CArlito Azevedo
CArlito Azevedo
CArlito Azevedo
Artigo acadmico
Artigo apresentado Prof. Ana Cristina Chiara, como
requisito parcial na Disciplina de Literatura Brasileira VI,
do departamento de Cultura e Literatura Brasileira do
Instituto de Letras da UERJ.
Rio de Janeiro
2013
Apresentao do autor
Nascido em 1961, na Ilha do Governador, o poeta, crtico e editor Carlito
Azevedo , hoje, um dos grandes nomes da poesia contempornea, com prmios como o
Jabuti, pelo livro Collapsus linguae (1991). No campo da poesia, ainda conta com as
obras As banhistas (1993), Sob a noite fsica (1996), Versos de circunstncia (2001) e
Monodrama (2009), alm de uma antologia das poesias publicadas at 2001, sob o ttulo
de Sublunar (1991-2001). Formou-se em Letras pela UFRJ, onde teve contato com a
poesia francesa, vindo a traduzi-la posteriormente. Como tradutor, tambm assinou Ode
a uma estrela de Pablo Neruda. Ainda no campo da poesia, podemos mencionar as
diversos poemas infantis publicadas pelo autor, quase sempre em suplementos literrios.
Como editor, publica a revista Inimigo Rumor desde 1997, ao lado do poeta
Augusto Massi, alm de coordenar o editorial da coleo de poemas s de colete,
publicaes da Cosac Naify em parceria com a 7Letras.
Contextualizao
Por mais que o termo ps-moderno faa parte dessa cada vez maior famlia de
conceitos referenciais pr-romantismo, ps-estruturalismo, protonacionalismo, etc. -, e
que seja uma categoria que pouco tem a nos oferecer ao ser pensada em sua coordenada,
nesse vago perodo outros diriam lquido que escreve Carlito Azevedo.
Contextualiz-lo diante de seu momento de escrita, assim como a a qualquer
contemporneo, seria uma tarefa ingrata, visto que a poeira do presente ainda no
decantou a ponto de termos um estvel (mesmo que ilusrio) perodo literrio. ps
apenas para conforto dos falantes, uma forma sinttica de referir-se a tudo que passou
de nosso ltimo porto seguro (pouco seguro por sinal) em definies poticas e estticas.
Falar de momento poltico perder-se entre quatro ou mais presidncias,
governos, crises e reformas, importantes de certo modo, mas nada com o tom de uma
proclamao da repblica ou ditadura militar que d nos traga um poema sujo a
mencionar-se. A arte, em toda sua experimentao, tornou-se uma mirade de temas,
formas e a crtica desta e no se encontra, nela, nenhum lugar estvel.
Atemo-nos, ento, para termos em mos um fio de Ariadne, algumas
referncias que dialogam intensamente com a obra de Carlito Azevedo, mencionadas
por Suzana Scramim em sua apresentao da Ciranda da Poesia sobre o autor. Ela
menciona que a questo do aprendizado potico encontrado em sua obra (falaremos
disso adiante) est relacionado com obras e, consequentemente, com autores
importantes da literatura nacional.
Cronologicamente, o primeiro nome que surge como referncia para Carlito
Azevedo o Drummond, com sua pedra no caminho. A pedra um problema para o
jovem poeta assim como j foi pra Dante e ser para as futuras geraes. Pedra que se
apresenta como questo em linguagem, ideia, verdade obstacular e pungente. Sem
perder-se num comparativismo barato de dvidas literrias, digamos que Carlito
Azevedo tem Drummond em mente no para arrastar a velha pedra, mas para pul-la,
buscando as pedras de seu prprio tempo.
A pedra volta em Joo Cabral de Melo Neto, na educao pela pedra, no mais
(ou no s) a pedra drummondiana, mas a poesia-pedra que o engenheiro projeta e
executa. Carlito Azevedo, na sua oscilao entre ser e tempo, dissolvendo e compondo a
matria objeto ou lngua ora compe a palo seco ora cria seus ritmos e harmonias.
