Daniel Sarmento - Protecao Judicial Dos Direitos Sociais

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A Proteo 1udicial dos Direitos Sociais: Alguns Parmetros tico-

1urdicos
1
Daniel Sarmento *
1. Introduo
Poucos temas no Direito Constitucional brasileiro tm sido to debatidos nos
ultimos anos como a eIicacia dos direitos sociais de carater prestacional. A
jurisprudncia nacional e extremamente rica nesta questo, e o Brasil e hoje certamente
um dos paises com o Judiciario mais ativista na proteo de tais direitos
2
.
Neste ponto, e notavel o avano ocorrido no pais, sobretudo ao longo da ultima
decada. Ate ento, o discurso predominante na nossa doutrina e jurisprudncia era o de
que os direitos sociais constitucionalmente consagrados no passavam de normas
programaticas, o que impedia que servissem de Iundamento para a exigncia em juizo
de prestaes positivas do Estado. As intervenes judiciais neste campo eram
rarissimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do principio da separao de
poderes, que via como intromisses indevidas do Judiciario na seara propria do
Legislativo e do Executivo as decises que implicassem em controle sobre as politicas
publicas voltadas a eIetivao dos direitos sociais
3
.
1
* Mestre e Doutor em Direito Publico pela UERJ. ProIessor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ.
Jisiting Scholar da Yale Law School (2006). Procurador Regional da Republica.
d
Agradeo a Claudio Pereira de Souza Neto e a Gustavo Binenbojm pelas valiosas sugestes sobre o tema
deste artigo, bem como a Fatima Vieira Henriques, de cuja brilhante dissertao de Mestrado, intitulada
'O Direito Prestacional a Saude e sua Implementao Judicial Limites e Possibilidade, deIendida
perante a Pos-Graduao em Direito Publico da UERJ em 2007, eu extrai a maior parte da jurisprudncia
nacional citada neste trabalho.

2
. Ha vasta bibliograIia sobre a proteo judicial dos direitos sociais no Direito Comparado. Veja-se,
entre outros, Mark Tushnet. Weak Courts, Strong Rights. Judicial review and social welfare rights in
Comparative Constitutional Law. Princeton: Princeton Unversity Press, 2008; Alicia Ely Amin (Coord.).
Los Derechos Economicos, Sociales v Culturales en America Latina. Mexico: Asociacion pro Derechos
Humanos, 2006; e Victor Abramovich e Christian Courtis. Los Derechos Sociales como Derechos
Exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2002.
3
3
Exemplo tipico desta orientao Ioi o acordo proIerido a unanimidade pela 1 Turma do STJ no ROMS
6.564/RS, julgado em 23/05/1996, da relatoria do Ministro Democrito Reinaldo, de cuja ementa se extrai
o seguinte excerto: 'Normas constitucionais meramente programaticas ad exemplum, o direito a
saude protegem um interesse geral, todavia, no conferem, aos beneficiarios deste interesse, o poder
de exigir sua satisfao... Estas normas (arts. 195, 196, 204 e 227 da CF) so de eficacia limitada, ou,
em outras palavras, no tm fora suficiente para desenvolver-se integralmente, ou no dispem de
eficacia plena, posto que dependem, para ter incidncia sobre os interesses tutelados, de legislao
complementar. Na regra furidico-constitucional que dispe todos tm o direito e o Estado o dever
dever de saude como afianam os constitucionalistas, na realidade todos no tm direito, porque a
relao furidica entre o cidado e o Estado devedor no se fundamenta em vinculum furis gerador de
obrigaes, pelo que falta ao cidado o direito subfetivo publico, oponivel ao Estado, de exigir em fui:o,
Hoje, no entanto, este panorama se inverteu. Em todo o pais, tornaram-se
Ireqentes as decises judiciais determinando a entrega de prestaes materiais aos
jurisdicionados relacionadas a direitos sociais constitucionalmente positivados.
4
Trata-
se de uma mudana altamente positiva, que deve ser celebrada. Atualmente, pode-se
dizer que o Poder Judiciario brasileiro 'leva a serio os direitos sociais, tratando-os
como autnticos direitos Iundamentais
5
, e a via judicial parece ter sido deIinitivamente
as prestaes prometidas a que o Estado se obriga por proposio inefica: dos constituintes. No sistema
furidico patrio, a nenhum orgo ou autoridade e permitido reali:ar despesas sem a devida previso
oramentaria, sob pena de incorrer no desvio de verbas`.

4
E Iarta a jurisprudncia nesta linha, inclusive no STF. Veja-se, neste sentido, trechos de duas decises
paradigmaticas do STF, ambas da lavra do Ministro Celso Mello a primeira negando a suspenso de
deciso que condenara Estado da Iederao a custear a realizao de operao no exterior visando a
salvar a vida de menor impubere portador da DistroIia Muscular de Duchenne, e a segunda reconhecendo
o dever do Municipio de assegurar o atendimento em creche para criana com seis anos de idade:

'A singularidade do caso ..., a imprescindibilidade da medida cautelar concedida pelo Poder
Judiciario de Santa Catarina (necessidade de transplante das celulas mioblasticas, que constitui o unico
meio capa: de salvar a vida do paciente) e a impostergabilidade do cumprimento do dever politico-
constitucional que se impe ao Poder Publico, em todas as dimenses da organi:ao federativa, de
assegurar a todos a proteo a saude (CF, art. 196) e de dispensar especial tutela a criana e ao
adolescente (CF, art. 6, c/c art. 227, Par. 1), constituem fatores, que, associados ao imperativo de
solidariedade humana, desautori:am o deferimento do pedido ora formulado... Entre proteger a
inviolabilidade do direito a vida, que se qualifica como direito subfetivo inalienavel assegurado pela
propria Constituio da Republica (art. 5, caput), ou fa:er prevalecer, contra esta prerrogativa
fundamental, um interesse financeiro e secundario do Estado, entendo uma ve: configurado este dilema
que ra:es de ordem etico-furidica impem ao fulgador uma so e possivel opo. o respeito
indeclinavel a vida` (Petio 1.246 MC/SC, julgada em 31/01/1997).

'A educao infantil representa prerrogativa constitucional indisponivel, que, deferida as crianas,
a estas assegura, para efeito do seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de
educao basica, o atendimento em creche e o acesso a pre-escola (CF, art. 208, IJ)
Essa prerrogativa furidica, em conseqncia, impe, ao Estado ..., a obrigao constitucional de
criar condies obfetivas que possibilitem ... o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de
pre-escola...
A educao infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criana, no se expe, em
seu processo de concreti:ao, a avaliaes meramente discricionarias da Administrao Publica, nem
se subordina a ra:es de puro pragmatismo governamental...
Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e
executar politicas publicas, revela-se possivel, no entanto, ao Poder Judiciario, determinar, ainda que
em bases excepcionais, especialmente nas hipoteses de politicas publicas definidas pela Constituio`
(Agravo de Instrumento no Recurso Extraordinario n 410. 715-5/SP, julgado em 22/11/2005).
5
Neste particular, a jurisprudncia brasileira esta em sintonia com a orientao do Comit de Direitos
Econmicos, Sociais e Culturais da ONU, reIletida na sua Observao Geral n 9, de 1998, a proposito da
aplicao interna do Pacto dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. ConIira-se o seguinte trecho do
item 10 da reIerida Observao Geral (traduo livre): 'Em relao aos direitos civis e politicos, em
geral se parte da premissa de que e fundamental a existncia de recursos fudiciais frente a violao
destes direitos. Lamentavelmente, no que se refere aos direitos economicos, sociais e culturais, com
demasiada freqncia se parte da premissa contraria. Esta discrepancia no se fustifica nem pela
nature:a dos direitos, nem pelas disposies pertinentes do Pacto...Ainda que sefa necessario levar em
conta a orientao geral de cada um dos sistemas furidicos, no ha nenhum direito reconhecido pelo
Pacto que no se possa considerar que possui, na grande maioria dos sistemas, algumas dimenses
incorporada ao arsenal dos instrumentos a disposio dos cidados para a luta em prol
da incluso social e da garantia da vida digna.
Sem embargo, este Ienmeno tambem suscita algumas questes complexas e
delicadas, que no podem ser ignoradas. Sabe-se, em primeiro lugar, que os recursos
existentes na sociedade so escassos, e que o atendimento aos direitos sociais envolve
custos. E certo que esta no e uma caracteristica exclusiva dos direitos sociais, Iazendo-
se presente tambem nos direitos individuais e politicos, cuja plena exigibilidade judicial
ninguem questiona
6
. AIinal, proteger a propriedade, prestar a jurisdio, promover
eleies, etc., so atividades que tambem importam em gastos publicos. Contudo, e
indiscutivel que esta Iaceta onerosa e especialmente saliente nos direitos sociais
7
.
Neste quadro de escassez, no ha como realizar, hic et nunc, todos os direitos
sociais em seu grau maximo. O grau de desenvolvimento socio-econmico de cada pais
impe limites, que o mero voluntarismo de bachareis no tem como superar
8
. Portanto,
no e (so) por Ialta de vontade politica que o grau de atendimento aos direitos sociais no
Brasil e muito inIerior ao de um pais como a Suecia.
A escassez obriga o Estado em muitos casos a conIrontar-se com verdadeiras
'escolhas tragicas
9
, pois, diante da limitao de recursos, v-se Iorado a eleger
prioridades dentre varias demandas igualmente legitimas. Melhorar a merenda escolar
ou ampliar o numero de leitos na rede publica? Estender o saneamento basico para
significativas, no minimo, de fusticiabilidade. As ve:es se afirma que as questes que supem a alocao
de recursos devem ser confiadas as autoridades politicas e no a tribunais. Ainda que se deva respeitar
as competncias respectivas dos diversos poderes, e conveniente reconhecer que os tribunais fa intervm
geralmente em uma gama consideravel de questes que tm conseqncias importantes para os recursos
disponiveis. A adoo de uma classificao rigida de direitos economicos sociais e culturais, que os
situe, por definio, fora do ambito dos tribunais seria, portanto, arbitraria e incompativel com o
principio de que os dois grupos de direitos so indivisiveis e independentes. Tambem se redu:iria
drasticamente a capacidade dos tribunais para proteger os direitos dos grupos mais vulneraveis e
desfavorecidos da sociedade`.
6
CI. Cass Sunstein & Stephen Holmes. The Cost of Rights. Whv libertv dependes on taxes. New York:
W.W. Norton and Company, 1999; Gustavo Amaral. Direito, Escasse: e Escolha. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001; e Flavio Galdino. Introduo a Teoria dos Custos dos Direitos. Direitos no nascem em
arvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

7
No mesmo sentido, Ingo WolIgang Sarlet. A Eficacia dos Direitos Fundamentais. 5 ed., Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, p. 287.

8
Nesta linha, criticando o excesso de idealismo em certas teorias sobre o tema, veja-se Eros Roberto
Grau. 'Realismo e Utopia Constitucional. In: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Martonio
Mont`Alverne Barreto Lima. Dialogos Constitucionais. Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em
Paises Perifericos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 133-144.
9
9
A expresso Ioi empregada por Guido Calabresi e Philip Bobbit, para reIerir-se as diIiceis opes
alocativas que devem ser realizadas num ambiente de escassez de recursos. Ela deu titulo a obra. Tragic
Choices. New York: Norton, 1978.
comunidades carentes ou adquirir medicamentos de ultima gerao para o tratamento de
alguma doena rara? Aumentar o valor do salario minimo ou expandir o programa de
habitao popular? InIelizmente, no mundo real nem sempre e possivel ter tudo ao
mesmo tempo.
Ora, a cada vez que uma deciso judicial concede alguma prestao material a
alguem, ela retira recursos do bolo destinado ao atendimento de todos os outros direitos
Iundamentais e demandas sociais. Cada deciso explicitamente alocativa de recursos
envolve tambem, necessariamente, uma dimenso implicitamente desalocativa. Em
palavras mais toscas, sendo curto o cobertor, cobrir o nariz implica deixar os pes de
Iora ...
Adicione-se a este panorama a constatao de que o acesso a justia no Brasil
esta longe de ser igualitario. Por diversas razes, os segmentos mais excluidos da
populao diIicilmente recorrem ao Judiciario para proteger os seus direitos. Dai resulta
um delicado paradoxo, uma vez que, quando no pautado por certos parmetros, o
ativismo judicial em materia de direitos sociais que deveriam ser voltados a promoo
da igualdade material pode contribuir para a concentrao da riqueza, com a
canalizao de recursos publicos escassos para os setores da populao mais bem
aquinhoados.
Nesse cenario, surgem alguns questionamentos importantes: Sera que o Poder
Judiciario - cujos membros no so eleitos, nem respondem politicamente perante o
povo possui as credenciais democraticas para interIerir nestas escolhas Ieitas pelo
Legislativo e Executivo sobre quais gastos priorizar, em Iace da escassez de recursos?
Ate que ponto as suas intervenes Iavorecem, de Iato, os mais excluidos? Tera o
Judiciario condies de atuar de modo racional e eIiciente neste campo, que envolve o
controle de politicas publicas, cuja Iormulao e implementao requerem expertise?
No atual contexto brasileiro, estes debates tornaram-se candentes sobretudo na
area de saude publica. Houve uma verdadeira exploso de demandas judiciais nesta area
e, nos ultimos tempos, parte signiIicativa dos oramentos publicos de saude das
entidades Iederativas passou a ser destinada ao cumprimento de decises judiciais. Por
um lado, e positiva a constatao de que a Justia brasileira tem se mostrado to
sensivel as questes muitas vezes dramaticas suscitadas pelo direito Iundamental a
saude, mas, por outro, no e diIicil se deparar com decises equivocadas - ainda que
sempre muito bem intencionadas -, que podem comprometer politicas publicas
importantes, drenar recursos escassos e criar privilegios no universalizaveis. Veja-se
dois exemplos tipicos, num universo de muitos outros que poderiam ser citados:
decises judiciais ordenando a internao de pessoas determinadas no INCA
instituio Iederal de ponta na area de cancerologia, localizada no Rio de Janeiro
ignorando tanto as Iilas existentes para acesso a esta unidade de saude como os criterios
medicos que ela emprega para selecionar seus pacientes
10
; e a condenao de estado da
Iederao a Iornecer a individuo carissima medicao Iabricada no exterior, cuja
importao Iora proibida pela ANVISA, a vista de pesquisas que haviam comprovado a
sua ineIicacia, com base apenas na prescrio do medico particular do jurisdicionado
11
.
Na minha opinio, os questionamentos acima reIeridos no devem conduzir a
rejeio da possibilidade de proteo judicial dos direitos sociais. Este seria um
inadmissivel retrocesso no Direito Constitucional brasileiro, que, em boa hora, passou a
reconhecer a Iora normativa dos direitos prestacionais. Mas, se no quisermos que a
garantia jurisdicional de tais direitos acabe comprometendo a possibilidade de que eles
sejam eIetivamente Iruidos pelos mais necessitados, e essencial traar criterios racionais
para o Judiciario atuar neste dominio, que estejam em conIormidade no so com a letra
da Constituio, mas tambem com os valores morais que lhe do suporte.
Este e precisamente o objetivo deste texto: esboar parmetros relacionados a
sindicabilidade dos direitos sociais prestacionais. Meu Ioco neste estudo sera o dos
direitos consagrados de Iorma vaga e principiologica na Constituio. Portanto, algumas
das consideraes traadas aqui no valem para os direitos sociais estatuidos pelo nosso
texto constitucional atraves de regras como ocorre com certos beneIicios
previdenciarios e com o direito de acesso ao ensino Iundamental. Por outro lado,
embora eu reconhea o carater heterogneo do catalogo de direitos sociais inscrito na
Constituio brasileira, meu proposito neste texto e o de bosquejar uma teoria geral,
sem me aproIundar em qualquer dos direitos em especie. Tambem no analisarei aqui
as questes suscitadas pela proteo judicial de direitos sociais Iundada na legislao
inIraconstitucional os chamados direitos derivados a prestaes -, limitando-me a
analise das pretenses aliceradas diretamente na propria Constituio.

