Este documento apresenta um livro sobre escravos e senhores de escravos no Brasil. O livro discute o papel da escravidão na formação histórica do país, como a instituição se desenvolveu sob o mercantilismo colonial e permaneceu por tanto tempo, moldando a sociedade brasileira em todos os aspectos. Finalmente, o livro explora como a escravidão contribuiu para o atraso econômico do Brasil moderno, mesmo após a abolição.
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essa advertncia significa violar a lei n 9610, de 19 de fevereiro de 1998, que regulamenta os direitos autorais no Brasil. Escravos e senhores de escravos DCIO FREITAS Advogado e Historiador Mercado Aberto - 1983 Srie Novas Perspectivas, 4 Porto Alegre - RS Capa: Marco Cena Composio: Ricardo F. da Silva Reviso: Charles Kiefer Superviso: Noelci R. Jacoby 1983 Todos os direitos reservados pela Mercado Aberto Editora e Propaganda Ltda. Rua Santos Dumont, 1186 - 90000 - Porto Alegre, RS FICHA CATALOGRFICA 326(81) F866e Freitas, Dcio. Escravos & senhores de escravos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983. 176p. (Srie Novas perspectivas, 4 ) 1. Escravido - Brasil. Processos sociais - Abolicionismo - Brasil. I. Ttulo. II. Srie. CDU 326 (81) 301.153:326.4(81) Bibliotecria responsvel: Marlise Castro da Silveira SUMRIO APRESENTAO - 7 1. ESCRAVIDO E MERCANTILISMO - 11 2. ESCRAVIDO NA ESTNCIA GACHA - 25 3. A GUERRA DOS AMOS - 31 4. INDEPENDNCIA E ESCRAVIDO - 39 5. SENHORES-DE-ESCRAVOS E BURGUESIA mercantil - 47 6. QUILOMBOS - 57 7. OS LIBERTOS - 69 8. AS INSURREIES DE ESCRAVOS muulmanos na Bahia - 75 9. IMPOTNCIA REVOLUCIONRIA DOS ESCRAVOS - 121 10. O IMPASSE HISTRICO DA FORMAO SOCIAL escravista - 131 11. O REFORMISMO ESCRAVISTA - 141 12. A BASE SOCIAL DO MOVIMENTO ABOLICIONISTA - 147 13. UMA REVOLUO SOCIAL DE TIPO ARCAICO - 161 APRESENTAO Os pequenos estudos que compem este livro foram escritos em Montevidu no curso do ano de 1965, para servirem como textos de apoio num curso sobre a escravatura, ministrado pelo autor nos meses de janeiro, fevereiro e maro de 1966 a um grupo de exilados brasileiros. Este trabalho foi possibilitado pelas riqussimas brasilianas encontradas no Prata. Em Montevidu: A Biblioteca Nacional, a Biblioteca do Clube Brasileiro, a Biblioteca dos Anarquistas Uruguaios e finalmente um "sebo" em Ciudad Vieja, cujo nome a memria traioeira no consegue resgatar. Em Buenos Aires: a Biblioteca Nacional e, particularmente, o incomparvel "sebo" de Dom Pablo Hernandez, em Calle Tucumn. No ano de 1966, o dirio Epoca, que dirigia em Montevidu Eduardo Galeano, publicou quase todos estes estudos, em espanhol, sob o pseudnimo de Vladimir Gonalves. No regresso do autor ao Brasil, foram reunidos e publicados pelas editoras da Universidade de Caxias do Sul e do Instituto Superior de Teologia So Loureno de Brindes, dirigidas, respectivamente, pelo professor Luis Alberto De Boni e pelo capuchinho Rovlio Costa. Para esta edio, os textos foram revistos, refundidos e em alguns casos totalmente reescritos. Fez-se nova bibliografia. Esta segunda edio devida estimulante insistncia do saudoso Manoel Maurcio de Albuquerque - homem, amigo e historiador sem igual. No se censure o estilo veemente em que foram escritos. Pode-se afinal contemplar com serenidade o processo histrico da escravido no Brasil? No h decerto mal nisso: o importante que haja uma base histrica, e disso o autor est seguro, salvo melhor juzo. O estilo universitrio, apenas por si, tampouco oferece garantias de historicidade, como infelizmente pensam muitos. A premissa metodolgica, em que se baseiam estes ensaios, a da importncia crucial da escravatura na formao histrica do Brasil; nunca ser demasiado insistir sobre esta importncia. Nada menos de quatro quintas partes da histria brasileira se desenvolveram sob