De Haroldo vem o contato mais prximo, do qual irrompe a dessacralizao do
objeto potico, imitvel, misturvel, flexvel. Assim, seus poemas citam, parafraseam,
parodiam, quando no recortam e colam diretamente ressignificando o j dito atravs de
seu deslocamento do original.
No constituem tais contatos, porm, mais que dilogos numa potica que, nessa
dispersa ps-modernidade, parecem ser, cada vez mais, pessoais e o contexto, ou se
confunde com biografismo ou perde-se em fatos culturais dispersos.
Questes do ser
Pelos olhos de Suzana Scramim, no seu prefcio Ciranda da poesia vemos o
jovem poeta com uma forte relao da poesia com as questes do ser e parecer que
aborda atravs de distintas perspectivas. Uma primeira, que denomina poesia-espelho,
aproxima a potica de Carlito Azevedo da influncia da OuLiPo (ouvroir de littrature
potentielle), transversalmente atravs de Haroldo de Campos e de forma mais direta
com Ana Maria de Alencar, com quem tem contato ainda na poca da faculdade. Ana
Maria teve sua formao escolar na Frana, devido ao exlio de seus pais, logo teve
contato com a oficina de literatura como produo dos franceses e tornou-se uma de
suas principais divulgadoras no pas.
O contato de Carlito com essa esttica francesa fica claro principalmente nos
seus dois primeiros livros, Colapsus linguae (1991) e As banhistas (1993). A autora
afirma, sobre essas obras, que seriam um tipo de poesia chamado de a moda de em
que predominam a pardia, parfrase, citao ou o pastiche. , tambm, atravs dessas
ideias, que quebram com a ideia de poesia como objeto nico e inimitvel que vemos,
em sua obra, a arte como apario, como fantasma, uma marca da modernidade. Assim,
revela-se uma produo no do ser, mas do devir, em que a poesia no um elemento
final, mas uma potncia do prprio objeto potico. Nas palavras de Scramim:
no so poucos os poemas de Carlito Azevedo em que a experincia
emprica, a vivncia, no gera o poema; gera em vez disso um poema que
poderia ter sido, uma experincia no limite da morte, ou seja, a da no
experincia. (SCRAMIM, 2010, p.13)
Atravs dessa problemtica do ser, surge, em consequncia, uma questo sobre o
prprio aprendizado potico, explorado por autores como Ferreira Gullar em
Aprendizado, Joo Cabral de Melo Neto em Educao pela pedra, Carlos
Drummond de Andrade em Lio das coisas e Haroldo de Campos em Educao dos
cinco sentidos. Carlito Azevedo retoma esse tema e desdobra seus sentidos, negando
que a pedra aprenda, que alguma coisa ensine ou que os sentidos sejam confiveis. O
problema aqui, a criao dessas imagens-verdade, de realidades aparentes, numa
teoria das artes em que a relao entre tica e esttica de mo dupla. (IBID., p.16).
Podemos, ainda, aproximar a poesia de Carlito Azevedo da pintura, no velho ut
pictura poesis horaciano, ainda que, aqui, a mimesis se d de forma contrastante quela
encontrada no contexto clssico da citao. Aqui, a representao do externo est menos
em jogo que a prpria representao do ato de representar, numa viso do fazer artstico
enquanto procedimento, no inacabado, mas inacabvel. Assim, para entender a
verdade pintada do poeta, necessrio estabelecer seus conceitos de realidade e
verdade. Suas noes advm de uma quebra a ideia clssica de conhecimento como o
saber que brota do j conhecido. O conhecimento conflitivo da modernidade busca a
combinao e variao de mais e mais figuras de similitudes, ou seja, um conhecer
mediante relaes de aparncia, do parecer ser (IBID., p.23).
Nesse jogo da aparncia enquanto realidade e verdade to vlida quanto
semelhana de verdade, o poeta se interessa mais pelas formas enquanto simulacro da
natureza do que por suas caractersticas, de fato, formais. o abandono total do
essencialismo, em que se busca na aparncia das coisas, a prpria aparncia das coisas e
no o que se encontra atrs, ou seja, uma conquista da superfcie na arte. A autora indica,
atravs das ideias de Vladimir Jankelevich, que essa verdade seria um platonismo s
avessas, ou seja, o ser daria lugar ao modo.
