto negrume que se acumula, ressalta de quando em quando o
escarlate vivo duma trepadeira ou uma seara de milho alvo, com as espigas j vergadas.
Um rapaz no poleiro enxota os pssaros mais atrevidos com a funda. Emerge dum jacto,
esguio, de p, na atitude clssica, e a pedra que sai da funda vai como uma bala at ao
bando, que levanta voo, enquanto ele, imvel e de brao estendido, solta um grito rouco.
Sadam-nos os picarotos do chapu de palha por cima do leno e albarcas nos ps, e
raparigas de pele acobreada que tiram gua dos poos. Os casinhotos escuros so muito
limpos por dentro. Nalgumas destas aldeias denegridas vive-se como h trezentos anos,
com meia dzia de ideias e um padre, com os sentimentos do passado e um padre.
Pouco e pouco a paisagem transforma-se. Os montes crescem e encontro outra vez o
Pico desolado e trgico.
Atravesso o Monte, onde os costumes so to puros como no Corvo, a Candelria,
S. Mateus, que lembra uma terra de mineiros. Montanhas cada vez maiores e de certa
altura para cima despidas de vegetao, s arquitectura e tragdia. Rasgam-nos,
dilaceram-nos de alto a baixo as grotas, cavadas pelas torrentes. Severidade e negrume,
a que de quando em quando sucede o grande plaino cinzento dos mistrios. Depois do
mistrio da baa, aparece-me o mistrio de S. Joo e o grande mistrio da Silveira, que
nos acompanha e dura quilmetros pela estrada fora, dando paisagem um aspecto
fantstico. o Pico na sua verdadeira expresso. Cinzento e negro, sempre cinzento e
negro, o negro da terra, o negro dos montes cada vez maiores, e o cinzento estranho dos
mistrios, vastas necrpoles, onde terra e pedra esto sepultadas sobre o mesmo lenol
cinzento.
esta paisagem mineral que d carcter ilha magntica. Sumiram-se os retalhos
dum verde tenro entre o negro calcinado e vulcnico mais verde mais tenro s
resta a desolao imensa. Lembro-me daquela baa que se chama a baa do Mistrio,
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isolada e cinzenta, morta que espera todos os dias os mortos, as cinzas dos nufragos
dispersos no oceano. S me restam na memria as vastas extenses cadavricas,
devoradas pela lepra e com montes em osso ao fundo.
O mistrio o resultado de erupes da base do Pico (mistrio de S. Jorge, por
exemplo) cobertas por um pequeno lquen, a urzela, que se propaga em vastas extenses
cinzentas, dando a impresso duma lepra que corri a terra, dum mundo morto e
amortalhado. Sucedem-se os montes cada vez maiores, formando ao lado barreira
inacessvel, com rasgos cor de chumbo de alto a baixo. Isto no me larga e oprime-me.
Acompanha-me o paredo que nenhuma luz capaz de arrancar ao negrume cada vez
mais espesso. Nem uma planta! S montes, sempre maiores e mais speros. A luz
diferente, mais cinzenta, e o fundo tremendo e cor de lousa requeimada parece esperar
imvel que este planeta acabe de apodrecer.
Absorvo-me na extraordinria paisagem mineral, no panorama que saiu intacto
das entranhas do fogo. Nem um sinal de vida extenses mortas, calcinadas, inteis,
cuja beleza exterior consiste principalmente na linha, na slida arquitectura dos montes
erguidos at ao cu em pedis severos, na solido e na cor que os vestem, no esforo de
quem despreza todos os pormenores inteis para mostrar descarnado a Deus o seu
sofrimento. Aqui as pedras passaram todas pelo incndio e assim clamam tisnadas e
imveis. Produto dum parto monstruoso, a ilha foi devorada at ao ponto de fundir. a
dor. a dor do mundo exposta a nossos olhos, imobilizada diante de nossos olhos a
dor descarnada e solitria, muda e trgica, sem um vu, sem um farrapo, sem um grito.
S dor.
s chapadas negras sucedem-se as chapadas fnebres, aos rasges avermelhados,
onde parece que lavra ainda o incndio, as escrias acabadas de derreter, ao minrio de
tons azulados e sombrios as fragas em atitude de desespero, os buracos dilacerados at
ao ntimo. No houve piedade, no houve um momento de suspenso naquela tortura
imensa e calada: tudo, desde a poeira at montanha, passou pelo mesmo inferno e
ainda fumega no ltimo estertor.
No consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que um
pesadelo donde extraio no sei que prazer indefinido. Tudo se despenha em catadupas
de p negro, ou fundido dum s jacto nas paredes lisas e azuladas, negras com
arabescos mais escuros que parecem caracteres indecifrveis petrificadas em cores
mais ricas, dum negro cor de sangue, fundidas e entranhando-se umas nas outras at
chegarem ao fundo cinzento. Um abismo um tropel um campo de destroos. E sobre
o caos cinzento.
E isto no nos larga. Chega a impor-se a nossos olhos e fascina-nos a ossatura
despida de toda a carne, no pela impresso de monstruoso ou de atormentado, mas pela
beleza intelectual, pela beleza superior e grave que a das almas.
aqui que a luz dos Aores atinge talvez a perfeio. Nada que a distraia s o
mesmo tom no vasto quadro feito com a mesma cor, variada at ao infinito em nuances
delicadas. Sobre o cinzento do mistrio paira o cinzento absorto do cu sobre a
pedraria escorre o cinzento das nuvens. Ao longe o paredo imenso reala a severidade
do panorama excepcional. Todas as pedras que a cadeia de ferro vomitou foram
cobertas de cinza, que amortalhou este mundo espectral. uma paisagem abstracta,
uma paisagem morta. No s a cor do cu, que a mesma de todas as ilhas a cor
da pedra , um vago sentimento de terror o cadver que se conservou intacto e que
criou bolor. No h uma deformao. Ao contrrio. H uma beleza nova que e Preciso
encontrar mas depois de encontrada nunca mais nos larga...
Para l, muito para longe, superfcies dum cinzento muito mais escuro e campos
s de pedra com flores cor de mosto tudo parado, quieto, imobilizado. No se ouve o
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pio duma ave, no se v reluzir o fio dum regato. O mundo morreu todo cinzento. A
prpria luz esquisita desfalece. E sempre nos acompanha ao lado o monte ttrico, que
vomitou esta lava em cacho, que parece ferver coberta de cinzento. Debalde se
caminha dum e de outro lado da estrada: o mistrio persegue-nos em silncio. s vezes
as pedras tm o feitio de vagas, dum mar encapelado que petrificou em cinzento com
espumas tona. A urzela avana sempre, cobre tudo, montes, pedras, ferro, taludes da
estrada, ficando tudo da mesma cor e na mesma uniformidade. uma das coisas mais
belas que conheo no mundo a viso dum planeta onde seres e coisas foram comidos
do p, deixando vogar para sempre no ter o fantasma cinzento e mudo. Esta viso
acompanha-nos e persegue-nos at s Lajes, perdida na base dum monte to espesso que
mete medo. J agora ningum me tira dos olhos este extraordinrio Pico, a duas cores,
cinzento e negro, e presidindo, como uma grande figura no meio do oceano, a todo o
arquiplago dos Aores.

Casinhas negras aglomeradas, uma grande solido e uma grande tristeza. A costa
forma baa, fechada dum lado por um. desconforme penedo. Lajes a terra dos
baleeiros seis armaes, duzentas pessoas empregadas na pesca. As montanhas
cercam-na e impelem-na para o mar. A casa do vigia fica l no alto, num moinho
abandonado, num stio que se chama a Terra da Forca... Tudo aqui cheira a baleia e est
besuntado de baleia, tudo o que se come sabe a baleia, que derretida em grandes
caldeires para lhe extrarem o leo. Pergunto:
Mas vocs no sentem isto? este cheiro horrvel?
Este cheiro, cheira-nos sempre bem. sinal de dinheiro. Nem reparo na
ermidinha, que foi a primeira, dizem, que se fundou na ilha. Estaco com surpresa no
meio da povoao diante duma catedral gtica por concluir, erguendo pelos ares a
ossada negra feita de lava. Um padre realizou neste ermo uma construo
desproporcionada para a terra todo o sonho desproporcionado e isolada entre mon-
tes. Ergueu-lhe sobre fortes alicerces as muralhas enormes at l acima. Todo o dia lhe
viam a sotaina agitada no alto, a ajudar os pedreiros como um pedreiro ou ou oupa
empurrando as lascas negras. Pediu dinheiro a toda a gente, aos da baleia, aos da
Amrica, aos ricos, aos pobres, para realizar aquela massa em ogivas abertas, onde toda
a povoao ficaria sumida num canto. Gastou o seu e o alheio. Trabalhou como um
negro. No teve durante toda a sua vida outra ideia, outra ambio nem outro interesse.
E quando aquilo chegou l acima, prestes a concluir-se, morreu de repente e a catedral
ficou para sempre naquele ponto abandonada e desabitada, sem telhado, carcaa morta e
negra erguida em frente do mar, e separada da terra por montes espessos que ameaam
submergi-la. Moram l as aves marinhas... Aquilo foi um sonho e nenhum sonho se
chega a concluir o sonho no cabe no mundo.

Agora completo o quadro: com os montes, hirtos e negros por trs, neste fundo
extraordinrio, neste panorama dilacerado, parto duma imaginao estranha, parado e
cinzento, que fica bem aquela vida dum dia e duma noite, o cortejo grotesco de
fantasmas vociferando de porta em porta, com as bocas escancaradas de riso. Esta ilha
negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princpio me repelia, o
negrume, o fogo que a devora, o mistrio, tudo me seduz agora. O Pico a mais bela, a
mais extraordinria ilha dos Aores, duma beleza que s a ela lhe pertence, duma cor
admirvel e com um estranho poder de atraco. mais que uma ilha uma esttua
erguida at ao cu e moldada pelo fogo outro Adamastor como o do cabo das
Tormentas.
Apago todas as tintas do quadro: s quero o Pico diante de mim, negro e
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dramtico, rodo da cinza que h-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a
prumo no cu, com a carcaa da catedral ao abandono na praia...

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A PESCA DA BALEIA

L de cima do poleiro o vigia ergueu-se de salto, deu sinal de baleia vista com o
bzio e todos Os homens desataram a correr para as canoas. Nas Lajes, noutro dia, saa
o enterro dum baleeiro morto no mar, quando do Alto da Forca anunciaram o bicho. Ia
tudo compungido ia a mulher compungida e os pescadores compungidos, o padre, o
sacrista, a cruz e a caldeira iam aqueles homens rudes e tisnados em passo de caso
grave e fatos de ver a Deus e logo a marcha compassada parou instantaneamente e
mudaram instantaneamente de atitude: ficou s o padre com o latim engasgado e o
caixo no meio da rua, e os outros, enrodilhados, levaram o sacristo, de abalada, at
praia. Baleia! baleia!... Deixam um casamento ou um enterro em meio, um contrato ou
uma penhora, as testemunhas e a justia, e correm desesperados a arrear baleia. No
Cais do Pico e nas Lajes ningum se afasta da praia. Esto sempre espera do sinal e
com o ouvido escuta, os homens nos campos, as mulheres nos casebres. E enquanto
falam, comem ou trabalham, l no fundo remi sempre a mesma preocupao. So to
apaixonados que at este cheiro horrvel, que faz nuseas e que se entranha na comida e
no fato, lhes cheira sempre bem.
Baleia! baleia!
E toda a populao acode aos barcos. Vejo daqui a fiada de casas beira da
estrada, o cais de embarque com o gorduroso barraco de madeira, tudo negro,
enfumado e ftido, e por toda a parte, nas pedras escorregadias e na gua azul,
vrtebras, carcaas boiando e restos ensanguentados que cheiram a podre que
tresandam.
Nosso Senhor v com eles!
Nosso Senhor lha d sem perigo! dizem as mulheres.
O po do meu Jos vai na canoa grita outra, debruada para os homens que
empurram o barco a toda a pressa.
E aquela canoa no larga?
Est espera do trancador.
J um grupo de velhos, com a mo enconchada sobre os olhos, espreita para o
largo, a ver se descobre os esguichos de vapor que o bicho resfolga.
O mar desmaia, mais etreo que o cu, diluindo pouco e pouco no azul o doirado
das nuvens. Uma luz difusa estremece no arrepio da superfcie. uma manh delicada
um pedao de cu azul-claro que se no distingue do mar azul-claro. Ao fundo vapores
esparsos, direita flocozinhos brancos por cima de S. Jorge, e para o largo pastadas
grossas e imveis que a primeira luz da manh ilumina. Acol um farrapo de nvoa
embrulhou-se na gua dum azul quase cinzento e no a larga: o Faial, a distncia, uma
mancha transparente, e o Pico passa a meus olhos por diferentes gradaes, desde o azul
nascido ao violeta. Nvoas prendem-se aos calhaus negros, aos montes dramticos, ou
derretem-se de repente na gua em rpidos chuveiros. No cu h um azul entre as
nuvens to ensaboado que mal se distingue, um azul entre nuvens azuis estendidas, com
interstcios mais claros, e logo por cima pequenos estratos amontoados... Mas tudo isto
desvanecido, tudo isto atravs da neblina quase a desaparecer. uma manh para se
respirar, devagarinho. O mar ainda neblina, o cu todo neblina; s anda algum azul
misturado ao branco e alguma luz que se coa pelas nuvens...

A canoa voga suspensa na atmosfera e outras l vo adiante fora de remos.
Duas iaram as velas... Um barco destes quase um mvel, ao mesmo tempo delicado e
resistente, muito bem construdo de tbuas leves de cedro, pregadas com cavilhas de
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bronze sobre as cavernas de carvalho americano esguio como um peixe e leve com
uma casca, para escorregar sobre as guas. Metem-lhe dentro sete homens, o arpo e a
lana, para atacar um bicho cuja massa pode ser avaliada em cem toneladas, e que,
depois de ferido, se vira s vezes contra as canoas e at contra navios do seu tamanho.
Ainda a semana passada um cachalote reduziu um barco a cisco e matou trs homens,
pondo-se de p no mar com a boca aberta cheia de dentes de palmo
4
. O que vale que a
baleia um bicho muito tmido. Pode, com o leque da cauda, cobrir e abafar uma canoa
e tudo a assusta. So poucas as que atacam, mesmo depois de feridas; mas h machos
solitrios que chegam a atrever-se com navios maiores do que eles, metendo-os no
fundo focinhada. As baleias velhas isolam-se pela dificuldade em encontrar pasto que
lhes chegue: mastigam no mar incessantemente como bois a pastar na erva. As novas
viajam em grupos de vinte e trinta. um espectculo majestoso encontrar pela manh
um bando de baleias, resfolgando pelas ventas um espectculo do princpio do
mundo... Um pouco de neblina mar azul!... L vo com o dorso de fora e lanando de
quando em quando um esguicho de gua vaporizada. De repente, quase ao mesmo
tempo, mostram os rabos e mergulham, emergindo mais longe os lombos luzidios a
escorrer... E uma coisa que faz parar o corao, um quadro imenso e duma frescura
extraordinria.
Pastam. Seguem sempre a mesma rota procura das carnes gelatinosas que
devoram; dos cefalpodes, lulas e polvos, que se lhes pegam e as sugam, entre braos
que as envolvem e aoitam, sempre mastigando coisas esbranquiadas a escorrer-lhes da
boca. So os grandes devoradores dos monstros que na gua glauca esperam a presa
como sacos coroados de tentculos, moles e horrveis, movendo volta da mitra a coroa
de rpteis.
Isoladas ou em grupos, seguem a sua rota at frica, regressando pelo mesmo
caminho. Esperam-nas os baleeiros e perseguem-nas, chegando a ponto de serem
escassas no arquiplago e s reaparecendo depois que os americanos abandonaram a
pesca, e os leos minerais substituram o leo animal, que empregado hoje nos
instrumentos de preciso. Nos ltimos tempos voltaram muitos cachalotes aos Aores:
num dia vi cinco na baa do Porto Pim, no Faial, cinco bichos de ferro zincado,
barbatana curta e grossa e cauda horizontal apartada ao meio como a cauda da
andorinha. Pus-me a olhar para aqueles monstros desconformes e macios, de cabeorra
quadrangular, que o tero do corpo e onde no h nada que preste. Na baleia no a
barriga que maior e mais grossa a cabea; da para baixo vai arredondando e
diminuindo at cauda, horizontal, enorme e luzidia. Os olhos pequeninos preciso
procur-los, porque mal se distinguem da pele, e infelizmente para elas, esto colocados
de forma que s vem para os lados. Os baleeiros chegam-se facilmente pela cauda a
questo no fazer barulho porque tm o ouvido muito fino e ouvem pela pele:
sentem a grande distncia: qualquer rudo inslito as perturba, ficando a tremer de susto,
at que se lembram de fugir. Na frente da cabea ficam os buracos para resfolgar: ali
no entra arpo, a pele muito dura; e por baixo abre a queixada em forma de bico com
grandes dentes, que, quando fecha a boca, entram em cavidades da maxila superior.
Este bicho inocente e estpido quase sempre dorme ou digere tona de gua,
inerte como um saco cheio... S depois que lhe vi abrir a cabea, melancia preta
desconforme e toda de branco rosado pelo lado de dentro, que compreendi bem a
baleia. Debalde lhe procurei o miolo. No lugar dos miolos tem um lquido, espermacete,
que d doze a quinze barris do melhor leo. Nem preciso ferv-lo: est pronto a servir
nos tanques do casco. Por isso se deixa apanhar...

4
A baleia no tem dentes os cachalotes tm dentes na maxila inferior. A baleia vive nas regies
circumpolares e os cachalotes em guas tpidas, procurando as rochas escarpadas.
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Os baleeiros sabem logo se grande ou pequena pelo tempo que demora
superfcie das guas; a espcie a que pertence, porque as h que s respiram por uma
venta. Conhecem quando vai mergulhar, porque mostram primeiro a enorme cauda
agitando-a fora da gua; e se so pequenas, porque andam em bandos e aos saltos, tal
a sua agilidade. Contam que a me, acompanhada pelo filho, que nasce logo com quatro
ou cinco metros de comprido, mais fcil de subjugar, chegando o ambaque (baleia
preta) a deixar-se matar quando lhe apanham o pequeno: basta feri-lo ao p do rabo e
pux-lo para o bote. A me j no o larga e prefere, se no pode fugir com ele metido
debaixo da asa, que a acabem s lanadas. Quer dizer: esta coisa monstruosa e zincada,
com leo na cabea, no s come e digere, no s dorme e digere capaz de ternura e
sacrifcio.
Creio que hoje s os barcos dos Aores a caam pelo processo primitivo, que
muito mais perigoso. Os americanos usam um canho especial e ainda no h muito que
grande nmero de barcos se ausentavam das costas da Amrica por largos perodos,
navegando pelo Norte do Chile ou nas regies circumpolares, onde a baleia encontra o
pasto de que se nutre no mar cheio de organismos infinitamente pequenos, no mar s
alimento, em formao como as nebulosas. A baleia apanhada, suspensa, cortada e
derretida em grandes caldeires que fumegam a bordo. Essa avantesma besuntada,
fedorenta e ressumando leo, todo o dia navega, vomita fumo, e cheira que tolhe, e mais
se parece com um aougue ambulante que com um barco. Tudo l dentro pegajoso e
escorregadio. Os ganchorros levantam pedaos de baleia, metendo-os nos caldeires,
onde fervem e refervem. volta agitam-se homens engordurados at alma, entre
labaredas, bando de aventureiros de toda a espcie, equipagem de acaso, malaios e
chineses, escorregadios como o navio, caranguejola que vai correndo todos os mares
onde se encontra a baleia. No alto dos mastros, em duas barricas, os vigias
incessantemente a procuram na gua com culos, enquanto outros mexem e remexem os
caldeires, ou, em tbuas amarradas ao costado, cortam, iam, despedaam as banhas do
bicho.
E isto nunca mais cessa: o navio enche o mar de fedor e de sangue e l dentro a
caterva derrete sem cessar, mergulhada em fumaceira, que o vento no dispersa no
pode ou persegue sempre, matando sempre, como se a sua misso fosse sujar a grande
pureza do oceano. O fumo pesado e gordo envolve o navio ensanguentado, que se
destaca na manh delicada ou no poente todo de oiro. E mesmo de noite, sob a
maravilha das estrelas, aquilo vermelheja e arde, queimando carne e fumegando sempre.
E cheira cada vez pior...