o signo da escravatura como forma de propriedade e produo. Em nenhum outro pas do Novo Mundo teve a instituio vida to longa. Implantada logo no incio da colonizao, apenas foi suprimida formalmente nos fins do sculo XIX. Nos tempos modernos, o Brasil se singularizou como o ltimo pas do mundo a aboli-la. Em quase todo o Novo Mundo, a independncia nacional mais ou menos se fez acompanhar da abolio. As excees foram o Brasil e os Estados Unidos, porm houve uma diferena importante. Nos Estados Unidos a escravido apenas perdurou em algumas regies e, no momento da Independncia, os escravos no chegavam a perfazer 10% da populao. No Brasil, enquanto isso, depois da Independncia a escravido continuou abrangendo a totalidade do territrio e cerca de metade da sua populao ainda se comps de escravos. Portanto, dado que os escravos estavam excludos da nacionalidade, o Brasil independente se caracterizou como uma nao inconclusa. Naturalmente, a importncia do escravismo brasileiro no se mede apenas pela sua longevidade. Em parte nenhuma do Novo Mundo a escravido abarcou territrio to vasto, a saber, um colosso de dimenses continentais. Ao passo que em todos os outros pases o trabalho escravo se combinou com diferentes formas de trabalho no-escravo, no Brasil a produo baseada nos escravos primou de maneira absoluta sobre qualquer outra. No tiveram paralelo a quantidade, o valor e a variedade das riquezas produzidas pelo trabalho escravo: o acar, o ouro, os diamantes, o fumo, o algodo, o caf. Numa pgina repassada de eloquncia, Joaquim Nabuco fez um quadro memorvel do trabalho escravo no Brasil H trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da ocupao e da manuteno de nosso territrio pelo europeu, e que seus descendentes se misturam com o nosso povo. Onde ele no chegou ainda, o pas apresenta o aspecto com que surpreendeu aos seus primeiros descobridores. Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para habitao e cultura, estradas e edifcios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e as senzalas dos escravos, igrejas e escolas, alfndegas e correios, telgrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo, que existe no pas, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulao de riquezas, no passa de uma doao gratuita da raa que trabalha que faz trabalhar. Nunca se pode esquecer, no entanto, que a escravido no foi apenas de negros, foi igualmente de ndios. Todos os pases do Novo Mundo conheceram a escravido indgena, porm o Brasil a todos excedeu no nmero de autctones caados, exterminados ou escravizados. Bem entendido, o holocausto indgena no se compara nem de longe ao dos africanos, mas, ainda assim, quase um milho de ndios sucumbiram, direta ou indiretamente, no processo da escravizao. No foi seno na metade do sculo XVIII que o cativeiro indgena acabou legalmente no Brasil; nisso, tambm, fomos o ltimo pas do Novo Mundo. OBrasil assinalou o recorde americano no trfico de escravos, importando perto de 40% do total de nove milhes e quinhentos mil negros trazidos para o Novo Mundo: nove vezes mais que os Estados Uni dos (6%) e bem mais que o dobro da Amrica Hispnica (18%-), do Caribe ingls (17%) e do Caribe francs (17%). O Brasil foi o ltimo pas independente a abolir legalmente o trfico. Cuba e Porto Rico, ltimos mercados compradores de negros do Novo Mundo, permaneciam colnias da Espanha. Suprimiram ainda assim a escravido antes que o Brasil (1880). Demonstra tudo isso que vicejou no Brasil a formao social escravista mais importante do Novo Mundo. Nenhum outro pas teve sua histria to modelada e condicionada pelo escravismo, em todos os aspectos - econmico, social, cultural. Pode dizer-se que a escravatura delineou o perfil histrico do Brasil e produziu a matriz da sua configurao social. Passados noventa anos da abolio, conserva