Dessa forma, vemos que a autora aproxima a obra de Carlito Azevedo de uma
das grandes problemticas da literatura na modernidade, a questo do real e do no real,
bem questionado pela fenomenologia. Como prefcio a um livro comentado, a autora
prefere, em sua apresentao, trabalhar de forma mais genrica a potica do poeta,
aprofundando seus comentrios ao longo do livro. Visto que a inteno, aqui, apenas
um panorama das leituras de Scramim sobre Carlito Azevedo, no cabe uma descrio
detalhada de seu trabalho analtico.
A teatralidade relutante
No texto A imagem em estaes observaes sobre Margens, de Carlito
Azevedo (2008), Flora Sssekind far uma anlise que busca compreender as mudana
ocorridas na poesia de Carlito Azevedo, principalmente de 2001 em diante, percebendo
certo conflito entre a expanso e a fragmentao de sua poesia. Para Sussekind, a obra
do poeta contraria o atributo moderno na imagem-sntese, que orienta os sentidos a uma
coluna essencial, e, assim, vai em direo oposta, pela indeterminao de sua poesia,
destruindo mtodos de estabilizar os significados, sustentar os sentidos. As imagens
contidas em sua obra acabam desdobrando-se em referenciais internos, que no apontam
para nada mais que a si prprios. Para melhor acompanhar a anlise da autora, ela nos
expe suas ferramentas de anlise, que se compem pela:
(...) Necessidade da clara explicitao, no poema, de seu modo narrativo e a
ampliao de sua extenso de modo diretamente proporcional intensidade
de sua composio imagtica (em diferentes planos figurais contrastantes), e
a um movimento de flexibilizao semntica realizado por meio de recorrente
justaposio e interferncia de zonas de sentido diversas e ressoantes.
(SSSEKIND, 2008, p.64).
, dessa forma, uma abordagem que privilegia o lado estrutural da obra de
Azevedo, no deixando de levar em conta outros aspectos diversos orientados por este,
como o contraste que ser retomado por Luiz Costa Lima entre fugacidade e
perenidade, o convvio entre referencias de uma cultura pop e da cultura erudita e a
manuteno de certo lirismo.
Os retratos da cidade que avultam na obra de Carlito Azevedo so vistos pela
crtica como cenas nas quais raramente se v trechos descritivos. A cidade vista como
um lugar de trnsito, como um espao a se percorrer. Para tal, apoia-se no ensaio de
Cndido (1998) sobre Mario de Andrade, contrastando sua ideia de poeta itinerante
com aquela que observa no jovem poeta. Parece no haver espao, na obra de Carlito
Azevedo, para a interiorizao, para a reflexo num plano figural. O constante
deslocamento entre o subjetivo e o objetivo causa uma impresso de fuga da
identificao, que ela associa ao plano da mutao teatral.
Nesse processo de composio das imagens, Sssekind v uma tenso entre
exerccios narrativos mais meditativos e a problematizao destes, como um exerccio
de autocrtica. , talvez, esse o fator que leva a uma brusca queda nos poemas inditos
do autor, visto o intervalo entre Versos de circunstncia (2001) e Monodrama (2009).
Formas de metamorfose
No livro Intervenes, Luiz Costa Lima far uma anlise de alguns aspectos da
obra de Carlito Azevedo, centrando-se principalmente em Sob a noite fsica (1996) em
contraste com As banhistas (1993). Refere-se a tal anlise como um afresco crtico, j
que um comentrio rpido de um livro precioso (COSTA LIMA, 2002, p.183).
Inicia seu trabalho com uma estruturao do poema Limiar em trs diferentes
planos. O csmico, representado pelos dois primeiros versos, abordando o universo e a
luminosidade; o mdio-terreno, no qual desce at elementos mais prximos, como a
pedra e a praia; e o cotidiano, representado pela decomposio obscura nos ltimos
trs versos.
