Vagner Camilo Uma Poetica Da Indecisao Brejo Das Almas
Vagner Camilo Uma Poetica Da Indecisao Brejo Das Almas
Vagner Camilo Uma Poetica Da Indecisao Brejo Das Almas
B R E J O D A S A L M A S
Vagner Camilo
RESUMO
O segundo livro de Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas, de 1934, geralmente
apontado pela crtica como prolongamento da potica subjacente ao seu livro de estria,
Alguma poesia (1930). Neste artigo, porm, o autor procura demonstrar que aquela obra
representa um momento distinto, marcado pelo conflito resultante da indeciso do poeta em
face das exigncias de alinhamento poltico-ideolgico da intelectualidade nos anos 1930.
Palavras-chave: literatura brasileira; Carlos Drummond de Andrade; Brejo das almas.
SUMMARY
Carlos Drummond de Andrade's second book, Brejo das almas, published in 1934, is usually
considered by critics to be an extension of the poetry presented in his first work, Alguma poesia
(1930). In this article, however, the author seeks to demonstrate that the second work represen-
ted a quite different moment, involving the poet's difficulty to decide what political or ideological
camp he should turn to, given the pressures facing Brazilian intellectuals in the 1930s.
Keywords: Brazilian literature; Carlos Drummond de Andrade; Brejo das almas.
Neste brejo das almas/ o que havia de inquieto/ por sob as guas calmas!
Carlos Drummond de Andrade, "No exemplar de um velho livro"
I
A crtica tem em geral afinado a potica de Brejo das almas pelo
mesmo diapaso de Alguma poesia. Isso porque, segundo Antonio Candi-
do, ambos "so construdos em torno de um certo reconhecimento do fato",
como se o poeta se restringisse ao puro registro do sentimento e dos
acontecimentos, do "espetculo material e espiritual do mundo", o que
garantiria "a validade do fato como objeto potico bastante em si, nivelando
fraternalmente o Eu e o mundo como assuntos de poesia"
1
. A meu ver,
muito embora possa dar continuidade ao emprego de certos expedientes
recorrentes no livro de estria, Brejo das almas representa um momento
JULHO DE 2000 37
(1) Candido, Antonio. "Inquie-
tudes na poesia de Drummond".
In: Vrios escritos. So Paulo:
Duas Cidades, 1995, p. 111.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
distinto, j pelas particularidades ressaltadas pelo prprio poeta em sua
"Autobiografia para uma revista":
Meu primeiro livro, Alguma poesia (1930), traduz uma grande
inexperincia do sofrimento e uma deleitao ingnua com o prprio
indivduo. J em Brejo das almas (1934) alguma coisa se comps, se
organizou; o individualismo ser mais exacerbado, mas h tambm
uma conscincia crescente de sua precariedade e uma desaprovao
tcita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor
2
.
Tanto o despontar da conscincia do precrio, que seria o trao
marcante da sua "lrica social" dos anos 1940, quanto o conflito entre a falta
de conduta espiritual e a desaprovao tcita so aspectos mais que
suficientes, penso eu, para instaurar uma viso problemtica em face da
existncia, minando por dentro a suposta atitude distanciada e o nivela-
mento fraternal referidos por Candido.
Contriburam sobremodo para o deflagrar dessa viso certas exign-
cias de contexto, devidamente assinaladas por John Gledson, que foi at
agora quem ofereceu a melhor interpretao do livro de 1934, definindo-
o como "produto de uma crise" de natureza "ideolgica". De acordo com
o crtico,
a crise de 30 teve uma repercusso profunda na poca, e podemos
dizer que de certa forma Brejo das almas foi escrito "em face dos
ltimos acontecimentos", embora seja muito perigoso ligar de uma
maneira excessivamente estreita os acontecimentos e os poemas
3
.
A natureza da crise envolve mais diretamente a presso experimenta-
da pelo poeta em virtude de sua indeciso ideolgica, justamente num
momento em que se verificava a insero poltica cada vez maior de nomes
representativos do grupo modernista. A prova mais significativa disso,
Gledson encontrar numa entrevista de 26/05/1931 concedida ao jornal
A Ptria, na qual Drummond, sem se furtar ao peso da responsabilidade
que lhe cabia, lanava um ataque virulento e pessimista sua gerao, que,
j na casa dos 30, nada havia construdo de permanente. Drummond reco-
nhecia ainda que as nicas solues possveis encontravam-se fora da
literatura; melhor dizendo, na religio, na poltica e na psicanlise:
Espiritualmente, a minha gerao est diante de trs rumos, ou de
trs solues Deus, Freud e o comunismo. A bem dizer, os rumos
so dois apenas: uma ao catlica, fascista e organizada em
38 NOVOS ESTUDOS N. 57
(2) Drummond de Andrade,
Carlos. "Autobiografia para
uma revista". Confisses de
Minas. Poesia e prosa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1992,
p. 1.344.
(3) Gledson, John. Poesia e
potica em Carlos Drummond
de Andrade. So Paulo: Duas
Cidades, 1982, pp. 89-90.
VAGNER CAMILO
"Defesa do Ocidente" de um lado; do outro lado o paraso moscovita,
com a sua terrvel e por isso mesmo envolvente seduo. Que um
apelo a tudo quanto subsiste em ns de romntico e descontrolado.
Mas entre as duas posies, que impem duas disciplinas, h lugar
para a simples investigao cientfica, que nos fornece a chave, e por
assim dizer o perdo dos nossos erros mais ntimos e das nossas mais
dolorosas perplexidades. "Vamos todos para a Pasrgada" o grito
que o crtico Mrio de Andrade ouviu de quase todas as nossas
bocas, e creio que ouviu bem... Aqueles a quem o tomismo no
consola e o plano qinqenal no interessa, esses se voltam para a
libertao do instinto, o supra-realismo e a explicao dos sonhos,
no roteiro da psicanlise. Ao ceticismo, disponibilidade, no-
opo sucede nova molstia do esprito essa "ida a Pasrgada",
paraso freudiano, onde o poeta Manuel Bandeira afirma que tem
"a mulher que eu quero, na cama que escolherei", alm de muitas
outras utilidades que correspondem satisfao de muitos outros
impulsos seqestrados. Quanto minha atitude pessoal diante
desses trs rumos possveis, creio que no interessa aos leitores de
A Ptria
4
.
Para Gledson, embora Drummond afirme o pouco ou nenhum
interesse que possa ter sua opinio pessoal, ele acaba por deixar explcita
sua posio, ou seja, sua no-pactuao com qualquer das trs solues.
"Mesmo os seus comentrios sobre a psicanlise e o surrealismo", diz
Gledson, lembrando notadamente as referncias primeira contidas nos
poemas de Brejo das almas, "no so os de um aderente. Interessa-se por
eles como sintomas, e no como solues"
5
. Ainda assim, importa assinalar
que, embora no sendo uma soluo para a crise ideolgica, no
pequeno o interesse de Drummond, poca, pela psicanlise, fato
comprovado no s pelas aluses contidas em Brejo das almas, mas ainda
por uma carta a Tristo de Athayde de 01/04/1931, na qual o poeta recorre
de modo significativo terminologia freudiana para justificar os traumas e
conflitos que marcaram sua trajetria de vida desde a infncia
6
. Chega
mesmo a colocar seus problemas "freudianos" como ele prprio diz
acima da discusso sobre as diretrizes ideolgicas do tempo, o que no
deixa de ser contraditrio se consideramos que justamente essa a atitude
condenada na entrevista citada, alis concedida praticamente um ms aps
a carta! Veremos porm que essa contradio no deixa de ser ainda um
sintoma da indeciso marcante no livro de 1934, levando o poeta a oscilar
entre os conflitos pessoais (sobretudo os que dizem respeito frustrao
amorosa) e a condenao dessa preocupao mais individualista (para a
qual, entretanto, no encontra soluo) em face das exigncias prementes
de posicionamento e participao social.
Volto ainda ao ensaio de Gledson. Dentre as referncias psicanalticas
contidas em Brejo das almas, o crtico destaca o "emprego inslito" da
JULHO DE 2000 39
(4) Apud ibidem, pp. 90-91.
Uma cpia da entrevista inte-
gral encontra-se no acervo de
Drummond no Arquivo-Museu
de Literatura Brasileira da Fun-
dao Casa de Rui Barbosa
(RJ).
(5) Ibidem, p. 91.
(6) A "carta-desabafo" foi re-
centemente publicada por Au-
gusto Massi, a quem agradeo
a cpia. Ver: "Manuscrito do
poeta Carlos Drummond de
Andrade". Cultura Vozes, n 4,
jul.-ago. 1994, pp. 75-82.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
palavra "seqestro" (presente em um dos poemas e tambm na entrevista),
tomada no sentido que lhe dava Mrio de Andrade, como sinnimo de
"recalque" ou "sublimao", muito embora, segundo o crtico, no se
perceba claramente o que foi submetido a tal processo e o porqu. "Per-
cebemos as foras, mas no compreendemos a sua razo de ser"
7
. Em vrios
poemas do livro Gledson defronta-se com essa mesma dificuldade, pois
neles verifica que "h solues falsas", cuja verdadeira causa no se pode
entender, "embora haja a sugesto de algo mais fundamental", a exemplo
do que ocorre em "Convite triste", em que, por trs do desejo de xingar a
mulher, "o corpo e tudo que dele/ e que nunca ser alma", h a insinuao
de que "tudo uma reao a uma vida sem transcendncia possvel".