toda sua validez a observao de Nabuco de que a escravatura ainda continuaria por muito tempo uma caracterstica nacional do Brasil. Uma parcela enorme dos brasileiros descendem de escravos, de uma forma ou de outra. Faz apenas noventa anos que a classe trabalhadora brasileira se compe de homens juridicamente livres - homens imitidos na posse de sua prpria fora de trabalho. Entre os funestos legados da escravido, figuram a condio atual do negro brasileiro e a concepo que faz do trabalho manual um labu. Nenhuma investigao econmica sria deixar de situar na escravatura as razes do atraso brasileiro. Pois o povo de um dos maiores e mais ricos pases do mundo, depois de haver produzido durante trs sculos vrias das grandes riquezas dos tempos modernos, ingressou no sculo XX como um dos mais deserdados que se conhecem. Nestas condies, impe-se a todo brasileiro preocupado com sua histria nacional, a formulao e a soluo de uma srie de questes. O que foi que determinou a implantao da escravatura no Brasil? A que atribuir-se a solidez e a longevidade da instituio? Em que consistiu sua especificidade na histria do escravismo do Novo Mundo? Como e por que, a despeito de tudo, o sistema se desintegrou e desapareceu? ltima questo: como se pode definir o tipo de mudana social operada em consequncia da escravatura? Estas questes distam muito de ser acadmicas: so cruciais para a compreenso de um passado que oprime o presente e um obstculo conquista do futuro. 1. ESCRAVIDO E MERCANTILISMO I - No ano de 1833, o jovem economista ingls Edward Gibbon Wakefield publicou anonimamente em Londres um pequeno livro intitulado The Art of Colonization, onde expunha aquilo que depois se tornou conhecido como uma teoria da colonizao. O caso era que a burguesia inglesa andava ento preocupada com o problema da colonizao da Austrlia e da Nova Zelndia. Promovia a emigrao de camponeses para aquelas colnias, na esperana de que trabalhassem como assalariados em grandes empresas agrcolas; os camponeses, porm, uma vez chegados s colnias, simplesmente se instalavam num pedao qualquer de terra e criavam para si prprios uma economia de auto-subsistncia. Como resultado, os capitalistas ingleses no conseguiam tirar qualquer lucro das colnias. O jovem economista estudou o fenmeno e tirou suas concluses. Comeou pelo fato bvio de que as colnias se caracterizavam por uma enorme abundncia de terras virgens e sem dono. Ainda que fossem apropriadas de direito, no o poderiam ser de fato, dada a vastido do territrio e a limitao dos recursos institucionais da metrpole. Os camponeses que emigrassem da Inglaterra seriam homens juridicamente livres; o dono de uma plantao, por isso, teria de lhes pagar um salrio em troca do trabalho. Para que pudessem obter lucro, havia de pagar salrio vil, correspondente ao estritamente necessrio para que o campons reproduzisse sua fora-de-trabalho. A diferena entre o salrio pago e o valor real da mercadoria produzida pelo campons, representava a mais-valia, essncia do sistema capitalista. Na Inglaterra, se quisesse subsistir, o campons no teria outra alternativa seno submeter-se a estas condies, dado que no possua terras e demais meios de produo. Na colnia, no entanto, para poder subsistir, no se veria obrigado a trabalhar como assalariado. Isto porque, dada a abundncia de terras incultas e sem dono, simplesmente ocuparia um pedao qualquer de terra e se converteria num produtor independente, trabalhando para si prprio ao invs de trabalhar para o dono da plantao. Na hiptese de que o campons se dispusesse a trabalhar para o dono da plantao, estaria em condies de arbitrar um salrio to alto que impediria o lucro do patro. Faltava nessas colnias a condio essencial para que o dono da plantao estabelecesse um sistema lucrativo de trabalho assalariado, a saber, a existncia