O mar cinzento com espaos lisos dum cinzento doirado reflectindo a cor das
nuvens, e ao fundo, quase tocando o cu, uma grande superfcie toda azul... Vem o
bando por a abaixo num azul que azul e aco. Vm todas do oceano glacial como se
viessem da fonte da vida. E sentem a felicidade inconsciente da frescura que as rodeia,
da gua azul nascendo em jorros sobre jorros, que lhes comunica energia, vibrando
todas com ela. No tm uma arte, uma filosofia, um negcio a tratar. Vivem pela pele,
vivem com a gua que vive. Vm aos saltos unidas e cortando o grande mar, nas
manhs brumosas, nas tardes de oiro, imensas como o universo e todas de oiro, nos dias
de tempestade, que se fizeram para danar tona das ondas furando o cacho branco e
vivo outro cacho ao longe ou nas tardes de mar calmo, criadas de propsito para
boiar e dormir, no oceano e no mundo todo azul, que tambm adormece e repousa. Um
bicho isolado bia. Dorme ou digere. Parece um penedo escuro flor das guas... Um
ah! Estamos nas primeiras horas da vida. A claridade espelha-se e escorre no dorso es-
curo e molhado. O barco aproxima-se sem rudo, o arpoador proa, com o arpo
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erguido e seguro nas duas mos, firme nos ps e na atitude de arremesso. um ferro
com setenta e cinco centmetros e dois metros de cabo. Ao lado, no barco, vai a lana,
que maior, para acabar este monstro do tamanho dum prdio. Mas o homem
impressiona-me ainda mais que a baleia: tremendo, de p, minsculo, com a vida no
olhar e nas mos. No barco est tudo caiado e ansioso, ningum diz palavra intil:
homens, barco, arpoador e arpo, tudo tem o mesmo corpo e a mesma alma. So sete,
dominados pela aco, trespassados pelo ar e por este cheiro que penetra pela boca e
pelos poros, gerador de energia um ser nico, s nervos e vontade, caa do
monstro e com uma ponta de perigo que seduz sem falar do negcio, que excelente.
Todos ganham: uma baleia d muito leo e o leo d muito dinheiro. s vezes d
mbar. Mas h principalmente a necessidade de matar, de lutar (numa vida que mais
montona do que em qualquer outra parte duas vezes montona pelo mar que os
circunda e pelos montes que os entaipam), de vencer as contrariedades e os perigos
sentimento com razes no mais profundo da alma humana.
So sete couros secos, decididos, e alguns deles lavrados pelas rugas e com
brancas na cabea, e o trancador mola de ao pronta a distender-se, concentrando toda a
energia no olhar e nos msculos. Esperam ele o momento de lanar o arpo, os outros
o de afastarem a canoa no mesmo impulso combinado. um momento nico.
J outras canoas se aproximam... Mas, antes que lhe tirem a baleia, o trancador
lana o ferro. O bicho tem um momento de hesitao e surpresa, como o touro quando
lhe cravam as bandarilhas, o que permite ao barco desviar-se num golpe de remos, antes
de ser abafado na cauda ou envolvido no redemoinho das guas. No h um segundo de
dvida ou um movimento falso. A baleia mergulha entre vagas, com o risco de os
arrastar para o fundo, e leva-os, numa velocidade de expresso, pelo mar fora, porque
aquela grande massa duma agilidade espantosa. Larga! larga! larga a manilha! ... E
l vo no curso, entre as guas rasgadas, no grande sulco aberto com violncia, tomando
tento na linha.
As outras canoas ficam a ver navios. s vezes h balbrdia: todos os barcos
querem trancar a mesma baleia e dirigem-se-lhe pela cauda, pela cabea, pelos lados; j
tem acontecido arremeterem s cegas sobre o bicho, encalharem-lhe no lombo e
meterem-lhe o arpo na cabea. Outras vezes um trancador impaciente, vendo fugir-lhe
a presa, atira o ferro por cima do barco que est mais perto da baleia para a roubar. o
que eles chamam trancar para quebrar.
Larga! larga!
A baleia mergulhou. Corre agora a linha de manilha americana, muito bem
enrolada dentro de duas selhas, e os homens, plidos e imveis, com o corao do
tamanho duma pulga, esperam. A baleia pode desaparecer durante vinte minutos. Um
deles tem nas mos, para se no cortar, um pano chamado nepa, por onde a corda passa
e pelo moiro, pau saliente proa, que chega a fazer fumo com o atrito. s vezes a linha
acaba-se quando a baleia mete muito para o fundo. Se est outro barco perto, fornece-
lhe mais linha, seno a baleia perde-se: tm de cortar a manilha ou so arrastados para o
abismo.
L vai a ara! exclamam.
A ara o fim da linha, e com pena que eles a vem acabar-se. Passam a ponta
de mo em mo, at ao ltimo tripulante, que s a larga com desespero.
L vai a ara!
Pior quando a baleia, ferida, se atira ao barco. Deita-lhe a boca e dilacera-o,
voltando-se depois para os homens, de boca aberta como as feras. No outro dia, as
canoas que assistiam a este drama queriam lancear o bicho enfurecido, mas os outros,
nadando, berravam da gua:
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homens, no avancem, que ela mata-nos aqui a todos!
Em geral a baleia mergulha, vem tona antes que se acabe a linha, e o que ela
mostra primeiro o focinho, para resfolgar. Aproximam-se e do-lhe uma lanada ao p
da asa para a sangrarem. Mergulha, reaparece, esgotam-na e tm-na certa quando
comea a esguichar sangue pelas ventas. Que viso de espanto entra nesse momento
naquela cabeorra? H baleias que conseguem escapar e no esquecem meses depois
atiram-se aos baleeiros. Do-lhe mais lanadas numa vozearia de triunfo. nossa!
nossa!... Do corpo, dos pulmes, do corao, saem jorros vermelhos. Vomita.
Encarniam-se os homens. Ento aquela grande massa oscila, adorna e morre numa
pasta de sangue...

Do alto do monte o vigia tem guiado a canoa, acendendo fogueiras para os dirigir
com o fumo para a direita, para a esquerda, para o largo at encontrarem o bicho, e
toda a populao em terra seguiu ansiosa o espectculo.
J arrearam as velas!
Trancou a baleia! trancou a baleia!
Foi o mestre Francisco que trancou a baleia.
Ai, se foi o meu homem que trancou a baleia, hoje um dia de S. Pedro!
E o grito corre de casa em casa pela povoao.
Trancou a baleia! trancou a baleia!

Falta o pior; falta trazer o bicho para terra, o que leva horas, leva o dia. s vezes
as canoas so arrastadas para muito longe e preciso puxar a baleia a reboque para a
costa. E segue o resto: falta decep-la, cortar-lhe a manta em pedaos para derreter nas
caldeiras. Compe-se a canoa, leva-se ao ferreiro o arpo todo torcido. Os cais
escorregam besuntados, o barraco deita um fumo pegajoso e ftido; no mar biam
carcaas podres; por toda a parte h ossos de baleia e tripas informes. L de dentro, da
cozinha infernal, saem baforadas, clares e fumaceira. As povoaes tresandam a
gordura, porque at o fogo das caldeiras se alimenta com vrtebras e torresmos de
baleia. A gente passa e v uma cabeorra escura aberta a machado ou um monstro
estendido com homens em cima, que o retalham com o ferro largo encabado num pau,
enquanto outros, cheios de gordura e de sangue, remexem nos intestinos, onde s vezes
se encontra uma fortuna. Duma que vi morta no Cais do Pico tinham retirado trinta
quilos de massa escura, mbar, que valia muitos contos de ris. Por toda a parte vasilhas
ensebadas, barris de leo, montes de ossos, resduos de lenha e toucinho branco
cortado em bocados. Um guindaste tira da gua um enorme pedao de baleia. Mais
cheiro, mais fumo, naquele aougue monstruoso. Mais fartum... Os homens mal se
distinguem, l no fundo do barraco imundo, remexendo com grandes colheres nos
caldeires, e outros carregam mantas de banha a escorrer gordura. Clares vermelhos e
azulados ( o leo que arde e a carne que rechina) iluminam figuras estranhas. At o
mar est escarlate.

Verde e negro, verde e cinzento, entre torresmos negros. Vida prodigiosa de
nvoas, clares vagos e esparsos, tintas delicadas que se entranham umas nas outras, e
s vezes um pedao de mar azul-cinzento que me prende e fascina. Mas no me sai dos
olhos a posta gorda de carnia e o cheiro a fartum no me larga o nariz, nem aquele
navio besuntado que corre o mar, deixando um rasto de fumo e de sangue...

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HOMENS E BARCOS

Os homens so excelentes. Nem s no Corvo no h crimes os crimes so raros
nas outras ilhas. talvez o isolamento. Ponham dizem um comboio que ligue as
ilhas com o continente e vero como h todos os dias crimes. No h crimes porque os
criminosos no podem fugir. No assim. Os homens do Pico so os homens mais
sos que conheo. Vejo-os diante de mim como torres e um olhar que no engana. E os
das Flores e do Corvo?... talvez da raa, da vida isolada e simples, do trabalho e do
contacto permanente com o mar e a terra. Pelo que pude observar, tm um grande amor
de independncia. Emigram para comprar alguns campos e acabam lavradores. Quase
toda a gente sabe ler no Corvo e no Faial. H menos analfabetos que no continente.
Reparem na gente do campo, na limpeza das casas e na situao da mulher, que
tratada com respeito e ternura. Algumas trabalham na lavoura, mas quase todas bordam.
Quantas vezes vi nas estradas (Leiria, etc.) em dias de mercado este espectculo
deprimente: o homem a cavalo e ao lado a pobre mulher a p, descala, acompanhando
o trote da alimria em passo miudinho!... Deu-lhe a vida e os filhos e olha para ele com
ternura. Isto no possvel nos Aores: a raa outra ou o respeito pela mulher veio da
Amrica, para onde emigram quase todos?
Alguns destes homens so tipos extraordinrios, os baleeiros do Corvo por
exemplo, a meia dzia de velhos que ainda restam, ao mesmo tempo infantis e solenes,
de pra grisalha em forma de leque na cara toda rapada. Parecem-se como irmos, falam
com gravidade. Exprimem inocncia e dor. Vinham as baleeiras busc-los ao Corvo e s
Flores e levavam-nos por largos anos ou para sempre...
O Banzeca (Flores) um velho desdentado e alegre, com olhos maliciosos e
pisqueiros na cara de fuinha, que passou a vida correndo mares e acaba em terra com
saudades do perigo que l vai. um tipo com a lngua salgada como a gua do mar.
Fui sempre terrao (pescador) e quanto ganhei quanto comi. Minha vida na
Amrica, para onde fui moo, foi sempre na pesca do bacalhau... A gente sai no fim de
Abril e larga para os bancos num iate que leva capito e cozinheiro, cinco botes e dois
homens para cada bote, tudo gente do diabo, pretos e chineses, portugueses e sei l - o
mundo!... S o capito americano. O navio leva sal, isca e mantimentos, mas preciso
ter um estmago de ferro para se viver l dentro. Cheira a tudo que mau a bacalhau e
a podre, e pega-se gente como visco. So seis dias, com vento escasso, de viagem da
Amrica ao mar de nevoeiro. E no se v mais nada seno nevoeiro, nevoeiro,
nevoeiro... De quando em quando a nvoa sobe como fumo e aparece uma ilha toda
branca, uma ilha de neve que anda pelo mar direita gente. Os navios ancoram a cinco
milhas uns dos outros, iates, galeras, barcos, todos com os topos arreados, por causa do
mau tempo, que s vezes mete medo. Ento comea a pesca. Levantamo-nos s trs
horas da manh (l tanto faz ser dia como noite, tudo um) e depois de comer armam-se
os botes para a pesca, dois homens em cada um, e procura-se o peixe onde ele bate. Se
no d, muda-se de stio e larga-se o ferro. Ao meio-dia, nos dias mais claros, o navio
levanta um farrapo no topo do mastro e outros tocam o sino sinal de jantar. E depois
de jantar volta-se para a pesca, de p no barco, com duas linhas em cada mo, sueste na
cabea, casacos e calas oleados e grandes botas nos ps sempre sobre o banco do
peixe e os barcos a curta distncia uns dos outros. s vezes um falatrio pegado de
barco para barco, mas trabalhando sempre. Trabalha-se at meia-noite, e os que
regressam da pesca caem logo num sono profundo at s trs da madrugada, hora a que
o capito grita: Ol, tudo a p! Trabalham os da pesca e trabalham os de bordo,
rapazes verdes (so os que embarcam pela primeira vez) e que escalam, escalam
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infatigavelmente, com grandes facas na mo, cortando a cabea aos peixes, abrindo-os e
passando-os ao vizinho, que lhes tira as tripas e separa o fgado. Logo outro atira o
peixe pela escotilha ao poro, onde salgado e metido em barris. S aos domingos se
descansa. E nunca ningum est doente... Ardem as mos doridas pela linha e salgadas
pela gua, a humidade trespassa-nos de ls a ls, o cheiro mete-se no corpo e na alma
mas tudo corre bem: a fome devoradora, o estmago de ferro.
Durante muitas horas falou da sua vida nos bancos e eu vi o nevoeiro espesso no
mar calmo, os pequenos barcos perdidos na cerrao, guiando-se s apalpadelas pela
buzina de bordo, e aquelas nvoas estranhas que vm do plo. E senti a humidade
entranhada na roupa e nos corpos, dentro dos navios que cheiram a salmoura e
exalao das roupas que secam ao p dos foges. Assisti vida montona e perdida no
mar; ao regresso dos barcos despejando os peixes no tombadilho, at que a barafunda
aumenta e todos lavam, todos escalam e salgam pela noite fora e se acaba o sal e se
enche o iate. Pescas miraculosas s vezes, pescas em que s as duas linhas das selhas
que se largam no mar e se recolhem noite chegam s vezes a encher trs douros, que
o nome prprio destas pequenas embarcaes.
E a tripulao era boa?
Nos navios em que andei eram quase todos portugueses, menos o capito e o
piloto. s vezes nos barcos, enquanto pescvamos, fazamos um destampatrio sobre as
moas da nossa terra, sobre casos dos Aores, e at s vezes falvamos naquele navio de
bacalhau que foi metido a pique por outro, morrendo toda a gente, e que de quando em
quando se descobre durante um momento na nvoa, com a companhia sempre a pescar e
a cumprir o seu fadrio. Tnhamos medo... So histrias que l contam. Outras vezes
vamos o nevoeiro transformar-se em coisa viva, em aves muito pequeninas, que So
aos milhares, em asas que mexiam e remexiam naquela frescura insondvel, chiando
entre a nvoa. De noite so os cagarros que falam uns com outros. E, mesmo na
cerrao mais profunda, a alegria dos bichos frentica, principalmente a dumas aves
todas pretas e do tamanho de estorninhos, que voam e chiam, que voam e chiam roda
da gente num espanto, tantas e to bastas como as areias do mar, e a que chamamos
alminhas do mestre.
Outros, como este rapago do Pico, uma jia de rapaz, alto, seco e alegre, que
caminhou para a Amrica aos dezassete anos, vo para a cavala e s regressam para
casar. sempre a mesma vida. Embarcou num iate, pescou dias atrs de dias com redes
na costa da Amrica. A cavala aberta, salgada e metida em barris. s vezes vo
vend-la fresca a Boston.
Foi tambm um irmo meu na minha companhia que est ainda para os bancos.
Andou na baleia quatro anos e volta agora tambm para casar.
este que me fala dum mar extraordinrio, dum mar que gua e alimento ao
mesmo tempo, dum mar como leite, de que se sustentam peixes aos cardumes, peixes
unidos uns aos outros formando uma esteira quase compacta, sobre a qual se cevam
milhares de aves enchendo o escuro de palpitao e de gritos.
Muitos homens passaram a vida sempre no mar e ignoram tudo do mundo. Chega
a ser difcil entend-los. Um velho baleeiro do Corvo teimava em me contar um grande
drama o que mais o interessara durante a existncia mas que eu nunca cheguei a
entender, porque no tinha princpio nem fim:
Estvamos cavala fresca. Tnhamos a luz acesa e estvamos na lida de aviar o
peixe, quando veio um navio arriba da gente, bateu na proa e agarrou-nos o ferro. Que-
brou-nos o pica-peixe. E fomos para descaldear o ferro e desviar-nos... E vimos outro
navio correndo proa, que mareou para outra banda. J nos faltava a comida. Imos
uma bandeira a meio mastro, mas a galera...
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Que galera?
A galera francesa no se importou e correu sempre no seu ponto...
Ah!...
Calou-se e eu fiquei a olhar para ele, e ele, de olhos ingnuos e cheios de
entusiasmo, a olhar para mim, muito Contente.
Ah, sim!...
Quase todos os homens, e at as mulheres, emigram para a Amrica, e os que no
emigram porque no podem fugir. Se a Amrica abrisse largamente as portas, os
Aores despovoavam-se. J faltam braos para cultivar as ilhas... H-os que se fazem
horticultores nas Bermudas, como este velho que regressa e embarca comigo no mesmo
paquete (Britnia) e que me conta toda a sua vida, pondo-se logo de ccoras, que a
maneira habitual de trabalhar no seu ofcio, para descrever no convs, com o dedo, os
canteiros de cebola, de salsa e de couves lombardas com que abastece o mercado de
Nova Iorque.
Que srie de imagens trago na cabea! Vejo diante de mim o porto de Nova
Iorque de h quase um sculo o porto dos desgraados e dos idelogos, o porto dos
emigrantes de todo o mundo. A Amrica! E dia e noite os barcos a descarregarem
carregaes humanas. Vejo pelos olhos dos emigrantes o rancho, a vida livre a galope
na plancie sem fim, e quadros que j no existem: o espectculo alucinante do fogo que
prepara a terra para receber o primeiro gro. Perto, corre o grande rio virgem que incha
e transborda, ainda sem limites definidos, como nos primeiros dias da Criao e ao
lado ergue-se a casa rstica de lavoura, defendida pelo muro de grossos troncos
enegrecidos. Desfila contado por outro a caterva de aventureiros, de baleeiros
desertores, de canacas e bandidos e a carreada de transportes atravessando milhares de
lguas, e que chega por mar depois de seguir por plancies, savanas, desertos de cactos
candelabros, como se o mundo desabitado no tivesse fim. Ouvi a este a descrio das
primeiras plantaes de arroz e indigo nas margens do Sacramento, e, pela boca do
Petinga, que tem um sculo, reduzido a pele e osso, mas cujo olhar ainda fasca
cheguei a entrever a arremetida para o oiro da Califrnia (1841) quando S. Francisco
tremeu at aos fundamentos, as cidades marcharam em peso, e de todo o mundo a corja
se ps a caminho desabando sobre a Amrica. O oiro!... A tromba humana dirigia-se
de Nova Inglaterra para os portos ou preparava-se para atravessar o continente. De todos
os pontos do globo embarcavam turbas para a Terra Prometida do oiro. Dum dia para o
outro, S. Francisco passou a ser uma das primeiras capitais do mundo. Para enriquecer
bastava partir e comprar uma caarola e um cesto onde se lavasse a areia. Tudo se
atropela na minha memria, os homens e os quadros, as pequenas telas e os grandes
cenrios, quando os emigrantes me contavam a sua vida rude de aventuras...
um gosto falar com eles quando so espertos. Quase todos tm que contar,
porque quase todos andaram fugidos por esse mundo para se livrarem do servio
militar. So antigos marinheiros aposentados, como o velho capito Fidalgo das Lajes,
que, aos oitenta anos, sentado no quadradinho da janela, no tira os olhos das guas,
com saudades cada vez maiores, e que h-de morrer, diz ele, de olhos postos no mar;
este martimo alto e seco como uma trave, que envelhece no campo sobre a rocha, na
terra que comprou com guias americanas e que ele prprio cultiva com extremos de
cuidado, to reluzente o quintal como o convs. Um conta que aos sete anos, estando a
tomar banho na praia da Horta, um barco da baleeira americana, que tinha vindo a
refrescos, o agarrou levando-o para bordo. Ningum viu. A me chorou, e a famlia
julgou-o comido por tubaro ou albafar. Por l viveu muito tempo, s voltando ao Faial
aos vinte anos, quando j no sabia falar portugus nem conhecia ningum. Por algumas
reminiscncias foi ter a casa. Ningum sabia quem era. Outros se sumiram no vasto
57
mundo:
Duma vez fui parar costa da ilha do Prncipe no navio em que era contra-
mestre. Vi l no alto uma capelinha. O sino, que estava pendurado num ramo de
laranjeira, comeou a tocar. Vamos a terra... Desembarquei e subi. Estava a
conversar com o padre, quando dei com um homem de grandes barbas que conheci
pelos olhos. Pois s tu, Joo?! Era um desaparecido h muitos anos do Faial. Sou
eu. Volta comigo no navio para a nossa terra. Todos supem que s morto. Isso
volto eu! Aqui tenho que comer e que beber. Estou casado com o estafermo duma preta
mas no me falta nada. Se voltasse para o Faial tinha que trabalhar para comer. E no
houve convenc-lo. Deu-me um abrao e l ficou. Nunca mais nos vimos.
Outros andavam na baleia e foram parar s ilhas Fidji para a aguada. um largo
cncavo com uma cadeia de montanhas vermelhas ao fundo e coqueiros, casuarinas e
accias bordando a beira-mar. De quando em quando caem chuveiros grossos activando
o cheiro das grandes flores gordas que exalam no perfume o ltimo suspiro. As noites
so prodigiosas de desfalecimento e calma. O pandano entontece. Todos se sentem
quebrados naquele clima tropical. O rei mandou-lhes mulheres para bordo, quantas
mulheres quiseram, mulheres cor de cobre, grandes e fortes, que danavam em grupos,
representando a pesca, a sementeira, a colheita, ou pequenos dramas campestres e
martimos, acabando por se entregar com os beios arreganhados de volpia. Por l se
demoraram perto de um ms. Cada um tinha trs, quatro, cinco mulheres. Apesar dos
gritos do capito, no havia maneira de desamarr-los dali. Quando tiveram, enfim, de
partir, os homens, de cansados, no podiam largar o pano e as mulheres em terra
desataram num choro convulso...
Conheci nas Lajes o Experiente, tipo curioso que faz canoas e anda em compita
com outro a ver quem constri melhor e mais seguro, e na Madalena os extraordinrios
Chatinhas, o filho, grande pescador diante do Eterno, que conta peripcias de mar, e o
pai, de argola na orelha, como todos os antigos martimos, encarquilhado, de cara
rapada e seca como um arenque quando se ri enche-a de hierglifos casado com a tia
Anica, excelente cozinheira de toda a qualidade de peixe. Mestre Chatinha pescador e
filsofo:
A gente na vida deve jogar sempre pelo seguro. Eu c no fao nada sem
consultar primeiro minha mulher. Ouo sempre aquela santa. Noutro dia tinha de fazer
um barco, estava irresoluto, fui ter com ela e perguntei-lhe: o mulher, fao um barco
ou uma canoa?
Pois faz o que quiseres.
Isso sei eu! Mas sempre quero saber a tua opinio.
Eu dessas coisas no percebo nada.
Mas responde ao que te pergunto: fao um barco ou uma canoa?
Pois j que teimas, acho que deves fazer uma canoa.
Fiz um barco j sabe. Porque a gente deve consultar sempre as mulheres
para fazer o contrrio do que elas dizem.