Reao essa que em outros poemas se manifesta ainda sob a forma de
convite ao desregramento ou de apelo pornogrfico, entre outras. Essa
viso de um mundo sem transcendncia parece, de certo modo, definir a
tnica do livro, como sugere reiteradamente Gledson, que, numa sntese
lapidar, define Brejo das almas como "um livro sobre o fracasso, no um
livro fracassado".
Partindo do mesmo pressuposto do crtico ingls, de que os confli-
tos encenados no livro de 1934 seriam, em boa medida
8
, decorrncia da
indeciso em face das exigncias de participao e insero polticas que
marcaram a intelectualidade nos anos 1930, proponho estreitar mais os
vnculos entre os poemas e os sucessos polticos do momento, que me
parecem ser determinantes daquele "algo mais fundamental" que ele diz
perceber no livro, mas sem poder defini-lo com clareza. No ignoro, com
isso, a advertncia do prprio Gledson sobre o perigo dessa ligao
excessivamente estreita, mas sei tambm que a exigncia de cautela, se
observada em demasia, pode redundar em limitao interpretao da
obra e, conseqentemente, ao conhecimento de seu contedo de verda-
de. A superao desse impasse talvez esteja em buscar, sim, esse estrei-
tamento, mas sem recair em associaes mecnicas, em respeito s me-
diaes prprias arte, que sempre, segundo a grande lio de Adorno,
"anttese social da sociedade", a um s tempo autnoma e fait social
9
.
Com base nesse carter socialmente mediado pode-se avanar na vincu-
lao mais ntima, e sempre dialtica, a que se furta Gledson, de modo a
evidenciar como o conflito resultante da irresoluo do poeta em face da
politizao crescente da intelectualidade nos anos 1930 comparece no
como dado exterior, mas como elemento de fatura da obra. o que se
poder verificar em alguns dos poemas centrais da coletnea de 1934
analisados aqui, que se ocupam da potica e da temtica recorrente da
frustrao do desejo amoroso. Por mais pessoal que seja, to aparente-
mente alheia a toda sorte de injunes de contexto, tal temtica no deixa
de reverberar muito do conflito vivido pelo poeta com sua indeciso
quanto s exigncias e solicitaes do momento. Mas antes de dar incio
s anlises convm proceder a um maior detalhamento do contexto de
politizao da intelligentsia a que se reporta o crtico de maneira um tanto
sumria.
40 NOVOS ESTUDOS N.57
(7) Gledson, op. cit., p. 94.
(8) Digo "em boa medida" por
estar ciente de que o conflito
decorrente da indeciso ideo-
lgica pode ser apenas uma
das razes (de todo modo, a
meu ver, das mais determinan-
tes) da crise existencial que
parece ter vitimado o poeta
poca, levando-o mesmo a
considerar a hiptese de suic-
dio. De forma que, como bem
me observou Alcides Villaa, o
"Carlos, no se mate", de um
dos poemas de Brejo das al-
mas, pode ser mais do que
mera retrica. A meno crise
e hiptese de suicdio feita
pelo poeta na citada carta a
Tristo de Athayde, mas no se
pode esquecer que a "confis-
so" de Drummond ao lder da
inteligncia catlica (que h
pouco havia feito sua "opo",
num conhecido "adeus dispo-
nibilidade") vinha em resposta
indagao deste a respeito da
"atitude pessoal [do poeta) em
face dos caminhos propostos
gente de hoje", o que remete
imediatamente ao problema da
opo ideolgica.
(9) Adorno, Theodor W. Teo-
ria esttica. Lisboa: Martins
Fontes, 1988.
VAGNER CAMILO
I I
Retorno, assim, s indicaes fornecidas pelo prprio Drummond na
mencionada entrevista, em que fala dos trs rumos disposio de sua
gerao e acaba por se restringir a dois apenas, que implicam uma tomada
de posio efetiva: de um lado, mais especificamente direita, o fascismo
alinhado ao catlica, e de outro o comunismo, acenando com um misto
curioso de seduo e terror, o que faz pensar se a indeciso do poeta no
se resumiria, antes, a uma dvida mais diretamente ligada opo de
esquerda, dado o modo como ela o atrai e, ao mesmo tempo, o assusta.
Essa polarizao ideolgica por demais familiar e dela tratou, entre
outros, Antonio Candido em "A Revoluo de 30 e a cultura", em que
aponta a "correlao nova entre, de um lado, o intelectual e o artista; de
outro, a sociedade e o Estado devido s novas condies econmico-
sociais" surgidas com a revoluo, e "devido tambm surpreendente
tomada de conscincia ideolgica de intelectuais e artistas, numa radicali-
zao que antes era quase inexistente". Sobre essa conscientizao surpre-
endente, esclarece que ela decorria no s
do movimento revolucionrio e das suas causas, mas tambm do que
acontecia mais ou menos no mesmo sentido na Europa e nos Estados
Unidos [...]. Isto, que antes era excepcional no Brasil, se generalizou
naquela altura, a ponto de haver polarizao dos intelectuais nos
casos mais definidos e explcitos, a saber, os que optavam pelo
comunismo ou o fascismo. Mesmo quando no ocorria esta definio
extrema, e mesmo quando os intelectuais no tinham conscincia
clara dos matizes ideolgicos, houve penetrao difusa das preocupa-
es sociais e religiosas nos textos [...]
10
.
Assinalando uma dupla motivao, Cndido busca evidenciar que o
alinhamento ideolgico da nossa inteligncia estava inscrito numa tendn-
cia internacional, sem deixar, com isso, de contar com a emulao direta
dos acontecimentos locais. Em contexto europeu a questo do engajamen-
to dos intelectuais j havia se verificado antes, mas, como nota Lottman,
sem talvez assumir a amplitude e, sobretudo, o internacionalismo das
preocupaes
11
que os mobilizaram a partir de 1930, diante da iminncia de
uma nova guerra, da escala ascensional do nazi-fascismo, das discusses
em torno da experincia sovitica e da Guerra Civil Espanhola. A essa
configurao assustadora no panorama internacional que, dadas as
implicaes mundiais, j era suficiente para exigir da inteligncia brasileira
um posicionamento somavam-se as transformaes internas advindas
com a Revoluo de 1930, reforando a necessidade da opo ideolgica,
que em geral se moldava de acordo com a inspirao dos principais gurus
JULHO DE 2000 41
(10) Candido, Antonio. "A Re-
voluo de 30 e a cultura". In:
A educao pela noite e outros
ensaios. So Paulo: tica, 1987,
p. 188.
(11) Lottman, Herbert R. A Rive
Gauche: escritores, artistas e
polticos em Paris (1930-
1950), Rio de Janeiro: Guana-
bara, 1987, p. 81.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
europeus do tempo. Como depe o prprio Candido em entrevista mais
recente, "[s]abamos, por exemplo, que Charles Maurras era de direita e
Andr Malraux de esquerda, e optvamos freqentemente por influncia
deles, mas estimulados pelos acontecimentos locais posteriores a 30"
12
.
Assim, sob o influxo europeu, mas sem deixar de responder s
solicitaes locais, foram se constituindo os plos em confronto poltico-
ideolgico na arena intelectual brasileira. Pela direita, ainda nos anos 1920,
a Igreja Catlica empenhava-se numa estratgia de "rearmamento"
13
insti-
tucional, criando uma srie de rgos paralelos hierarquia eclesistica e
gerados por intelectuais leigos, a exemplo daqueles que, sob influncia do
nacionalismo integral de Maurras veiculado pela Action Franaise, reuni-r
am-se em torno do Centro Dom Vital e da revista A Ordem
14
. Destaque-se
ainda, no campo especificamente literrio, o grupo de escritores catlicos
ligados revista Festa, cultivando uma esttica espiritualista que, segundo
eles, estaria na raiz de uma "tradio brasileira autntica"
15
. A ampliao dos
quadros institucionais da Igreja no era apenas produto das diretrizes do
Vaticano, ento preocupado em deter o florescimento dos movimentos
operrios de esquerda na Europa. Era tambm, como afirma Srgio Miceli,
fruto da "tomada de conscincia por parte do episcopado brasileiro da crise
com que se defrontavam os grupos oligrquicos". Numa visvel poltica de
acomodao, o apoio dispensado pelas autoridades eclesisticas ao poder
oligrquico na dcada de 1920, "com vistas a recuperar o status de scios
privilegiados do poder poltico [...] desfrutado at a queda do Imprio",
passou ento a ser dirigido ao regime Vargas, "antes e aps o golpe de 37,
em troca da cauo oficial criao de novas instituies no campo da
educao e da cultura"
16
.