Tal diviso servir de base para que o autor reconhea um movimento que vai da
constituio de corpos pela luz dos primeiros versos a decomposio dos mesmos na
obscuridade do final do poema, que leva a prpria degradao do espao em tempo. Tal
metamorfose vista por Costa Lima como abstrata, j que prescinde de subjetivao,
i.e, de um acidente personalizado. (IBID., p. 182).
A mesma metamorfose, mesmo que de forma contrria, operar em Ao rs do
cho, na qual vemos a passagem de versos da esfera temporal como O menino passou
na ventania / O momento passou de epifanias se transmutando em espao ([...] E at
gostas finas, / que no ar denso porm abrem ravinas) at alcanar sua forma no final
ciscos de gua luzindo nos lancis.
Essa forma de operar as metamorfoses so meios para se ver a trajetrias das
transformaes operadas nos, chamados por Costa Lima, grandes parmetros, que so
necessrios para que se tente pensar a vida como matria do poema, com o abandono do
retrato ntimo de uma vida. (IBID., p. 183).
Essa dualidade entre tempo e espao e suas metamorfoses podem ser observadas
na parte II e III do Ao rs do cho em seus mximos dimetros. Por outro lado,
poemas como Mira, A margarida-prola e 3 variaes cabralinas so exemplos
do mnimo intervalo nesse grande parmetro. Como exemplo podemos ver [...] a / no
abolida linha [...] perdura / equilibrada sobre a / prpria falta de espessura (Mira).
Em Mira pode-se observar que a conjugao que se busca e cumpre tem
como anttese a reao apenas humana, demasiado humana, i.e., remtente apenas a
efeito subjetivo, de que fala o incio do poema. (IBID., p. 185). Esse movimento vai
contra a uma esttica mais conectada ao contexto, como visto na poesia dos anos 70,
dando relevo ao intricado universo dos maxi ou dos miniparmetros (IBID., p.186).
Podemos ver assim, que essa metamorfose observada por Costa Lima conjugam
uma visualidade j observada em As banhistas (1993) com a abstrao, tentando
nesse movimento dialtico alcanas a profundidade de uma poesia que vai contra a
subjetividade sem, por isso deixar de possuir certo lirismo, viso que se harmoniza com
alguns aspectos da anlise de Sssekind.
Emblemas: uma paisagem em fuga
Poema contido no livro Monodrama (2009), uma leitura atenta ao poema
Emblemas pode revelar muito dessa potica tensionada que observamos j nas crticas
mais relevantes de sua obra. Inaugurador de um livro to vasto em temas quanto em
formas, o poema Emblemas j nos traz questionamentos antes mesmo de l-lo: a
disposio de suas estrofes (so estrofes?) com espaamentos variados pe em xeque
uma leitura sequenciada, como se fosse um simples poema longo. Devemos consider-
lo assim? Ou v-lo como um mosaico de fragmentos conectados? E a distncia dos
espaamentos? Uma simples provocao a uniformidade parnasiana da disposio dos
blocos ou um smbolo a mais para ser lido, unindo de distintas formas os grupos de
versos que intercalam?
Numa poca de fronteiras to difusas entre prosa, poesia, narrativa e
subjetividade, no parece haver posicionamento confortvel para a leitura de uma obra
literria e, assim, da mesma forma que Emblemas um poema cheio de desconcertos,
uma leitura da mesma no pode deixar de apresentar certas arestas incmodas. Sendo
assim, iniciamos a leitura do poema atravs de uma perspectiva de estrutura narrativa.
O primeiro movimento nessa trajetria aceitar, mesmo que temporariamente, o
poema Emblemas como um todo coerente, no que essa caracterstica o restrinja, mas
uma de suas possibilidades. Vendo-o assim, surge diante de ns um esboo de
elementos narrativos, ou seja, personagens, cenrio, situao. Todos esses elementos,
porm, so dispostos como peas de um quebra-cabeas desordenados mesa.