Nas Flores a pesca do alto, duma abundncia extraordinria, quase sempre
linha ou cana pesca de varo. O peixe levam-no para casa ou trocam-no por milho.
Tambm usam nas Flores e no Corvo a agulheira, a barqueira, a entorta, o entralhe, a
gorazeira, a enxalavara e a tarrafa, como em geral em quase todas as ilhas. O grande
pescador o da baleia, com excepo de S. Miguel, onde h um bairro inteiro de
pescadores de bacalhau e vrias povoaes, entre elas Mosteiro, com um morro aguado
por trs, casinhas agrupadas e moinhos trabalhando beira-mar gente que se emprega
toda na pesca do alto. Vo com rede para chicharro, linhas e canio at ao mar da
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Ferraria, ao Matoso, Ponta da Bretanha, e vendem o peixe pelas povoaes mais
prximas. Para os pescadores do Pico o melhor mar o banco da Princesa, mas h
tambm o baixio de S. Mateus, a restinga de S. Jorge, o mar Velho, o mar Novo e o mar
de Fora, que do muito peixe. Antes da descoberta do Prncipe de Mnaco, o mar mais
piscoso era o da Ponta Negra at Ponta do Hospital. As bogas apanham-se com a
enxalavara, a cavala cana e agulheira, a enxova, a dourada e o rio a pau e alinhaves.
A isca prepara-se soborralhando o peixe e picando-o depois faca. Na Terceira h
tambm duas grandes povoaes de pescadores do largo, a Praia da Vitria e S. Mateus,
algumas casinhas e um abrigo formado por rochas vulcnicas. Pesca-se linha e em
barcos que levam de cinco a seis tripulantes, o congro, a abrtia, a moreia, a lagosta, a
cavala com um anzol mais pequeno, e a sardinha com a rede que se chama cercado e
que se arrasta para a terra at meter a pesca debaixo dos varais. Vo ao mar do
Nordeste, ao mar da Prata, ao Cabeo de Esquiola, ao Baixio, aos Aregos, aos Palheiros,
ao Invs, ao mar Novo, saindo meia-noite e chegando a cento e cinquenta braas e s
vezes, como no Cacete, a quinhentas braas de profundidade. So trinta barcos. Os
homens levam como mantimentos a saca com pes, a talha de gua e peixe. s vezes o
mar obriga-os a arribar aos Biscoitos explica-me este tipo ruivo e tostado a quem
pergunto:
Como se guiam no mar?
A gente estando no nordeste e comeando-se a cerrar a terra, a gente marca-se
por a vaga, porque, a gente estando fora do Queimado, sempre a mesma, ainda que
ventando...
Mas com mau tempo?
Se a vaga nova desfaz a vaga velha, a gente no somos vivos o que quer dizer
que o temporal seria tanto que no se aguentariam na canoa.
Nunca vi tantos e to lindos peixes. Em todo o arquiplago se pesca o rocaz
vermelho, sarapintado de escuro com grandes barbatanas delicadas como asas, a
magnfica abrtia, de duas qualidades, a negra da costa e outra, mais esverdeada, o
albafar, albacora, o budio, o bonito, o besugo, a bicuda, a boca-negra, o carapau, a
cavala, o congro, a dourada, a enxova, o enxaru, o goraz, a garoupa, o rio, a mugem, a
moreia, o peixe-rei, o pargo, a serra, a sardinha, o sargo, a trombeta, etc. S o banco da
Princesa Alice daria que comer a um imprio.
Lavradores do mar e lavradores da terra, porque quase todos eles cultivam um
cho e pescam para comer. Se os pescadores emigram nas baleeiras, os lavradores vo
trabalhar para os ranchos da Amrica.

Quase todos so felizes, quase todos cultivam uma terra que lhes pertence. Os da
Graciosa exportam milho e trabalham com diligncia, fartos nos seus campos e nas suas
vinhas, no se deixando submeter a abusos. H anos, quando um senhorio de Lisboa
quis aumentar as rendas, no as pagaram. Foi l a tropa no pagaram seno o que era
justo. Nunca vi campos to bem tratados, entre os dois montes redondos com a
povoao branca no centro, um dos montes amarelo com a giesta em flor e o outro dum
verde to tenro que escorre pela encosta abaixo. uma ilha ilustre e literria. Dela fala
Chateaubriand nas Memrias e nas Revolues Antigas, e Garrett habitou numa destas
casinhas, no tempo da expedio de D. Pedro. Em S. Jorge, a ilha trgica, vale a pena
ouvir a voz do pastor, a queixa baixinha do homem mais desgraado dos Aores. Nesta
terra de grandes proprietrios, que alugam as pastagens por certo nmero de canadas de
leite, h stios que pagam por ano quinhentas canadas de leite por cada vaca e outros
menos. Os pastores levam o leite fbrica de manteiga, e no fim do ano pagam em
dinheiro ao senhorio. Quanto mais caro for o leite, pior para o pastor, que tem fixo no
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arrendamento o nmero de canadas. Vivem em povoados e de manh e de tarde vo aos
baldios ordenhar as vacas.
Este que me fala um tipo anegrestado e macio, de rabia na cabea, capuz de
abas cadas sobre as orelhas e capa at ao joelho.
Vossa senhoria como vai e mais a sua obrigao? (famlia).
Estaco diante da figura primitiva e pergunto-lhe pela mulher.
Anda muito somenos, porque teve h dias uma famlia (filho).
Est espera dum dos filhos para ir buscar gua para o gado:
Coma (quando) ele vier...
Todos os dias tem de acarretar gua, s vezes de muito longe, para dar de beber
aos bichos; todos os dias, acompanhado da mulher e dos filhos, vai enchiqueirar ou
mugir o leite e lev-lo fbrica.
uma figura desamparada, isolada e triste naquele ermo triste. Toda a ilha, desde
que o vi, me pareceu funesta... Explica-me que na fora do leite as vacas so ordenhadas
duas vezes por dia; depois, fim de Julho, faltam os pastos, e os bichos comeam a arrear
do leite. Levam-nos ento para a Rocha, onde invernam com eles, para que os pastos
descansados possam dar melhor erva no Vero. Todos enxabiados (molhados) esperam
que a m estao passe, para recomearem a mesma vida montona. Estes homens ao
desamparo tm no seu isolamento e na sua pobreza explorada qualquer coisa de
misterioso.
Reparo com pasmo que este pastor me fala da sua vida com indiferena, plantado
diante de mim como um tronco. um bruto, mas foram os outros que o reduziram
condio de bruto. As coisas mais duras di-las com a mesma cara de estanho. O
isolamento comunicou-lhe a mudez, e a dureza da queir o negrume que o reveste.
Lavou-o o vento e a chuva.
Devo dizer que a ilha magntica e s metade duma ilha, cortada a pique, e dum
lado rocha negra. Ficou toda em comprimento e de m catadura. Tinham-me falado dos
seus pastores selvagens, dos seus pais-avs, embrulhados nos capuzes e vivendo em
promiscuidade, e eu olhava aquele paredo sem uma falha como se ele escondesse um
segredo...
Ilha fnebre, a no ser talvez o lado norte, mais selvtico: da Urzelina Costa
do Rosrio, toda rocha; do lado sul, da Urzelina ponta dos Rosais, pedra inteiria; e no
interior ondulao montona. Sobe-se e outra ondulao aparece diante de ns, dividida
em retalhos por queir quase negra. Pastagens, pastagens... Terra triste, impresso
severa. L de cima do Terreiro da Marcela v-se o mar cheio de nebulosidades, de tons
azuis, de clares vagos boiando sobre as guas, de grandes espaos ilimitados, e, sob o
cu forrado de cinzento, adivinham-se, perdidas na bruma, a Terceira no fundo, o Pico
em frente e a Graciosa hesitante como uma apario que comea a materializar-se.
Deso e sigo pela estrada que d a volta ilha: no horizonte h j um risco de carmim
muito vivo entre nuvens. Dum ponto, o Miradouro, entrevejo a larga ch beira-mar,
frtil em culturas, que se estendem, at Urzelina, e a povoao entre o Morro e o Pico
dos Loiros, com o seu portozinho circular. Falam-me do Norte pitoresco, mas tudo
perdeu para mim o interesse desde que topei com o pastor. S ouo a sua voz de
escravo...
Andemos por a, por uma banda e outra, a entreter a vida... Levemos o mais do
tempo a carrear gua para os bichos beberem.
E o leite?
Deixe-me dizer... O leite para o senhorio, e se as vacas o no do, temos de o
pagar na mesma e pelo preo que a fbrica quiser. O que pode ficar ao pastor, que vive
pobre numa rautilha (casa velha), alguma criao muito mal criada, porque preciso
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tirar o leite me para o levar fbrica. Acontece que s vezes morrem os bezerros
boei-credo-andar! ; acontece tambm que no fim do ano, para a gente se remediar, tem
de vender uma vaca para pagar a renda. Nunca, nunca se ganha para pagar ao senhorio.
Isto est em termos de no se poder viver!
Nunca vi diante de mim figura to inexpressiva. No foi o isolamento que a criou:
mais que o abandono, criou-a o desprezo pela criatura humana. O sentimento diante
dela, terra e s terra, no piedade medo, como se pela primeira vez se me
deparasse um homem diferente, mais perto do animal que os outros homens. Ningum
se aproxima deste escravo na solido do mar e da pastagem. O que tenho vontade de
fugir, medo que isto se pegue. L fica ao abandono de bicho, e de longe ainda o vejo
parado e imvel como se fosse de pedra onde a dor no entra e, se entra, em pedra se
converte logo.

Onde se lida de perto com o povo nos barcos de cabotagem que fazem o trfego
entre as ilhas. Para passar o canal do Corvo para as Flores meto-me num chaveco de
velhas tbuas com velas triangulares, seguras por duas cordas, uma proa, que se
chama burro, e outra, a escota, na mo do cabo-de-mar. Para iar a vela, OS homens
agarram-se urraca, puxando-a at que o mestre de repente grita, por causa do vento:
Repica! repica! para eles atravessarem a verga, a que l chamam vara. E l vamos na
caranguejola... A travessia tanto leva trs horas como onze, conforme o vento, as guas,
as lufadas que se levantam de repente no meio do canal, quase sempre agitado pelo Gulf
Stream. No fundo do barco reparo na lana, atirada para ali a esmo, e pergunto para que
. Para matar o tubaro, que s vezes se atreve a saltar dentro do barco. Agacho-me
logo a um canto ao p das mulheres enrodilhadas, de sacos, de dois porcos, dum novilho
com as pernas atadas, duma grande caixa, e dum molho de gente que aproveitou a
ocasio para ir s Flores. E no tiro os olhos do mar. costume, a meio do canal, com a
vela panda, os marinheiros descobrirem-se e rezarem a coroa a Nossa Senhora. A
orao leva tempo, e a gente tem tempo de observar as fisionomias graves, onde a vida
imprimiu a sua histria, a dos velhos, enrugados e secos, sos como peros; a do mestre
Hilrio, tisnada, de olhos negros e espertos; os olhos azuis e plo ruivo do Cabo-do-
Mar, que olha as ondas de alto e dirige a manobra; as das moas, inocentes como bichos
encostadas umas s outros. Padre-Nosso pelos mortos! a coroa que vai no fim.
Padre-Nosso pelos que tm morrido neste canal! Padre-Nosso para que Deus nos leve
a porto de salvamento! Eu rezo tambm, com um olho na lana e outro na geringona
a desfazer-se em tbuas velhas, carregada de gente at borda: Pela alma dos que
morreram neste canal pela minha alma!... Mas j as Flores alm se vo articulando,
com pinculos negros no alto. O mar est violeta, a ilha verde e o cu cinzento...
Do Faial para o Pico tanto se vai de gasolina como de barco. O barco
esplndido, mas o gasolina tambm tem sua graa. H-os grandes, que levam sessenta
passageiros, h-os mais pequenos, que levam de doze a quinze e que aguentam muito
temporal. Um, enrodilhado no ciclone, j foi parar Terceira, escapando o nico
tripulante, que teimou em se deixar ficar l dentro, mesmo depois de parada a mquina,
agarrado s tbuas com desespero de nufrago. A gente vai dentro da cabina, com
janelinhas quadradas, fiada dum lado, fiada do outro: se olha para fora, tem o mar ali
mo, azul e sempre presente; se quer, fala aos passageiros, de fisionomia rude, gente do
povo, mulheres do Pico, de xale pela cabea puxado para a frente, tapando-lhes a testa
como monjas, aos homens de albarcas e chapu de palha. que vo feira carregados de
sacos e cabazes, que metem debaixo dos bancos. O Pico no passa sem o Faial, onde
compra o milho e o trigo, e o Faial sem o Pico, que lhe fornece o vinho, a lenha e as
frutas. Mas mais interessante o barco, com a tripulao de vinte e tantos homens,
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mestre e contra-mestre, que todos os dias faz carreira entre as duas ilhas, a horas mais
ou menos certas, carregando bois, pipas de vinho e toda a espcie de carga que lhe
metem l dentro. Faz-se esta navegao para a Madalena, Calhau, Cais do Pico e
Prainha do Norte. So grandes embarcaes grosseiras, de bancos mal faceados, muitas
cordas e moites, mas largam as duas velas, metem a borda na gua e voam por esse
mar, abrindo como um arado grandes sulcos nas guas.
O pior vento para as velas o oeste-sueste, e o leste, de que dizem: Vento leste
no d nada que preste mas hoje est nordeste fresco e sem sacadas, a que l chamam
vento geral. Sento-me popa e ponho-me a olhar para tudo isto: para o mestre, que
um rapaz, para o contra-mestre, velho de oitenta anos, de cara engelhada e forte como
uma trave, sentado ao p de mim e que me diz o seu nome, Jos Faria; para os
tremendos rapages do Pico, tisnados como negros; para as mulheres, aninhadas no
fundo da caverna; para os cesteiros e negociantes das diferentes freguesias do Pico, que
vieram mercadejar e regressam a casa. Todos eles usam na cabea o chapu de palha de
bordo revirado e fita preta e albarcas nos ps um pedao de sola grossa, segura por
tiras de couro, uma presa aos dedos e a outra dando a volta ao tornozelo.
Vai ora. A escota na mo recomenda o mestre, de p e ao leme, ao velho,
que seu pai e que segura a corda. Quando h mau tempo ou vento fresco, o homem da
escota nunca a larga da mo e o mestre, junto do aparelho grande, faz-lhe de l sinais.
No trocam palavra. Regulam-se por gestos.
Vai ora!
Chamam latinas a estas duas grandes velas triangulares, cheias de remendos como
o vestido dos mendigos da proa, maior, traquete, e vela mais pequena. Quando o
mestre manda: Arrear grande refere-se sempre vela mais pequena.
Chego-me mais para o velho, que tem uma boca fresca e dentes brancos de rapaz.
H mais de cinquenta anos que faz a escala do Pico, sempre em mangas de camisa e
com o peito mostra, tanto de Vero como de Inverno. E tem Oitenta.
Tenho-as passado boas.. - Duma vez, quem vinha mandando era o Francisco da
Ritinha, que mora na casa do canto. Disse-lhe: Acautela-te, olha que a mar vai a
vento. No fez caso, vimos a morte... J aqui trabalhmos cinco horas sem
conseguirmos chegar a meio do canal com vento s-sueste. Tivemos de voltar para trs.
Como arranja o senhor a estar assim forte como um moo?
Eu lhe dou a receita... Casar tarde, enviuvar cedo, no comer salgado nem
azedo, nem ser aprofiadeiro.
Gemem as escotas e o mastro na carlinga. Estamos perto dos ilhus da Madalena,
grandes penedos vermelhos, quase ao p do Pico. s vezes a proa ergue-se, cai, bate no
mar, e a espuma branca salta em rolos. Dois minutos e samos.
Iates comunicam com a Ribeira, Santo Amaro, Cais do Pico, com S. Jorge,
Graciosa e Terceira. Entre as Flores e Corvo mais srio o canal mete medo: ainda
no h muito tempo que desapareceu um iate, tripulao e tudo. Mas o negcio tenta e
vo l com cal e telha. De Angra para Ponta Delgada carregam tabaco e carga geral, e
de Ponta Delgada para as outras ilhas, madeira e loua da Lagoa. Transportam milho,
telha e pcaros de barro de Santa Maria, barcos como este iate que tenho na minha
frente, chamado Esprito Santo, com um mestre e sete tripulantes. E tambm de Ponta
Delgada saem outros, na poca prpria, com duas latinas, cheios de fruta.
Meu Deus, como eu vejo tudo! Ficam-me os olhos nos carreirinhos que no sei
aonde vo ter e por onde passa um homem com o burro e a carga; ficam-me os olhos
presos a certos stios e a certas casas onde me apetecia viver escondido no s a minha
vida mas todas as outras vidas. E fica-me a alma nestes barcos de todos os feitios que
chegam e partem... Para onde? para onde?... Sei l para onde! Para stios que nunca vi
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para a cor e para a luz. M raios partam os intrujes que nos levam para carreiras de
artifcio e, com eles, os advogados, nos fundos dos escritrios com a papelosa intil,
os escrives nos seus covis, os militares com penas na cabea e chanfalho ao lado, e a
tropa-fandanga das chancelarias!... Oh! quem me dera ser patro dum barco e ir de ilha
em ilha abicar aos portos, de barrete azul adebruado de vermelho na cabea e a mo no
leme, com a minha carregao de damascos aos montes, damascos maduros a estalar
de sumo, que incensariam o cais e que venderia o cento a tosto, preo antigo!... Que
prazer navegar logo ao princpio da noite com as velas todas, aproveitando o vento
terral e sob a palpitao das estrelas! ou ao fim da tarde, a quilha rasgando na gua a
estrada real toda de oiro desde o horizonte at bordo. O mar est como mel!... De dia,
entre os canais vo surgindo as ilhas, desdobrando-se e articulando-se os cabos e as
salincias da costa. Se no canal de S. Jorge, v-se o Faial ao longe, montanha achatada
desprendendo-se do Pico, quando se chega ao meio, e S. Jorge muito comprida, verde-
claro, verde-escuro j para trs com a nuvem agarrada nos altos. Do outro lado o Pico
sai da gua todo azul, duma gua onde o azul se mistura ao cinzento com ondulaes
quase doiradas. s vezes, o tempo muda, o vento ronda, as vagas cinzentas, com a crista
cheia de espuma, avanam do Sul: cai sobre o mar uma poeira cor das nuvens, e l para
o fundo a cerrao aumenta sobre as ondas cada vez mais altas... Mas eu no tenho
medo: neste barco vela que sinto comigo a alma de meus avs. No h nada para
mim que valha certas horas sobre o mar, velas cheias, sentindo a pancada da onda no
costado da embarcao sensao de calma e de exaltao ao mesmo tempo, de vida
simples e sem limites. O ar vivo dilata-me o peito, a vaga desfaz-se superfcie em
pequenos turbilhes de espuma que parecem flores. Como nos velhos engenhos
primitivos, como nas primeiras tentativas para dominar a natureza, tudo aqui est ainda
empregado com inexperincia e simplicidade. Sente-se o que se sente nas grandes
esculturas, a mo e os dedos do estaturio, que as impregnaram de vida. Sente-se a mo
e a ama. Nos moinhos toscos, nas rodas de tirar gua dos rios, h hesitao e a falta de
qualquer coisa, que lhes d mais humanidade que s mquinas perfeitas: quase sempre
rangem, gemem sofrem como ns. E esta dor, esta imperfeio, para mim um
encanto a mais. Aqui, os mastros so grosseiros, as velas remendadas e de bocados
como os trapos dos mendigos. Encontram-se cordas e cabos por toda a parte. Para
caminhar, no h mquina temos de contar com o vento: se no estiver de feio, a
viagem eterniza-se. Temos de contar com Deus: a todos os momentos nos sentimos na
sua mo. O homem faz tudo quanto lhe era possvel, Ele agora que faa o resto.
Olho. medida que a terra se vai afastando, todo o azul desmaia. Pequenas ondas
aumentam de volume e o vento cresce. Uma lufada. Qualquer coisa de ferro geme.
Depois a madeira que geme tambm de dor, trespassada pela mesma agitao que
passou no ar. Todo o barco a sente de popa a proa, erguendo-se para tornar a cair na
gua que escuma. A vela bate e enche-se, arredondando a pana. Ao largo, o espao,
vazio como o cu, cintila de pedraria, e diante de mim a costa negra e abrupta desliza
mais rapidamente. A minha vontade deitar a mo ao leme. Por pouco no dou ordens,
engrossando a voz:
Olhem essa escota, rapazes! ... Ora! ora agora!