O alinhamento internacional, mencionado por Drummond, da Ao
Catlica (implantada aqui em 1935 e moldada segundo os padres italianos)
ao fascismo redundaria, entre ns, no apoio explcito dos catlicos ao
integralismo de Plnio Salgado e seguidores, que consolidava a verso verde-
amarela do iderio fascistide, tendo justamente no substrato cristo a marca
da aclimatao local
17
. Ainda aqui, embora a inspirao fosse europia, com
os integralistas ansiando pela criao de um Estado Novo forte, a exemplo
do italiano, buscavam com isso reclamar uma participao mais efetiva no
corpo de regime.
No mbito da esquerda, os anos 1930 foram marcados pelo cresci-
mento do Partido Comunista, criado em 1922, pela organizao e xito da
Aliana Nacional Libertadora e, como diz Cndido, "por certo esprito
genrico de radicalismo que provocou as represses posteriores ao levante
de 1935 e serviu como uma das justificativas do golpe de 1937". Tambm
aqui, tal como l fora, ganharia especial relevo a discusso em torno da
experincia sovitica. Em virtude desse interesse "as livrarias pululavam de
livros a respeito", alguns de grande xito como o famoso livro de John
Reed, alm de "tradues de narradores engajados na esquerda, como Boris
Pilniak, [...] Upton Sinclair, Jack London". Alm das tradues, surgem as
primeiras obras brasileiras de orientao marxista, a exemplo do clssico de
42 NOVOS ESTUDOS N. 57
(12) "Antonio Candido: mar-
xismo e militncia" (entrevista
a Jos Pedro Renzi). praga.
So Paulo: Boitempo, n 1,
1996, p. 5.
(13) Cf. Miceli, Srgio. Intelec-
tuais e classes dirigentes no
Brasil (1920-1945). So Pau-
lo: Difel, 1979, pp. 51ss.
(14) Cf. Lippi de Oliveira, L-
cia e outros. Estado Novo: ide-
ologia e poder. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982, p. 7.
(15) Cf. Caccese, Neusa P. Fes-
ta: contribuio para o estudo
do Modernismo. So Paulo:
IEB, 1971.
(16) Miceli, op. cit., pp. 51 e
55.
(17) Cf. Candido, Antonio.
"Integralismo - fascismo?", In:
Teresina etc. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1980, p. 130.
VAGNER CAMILO
Caio Prado Jr., Evoluo poltica do Brasil, que veio a lume no mesmo ano
de Brejo das almas. E "assim como o espiritualismo atingiu largos setores
no religiosos", lembra Candido, "o marxismo repercutiu em ensastas,
estudiosos, ficcionistas que no eram socialistas nem comunistas, mas se
impregnaram da atmosfera 'social' do tempo"
18
. Essa impregnao iria
evidenciar-se, no plano literrio, com o romance dos anos 1930 no
Nordeste, ou romance proletrio, cujos temas diletos evidenciavam, de
imediato, essa "conscincia social" do tempo, antes mesmo de o Congresso
de Karkov instituir em 1934 o "realismo socialista" como padro.
Tal polarizao ideolgica inclua, como decorrncia natural, um
momento de questionamento e auto-anlise da prpria intelectualidade
sobre sua posio e papel social em um contexto de "desaristocratizao" da
cultura. ainda Antonio Candido quem assinala, e mais de uma vez, nesse
sentido, que uma das conseqncias da Revoluo de 1930 sobre a cultura
foi o conceito de intelectual e artista como opositor, ou seja, que seu
lugar era no lado oposto da ordem estabelecida; e que faz parte de sua
natureza adotar uma posio crtica em face dos regimes autoritrios
e da mentalidade conservadora
19
.
Esse conceito, todavia, ganharia entre ns uma feio muito freqentemen-
te paradoxal, em virtude de suas reais condies de insero social, s quais
retornarei adiante. Por ora importa assinalar que, ainda na definio desse
papel, o influxo europeu teve, decerto, sua contraparte. Especialmente na
Frana, de onde continuava a proceder o nosso modelo de civilizao
humanstica, a discusso do papel da intelectualidade se processou mais
cedo, desde que o caso Dreyfus obrigou-a a assumir uma posio, tendo
talvez em Zola o grande prottipo. Antes ainda da I Guerra, com Maurras,
a intelectualidade tambm comeara a se pronunciar politicamente. Mas foi
em fins dos anos 1920 que a problemtica da insero poltica do intelectual
ganhou especial alento, com a publicao, em 1927, do famoso estudo de
Julien Benda, Le trahison des clercs, denunciando com veemncia o desvio
de rota em que havia incorrido a intelectualidade com Barres, Maurras e
"outros doutores" da Action Franaise. Benda estendia sua denncia para
alm do domnio francs, a outros tantos chefs spirituels do tempo, como
D'Annunzio na Itlia, Kipling na Inglaterra ou William James nos Estados
Unidos, que ao se engajarem em lutas sociais concretas, tornando-se
partidrios de faces polticas do tempo ou abraando as causas nacionais,
estariam "traindo" o ofcio nico dos clercs
20
, que sempre foi o de zelar
pelos valores eternos: Liberdade, Justia, Razo...
A ressonncia da polmica causada pela obra de Benda pode ser
flagrada em estudos publicados ao longo dos decnios seguintes, que so
ainda hoje referncia obrigatria para a discusso do engajament e do
papel social do intelectual, como o clssico estudo de Sartre, Qu'est-ce que
JULHO DE 2000 43
(18) Candido, "A Revoluo
de 30 e a cultura", loc. cit., p.
189.
(19) Ibidem.
(20) O termo "clerc " empre-
gado por Benda para desig-
nar, segundo suas prprias pa-
lavras, "todos aqueles cuja ati-
vidade, por essncia, no per-
segue fins prticos, mas que
buscam seu prazer no exerc-
cio da arte ou da cincia, ou na
especulao metafsica, numa
palavra, na posse de um bem
no temporal, como a dizer,
de alguma maneira: 'Meu rei-
no no deste mundo'". Ben-
da, Julien. La trahison des
clercs. Paris: Grasset, 1975, p.
131 (ao citar, traduzi).
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
la littrature? A ele tambm se reportava Benjamin que resenhou La
trahison des clercs em alguns ensaios fundamentais dos anos 1930 que
nos colocam no centro das discusses do perodo, como o caso, entre
outros, de "A atual posio do escritor francs" (1932), em que o filsofo
alemo promove a triagem de muitos dos principais escritores em evidncia
no parlamento das letras francesas, de acordo com seus posicionamentos
polticos. Lembre-se ainda, nos Estados Unidos, Archibald MacLeish, que
retomaria e combateria vivamente a tese de Benda em Os irresponsveis,
tomando a defesa do intelectual militante
21
.
No Brasil, a repercusso da obra de Benda parece ter ocorrido logo
em seguida sua publicao, no calor da polmica desencadeada nos
meios europeus, pois em dois artigos estampados no Dirio Nacional, em
1932, Mrio de Andrade refere-se, como fato j ocorrido
22
, a certa "como-
o" (de resto inconseqente) causada pelo livro entre os nossos clercs. A
publicao desses artigos j por si s um bom indcio da importncia que
a questo do papel do intelectual assumia poca. No primeiro deles,
Mrio lanava um severo ataque pasmaceira em que vivia a inteligncia
nacional, que desde o Imprio continuava a "tocar viola de papo pro ar"
(segundo a expresso tomada de emprstimo a Olegrio Mariano), perma-
necendo alheia e omissa aos "fenmenos tamanhamente infamantes" que
ocorriam no resto do mundo. Denunciava ainda a leviandade e o oportu-
nismo de alguns que se faziam passar por intelectuais de esquerda,
blasonando-se
de socialistas, de comunistas j, porque isso est na moda, e tambm
porque uma forma disfarada de ambio. Mas tudo no passa de
um deslavado namoro, dum medinho que o comunismo venha e eles
sofram. tudo apenas um toque de viola
23
.
No segundo artigo, Mrio contrapunha ao "paraso da inconscincia"
nos trpicos a mobilizao e os riscos corridos pela intelectualidade euro-
pia e norte-americana diante da ofensiva burguesa sob a forma de repre-
slias liberdade de exposio e denncias, como bem ilustravam poca
os processos e escndalos envolvendo os nomes de Aragon, Gide e Roman
Rolland na Frana; Joyce tendo de explicar seu Ulisses na Inglaterra; Dreiser e
John dos Passos promovendo inquritos in loco e denunciando o massacre
dos mineiros grevistas em Kentucky. "So esses fatos edificantes dos nossos
dias", conclui Mrio, "que demonstram muito bem que os excessos duma
Rssia encontram sua identidade nas ptrias mais ciosas do seu liberalismo
burgus"
24
.