Um primeiro passo seria observar os cenrios, que tal como em uma pea
dramtica, so incompletos, construdos medida que so utilizados, sem mais
profundidade que aquela necessria no palco. Assim, encontramos dois grandes espaos,
o banco e o hotel, cada um dos quais se constitui de cenrios independentes que s se
unem em um esforo exegtico que aqui se faz. Esses cenrios podem ser vistos em
tenso, em contraste. O banco representa o lado dinmico, presente do poema, sendo
colorido pelo riso (todos ali riem), pelo amor ( s o amor querendo nascer / por
vias tortas) e pelo medo (uma ordem macabra chega / pelos fones de ouvido / do
segurana). O hotel, por sua vez, apresenta o lado esttico, reflexivo do poema, em que
vemos a presena das lembranas (adorei aquela tarde / no hotel da lapa), das cartas
(ela diz na carta), da leitura (e lendo De Lillo, / digo, lendo Modiano).
nesses arranjos de palco que surgem os igualmente incompletos personagens.
No possumos mais sobre eles do que a prpria cena nos d. Alguns, pela recorrncia
ao longo do(s) poema(s), podem ser considerados centrais e, assim, merecem uma
anlise mais detalhada. Os personagens parecem ligados aos espaos e ganham as
mesmas caractersticas dos locais em que surgem.
O imigrante, figura presente e marcante em Monodrama, escolhido para abrir a
primeira estrofe do primeiro poema do livro. uma figura do cenrio do banco, apesar
de estar a margem do acontecido. Tudo lhe serve de pano de fundo para a foto que tenta
tirar de sua filha. Para o imigrante, esse cenrio constitudo de imagens de pura /
desconexo. Sua viso, de certa forma alheia a tudo que acontece, faz um importante
contraste com a tenso da multido no banco. Enquanto todos tomam tiro de borracha,
ele toma cerveja sentado na calada. Essa aparente alienao, porm, rompida na
penltima estrofe, quando, ao perguntarem o nome de sua filha, responde soviete. a
figura do poeta que protesta, sim, mas seu protesto mudo at que algum se interesse
por sua filha, ou seja, por sua obra.
A prxima a surgir uma jovem, descrita pelo narrador/eu-lrico como [...] a
jovem / olhos de guepardo / leitora de Rilke / seios grandes. De forma sinttica e
superficial, tudo que temos sobre a jovem so caractersticas fsicas, marcadas pela
caracterizao de seus olhos e seios e um comentrio sobre seu gosto literrio. Este,
porm, traz muito sobre a jovem. Ser leitor de Rilke um fato que, comumente, requer
certo domnio do alemo, uma lngua bem distante da nossa, logo, no possuda por
qualquer um. Podemos, tambm, pensar em certa identificao da personagem com o
estilo da poesia de Rilke, existencialista, transcendentalista, marcada pelo
expressionismo.
Pensando em certa coeso entre as estrofes desigualmente distantes, podemos
tomar o pronome ela visto em diversos pontos do poema como um indicador da
jovem manifestante. Dessa forma, ao longo do poema, vamos tendo excertos soltos de
sua caracterizao. Confirma-se seu domnio intelectual no trecho mas foi sim do russo
/ que ela traduziu / a tabuleta em frente / ao prdio: e pela meno a uma bolsa-
sanduche. Seus seios tambm voltam a ser mencionados em eu nunca imaginei / que
voc tivesse / seios to apstolos.
Essa personagem vista nos dois ambientes do poema. No presente da
manifestao, na qual entrar em conflito com o segurana do banco e no passado,
sendo recordada pelo narrador/eu-lrico e o convvio de ambos no hotel. uma
personagem de pouca ao (um bbado se engraa com ela, o segurana a observa, o eu-
lrico se recorda dos encontros, nada que ela mesma parea fazer), apesar de sua
presena, um personagem que s ganha voz e atitude quando grita Nitidez um caso
dessa luz / seu perigo e / seu desmoronar. Essa frase pode sintetizar uma das ideias
transmitidas por Emblemas. A certeza, a estabilidade, a solidez, o materialismo do
mundo em que se encontra essa jovem leitora de Rilke que vive tambm seus dramas
rilkeanos a sua runa.