10
Apelao em Mandado de Segurana n 2002.51.01.018517-9, 4 Turma do TRF da 2 Regio, Relator
Desembargador Federal Arnaldo Lima, julgada e, 17 de maro de 2004; Agravo de Instrumento n
2005.02.01.003581-8, 7 Turma do TRF da 2 Regio, Relator Desembargador Federal Reis Friede,
julgada em 22/06/2005; Agravo de Instrumento n 2006.02.01.005318-7, 7 Turma do TRF da 2 Regio,
Relator Desembargador Federal Sergio Schwaitzer, julgado em 27 de setembro de 2006.
11
Deciso proIerida pelo ento Presidente do STJ, Ministro Edson Vidigal, na Suspenso de Segurana n
1.408/SP, prolatada em 08/09/2004.
2- Democracia e Tutela 1udicial dos Direitos Sociais
A democracia corresponde ao autogoverno popular
12
. No regime democratico, os
cidados so concebidos idealmente no apenas como destinatarios das normas juridicas
e decises do Estado, mas tambem como seus co-autores, na medida em que lhes e
assegurada a possibilidade de participarem do seu processo de elaborao. Neste
sentido, a democracia esta associada a liberdade politica ou 'liberdade dos antigos -,
para usar a conhecida expresso de Benjamin Constant
13
. Ela conIere liberdade ao
cidado, ao possibilitar que ele seja participe do processo de construo da vontade
coletiva da sua comunidade politica; sujeito e no mero objeto de dominao no espao
publico.
Quando a ideia de democracia Ioi redescoberta por IilosoIos Iluministas no
seculo XVIII, no era mais viavel adotar o seu modelo direto, praticado na polis grega.
Por isso, a democracia passou a andar associada a representao politica: os cidados
elegem periodicamente os seus governantes, que elaboram as normas e gerem a coisa
publica em seu nome. Como se sabe, no modelo da tripartio de poderes adotado por
quase todas as democracias contemporneas, so dois os poderes legitimados pelo voto
popular: Legislativo e Executivo. No Brasil e na grande maioria das democracias
modernas, os membros do Judiciario, alem de no serem eleitos, gozam de
independncia em relao aos demais poderes.
Dai provem um dos argumentos contrarios ao controle judicial dos direitos
sociais: o de que ele no e democraticamente legitimo, na medida em que permite a
juizes - que no respondem politicamente perante o povo interIerir nas decises
adotadas por representantes populares sobre quais demandas e necessidades humanas
priorizar nos gastos publicos, e sobre como equaciona-las adequadamente, num cenario
marcado pela escassez de recursos. Os adversarios da sindicabilidade dos direitos
sociais aludem ao carater antidemocratico da suposio de que uma elite de supostos
12
A bibliograIia contempornea sobre democracia e inabarcavel. Veja-se, a titulo exempliIicativo, e em
perspectivas diversas, Norberto Bobbio. O Futuro da Democracia. Uma Defesa das Regras do Jogo.
Trad. Marco Aurelio Nogueira, 5 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986; Robert. A. Dahl. Sobre a
Democracia. Trad. Beatriz Sidou. Brasilia: UNB, 2001; James Bohman & William Rehg (Eds.).
Deliberative Democracv. Cambridge: The MIT Press, 1997; Chantal MouIIe. La Paradofa Democratica.
Trad. Tomas Fernandez Auz y Beatriz Eguibar. Barcelona: GEDISA, 2000; e Boaventura de Souza
Santos. Democrati:ar a Democracia. Os Caminhos da Democracia Participativa. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2002.
13
1
Benjamin Constant. 'The Liberty oI the Ancients Compared with that oI the Moderns. In: Political
Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, p. 314-321.
sabios, com assento nos tribunais, teria condies de decidir melhor estas questes do
que legisladores e administradores, que Ioram escolhidos pela propria populao. Dai,
aIirmam que a tutela judicial dos direitos sociais implicaria em transIerir para o
Judiciario um poder excessivamente amplo, para cujo exercicio os juizes, alem de no
possuirem legitimidade, no estariam tecnicamente preparados
14
. Esta concepo Ioi
resumida, em termos claros, pelo IilosoIo politico Michael Walzer:
'A proteo fudicial de direitos sociais iria redu:ir o alcance das
decises democraticas. De fato, os fui:es decidiriam, e, com a acumulao
de casos, eles passariam a decidir cada ve: em maior detalhe sobre qual o
ambito e o carater que deve ter o sistema de proteo social e que tipos de
redistribuio so requeridas. Estas decises iriam claramente envolver
do sistema um controle fudicial significativo sobre o oramento estatal e,
pelo menos indiretamente, sobre o nivel de tributao que so
exatamente as questes sobre as quais foram lutadas as revolues
democraticas.`
15
(traduo livre)
Note-se que existem duas questes diIerentes a proposito dos direitos sociais,
que muitas vezes so conIundidas pela doutrina: E legitimo proteg-los? No caso
positivo, deve ser conIiada aos juizes a tareIa de exercer esta proteo? E possivel
responder aIirmativamente a primeira pergunta, reconhecendo a necessidade de garantia
dos direitos sociais a populao, e negativamente a segunda, por considerar-se que a
instncia mais adequada para proteger e promover estes direitos no e o Poder
14
CI. Mark Tushnet. Op. cit., p. 231-260; Ernest WolIgang BckenIrde. Escritos sobre Derechos
Fundamentales. Trad. J. L Requeijo e I. Villaverde. Baden-Baden: VerlagsgesellschaIt, 1993, p. 77 ss;
Konrad Hesse. 'SigniIicado de los Derechos Fundamentales. In: Ernst Benda, Werner MaihoIer, Hans-
Jochen Vogel, Konrad Hesse & WolIgang Heyde. Manual de Derecho Constitucional. Trad. Antonio
Lopez Pina. Madrid: Marcial Pons, 2001, p. 97-101; Christian Starck. La Constitution Cadre et Mesure
du Droit. Paris: Economica, 1994, p. 100-102; e Jose Carlos Vieira de Andrade. Os Direitos
Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 200-203.
15
1
'Philosophy and Democracy. In: Political Theorv, n 9, 1981, p. 391-392.
Judiciario
16
. Alias, as constituies de alguns paises, como Irlanda
17
e ndia
18
, seguiram
este caminho, ao preverem direitos sociais sob a Iorma de principios diretivos que
deveriam guiar o processo politico, vedando, contudo, a sua tutela judicial.
No caso brasileiro, alguem poderia alegar que tal debate e desprovido de
interesse pratico, uma vez que o constituinte originario no apenas .consagrou direitos
sociais, como tambem estabeleceu o principio da inaIastabilidade do controle
jurisdicional em caso de leso ou ameaa a direito. Contudo, a objeo no procederia,
ja que a posio adotada sobre temas como a relao entre proteo judicial dos direitos
sociais e a democracia, e a capacidade institucional do Judiciario para garantir tais
direitos tem reIlexos proIundos na compreenso sobre a Iorma mais ou menos agressiva
como a jurisdio deve atuar nesta seara, bem como sobre os criterios que devem pautar
esta atuao. Tais questes so extremamente importantes, e o texto constitucional, so
por si, no as resolve.
Firmada esta premissa, cabe retornar a analise da objeo democratica a
proteo judicial dos direitos sociais. Quando posta em termos muito peremptorios, me
parece que tal objeo pode ser reIutada a partir de trs argumentos. O primeiro deles e
relacionado ao deIicit democratico das proprias instituies representativas
19
. Em que
pese a universalizao do direito de voto alcanada ao longo do seculo XX, hoje uma
serie de Iatores - que vo da inIluncia do poder econmico nas eleies, ate a apatia e
distanciamento do cidado em relao a res publica - tende a segregar os representantes
dos representados, minando a crena de que os primeiros vocalizariam na esIera politica
a vontade dos segundos. O problema e universal, mas, no Brasil, ha componentes que o
16
1
De Iorma muito resumida, esta e a posio central advogada por Mark Tushnet em Week Courts, Social
..., Op. cit. Contudo, o autor americano aceita a possibilidade de algum 'controle Iraco dos direitos
sociais pelas Cortes, que lhes permita se engajarem num dialogo com os outros poderes do Estado nesta
area, mas sem lhes conIerir a possibilidade de adotarem decises que no sejam superaveis no mbito do
processo politico.
17
1
. Art. 45 da Constituio irlandesa de 1937.
18
1
. A Constituio da ndia de 1950 contem uma lista de principios diretivos, que estabelecem uma agenda
de promoo de direitos sociais e reduo da desigualdade material. Contudo, ela determinou
expressamente no seu art. 38 (1) a insindicabilidade destes principios. Porem, a partir da decada de 80, a
Suprema Corte da ndia construiu um caminho alternativo para conIerir alguma proteo aos direitos
sociais: uma leitura ampla e generosa dos direitos a vida e a liberdade pessoal, que so plenamente
suscetiveis de controle jurisdicional naquele pais. A partir dai, reconheceu alguma margem de
exigibilidade judicial para os direitos a educao, saude, abrigo, alimentao, agua, etc. Veja-se, a
proposito, .S. P. Sathe. 'India: From Positivism to Structuralism. In: JeIIrey Goldsworthy (Ed.).
Interpreting Constitutions. A Comparative Studv. OxIord: OxIord University Press, 2006, p. 252-254.
19
1
Sobre a crise da democracia representativa, veja-se Paulo Bonavides. Teoria Constitucional da
Democracia Participativa. So Paulo: Malheiros, 2001.
agravam de Iorma exponencial, abalando proIundamente a credibilidade das instituies
de representao popular. Para comprova-lo, basta checar as sondagens da opinio
publica que Ireqentemente surgem na midia, em que se constata a baixissima conIiana
depositada pela populao em instituies como o Congresso Nacional e os partidos
politicos
20
. Neste quadro preocupante, a objeo democratica contra o ativismo judicial
se arreIece, sobretudo quando o Judiciario passa a agir em Iavor de causas 'simpaticas
aos anseios populares, como a proteo dos direitos sociais.
O segundo argumento diz respeito a propria compreenso sobre o signiIicado da
democracia. Esta no e a sede propria para adentrar-se nas complexas e inIindaveis
discusses a proposito deste conceito. Sem embargo, pode-se aIirmar que hoje existe
um razoavel consenso no sentido de que a democracia verdadeira exige mais do que
eleies livres, com suIragio universal e possibilidade de alternncia no poder
21
. E
diIundida a crena de que a democracia pressupe tambem a Iruio de direitos basicos
por todos os cidados, de molde a permitir que cada um Iorme livremente as suas
opinies e participe dos dialogos politicos travados na esIera publica. Nesta lista de
direitos a serem assegurados para a viabilizao da democracia no devem Iigurar
apenas os direitos individuais classicos, como liberdade de expresso e direito de
associao, mas tambem direitos as condies materiais basicas de vida, que
possibilitem o eIetivo exercicio da cidadania
22
. A ausncia destas condies, bem como
a presena de um nivel intoleravel de desigualdade social, comprometem a condio de
agentes morais independentes dos cidados, e ainda prejudicam a possibilidade de que
se vejam como parceiros livres e iguais na empreitada comum de construo da vontade
politica da sociedade. Portanto, quando o Poder Judiciario garante estes direitos
Iundamentais contra os descasos ou arbitrariedades das maiorias politicas ou dos
20
2
Em obra recentemente publicada, consta o resultado de pesquisa realizada com pessoas de todas as
regies do pais e classes sociais, na qual se apurou um indice de conIiana de apenas 14 da populao
no Congresso Nacional e de 6 nos partidos politicos. Segundo a pesquisa, estas so as instituies em
que o brasileiro menos conIia. (Alberto Carlos Almeida. A Cabea do Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2007, p. 189).
21
Em sentido contrario, sustentando uma viso mais restritiva de democracia, como mera competio das
elites pelo voto dos eleitores, veja-se Joseph A. Schumpeter. Capitalism, Socialism and Democracv.
London: Unwin University Books, 1943, p. 260-263.
22
2
CI. Jrgen Habermas. Direito e Democracia entre Faticidade e Jalidade. Vol.I. Trad. Flavio
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 160; Amy Guttman & Dennis Thompson.
Democracv and Disagreement. Cambridge: The Belknapp Press, 1996, p. 200 ss; Claudio Pereira de
Souza Neto. Teoria Constitucional da Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, p. 235 ss.
tecnocratas de planto, pode-se dizer que ele esta, a rigor, protegendo os pressupostos
para o Iuncionamento da democracia, e no atuando contra ela
23
.
Ja o terceiro argumento relaciona-se a natureza normativa da Constituio. Ele
preconiza que o dever do Poder Judiciario de aplicar as normas juridicas vigentes em
situaes de litigio, mesmo quando isto implique em controlar o exercicio do poder
estatal, no e incompativel com a democracia, mas antes um elemento dela. Ora, sendo
a Constituio uma autntica norma juridica, a consagrao constitucional dos direitos
sociais deveria aIastar a objeo contra o suposto carater anti-democratico da
adjudicao judicial destes direitos, pois aqui o Judiciario desempenha a sua tipica
Iuno de aplicar o direito existente sobre situaes litigiosas
24
.
Contudo, tais argumentos no devem nos levar ao ponto de negligenciar os
riscos para a democracia representados por um ativismo judicial excessivo em materia
de direitos sociais, que transIorme o Poder Judiciario na principal agncia de deciso
sobre as politicas publicas e escolhas alocativas realizadas nesta seara. Todos eles
comportam temperamentos, que nos conduzem a preIerir um regime que se, por um
lado, no nega ao Poder Judiciario um papel relevante na proteo dos direitos sociais,
por outro, tambem no o converte a condio de protagonista neste campo.
Com eIeito, no e um bom lenitivo para a crise real e grave das instituies
da democracia representativa, a transIerncia de poder para uma instncia no-
responsiva perante a vontade popular, como o Judiciario. As crnicas patologias do
processo politico brasileiro justiIicam correes de rumo na nossa incipiente
democracia, mas entre elas no esta o esvaziamento das instncias de representao
democratica. No se trata da doena matando o doente.
23
2
CI. Claudio Pereira de Souza Neto. Op. cit., p. 242 ss; Sergio Fernando Moro. Jurisdio Constitucional
como Democracia. So Paulo: RT, 2004, p. 273 ss; e Gustavo Bienebojm. 'Os direitos econmicos,
sociais e culturais e o processo democratico. In: Maria Elena Rodriguez (Org.). Os Direitos Sociais.
Uma questo de direito. Rio de Janeiro: Fase, 2004, p. 13-18.