Essa contraposio entre a prxis poltica do europeu (ou do norte-
americano) e a inconscincia do intelectual brasileiro reforada por Mrio
quanto ao modo como se deu a recepo de La trahison des clercs por um
e outro: enquanto o primeiro, acusado por Benda, tornou-se ainda mais
44 NOVOS ESTUDOS N. 57
(21) O contraponto entre a
viso de Benda e a de Mac-
Leish sobre o papel do intelec-
tual ganharia certa difuso en-
tre ns nas dcadas de 1930 e
1940, como se v no depoi-
mento de Eduardo Frieiro a
Edgard Cavalheiro (Testamen-
to de uma gerao. Porto Ale-
gre: Globo, 1944, pp. 122ss.) e
no ensaio de lvaro Lins a
respeito do jovens de Clima
("Sinais da nova gerao". Cli-
ma, n 3, 1941).
(22) O prprio Drummond
dar um exemplo do quanto
eram correntes as idias de
Benda nos anos 1930, a ponto
de falar naturalmente em trai-
o do intelectual, sem qual-
quer indicao expressa, num
ensaio de 1938 dedicado tra-
jetria de Capanema. O texto
em questo ("Experincia de
um intelectual no poder") per-
maneceu indito e os originais
encontram-se no Arquivo Ca-
panema (CPDOC/FGV). Dele
d notcia Simon Schwartzman
(que parece no ter atentado
muito para o dilogo implcito
com Benda, assinalando suas
dvidas com relao ao senti-
do com que Drummond em-
prega o termo "traio") em
"O intelectual e o poder: a
carreira poltica de Gustavo
Capanema". In: A Revoluo
de 30. Seminrios internacio-
nais. Braslia: Editora da UnB,
1983.
(23) Andrade, Mrio de. "Inte-
lectual I". In: Taxi e crni-
cas no Dirio Nacional (org.
Tel P. A. Lopez). So Paulo:
Duas Cidades/Secretaria da
Cultura, Cincia e Tecnologia,
1976, pp. 515-516.
(24) Andrade, Mrio de. "Inte-
lectual II". In: Taxi..., loc.
cit., pp. 519-520.
VAGNER CAMILO
consciente e conseqente no seu papel de traidor, o segundo parece ter
encontrado na tese do verdadeiro papel do clerc como defensor dos valores
universais e abstratos, portanto alheio s lutas sociais concretas, um reforo
para o seu total absentesmo, tornando-se "ainda mais gratuito, mais tro-
vador da arte pela arte, ou do pensamento pelo pensamento". Diante das
duas posturas, Mrio, obviamente, toma o partido da traio conseqente.
imagem do traidor, prope a do intelectual como prottipo do out-law,
"um homem revoltado e um revolucionrio" que, sem ignorar as grandes
verdades clamadas por Benda, dever sempre se pr a servio das verdades
locais, episdicas, temporrias.
Ora, era justamente em prol de uma dessas verdades temporrias que o
nosso poeta itabirano no conseguia se definir, assumindo uma posio
tanto mais incmoda e conflituosa quando se considera que a chamada para
a ao partia, com tamanha radicalidade, daquele seu correspondente
contumaz da Lopes Chaves, que sempre lhe serviu de mestre e modelo
acabado de integridade e coerncia intelectual a despeito das discordn-
cias que separavam o "indivduo encaramujado" de Minas do "escritor
socializante, antiartstico por deliberao, apesar de fundamentalmente
artista"
25
. Incapacitado por ora de abraar uma dessas verdades temporrias
referidas por Mrio, Drummond tendia a resvalar para aquela zona to
condenvel do apoliticismo, para a qual convergiam os adeptos das in-
curses psicanalticas e surrealistas, que aos olhos do poeta, na entrevista de
A Ptria, no chegava a constituir rumo propriamente dito, justamente
porque lhe faltava o empenho participante ou militante, afigurando-se mais
como escapismo, individualismo alienador. Dito de outro modo, era a opo
de quem permanecia "em cima do muro".
A (no-)opo representada pela psicanlise vinha reeditada em certa
tendncia evasionista diagnosticada por Mrio de Andrade no conhecido
ensaio "A poesia de 30", em que reconhecia no famoso poema de Bandeira
("Vou-me embora pra Pasrgada") a obra-prima desse estado de esprito
generalizado entre os poetas do perodo. Esclarecendo o voumemborismo,
Mrio nota que, "incapazes de achar a soluo, surgiu neles [poetas de 30]
essa vontade amarga de dar de ombros, de no amolar, de partir para uma
farra de libertaes morais e fsicas de toda espcie"
26
vontade essa que,
de fato, reaparece com insistncia em vrios poemas de Brejo das almas,
sob a forma do apelo pornogrfico, do convite ao desregramento, ao porre,
do xingamento, para a qual, conforme vimos, Gledson no conseguiu
encontrar a causa.
Tambm Mrio de Andrade sendo ele prprio um dos poetas a
revelar esse "sintoma" comum no chega a diagnosticar a causa no
ensaio sobre a poesia de 1930. Isso s viria a ocorrer dez anos depois, com
certo benefcio da distncia histrica e dos rumos tomados pela intelec-
tualidade com a implantao do Estado Novo. Assim, na clebre "Elegia de
abril", de 1941, Mrio retorna a esse estado de esprito generalizado,
alinhando-o a certa tendncia verificada na fico do perodo: a freqenta-
o da figura do "fracassado", esse "heri novo", desfibrado, que transitava
JULHO DE 2000 45
(25) Cf. o belo ensaio que
Drummond dedicaria, anos
mais tarde, a Mrio de Andra-
de, focalizando a "deseduca-
o salvadora" dos moos de
Minas promovida pelo amigo
e "professor" da Lopes Chaves
por meio de "suas cartas", ver-
dadeiros "torpedos de ponta-
ria infalvel". Ver Drummond
de Andrade, Carlos. "Suas car-
tas". In: Confisses de Minas...,
loc. cit., pp. 1.345-1.354.
(26) Andrade, Mrio de. "A
poesia de 30". In: Aspectos da
literatura brasileira. So Pau-
lo: Martins, 1974, p. 31.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
nas pginas de Gilberto Amado, Lins do Rego e Graciliano Ramos, entre
muitos outros. Buscando a justificativa para a recorrncia de um "tipo
moral" dessa ordem na fico, Mrio afirma existir
em nossa intelectualidade contempornea a preconscincia, a intui-
o insuspeita de algum crime, de alguma falha enorme, pois que
tanto assim ela se agrada de um heri que s tem como elemento de
atrao a total fragilidade e frouxo conformismo
27
.
Em seguida, trata de estabelecer a ponte entre a recorrncia desse "tipo
moral" e a tendncia generalizada desistncia, correspondente lrica de
1930, encarnada pelo voumemborismo de Bandeira, reconhecendo em
ambas o produto de uma poca de "angstias" e "ferozes mudanas" que
traziam mais gua para o moinho de um j antigo "sentimento de
inferioridade" da inteligncia nacional. Em outra passagem da "Elegia",
Mrio trata de precisar em que consistem tais mudanas e angstias, ao
admoestar severamente os companheiros intelectuais daqueles anos "em
que o Estado se preocupou em exigir do intelectual a sua integrao no
corpo de regime". Lastima, assim, essa "dolorosa sujeio da inteligncia a
toda espcie de imperativos econmicos", vendo em muitos de seus
contemporneos apenas "cmodos voluntrios dos abstencionismos e da
complacncia", quando no da "pouca-vergonha".
No preciso muito esforo para notar que essa sujeio to
severamente condenada a mesma da qual, dcadas mais tarde, trataria de
forma sistemtica o conhecido estudo de Srgio Miceli sobre a cooptao
do intelectual pelo Estado Novo. ela a responsvel, na viso de Mrio,
pela intensificao desse sentimento de inferioridade, que por certo devia
envolver a posio, historicamente conhecida, de dependncia do intelec-
tual brasileiro em relao s elites e ao poder central, seja ao solicitar,
durante o Imprio (notadamente o Segundo Reinado), a mo protetora do
imperador na forma de honrarias, mecenato, patronagem
28
, seja ao sujeitar-
se quele mesmo sistema de "favores" que, como bem demonstrou Roberto
Schwarz, constrangia os homens livres no sistema escravocrata
29
. Ainda
com o advento da Repblica, embora se operasse certa mudana nos
padres do trabalho intelectual, as relaes de dependncia tenderiam a
persistir e um bom exemplo est nos "primeiros intelectuais profissionais"
surgidos poca, os chamados "anatolianos", na expresso feliz de Miceli
30
,
que eram polgrafos obrigados a se ajustar aos gneros importados da
imprensa francesa a fim de satisfazer as demandas da grande imprensa, das
revistas mundanas, dos dirigentes e mandatrios polticos da oligarquia
(sob a forma de crnicas, discursos, elogios etc.), visando assim, por meio
do xito de suas penas, alcanar melhores salrios, sinecuras burocrticas
e favores diversos. Ao lado deles, os que no se sujeitaram a ajustar a pena
ao gosto dos novos-ricos e s solicitaes dos proprietrios de jornais e
46 NOVOS ESTUDOS N. 57
(27) Andrade, Mrio de. "Ele-
gia de abril". In: ibidem, p.