de camponeses sem terras. No havia oferta de tra balho assalariado. Por mais camponeses que levassem da Inglaterra, todos procederiam da mesma forma. No se formaria uma classe de assalariados; haveria apenas uma classe de trabalhadores independentes. o dono da plantao no podia obrigar o campons a ficar na terra, nem impedi-lo de se instalar num pedao de terra, transformando-a em propriedade privada e meio individual de produo. o campons era um homem livre. A nica soluo seria, segundo Wakefield, a explorao de um tipo de campons que pudesse ser obrigado a ficar na terra e trabalhar nas condies impostas pelo dono da plantao, permitindo-lhe o lucro. Havia de ser um campons impossibilitado de ir embora se no estivesse satisfeito; um campons que constitusse, ele prprio, propriedade do dono da plantao, para dele usar e abusar; um campons sujeito a uma dependncia jurdico-institucional - em suma, um escravo. Da a concluso de Wakefield: sem escravido, no seria possvel a explorao lucrativa das colnias. A nica base da riqueza colonial era a escravido. No admira que o economista tenha querido ficar no anonimato. Aquele era precisamente o tempo em que a burguesia inglesa tonitroava contra a escravido no Brasil. No se diga que as colnias inglesas da Nova Inglaterra ofereciam um desmentido teoria de Wakefield. No possuam aquelas colnias condies ecolgicas para a produo das mercadorias tropicais que interessavam ao capitalismo mercantil. Suas terras serviam unicamente para a produo de artigos de subsistncia que nenhum lucro davam metrpole, que de resto os produzia tambm para exportao. A grande serventia daquelas terras consistia em alojar uma incmoda multido de dissidentes polticos e religiosos. Qualquer das minsculas ilhas produtoras de acar das Antilhas mostrava-se enormemente mais valiosa que as colnias da Nova Inglaterra. II - Trs sculos antes de Wakefield, a coroa e os mercadores portugueses j haviam empiricamente chegado concluso de que a nica forma de tirar lucro das terras descobertas no Brasil seria a explorao do trabalho escravo. Jamais afirmaram em qualquer documento que em Portugal no havia camponeses dispostos a emigrar para o Brasil. Isto foi uma invencionice de historiadores brasileiros para justificar como uma necessidade natural aquilo que na verdade era apenas uma necessidade econmica do mercantilismo portugus. Havia ento em Portugal uma grande massa de camponeses que sonhava sair do reino para construir vida nova em terras distantes. A bem dizer, necessitavam desesperadamente emigrar. Os primeiros anos do reinado de Joo III foram de grande misria popular em consequncia de ms colheitas, a que se seguiram pestes devastadoras. A coroa, o clero e a nobreza haviam monopolizado quase todas as terras agrcolas, das quais duas teras partes se achavam incultas. "Os lavradores - escreve o historiador portugus Luis Rebelo da Silva - preferiam ver convertidas em desertos as terras produtivas do que reg- las com o suor do rosto para que depois a mo do fisco, do clero ou dos senhores viesse arrebatar da eira ou dos lagares todos os frutos do seu trabalho". Houve no incio uma certa imigrao de camponeses lusitanos. Estes camponeses, no entanto, logo sofreram a amarga decepo de ver desatendidas as suas duas principais exigncias - terras e liberdade pessoal. Os donatrios queriam submet-los a um trabalho intensivo a nvel de subsistncia nas plantaes. de ver que no haviam emigrado para a inspita colnia apenas para suportar condies ainda piores que as da ptria. Dado que eram homens livres, instalaram-se em algum lugar, trabalhando para si prprios e no para os donatrios. No dizer de Varnhagen, "lanavam-se vida gentlica". Duarte Coelho, donatrio de Pernambuco, chegou a enforcar alguns e escreveu ao rei pedindo "pelo amor de Deus" que no os deixasse mais embarcar