24
CI. Fernando Facury ScaII. 'Reserva do possivel, minimo existencial e direitos humanos. In: Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho e Martonio Mont`Alverne Barreto Lima (Orgs). Dialogos Constitucionais.
Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em Paises Perifericos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
160-161. Em passagem do seu texto em que procura justiIicar uma atuao energica do Judiciario
brasileiro em materia de direitos sociais, o autor averbou: 'Outro aspecto a ser destacado e que este
procedimento nada tem a ver com o candente debate hofe existente no Brasil, acerca da fudiciali:ao
da politica, atraves da qual se alega estar o Judiciario praticando uma especie de ativismo em prol dos
mais necessitados. No Brasil o que se pede e apenas a aplicao da lei, em consonancia com a
Constituio. Existem paises em que da sua Constituio e necessario extrair as diretri:es normativas
oriundos de laconicos principios por um delicado, custos e arduo processo exegetico. No e o caso
brasileiro. O carater analitico da nossa Carta, permite que apenas com sua implementao sefa possivel
alcanar um grau maior de Justia Social, sem que os fui:es sefam acusados de fa:er ativismo fudicial`
Na verdade, o mais eIiciente remedio para a correo dos desvios da democracia
brasileira mais importante ate do que uma necessaria reIorma do sistema politico e
o maior envolvimento do proprio cidado na esIera publica. Ocorre que a disseminao
de uma cultura que centre o seu Ioco no papel do Judiciario como o 'guardio das
promessas da civilizao e aponte a Justia como o principal Ioro para as
reivindicaes da cidadania pode contribuir para o desaquecimento da atuao
participativa da sociedade civil
25
. Este no e um eIeito necessario do ativismo judicial, e
houve contextos, como o da luta contra a segregao racial nos Estados Unidos nas
decadas de 50 e 60
26
, em que a mobilizao da sociedade civil e a atuao corajosa do
Judiciario atuaram em sinergia. Contudo, trata-se de um risco que no pode ser
menosprezado.
Ademais, se e certo que a convivncia democratica pressupe algum grau de
atendimento pelo Estado das necessidades materiais basicas dos seus cidados, tambem
e verdade que nem a exata extenso desta interveno estatal, nem a sua Iorma precisa
podem ser deIinidas a priori, a partir de qualquer conceito de democracia. Pelo
contrario, a democracia tambem demanda um amplo espao de deciso politica para as
maiorias de cada momento
27
, sobretudo em tema to complexo e permeado por pre-
compreenses ideologicas como o das prestaes sociais. Este espao, no
constitucionalismo social e democratico em que se insere o Brasil, esta longe de ser
25
2
CI. Antoine Garapon. L Gardien des Promesses. Paris: Editions Odile Jacob, 1996. Uma posio
moderada nesta materia, proxima a sustentada no presente texto, pode ser encontrada em Rodrigo
Uprimmy. 'Legitimidad y conveniencia del control constitucional de la economia. In: Ingo Sarlet (Org.).
Jursdio e Direitos Fundamentais. Vol. I, tomo II. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 307-
343.
26
2
Veja-se, a proposito, Archibald Cox. The Court and the Constitution. Boston; Houghton MiIIlin
Company, 1987, p. 177 ss; e Charles R. Epp. The Rights Revolution. Chicago: Univesity oI Chicago
Press, 1998, p. 26-70.
27
2
CI. Paulo Gilberto Cogo Leivas. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2067, p. 101-103.

inIinito, eis que emoldurado pela Constituio
28
. Porem, ele existe e no deve ser
amputado pelo ativismo judicial.
Na verdade, reproduz-se neste campo o Iertil paradoxo que percorre todo o
constitucionalismo contemporneo, implicado no convivio, ao mesmo tempo sinergico e
tenso, entre democracia e direitos Iundamentais
29
. Por um lado, a constitucionalizao
dos direitos impe barreiras a deciso das maiorias, limitando a democracia; por outro,
ela busca assegurar e promover os pressupostos para as interaes democraticas na
sociedade, possibilitando a propria democracia. O sucesso da receita passa pela
dosagem dos ingredientes: devem-se evitar tanto as limitaes em excesso, que
amesquinham o espao de deliberao democratica da sociedade, como a Ialta de
limites, que desprotege direitos basicos, pondo em risco a continuidade da empreitada
democratica
30
.
Noutro giro, o reconhecimento da Iora normativa da Constituio
importantissima conquista do constitucionalismo brasileiro contemporneo
31
e do
28
De acordo com Robert Alexy, a Constituio opera como uma moldura para o legislador, deixando-lhe
espaos de ao de duas especies diIerentes, que ele denominou, respectivamente, como 'margem de
ao estrutural e 'margem de ao epistmica. A margem de ao estrutural corresponde, segundo ele,
aquelas hipoteses em que a Constituio no impe nem proibe determinada medida, deixando-a ao juizo
do legislador. Ja a margem de ao epistmica maniIesta-se quando ha incerteza sobre o que esta
ordenado ou proibido ao legislador pela Constituio, sendo que esta incerteza pode relacionar-se a
premissas empiricas ou normativas. Contudo, a margem de ao epistmica no implica, para o PreIessor
de Kiel, numa liberdade plena para o legislador. Segundo a teoria de Alexy, ela Iunciona como mais
um elemento a ser considerado pelo Judiciario, ao aIerir, atraves da ponderao de interesses, a
constitucionalidade da norma editada em casos de restrio de direitos Iundamentais. Veja-se Robert
Alexy. 'Epilogo a la teoria de los derechos Iundamentales. In: Revista Espaola de Derecho
Constitucional, n 66, Madrid, 2002, p. 13-64.
29
2
A literatura na FilosoIia Politica e na Teoria Constitucional sobre a relao entre constitucionalismo e
democracia e riquissima. No debate contemporneo, veja-se, dentre outros, Jrgen Habermas. 'O Estado
Democratico de Direito uma amarrao paradoxal de principios contraditorios?. In: Era das
Transies. Trad. Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 153-173; Ronald
Dworkin. 'The Moral Reading and the Majoritarian Premise. In: Freedoms Law. Cambridge: Harvard
University Press, 1966, p. 02-38; John Rawls. Liberalismo Politico. Trad. Sergio Rena Madero Baez.
Mexico: Fondo de Cultura Econmica, 1995, p. 204-206; Carlos Santiago Nino. La Constitucion de la
Democracia Deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1996; Oscar Vilhena Vieira. A Constituio e sua Reserva
de Justia. So Paulo: Malheiros, 1999; e Claudio Pereira de Souza Neto. Teoria Constitucional e
Democracia Deliberativa. Op.cit.
30
3
CI. Daniel Sarmento. 'Ubiqidade Constitucional: Os dois lados da moeda. In: Livres e Iguais. Estudos
de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 167-206.

31
No Brasil, ate no muito tempo atras, no se levava a serio a ideia de que a Constituio era verdadeira
norma juridica. Tal Iato devia-se menos a aspectos Iormais do nosso Direito Constitucional aIinal, a
rigidez constitucional e o controle de constitucionalidade das leis so institutos tradicionais no pais e
mais a aspectos da nossa cultura juridica e social, aliados a um ambiente politico desIavoravel -
autoritario em alguns momentos, e patrimonialista em todos. A 'virada so veio a ocorrer apos a
Constituio de 88, num ambiente politico mais democratico, e sob a inspirao da doutrina
constitucional da eIetividade, bem simbolizada pela obra de Luis Roberto Barroso. O Direito
Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 4 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
papel do Judiciario na eIetivao da Lei Maior no elimina do nosso cenario a reIerida
tenso democratica. E nem me reIiro a delicada questo relativa a legitimidade
democratica da vinculao das geraes atuais as deliberaes adotadas no passado,
pela gerao que participou da Assembleia Constituinte. Penso aqui no carater vago e
aberto da maior parte das normas que consagram direitos sociais, que no deIinem
aquilo que o cidado pode exigir em juizo a partir delas.
Ate no muito tempo atras, mesmo a doutrina nacional mais progressista via nesta
indeterminao semntica um obstaculo insuperavel para a tutela judicial dos direitos
sociais ou pelo menos da maior parte deles
32
. Hoje, tal posicionamento ja parece ter
sido superado, com base em consideraes mais substantivas a respeito da importncia
dos direitos em jogo. Tem-se atribuido, com razo, maior peso a consideraes sobre a
relevncia dos bens e interesses envolvidos nestas questes, tornando o debate juridico
mais permeavel a discusso moral
33
.
Todavia, parece indiscutivel que ao empregar textos normativos vagos - como os
que garantem o direito a saude ou a moradia -, para tutelar pretenses concretas, o juiz
no se limita a agir como a 'boca Iria das palavras do constituinte. A sua atividade no
e meramente cognitiva, possuindo tambem uma evidente dimenso criadora do Direito.
E certo que esta no e uma singularidade da atuao judicial nas aes em que se
discutem direitos sociais. A textura aberta da linguagem humana esta presente em todo
o Direito
34
. Contudo, pode-se dizer que esta Iaceta se revela especialmente marcante nas
demandas envolvendo os direitos sociais, pois estes so positivados, em geral, de
maneira muito vaga, sem a previso das prestaes especiIicas que os concretizam.
Ademais, a garantia dos direitos sociais no se esgota numa tareIa meramente
juridica: no geral, ela envolve um emaranhado de aes estatais, que compreende a
Iormulao de politicas publicas, a criao de procedimentos, o dispndio de recursos,
dentre outras atividades
35
, que no se amoldam perIeitamente a Iuno tradicional do
32
3
Neste sentido, por exemplo, Jose AIonso da Silva, esvaziou a Iora juridica do direito a saude, ao
conceber o art. 196 da Carta de 88 como norma programatica, em razo da vagueza do seu enunciado.
(Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3 ed., 2 tiragem, 1999, p. 83-84)
33
3
Nesta linha, sustentando que a deIinio dos eIeitos das normas constitucionais deve depender no so
das suas caracteristicas Iormais, como tambem de consideraes substantivas, veja-se Claudio Pereira de
Souza Neto. 'Fundamentao e Normatividade dos Direitos Fundamentais: Uma Reconstruo Teorica a
Luz do Principio Democratico. In: Luis Roberto Barroso (Org.). A Nova Interpretao Constitucional.
Ponderao, Direitos Fundamentais e Relaes Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 285-325.
34
3
Na teoria juridica contempornea a obra cannica sobre esta questo e Herbert Hart. The Concept of
Law. OxIord: OxIord University Press, 1961.
35
Judiciario. Dai, inclusive, a recusa de parte signiIicativa da doutrina de conceber os
direitos sociais como tipicos direitos subjetivos
36
.
Por tais razes, me parece uma simpliIicao exagerada a aIirmao de que, ao
adjudicar demandas relacionadas aos direitos sociais, o Poder Judiciario no interIere na
democracia, pois se limita a aplicar normas juridicas vigentes.
Em sintese, entendo que a democracia no impede a interveno judicial voltada
a aIirmao dos direitos sociais, mas antes a exige, sobretudo em contextos de grave
excluso social como o brasileiro. Porem, o principio democratico demanda que se
reconhea um vasto espao de liberdade de conIormao do legislador nesta seara
37
,
revelando-se incompativel com compreenses que depositem no Poder Judiciario todos
os poderes, responsabilidades e expectativas correlacionadas a construo de uma
ordem social mais justa
38
.
3- Os Direitos Sociais como Direitos Subjetivos ~Prima Facie
Em outros ordenamentos juridicos em que os direitos sociais no Ioram
consagrados constitucionalmente, ou no se lhes reconhece plena justiciabilidade, a
doutrina e jurisprudncia recorreram a estrategias indiretas para proporcionar alguma
proteo judicial a eles, socorrendo-se sobretudo de argumentao juridica Iocada nos
direitos individuais
39
. Assim, por exemplo, o principio da igualdade ja Ioi mobilizado