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AS SETE CIDADES E AS FURNAS

30 de Julho

Tenho diante de mim a escarpa com um campanrio perdido, ondulaes e
moinhos, um grande monte azulado ao longo e um espraiado que termina com
colinazinhas quase do mesmo tamanho formando biombo. Meia hora depois entro em
Ponta Delgada e no seu porto artificial. uma pequena cidade irregular e alegre,
estendida beira-mar, com as colinas verdes ao fundo: na rua passa de quando em
quando um fantasma disforme de capote de muita roda. Nesta paisagem verde e calma,
com um cu de mata-borro por cima, prende-me os olhos aquele monte violeta com a
Lagoa na base...
Ruas asseadas, um largo, uma linda igreja e jardins maravilhosos o de Jcome
Correia, ordenado e prtico, com grandes rvores de sonho e l no fundo, ao p do
palcio, sebes de tomates e renques de batatas sulfatadas; o de Antnio Borges, com um
vaie de plantas rendilhadas, onde a gente mergulha em luz verde e atenuada, numa luz
de podrido, por entre aquela famlia de fetos que brotam dum tapete orvalhado de
musgo. Cheira a terra e a hmido. E a imobilidade em que se desenvolvem estes seres
admirveis e delicados, de folhas em pluma, altos ou minsculos, miniaturas perfeitas e
no excedendo o tamanho de lquenes, faz-me baixar o tom da voz. Melhor: a luz verde
e o silncio glauco onde s penetra um raio de sol que vem de cima e escorre como um
fio de aranha a reluzir iluminando um ponto do cho, obrigam-me a suspender os passos
para no interromper um concilibulo que suponho extraordinrio. Demoro-me mais no
de Jos do Canto, dum verde cerrado e magntico. rvores que infundem respeito, com
furnas e cavernas nos troncos, rvores cenogrficas, cheias de fora e amplido ou
transparentes e frgeis como vidro pedao dos trpicos transportado por mgica para
Ponta Delgada, e que eu, se tivesse tempo, me deitaria a explorar, a modo de floresta
virgem. Conservo dos jardins da cidade a impresso dum calor abafado, mornao, duma
sombra fechada, dum silncio religioso e dum passarinho a cantar... Esta solido com
rvores abandonadas (eu ando sempre na ponta dos ps dentro dos grandes jardins,
porque comunica logo comigo uma alma estranha ali encantada e presente) fixou-se-me
para o resto da vida. As casas so sempre as mesmas casas, os homens os mesmos
homens de toda a parte. Os jardins no. Nem os jardins nem o convento da Esperana,
de que tambm no esqueo mais a torre enorme e macia, construda para a eternidade,
e as janelas to gradeadas que metem medo. Mais forte, mais pesado que uma priso,
oprime o peito e tira o ar. Esta impresso talvez a sentisse Antero, porque foi aqui, num
banco encostado muralha, que, depois de olhar para todos os lados sem poder fugir, se
libertou da vida.
Mas h nesta ilha duas coisas maravilhosas: as Furnas e as Sete Cidades. Quase
tenho medo de falar duma paisagem que hoje, mais que nunca, me parece irreal...


1 de Agosto

Sigo por Feteiras, Ribeira da Candelria, Lomba da Cruz, e meto a caminho da
Cumieira, ora entra grotilhes subindo a lomba do monte, ora pelas ribanceiras que
enquadram as culturas l do fundo, prolongadas at ao mar terra dividida, rasgada,
gretada de aluvies. Sobre o mar desmaiado, que contrasta com o aveludado escuro da
terra, passeiam farrapos delicados de nuvens sinal de calma.
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Para cima, custa diz o homem que me acompanha para baixo, at a cabra
manca faz viage...
Mais dois passos e chegamos ao vrtice em que se descobrem de repente as Sete
Cidades escondidas entre montes. o ponto mais alto da Cumieira: tenho os lagos a
meus ps, e, se me volto, o amplo panorama que abrange grande parte da ilha, mar, cu
e costa, luz e irrealidade.
O mar, em toda a amplido, forma um plano em ngulo agudo com. o plano verde
da terra e parece que vai desabar sobre ela. Na minha frente entreabre-se um abismo
que nos atira para fora da vida, para regies inesperadas de sonho. A convulso, a
brutalidade e o fogo levantaram at ao cu grandes paredes vulcnicas, dispondo no
fundo do caos alguns campinhos meigos e dois lagos, um inteiramente verde, outro
inteiramente azul, separados por um fio de terra e quietos, adormecidos, cismticos. As
foras desencadeadas chegaram a este resultado: um pouco de azul, um pouco de
verde, ternura e idlio... Paredes cortadas a pique, carregadas de rvores, que se
despenham de cima at abaixo, acabam na gua ou em pequenas chs de milho, que a
luz das ilhas envolve duma frialdade casta e imvel...
Um ah de assombro, um sentimento novo, um vago sentimento de surpresa... Pela
primeira vez na minha vida no sei descrever o que vejo e o que sinto. Conheo os lagos
voluptuosos de Itlia e os lagos adormecidos da Esccia: o lago das Sete Cidades no se
parece com nenhum que tenha visto. Existe ou sonhei esta gua parada, esta grande
cova selvtica empoada de roxo, com aquela serenidade a ferros l no fundo? esta
beleza estranha que no nos larga e nos contempla ao mesmo passo que a
contemplamos?
O carcter da paisagem delicado e oculto. Embora a gente veja o campanrio e
as casas minsculas no fundo da enorme cratera, duvida, e chega a supor que a vara
dum mgico fez parar o tempo, e aquilo se conserva encantado entre montes
desmedidos e brutos que o guardam prisioneiro. O tempo passa, os homens passam; s
ali tudo est suspenso, na atitude fixa no momento do prodgio. Na solido mgica no
se ouve cantar um pssaro, a gua no bole, as flores no bolem. Tudo se mostra na
amplido da cratera aberta para o cu e num grande silncio estarrecido. To pouca
tinta! Um quadro feito de emoo; um quadro em que o verde no chega a ser verde, em
que o azul nvoa, e um sopro o p roxo suspenso no ar, puro hlito da paisagem
arfando. Trs riscos muito leves para fixar o encanto, como se fosse possvel, s com
sentimento e quase nada de cor, fazer uma obra-prima. Reparo que h efectivamente uns
carreiros perdidos por entre os montes para descer l abaixo. Mas eu no me atrevo!
tenho medo de que ao aproximar-me a viso se desvanea no ar!
Comeo a reparar em pormenores: dum lado a lava abriu sulcos na encosta,
lavrada de alto abaixo. Sombras de nuvens viajam sobre as guas e entranham-se em
poeira verde num lago, e no outro em poeira azul, ao mesmo tempo que o verde das
escarpas se derrete pouco e pouco nas guas.. A todos os minutos a luz transforma as
muralhas espessas, os contrafortes temerosos, que abrigam e escondem no seu seio com
ar trgico e ao mesmo tempo se revem nas guas tranquilas aquelas duas jias
transparentes, uma de cada cor, e ambas tolhidas de pasmo. Um momento tudo gelou,
afastado e sonmbulo, visto atravs dum vidro, e logo o p roxo se apodera do verde, as
grandes sombras dos vales enegrecem e a paisagem flutua em nevoazinha azul como um
fantasma ao passar para outra vida alma que ascende desaparecendo no ar. Estendo as
mos...
Eu j vi isto, e no foi no lume, onde costumo ver o outro mundo. Um dia de
Inverno pegou-se-me nos vidros a geada em arabescos delicados, em teias de aranha
fiadas pelas mos castas da noite, e, no romper da manh muito pura, aqueceu-a e
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doirou-a o sol plido. Era um nada frgil e intil, que me encheu de espanto e de sonho;
era a mais bela das paisagens e das jias, reflectida na vidraa, e que logo desapareceu
do universo. Desconfio que as Sete Cidades tambm a alma duma paisagem. As
grandes paisagens que morrem a alguma parte ho-de ir ter... Deus colocou-a aqui,
dedicada e virgem, no fundo desta cratera tremenda, entre o fogo e o caos; rodeou-a de
solido e de montes; ps-lhe volta, para a defender, o mar. Mas sente-se que tem
saudades e tenta quebrar o encanto: envolta em nvoa ligeira, sonha, flutua e queda-se
um pouco triste: quer ser ainda mais area vai estremecer, desaparecendo no ter...
por isto que eu lhe sinto no sei o qu de estranho. Pertence vida espiritual
um fantasma de paisagem. As tintas so tnues e trespassadas de sentimento, a vida sus-
pensa e exttica. Ali deve estar a princesa encantada da lenda, em que tanto ouo falar,
escondida no fundo das guas, emergindo nas noites tmidas de lua para tomar posse do
seu reino...
O sentimento da realidade s o retomo na volta, a meio caminho, no Areal, ao p
duma fonte cheia de frescura, entre araucrias, criptomrias, pltanos e fetos enormes.
um fio gelado e delicioso que nasce duma pedra escondida entre musgos.


4 de Agosto

A ilha de S. Miguel toda mais ou menos montanhosa, com algumas grandes
entumescncias. As regies oriental e ocidental so as mais altas; Pico da Vara 1:105
metros e 949 na Lagoa do Fogo; 847 metros no Pico das guas, etc. O intervalo de
Ponta Delgada Ribeira Grande, que forma o centro, coberto por cones vulcnicos de
pequena altitude. Da Povoao para nordeste toda a terra revolvida, vales profundos,
ravinas admirveis e situaes imprevistas que lembram uma pequena Sua perdida no
mar. Mas em geral pode dizer-se que a parte mais baixa a beira-oceano, distribuindo-
se os montes, de preferncia, por o centro.
A terra est bem aproveitada; at os biscoitos restos de lava produzem lenha.
O anans cultiva-se nas partes fundas, em terrenos abrigados; o ch em terras mais altas
e mais hmidas, e o milho em todos os vales.
Percorro as estradas de automvel para ver alguns aspectos do campo. O homem
vive com certo desafogo. Nas igrejas humildes e nas casas trreas o cho coberto de
caruma, para as mulheres se sentarem. A gente entra e fica logo seduzida: cheira a
pinheiro, a sol e a monte, e tudo reluz de limpeza. Fora erguem-se os granis com
quatro pernas caiadas de branco, o cafuo colmado onde seca o milho e que serve de
arrumo e muitas vezes de habitao, ou o toldo, aos manchos amarelos, que a
quantidade de espigas que a mo pode abranger , quadrinho familiar e rstico da
pequena lavoura, que Deus abenoou e onde tudo est nos seus stios desde que a vida
vida. Sente-se que a mulher feliz: no Norte, trabalha com o homem na cultura do
tabaco, colhendo as folhas e empacotando-as; na Bretanha, lavradora afamada; no Sul,
entrega-se de preferncia a trabalhos caseiros fiando a l e o linho. J raro o lavrador
que usa a carapua com a copa que lhe cobria a cabea e abrigava a testa, e o rebuo
caindo-lhe pelos ombros. S talvez se encontre este costume nos Arrifes, onde os
hbitos perduram.
Campo cheio de aves onde at os passarinhos parecem felizes a estrelinha ou
galinha de Nossa Senhora, que se chama na Terceira ferifolha e que tem uma estrela na
cabea para a assinalar, a ave mais pequena de S. Miguel; a atrevida alvola, que
persegue o milhafre e o pica debaixo da asa; o canrio da terra, o melro preto, o tonto
cinzento. S um bicho ruim deita o pescoo esguio fora dos muros velhos e espreita a
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doninha, ou comadrinha.
Esta terra abenoada produz tudo; d nos stios ricos o caf, o amendoim, o
anans, d o ch, e por toda a parte os frutos do continente. Corri a ver as culturas do
ch e do anans, que desconhecia, e fiquei surpreendido com aqueles pomares anainhos
dispostos em renques pelas colinas fora. De quando em quando uma accia molucana d
a sombra que esta variedade de camlia exige. Pelo meio das moitas bandos de
raparigas apanham folhas tenras, deitando-as para um pequeno cesto enfiado no brao.
A planta, assim constantemente sacrificada de Maio at Setembro, e que teima em
respigar e viver, deita mais rebentos e mais folhas, que se vo colhendo sempre. O
melhor ch dos Aores, delicado e. aromtico, tomei-o na Gorriana, na casa fidalga do
senhor Jaime Hintze, toda ao rs-do-cho e caiada de amarelo, entre o bulcio alegre da
vida rstica, num lar que a bondade de sua esposa santifica. A cultura do anans fui v-
la Faj de Baixo, s grandes estufas envidraadas da ilustre aoriana D. Alice
Moderno. Este fruto delicioso, cujas folhas parecem de zinco, colhido em verde para o
transporte, mas se esperam que amadurea na estufa exala um aroma que faz crescer a
gua na boca. Com calor persistente e constante humidade, com fumo quando vai deitar
flor, obtm-se, do toco negro e mirrado que a raiz, um enorme e delicioso morango.
Pouco me interessam as grandes estufas baixas, onde crescem em fitas regulares, na
terra virgem que preciso mudar muitas vezes, alguns milhares de ps. O que me
interessaria era ir, exausto, pela floresta tropical, num dia de calor, e deparar-se-me uma
famlia de ananases maduros...
Os aspectos da terra que vou percorrendo variam sempre diante dos meus olhos.
Ora so campos de milho e beterraba, divididos por sebes vivas de canas sempre os
mesmos campos, sempre as mesmas canas em terras baixas de cultura (estrada de Ponta
Delgada a Mosteiro); ora colinas, pinheirais e escarpas, a que se sucede o panorama
variado da costa.

No caminho das Furnas, ao lado de negrilhos perfilados ou sob a ramada dos
pltanos formando dceis transparentes e vivos com mos-cheias de oiro, encontro os
carros com terra virgem para as estufas. As casinhas caiadas de amarelo, a principio
pegadas umas s outras, rareiam medida que fugimos. S nos acompanha, sempre l
para o fundo, uma fila de cabeos que parecem empolas. Em todos os quintais, vidros
brancos de estufas. Reina o anans. De quando em quando uma ou outra casa de amplo
porto, ptio fidalgo e janelas do sculo XVIII. A estrada sobe, a estrada desce, e a
vegetao cada vez mais impetuosa e forte. J ao longe reluz uma brancura Ribeira
Grande. O panorama alarga-se, mas as nuvens comeam a forrar o cu e o cheiro da
humidade a entrar-me pelas ventas. Todo este ar lavado e amplo se emborralha. O calor
amolece. Mais um lano de estrada que sobe, e tenho diante de mim a rica plancie da
Ribeira Grande, largo quadro de tons variados, desde o loiro do trigo at ao verde-
escuro do milho. Ao fundo, a toda a largura do cu, uma nuvem recortada e imvel,
estendida como um toldo, deixa um feixe de sol iluminar o oceano, enquanto o campo
se conserva envolto em claridade esbranquiada e magntica at linha cinzenta dos
montes. Para o outro lado no horizonte tudo se afunda em nuvens aglomeradas. Eu j vi
esta paisagem gorda, farta e plana, com a mesma luz e a mesma terra rica de gua e
hmus, em qualquer parte que no sei, tudo atabafado em nvoa que adormece os rudos
e at a cor atenua... largo, verde, forte e tem ao mesmo tempo alguma coisa de
excitante, como se a aragem corresse em fios de nervos sobre as culturas. A vasta
campina elctrica estremece com a sombra que no tem peso e vai vergando as hastes
dos centeios e dos trigos... Mas o automvel segue e a outra volta brusca da estrada o
mar que se avista entre pinheiros azulados descendo at Santa Iria. Mais alguns
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quilmetros e o aspecto muda na Ladeira Velha, trecho da costa recortada e verde ou
diluda em nvoa, largo panorama de sombras, de tintas atenuadas, de neblinas listadas
de verde-dodrado, indistinto at ao roxo vaporoso, at ao verde-escuro l para a beira da
gua. Uma srie de cabos, de reentrncias, de pedras, se adivinham sob o cu cinzento
atravessado de claridades, forrado de nvoas, atravs das quais se sente latejar o Sol.
V-se o mar liso e roxo com um monte coberto de pinheiros ao lado. V-se o prdio de
Jos do Canto em Porto Formoso, onde se pesca a baleia. S. Brs: mando parar o
automvel para descobrir terra e cu, como do alto da montanha onde o Diabo tentou
Jesus.
H aqui, sobre tudo, um tom que eu quero notar, porque nunca o vi assim em
parte alguma: o cinzento graduado at ao infinito, o cinzento destes dias de sol e nvoa
misturados, que s pertence aos Aores, onde a terra toma todas as nuances do cinzento,
desde o cinzento-roxo ao cinzento cor de chumbo, com cinzentos-claros mais afastados.
Cinzento composto de nvoa e sol, que paira sobre a larga paisagem humedecida.
Cinzento mais prximo que se pega s rvores e que varia constantemente de cor, desde
a cor prola ao laivo quase doirado, conforme as distncias, a aragem, as nuvens que
correm e se afastam, transformando a todas as horas o quadro e fazendo da p
1
ancie uma
larga cena movimentada onde esto sempre a aparecer novos motivos de decorao.
No o mesmo dos outros stios. mais rico. Nesta vasta plancie cultivada, o
cinzento adquire outra vida, outros tons e outra variedade. s vezes revolve-se em fios
trespassados de luz. quase nada, um sopro que esmorece e logo aumenta e se derrete
sobre a campina, toldando-a e enriquecendo-a. Nunca como aqui o vi to movimentado
e fundido no ambiente, to cheio de efeitos e assimilando as cores at ao ponto de as
afastar um pouco, avivando-as ai mesmo tempo. Delicado e vago, sonhador. Triste,
certo, mas possuindo um encanto esquisito de Primavera que no chega a abrir.
uma luz que me acaricia, uma srie de cinzentos que entram uns nos outros e
desmaiam, apanham no sei que claridade e ficam absortos e quietos, ou criam nova
vida e recomeam uma gama de tons que fariam o desespero dum pintor, porque a
paisagem a esta luz extraordinria ganha sombras, variedade e frescura que os pincis
no sabem reproduzir... a ltima vez que o vejo e dele me despeo para sempre. Devo
dizer que j me cansa um pouco e que anseio por outra luz... Comeo a ter saudades do
velho muro do meu quintal, tostado do sol, onde se criam as sardnicas, os lquenes
amarelos e rosados, e at as pedras. amadurecem como as uvas!...