191.
(28) Para um histrico sucinto
da posio do intelectual des-
de o Imprio, remeto a Pcaut,
Daniel. Os intelectuais e a pol-
tica no Brasil: entre o povo e a
nao. So Paulo: tica, 1990
que tem justamente por
objetivo melhor precisar, luz
da trajetria passada, a condi-
o assumida a partir de 1930.
(29) Schwarz, Roberto. Ao ven-
cedor as batatas. So Paulo:
Duas Cidades, 1977.
(30) Miceli, Srgio. Poder, sexo
e letras na Repblica Velha.
So Paulo: Perspectiva, 1977.
VAGNER CAMILO
editoras beneficiados pela expanso do pblico viveram a experincia do
"isolamento", tendo de disputar "a sobrevivncia no concorrido mercado
urbano recm-ativado, e a participao no sistema de hegemonia no espao
pblico da nova repblica"
31
. Era decerto essa trajetria de dependncia
que Mrio via se reatualizar no fenmeno da cooptao do intelectual pelo
Estado Novo apesar da diferena assinalada por Miceli entre o processo
de burocratizao e racionalizao das carreiras provocado pelo nmero
considervel de intelectuais convocados pelo governo getulista e a conces-
so de postos e prebendas aos escribas e favoritos dos chefes polticos
oligrquicos.
I I I
luz do histrico traado, vimos como a questo da opo poltico-
ideolgica repercutia poca entre os intelectuais e artistas brasileiros,
tendo por referncia o quadro internacional e os problemas especficos da
realidade local advindos com a Revoluo de 1930. Vimos tambm, com
Mrio de Andrade, como o conflito decorrente dessa necessidade de
opo e das reais condies de insero social do artista e do intelectual
respondia por certos temas e personagens recorrentes na prosa e na
poesia do perodo, como a figura do fracassado e o voumeborismo a
traduzir um estado de esprito generalizado entre os poetas e partilhado,
segundo Gledson, pelo prprio Drummond em 1934, que o v ao mesmo
tempo como "lamentvel e necessrio". A presente abordagem, todavia,
sustenta hiptese um pouco diversa: em Brejo das almas o impulso eva-
sionista implcito no voumemborismo permanece a meio caminho, no
chegando a bom termo, pois ao mesmo tempo que se verifica em vrios
poemas o desejo de fuga, a busca do desregramento, da "farra de liber-
taes morais e fsicas" aludida por Mrio, h um movimento contrrio
que emperra esse desfrute imaginrio, muito possivelmente um impedi-
mento tico, moral "a desaprovao tcita da falta de conduta espiri-
tual" referida por Drummond em sua "Autobiografia para uma revista".
Isso se torna particularmente notrio na temtica do amor e do desejo
frustrados que avulta em todo o livro e que, na verdade, j havia se mani-
festado em Alguma poesia.
Lembremos aqui que no mesmo ensaio sobre a poesia de 1930, em
que chama a ateno para esse estado de esprito generalizado entre os
poetas, Mrio detectava na poesia de Drummond a presena de "pelo
menos dois" seqestros
que me parecem muito curiosos: o sexual e o que chamarei "da vida
besta". Ao seqestro da vida besta, Carlos Drummond de Andrade
conseguiu sublimar melhor. Ao sexual no; no o transformou lirica-
JULHO DE 2000 47
(31) Sevcenko, Nicolau. Lite-
ratura como misso. So Pau-
lo: Brasiliense, 1983, p. 228.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
mente: preferiu romper adestro contra a preocupao e lutas interio-
res, mentindo e se escondendo
32
.
Por meio dessa atitude diante da frustrao sexual ainda segundo Mrio,
numa das cartas endereadas ao poeta mineiro, na qual retoma a questo
em detalhe , Drummond quis "violentar-se, espcie de masoquismo, dar
largas s suas tendncias sexuais, inebriar-se delas [...]. Ser grosseiro, ser
realista, j que no achava sada delicada ou humorstica pros seus com-
bates interiores"
33
.
Prova de que Drummond no conseguiu "resolver" de fato esse
"seqestro sexual" est na persistncia e na freqncia ainda maior com
que a temtica do desejo frustrado comparece no livro seguinte, em
praticamente metade dos poemas. ainda essa frustrao sexual que
responde, em boa medida, pela presena significativa da imagem da femme
fatale, j uma vez denunciada por Merquior a propsito de "Desdobramen-
to de Adalgisa", depois endossada e identificada por Gledson em outros
momentos do livro, mas sem promover um comentrio mais detido, que
delineasse melhor os contornos dessa figurao feminina, articulando-a
com a problemtica central de Brejo das almas.
Tal figurao no recorre aqui s representaes tradicionais da
literatura e da arte fin-de-sicle, como Herodade, Helena de Tria ou a
clebre "irmandade castradora" representada por Salom, Dalila e Judite
34
.
A exemplo de Keats, Drummond preferiu enriquecer essa galeria de
personagens femininas esboando um retrato todo prprio de sua belle
dame sans merci. Ainda assim, bvio, ela preserva alguns dos atributos
essenciais que definem o tipo, como a funo de chama que atrai e queima,
a inacessibilidade fsica e certo prazer perverso com o sofrimento causado
aos apaixonados. Alm disso, Drummond tende a situar algumas das
mulheres em terras distantes como as Ilhas Fiji ("Oceania"), Peiping ("O
procurador do amor") ou mesmo Ostende ("Registro civil"). Lugares
distantes como esses parecem comportar o mesmo significado que o das
terras exticas onde a literatura e a arte do sculo XIX tendiam a buscar os
grandes exemplos das mulheres sedutoras. Como bem nota Mario Praz,
aliado ao erotismo, esse "exotismo solidamente uma projeo fantstica
de uma carncia sexual". Est visto que essa carncia sexual decorre da
inacessibilidade feminina, projetada ou materializada em termos de distn-
cia espacial, geogrfica. Em outro poema, "Cano para ninar mulher", essa
inacessibilidade fsica, alm de projetada espacialmente em terras distantes,
reiterada pela imagem da mulher adormecida, que no pode ser possuda
fisicamente imagem essa examinada por Mrio de Andrade entre os
nossos poetas romnticos em clssico estudo publicado mesma poca,
que Drummond devia bem conhecer
35
.
De todas as figuraes femininas de Brejo das almas, porm, o retrato
mais acabado da mulher fatal sem dvida Adalgisa, um dos "nomes da
musa" na poesia modernista, como diz Merquior, lembrando o ttulo de um
48 NOVOS ESTUDOS N. 57
(32) Mrio de Andrade, "A
poesia de 30", loc. cit., p. 35.
(33) Carta datada de 01/07/
1930. In: A lio do amigo:
cartas de Mrio de Andrade a
Carlos Drummond de Andra-
de. Rio de Janeiro: Record,
1988, p. 151.
(34) Cf. Praz, Mario. La carne,
la morte e il diavolo nella lette-
ratura romantica. Florena:
Sansoni, 1988, pp. 181-182.
Para uma retomada do tema
numa perspectiva "histrico-
psicanaltica", ver Gay, Peter.
Ternas passiones. Mxico: Fon-
do de Cultura Econmica, s/d.
(35) Refiro-me ao clssico
"Amor e medo" (in: Aspectos
da literatura brasileira, loc.
cit.), em que a imagem da "Bela
Adormecida" examinada
como ndice da impossibilida-
de de posse fsica, s que moti-
vada pelo temor adolescente
do sexo, o que no parece ser
o caso do poeta itabirano.
VAGNER CAMILO
conhecido poema de Jorge de Lima e sugerindo a conexo com a bela
poetisa Adalgisa Nery, que forte impresso deixou em poetas como Murilo
Mendes, Jorge de Lima, Bandeira e Schmidt, a ponto de freqentar-lhes as
obras.
Do poema interessa ressaltar sobretudo a projeo fantstica de
duplificao (e posterior multiplicao) da figura feminina, em ateno ao
puro e simples desejo dos homens, que "preferem duas", como bem ilustra
o exemplo evocado de Salomo, perito nas artes do amor e amante de
muitas mulheres. Assim, para ser mais bem adorada, Adalgisa faz-se
tambm Adaljosa: uma "loura, trmula e blndula", a outra "morena
esfogueteada"; uma "lisa, fria", a outra "quente e spera". Como Adalgisa
vem a esclarecer, no se trata aqui de duas que so uma e sim de uma que
so duas, unidas por um s e "indiviso sexo", alternando-se ao sabor dos
desejos do homem. Figura onipresente e eterna, ela ora uma voz que se
faz ouvir, uma presena impositiva, ameaadora ou mesmo... flica ("serei
cip, lagarto, cobra, eco de grota na tarde"), ora anulao e silncio ("serei
a humilde folha, sombra tmida, silncio entre duas pedras"); ora fonte de
vida ("serei ar de respirao"), ora de morte ("serei tiro de pistola, veneno,
corda..."); ora vtima de traio, ora mulher vingativa. Como se pode notar
por essas alternncias, a musa de Drummond no um exemplo puro da
mulher fatal. Trata-se na verdade de uma figura ambgua, misto de mulher
submissa e femme fatale, que ora se sujeita, ora se impe. De qualquer
modo, permanece sendo uma projeo dos desejos masculinos e, enquanto
tal, revela que a ambigidade decorre deles prprios, os quais parecem
comportar uma dupla componente sadomasoquista, encarnada pelas vrias
figuraes femininas. O prprio poema, todavia, apresenta a razo de ser
dessa ambivalncia, no momento em que Adalgisa justifica seu desdobra-
mento em virtude dos desejos masculinos, desejos de homens "que mal
sabem escolher". Essa indefinio na escolha ainda uma vez reforada na
seguinte estrofe:
Adalgisa e Adaljosa,
parti-me para o vosso amor
que tem tantas direes
e em nenhuma se define
mas em todas se resume.