CI. Luis Prieto Sanchis. 'Los derechos sociales y el principio de la igualdad sustancial. In: Lev,
Principios, Derechos. Madrid: Dykinson, 1998, p. 107.
36
CI. Jose Reinaldo de Lima Lopes. 'Direito Subjetivo e Direitos Sociais. In: Jose Eduardo Faria (Org.).
Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justia. So Paulo: Malheiros, 1994.
37
CI. Cristina Queiroz. Direitos Fundamentais Sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 98
38
Em linha semelhante, Christian Courtis e Victor Abramovich, segundo os quais 'la fudicatura no es el
poder estatal llamado a desempear atribuiciones centrales para adoptar decisiones complefas em
materia de politicas sociales. De alli que se recono:ca a los poderes politicos del Estado um amplio
margen de actuacion el diseo e efecucion de esas politicas` (Op. cit., p. 248-249)
39
3
CI. Christian Courtis e Victor Abramovich. Op. cit., p. 168-220.
com sucesso na jurisprudncia do Canada
40
e de Israel
41
, o direito a vida tem dado
amparo a uma ampla proteo social na ndia
42
, e, ate nos Estados Unidos pais em
que e grande a resistncia contra os direitos sociais ja houve um ensaio de tutela-los
atraves da clausula do devido processo legal
43
. No Brasil, direitos individuais e outros
principios constitucionais podem operar e Ireqentemente operam - como reIoros
argumentativos na tutela dos direitos sociais. Todavia, tal artiIicio no e condio sine
qua nom para a sua proteo judicial, em razo do reconhecimento praticamente
consensual no pais de que tais direitos possuem Iora normativa propria. Nada obsta,
contudo, que os argumentos relacionados aos direitos individuais sejam empregados
para reIorar a tutela dos direitos sociais como tem ocorrido com Ireqncia nas aes
envolvendo prestaes de saude, atraves da invocao do direito a vida.
Mas, assentada a ideia de que os direitos sociais no so meras proclamaes
politicas ou exortaes desprovidas de Iora vinculante dirigidas ao legislador, cabe
examinar qual e a sua estrutura, ja que esta tem reIlexos importantes na Iorma como
pode ser realizada a sua proteo judicial.
Em primeiro lugar, deve ser aIastada a viso brasileira tradicional, que via nestes
direitos normas de carater programatico. E certo que as normas programaticas no so
meros conselhos aos poderes publicos, produzindo eIeitos juridicos signiIicativos
44
.
Porem, de acordo com o conhecimento convencional, no Iigura dentre estes eIeitos a
possibilidade de exigncia de prestaes positivas, e e exatamente isto o que mais
40
4
No caso Eldridge v. British Columbia, julgado pela Suprema Corte do Canada em 1997, reconheceu-se a
violao do direito a igualdade de trs pessoas surdas no acesso a saude, em razo do Iato do servio
hospitalar prestado na provincia de Columbia Britnica no contar com interpretes na lingua dos sinais, o
que diIicultava o seu contato com os medicos (151 D.L.R. (4th) 577, 616 (1997)) Todavia, de acordo
com Ran Hirshl, tratou-se de uma exceo no cenario da jurisprudncia constitucional canadense, que no
reconhece, em geral, possibilidade de proteo de direitos sociais (Towards Juristocracv. Cambridge:
Harvard University Press, 2004, p. 128-130)
41
No caso Abu-Apash et al. v. Ministrv of Health, decidido em 2000, a Suprema Corte de Israel
condenou aquele Estado a construir seis clinicas de atendimento materno-inIantil em comunidade arabe
na qual tal servio de saude no era antes prestado, diante da demonstrao, realizada a partir de dados
estatisticos, de que os colonos judeus que habitavam regio vizinha estavam recebendo atendimento
muito superior na questo (cI. Ran Hirshl. Op. cit., p. 138).
42
4
Vide nota 16.

43
Esta tendncia ocorreu em periodo de grande ativismo progressista da Suprema Corte, no Iim dos anos
60 e inicio da decada seguinte, tendo soIrido depois uma completa reverso. Sobre o tema, veja-se Cass
Sunstein. The Second Bill of Rights. New York: Basic Books, 2004, p. 149-171; e Frank Michelman. 'On
Protecting the Poor through the 14th. Amendment. In: Harvard Law Review, 83, 1969, p. 7-59.
44
Sobre estes eIeitos, veja-se, por todos, Luis Roberto Barroso. O Direito Constitucional e a Efetividade
das suas Normas. Op. cit., p. 116-120.
interessa em materia de direitos sociais. Conceber os direitos sociais como normas
programaticas implica deixa-los praticamente desprotegidos diante das omisses
estatais, o que no se compatibiliza nem com o texto constitucional, que consagrou a
aplicabilidade imediata de todos os direitos Iundamentais (art. 5, ParagraIo 1), nem
com a importncia destes direitos para a vida das pessoas.
Por outro lado, tambem no e correta a tese que prevaleceu na Irica do Sul
45
, e
que, no Brasil, Ioi deIendida por Fabio Konder Comparato
46
, de que os direitos sociais
no contariam com uma dimenso subjetiva, no ensejando a exigibilidade de
quaisquer prestaes positivas pelos seus titulares, mas to-somente um controle
judicial voltado ao exame da razoabilidade das politicas publicas implementadas para
realiza-los. E verdade que esta tese vai muito alem da teoria das normas programaticas,
uma vez que viabiliza a realizao de algum controle sobre o desempenho do Estado na
concretizao dos direitos sociais. Contudo, ela e ainda insuIiciente, por no
proporcionar aos titulares destes direitos uma proteo adequada. Ademais, do ponto de
vista dogmatico, se os direitos sociais so autnticos direitos Iundamentais, eles
possuem titulares e radicam na pessoa humana. Dai porque, me parece incorreta a
posio que lhes nega dimenso subjetiva.
Tampouco considero viavel conceber os direitos sociais ou pelo menos a
maior parte deles
47
- como direitos subjetivos deIinitivos. Esta possibilidade deve ser
aIastada diante do reconhecimento da escassez de recursos e da existncia de diIerentes
Iormas de realizao dos direitos sociais, bem como da primazia do legislador para
adoo das decises competentes sobre o que deve ser priorizado e sobre como deve ser
concretizado cada direito. Tal primazia decorre tanto do principio democratico como da
separao de poderes. Portanto, no basta, por exemplo, que alguem precise de moradia
ou de qualquer tratamento de saude para que se conclua, num singelo silogismo, sobre a
existncia de um dever incondicional do Estado, judicialmente exigivel, de proporciona-
los.
45
4
Sobre a proteo dos direitos sociais na Irica do Sul, veja-se Cass Sunstein. The Second Bill of Rights.
New York: Basic Books, 2004, p. 209-229; e Mark Tushnet. Weak Courts, Srong Rights ... Op. cit., p.
242-247.
46
4
CI. Fabio Konder Comparato. 'O Minsterio Publico na DeIesa dos Direitos Econmicos, Sociais e
Culturais. In: Eros Roberto Grau e Sergio Servulo Cunha. Estudos de Direito Constitucional em
Homenagem a Jose Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 244-260.
47
4
Penso que e possivel conceber algumas prestaes da Previdncia Social, bem como o direito de acesso
ao ensino Iundamental como direitos subjetivos deIinitivos, ja que previstos no texto constitucional
atraves de regras e no de principios.
Resta o modelo dos direitos subjetivos garantidos prima facie. Este modelo e
deIendido por Robert Alexy
48
, Martin Borowsky
49
, Ingo WolIgang Sarlet
50
, Carlos
Bernal Pulido
51
, Miguel Carbonell
52
e Paulo Gilberto Cogo Leivas
53
, dentre outros
autores. De acordo com ele, os direitos sociais so direitos subjetivos, que, contudo,
possuem natureza principiologica, sujeitando-se a um processo de ponderao no caso
concreto, anterior ao seu reconhecimento deIinitivo. Nesta ponderao, comparece, de
um lado, o direito social em jogo, e, do outro, principios como os da democracia e da
separao de poderes, alem de eventuais direitos de terceiros que seriam aIetados pela
garantia do direito contraposto. A possibilidade da tutela judicial, bem como o seu
conteudo, dependero do resultado da ponderao, que, como soi acontecer, deve ser
pautado pelo principio da proporcionalidade. Esta soluo e proIundamente
comprometida com a eIetivao dos direitos sociais, mas leva em considerao todas as
diIiculdades Iaticas e juridicas envolvidas neste processo, bem como a existncia de
uma ampla margem de liberdade para os poderes politicos neste campo, decorrente no
so da sua legitimidade democratica, como tambem da sua maior capacidade Iuncional.
E verdade que no modelo de ponderao proposto por Alexy, o que Iigura em
um dos lados da balana no e o proprio direito social vindicado, mas a liberdade
material que este assegura. Provavelmente, este modelo Ioi concebido desta Iorma em
razo do Iato de a Constituio alem no consagrar direitos sociais em seu texto. Dai o
recurso a um meio indireto para exigibilidade destes direitos, que permitisse a superao
da omisso do constituinte germnico. Contudo, no ordenamento constitucional
brasileiro, os direitos sociais Ioram expressamente positivados e so considerados
plenamente justiciaveis. Ademais, a liberdade material no e a unica razo que justiIica
48
4
. Robert Alexy. 'Derechos Sociales Fundamentales. In: Miguel Carbonell, Juan Antonio Parcero y
RodolIo Vazques. Derechos Sociales v Derechos de las Minorias. Mexico: Editorial Porrua, 2004, p. 69-
88.
49
4
Martin Borowsky. La Estructura de los Derechos Fundamentaless. Trad. Carlos Bernal Pulido. Bogota:
Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 148-186.
50
5
Op. cit., p. 87-122
51
5
. Carlos Bernal Pulido. 'Fundamento, Concepto y Estructura de los Derechos Sociales. In: El Derecho
de los derechos. Bogota: Universidad Externado de Colombia, 2006, p. 287-330.
52
5
Miguel Carbonell. Los Derechos Fundamentales en Mexico. 2 ed. Mexico:Editorial Porrua, 2005, p.
827-828.
53
5
Ingo WolIgang Sarlet. 'Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituio de 88. In: Ingo Wolgang
Sarlet: O Direito Publico em Tempos de Crise. Estudos em Homenagem a Ruv Ruben Ruschel. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 129-173..
a proteo dos direitos sociais. Esta pode ser Iundamentada tambem em outros
objetivos, como atendimento das necessidades humanas basicas, a viabilizao da
democracia, etc. Por isso, entendo que a ponderao no deve ser Ieita com a liberdade
material, como sustenta Alexy, mas com o proprio direito social em jogo.
Finalmente, cumpre Iazer um adendo: o reconhecimento da dimenso subjetiva
dos direitos sociais no exclui a presena da sua dimenso objetiva
54
. Em razo desta
ultima, e possivel detectar, por exemplo, a Iora irradiante dos direitos sociais, que os
torna diretrizes importantes para interpretao de outras normas e atos juridicos; o dever
do Estado de proteger perante terceiros os bens e valores subjacentes a tais direitos; e a
obrigao estatal de instituir organizaes e procedimentos aptos a realizao dos
mesmos direitos. No presente texto, porem, o nosso Ioco e centrado na dimenso
subjetiva dos direito sociais.
Mas Ialar em ponderao e pouco. A ponderao, desacompanhada de standards
que a estruturem e limitem, pode transIormar-se numa 'caixa preta, de onde o
interprete consegue sacar quase qualquer soluo, convertendo-se num rotulo pomposo
para o mais deslavado decisionismo
55
. Por isso, o restante deste trabalho se voltara para
a tentativa de Iormulao de alguns destes standards.