6 de Agosto

Atravesso a Chada das Furnas, regio desolada, at se me deparar pela frente o
espinhao disforme da serra do Trigo. Deso as Pedras do Galego e abre-se diante de
mim, entre contrafortes temerosos, o esplndido vale das Furnas. uma bacia rodeada
de montes o Pico do Bode, a Lagoa Seca, o Pico de Ferro, o Pico do Cavaleiro. No
fundo da cratera, casinhas escondidas na verdura e um grande contraste entre os
contrafortes cor de lousa e alguns campinhos de milho muito tenro por onde apetece
passar a mo, acariciando-os; entre a bacia cheia de rvores e de gua, com o vulco
canalizado e reduzido a alguns penachos de fumo, que saem de muros redondos de
resguardo, e as grandes serras que ele vomitou e produziu. Agora, est ali s para nos
dar alguma inquietao para a volpia ser maior... Sobre a crosta que calcamos, e que
ter alguns metros de espessura, o inferno, naturalmente, continua: hasta escavar na
terra com a ponta da bengala para abrir uma chamin.
Este calor e esta humidade constantes explicam os jactos impetuosos de verdura
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em massas de prodgio. As rvores crescem nossa vista, O que noutros stios leva
sculos a desenvolver-se, faz-se aqui em alguns anos mas o que noutros stios dura
sculos, acaba aqui num instante, farto de deitar razes, de atirar pernadas pelos ares, de
se desentranhar em folhas e flores. Todas as rvores pegam de estaca. As fruteiras
sobem, produzem camadas de fruto e acabam rapidamente. Calor e humidade. A terra,
aquecida pelo sol, abrigada pelas montanhas e regada por veios de gua quente
subterrnea, que vo desaguar no lago, produz inhames de largas folhas dum verde
quase negro, e milho da altura de dois homens. Passo por uma rua: os buxos so do
tamanho de rvores; a gua cai, faz mover as rodas dos moinhos, rega os campos e
embebe as razes das araucrias, das bananeiras, dos bambus, grossos como troncos.
um recanto de floresta tropical? No; um pequeno jardim. Este excesso paga-se de
algum modo. A exuberncia, quando assim impetuosa, fica a dois dedos da destruio.
O ritmo da vida acelerou-se. E por isso, talvez, que entre a vegetao extraordinria
me persegue a ideia da morte. Ponho-me a cismar que por baixo dos meus ps o vulco
continua a cozinhar a fogo brando no sei que estranho refogado, deitando o excesso de
vapor pelas caldeiras, s vezes numa fumaceira que mete medo. H ocasies em que
aquele inferno se aplaca. Espreito a gua a ferver dentro das panelas que se chamam a
caldeira Murada, a caldeira de Pro Botelho, a caldeira do Esguicho, que salpica, e
outras mais. So quatro maiores e alguns buracos, que borbulham gases ou cospem
jactos de lama. Uma delas, a caldeira de Polme, escarra com ar trgico uma poeira
acinzentada que sai l do fundo em estertores. Mas por toda a parte a gua ferve em
cacho. O ar est impregnado de gs carbnico e de enxofre. Cheira. As guas frias
misturam-se s guas quentes, flor da terra ou por subterrneos, vindas tona pela
boca dos poos ou brotando em gorgolejos pelas fontes de todas as qualidades e para
todas as doenas frreas e azedas, geladas ou ferventes, salobras e radioactivas para
o fgado, para os olhos, para o estmago, para o reumatismo, numa prodigalidade e
numa mistura que talvez as prejudique...
Eis a origem deste luxo de verdura. O cedro azulado indgena, a faia indgena,
o ailanto pouco mais... Todas as outras rvores so importadas e do-se como na sua
prpria casa ou melhor ainda. Calor, no sei que atmosfera magntica, um Inverno em
que chove sempre, arrastando o hmus das montanhas e misturando-o aos elementos
qumicos que fertilizam o solo, fazem que dentro deste circo majestoso a vida dos
vegetais seja prodigiosa. Alguns parques de maravilha, algumas casinhas caiadas de
branco, duas ou trs com aspecto fidalgo e uma falsa tranquilidade, o ar de quem faz
isto com espalhafato para nos iludir e atordoar talvez para nos apanhar
desprevenidos... Mas eu, tranquilo, que no durmo em cima do vulco... E tambm
no ficava muito tempo ao p destes seres mudos e enormes, destes colossos que me
enchem de apreenso. Lembro sempre, e tenho-a diante de mim, aquela floresta de
Daudet que acaba por devorar uma vila. H aqui gigantes diante dos quais a gente hesita
e que nos arrastam para o desconhecido. Ponho-me em comunicao com eles e no os
entendo. Evidentemente, eu no tenho medo duma rvore quando me habituo sua
companhia. Nem tenho medo de todas as rvores. Mas quando me so desconhecidas,
quando tomam estas propores, quando formam florestas enredadas, quando, noite,
se pem a murmurar umas com as outras a minha vontade fugir. At as formas que
as plantas tomam nos jardins no so deste mundo. Ainda h pouco encontrei uma,
cheia de flores vermelhas, j minha conhecida de outra vida misteriosa... Deparam-se-
me caminhos que me tomam lnguido e cismtico, e s dias depois de estar nas Furnas
que me atrevo a entrar nos parques na ponta dos ps nos parques Antnio Borges,
Albano da Ponte, Marqus da Praia, Beatriz do Canto e Jos do Canto.
Verde, verde parado e imvel que se reflecte nas guas chocas dos lagos, em
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verdes mais sombrios na gua com pstulas e limos num arripio que as arranca sua
imobilidade hierrquica. So gigantescos negrilhos, carvalhos estendendo por toda a
parte os braos musculosos, chores que se debruam e mergulham os fios nervosos na
quietao do lago, renques de fetos abrindo no ar a cauda de rendas. Um regato passa
pelo meio do parque, cortando-o de vozes e murmrios. Entranho-me nos troncos,
ouvindo a areia ranger sob os ps; quedo-me junto da poa cor de ferrugem; meto pelo
carreiro que vai abrir numa rua de palmeiras com a flor a meio do tronco em forma de
candelabro, e repouso nas sombras fechadas, onde no penetra o sol, ouvindo os
pssaros cantar... Tenho diante de mim outro lago serpentino com fios verdes de plantas
estendidas superfcie como cabelos. Nesta gua que reflecte o azul das hidrngeas, as
linhas dos fetos com mincia, os troncos erguidos em colunas, os efeitos de luz so
extraordinrios. Bebe todos os tons, reproduz todas as cores... Os podres criam tona
uma pelcula azul, atravs da qual reluzem jias, as folhas espelham-se uma a uma no
vidrado, o cu representado no meio por um estilhao imvel, e l em baixo o verde-r
decompe-se a ponto de cheirar. A libelinha fugaz cintila e desaparece, e ao fundo dum
caminho coberto de folhas, camada sobre camada, a chapada forte do sol reluz entre o
negrume como no fundo dum poo. Tomo a ponte de pedra, ao p de grandes rvores
derrocadas. Ao lado do talude rompem camadas de fetos silvestres e um jacto de fetos
arbreos.
Vou ver a Povoao, e os quadros que se sucedem so diferentes. A estrada sobe
em lacetes entre rvores que lanam razes nos alicerces da serra do Trigo. Pltanos
enormes, eucaliptos, accias. Um vale selvtico ao lado, e defronte um monte e um
contraforte a pique. Isto tem o ar de floresta, onde s se encontra, de quando em quando,
uma serrao de madeira, que enche todo o caminho de cheiro a resina. E, medida que
o automvel segue, redemoinham os fundos e as matas, modificam-se os vales,
deslocam-se os montes cheios de verdura, que passam por mim e desaparecem. Nem
tenho tempo de ver os frescos noveles que revestem os taludes nem aquela garganta
apertada que abre para Os fundos. Mas posso focar um grupo de homens que deita
abaixo uma rvore, uma mulher que passa com o taleigo para a fornada, o movimento
pitoresco do caminho... Paredes alargam-se e estreitam-se no mesmo instante. Subimos
sempre... De repente, por um rasgo descubro o mar azul entre escarpas verdes. Logo a
estrada comea a descer e logo reaparecem as culturas, os campos de milho, as eiras
doiradas com a palha debulhada. neste ponto da estrada que se d de cara com a
Povoao srie de lombas paralelas l em baixo, cada uma com sua fiada de casinhas
brancas, a Lomba do Carro, a Lomba do Boto, a Lomba do Pomar, a do Alcaide, etc.,
em linhas iguais, traadas rgua, cultivadas e verdes. Por trs, a serra, o Pico da Vara e
o Lavaal. Dum lado, o mar que entra pela terra dentro por um chanfre brutal da costa.
O que completa a beleza deste grande panorama de trabalho e de luz a colaborao do
oceano e da serra. Respira-se a amplido com alegria: o peito enche-se quando se sai
dos vales, onde os contrafortes nos esmagam. Aqui do alto vem-se os bois, as eiras, os
grupos em azfama, os pormenores familiares e rsticos, tudo muito pequenino, em
miniatura, como nos quadros flamengos primitivos. Uma famlia descansa ao p da
porta; mais longe, um lavrador junge os bois ao carro... A impresso de paz e
abundncia. Tudo parece que no custou esforo, a cultura retalhada at aos morros e os
milharais, viosos e fartos, que por toda a parte se vem crescer. A Povoao o celeiro
da ilha.

Regresso s Furnas para ir ao parque de Jos do Canto. Alguns quilmetros por
outra estradinha que corre pelos jardins e chego vista da grande lagoa das Furnas,
verde entre pinheirais verdes que se despenham l do alto e estacam ao p de gua. Ao
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fundo, a capela gtica e a casa de Jos do Canto; por trs, a grande mata, onde tudo
cresce larga, segundo a sua ltima vontade. A capela no me interessa. Nunca me
interessaram os monumentos funerrios. Ao contrrio, a falta de humildade e
compreenso da natureza e da vida irritam-me sempre. Basta que os mortos mandem o
que j mandam nos vivos. Imporem-se-nos at consumao dos sculos, l me parece
demais... Ainda bem que o parque esmaga tudo o parque que foi o sonho deste homem
que proibiu que lhe tocassem at terceira gerao. No o podam. At h pouco, nem a
lenha que caa era apanhada do cho. E isto entendo eu. Que sonho para levar para o
sepulcro! A Primavera sentia-a ao p de mim. O Outono sentia-o mesmo reduzido a p.
E a luta da floresta revolvendo-se, crescendo, avanando, sem poder com o peso dos
ramos. No lhes toquem! Somente, eu quereria ficar mais perto das razes...
O que toma aqui importncia so as grandes massas, as rvores que bracejam e se
agarram umas s outras com desespero, o negrume fechado e o fio que vem de cima,
poisa e mancha de oiro a terra. Uma caverna. Um corredor escuro e ao fundo a
luminosidade do oiro esbatido. Entra-se num grande subterrneo onde a luz, atravs das
copas cerradas, mal se coa. rvores tropicais, rvores de todos os climas e de todos os
pases, o ficus, o metrosidus, a camlia, e variedades de palmeiras vivem numa meia-
sombra lvida. As azleas so enormes, e h stios em que o parque inextricvel como
uma floresta virgem. Liames entrelaam-se nos fundos opacos e incgnitos. Cheira
humidade das selvas e o homem sente-se talvez mais afim dos seres pacficos e verdes
que crescem segundo as leis benficas da natureza, aceitando a vida e no discutindo a
vida. o exemplo que elas me do e eu no aceito... Meto-me com emoo num vale de
fetos por uma ruazinha verde, podre, misteriosa... H-os de todas as qualidades e feitios.
Dou uma volta e subo para lhes ver de alto as folhas delicadas. So plantas femininas,
cheias de sensibilidade e nervos. De cima descobrem-se os montes de verdura e os
seus vestidos esplndidos, que mal se analisam luz graduada por a camada das folhas,
o verde-escuro, o verde luminoso, o verde trespassado de sol, o verde que estremece.
Mas o verde demasiado. S o verde enche o mundo como se o mundo pertencesse aos
vegetais. O sentimento de fadiga e chega a faltar a respirao. Esta majestade impe-
se. A rvore toma uma importncia exagerada. Parece que dela o reino deste mundo e
do outro. Eu amo-as mas aqui exigem de mim uma adorao perptua. Colaboremos,
se queres. D-me sombra, troca comigo as tuas impresses, mas deixa-me, por favor,
entrever a arquitectura do globo. De quando em quando tenho vontade de abrir um
rasgo a machado para dar com o cu. Isto no um parque ordenado uma selva. De
repente, encontro-me perdido no bosque junto de rvores tombadas, a cem lguas do
mundo, ou numa clareira cheia de sol com pomares anainhos onde as fruteiras bracejam
ao acaso. Todo o chio est coberto de mas e de limas. um desbarato. Em volta
cheira a fruta que consola.
Suponham a morraa e a Primavera nestes parques. Imaginem as rvores despidas
e por baixo as azleas e os rododrendos cheios de flor. Sente-se o impulso, ouve-se o
nascer das folhas, o gorgolejo das cores e o rudo precipitado do subterrneo
ascendendo para a luz. Mas a verdadeira Primavera, aqui, o Outono, em que cada
rvore parece uma flor gigantesca e as Furnas tomam cores de outro mundo quimrico.
Amo os Outonos desfalecidos, os chuveiros peneirados, quando as folhas se
desprendem uma a uma. um fim de vida leve e cheio de saudade que acaba
devagarinho... Estes Outonos so diferentes so apoteoses, so deslumbramentos;
outra fora que no aceita a morte e se agarra com desespero vida. Exalta-se numa
agonia que no acaba. Assim como a vida foi um prodgio de fecundidade, nos ltimos
dias todas as rvores reclamam, todas as rvores protestam... Alguns destes gigantes
erguem-se no ar todos vermelhos, e os pltanos em tochas de oiro fundidas. H-os que
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se destacam ensanguentados da grande massa do fundo; h-os que se despem pouco e
pouco, cor de ferrugem, morrendo, decompondo-se aos gritos. Vem-se bronzes
extraordinrios e oiro rosa carmim enquanto outros ainda resistem quase verdes e
no paroxismo da morte. Cores mais passadas amarelos ao mesmo tempo, esverdeados
e doirados, nuances impossveis de corrosivos e cido. E com isto uma melancolia
amortecida e um cheiro a cemitrio que fermenta. O cho um rico tapete que se calca
com receio. O Outono, ferico, talvez a mais bela estao das Furnas, falsa e iludindo
os sentidos, intoxicada e ao mesmo tempo maravilhosa. uma doena metlica. Antes
da morte, todas as rvores, como todas as mulheres, teimam em resistir e carregam a
epiderme, j pronta para o sepulcro, de sais de cobre, de sais opulentos e variados sem
poderem esconder a hora terrvel do desespero e da velhice.
J gosto de ver escurecer entre estas manchas de verdura, onde a custo se
distinguem ainda, por entre as folhas, algumas nesgas de claridade. Olho para os montes
cada vez mais temerosos e mais negros. Olho para o alto e o alto parece um crivo por
onde passa a ltima luz enquanto no fundo a Sombra se aconchega para passar a noite.
Comea a ouvir-se falar mais alto a gua. medida que as montanhas cresceram, a
povoao tornou-se mais pequenina, acabando por desaparecer. As caldeiras vomitam
penachos de fumo. Na cerrao em que as massas redobram de propores e de
negrume, cada vez mais indistintas e escuras, apenas uma ou outra estrelinha consegue
luzir, atravessar as folhas e chegar at ns. S uma coisa enche o mundo e fala cada vez
mais alto: o rudo das guas, a voz das fontes desabando em jorro, a voz das fontes
pequenas caindo em fio, todas as vozes juntas, mas que eu distingo uma a uma, desde a
voz do regato que se quebra nos seixos, desde a queda no aude, at ao referver da gua
em cacho, e que formam uma toada que refresca e encanta a noite solitria nas Furnas.