Ora, essa indeciso ou indefinio tem histrico no contexto de Brejo
das almas, respondendo pela atitude do poeta diante das opes e
exigncias de participao poltica, conforme vimos. "Desdobramento de
Adalgisa" parece, assim, evidenciar certa correlao entre o conflito amo-
roso e o ideolgico, que ir se confirmar mais ainda nos versos de outro
poema a se ocupar da figurao da femme fatale.
JULHO DE 2000 49
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
Registro civil
Ela colhia margaridas
quando eu passei. As margaridas eram
os coraes de seus namorados,
que depois se transformavam em ostras
e ela engolia em grupos de dez.
Os telefones gritavam Dulce,
Rosa, Leonora, Crmen, Beatriz,
porm Dulce havia morrido
e as demais banhavam-se em Ostende
sob um sol neutro.
As cidades perdiam os nomes
que o funcionrio com um pssaro no ombro
ia guardando no livro de versos.
Na ltima delas, Sodoma,
restava uma luz acesa
que o anjo soprou.
E na terra
eu s ouvia o rumor
brando, de ostras que deslizavam
pela garganta implacvel.
Trata-se, a meu ver, de um poema central para a compreenso do
conjunto da coletnea. Na verdade, o interesse reside aqui menos na figu-
rao em si da femme fatale e muito mais nas articulaes que se estabe-
lecem entre as frustraes e obsesses sexuais por ela representadas, a inde-
ciso poltico-ideolgica do eu lrico e sua condio efetiva de insero
social, que parece ser a razo determinante do restante.
J na estrofe de abertura, "Registro civil" ocupa-se da tematizao do
desejo frustrado, projetado na figurao da femme fatale que, qual lobo
em pele de cordeiro, retratada, nos dois primeiros versos, num quadro
buclico e ingnuo, a colher margaridas no momento em que o eu lrico
passa. A meiguice do retrato, porm, desmentida de chofre, quando se
sabe que as flores eram, na verdade, os coraes dos namorados, que em
nova metamorfose surreal so transformados em ostras, engolidas de dez
em dez. Trata-se, literalmente, de uma destruidora (melhor, devoradora) de
coraes, uma mulher perversa que se compraz no gozo sdico com o
sofrimento amoroso impingido aos namorados.
Tambm a segunda estrofe persiste na imagem da mulher fatal, agora
em nmero de cinco, chamadas a telefones que no tocam mas "gritam", de
modo a assinalar a insistncia e o desespero daqueles que as procuram em
vo. Das cinco, porm, uma havia morrido no por acaso Dulce, nome
afinal nada condizente com uma femme fatale , enquanto as demais
"banhavam-se em Ostende, sob um sol neutro". Observei h pouco o
50 NOVOS ESTUDOS N. 57
VAGNER CAMILO
sentido da evocao de lugares distantes como esse, como projeo
espacial da inacessibilidade fsica da mulher amada, mas aqui cabe ainda
um particular em relao a Ostende, principal porto belga conhecido por
seu elegante balnerio e pelo cultivo de lagostas e de ostras (da a
metamorfose dos coraes dos namorados na primeira estrofe). A qualida-
de do sol que a paira encarna, decerto, a sabida neutralidade poltica do
pas, rompida s mesmo fora pela invaso das tropas alems a caminho
de Paris, durante a I Guerra. Ora, a neutralidade poltica do cenrio em que
o eu projeta suas figuras femininas no gratuita. Sendo uma projeo das
carncias do eu lrico, esse um modo de ressaltar a prpria condio do
poeta, que, na impossibilidade de se definir ideologicamente, permanece
centrado em seu individualismo e na sua problemtica amorosa. Drum-
mond acaba assim por atestar de forma cabal a articulao entre obsesso
sexual e neutralidade poltica.
At aqui, portanto, nada de novo; nada alm da confirmao do que se
viu anteriormente. A novidade reside na terceira estrofe, quando o eu lrico,
como que se olhando de fora, oferece um registro objetivo de sua condio
social. Drummond que em 1934 iria ascender de funcionrio estadual a
federal lana mo do recurso de "personificao do eu"
36
, projetando-se
na figura do "funcionrio com um pssaro no ombro" a fazer, mecnico e
burocrtico, o registro a que alude o ttulo cartorialesco do poema. Alm
disso, note-se a referncia s cidades que "perdiam os nomes", dentre as
quais se inclui, decerto, o prspero municpio mineiro que d o nome ao
volume de 1934, conforme esclarece a conhecida epgrafe de abertura,
extrada de um jornal da poca: Brejo das Almas, que em sua prosperidade
cogita da mudana do topnimo por nada parecer significar aos moradores,
tem seu nome resgatado do olvido pelo poeta, que o resguarda no livro de
versos. E se o resgata porque, diferena dos demais homens, reconhece
no nome da cidade algo de mais significativo e sugestivo de sua condio
estanque, preso que est no atoleiro da indeciso e dos desejos frustrados,
portanto sem possibilidade de sublimao, de transcendncia.
Dentre as cidades que perdiam os nomes, a derradeira Sodoma
com toda a fora de seu significado como cidade do sexo e do pecado.
Sendo ela a ltima a apagar a luz e a escurido remete aqui perda da
referencialidade exterior , Drummond busca assinalar o mergulho na
problemtica da sexualidade frustrada, a nica a lhe absorver por inteiro: "E
na terra/ eu s ouvia o rumor/ brando, de ostras que deslizavam/ pela
garganta implacvel".
A total imerso no atoleiro dos desejos frustrados responde, assim, pela
viso de um mundo sem transcendncia, dominante em todo o livro, como
bem comprovam poemas como "Soneto da perdida esperana" em que
no falta a aluso a um "flautim" qualificado justamente como "insolvel",
que pode ser visto como mais um ndice da situao de impasse, da
indeciso aqui examinada.
Vejam-se ainda os versos de "O vo sobre as igrejas", que se asse-
melham ao soneto no s na viso de um mundo sem transcendncia, de
JULHO DE 2000 51
(36) Para o exame dos vrios
modos por que se realiza esse
recurso freqente na lrica de
Drummond, ver Merquior,
Jos Guilherme. Verso univer-
so em Drummond. Rio de Ja-
neiro: Jos Olympio, 1968, pp.
35ss.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
total imanncia para aqueles que um dia gritaram "sim! ao eterno", mas
tambm no uso de uma figura com idntico significado simblico, de
movimento ascensional, indicado pela hiplage presente na "lenta ladeira"
em que todos os caminhos se fundem e conduzem ao princpio do drama
e da flora. Esse momento inaugural coincide, em "O vo sobre as igrejas",
com a referncia a Antonio Dias, a freguesia que deu origem cidade de
Ouro Preto.
O poema abre-se com um convite procisso de Semana Santa rumo
Matriz de Antonio Dias, que abriga a campa do Aleijadinho. A procisso,
transfigurada de forma fantstica, seria anos depois descrita em detalhe pelo
prprio poeta numa das crnicas de Passeios na ilha, "Contemplao de
Ouro Preto", contrapondo a suntuosidade da freguesia de Ouro Preto
simplicidade austera da de Antonio Dias na celebrao dos ritos de Semana
Santa, com visvel preferncia do poeta por esta ltima. A posio topogrfi-
ca da igreja, situada no centro da parte alta da cidade (bairro de Antonio
Dias), bem como a "lenta ladeira" a ser galgada pela romaria fantstica, que a
dada altura descola o p do cho e ala vo, respondem pelo impulso
ascencional, cuja natureza sublimatria
37
e evasionista logo se evidencia nos
versos. Desejo de fuga e transcendncia, que no satisfeito sem mais, sem o
embate contra a total imanncia no tempo presente, com seus apelos diri-
gidos aos sentidos:
as cores e cheiros do presente so to fortes e to urgentes
que nem se percebem catingas e rouges, boduns e ouros do sculo 18.
O eu lrico, todavia, persiste em sua escalada ascencional ao encontro do
gnio barroco, acompanhado apenas por um squito de querubins:
Nesta subida s serafins, s querubins fogem conosco,
de rseas faces, de ndegas rseas e rechonchudas,
empunham coroas, entoam cantos, riscam ornatos no azul autntico.