4- Reserva do Possvel Ftica, Igualdade e Universalizao

Como ja salientado, os direitos sociais tm custos, o que, num quadro de
escassez de recursos, impem limites para a sua eIetivao. Este Iato ja Ioi invocado
para recusar-se a sindicabilidade de tais direitos, mas tal posio, ao menos na
dogmatica e jurisprudncia brasileiras, encontra-se atualmente superada. Hoje, no
entanto, e comum aIirmar-se que os direitos sociais vigoram sob a 'reserva do
possivel. Todavia, embora esta expresso seja usada com grande Ireqncia, no existe
54
A ideia de dimenso objetiva dos direitos Iundamentais parte da premissa de que estes no se limitam a
Iuno de direitos subjetivos. A partir do reconhecimento de que os direitos Iundamentais protegem os
valores mais relevantes da coletividade, so construidas Iunes adicionais para eles, ligadas a proteo e
promoo destes valores na ordem juridica e social. Veja-se, sobre esta questo, Daniel Sarmento. 'A
Dimenso Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria. In: Jose Adercio Leite
Sampaio. Jurisdio Constitucional e Direitos Fundamentais. Brlo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 251-
314.:
55
5
O debate sobre a legitimidade e os limites da ponderao de interesses realizada pelo Poder Judiciario e
complexo e conta com extensa bibliograIia. timas sinteses sobre os debates envolvidos nesta questo
podem ser encontradas em Ana Paula de Barcellos. Ponderao, Racionalidade e Atividade
Jurisdicional. Rio de janeiro: Renovar, 2005; e em Jane Reis Gonalves Pereira. Interpretao
Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 215-296.
consenso sobre o seu real signiIicado. Tentarei, nas proximas linhas, deIinir um sentido
para ela, que possa ser Iundamentado moral e juridicamente, e que sirva de parmetro
para a adjudicao de direitos prestacionais.
A expresso 'reserva do possivel Ioi diIundida por uma celebre deciso da Corte
Constitucional alem
56
proIerida em 1972, e conhecida como o caso Numerus Clausus,
que versou sobre a validade da limitao do numero de vagas em universidades
publicas, tendo em vista a pretenso de ingresso de um numero maior de candidatos. Na
Alemanha, no esta constitucionalmente consagrado o direito Iundamental a educao,
mas o Tribunal Constitucional entendeu que a liberdade de escolha proIissional exigia,
em alguma medida, o direito de acesso ao ensino universitario. Contudo, Irisou que este
direito 'se encontra sob a reserva do possivel, no sentido de estabelecer o que pode o
individuo ra:oavelmente exigir da sociedade`. Para a Corte, esta avaliao sobre a
reserva do possivel deveria ser Ieita, 'em primeira linha, pelo legislador`, que 'deve
atender, na administrao do seu oramento, tambem a outros interesses da
coletividade, considerando ... as exigncias de harmoni:ao economica geral.`
Pode-se desdobrar a ideia de reserva do possivel em dois componentes: um
Iatico e outro juridico
57
. O componente Iatico diz respeito a eIetiva disponibilidade dos
recursos econmicos necessarios a satisIao do direito prestacional, enquanto o
componente juridico relaciona-se a existncia de autorizao oramentaria para o
Estado incorrer nos respectivos custos
58
.
Na jurisdio constitucional brasileira, o conceito Ioi ventilado em obter dictum
lanado em deciso monocratica do Ministro Celso Mello, que extinguiu, por perda do
objeto, a ADPF n 45, na qual se questionava o veto presidencial a dispositivo de Lei de
Diretrizes Oramentarias reIerente ao ano de 2004, que visava a assegurar recursos
56
5
BVerIGE 33, 303 (1972). Os trechos mais importantes da deciso esto reproduzidos, em lingua
portuguesa, em Jrgen Schwabe. Cinqenta Anos de Jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal
Alemo. Trad. Beatriz Hennig et. al.. Konrad Adenauer StiItung: Berlim, 2005, p. 656-667.
57
5
CI. No mesmo sentido, Ingo WolIgang Sarlet. A Eficacia dos Direitos Fundamentais. Op. cit, p. 288-
289.
58
5
Para Jose Joaquim Gomes Canotilho, a reserva do possivel signiIica que a realizao dos direitos sociais
se caracteriza '(1) pela gradualidade da sua reali:ao, (2) pela dependncia financeira relativamente
ao oramento do Estado, (3) pela tendencial liberdade de conformao do legislador quanto as politicas
de reali:ao deste direito, (4) pela insuscetibilidade de controlo furisdicional dos programas politico-
legislativos a no ser quando se manifestam em clara contradio com as normas constitucionais ou
transportem dimenses manifestamente desra:oaveis` ('Metodologia Fuzzy e 'camalees normativos
na problematica atual dos direitos sociais, econmicos e culturais. In: Estudos sobre Direitos
Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.108).
minimos a area da saude, em cumprimento a Emenda Constitucional n 29/2000. Nas
palavras do Ministro, 'os condicionamentos impostos pela clausula da reserva do
possivel, ao processo de concreti:ao dos direitos de segunda gerao de
implantao sempre onerosa tradu:em-se em um binomio que compreende, de um
lado,, (1) a ra:oabilidade de pretenso individual-social dedu:ida em face do Poder
Publico, e, de outro (2) a existncia de disponibilidade financeira do Estado para
tornar efetivas as prestaes positivas dele reclamadas`. Porem, nesta mesma deciso
o Ministro Celso Mello consignou que 'a clausula da reserva do possivel ressalvada
a ocorrncia de fusto motivo obfetivamente aferivel no pode ser invocada, pelo
Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigaes
constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder
resultar nulificao ou, ate mesmo, aniquilao de direitos constitucionais
impregnados de um sentido essencial de fundamentalidade`.
59
Sem embargo, ha na doutrina quem questione a possibilidade de transposio do
conceito de reserva do possivel para o Direito Constitucional brasileiro. Andreas J.
Krell, por exemplo, numa obra importante sobre o controle judicial dos direitos
sociais
60
, apontou a recepo desta teoria no Brasil como o 'fruto de um Direito
Constitucional Comparado equivocado`
61
. Na sua opinio, em paises pobres como o
Brasil, em que muitas necessidades humanas basicas no so minimamente atendidas,
no seria possivel empregar a ideia de reserva do possivel, criada no 1 Mundo, sob
pena de completo esvaziamento dos direitos sociais
Contudo, me parece que o argumento e contraditorio, ja que a maior carncia
econmica, presente em paises do Terceiro Mundo, torna ainda mais evidente a
impossibilidade de realizao otima e concomitante de todos os direitos sociais. Por
isso, o indice maior de pobreza no aIasta a incidncia da reserva do possivel, mas antes
acentua a sua importncia. No obstante, concordo com o ProI. Krell quando ele aIirma
que tanto o maior grau de miserabilidade da populao brasileira, como a Iorma
explicita de positivao dos direitos sociais no nosso texto constitucional muito
diIerente, por exemplo, da Constituio alem, que no os consagrou expressamente - ,
59
5
DJU de 04/05/2004.
60
6
Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um Direito
Constitucional 'Comparado`. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
61
6
. Op. cit., p. 51.
so incompativeis com a tese da insindicabilidade de tais direitos. Como Krell, no
tenho duvidas sobre a legitimidade e necessidade de interveno judicial nesta seara.
Sem embargo, diIerentemente dele, entendo que isto no aIasta a incidncia da reserva
do possivel, compreendida Irise-se bem - no como bloqueio a tutela jurisdicional dos
direitos sociais, mas como um criterio importante para a sua parametrizao.
Resta, ento, traar um conceito constitucionalmente correto de reserva do
possivel, o que tentarei Iazer iniciando pelo seu componente Iatico. Uma possibilidade
extrema, que deve ser desde ja descartada, seria associar a reserva do possivel Iatica a
absoluta exausto dos recursos publicos. De acordo com esta exegese, uma postulao
em juizo compreendida no mbito de proteo de direito social somente poderia ser
denegada se Iicasse evidenciada a completa Ialta de recursos do Estado para satisIaz-
la
62
. Esta compreenso me parece incorreta, pois ignora a necessidade do Poder Publico
de atender a uma inIinidade de outras demandas onerosas muitas delas igualmente
aliceradas na Constituio. Ela permitiria que, em nome da proteo do direito de uma
pessoa, todos os direitos e interesses legitimos das demais que necessitassem de
recursos publicos Iossem completamente sacriIicados.
Outra interpretao seria a de conceber a reserva do possivel como uma
avaliao Iocada na tolerabilidade do impacto econmico da pretenso individual do
titular do direito Iundamental sobre o universo de recursos publicos existentes. Esta
exegese no gera eIeitos to radicais como a primeira, na medida em que preserva a
possibilidade de denegao de uma prestao sempre que os seus custos acarretem um
impacto muito elevado sobre as contas publicas e possam comprometer gravemente a
satisIao de outros direitos Iundamentais ou necessidades sociais de igual relevncia.
Porem, entendo que esta posio tambem no e correta, Ialhando por no 'levar a serio
a igualdade entre as pessoas.
Explico-me: a interpretao exposta no paragraIo anterior toma por base o
custo representado apenas pela prestao concedida ao autor da ao. Neste quadro, por
mais custosa que seja esta prestao, diIicilmente ela sera muito signiIicativa quando
cotejada com a magnitude dos recursos e oramentos das entidades Iederativas. Assim,
62
Emerson Garcia parece adotar esta posio, quando, ao tratar da reserva do possivel como obstaculo a
eIetivao dos direitos sociais, deIiniu-a como 'inexistncia dos proprios recursos necessarios a
satisfao dos direitos`, consignando que, 'no caso de total insuficincia de recursos, o que devera ser
demonstrado e no simplesmente alegado, pouco espao restara para que o Poder Publico sefa
compelido a cumprir o seu dever furidico.`. ('O Direito a Educao e suas Perspectivas de EIetividade.
In: Emerson Garcia (Org.). A Efetividade dos Direitos Sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.
190).
se o parmetro Ior este, praticamente toda pretenso Iormulada em aes individuais
sera acolhida, ainda quando seja economicamente impossivel para o Estado estender o
mesmo beneIicio a todas as pessoas em idntica situao
63
. Ocorre que o Estado no
deve conceder a um individuo aquilo que ele no tiver condies de dar a todos os que
se encontrarem na mesma posio. Esta e uma exigncia Iundamental imposta pelo
principio da igualdade, que no pode ser postergada
64
.
Por isso, entendo que a reserva do possivel Iatica deve ser concebida como a
ra:oabilidade da universali:ao da prestao exigida, considerando os recursos
efetivamente existentes. Por este criterio, se, por exemplo, um portador de
determinada doena grave postular a condenao do Estado a custear o seu tratamento
no exterior, onde, pelo maior desenvolvimento tecnologico, a sua patologia tiver
maiores chances de cura, o juiz no deve indagar se o custo decorrente daquela
especiIica condenao judicial e ou no suportavel para o Erario. A pergunta correta a
ser Ieita e sobre a razoabilidade ou no da deciso do Poder Publico de no
proporcionar este tratamento Iora do pais, para todos aqueles que se encontrem em
situao similar a do autor. Trata-se, em suma, de avaliar a legitimidade constitucional
de uma omisso em materia de politica publica, o que demanda um olhar Iocado no so
na arvore, mas em toda a Iloresta.
No quero com isso dizer que as decises judiciais em materia de direitos sociais
no devem avaliar as singularidades de cada caso, contentando-se com generalizaes.
Pelo contrario, a analise pormenorizada do caso sub fudice e uma obrigao
incontornavel do juiz, que no deve e no pode tratar as pessoas como se Iossem meros
numeros, abstraindo de suas necessidades e de seus soIrimentos. O que pretendo
salientar e apenas que, em razo do principio da isonomia, pessoas que estiverem na
mesma situao devem receber o mesmo tratamento, razo pela qual no se pode exigir
judicialmente do Estado que Iornea algo a um individuo que no seja possivel
conceder a todos aqueles que estiverem nas mesmas condies.
63
Exemplo deste raciocinio pode ser acolhido na argumentao do Ministro Edson Vidigarl, a epoca
Presidente do STJ, na analise do pedido de Suspenso de Segurana n 1.408/SP, ocorrido em
08/09/2004: '...no ha como concluir que o fornecimento do medicamento a uma unica paciente possa
causar leso de conseqncias significativas e desastrosas a economia do Estado de So Paulo. Destaco,
ainda, que o efeito multiplicador alegado como fustificativa ao pedido de suspenso e meramente
hipotetico, no tendo a postulante tra:ido qualquer indicio de que, animadas pela deciso recorrida,
tenham sido afui:adas outras aes com igual pretenso`.
64
No mesmo sentido, Gustavo Amaral. Op. cit., p. 39.
Mas, do ponto de vista processual, a reserva do possivel e materia de deIesa.
Portanto, o nus da prova em demonstrar que a concesso de determinada prestao
esbarra na reserva do possivel deve pesar sobre o Estado, e no sobre o jurisdicionado,
ate porque no seria razoavel exigir deste ultimo que apresentasse em juizo todos os
dados e inIormaes necessarios para que se proceda a reIerida analise. No basta,
portanto, que o Estado invoque genericamente a reserva do possivel para se opor a
concesso judicial de prestaes sociais como, inIelizmente, tem ocorrido na maior
parte das aes nesta materia. E preciso que ele produza prova suIiciente desta
alegao
65
.

5- Reserva do Possvel 1urdica e Oramento
A reserva do possivel juridica identiIica-se com a existncia de embasamento
legal para que o Estado incorra nos gastos necessarios a satisIao do direito social
reclamado. A questo nodal, aqui, diz respeito a existncia de previso oramentaria
para a realizao de determinada despesa, tendo em vista o principio da legalidade da
despesa.
O debate sobre a possibilidade de o Poder Judiciario determinar a realizao de
gastos para satisIao de direitos sociais sem previso oramentaria e complexo. De um
lado, argumenta-se que, diante da escassez de recursos e da impossibilidade de
atendimento concomitante de todas as demandas sociais, devem caber ao legislador,
numa democracia, o poder e o nus de escolher aquilo que devera ser priorizado, o que
ele Iaz atraves da lei oramentaria. De acordo com este ponto de vista, e o legislador
que tem a melhor viso de conjunto das inumeras necessidades da sociedade que
carecem de recursos para a sua satisIao, e do total da receita disponivel para atend-
las, e e ele tambem que detem a legitimidade para Iazer as opes necessarias, em razo
da sua eleio pelo povo
66
.
Da outra banda, aduz-se que condicionar a eIicacia dos direitos sociais ao
oramento signiIica submeter a Iora normativa da Constituio a vontade do
65
No mesmo sentido, Rogerio Gesta Leal. 'O controle jurisdicional das politicas publicas no Brasil:
possibilidade materiais. In: Ingo Wolgnag Sarlet. Jurisdio e Direitos Fundamentais, Volume I, Tomo I.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.174.