essa jovem de seios apostlicos que vai chamar a ateno do terceiro
personagem-chave desse longo poema. Encontrado unicamente no cenrio do banco, ,
assim, marcado pela ao, pelo tempo presente. Mesmo seu ato esttico de observao
sequenciado pela reao biolgica Entre tantos / manifestantes / ela quem arranca / a
primeira ereo do dia / do segurana. No possui nenhuma descrio, apenas as duas
aes que, apesar de contraditrias, unem-se para representar o surgimento do amor de
forma inesperada. A primeira a atrao marcada pela ereo, a segunda marcada pela
violncia (sem desgrudar os olhos / do monitor o segurana / pensa que aquela ali /
bem merecia / umas porradas. esse pensamento o eu-lrico reponde: s o amor
querendo nascer / por vias tortas. Atravs desse ser contraditrio temos um reflexo do
eu contemporneo, marcado pelos contrastes, observando, atravs de um monitor, a vida
rida (mas um dos monitores / transmite continuamente / a imagem parada de um
deserto).
Sobre o inquilino sabe-se ainda menos. , em oposio ao segurana, um
personagem que s se encontra no cenrio do hotel. Se o personagem do banco est
sempre observando os monitores, uma marca do tempo presente, o inquilino, por sua
vez, caracterizado por elementos ligados escrita, como vemos nos versos e lendo
De Lillo, / digo, lendo Modiano, e envia todo o tempo / cartes portais e Gostei
de imediato / do novo inquilino / do seu jeito de / segurar a caneta.
O ltimo e mais presente personagem do longo poema o prprio narrador/eu-
lrico que passeia por entre todos esses cenrios, no s observando mais participando
dos mesmos. Conversa com a jovem da multido (me fala de uma / portuguesa / que
conheceu / no 1 de maio), orienta o inquilino no hotel (para gua quente / basta girar
este / disco de cores at / o rubro / o incandescente), interage com o imigrante (e
perguntamos / ao imigrante / que batia fotos / qual o nome de sua filha). Sua presena
serve, tambm, de unio entre os diversos fragmentos, pelos quais passeia fazendo,
mesmo que implicitamente, uma reflexo sobre essa aparente desconexo do mundo,
que se revela como essa imagens de pura desconexo, como projeo de slides.
interessante ressaltar que esse eu-lrico se projeta para dentro do prprio
poema como uma voz consonante a sua prpria, representado pelo personagem
nomeado o lrico. Tal personagem aparece nas consideraes sobre o amor entre o
segurana e a jovem manifestante e numa estrofe de reflexo aparentemente desconexa:
A economia j previa / o desabar da chuva / no interstcio de algum / clculo
diferencial, uma possvel crtica a esse fazer potico enigmtico do qual tampouco
ele foge.
Mantendo a metfora at ento trabalhada aqui, se consideramos essa paisagen-
cenrio e esses personagens fugazes, que surgem como marionetes na superfcie do
texto vivos apenas enquanto lidos, no podemos deixar de considerar, para esse teatro
de palavras outros elementos cnicos que auxiliam a construo do espetculo.
O primeiro a levar em conta a eficaz troca de planos. Conforme as observaes
feitas sobre os cenrios da pea, sabemos que, no poema, se efetua uma importante
relao com os personagens e temas atravs desses mesmos cenrios. Porm, esses
cenrios, em vez de serem dispostos de forma esquemtica, seja em sequncia ou
alternncia, so mostrados sem uma aparente coeso, criando uma verdadeira
sobreposio desses limites.
Dessa forma, a temporalidade do poema acaba, tambm, apresentando essa
convivncia de passado e presente, memria e ao, num nico momento potico, onde
a fuga dessa paisagem criada parece convergir em espiral para um mesmo ponto.
Em primeira instncia, o que teria de comum o inquilino sentado em sua
lavadora lendo um livro de DeLillo, digo, Modiano, um segurana de banco observando
a multido pelos monitores e um imigrante que fotografa sua filha? A alternncia
desregrada, puxando o leitor de um lado a outro desses ncleos, acaba por exigir que ele
os uma em uma unidade sem coeso.