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O ATLNTICO AORIANO

Este oceano tem uma fisionomia concentrada e sria. Sai-se de manh com o mar
cho, regressa-se tarde com o mar revolto e escuro. Quando menos se espera, levanta-
se ventania, e de quinze de Agosto em diante pode aparecer o ciclone. O canal do Faial
para o Corvo perigoso e o do Corvo para as Flores est quase sempre de m catadura.
Vo l, s vezes, pequenas embarcaes, iates e escunas, mas j tm desaparecido, sem
mais se saber dos barcos nem dos homens. O canal entre o Pico e S. Jorge mais
profundo e por isso mesmo mais calmo. H por aqui crateras escondidas sob as guas, e
a lava vem de quando em quando superfcie, se no uma ilha inteira que aparece e
desaparece logo. Ao carcter destas guas, sujeitas a cleras sbitas, junta-se o da terra,
que treme quase todos os dias (Faial), pondo os coraes em sobressalto, o da
fantasmagoria, produzida pelas costas vulcnicas, pela luz que hesita, pra, transforma-
se, desvendando um pncaro, rochas dramticas e terras que no existem e so o efeito
mgico da prpria claridade envolta em neblina. Graa, delicadeza, rosados entranham-
se no mar cinzento e que por isso mesmo se afigura maior: nuvens ascendem como
fumo das crateras; juntam-se os cmulos, por onde passam raios bblicos de sol; luz
molhada, luz coada por farrapos, por nvoas que se criam inesperadamente produzindo
efeitos singulares... Mas uma suspeita paira sempre no nosso esprito... s vezes, com o
mar calmo e cu limpo, ali num pedao de gua entre os ilhus da Madalena e o Pico,
comea a crescer a vaga sem razo aparente. O canal em volta est liso como um
espelho. Atendam... Cu azul, mar cho e tempestade certa, muitas vezes longnqua,
que vem repercutir-se, no se sabe porqu, naquele ponto da ilha. A ventania irrompe
dum cabo quando menos se espera, e arrebata as velas, apanhando a pequena embar-
cao e atirando-a j tem sucedido at s costas do Algarve.
Seis meses de Inverno, seis meses de mau tempo, dizem os martimos deste
oceano misterioso que talvez esconda a Atlntida. Nos Aores, a Primavera no existe,
por causa dos icebergues, que vm muitas vezes at distncias relativamente curtas das
Flores. Ao mesmo tempo, o Gulf Stream aquece e modifica a temperatura, exercendo
uma grande influncia na atmosfera e nas guas: aconteceu-me meter a mo no mar e
ach-lo tpido como sangue. Aqui s h uma estao admirvel Junho, Julho e
Agosto. Nos outros meses, os montes esto quase sempre envoltos nos seus capelos de
nvoa. O capelo do Pico, barrete muito bem feito de nuvens esbranquiadas, que ele
coloca de quando em quando na cabea, barmetro infalvel chuva no Vero ou mau
tempo no Inverno. E se a nuvem da Prainha se estende ao sul da montanha, com o
capelo l em cima, certo grande temporal. As costas so aqui e ali cortadas a pique por
um machado fantstico. Quem olha, sonha nas tremendas manifestaes que deram
nascimento s cavidades, s sombras, a negrumes e a muralhas de trezentos a
quatrocentos metros de altura lavas traquticas ou baslticas, tufos, ponces, escrias. A
rocha calcinada mostra-nos que passou por ali a labareda.
O Atlntico aoriano, na expresso de Reclus, atinge profundidades de quatro mil
metros. Do Pico a S. Jorge, dezassete quilmetros, as sondas tm acusado mil e
trezentos metros. Quando este mar embravece, vagalhes como montanhas
despedaam-se com fria nas falsias macias, ecoam nas grutas e ribombam com um
estrondo que apavora. No Corvo atingem a povoao e o cemitrio, que est a dezenas
de metros acima do nvel das guas, e vo acordar os mortos. A pequena ilha estremece,
abalada nos seus fundamentos. Do alto, os homens, transidos, vem Os navios
afundarem-se na espuma sem lhes poderem valer. Ainda no h trs anos que dois
vapores desapareceram no abismo, pedindo inutilmente socorro: a telegrafia sem fios
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no funcionava e no funciona ainda.
Um turbilho mais ou menos circular segundo o prncipe de Mnaco , e que
se forma no novo hemisfrio, sobe o Atlntico na regio do Equador, marcha para o
noroeste, varre ou costeia as Antilhas e o Sul dos Estados Unidos, obliqua at ao
nordeste, desabando no espao que separa a Terra Nova da Inglaterra. Os grandes
ciclones vm, efectivamente, da Amrica, mas nos Aores, que esto quase no centro
das curvas traadas pelas deslocaes das perturbaes atmosfricas nascidas no
Atlntico, tambm se geram, diz Mascart, essas enormes tempestades com velocidades
que variam de cinco milhas a vinte e duas milhas por hora.
Giram as ventanias desencadeadas, movendo-se sempre, da direita para a
esquerda, volta do eixo central, nico ponto sem vento mas onde vagas enormes,
vindas de todas as direces, se entrechocam, erguendo-se at ao cu. A embarcao
corre no fundo do vale vitroso, cavado entre montanhas, quando no mete a proa no
estrepitoso desabar da espuma.
Essa coisa monstruosa revela uma vida prpria, uma inteligncia, uma astcia
como se nela pairasse o esprito do mal. Enorme e desgrenhada, persegue com inteno
o barco por entre clamores desesperados e apupos, atirando-lhe farrapos negros por
todos os lados. De quando em quando um grito, um grito mais alto de ser vivo e
desconforme, ou um choque que abala todo o navio. Os homens olham fascinados o
monstro imenso e negro, vivo e negro, e esperam. Esperam a vida ou a morte. Esperam-
na no segundo que decorre; esperam-na na pausa da catstrofe e outra vez o ciclone se
enovela volta daquelas tbuas e desencadeia todas as frias que traz consigo e as atira
todas juntas e a rebramir ao mesmo tempo, a rasgar-se de clera ao mesmo tempo,
enquanto as ondas, em choques sucessivos, arremetem. Angstia, pavor e o monstro
sempre volta, sempre volta, procurando lev-los para um ponto que o abismo.
Fugir s pela tangente fugir ou morrer, enquanto o clamor das ondas, que sobem at
ao ar para carem entre espumas refervendo, aumenta e ameaa meter no fundo aquela
caranguejola que se atreve a lutar e a vencer. Espasmos de raiva impotente para se
seguir outro assalto formidvel.
s vezes, a catstrofe assume extraordinrio esplendor; outras, paira no cu o
terror bao e suspenso. As velas no resistem e despedaam-se, e tudo parece acabar no
mundo. A noite o inferno, a noite trgica. J o cu, atormentado, se fixa em abbada
de cobre e as vagas ascendem cada vez maiores e mais negras. Noite. Noite cheia de
montanhas fosforescentes, de onde saem gritos que invectivam o navio e jactos de
espuma que o enchem de cuspo. Como no h duas tempestades que se paream cada
ciclone tem a sua personalidade outras vezes os marinheiros distinguem, movendo-se
at ao horizonte no circo de lava, bocas abertas mostrando os dentes, ou na luz
magntica e nas voltas que se aproximam e ameaam subvert-los, figuras trgicas e
braos estendidos que tentam agarrar os homens amarrados aos mastros. So talvez
cetceos atrados do fundo do mar; so talvez nufragos que apelam para os vivos...
E nesse momento o que pensam os marinheiros? O que pensam!? Obedecem, se
podem, ao comando, ou olham, num estupor, o negrume absoluto e total desencadeado,
olham-no como a morte, ligados aos mastros, sem uma ideia no crnio diante da
catstrofe que redemoinha e grita. O que se passa no sei descrev-lo. muita coisa ao
mesmo tempo e principalmente a voz, o ecoar multiplicado que tenho nos ouvidos e
chega a no se ouvir. a impresso de nos sentirmos ser menos que nada nas entranhas
do monstro enovelado, do monstro vivo que se pe a gritar de dor no meio do oceano e
que segue a sua rota rasgando-se e dilacerando-se. E pouco mais. A incoerncia...
Durante dois dias vivi fincado a uma tbua, molhado da cabea aos ps, e sem poder
tirar os olhos daquele inferno. H-os que fazem gestos maquinais, h-os que perdem a
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noo da existncia e no pensam nem vem: s ouvem a voz tremenda, a voz que sai
do fundo espesso, a voz do vento e das massas de gua negra desabando, e que nunca
mais se calam. Sempre! sempre! No como uma sucesso de clamores mas s clamor
ecoando no Atlntico e no mundo. As guas varrem o navio. H ainda algum que se
aguenta ao leme empedrado e impondo a sua vontade ao caos?... Eu s via via
sempre diante de mim as formas do negrume farrapos voando, agitao, coisas
desconexas avanando e recuando, pastas mais escuras entranhando-se umas nas outras,
vagas sobre vagas fantsticas, esvurmadas pela clera, arremessando e envolvendo-se
em escorrncias azuladas, e jactos de fsforo nas cristas... E mais nada, perdida a noo
do dia e da noite naquele mundo fantstico. Tambm os h, embora isto parea
inexplicvel, que dormem de p, sonmbulos, que dormem com os olhos abertos e
vtreos, e inteiriados como se j estivessem mortos. Eu s retive a sensao do
negrume que parecia sofrer tanto como eu e que desatava aos gritos de aflio de entre a
treva condensada, cuspindo-nos dor e negrume sempre em corrupio, e lavando-nos, j
transfigurados e sem corpos, para o eterno movimento universal redemoinhando
sempre, redemoinhando por toda a eternidade... Nunca pude reproduzir isto em palavras
ordenadas. Sentia-me outro homem noutro universo, chegando a perder o medo da
morte para me concentrar na viso daquele mundo novo sempre a rodar num clamor,
na espiral que chega ao cu e ao fundo do abismo, sempre a clamar o sofrimento das
coisas mudas, que nunca se queixaram, e encontram enfim voz para gritar E o que nos
salva o clamor, e o monstro ter voz, gritando sempre e berrando sempre. Imagine-se o
redemoinho mudo a girar, desmedido e negro, impalpvel como um fantasma!
Esta coisa obstina-se em uivos pelo mar fora, procurando em vo um pensamento
e uma alma. Ao mesmo tempo que corre quase lentamente, gira sobre si mesma,
desvairada, em velocidades extraordinrias, aspirando pela chamin, que tem s vezes
centenas de quilmetros de dimetro, o vento e as vagas, e atirando com elas para o cu.
Produto de que acaso? de que correntes atmosfricas? Produto, diz Rovel e eu creio-o
de radiaes dos astros sobre a Terra, dum esprito malfico que segue trajectrias que
possvel desenhar de antemo com mincia, vociferando no mar a sua dor e caindo
sobre a Terra com um tremendo poder de destruio.
O que est l em baixo, nas grandes profundidades deste mar estranho do mar
dos ciclones, onde se geram tambm as levadias e talvez a houle, vagalho misterioso
que vai caminhando e crescendo at desabar de repente num dia sereno e de sol nas
costas de Marrocos? Se dermos crdito geologia, incontestvel que nesse ponto do
Atlntico, trs milhes de sculos antes da apario do homem histrico, se estendiam
vastas terras continentais, formando ponte entre a Europa e a Amrica do Norte, entre a
frica e a Amrica do Sul, e que desapareceram sob as guas do Atlntico. A
Atlntida devia englobar uma parte do mar das Antilhas, o mar dos Sargaos, os
arquiplagos da Madeira, dos Aores e Cabo Verde. Segundo as indicaes do sbio
naturalista Lus Germain, baseadas no estudo da fauna fssil e viva, estas terras, com as
Canrias, faziam parte da Atlntida de Plato. Da partiu h doze mil anos a civilizao
que colonizou as ilhas do Atlntico e parte da Amrica, o Mxico. Cataclismos
espantosos, erupes vulcnicas formidveis, grandes tremores de terra, ocasionam a
subida do mar, que engoliu tudo e sumiu tudo no fundo deixando onde e onde alguns
pncaros isolados.
O que est hoje ao certo l em baixo no uma civilizao morta, uma
maravilha viva. Sabemo-lo pelos estudos organizados por Edmond Perrier, pelo
prncipe de Mnaco e pelos seus colaboradores Richard e Joubin, que nos revelaram a
existncia de seres que alumiam a noite dos fundos com os seus maravilhosos aparelhos
fotognios. A quatro mil e a cinco mil metros encontram-se verdadeiras florestas ani-
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mais umbelulrias, grgones, que, sob excitaes variadas, emitem fogos violetas,
azuis, vermelho-laranja. Uma grgone, na ponte do navio, deitou uma luz to viva que
se podia ler a seis metros de distncia. Estrelas do mar luminosas, peixes fantsticos,
polvos, cujos aparelhos de iluminao atingem uma perfeio extraordinria, dispondo
de lentilhas e reflectores e mudando de cor vontade do animal para emitirem
irradiaes. Esta luz fria um fenmeno de qumica e luminescncia. Melhor ainda, e
mais extraordinrio: o prncipe de Mnaco descobriu no mar dos Aores verdadeiros
fantasmas que s revelam a sua presena pelo deslocamento das guas. Possuem os
rgos e sistemas necessrios vida e no deixam trao da sua passagem. noite que
o mar se me afigura mais extraordinrio. Ascendem dos fundos os crustceos, cobertos
de armaduras transparentes, e os gelatinosos, que vogam ao lume de gua devorando e
devorando-se. Pelas largas avenidas do oceano biam monstros com crnio humano e
cabelos que so tentculos, e atravs de cemitrios de lama arrastam-se seres
fosforescentes e polvos com ventosas de tal forma aderentes que mais fcil cortar-lhes
os braos do que arranc-las. Alguns criam nas ventosas lminas e anzis que prendem
e rasgam ou envolvem a presa metendo-a num saco. Vem-lhe o dio, a carnia, o
desespero pele e s vezes na gerao entrelam-se em estertores, ventosa a ventosa,
como se fosse preciso sofrer para criar.
Que tenho eu com esta vida que me perturba e fascina?... sobretudo o olhar dos
monstros olhos azuis, olhos verdes, olhos dum fogo extraordinrio, inteligentes e
dominadores que me paralisa. H-os de seis metros de comprimento. Alguns chegam a
sair da gua e a arrastar-se nas costas procura da presa. Se no fossem as baleias,
ventres insaciveis e fomes nunca satisfeitas de carnes gelatinosas, conterem-nos nos
seus limites, devorariam o mar e talvez se atrevessem com a terra...
Mais baixo, mais fundo, a vasa sem relevo, a vasa donde emergem esqueletos de
navios naufragados, mquinas enlizadas no p cor de cimento, formado de todos os
destroos e que cobre as grandes profundidades que se supunham mortas. a que se
gera a vida. O mar a vida mas o mar tambm a imagem da realidade ou do Inferno,
que tudo a mesma coisa. Mais alto nadam peixes de formas monstruosas e
desencadeiam-se foras brutas. Vislumbram-se bocas desdentadas, enormes, redondas,
feitas para sugar, e ventres enormes que precisam encher-se. Todas as formas e todos os
feitios: a jamanta, avejo negro e voraz, estendida como um manto, o raio ou tremelga,
que fulmina quem lhe toca, a esguia tintureira, o albafar, o extravagante peixe-lua, com
duas barbatanas verticais, uma para cima e outra para baixo, a toninha, com um grande
bico aguado, o peixe soprador, que no Algarve se chama tamboril, o aguilho, com a
espada sempre desembainhada na boca, o insacivel tubaro, com o peixe agarrador, seu
comensal, fincado no queixo por uma ventosa, o peixe-porco, que incha quando o tiram
da gua e que se esvazia para mergulhar, as mantas formidveis de pequenos peixes, do
charro que nas manhs puras borbulha e ferve tona da gua. Todos os pescadores nos
falam dos peixes, contando coisas extraordinrias, sobretudo do merraxo, melraxo e
rinquim, como chamam no Faial e no Pico ao tubaro. Um homem tisnado e seco,
primo dos Chatinhas, conta:
Meu irmo Manuel foi num barco, e eu noutro, para a pesca. Manuel caminhou
para diante para fazer peixe para a canastra e deu com um rilheiro de chicharros. Foi
para lhe meter o enxalavar, mas eram tantos os tubares que o puxou para fora, para no
ficar sem ele. Viu volta todas aquelas bocas abertas e quis fugir, mas os merraxos
pegaram verdascada ao barco, que lhe botaram um pedao de quilha fora. Viu-se
perdido cada vez as bocas eram mais e mais sfregas avanando para a borda. Bem os
espetava com um pau para se ver livre deles para fora. Era aquele mar cheio de
merraxos... Manuel iou bandeira a pedir socorro...
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Onde foi isso?
Fora do pesqueiro Norte, na costa do Salo. Sempre que h muito chicharro ou
muito sangue de baleia, os merraxos acodem logo ao engodo. Ento...
Ento descreve uma cena que eu no sei reproduzir, toda bocas vorazes e peles
escorregadias, atropelando-se no mar, saindo do mar, imagem viva da voracidade e do
Inferno. Peles e bocas, peles em delrio, deslocando-se, escorregando, afundando-se e
ascendendo enrodilhadas umas nas outras e na gua remexida, na gua s bocas e
olhares tremendos de voracidade e de clera.
Cheguei ao p dele e perguntei-lhe pelo charro e ele respondeu-me que o que
queria era ver-se livre dos tubares que andavam sobre o rilheiro. Reparei e vi tanta
cabea que no me atrevi a meter o enxalavar. Era medonho o que se passava na gua.
Ao cimo no se via seno um levante de peles e de bocas. Veio um grande albafar e
botou a boca ao merraxo, levando-o atravessado nos dentes. Veio uma albacria e deu
tamanha trombada na canoa que Manuel caiu na caverna e andou dias sem poder
trabalhar... Vimo-nos ali todos perdidos e o levante foi to grande que as canoas de S.
Jorge e do Faial chegaram a arrear, pensando que era baleia... Senhor, quando um ou
dois bichos daqueles se metem debaixo da embarcao, estragam tudo!
Raias e tremelgas, dum tamanho desmedido, tambm investem com os barcos, e
se um homem cai ao mar, envolvem-no no manto viscoso e arrastam-no para o fundo. O
Desembate conta que, pescando numa chata com a poita no fundo, qualquer peixe se lhe
enrodilhou na corda e arrastou o barco que nem um vapor a toda a velocidade. Ia
morrendo... Outro, apanhou-o um albafar que pesava de seis a sete toneladas: s o
fgado deu dois barris de azeite. peixe de grandes profundidades, que s vezes atinge
dez toneladas e de que os pescadores distinguem duas qualidades albafar manso e
albaf ar bravo. Outros tm surpreendido a luta do aguilho com o tubaro. O aguilho,
peixe comprido, azul-claro, com a cabea esguia, ataca o monstro, que se deita de lado,
vigiando-o, e, quando o sente perto, corta-lhe a cauda, vencendo sempre.
Estavam guerreando quando ns arpomos o aguilho. Pois o merraxo atirou-se
ao barco como uma fera...
Se h uma imagem viva do Inferno, o mar, onde os peixes se devoram, numa
luta sem trguas os pequenos e os grandes, os monstros, que esperam a presa sem
bulir, com olhos esbranquiados e fixos, e os que, para comer, so aoutados,
dilacerados, rasgados pelos tentculos e pelos sugadouros das vtimas. H peixes
devorados por parasitas, h-os que se introduzem dentro de outro e no o largam sem o
devorarem inteiramente, deixando-lhes apenas a pele. Todas as fantasias e todos os
dramas de pavor so possveis no mar, chegando a admitir-se hoje a possibilidade da
serpente que devorava navios.
Por cima disto, o cu azul e a plancie azul, que no deixam pensar na tragdia de
que nos separam meia dzia de tbuas. Saltam as toninhas aos bandos e os peixes-
voadores, que fogem ao inimigo que os persegue, biam superfcie grandes tartarugas
escuras e s vezes vem-se ao longe, como num quadro primitivo, os esguichos da
baleia e encontra-se um bicho singular que segue toda a vida uma tbua que caiu ao
mar, como quem cumpre um destino. Nunca mais a larga. o peixe-lua, acompanhado
dum bando de pequenos peixes, que, quando tiram do mar a tbua e o seu guia,
preferem todos deixar-se agarrar e morrer a abandon-lo. A tbua era o destino para
eles. Acaba-se-lhes o destino naquele infinito amargo... Quando os baleeiros das Lajes
do Pico descobrem no mar os botos ou moleiros, maiores que toninhas, de cabea
romba e corpo acinzentado, oferecem-se uma mortandade e uma tourada.
Descem O Atlntico e entram pelo Mediterrneo em bandos de centenas e
milhares, sempre unidos como irmos e uns atrs dos outros. Onde um mete o focinho,
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todos metem o focinho, se um d costa, todos do costa e morrem.
Aquela gua que gira em lminas e torrentes de vidro azul, de azul-verde, de
verde profundo, redemoinhando umas sobre as outras, aquela gua talvez um corpo
com uma vida que no compreendemos, e que os sustenta e ampara no seio materno.
gua vital e magntica, que os conduz e os leva no rodilho do azul e sem lhe sentirem
o peso. O ar sustenta-nos, mas o ar no nos ergue, no tem a variedade, a ternura do
oceano, que outra me, menos delicada mas mais forte e mais fecunda.
A esto os botos!
Toda a populao, excitada, acode praia. Atiram-se para dentro dos barcos num
alarido ou apanham pedras e atam-nas a cordas para chapinharem na gua e
atemorizarem o boto, que muito tmido. Os do mar, nos barcos, cercam-nos pouco e
pouco, assobiando-lhes, e pouco e pouco os empurram para a costa, at os poderem
fechar em roda com grandes redes que largam entre os ilhus da Carreira e Palmeirim.
Ento, ecoa o grito da chacina. O mulherio de terra, a gente dos barcos, atira pedras
sobre o bando, que j no pode fugir e se desorienta, remexendo-se no espao restrito,
descobrindo o lombo e as barbatanas dorsais ou batendo em saces com os rabos na
gua. Aumentam os assobios a gritaria aumenta. Juntam-se os barcos grandes e
pequenos. Aperta-se o cerco vai comear a matana... Mulheres, homens, rapazes,
agitam arpes e chuos, lanas e bicheiros. Ah!... Os botos atiram-se, inquietos, pelas
pedras, depois de tentarem safar-se para o mar. J correm ao lume de gua laivos gordos
de sangue, entre peles e caudas agitadas na poa revolvida.
volta, a excitao cresce e os risos, os gritos que saem das bocas abertas o
alarido, as palmas da gente que se mete na gua para melhor matar. Um grupo lana
cordas e puxa os bichos para si. Rapazes esperam nos penedos com facas na mo.
Gemem os botos arrastados pela costa gemem como homens na agonia. A gua um
charco de sangue entre rochas decorativas. Redemoinhos de cores e gestos, gritos
alucinados de fria e de prazer, ltimos estertores na gua cada vez mais sangrenta.
Um ou outro que pode escapar nem tenta safar-se volta, para que o acabem ali ao
p dos mortos. O delrio sanguinrio atingiu o auge. A festa acabou em variadas perip-
cias de movimento o divertimento acabou. Aquela mortandade foi intil. Quando
muito, se usa s vezes o leo destes bichos derretidos para alimentar a candeia.
Nos recantos, nos buracos, nas cavidades e nas grutas fervilha a vida. A gruta dos
Enxarus (Flores) abre para o mar a grande. boca negra. Pedra, abbada escura, estriada
de branco com relevos bordados a preto. Pesa-lhe em cima uma montanha; em baixo, na
gua dum azul carregado, nadam milhares de enxarus. Naquele refgio encontram-se
s vezes mais peixes que gua, tornando-a quase compacta. Na caverna de pedraria
trgica, que parece a entrada do Inferno de Dante, repercute-se o eco das vozes num tom
que pe medo. No Boquedro, da mesma ilha pedra cinzenta corroda e esverdeada na
base , a gua encharca e no fundo lvido vem-se os peixes em aqurio, sombras que
reluzem e desaparecem entre algas doiradas flutuando no vaivm das ondas. So aos
milhares os pequenos peixes cor de velho cobre, a gudio, a castanha e o rocaz, todo
vermelho, o burro e outros maiores e com os ventres mais claros. Ao p dos penedos
atormentados, o azul parece tinta de escrever. Passo horas estendido na rocha a olhar
para a gua cristalina, donde emergem pedaos de barro vermelho que reflectem os
movimentos do azul. Encontram-se noutras rochas, na Caveira, por exemplo, as cracas,
pedras com musgo (dentro est o marisco), calhaus informes com um verme que sabe
delicadamente a mar. H, no Corvo, mouras, caranguejos pretos da cor da rocha preta, e
aos ps dos restos de esttua informe e mutilada que aponta a Amrica, tubares, s cen-
tenas, enovelando-se e mostrando o ventre esbranquiado. Quem vai de barco, v no
fundo um galeo com os cobres reluzindo e fantasmas que passam e repassam, ao
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mesmo tempo que as vagas se sucedem no alto.
Em mil stios do Pico a gua entra e fica parada. Fora, o rumor das ondas que nos
deixa sonmbulos. Ningum: s gua nos charcos, e to transparente que se distingue
perfeitamente o fundo, leve e translcida como ar, e l em baixo mantas de pequenos
peixes, espinhosos e com bicos, e outros que parecem aves aos bandos. No banco da
Princesa Alice, que fica a trinta milhas do Varadouro, e que tem a profundidade de vinte
braas, pequena se a compararmos s grandes profundidades do mar dos Aores, a
abrtia, o congro, e todos os peixes que no habitam os grandes fundos, so em
quantidades extraordinrias.
Apetece fazer do barco uma habitao, correr os portos e as angras, viver em
contacto permanente com esta vida inesgotvel e fecunda. Procurar um chanfro para
lanar a ncora, ir a terra s para a aguada. E nunca mais! nunca mais parar! Viver!
viver ao ar livre, deitar ferro ao abrigo duma rocha que sai da gua toda vermelha dum
vermelho que tremeluz na gua azul ou descobrir no portozinho com meia dzia de
casas uma taberna que tem o segredo da caldeirada de peixes ou da preparao das
saborosas cracas, que cheiram a mar e sabem a mar! Dormir, quando o mar desfalece e
as velas caem, sob o chuveiro de estrelas picando a gua e embalado como no regao
materno!
Nasce o Sol. No alto, a delicadeza, a beleza, a alegria das azes, das gaivotas, a que
os rapazes das Flores chamam pessarocas, atirando-lhes pedras quando elas grasnam
eh! eh!...