66
CI. Silvia Faber Torres. 'Direitos Sociais Prestacionais, Reserva do Possivel e Ponderao: Breves
Consideraes e Criticas. In: Daniel Sarmento e Flavio Galdino. Direitos Fundamentais. Estudos em
Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 783-785.
legislador. Se os direitos sociais so Iundamentais o que parece claro, a luz da
Constituio de 88 - , isto signiIica que eles valem como 'trunIos que se impem
mesmo contra a vontade das maiorias de ocasio. Dai porque, seria um contra-senso
permitir que o legislador Irustrasse a possibilidade de eIetivao de direitos sociais, ao
no alocar no oramento as verbas necessarias para a sua Iruio. Alem disso, certos
direitos sociais basicos podem ser concebidos como pressupostos da democracia,
conIorme acima ressaltado. Nestes casos, no ha como invocar o argumento
democratico para deIender a impossibilidade de decises judiciais que concedam
prestaes no contempladas no oramento.
Ha parcelas de razo em ambos os argumentos. No se pode ignorar, no
equacionamento da questo, nem a prioridade do legislador democratico na realizao
das 'escolhas tragicas sobre gastos publicos, nem tampouco a natureza vinculante dos
direitos Iundamentais sociais para o Legislativo. Cumpre, portanto, reconhecer que se,
por um lado, o legislador dispe de uma ampla margem de deciso nesta materia, que
no deve ser excessivamente tolhida pela jurisdio, por outro, as suas escolhas
oramentarias no se Iazem em um 'campo livre de Constituio, uma vez que e
possivel inIerir da Lei Maior certas prioridades que no podem ser ignoradas pelo
legislador, estando sujeitas em alguma medida ao crivo do Poder Judiciario
67
.
Nesta linha, no concordo nem com a orientao que transparece em algumas
decises judiciais, inclusive do STF, no sentido de que o juiz no deveria se preocupar
com a existncia ou no de previso oramentaria para a realizao de despesas
atreladas a direitos sociais
68
, nem tampouco com a concepo de que a ausncia desta
previso constitui barreira insuperavel para o Judiciario na adjudicao de direitos
sociais. A virtude, como soi acontecer, esta no meio. Penso, em sintese, que a ausncia
de previso oramentaria e um elemento que deve comparecer na ponderao de
interesses que envolve a adjudicao dos direitos Iundamentais sociais previstos de
67
Nesta linha, ressaltou Robert Alexy: 'La fuer:a del principio de la competencia presupuestaria del
legislador no es ilimitada. No es un principio absoluto. Los derechos individuales pueden tener mas peso
que las ra:ones de politica financiera ... Todos los derechos limitan la competencia del legislador, a
menudo lo hacen de forma inconveniente para este v, a veces, afectan tambien su competencia
presupuestaria cuando se trata de derechos financieramente mas gravosos`. (Teoria de los Derechos
Fundamentales. Op. cit., p. 495). Sobre o tema, veja-se tambem Alceu Mauricio Jr. 'A Reviso Judicial
das Escolhas Oramentarias e a EIetivao dos Direitos Fundamentais. In: Revista Dialogo Juridico , n
15, 2007, acessivel no sitio www.direitopublico.com.br, acessado em 10 de Ievereiro de 2008.
68
Veja-se, por exemplo, a maniIestao do Ministro Celso de Mello no RE 273.834/RS: 'A falta de
previso oramentaria no deve preocupar o fui: ... mas apenas o administrador... entre proteger a
inviolabilidade do direito a vida e a saude ... ou fa:er prevalecer, contra esta prerrogativa fundamental,
um interesse financeiro e secundario do Estado, ... ra:es de ordem etica-furidica impe ao fulgador
uma so e possivel opo`.
Iorma principiologica. Trata-se de um Iator relevante, mas que esta longe de ser
deIinitivo, podendo ser eventualmente superado de acordo com as peculiaridades do
caso
69
.

6- Mnimo Existencial e Necessidade
Existe um relativo consenso na IilosoIia politica contempornea, da qual esto
excluidos apenas os pensadores ditos libertarios, de que e papel do Estado assegurar as
condies materiais minimas de vida para as pessoas mais necessitadas
70
. Dos principais
Iundamentos morais empregados para justiIicar esta obrigao estatal, dois so
instrumentais e um no e. Os argumentos instrumentais so no sentido de que se trata de
uma exigncia necessaria para (a) a garantia da liberdade real, ou (b) para a proteo
dos pressupostos da democracia. O argumento no-instrumental e o de que o
atendimento das necessidades materiais humanas essenciais constitui um Iim em si
mesmo e no um meio para obteno de qualquer outra Iinalidade.
O argumento da liberdade material tem muito prestigio dentre os adeptos do
liberalismo igualitario, e Ioi deIendido por IilosoIos como John Rawls
71
, economistas
como Amartya Sen
72
, assim como por juristas como Robert Alexy
73
e Ricardo Lobo
Torres
74
. A ideia Iundamental aqui e a de que sem o atendimento de certas condies
materiais basicas, esvazia-se a liberdade, pela impossibilidade concreta do seu
exercicio. A liberdade, segundo esta viso, no se esgota na ausncia de impedimentos
externos a ao do agente, envolvendo tambem a possibilidade real do seu exercicio.
69
6
Em sentido semelhante, veja-se Paulo Gilberto Cogo Leivas. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais.
Op. cit., p. 99-101.
70
7
CI. RodolIo Arango. El Concepto de Derechos Fundamentales Sociales. Mexico: Legis, 2005, p. 238-
296; e Ana Paula de Barcellos. 'O Minimo Existencial e Algumas Fundamentaes: John Rawls,
Michael Walzer e Robert Alexy. In: Ricardo Lobo Torres (Org). Legitimao dos Direitos Humanos.
Rio de Janeiro: renovar, 2002, p. 11-49.
71
7
Liberalismo Politico. Op. cit., p. 31-32.
72
7
. O Desenvolvimento como Liberdade. Trad. Laura Teixeira Mota. So Paulo: Companhia das Letras,
1999.
73
7
. Teoria de los Derechos Fundamentales. Op. cit., p. 486-489.
74
7
. 'A MetamorIose dos Direitos Sociais em Minimo Existencial. In: Ingo WolIgang Sarlet (Org).
Direitos Fundamentais Sociais. Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Op. cit., ,
p. 01-46
Esta, por sua vez, demanda que sejam garantidas certas condies materiais minimas
para os necessitados.
O argumento democratico ja Ioi explicitado em item anterior deste trabalho. Ele
se baseia na ideia, deIendida por pensadores como Jrgen Habermas
75
e juristas como
Friedrich Muller
76
, de que a democracia no se conIunde com o predominio da vontade
da maioria, exigindo a garantia de certos direitos que viabilizem a participao dos
cidados no espao publico. Dentre os direitos garantidos, e necessario que Iigure a
satisIao das necessidades materiais basicas das pessoas mais carentes, sem o que
restaria comprometida a sua capacidade real de participar das deliberaes adotadas na
sociedade.
Finalmente, o argumento no-instrumental e no sentido de que o atendimento
das necessidades humanas mais basicas e uma exigncia autnoma da justia, que se
impe independentemente das suas conseqncias para a promoo de outros objetivos,
como a garantia da liberdade ou promoo da democracia. O IilosoIo alemo Ernst
Tugendhat
77
e um dos seus deIensores, assim como Paulo Gilberto Cogo Leivas, na
doutrina juridica brasileira.
78
Na minha opinio, a teoria no-instrumental e a mais correta. E obvio que a
garantia do minimo existencial constitui tambem, em geral, um pressuposto Iatico seja
para o gozo das liberdades individuais, seja para o exercicio da cidadania politica.
Contudo, ainda que assim no Iosse, uma compreenso correta da ideia de justia teria
de envolver a obrigao moral do Estado e da sociedade de combater o soIrimento e a
miseria humanas, atraves da garantia das condies minimas de vida para os
necessitados. Veja-se o exemplo de um individuo que padea de deIicincia mental
severa e incuravel e que esteja em situao de absoluta penuria material. Poucos
discutiro que ele tambem Iaz jus a proteo do minimo existencial, em que pese no
Iazer muito sentido Ialar desta garantia como um pressuposto para o exercicio da sua
liberdade material ou do seu direito a participao politica. Por isto, penso que e a
urgncia e gravidade de uma necessidade material, e no a sua importncia para a
75
Direito e Democracia entre Facticidade e Jalidade I. Op. cit., p. 160.
76
7
'Que grau de excluso social ainda pode ser tolerado por um sistema democratico?. In: Flavia Piovesan
(Coord.). Direitos Humanos, Globali:ao Economica e Integrao Regional. So Paulo: Max Limonad,
2002, p. 567-607.
77
7
Lies sobre Etica. Trad. Robson Ramos dos Reis et all. 4ed., Petropolis: Ed. Vozes, p. 386-389.
78
. Op. cit., p. 123-139.
realizao de outros objetivos, por mais nobres que sejam, que deve ser o criterio
central para deIinir o minimo existencial. Sem embargo, do ponto de vista juridico,
uma soluo neutra para esta controversia e localizar o Iundamento normativo do
minimo existencial no principio da dignidade da pessoa humana, uma vez que tal
principio apela tanto a liberdade material, como a democracia e ao atendimento de
necessidades basicas das pessoas.
O direito minimo existencial corresponde a garantia das condies materiais
basicas de vida
79
. Ele ostenta tanto uma dimenso negativa como uma positiva. Na sua
dimenso negativa, opera como um limite, impedindo a pratica de atos pelo Estado ou
por particulares que subtraiam do individuo as reIeridas condies materiais
indispensaveis para uma vida digna. Ja na sua dimenso positiva, ele envolve um
conjunto essencial de direitos prestacionais. No ha, todavia, consenso sobre as
prestaes que compem este conjunto
80
, e o meu objetivo aqui no e o de elaborar
qualquer tipo de elenco a tal proposito.
A ideia de um direito ao minimo existencial surgiu em deciso do Tribunal
Federal Administrativo alemo proIerida em 1953, incorporando-se, posteriormente, na
jurisprudncia da Corte Constitucional daquele Estado, a partir da conjugao dos
principios da dignidade da pessoa humana, da liberdade material e do Estado Social,
consagrados na Lei Fundamental germnica. Ela tem recebido acolhida na
79
7
Na jurisprudncia constitucional colombiana encontra-se uma deIinio lapidar do minimo existencial
denominado minimo vital naquele pais. Ela Ioi estabelecida na Sentencia C-776, de 2003, proIerida pela
Corte Constitucional da Colmbia, em deciso que invalidou parcialmente uma lei tributaria que gravara
com o imposto sobre o valor agregado uma serie de produtos, sem excepcionar bens e servios de
primeira necessidade. ConIira-se: 'El obfecto del derecho fundamental al minimo vital abarca todas las
medidas positivas o negativas constitucionalmente ordenadas con el fin de evitar que la persona se vea
reducida en su valor intrinseco como ser humano debido a que no cuenta con las condiciones materiales
que le permitan llevar una existencia digna...El derecho fundamental al minimo vital presenta una
dimension positiva v una negativa. La dimension positiva de este derecho fundamenta lpresupone que el
Estado, v ocasionalmente los particulares ... estan obligados a suministrar a la persona que se
encuentra en una situacion en la cual ella misma no se puede desenpear autonomamente v que
compromete las condiciones materiales de su existencia, las prestaciones necesarias e indispensables
para sobrevivir dignamente v evitar su degradacion o aniquilamento como ser humano. Por su parte,
respecto de la dimension negativa, el derecho fundamental al minimo vital se constituve en un limite o
cota inferior que no puede ser traspasado por el Estado, en materia de los recursos materiales que la
persona necesita para llevar una existencia digna` (CI. RodolIo Arango. El Concepto de Derechos
Fundamentales Sociales. Bogota: Legis, 2005, p. 214-215)
80
Ana Paula de Barcellos, num importante estudo dedicado ao tema, Iormulou o seguinte elenco de
prestaes compreendidas no minimo existencial, que poderiam ser exigidas judicialmente
independentemente de mediao legal: educao Iundamental, saude basica, assistncia em caso de
necessidade e acesso a justia. (A Eficacia Juridica dos Principios Constitucionais. O Principio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 247-301).