A descrio dessa escalada remete, de pronto, aos tetos de algumas
igrejas mineiras. Gledson lembra o de Atade, na igreja de So Francisco de
Assis, mas bem provvel que Drummond se referisse aqui ao teto da
prpria Matriz de Antonio Dias, da qual se ocupa o poema, o que faz pensar
que o encontro com o gnio barroco acaba por se processar aqui. No por
acaso, a passagem para a prxima estrofe desloca o enfoque do esforo
ascensional do eu lrico, descrito nas trs primeiras estrofes, para a figura do
gnio barroco:
52 NOVOS ESTUDOS N. 57
(37) A relao entre as ima-
gens dinmicas de ascenso e
vo e a sublimao, embora
flagrante, examinada em de-
talhe por Gaston Bachelard em
O ar e os sonhos: ensaio sobre
a imaginao do movimento
(So Paulo: Martins Fontes,
1990).
VAGNER CAMILO
Este mulato de gnio
lavou na pedra-sabo
todos os nossos pecados,
as nossas luxrias todas,
e esse tropel de desejos,
essa nsia de ir para o cu
e de pecar mais na terra;
esse mulato de gnio
subiu nas asas da fama,
teve dinheiro, mulher,
escravo, comida farta,
teve tambm escorbuto,
e morreu sem consolao.
Atente-se, antes de tudo, regularidade mtrica dessa 4
a
estrofe, toda
ela (ou quase toda) em redondilha maior, cuja funo principal reforar,
mimeticamente, o poder do gnio barroco de dar forma e expresso aos
conflitos e dilaceraes mais ntimos, traduzidos na contradio entre a
nsia do pecado e o anseio de purificao. O nico verso irregular na
estrofe justamente o ltimo e no por acaso: ele introduz a nota disso-
nante da ironia que, diante da sublimidade do gnio descrita nos versos
anteriores, contrape a condio demasiado humana da morte sem conso-
lao, da qual nem mesmo o gnio barroco conseguiu escapar. Dessa
condio havia partido o poema ao se referir campa "onde repousa, p
sem lembrana, p sem esperana, o Aleijadinho", para alar, na seqncia,
dimenso sublime do gnio e depois retornar, no final da 4
a
estrofe,
condio de partida. A ironia acaba, assim, por descrever um movimento
contrrio isto , de natureza dessublimatria ao descrito pelo grande
artista barroco em sua criao.
A notao irnica, obviamente, diz respeito ao destino do artista e no
de sua obra, uma vez que esta sim permaneceu viva e alou imortalidade,
talhando perfeio as dilaceraes mais ntimas, que foram vivenciadas a
fundo no s por ele mas por todos, j que os pecados lavados na pedra-
sabo so "nossos". Nesse aspecto em particular, como bem notou
Gledson, Drummond parece tematizar, implicitamente, o que para ele
constitui uma relao viva e criadora do artista com a sociedade, que
compartilha os pecados e doenas dos outros, o seu desejo de
pecarem e serem inocentes ao mesmo tempo (o tema de "Castidade"),
mas pelo dom da expresso, de alguma maneira expia esses pecados.
A frase "lavou em pedra-sabo", por mais humorstica que seja, no
em ltima anlise irnica: a verdadeira relao entre o artista e a
sociedade tem este aspecto simblico e representativo, quase reli-
gioso
38
.
JULHO DE 2000 53
(38) Gledson, op. cit., p. 110.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
O enfoque dirigido relao entre o artista e a sociedade encarnada
por Aleijadinho atende, assim, ao intuito de estabelecer um modelo ideal,
tomado como parmetro para que o poeta avalie o alcance de sua prpria
criao ao lidar com um conflito que se lhe afigura afim ao supostamente
vivenciado pelo gnio do barroco mineiro. No seria, alis, a nica vez que
Drummond encontraria no Aleijadinho uma espcie de alter ego, uma
persona que poderia ser aproximada de outras tantas esposadas pelo poeta e
j apontadas por Affonso Romano de Sant'Anna
39
. Em sua deformidade
fsica, a figura mtica do gnio barroco parece materializar a deformidade
moral experienciada pela subjetividade lrica de Drummond, que responde-
r pelos impulsos castradores, de natureza autopunitiva, examinados por
Antonio Candido no citado ensaio sobre o poeta. O prprio Gledson lembra,
muito a propsito, que em outra passagem da entrevista de A Ptria
Drummond descreveria a experincia do fracasso literrio em termos muito
prximos imagem que nos oferece do Aleijadinho neste poema:
A derrota literria tem isso de suave: o derrotado no apercebe. Ou se
percebe como um indivduo que, passado o desastre, a sncope e os
cuidados mdicos, se v com uma perna a menos, mas por mais que
se esforce no sente dor com esse menos
40
.
Esse conflito supostamente comum justifica-se, no caso do artista
barroco, pelos dualismos e tenses, sabidos de cartilha, entre o esprito
racional e secularista de procedncia renascentista e o ethos cristo contra-
reformista, traduzidos nas conhecidas polarizaes entre terra e cu, carne
e esprito, mundanidade e ascetismo, sensualidade e misticismo, erotismo
e religiosidade, atraes e solicitaes terrenas e ideal de fuga e renncia.
Tais antagonismos, entretanto, encontrariam no prprio dirigismo ideolgi-
co contra-reformista exercido como "inquisio imanente" alma dos
artistas fiis Igreja uma forma de conciliar os interesses de Deus com
as exigncias humanas, mediante a reorientao da ascese crist, cujo
mtodo eficaz seria fornecido pelos Exerccios espirituais de Loyola. Como
diz Benedito Nunes, foi por meio dessa ao persuasiva e conciliadora do
"humanismo devoto" que a arte,
destinada a fins de piedade, glorificao de Deus e exaltao da
Igreja, pde associar, na iconografia ou na imaginria, a sensualida-
de ertica ao misticismo e o ideal heri-clssico do Renascimento,
inseparvel da beleza do corpo, santidade, militncia da f,
profisso do Credo. Por fora dessas [...] aes sublimadoras, prospera-
ram at a teatralidade, por vezes "mediante um sentimentalismo sem
fundo", os efeitos dramticos j congnitos ao prprio estilo. Da
dramtica teatralidade do barroco, que transformou, como dizia
54 NOVOS ESTUDOS N. 57
(39) Romano de Sant'Anna,
Affonso. Drummond: o gau-
che no tempo. Rio de Janeiro:
Record, 1992.
(40) Apud Gledson, op. cit.,
p. 90.
VAGNER CAMILO
Germain Bazin, a figura do santo num ator antes de tudo, partilham
os santos e profetas de Aleijadinho
41
.
Ora, a ausncia de qualquer orientao ideolgica (como a que
presidia a arte da Contra-Reforma) que impede nosso indeciso poeta de
alcanar, minimamente, a sublimao necessria para dar forma ao con-
flito supostamente afim abstraindo-se, obviamente, das especificidades
de contexto ao do artista barroco. E isso, muito mais, o que ele parece
querer, implicitamente, evidenciar no contraste com Aleijadinho: o modo
pelo qual, partindo de um conflito comum ao gnio barroco, dele se afasta
em termos de sublimao e realizao artstica, alm do alcance e poder de
comunicao com a sociedade, o que o leva costumeira e completa
autodepreciao
42
. Disse "implicitamente", mas na verdade esse contraste
se explicita materialmente no poema, por meio do jogo entre as estrofes
isomtricas e heteromtricas. Em contraposio uniformidade mtrica da
4
a
e da 6
a
estrofes, dedicadas ao poder da criao do gnio barroco, as trs
primeiras estrofes, e depois a 5
a
, que tratam especificamente do anseio
ascensional e sublimatrio do eu lrico, so todas elas compostas de versos
livres, cuja irregularidade mtrica (indo do verso de quatro ao de vinte ou
mais slabas) parece mimetizar, por contraste, a impossibilidade de subli-
mar, de dar-lhes forma e expresso, os conflitos e dilaceraes similares.
Alm disso, ao chegarmos aos derradeiros versos quando supomos que
o eu lrico e o "ns" a que ele se dirige tenham alado sublimidade da arte
do Aleijadinho o desfecho irnico tende a converter o mulato de gnio,
e seu poder de sublimar em arte os anseios partilhados com a comunidade,
no "era uma vez" da lenda ou do conto da carochinha:
Era uma vez um Aleijadinho,
no tinha dedo, no tinha mo,
raiva e cinzel, l isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos parasos e muitos infernos,
era uma vez So Joo, Ouro Preto,
Mariana, Sabar, Congonhas,
era uma vez muitas cidades
e o Aleijadinho era uma vez.