Passaroca louca,
O teu pai morreu,
Tua av chorou!...

Os cagarros toda a noite palram e levam o dia pousados no mar, em bandos
enormes, sobre o cardume do chicharro. O delicado garajau cinzento e branco com a
cabea preta, que vem na Primavera e emigra para a frica em Outubro e Novembro, e
a gaivinha, que gosta da tormenta e aparece de Inverno, enchem o azul de revoadas e a
vida de encanto. Nos penedos da Madalena que ver criar, voar, viver o delicado
garajau. So duas grandes rochas vermelhas no meio do mar o ilhu deitado e o ilhu
de p. Tm ali os ninhos e levantam voos extraordinrios, enchendo tudo de penas. Esta
ave frgil, depois de criar os filhos, sentindo o Inverno prximo, mas ainda com bom
tempo, rene-se em bandos que vm dos penedos e das outras ilhas, e todas juntas
levantam voo, procurando melhores climas. Se fica alguma, morre. Mas h, entre todas
estas variedades, uma avezinha que me interessou e seduziu. Debruado sobre a popa do
vapor, vi-as, pouco maiores que andorinhas, todas pretas e com uma pinta branca ao p
do rabo, passar e repassar em bando pela gua remexida da hlice, pela gua
esbranquiada de sabo, mergulharem, levantarem, voltarem ao redemoinho. E isto
sempre, sempre, a poder de asas e no alto mar, muito longe da terra. So as pardelas,
que nunca deixam de acompanhar a hlice, procurando o alimento na gua revolvida e
acompanhando o vapor pelos stios mais arredados do oceano Atlntico. Os
marinheiros, que nunca as vem pousadas, e quando olham as encontram sempre
voando na esteira do barco, dizem que fazem o ninho debaixo da asa. Este frenesi, este
bater de asas, esta fragilidade incansvel na solido tremenda do oceano, deram-me uma
impresso de vida e de frescura extraordinria, como se eu visse estes bichos, nados e
criados no mar, sarem das suas entranhas.

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VISO DA MADEIRA

13 de Agosto

Nunca mais me esqueceu a manh virginal da Madeira, e as cores que iam do
cinzento ao doirado, do doirado ao azul-indigo nem a montanha entreaberta saindo do
mar diante de mim, a escorrer azul e verde...

Levanto-me a bordo, procura da luz de outra luz em que fui nascido e criado e
de que comeo a sentir cada vez mais a falta. Anseio por a tornar a ver, a luz sem
nuvens, a luz doirada, a luz pura e viva. Mas o dia est ainda nublado: as mesmas
nuvens, talvez mais leves, em pequenos toques delicados de pincel, e no mar plido
biam riscos esbranquiados. Quatro da tarde: suponho que vejo l para o fundo,
sobre as ondulaes da vaga, uma faixa de outro azul do azul que se respira. Como
despedida, caem ligeiros chuviscos. Para os Aores continuam a amontoar-se nuvens
mais escuras: correm todas, atradas para as ilhas, como quem tem um destino a
cumprir...
Ao fim da tarde comea a erguer-se diante de mim uma coisa azulada e indistinta
com uma grande nuvem cinzenta acachapada em cima. O sol que bate nos altos ilumina
o cone dum monte e esguicha de entre as nvoas sobre a extremidade dum morro quase
negro. J se distinguem as nodosidades disformes da terra e paredes, envoltos em
fumaa que entra em rolos pelas fendas abertas da pedra; destacam-se, com majestade,
do horizonte plmbeo. Acentua-se a dureza, as chapadas, as ravinas, os cortes
perpendiculares e cor de ferro, adivinha-se o drama que deve ter sido este parto, cheio
de convulses e de desmoronamentos, quando o grande cataclismo dilacerou e
desmembrou o continente submerso, deixando patentes, neste resto, feridas que ainda
hoje sangram. E nos bocados de cisco, que por acaso caram e alastraram beira-mar,
agarraram-se meia dzia de casinhas que tm por pano de fundo a massa espessa
erguida logo pelo lado de trs. Seis horas: tudo avana e se impe em roxo, com riscos
verdes de culturas e cumes doirados de montanhas; para o norte fixou-se uma
aglomerao de pastas solenes que escondem a terra.
E a costa caminha, direito a mim, cada vez mais violenta e mais negra. Mete
medo. Mal se distinguem as florestas nos altos enevoados, e os vales profundos por
onde a gua no Inverno deve cair em torrentes. O navio segue encostado falsia, que
deste lado da ilha no tem fundo, mostrando-nos a Madeira cortada por um machado
que a abriu de ls a ls, atirando com a outra parte para o fundo do mar. um bronze
severo e trgico, que contrasta com a entrada do Funchal e a outra costa da ilha. Vou
olhando para as povoaes Jardim do Mar, Paul do Mar, agarradas s muralhas, onde
s distingo escorrncias de zinavre. S o homem! s o homem que se atreve a cultivar
socalcos abertos a fogo na perpendicularidade da falsia! (Vamos to perto de terra que
ouo os galos cantar.) Madalena do Mar, esmagada entre dois morros, que se reflectem
em negro no veludo da gua, Ponta do Sol e Cabo Giro, que a noite torna mais espesso
e maior... Todo este panorama, na cinza do crepsculo, recortado em negro num cu cor
de chumbo, transformado pelas nuvens que baixam ainda mais, e desdobrando-se em
sucessivos recortes sobre a tinta parada das guas, assume propores extraordinrias.
J mal distingo a terra at ponta desmedida da Cruz, por trs da qual nos espera o
porto de abrigo. A cada momento que passa, mais alto e mais escuro se me afigura o
paredo que nos intercepta o mundo. S h uma vaga claridade para o lado do mar; o
resto negrume alcantilado e monstruoso colaborando com a espessura da nvoa e o
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indistinto da noite. Uma luzinha se acende na imensa solido e na mancha cada vez
mais opaca. o homem, subvertido, duas vezes isolado entre a montanha e o mar.
uma alma. E essa pequenina luz humilde chega a ser para mim extraordinria de
grandeza: uma estrela que me faz cismar.


14 de Agosto

De manh acordo em terra. Abro a janela e entra-me pela janela dentro o cheiro a
trufa. Corro tudo no primeiro momento as vielas animadas, as ruazinhas caladas de
seixos ensebados, onde deslizam carros de bois sem rodas, pintados de amarelo, com
toldos frescos e cortinas de ramagem apartadas ao meio. Olho para as casas brancas e
amarelas, de beirais caiados de vermelho e gelosias pintadas de verde, que do ao
Funchal um carcter familiar e ntimo. Tudo me surpreende: o calor, a luz forte, o
jardim com fetos e um grande jacarand de flores roxas, arbustos penetrados de
satisfao, que na imobilidade e no silncio vo desfolhando sobre a terra e deixando
um charco rubro em roda. Uma gota de gua cai ali para o fundo sobre outra gua imo-
bilizada. O ar um perfume gordo. Sento-me sob os grandes pltanos que nos recebem
ao desembarcar do porto mancha impenetrvel e deliciosa. Subo: um largo irregular e
depois a igreja, grande cofre de sndalo com doirados e incrustaes em madre-prola.
L dentro cheira a incenso e a madeira preciosa; c fora, por cima dos telhados, desco-
bre-se sempre a carcaa denegrida da serra. Vou ao mercado o mercado atrai-me:
pequenino, com duas ou trs rvores e uma fonte, todo ele transborda de fruta como um
cesto cheio cachos de bananas amarelas, alcofas de vindima a deitar fora, com
damascos, figos pretos sumarentos e entreabertos, a destilar sumo. Toda a fruta aqui
deliciosa e a banana deixa na boca um perfume persistente para o resto da vida. Ao som
da fonte de mrmore que reluz em fios com uma Leda no alto agarrada ao seu
voluptuoso cisne, isto forma um quadrinho todo em manchas coloridas, com sol s
mos-cheias por cima. primeira vista, confunde: tem a gente de colocar-se a distncia,
como nas pochadas, para distinguir as uvas doiradas, as papaias, o vermelho dos to-
mates, as araras e as aves exticas penduradas nos troncos, e sob os toldos, entre
guinchos de macacos de S. Tom e o falatrio cantado do povo da Madeira, as mulheres
de leno branco na cabea e botas de cano alto e rebuo, que preparam farnis para a
festa do Monte, os homens tisnados e secos, as inglesas de cabelo curto, vestidas de
branco, cortadas pelo mesmo padro que a Inglaterra agora fabrica e exporta para todo o
mundo. A vista falha e perturba-se, o cheiro entontece. preciso meter o pincel para
aqueles fundos para dar as sombras roxas com muito azul, o verde-negro das couves, o
quadro estonteante orvalhado pela fonte. Reparem como a prpria sombra luminosa e
palpita. Com ela palpita o doirado das bananas, o amarelo dos meles, o vermelho
intenso das malaguetas enfiadas em rosrio. E se um cesto sai da sombra para a luz,
ento os frutos fascam, ardem e adquirem transparncias extraordinrias. E a gua cai
aos pingos, a refrescar o quadro, misturada com sol reluzindo, que pincela aqui, pincela
ali, por entre as rvores.
Mas para ver a cidade e os subrbios em conjunto sobe-se ao Pico de Barcelos.
medida que me afasto do centro, vo aparecendo casinhas isoladas entre jardins, e as
largas folhas das bananeiras, ainda em boto roxo ou onde pende j todo o regime
amadurecido. L do alto descobre-se enfim o majestoso anfiteatro. uma grande
concha, que termina dum lado no Pico do Garajau e do outro na Ponta de Santa Cruz,
com o fundo de serra ondulado. Os vales e as linhas dos talvegues vm l de cima
rasgados pelos enxurros sobre um leito de pedras em estilhaos, escorregadias e
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azuladas. Isto escuro, plmbeo, porque o cu forra-se de nuvens que envolvem os
montes.
Para o espectculo completo preciso escolher a manh, a tarde, ou os dias puros
de Inverno, porque o cu da Madeira anda quase sempre nublado, correndo a fumaceira
pela barreira imensa que toma todo o horizonte do lado da terra e desce at ao mar em
rampa retalhada de culturas e povoada de casinhas que se vo aproximando e apinhando
ao chegarem cidade branca e sensual. Tudo que se avista, excepo dos cumes
denegridos, foi dividido em hortas, em poios de cana muito verdes, em quintalejos de
rama, donde irrompem tufos de bananeira, numa amplido que entontece e deslumbra.
So lguas de fertilidade, de jardins, de campos e culturas, que nos impem o
recolhimento e o silncio. direita, a serra estende-se at Cmara dos Lobos. S depois
que me afao os olhos afogaram-se-me em azul que distingo os riscos violetas das
encostas, as vivendas l no alto entre vinhas e pomares, os prdios rsticos pendurados
na rocha e agarrados montanha, aberta ao meio por um rasgo violento e romntico. O
carcter desta paisagem bem o procuro... Atrai-nos por todos os sentidos e s tem um
desejo amolecer-nos e decompor-nos... Espreito os jardins dos palcios, onde tudo se
conserva alinhado e correcto, e as casinhas rsticas, que so o meu enlevo. Passo e
entrevejo um banco. s vezes basta um muro caiado com meia dzia de vasos e flores
para ter uma sensao de encanto que no encontro aqui. Falta uma pontinha de
melancolia, aquela alma de certos recantos portugueses que, com dois campinhos, uma
igreja, um pinheiral e um sopro de erva, nos comunicam uma impresso deliciosa de
repouso e saudade. Faltam-me as manhs enevoadas e plidas, os dias loiros e
desconsolados com algumas sardas. Esta paisagem no se contenta com duas ou trs
rvores, o ar fino e pouco azul derretido: exigente e pesada. materialista e devassa.
Ao mesmo tempo bela.
As palavras pouco exprimem nestes casos: o principal na Madeira a luz que cria
e tanto amadurece o panorama como os frutos, porque a nica imagem que encontro
para este conjunto a dum fruto maduro que tomou pouco a pouco, com os vagares de
quem no tem mais que fazer, as cores do Sol, as da manh e do poente, e que chegou a
um estado perfeito que delicia e perfuma ao mesmo tempo. A terra emerge da tinta azul
com os tons quentes do anans, que o morango dos trpicos paraso sem frio nem
calor, a que se ajunta ainda o sabor dos vinhos bebidos aos golos e cuja transparncia se
avalia atravs do vidro erguendo-o para a luz. A luz! dar a luz, seria tudo, mas s um
pintor encontra este doirado azul diludo que envolve toda a paisagem deitada a
nossos ps como as mulheres que oferecem os seios duros com impudor e inocncia ao
mesmo tempo. As prprias rvores que irrompem de todos os lados estranha
vegetao tropical misturada com todas as outras: ciprestes, cactos, plantas
envernizadas, entre grupos de pinheiros mansos e grandes seres imveis e fortes,
estendendo a ramaria sobre as ruas, so de carne. Aprendi na escola aquela santa
histria dos trs remos da Natureza mas aqui as rvores, vigorosas e duma verdura
gorda, pertencem sem dvida nenhuma ao reino animal.


15 de Agosto

Todas as noites no pude pregar olho. Duas, trs horas sem dormir. Na rua passam
guitarras e rodam automveis com mulheres. A noite uma volpia e o ar deste clima
tropical uma carcia logo que desaparece o Sol. De manh bato para a serra.

O Funchal para o Sul a costa quase sempre cortada a prumo: Santa Cruz, e l no
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alto o Senhor da Serra; uma fenda enorme por onde entra o mar Machico, e logo o
Canial beira de gua e o relevo caprichoso da Ponta de S. Loureno. Para l do cabo
comea a costa norte, a parte mais selvtica, mais verde e talvez a mais bela desta ilha
to variada e decorativa. Ao fim da tarde os morros formidveis, vistos de bordo,
sucedem-se num cenrio espesso, que se desenrola em manchas escuras, com um resto
de fuligem de sol pegada quela imensidade, que nessa hora ainda parece mais vasta. A
Madeira um macio de serras cortadas a pique na costa oeste, descendo at ao mar na
costa norte e mais cultivado nos vales e gargantas inundados pelas guas.
O interior da ilha montanha em osso, com excepo do Paul da Serra. A parte
onde se fazem as culturas ricas, a mais agasalhada e onde no cai neve, a que eles
chamam folheto, o Sul, que produz a cana no litoral e a vinha nas encostas. No Curral
das Freiras cordilheira central curioso vale de erupo, ravina enorme apertada entre
vertentes alcantiladas, com profundidades que metem medo e que vo at oitocentos
metros, deparam-se povoaezinhas perdidas, o Livramento, a Faj Escura, o Curral,
etc. Este sitio revolvido e dilacerado explica talvez a formao da ilha, onde se
encontram mais vestgios de crateras, com indcios de erupes relativamente recentes,
nos charcos do porto Moniz, na Cania, no Canial, etc.
Desfilam ainda diante de mim as gargantas apertadas, s sombra, e uma encosta
iluminada a toda a luz profundas vertentes alcantiladas, num rasgo a prumo cerros
pedregosos gerados pela erupo, a ribeira que escorre no sop dos picos Ruivo e
Canrio aldeiazinhas to isoladas no alto de morros o Pico da Figueira, o Curral, a
Faj Escura barrancos formando o leito de torrentes terrenos desolados e
pedregosos, por onde deve andar o diabo em dias de vento. Depois, outra vez a
paisagem se modifica: os montes figuram castelos arruinados e ferozes da Idade Mdia.
outra a vegetao loureiros e o til nos fundos onde encharca a humidade. Desolao
e surpresa, contrastes, amplos cenrios de serra e mar, como no alto do Senhor da Serra,
onde os pulmes so pequenos para se encherem daquela atmosfera perfumada. Agora o
stio triste entre penedia negra, e cheirando a peixe, da Cmara dos Lobos, logo algumas
aldeias, beira de pequenos retalhos cultivados, com molhos de lenha secando porta
das choupanas. s vezes um aude para a rega, a greta donde escorre a gua, e l para o
fundo o abismo, com um espigo tremendo ao lado, que faz sombra e pavor: h stios
destes no Curral onde o sol s entra durante cinco ou seis horas por dia.
Percorro as estradas e os caminhos primeira luz ou tarde, quando o Sol se
afunda atrs dos montes, aureolando-os. Surpreendo os recantos, as casas enegrecidas
das aldeias, a vida rural e a vida martima e as culturas variadas, porque na Madeira
todos os climas so possveis, desde o do Norte, cheio de frio, at ao tropical e recolho
uma variedade de quadrinhos que s eles formariam um volume compacto...