jurisprudncia constitucional de diversos outros paises como Portugal
81
e Colmbia
82
. E,
aqui no Brasil, o conceito, introduzido na doutrina pela obra de Ricardo Lobo Torres
83
,
tambem ja Ioi invocado em decises do STF
84
.
Entendo que a insero ou no de determinada prestao no mbito do minimo
existencial no pode ser realizada in abstracto, ignorando a condio especiIica do
titular do direito. Um exemplo: o Iornecimento de um medicamento certamente
integrara o minimo existencial para aquele individuo que dele necessite para sobreviver,
e no possua os recursos suIicientes para adquiri-lo. Porem, o mesmo medicamento
estara Iora do minimo existencial para um paciente que, padecendo da mesma molestia,
tenha os meios proprios para compra-lo, sem prejuizo da sua subsistncia digna. Trata-
se, em suma, de saber ate que ponto a necessidade invocada e vital para o titular do
direito, aIerindo quais seriam as conseqncias para ele da omisso estatal impugnada.
Por isso, no concordo com a argumentao aduzida em algumas decises
judiciais em materia de saude, no sentido de que, tendo em vista a universalidade deste
direito, seria irrelevante analisar se o autor da ao possui ou no os recursos
necessarios a aquisio da prestao demandada do Estado
85
. Este dado me parece
Iundamental, pois, num caso, o sacriIicio eventualmente imposto pela denegao da
pretenso repercute to-somente sobre o patrimnio do paciente, enquanto no outro
pode estar em jogo a sua propria vida. Temo que este tipo de raciocinio, num contexto
de acesso no igualitario a Justia, possa legitimar um uso enviesado dos direitos sociais
que, de instrumentos de emancipao em Iavor dos mais Iracos, acabem se
transIormando em artiIicios retoricos manejados pelas classes Iavorecidas.
81
Acordo 509/02, proIerido em 22 de novembro de 2002. O texto integral do acordo, acompanhado de
substanciosos comentarios, encontra-se em Jorge Reis Novais. Os Principios Constitucionais
Estruturantes. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 64-100.
82
8
CI. RodolIo Arango. Op. cit., p. 213-217.
83
8
. O primeiro artigo de Ricardo Lobo Torres a versar esta materia e de 1989: 'O Minimo Existencial e os
Direitos Fundamentais. Revista de Direito Administrativo, n 177: 29-48, 1989. De la para ca, o
proIessor publicou diversos estudos enIocando o tema, dentre os quais 'A Cidadania multidimensional da
Era dos Direitos. In: Ricardo Lobo Torres (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 239-335; e 'A metamorIose dos direitos sociais em minimo existencial. Op. cit.
84
8
Agravo de Instrumento no Recurso Extraordinario n 410. 715-5/SP, Relator Ministro. Celso Mello,
julgado em 22/11/2005.
85
8
Neste sentido, veja-se o acordo proIerido pela 1 Turma do STJ no REsp. n 430.526/SP, julgado em
1/10/2002, e relatado pelo Ministro Luiz Fux, em que se entendeu irrelevante para a deciso de uma
caso em que um paciente demandava o Iornecimento de medicamento no contemplados na lista do SUS,
o Iato de se tratar de um Delegado de Policia, com rendimentos muito superiores a media nacional.
Noutro giro, o minimo existencial desempenha um papel importante como
criterio para adjudicao judicial de direitos sociais. Como antes ressaltado, numa
ordem juridica centrada na dignidade da pessoa humana no se pode conceber a
realizao de despesa pelo Estado como um campo livre para as decises do legislador
oramentario e do administrador. Pelo contrario, ha prioridades que a eles se impem
por Iora de principios constitucionais revestidos de elevado teor moral, dentre as quais
sobressai a de realizar os gastos necessarios para o atendimento das necessidades
materiais mais basicas dos necessitados. Assim, me parece que o Poder Judiciario esta
plenamente legitimado para Iiscalizar o cumprimento destas prioridades pelos demais
poderes estatais.
Sem embargo, discordo daqueles que aIirmam que o direito ao minimo
existencial e absoluto, no se sujeitando a reserva do possivel
86
. InIelizmente, em
sociedades pobres, nem sempre e possivel assegurar de maneira imediata e igualitaria as
condies materiais basicas para a vida digna de todas as pessoas. Veja-se o caso
emblematico do nosso salario minimo, que, por imperativo constitucional (art. 7, IV),
deveria ser suIiciente para assegurar o minimo existencial para as Iamilias dos que o
percebem, e, no entanto, sempre esteve Iixado em valores muito inIeriores ao que seria
necessario para tanto. Seria economicamente viavel para o Estado brasileiro aumentar
imediatamente o valor do salario minimo para patamares que satisIizessem a imposio
constitucional? E, diante do quadro hoje delineado, poderia o Poder Judiciario exigir
que particulares pagassem aos seus empregados um salario por ele Iixado, que atendesse
o disposto no art. 7, inciso IV, da Constituio, passando por cima do valor
reconhecidamente insuIiciente estipulado pelo legislador? Ou exigir o mesmo do
INSS no pagamento dos beneIicios previdenciarios ou assistenciais? Temo que a
resposta a todas estas questes seja negativa. InIelizmente, consideradas as condies
econmicas do pais, no tem o Estado brasileiro como dobrar ou triplicar imediatamente
o valor do salario minimo, e este dado no pode ser ignorado pelo Judiciario.
Intervenes judiciais nesta seara que atropelassem a reserva do possivel em nome do
minimo existencial ou da eIetividade da Constituio poderiam, num primeiro
momento, agradar aos 'progressistas, mas Iatalmente acarretariam serias
86
Em sentido oposto, veja-se Ingo WolIgang Sarlet. 'Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituio
de 88. Op. cit., p. 165.
conseqncias do ponto de vista macroeconmico, que, ao Iim e ao cabo, acabariam
vitimando sobretudo aos mais pobres
87
.
Em suma, no me parece que o minimo existencial possa ser assegurado
judicialmente de Iorma incondicional, independentemente de consideraes acerca do
custo de universalizao das prestaes demandadas. Porem, entendo que quanto mais
indispensavel se aIigurar uma determinada prestao estatal para a garantia da vida
digna do jurisdicionado, maior deve ser o nus argumentativo imposto ao Estado para
superar o direito prima facie garantido
88
. Sera praticamente impossivel, por exemplo,
justiIicar a no extenso do saneamento basico para uma determinada comunidade
carente, quando o Poder Publico estiver gastando maciamente com publicidade ou
obras Iaranicas. Em outras palavras, a insero de determinada prestao no mbito do
minimo existencial tende a desequilibrar a ponderao de interesses para Iavorecer a
concesso do direito vindicado. Mas no existe um direito deIinitivo a garantia do
minimo existencial, imune a ponderaes e a reserva do possivel.
Por outro lado, tambem no me parece correta a tese de que o papel do
Judiciario em materia de proteo dos direitos sociais tenha sempre de se limitar a
garantia do minimo existencial
89
. Se em relao a todos os demais direitos Iundamentais
persegue-se a maxima eIetividade, dentro do que seja Iatica e juridicamente possivel,
porque, em materia de direitos sociais, deveriamos nos contentar com o minimo? Na
minha opinio, o ponto a que pode chegar o Judiciario depende de uma ponderao de
interesses a ser Ieita em cada caso, na qual, de um lado, Iigure o direito social em
questo, e, do outro, os principios concorrentes, como a democracia, a separao de
poderes e os direitos de terceiros que seriam atingidos ou economicamente
inviabilizados caso Iosse universalizada a prestao demandada.
87
Neste sentido, discordo da posio sustentada por autores como Celso Antonio Bandeira de Melo.
('EIicacia das Normas Constitucionais sobre Justia Social In: Revista de Direito Publico n 57-58,
1981, p. 233 ss) e Luis Roberto Barroso (O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Op.
cit., p. 150 ss), que advogam a tese oposta. Para Barroso, por exemplo, a possibilidade de Iixao judicial
do salario minimo decorreria do Iato do texto constitucional Iornecer os elementos necessarios para tanto,
ao deIinir os bens da vida que tal salario deveria ser capaz de suportar. Porem, me parece que o
problematico no caso no e de indeterminao do texto normativo, mas sim a possibilidade econmica da
implementao do comando constitucional, num quadro de escassez de recursos, aliada a Ialta de
capacidade institucional do Judiciario para avaliar de Iorma adequada tal questo, sopesando devidamente
os multiplos eIeitos e implicaes na economia que resultam inevitavelmente de qualquer mudana no
valor do salario minimo.
88
Em linha parecida a que ora se sustenta, cI. Gustavo Amaral. Direito, Escasse: e Escolha. Op.cit., p.
211-216.
89
8
Esta e a posio de Ricardo Lobo Torres (cI. 'A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos. Op.
cit., p. 278-290).
Neste modelo, o minimo existencial constitui elemento importante, pois quanto
mais essencial Ior a necessidade material em jogo, maior sera o peso atribuido ao direito
social no processo ponderativo. Prestaes situadas Iora do minimo existencial tm,
portanto, uma chance menor de xito, ja que quando elas estiverem em questo, o
direito social comparecera a ponderao com peso reduzido. Porem, persiste a
possibilidade teorica de adjudicao de direitos sociais mesmo naquilo que extrapolar
ao minimo existencial, a depender da constelao concreta dos interesses em disputa.
7- Controle de Polticas Pblicas, "#$%&'()% e Auto-Conteno 1udicial
A realizao dos direitos sociais pelo Estado da-se atraves de politicas
publicas
90
, cuja elaborao e implementao dependem, para o seu xito, do emprego de
conhecimentos especiIicos. Os poderes Executivo e Legislativo (mais o primeiro do que
o segundo) possuem em seus quadros pessoas com a necessaria Iormao especializada
para assessora-los na tomada das complexas decises requeridas nesta area, que
Ireqentemente envolvem aspectos tecnicos, econmicos e politicos diversiIicados. O
mesmo no ocorre no Judiciario. Os juizes no tm, em regra, tais conhecimentos
especializados necessarios, nem contam com uma estrutura de apoio adequada para
avaliao das politicas publicas, o que se torna um elemento complicador no debate
sobre a tutela judicial dos reIeridos direitos.
E evidente que o Iato de os direitos sociais serem garantidos pelo Estado por
intermedio de politicas publicas no os torna imunes ao controle judicial
91
. Com o
perdo pela tautologia, os direitos sociais so autnticos direitos, e, nesta qualidade,
podem e devem ser garantidos pela via jurisdicional em casos de omisses
injustiIicaveis ou de arbitrariedades das autoridades competentes. Atualmente, a melhor
doutrina no mais aceita a ideia de que exista uma esIera de poder estatal absolutamente
90
9
Uma boa deIinio de politica publica pode ser colhida em Maria Paula Dallari Bucci: 'Politicas
publicas so programas de ao governamental visando a coordenar os meios a disposio do Estado e
as atividades privadas, para a reali:ao de obfetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados` (Direito Administrativo e Politicas Publicas. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 241).
91
9
Sobre a interveno judicial em politicas publicas, veja-se Malcolm M. Feeley & Edward L. Rubin.
Judicial Policv Making. Cambridge: Cambridge University Press, 1998; Marco Maselli Gouva. O
Controle Judicial das Omisses Administrativas. Rio de Janeiro: Forense, 2003; Ana Paula de Barcellos.
'Constitucionalizao das politicas publicas em materia de direitos Iundamentais: O controle politico-
social e o controle juridico no espao democratico. In: Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento
(Coords.). A Constitucionali:ao do Direito. Fundamentos Teoricos e Aplicaes Especificas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 599-636; e Luiza Cristina Frischeisen. Politicas Publicas. A
responsabilidade do administrador e do Ministerio Publico. So Paulo: Max Limonad, 2000.
imune ao controle judicial, sobretudo em campo envolvendo direitos Iundamentais.
Conceitos classicos, antes invocados para obstar a proteo judicial dos direitos sociais,
como o do merito do ato administrativo zona de discricionariedade insindicavel para
atuao dos governantes tm sido relativizados, seno plenamente superados, diante
do reconhecimento da Iora normativa dos direitos Iundamentais e de principios
constitucionais, como os da proporcionalidade, da moralidade administrativa e da
eIicincia
92
.
Sem embargo, o exercicio deste controle no pode ser realizado sem que se
atente para a capacidade institucional de quem o opera
93
. Por isto, no me parecem
adequadas, neste ou em qualquer outro campo, as teorias que idealizam a Iigura do juiz
como o Iamoso 'juiz Hercules, de Ronald Dworkin
94
-, depositando no Poder
Judiciario expectativas que ele no tem como atender. E ate compreensivel que teorias
deste tipo acabem vicejando no Brasil, pelo desencanto geral diante dos poderes
politicos, atolados em sucessivos escndalos, e pela persistncia das mazelas que
aIligem a nossa populao. Contudo, inIelizmente, no me parece que elas possam
entregar aquilo que prometem: a redeno de todos os males nacionais pela via judicial.
92
9
Ha vasta bibliograIia sobre a materia na literatura nacional. Veja-se, em especial, Gustavo Binenbojm.
Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionali:ao. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006, p. 193-238; e Andreas Krell. Discricionariedade Administrativa e Proteo
Ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 17-56.
93
Na teoria juridica contempornea, ha uma corrente importante que preconiza a necessidade de que as
capacidades institucionais comparativas dos agentes envolvidos na aplicao do Direito seja levada em
conta na deIinio das teorias de interpretao mais adequadas a cada contexto. Esta sensibilidade diante
das vicissitudes concretas dos aplicadores do Direito leva estes autores a deIenderem a ideia de que a
teoria interpretativa preIerivel no e aquela que, em tese, tenha como conduzir algum interprete ideal a
resultados perIeitos, mas sim aquela que seja mais apta a otimizar os resultados, considerando as
capacidades especiIicas de interpretes reais e Ialiveis, e o risco de que cometam erros. Veja-se, a
proposito, Cass Sunstein & Adrian Vermeule. 'Interpretations and Institutions. In: Chicago Working
Papers in Law & Economics. 2002, p. 1-55; Adrian Vermeulle. Judging under Uncertaintv. An
Institutional Theorv for Legal Interpretation. Cambridge: Harvard University Press, 2006; e Frederick
Shauer. Plaving bv the Rules. A Philosophical Examination of Rled-Based Decision-Making in Law and
in Life. OxIord: Claredon, 1991.
94
9
CI. Ronald Dworkin. Taking Rights Seriouslv. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 81-148;
idem. Laws Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. 355-399.
Sem embargo, cabe destacar que diIicilmente a teoria de Dworkin - que justiIica um Iorte ativismo
judicial na deIesa dos direitos individuais - poderia ser empregada em materia de direitos sociais. Isto
porque, o jusIilosoIo norte-americano baseia o seu raciocinio em uma diIerenciao absoluta entre
direitos e politicas (policies), aIirmando que o Judiciario deve atuar com Iirmeza em relao aos
primeiros, mas que os poderes eleitos teriam mais legitimidade e capacidade para deliberar no campo das
segundas. Ocorre que e praticamente impossivel separar os direitos das politicas em materia de direitos
sociais, pois tais direitos so so realizados atraves de politicas publicas. Alias, quando Ronald Dworkin
esteve no Brasil no ano de 2006, em pelo menos trs palestras que proIeriu (em So Paulo, no CEBRAP,
e no Rio de Janeiro, nos auditorios da Procuradoria-Geral do Municipio e da EMERJ), ele maniIestou o
seu ceticismo sobre a viabilidade da tutela judicial de direitos sociais.