Com isso Drummond busca assinalar o quo distante se mostra esse
poder de comunho plena encarnado pela obra de Aleijadinho, a ponto de
se converter na irrealidade da lenda ("era uma vez..."). Ao artista moderno,
to centrado na prpria individualidade e no prprio isolamento, s resta
mesmo ponderar sobre essa distncia e traduzi-la na forma dissonante
(prpria da lrica moderna, segundo Friedrich
43
) acima assinalada. a
JULHO DE 2000 55
(41) Nunes, Benedito. "O uni-
verso filosfico e ideolgico
do barroco". Barroco, n 12,
1982/83, p. 27.
(42) A atitude de desmereci-
mento em relao prpria
poesia assinalada, entre ou-
tros, por Iumna Simon (Drum-
mond: uma potica do risco.
So Paulo: tica, 1978) no caso
de A rosa do povo, ao exami-
nar o confronto estabelecido
por Drummond com a obra de
outros poetas e artistas admi-
rados pelo poder de resistn-
cia s condies adversas e
pelo alcance de comunicao,
a exemplo de Lorca, Mrio de
Andrade e Chaplin.
(43) Friedrich, Hugo. Estrutu-
ra da lrica moderna. So Pau-
lo: Duas Cidades, 1978.
UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
conscincia dessa distncia que d a medida do valor dos versos e que
permite ao lrico dar forma (informe) aos conflitos e dilaceraes mais
ntimos, ainda que pela negao de sua prpria possibilidade.
I V
Para Gledson, "O vo sobre as igrejas" um dos dois poemas a se
ocupar da potica subjacente a Brejo das almas. O outro "Segredo", que
eu gostaria de considerar, por fim, com o intuito de evidenciar mais uma vez
como as exigncias de participao do intelectual, reverberadas sobre a
subjetividade na forma de dvida ou indeciso, comparecem to bem
sedimentadas nos versos a ponto de dispensar a tematizao explcita:
S egredo
A poesia incomunicvel.
Fique torto no seu canto.
No ame.
Ouo dizer que h tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
a revoluo? o amor?
No diga nada.
Tudo possvel, s eu impossvel.
O mar transborda de peixes.
H homens que andam no mar
como se andassem na rua.
No conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdo.
No pea.
Muito embora tenha sido o primeiro a apontar a problemtica da
indeciso poltico-ideolgica como a vlvula motora de Brejo das almas,
Gledson no chega a tecer nenhuma considerao a esse respeito na
abordagem dos versos que encerram justamente a potica subjacente a todo
o livro. Entretanto, essa problemtica comparece entranhada no poema,
podendo-se mesmo dizer que, em dada medida, esse o prprio "segredo" a
que alude o ttulo. Para desvel-lo, comeo por ressaltar, mais uma vez, o
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VAGNER CAMILO
emprego do j referido recurso de "personificao do eu", tambm denomi-
nado "dilogo a um" por Sant'Anna, que funciona aqui como estratgia de
dramatizao do conflito subjetivo, com o desdobramento do sujeito lrico
em dois.
No poema, a alternncia das pessoas de verbo d-se do seguinte
modo: na primeira e na ltima estrofes o eu lrico se auto-refere ou se
projeta numa falsa segunda pessoa, ao passo que nas intermedirias lana
mo da primeira pessoa. Em todas as estrofes, porm, o curto verso final
sempre na segunda pessoa. Como estratgia de personificao, o emprego
da segunda pessoa permite subjetividade lrica constituir-se a si prpria
como alteridade. Com isso ela pode ver-se de fora, preservando certo grau
de distanciamento em relao aos conflitos e dvidas nos quais se encontra
imerso o eu que fala em primeira pessoa. o que se pode observar na
passagem de uma a outra estrofe. Nos momentos em que se enuncia essa
alteridade, ela se mostra ciosa de afirmar uma crena ou uma certeza de
maneira um tanto impositiva, visvel j no uso do imperativo. Essa crena
vem expressa de maneira categrica logo no verso de abertura, ao afirmar
a "incomunicabilidade da poesia", que condena o eu lrico a isolar-se e
voltar-se sobre si mesmo, torcendo-se e retorcendo-se em seu canto (no
duplo sentido do termo) com seus conflitos interiores. Ela ainda reiterada
ao final de cada estrofe, por meio da negao de atos fundamentados numa
relao de comunicao ou de interao com o outro: "no diga nada", "no
conte", "no pea" e mesmo "no ame".
Se a alteridade do eu lrico se mostra to enftica na afirmao de sua
crena, porque esta no tem sido observada, encontrando-se, de certo
modo, ameaada. A ameaa vem representada pela atitude dubitativa do
eu que fala em primeira pessoa nas estrofes intermedirias e que, sem o
benefcio da distncia e do no-envolvimento, parece sentir o apelo muito
prximo da realidade exterior, que lhe chega de maneira um tanto confusa,
indistinta, como visvel na referncia ao tiroteio ao alcance do corpo, sem
saber ao certo se o amor ou a revoluo. Essa indefinio entre o dado
interno (no caso, o "amor") e o externo (a "revoluo") j foi assinalada por
Gledson acerca de outros momentos de Brejo das almas. A meu ver, a sua
funo aqui justamente a de indiciar o individualismo extremo dominante
em todo o livro e denunciado pelo prprio poeta no trecho citado da
"Autobiografia para uma revista"; um autocentramento tamanho a ponto de
o eu no distinguir se o que "ouve" vem de fora ou dentro. Ainda assim,
certo, o eu lrico parece abrir-se percepo da realidade exterior que lhe
segredada ao ouvido, mesmo que de maneira confusa, mesmo que
impossibilitado de revel-la abertamente, por fora da voz imperativa que
ordena: no fale!
Um novo apelo da realidade exterior se faz sentir na 3
a
estrofe com a
referncia ao mar que "transborda de peixes" e aos "homens que andam no
mar como se andassem na rua". Imagens como essas vm justificar a
afirmao do eu lrico no primeiro verso dessa estrofe: "tudo possvel, s
eu impossvel". Com isso, ele parece querer assinalar, por contraste, o
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UMA POTICA DA INDECISO: BREJO DAS ALMAS
tamanho de sua limitao em face de um real em que tudo pode acontecer,
at mesmo o mais fantstico e inverossmil, enquanto ele permanece
inalterado, imutvel. Sem querer forar a nota, vale ainda observar que uma
dessas imagens fantsticas parece tambm comportar uma dimenso social,
bastando ao leitor recordar comigo que, j no livro seguinte, em um dos
primeiros poemas mais abertamente participativos, Drummond retornaria
ainda uma vez figura do homem caminhando por sobre as ondas, mas
agora melhor caracterizando-o socialmente: o "operrio no mar".
Assim, entre a incomunicabilidade do canto e os apelos da realidade
exterior, "Segredo" parece confessar veladamente ao leitor a dvida na qual
se encontra imersa a subjetividade lrica de Drummond, entre optar ou no
por uma poesia mais aberta aos apelos da realidade exterior e necessidade
de participao nas coisas do tempo. A opo participante implicaria,
certo, atender s presses ideolgicas experimentadas no perodo e, mais
ainda, conciliar o ofcio potico com algumas das "solues" que, segundo
o poeta em A Ptria, se encontravam fora da literatura. Os livros seguintes
viriam dizer da opo tomada por Drummond, assumindo os riscos da
escolha na imagem da poesia e do poeta precrios, to bem examinados
por Iumna Simon. Em Brejo das almas, porm, impera ainda a dvida
expressa no embate dialtico entre as duas vozes de uma conscincia
dividida, confirmando assim que a indeciso est no cerne da potica de
todo o livro, sem ter de recorrer repito mais um vez tematizao
aberta. Com isso, Drummond parece confirmar a verdade das palavras de
Adorno, quando observa que
em todo poema lrico a relao histrica do sujeito objetividade, do
indivduo sociedade, precisa ter encontrado sua materializao no
elemento do esprito subjetivo, reverberado sobre si mesmo. Essa
sedimentao ser tanto mais perfeita quanto menos a formao
lrica tematizar a relao entre eu e sociedade, quanto mais involun-
tariamente cristalizar-se essa relao, a partir de si mesma, no
poema
44
.
Nesse embate, porm, ainda a voz imperiosa da alteridade do eu
que parece dar a ltima palavra, pois ela que retorna na ltima estrofe,
evocando uma situao hipottica e extrema, a fim de assinalar o limite a
que deve ser levada a recusa a todo e qualquer ato de comunicao: diante
da viso apocalptica do anjo exterminador, cabe ao eu lrico furtar-se,
peremptoriamente, ao pedido de perdo clamado por toda a humanidade
sacrificada. Ato de recusa que, se por um lado visa reforar a crena na
incomunicabilidade do canto defendida pela alteridade do eu, por outro
revela, mesmo na indeciso, o poder de resistir a toda e qualquer espcie
de sujeio: "No pea"!
(44) Adorno, Theodor W. "Lri-
ca e sociedade". In: Benjamin,
Horkheimer, Adorno e Haber-
mas. So Paulo: Abril Cultural,
1980 (col. Os Pensadores), p.
197.
Recebido para publicao em
18 de abril de 2000.
Vagner Camilo professor de
Literatura Brasileira na FFLCH-
USP.
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