Para viajar no interior da Madeira s h dois processos cmodos o da rede
suspensa por uma vara s costas de dois homens, que caminham apegando-se a paus, e o
carro de bois. Mas a rede faz sono, o carro melhor. Assente em travessas de madeira,
os curses, este lindo meio de transporte tem dois sofs de verga forrados de paninho
com pequenas flores azuis e protegido do sol e da chuva pelo toldo com cortinas. Ao
lado vai o homem, de aguilho em punho, que fala aos bois, e frente um pequeno
bojeiro. o meio mais original de correr as ruas e as estradas, e ao mesmo tempo o
mais rpido, porque os bois trotam e galopam quando necessrio. Sem a brutalidade
inexpressiva da mquina nem a rapidez estpida do automvel, o carro do Funchal, que
nos permite ver e comentar, d-me a impresso de que voga e de que regressmos aos
tempos primitivos e hericos conjuntamente carro e barca.
L vamos pela calada, subindo sempre entre castanheiros altos como torres. O
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castanheiro uma rvore prodigiosa. Sempre que os encontro, estremeo e paro.
Castanheiros e gua que corre, gua que salta e vem ao nosso encontro pela calada
abaixo e nunca mais nos deixa at l acima, regando ora uma, ora outra quinta,
distribuda por canais gua que vem da serra e todas as manhs d os bons-dias casa a
casa: ol, ol, ol! fala a todas as rvores e presta novo vio s flores exaustas.
Castanheiros e palmeiras agitam no ar as comas delicadas. Cheira-me tanto a fruta que
espreito para dentro das casinhas impenetrveis: s distingo manchas coloridas de flores
e pomares de rainhas-cludias, que o sol amadurece e trespassa. Um muro dum e de
outro lado. E isto ainda no basta: gelosias ciumentas tornam ainda mais cerradas e
poticas as habitaes solitrias. Que se passa ali dentro? Um grande amor ou um
grande sonho? Isto fez-se para se viver isolado com uma mulher e volpia, entre as
paredes das quintas sumptuosas, donde a verdura trasborda, e at nos casebres, to ricos
como palcios. Duns e de outros se assiste ao espectculo extraordinrio do mar e da
serra, num cenrio luxurioso e sensual. um panorama que lembra carne viva; um
panorama, den de volpia, que nos entra pelos olhos e pelo nariz ao mesmo tempo. As
ramadas baixinhas, vergando ao peso dos cachos, oferecem-nos as telas doiradas, a
folha esguia da cana sobre as leiras, a bananeira atira-nos os cachos amadurecidos ao sol
vivo e forte que cai a jorros. L em cima apetece a gente deitar-se sob as rvores,
penetrar em todas as quintas ainda adormecidas, estender-se em todos os esconderijos
verdes que agitam as folhas no ar tpido, no ar mgico, que respiro com sofreguido e
onde anda misturado o cheiro a fruta, o pique a mar, a alma dos vegetais e um silncio
cheio de vida.
I! i!
O curso desliza sobre os seixos. O rapaz vai adiante dos bois com o enxota-
moscas na mo, e ao lado caminha o homem, que fala aos bichos:
I! i!
No os aguilhoa, nem preciso: com um cuidado extraordinrio, pondo os ps e
retesando os msculos, vo subindo os degraus sucessivos da calada ngreme que o
caminho do Monte. De quando em quando o rapaz mete o rolo de pano ensebado
debaixo do curso, para as travessas da caranguejola deslizarem melhor.
I! i!
O largo da Fonte, um grande terreiro e meia dzia de pltanos enormes, que
enchem de majestade, de frescura e de sombra este stio suspenso entre o cu e o mar,
onde fica a igreja do Bom Jesus e aos lados os casares dos sanatrios. S estas rvores
valem um imprio.. Por ora no quero olhar para trs... Entramos numa regio mais
severa, escura de pinheiros, e vou reparando em quem passa a esta hora matinal... Nas
primeiras tintas da manh j as inglesas se deixam escorregar a toda a velocidade pela
calada, dentro do cesto de verga que o homem guia, impele ou detm, manobrando
com os ps. Passa por mim uma velha levando os frangos para o mercado nos curses,
rapazes com molhos de lenha e lavradores que empregam o mesmo meio de transporte
para as carradas de mato. Entre a fita que decorre depara-se-me um casal antigo, ela feia
e encarquilhada, com a velha capa de recortes, ele seco, de barrete de borla na cabea e
a volta com que no Inverno agasalha as orelhas, ambos compenetrados e solenes como
quem vai cumprir uma misso. So de outros tempos e comovem-me. Encontro depois
pela calada, entre o rudo das regas as guas correm sempre na va
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eta ao lado do
caminho estreito , mulheres carregadas cabea e apegadas a varas, moos com cestas
de batata-doce ou de semelhe, leiteiros com o pau que tem o jeito curvo dos ombros e
no qual levam duas bilhas, uma a cada ponta...
Chego ao Terreiro da Luta e a volto-me. A primeira impresso s de luz, de luz
doirada e de montanha verde que emerge do mar violeta. Poucas tintas e xtase. Nem
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uma nuvem nem um tomo de poeira. Uma luz delicada e moa, um ar que se bebe a
plenos haustos e ao mesmo tempo no sei o qu de puro e de sensual que sobe cabea
e que a gente olha com receio e ternura. Esta manh um momento delicioso na vida,
diante do conjunto perfeito que saiu agora das mos de Deus e que voga extasiado no
ter. imenso e nada: um mundo, e a gota de gua suspensa, e que reflecte a luz do
universo, dura um segundo e vai cair para sempre. A ilha, com a sua verdura tropical,
sai do mar violeta e l no fundo o Funchal, todo branco, acorda e espreguia-se ainda
tonto de sono...

Seguimos para o Arrebento e depois para o Poiso, paragem obrigatria para o
caf matutino a quem vai a Ribeiro Frio. At l atravessam-se montes sobre montes,
arredondados, cor de oca, com pedraria azulada rompendo-lhe a pele seca pelo sol, por
uma estrada onde s a tabaibeira estende as mos espalmadas a quem passa. Paragem no
descampado da taberna para homens e bichos descansarem, e comea-se a descer por
uma solido cada vez maior at calada a pique, onde os bois estacam segurando o
carrito sem rodas, como se descessem a prumo a torre dos Clrigos. Irrompe outra vez e
de toda a parte a verdura em catadupas, carvalhos, faias, castanheiros, e encontro logo a
gua minha amiga numa levada que gela e refresca todo o caminho. Gargantas
asprrimas, rasgos enormes em atitude de quem vai perder o equilbrio e cair no leito
seco da torrente, cujas pedras reluzem como vidros, rvores em jorros verdes lanadas
de lado a lado, formando ponte, ou atiradas ao acaso pela encosta, vegetao que se
agarra como pode a paredes formidveis e l no fundo, perdido no ermo, um povoado
de meia dzia de casas colmadas, que parecem cortios de abelhas. S chega at ns o
bater da bigorna no ferreiro. outra natureza brava e que no tem nada de tropical: so
aspectos do Norte da ilha... O nevoeiro surpreende quem vem de cima, dum sol
esplndido, cerra-se e descerra-se deixando distinguir de repente detalhes fantsticos,
stios selvticos, pedras isoladas. Ascende ou desce, envolve tudo, afasta para mais
longe a paisagem, e parece encomendado de propsito para transtornar o panorama e
torn-lo ainda mais fantasmagrico. Vamos descendo sempre, e sempre a levada nos
acompanha ao lado do paredo a pique.
Aquilo perdido l em baixo a Ribeira da Ametade, a povoao que mal se
distingue, o Faial, e um grande penedo aguado na minha frente, o Mirante. Paro,
assombrado, diante dos cenrios, uns atrs dos outros, .erguidos no ar e dissolvidos no
ar, dos valezinhos, que parecem ainda mais isolados e concentrados, mais fundos, que
rochas temerosas defendem e esmagam, e por onde deve correr no Inverno a torrente
com um rebramir furioso. a realidade ou a nvoa?... So paisagens de Dor stios ao
mesmo tempo atropelados, bravios e poticos. Um caos com pormenores lricos. E a
gua segue-nos sempre, e o nevoeiro deforma tudo, cinzento, quase rosa e trespassado
pelo sol, ou espesso e entranhando-se nas gargantas, subindo as montanhas,
aglomerando-se em borres e desvendando de repente aspectos de ferocidade e de
grandeza. Caminho por uma rocha entreaberta (e a gua c vai), avisto um penedo
colossal, cortado a pique, e detenho-me diante do vaie que se alarga e da magia da
nvoa, que cria na minha frente um tropel de montes descendo aos galges at ao
abismo, com faias agarradas por milagre a bocados de terra. Ao p de mim as rvores
so to velhas que tm barbas, grandes barbas de lquenes, como nunca vi seno nos
bodes. A custo distingo j o que se passa. A meu lado fica um grande penedo trgico,
coberto de musgo vtreo, cor de cinza, que no tarda, decerto, a mexer-se, e a meus ps
o abismo aberto, todo em nvoa... Mas nvoa espessa, donde irrompe de repente um
monte fantasma, esguio, negro e feroz, que avana direito a mim. Cuido que ao longe,
num rasgo, avisto o mar um pontilho uma cabana uma gota de gua que cai da
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serra entre pedras lisas, at que por fim o nevoeiro definitivamente se alastra e espalha,
misturando tudo e envolvendo tudo. S o rudo da levada a meu lado teima, chamando-
me ao sentimento da realidade.
Regressamos; o caminho sobe, o rapaz grita: I! i! at chegarmos de novo
regio do sol. A luz no casta como nos Aores, nem os montes verdes. As tintas so
quentes, as lombas requeimadas, e a nvoa fica l para o fundo, entranhada nos vales.
Saltam bandos de cigarras nos restos de erva j comidos pelo sol, mas que ainda
cheiram bem. Sucedem-se quase at ao Monte as mesmas corcovas arredondadas, onde
cresce a queir em pequenas moitas, e aqui e ali um a figueira-do-diabo. Pinheirais,
caminho montono at entrarmos outra vez no Monte. Logo que l chego, paro diante
duma casinha perdida dentro da floresta. trrea, com pequenas janelas de guilhotina
viradas para o mar. No vale nada: a casca abandonada dum caracol. Mas no parece
feita; parece que cresceu ao mesmo tempo que as flores vermelhas que a rodeiam e que
lembram uma paixo ou um crime. rvores, quatro muros velhos roda, a latada sobre
varas entrada do quintal, e um encanto que no sei explicar e que nasce das coisas
simples, que no procuram impor-se nossa ateno e s nos oferecem a sua simpatia.
Eis o stio ideal para acabar a vida ignorada com os olhos postos no mar e aquecido de
Inverno por este sol esplndido, mergulhando a minha velhice friorenta na luz
radioactiva e estendendo o meu cansao sombra das rvores que nos oferecem os
frutos maduros. Teria aqui um alegrete caiado de branco com vasos de flores que j
ningum usa e que minha av cultivava num canteiro dlias, suspiros, sardinheiras.
Refugiar-me-ia naquele canto sombrio onde corre um fio de gua entre meia dzia de
bananeiras, que nunca vejo sem ficar atnito. Vivem ali, juntinhas e abrigadas, a an
mais baixa, a oiro e a prata que deita o tronco mais alto, e l em cima um penacho de
folhas decorativas que lembram Paulo e Virgnia. Algumas tm o cacho pendurado,
outras o grande boto a escorrer sangue folhas em camadas sobrepostas, com a flor
dum amarelo desbotado escondida l dentro. Alm de belas, so prdigas. Produzem
todo o ano, do fruto, morrem, mas os rebentos sucedem-se. So duma fecundidade
prodigiosa. Mal o fruto amadurece, h quem as corte por o p e as leve s costas para
casa... Reparo l para o fundo num antro de braos retorcidos floresta primitiva de
meia dzia de metros quadrados; reparo em carreiros escuros com renques inextricveis
de bambus, e nas ervas secas cheias de discos de sol que apetece apanhar como moedas.
Era aqui que Daudet devia instalar aquele seu professor de preguia, que num jardim de
Argel esperava, deitado sombra, que os figos lhe cassem na boca... E no digo bem: o
stio para contemplativos viverem e morrerem. Sobretudo para viverem, porque a
grande delcia num clima destes viver, e respirar uma voluptuosidade. Ao ar
embalsamado da terra mistura-se o hlito violeta do mar. Pode-se dormir ao ar livre sob
o dossel de estrelas, porque as noites tpidas da Madeira so uma carcia de pele macia.
As noites lnguidas e brancas cheiram a flor e a fruta, as noites desfolham-se diante dos
nossos olhos, como uma camlia que morre devagar. No alto, o cu no pode com o
peso das estrelas e a cidade, em baixo, cheia de lumes, lembra uma maravilhosa
constelao. Estas noites hmidas de luar, junto a uma mulher amada, so das coisas
mais extraordinrias que pode haver no mundo, porque a volpia do exterior est de
acordo com a exaltao ntima e o universo vibra dentro de ns at dor.
Cismo e olho. H um tom alaranjado, verde e azul para o mar, que nunca mais
torno a ver e que nunca mais se repete. H fios de oiro suspensos sobre esta natureza,
que talvez seja nica no mundo. Contemplo a casinha, as rvores o meu sonho e no
desejo mais nada. Isto completo e perfeito... Mas pouco e pouco vem-me uma
saudade... ainda quase nada, e insisto. Toma corpo e avoluma-se a saudade da
minha grande lareira negra lambida pelas chamas; a saudade do frio, uma saudade que
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aumenta e me abala at s razes. Lembro-me da pequena casa de lavoura, sacudida
pelos temporais na vinha esfarrapada. E isto mistura-se ao esplendor dum poente de oiro
para alm da serra, que deixa o monte todo verde erguido no cu a sair do mar todo
violeta. Um p fino a luz que morre sobe no ar, uma calma absoluta trespassa a
natureza... Que paz! ... Mas eu sou um inquieto e a saudade cada vez a sinto maior e
mais funda saudade das ltimas tardes de Outono, do primeiro arrepio de frio, das
primeiras brasas que se acendem, quando os grilos do lar se chegam como eu para o
lume e desatam a cantar toda a noite. Tenho saudades do Inverno.


24 de Agosto

Agora conheo melhor a Madeira. Passado o primeiro entusiasmo, vejo tudo a
frio. Esta ilha um cenrio e pouco mais cenrio deslumbrante com pretenses a vida
sem realidade e desprezo absoluto por tudo que lhe no cheira a ingls. Letreiros em
ingls, tabuletas em ingls e tudo preparado e maquinado para ingls ver e abrir a bolsa.
Eles saem dos paquetes e logo o Funchal se arma como um teatro secos, graves,
dominadores; elas saem do mar vestidas de noiva, de bengala na mo e blusa de croch,
passeando a sua importncia e as suas libras esterlinas em terreno conquistado. O ingls
talvez o povo mais nobre do mundo mas no tem o sentimento do grotesco. Sentado
porta do Golden Gate, ouo o apito do vapor, e j sei o que se vai passar: muda a
armao como um cenrio de mgica. Surgem homens com grandes chapus de palha
para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as
lojas, e segue o desfile de tipos pretas de Cabo Verde com foulards vermelhos na
cabea, mulheres planturosas, alemes macios, portugueses esverdeados e febris que
regressam das colnias, velhas inglesas horrveis que vm no sei donde e partem no
sei para onde, desaparecendo para sempre no mistrio insondvel do mar; criaturas
inverosmeis que rodam a toda a fora nos automveis num frenesi que dura momentos
e se passa na nica rua onde h um caf que transborda de luz. Mas as mquinas de
bordo do o sinal e uma hora depois esta vida fictcia desapareceu e tudo reentra no
isolamento e no silncio. Apagam-se as luzes, correm-se os taipais e os vendedores
mergulham na pacatez da vida quotidiana. O quadro est sempre a repetir-se com a
chegada e a partida dos grandes transatlnticos.
Mas a Madeira tambm uma estao de Inverno com alguns magnficos hotis.
Esta terra quase tropical, cujo calor, no Vero, a virao modera, com excepo dos dias
de siroco, em que se no respira, no Inverno uma delcia. Ar balsmico, temperatura
morna. Imaginem o que ser vir de Londres, da borrasca, do frio que enregela, do
negrume que enerva e enche as almas de tristeza e de lama, e, com dois dias de vapor,
chegar diante da jia voluptuosa que voga suspensa no azul... O porto panormico.
Sabe a fruta o ar fino que entra pelos pulmes doze graus e o sol doirado caindo a
jorros. H dias to lindos que a gente tem medo de lhes tocar imveis, e dum azul
magntico. A vida no tem peso, tudo parece um sonho. As noites so de magia. Rosas
por toda a parte. O sopro tpido vem dos montes. E isto bebe-se devagarinho, aos golos
entra nos poros e nas almas e enlanguesce-as. Quem pode acreditar na morte, no frio
horrvel e eterno, diante da natureza, que nos estende os braos cheia de flores e de
perfumes em pleno Inverno?... Ento os tuberculosos respiram... A vida!... As
mulheres perdem a cabea e bebem o vinho cor de mbar com as bocas entreabertas
como frutos a cair de maduros. Por trs da cidade o Monte ergue-se para o cu, aberto
ao meio e endurecido de volpia. Com a noite vem o frenesi. Nos grandes hotis, ves-
tidas de branco e decotadas, inebriadas de msica e com o deslumbramento do
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panorama em frente, erguem-se da mesa, e danam enlaadas. No ltimo dia do ano,
todas as casas se iluminam com fogos de Bengala, coroando esta festa de estrangeiros e
de ricos.

Vejamos, porm, o cenrio pelo lado de trs... Turismo, lcool e acar tm
degradado o povo e enriquecido alguns felizes da terra. O homem do Funchal, em
contacto com o progresso, transformou-se em hoteleiro, engraxador e chauffeur.
E o povo? os homens degenerados e raquticos que todo o dia desfilam na rua
diante de mim? Ponho em confronto o homem da Madeira com o dos Aores, o corvino,
por exemplo, isolado do mundo e vivendo como h trs sculos, e pergunto a mim
mesmo o que lucrou com a civilizao o habitante da cidade e o vilo. Lucraram os
negociantes e os hoteleiros, afundam-se todos os outros numa abjeco que tem
aumentado sempre. Cada vez se cava mais funda a separao entre as classes chamadas
superiores e as outras. O que se faz neste pas um crime que havemos de pagar muito
caro.
O vilo, que antigamente passava com papas de milho trs vezes por dia e dormia
feliz com toda a famlia num buraco trreo, hoje um alcolico inveterado, que at
desaprendeu de rir (a romaria no Monte uma coisa fnebre). Ouve-se
constantemente dizer: Est com o grogue! No trabalha. A cana-de-acar a mais
fcil de todas as culturas. Depois de posta, s precisa de ser estrumada e cortada durante
anos. Na parte mais desabrigada da ilha, onde o lavrador vive isolado e pobre,
cultivando o milho e fabricando carvo para vender na cidade, ainda se conservam
alguns costumes puros, que vo desaparecendo pouco a pouco. As mulheres bordam.
a grande indstria feminina dos Aores e da Madeira. Em quase todas as cabanas se
vem raparigas atentas sobre o linho, de dedal enfiado no dedo. A Amrica leva tudo. O
negociante fornece-lhes o pano estampado e elas compram as linhas. Pouco ganham.
Mas criam hbitos de trabalho. Tornam-se atentas e delicadas. Desde que bordam que
no campo se fala mais baixo. O pior que estas criaturas, quase todas desgraciosas e
que substituram o antigo vesturio por uma mantilha atada cabea, acompanham o
homem no grogue e do s crianas de mama chuchas de lcool.
Conheo o pescador de Paul, Cmara de Lobos e Machico. Nenhum mar mais
prdigo do que este. H pocas no ano em que passa compacto e imenso o cardume do
gaiado, variedade de atum. Abunda a espada preta, a lula enorme, o carapau, a moreia
sarapintada de amarelo, mas ele quase se limita a pescar o peixe-espada, que o mais
fcil, tendo perdido a memria dos mares de peixe: S o Patud6 os conhecia todos, e
s o Andorico que vai ao cherne, porque sabe onde ele est. Gasta tudo o que ganha
bebe tudo. Bebem nacionais e estrangeiros. No Funchal por toda a parte se vem
tabernas. H-as no fundo das camisarias, com inglesas a beberricar. Os ourives so ao
mesmo tempo ourives e taberneiros, as modistas tm balco e copinhos... H, logo
entrada do porto, uma de cada lado, com os barris j preparados para o consumo... Estou
muito longe daquela gente simples, daqueles homens sos de quem me apartei com
saudade...
Ora, entre o turismo que tem dado semelhante resultado e a hospitalidade, no
hesito em dizer que detesto o turismo, e adoro a hospitalidade. Adoro a antiga Espanha,
durante muito tempo rebelde explorao, recusando a adaptar-se vontade alheia, e a
satisfazer os estrangeiros com um sorriso falso, at ao ponto de mudar usos e costumes
para lhes ser agradvel. O estrangeiro entra sempre num pas de turismo como num
hotel como quem paga. Ora uma nao no deve ser um hotel e Deus nos livre que o
seja! E se ainda os enriquecidos se lembrassem que h em Lisboa milhares de crianas
pobres, e l em cima alguns casares alemes vazios, a apodrecer ao tempo!... De
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passagem, quero que fique aqui esta nota de piedade: ao ver aqueles grandes hotis
desertos, lembrei me das crianas tuberculosas da Alfama e Mouraria. Penso que o go-
verno e os ricos poderiam agasalh-las, transferindo-as durante alguns meses para este
admirvel clima de luz e de sol. Era talvez a redeno para muitos. Os grandes hotis,
com criados de casaca, msica e flores, poderiam pagar para os pobres seres
abandonados que morrem de fome e de misria, dando-lhes agasalho e piedade. E talvez
salvando-os...


29 de Agosto

Comeo a andar inquieto. No pude dormir: toda a noite desejei com sofreguido
outra luz a luz que me criou. Nem na Madeira a luz me satisfaz. Cansa-me. Todas as
manhs espio o cu nublado espera que a luz irrompa. Embarco. A noite de 29 de
Agosto passo-a no tombadilho, sempre espera, numa sofreguido de luz e toda a
noite de trgica tempestade. No convs, s vejo negrume agitando-se num clamor.
Mas de manh a borrasca aplaca-se dentro da bacia de Cascais e a luz irrompe, uma
luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada tomo tem asas e vem direito a
mim como uma flecha de oiro. No cu imenso, azul e livre, o Sol bia como num
grande fluido. Portugal!

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Obra digitalizada e revista por Ernestina de Sousa Coelho. Actualizou-se a grafia.

Projecto Vercial, 2002

http://www.ipn.pt/literatura

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