Em materia de controle judicial de politicas publicas, alem da diIiculdade
decorrente da Ialta de expertise dos juizes, ha tambem o problema que resulta da propria
dinmica dos processos judiciais. O processo judicial Ioi pensado com Ioco nas
questes bilaterais da justia comutativa, em que os interesses em disputa so apenas
aqueles das partes devidamente representadas
95
. Contudo, a problematica subjacente aos
direitos sociais envolve sobretudo questes de justia distributiva, de natureza
multilateral, ja que, diante da escassez, garantir prestaes a alguns signiIica retirar
recursos do bolo que serve aos demais. Boas decises nesta area pressupem a
capacidade de Iormar uma adequada viso de conjunto, o que e muito diIicil de se obter
no mbito de um processo judicial. Este, com seus prazos e Iormalidades, esta longe de
ser o ambiente mais propicio para a analise de politicas publicas, por no proporcionar
pleno acesso a miriade de inIormaes, dados e pontos de vista existentes sobre
aspectos controvertidos. Na verdade, o processo judicial tende a gerar uma 'viso de
tunel, em que muitos elementos importantes para uma deciso bem inIormada so
eliminados do cenario, enquanto o Ioco se centra sobre outros no necessariamente os
mais relevantes
96
.
Tais problemas podem ser atenuados, mas no completamente eliminados. No
que concerne ao deIicit de conhecimentos especializados dos magistrados, o recurso
mais Ireqente a peritos e a instituies independentes e imparciais com reconhecida
capacidade tecnica na area em discusso e uma medida importante. Um exemplo
interessante desta pratica ocorreu na Irica do Sul, no julgamento do Iamoso caso
Grootboom
97
, realizado em 2000. Na hipotese, tratava-se de centenas de pessoas
miseraveis, que estavam vivendo em barracas improvisadas de plastico depois de terem
sido despejadas da area particular que antes ocupavam, e que reivindicavam do Estado a
garantia imediata de abrigos adequados. A Corte Constitucional entendeu que, apesar da
consagrao do direito a moradia na Constituio sul-aIricana, no seria possivel
reconhecer a cada individuo um direito subjetivo a habitao, nem no seu nucleo
essencial (minimun core). Todavia, aIirmou que poderia controlar a razoabilidade das
politicas publicas realizadas pelo governo, no sentido de eIetiva promoo do direito a
95
CI Lon L. Fuller. 'The Forms and Limits oI Adjudication. In: 92 Harvard Law Review, 1978, p. 394-
397.
96
9
Sobre esta questo, ha varios estudos no livro de Jose Reinaldo de Lima Lopes. Direitos Sociais. Teoria
e Pratica. So Paulo: Editora Metodo, 2006.
97
9
Government of the Republic os South Africa v. Grootboom and others. A deciso esta acessivel no
endereo eletrnico www.constitucionalcourt.org.za, acessado em 10/02/2008.
moradia. No caso, o governo sul-aIricano contava com politica publica voltada para esta
area, mas a Corte entendeu que ela Ialhava, por no incluir medidas emergenciais
Iocadas nas pessoas em situao de carncia desesperadora (desperate need). Diante
disso, determinou que a politica Iosse reIormulada, de Iorma a contemplar medidas de
alivio imediato daquelas pessoas, sem, no entanto, precisar que providncias deveriam
ser adotadas. E ai vem a parte que nos interessa neste ponto: para permitir uma
Iiscalizao mais adequada da execuo da sua deciso, a Corte atribuiu a um orgo
tecnico independente a Human Rights Commission de reconhecida expertise e
prestigio na Irica do Sul em materia de direitos sociais, a tareIa de supervisionar a
elaborao e implementao do novo programa, reportando-se ao tribunal
98
. Medidas
deste tipo, se Iossem adotadas no Brasil, contribuiriam para a racionalizao da tutela
judicial dos direitos positivos.
Ja no que se relaciona a limitao quanto ao acesso a inIormaes e pontos de
vista diversiIicados, decorrente da logica do processo judicial, esta pode ser atenuada
pelo exercicio mais Iirme dos poderes de instruo conIeridos aos juizes, assim como
pela maior participao de terceiros nas lides, como, por exemplo, atraves da atuao
dos amici curiae. Tratam-se, contudo, de providncias apenas paliativas algumas,
inclusive, de diIicil operacionalizao nas aes individuais, tendo em vista o quadro de
assoberbamento do nosso Poder Judiciario.
Em concluso, entendo que no se devem ignorar as deIicincias da capacidade
institucional do Judiciario para tutelar os direitos sociais. Para enIrentar esta
diIiculdade, alem das medidas acima sugeridas, deve-se adotar um parmetro adicional
para o exercicio da proteo judicial destes direitos: quanto mais a questo discutida
envolver aspectos tecnicos de politicas publicas, mais cautelosa e reverente em relao
as decises dos demais poderes deve ser a atuao do Judiciario
99
. Este no e um
parmetro isolado, na medida em que deve ser conjugado com outros, como os
98
9
A deciso, e, em especial, esta soluo, Ioram elogiadas por Vitor Abramovich e Christian Courtis, em .
Los Derechos Sociales como Derechos Exigibles. Op. cit., p. 160-168.
99
Gustavo Binenbojm adota parmetro semelhante para o controle judicial dos atos administrativos. Um
dos standards para o exercicio deste controle e, nas suas palavras: 'quanto maior o grau de tecnicidade
da materia, obfeto de deciso por orgos dotados de expertise e experincia, menos intenso deve ser o
grau do controle fudicial` (Uma Teoria do Direito Administrativo .... Op. cit., p. 236). E a mesma ideia
pode ser colhida em Humberto vila que, ao tratar da intensidade do controle do Judiciario sobre outros
poderes, aIirmou que 'o ambito de controle pelo Judiciario devera ser tanto menor, quanto mais ... (2)
dificil e tecnico for o fui:o exigido para o tratamento da materia` (Teoria dos Principios. 4 ed. So
Paulo: Malheiros, 2004, p. 126).

sugeridos acima, atinentes a razoabilidade da universalizao da pretenso do titular do
direito, e a essencialidade, para ele, da prestao social demandada. Mas me parece que
dito criterio deve desempenhar um papel relevante na adjudicao judicial dos direitos
sociais.

8- Demandas Individuais e Coletivas
No sistema processual brasileiro, os direitos sociais podem ser assegurados
judicialmente atraves de aes individuais ou de demandas coletivas. Todavia, o Poder
Judiciario brasileiro tem se mostrado, de um modo geral, muito mais generoso nas aes
individuais do que nas coletivas, o que, na minha opinio, gera uma grave distoro, em
prejuizo da tutela dos direitos dos mais necessitados e da racionalidade do sistema
100
.
Com eIeito, apesar de todos os avanos alcanados nas ultimas decadas no que
tange ao acesso a Justia, a principal clientela do Judiciario brasileiro, mesmo em
demandas envolvendo direitos sociais, continua sendo a classe media
101
. Os segmentos
mais excluidos da sociedade brasileira diIicilmente vo a Justia reclamar seus direitos,
ate porque, pela hipossuIicincia cultural, no mais das vezes nem conhecem estes
direitos. Neste contexto, se levarmos em considerao o Iato de que, diante da escassez,
as decises explicitamente alocativas de recursos so implicitamente desalocativas, o
Ioco centrado nas aes individuais pode acabar Iuncionando como uma especie de
'Robin Wood as avessas, ao sugar recursos de politicas publicas que atingiriam os
mais pobres para transIeri-los para a classe media. Enquanto isso, graves violaes de
direitos perpetradas contra os mais carentes Iicam sem resposta judicial.
Por outro lado, na tutela coletiva, os magistrados no tm como escapar de uma
reIlexo que deveria ser realizada sempre que estivessem em jogo pretenses sobre
recursos escassos: o potencial de universalizao do que Ioi pedido. No ha como
100
Um exemplo eloqente desta tendncia Ioi a recente deciso da Ministra Ellen Gracie, que, na
qualidade de Presidente do STF, suspendeu acordo proIerido pelo TRF da 5 Regio, que acolhera
pedido Iormulado em ao civil publica proposta pelo Ministerio Publico Federal, para obrigar a Unio a
realizar no mbito do SUS os procedimentos medicos de redesignao sexual em pessoais transexuais. Na
reIerida deciso, S. Exa. exteriorizou o seu entendimento de que, em materia da proteo judicial dos
direitos sociais, deve-se adotar uma analise topica, 'caso-a-caso, em detrimento da tutela coletiva , uma
vez que esta repercute 'na programao oramentaria federal, ao gerar impacto nas finanas publicas`,
o que caracterizaria 'grave leso a ordem publica, em sua acepo furidico-constitucional.`. STA
185/DF, DJ 04.12.2007.
101
1
Neste sentido apontam as concluses da pesquisa estatistica coordenada pelo ProI. Virgilio AIonso da
Silva , relacionada a clientela das aes judiciais com pedido de Iornecimento de medicamentos que
tramitam na Justia do Estado de So Paulo. Os resultados da pesquisa ainda no Ioram publicadas, mas o
ProI. Virgilo os vem citando em diversas palestras proIeridas sobre o tema.
decidir uma ao civil publica que aIete a todo um amplo universo de pessoas sem
considerar o seu eIeito sobre as politicas publicas em vigor e as verbas existentes. O
impacto aqui e inequivoco e por isso tem de ser enIrentado. O julgamento Iora uma
analise de 'macrojustia, que envolve a legitimidade do atendimento de determinados
pleitos num quadro de escassez de recursos.
Nas aes individuais, o raciocinio judicial deveria ser o mesmo. Contudo,
aqui e muito mais Iacil para o juiz 'tapar o sol com a peneira, e conceder 'com o
corao qualquer prestao demandada, ja que os eIeitos concretos de cada deciso
sobre o oramento publico costumam ser diminutos e existe todo um apelo emocional
que inclina os magistrados a decidirem com maior generosidade em Iavor das pessoas
concretas, de carne e osso, cujas carncias e necessidades Ioram explicitadas no
processo
102
. Assim, muitas vezes o Judiciario acaba assegurando direitos que, diante dos
recursos disponiveis e da existncia de outras necessidades igualmente importantes, no
teriam como ser universalizados. Ocorre que estas decises tendem a se multiplicar,
comprometendo a racionalidade das politicas publicas e criando implicitamente
preIerncias para algumas pessoas sobre bens escassos, Iora de qualquer parmetro etico
ou juridico. Finge-se que a escassez no existe, o que, obviamente, no a elimina, mas
apenas 'empurra para debaixo do debate, suprimindo o espao para a discusso dos
criterios de justia na partilha do bolo.
Por outro lado, a multiplicao de decises em casos individuais, muitas vezes
desencontradas, pode criar um cenario caotico para o administrador, comprometendo a
possibilidade do Estado de implementar com eIicincia as politicas publicas de
atendimento aos direitos sociais da populao. Sob este ngulo, o tratamento judicial
coletivo e preIerivel, por reduzir a entropia e Iornecer criterios claros e gerais para a
eventual correo das politicas publicas, visando a sua adequao a Constituio.
Ademais, as aes coletivas tendem a possibilitar uma instruo processual
mais completa, Iranqueando ao juiz um maior contato com as inumeras variaveis
envolvidas na implementao das politicas publicas de atendimento dos direitos sociais,
que tenderiam a ser negligenciadas nas aes individuais. Isto, evidentemente,
possibilita a adoo de decises mais inIormadas, a partir de uma viso mais abrangente
da problematica subjacente a adjudicao de cada direito social.
102
1
. CI. Ana Paula de Barcellos. A Eficacia do Principios Juridicos .... Op. cit., p. 275.
Com isso, no pretendo sustentar o descabimento das aes individuais para a
proteo dos direitos sociais. Tal posio no seria compativel com a concepo aqui
advogada de que os direitos sociais conIiguram autnticos direitos Iundamentais, nem
tampouco com o principio constitucional da inaIastabilidade do controle jurisdicional
(art. 5, XXXV, CF). Alem do que, ela Iragilizaria a garantia de tais direitos, ao torna-la
dependente das iniciativas dos legitimados para a propositura das aes coletivas, dentre
os quais no Iigura o proprio titular do direito lesado. No bastasse, ha situaes
absolutamente singulares de determinados titulares de direito social, que no se
enquadram no perIil da ao coletiva, pois esta, como se sabe, pressupe a
indivisibilidade ou a homogeneidade do direito a ser tutelado. Tais situaes no podem
ser ignoradas pelo Judiciario, e as demandas individuais so o meio adequado para
traz-las ao conhecimento dos tribunais.
EnIim, o que me parece absolutamente equivocada e a adoo de dois pesos e
duas medidas pelo Judiciario brasileiro em materia de direitos sociais, que tem primado
pela generosidade nas aes individuais e pela parcimnia nas aes coletivas.
Entendo, por outro lado, que as aes coletivas constituem um ambiente mais adequado
do que as individuais para os debates que envolvem o controle das politicas publicas em
materia de direitos sociais, e por isso o seu uso deve ser estimulado pelo legislador e
pelo Judiciario
103
. Ja em relao as demandas individuais, no se trata de bloquear esta
via importante para a cidadania, mas de empreender uma reIlexo mais amadurecida
sobre as conseqncias perniciosas para os pobres de um ativismo judicial sem
parmetros, que, ao tudo conceder para os que tm acesso a justia, pode acabar
retirando daqueles que no o desIrutam.

9- Concluses
Na ultima decada, com a consolidao da nova cultura constitucional que
emergiu no pais em 88, a jurisprudncia brasileira deu um passo importante, ao
reconhecer a plena justiciabilidade dos direitos sociais. Juizes bem intencionados e
independentes, inspirados por uma dogmatica Iocada na eIetivao da Constituio,
passaram, com uma Ireqncia cada vez maior, a conceder prestaes materiais aos
jurisdicionados com Iundamento em normas constitucionais.
103
1
No mesmo sentido, Cecile Fabre. Social Rights under the Constitution. OxIord: OxIord Univesity Press,
2000, p. 175-182.
Na minha avaliao, ja vencemos, com sucesso, o momento inicial de aIirmao
da sindicabilidade dos direitos prestacionais. Ja e chegada a hora de iniciarmos uma
outra Iase, de racionalizao deste processo. Esta racionalizao, do meu ponto de vista,
passa por dois pontos principais: (a) a superao de uma certa 'euIoria judicialista que
tomou conta dos meios juridicos brasileiros, com o reconhecimento de que o Poder
Judiciario, apesar da relevncia da sua Iuno, no e, nem tem como ser, por suas
limitaes institucionais, o grande protagonista no cenario de aIirmao dos direitos
sociais, que dependem muito mais das politicas publicas Iormuladas e implementadas
pelo Legislativo e Executivo e da mobilizao da sociedade civil; e (b) o traado de
parmetros etico-juridicos para as intervenes judiciais nesta seara. O presente estudo
Ioi exatamente uma tentativa de esboar alguns destes parmetros, que no repetirei
aqui, para no enIadar o leitor. Cabe-me, contudo, compartilhar uma ultima reIlexo:
O trao mais distintivo da ordem social brasileira e a desigualdade. Ja se tornou
um jargo a aIirmao de que em nosso pais convivem, lado a lado, elites vivendo de
acordo com os padres do 1 Mundo e setores da populao sobrevivendo em
verdadeiro estado de exceo econmica, privados do acesso as necessidades mais
basicas. Neste contexto, os direitos sociais deveriam exercer um papel essencial, de
emancipao dos componentes destes segmentos excluidos, ao proporcionar-lhes no so
mais bem-estar, como tambem a possibilidade eIetiva de Iruio das suas liberdades
individuais e politicas. Temo, contudo, que a persistncia de certos padres enviesados
da jurisprudncia brasileira possa comprometer o desempenho deste papel. Dai a
necessidade de mudana destes padres, no para esvaziar os direitos sociais, mas para
redireciona-los ao seu verdadeiro proposito: promover a incluso dos excluidos.

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