Tal efeito nos mostra um reflexo vivo de um mundo moderno que j no possui
tempo para apreciar cenrios estticos e ordenados. A vida urbana, no choque
apresentado por Walter Benjamim, nos expe a uma sobrecarga de informaes e
estamos sempre nesse inconsciente estado paranoico de alerta, vendo ao mesmo tempo,
o banco, a manifestante, o imigrante e sua filha enquanto lembramos do hotel, do
inquilino, das cartas. Assim como o homem se desfaz em multido na cidade, a
paisagem, em fuga, se desfaz em um quadro de tintas misturadas, em a individualidade
da experincia d lugar a uma vivncia de sobre-exposio.
. Os temas do poema, da mesma forma, avultam nessa convergncia centrpeta, na
qual surgem e desaparecem sem que, de fato, tragam reflexes. Mais aparecem como
presena incompleta, como fragmentos de ideia, de preocupao. Amor, o primeiro dos
temas lricos, est presente na relao no existente entre o segurana e a manifestante.
O eu-lrico tambm apresenta seus flertes com a moa, que passou com ele uma tima
tarde no hotel. O imigrante e sua filha tem um terno momento de amor familiar. A
morte, outro tema chave, d, tambm, seus nuances atravs da ordem recebida pelo
segurana e na envenenadora tatuada trecho, por sinal, retirado de uma passagem de
Sinais: razes de um paradigma indicirio de Carlo Ginzburg. Dessa forma, o poema
no gira em torno de um grande tema ou ideia, mas traz para seu texto alguns deles, que
se apresentam de forma fugaz nessa paisagem que corre, outdoors poticos.
A observao de todos esses elementos do poema nos auxilia a delinear uma
viso geral que tende a algumas caractersticas de maior relevo. Podemos dizer,
primeiramente, que o poema Emblemas trata das questes da sociedade ps-moderna,
j que apresenta alguns elementos bem emblemticos desta, como a multido (a
multido grita / em frente ao banco), os fragmentos de cena, a contradio do amor, a
quebra do lirismo, dissoluo do tempo linear, etc. Mas no podemos deixar de ver nele,
tambm, um lado poltico, que retrata a violncia poltica, num ato contra o amor (Uma
ordem macabra chega / pelos fones de ouvido / do segurana / o lrico pensa / o amor
no pode morrer / o amor est seriamente / ameaado), a crtica da imigrao (um
imigrante tomando / uma cerveja sentado / no meio-fio pode ser / um grande passo).
Todo esse espao, seja visto atravs de uma ou outra perspectiva, no deixa de
apresentar uma paisagem da vida urbana, metropolitana, onde a forma do texto encontra
seu correspondente na prpria vivncia da cidade, truncada, corrida. Essa paisagem,
porm, fugaz, fugidia, j que, em constante mudana, nunca pode ser totalmente
apreendida, plasmada. Assim, Carlito Azevedo nos apresenta em emblemas, o que, de
fato, fez em diversos poemas anteriores, uma paisagem em fuga, na qual eu-lrico e
leitor parecem correr atrs de sentidos que nunca alcanaro do todo, no deixando,
porm, de viver a experincia dessa perseguio.
Atravs dessa ideia de passagens em fuga, surge uma esttica em sintonia com o
tempo-espao ps-moderno, uma expanso da passante baudelairiana, relao que o
prprio Carlito Azevedo faz. Nesse ambiente, as referncias se perdem, so fugidias ao
prprio poeta, que meio ao turbilho de informao de uma cidade, no pode mais ser o
flaneur da metrpole, pois no acompanha seu ritmo nem tem fora para livrar-se de sua
correnteza. ento, tal como um nufrago, levado a deriva, colhendo nesse rumo sem
rumo fragmentos do que pode ser a grande cidade - e seu cidado - no mundo
contemporneo.
Referncias bibliogrficas
AZEVEDO, C. Monodrama. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
COSTA LIMA, L. Intervenes. So Paulo, Edusp, 2002.
SCRAMIN, S. Carlito Azevedo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
SSSEKIND, F. A imagem em estaes observaes sobre Margens, de Carlito
Azevedo. In: ALVES, I.; PEDROSA, C. (Org.). Subjetividades em devir: estudos de
poesia moderna e contempornea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p.63-81.