para o Brasil, pois eram "piores que peonha". A coroa de fato no os deixou mais embarcar. Ao longo do perodo colonial, a imigrao se comps exclusivamente de "nobres" elementos da baixa nobreza ou ricos comerciantes; artesos qualificados, que por sua vez empregariam trabalho escravo; soldados que, concludos seus anos de servio, se estabeleciam na terra como proprietrios de grandes sesmarias; degredados e aventureiros. "A legislao portuguesa sempre procurou contrariar ou dificultar a imigrao", assinalou Joo Francisco Lisboa em sua Crnica do Brasil Colonial. Dispunham uma lei de fins do sculo XVII: "Nenhuma pessoa de qualquer qualidade poder passar s capitanias do Brasil, seno as que forem despachadas com governos, postos, cargos ou ofcios, os quais no levaro mais criados do que a cada um pode competir, conforme sua qualidade e emprego". Exercia-se severa fiscalizao nos embarques para o Brasil. Somente se concediam passaportes para embarque depois de rigorosa averiguao judicial. Ainda assim, na hora da partida dos navios para o Brasil, estando eles j vela, realizavam-se buscas e se prendiam todas as pessoas encontradas sem passaporte. Aplicavam-se-lhes pesadas multas e os que no tinham dinheiro para pag-las eram degredados por trs anos para a frica. chegada dos navios ao Brasil e antes de se comunicarem com terra, repetia-se a diligncia da busca, e quantos se encontrassem sem passaporte eram recambiados para o reino. Na Inglaterra, em contrapartida, no havia qualquer restrio ou fiscalizao no embarque para a Amrica; antes, pelo contrrio, estabeleceu-se a indstria dos sequestros e embarques a fora. A desculpa para estas restries emigrao era a necessidade de evitar que o reino se despovoasse. Milhares de camponeses, no entanto, no tinham terras e passavam fome. O Minho j era no sculo XVII uma provncia superpovoada e seus camponeses tentavam por todos os meios embarcar para o Brasil. Quem esquadrinhe calmamente os arquivos portugueses - Arquivo da Torre do Tombo, Arquivo Histrico Ultramarino, Biblioteca da Ajuda, Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo e Biblioteca Distrital de vora, para citar apenas os principais - encontra grande cpia de requerimentos pedindo permisso para viver no Brasil, sistematicamente indeferidos. No foi seno em meados do sculo XVIII que houve uma imigrao de camponeses aorianos para o Continente de So Pedro, aos quais se deram lotes de terras. Mas isso porque se queria produzir uti possidetis num territrio disputado com os castelhanos. O sistema de produo colonial, desse modo, operou inicialmente na base da escravido indgena. certo que houve desde o comeo escravos negros, mas at bem avanado o sculo XVI o predomnio absoluto foi de escravos ndios. Trabalharam na extrao de pau-brasil, no plantio da cana-de- acar, na produo de drogas do serto, nas economias de subsistncia, na construo de fortificaes, em tudo que exigisse o emprego de energia humana. No tardou, porm, que se desencadeasse apaixonada campanha contra esta escravizao do elemento autctone. Esta campanha produziu em 1570 uma lei de D. Sebastio proibindo o cativeiro de ndios. Em algumas regies, a campanha e a lei tiveram xito imediato, substituindo-se inteiramente o escravo ndio pelo escravo negro, malgrado o custo deste ltimo fosse, no mnimo, cinco vezes superior ao do primeiro. A elucidao do porqu desta substituio constitui um dos problemas mais importantes e menos estudados da historiografia brasileira. III - Ser interessante examinar os argumentos dos religiosos, dos funcionrios da coroa e dos mercadores a favor da substituio do escravo ndio pelo escravo negro. Primeiro, o argumento jurdico-religioso. As bulas papais que haviam outorgado aos reis ibricos o domnio sobre o Novo Mundo, impuseram uma suprema obrigao: difundir os Evangelhos e atrair os pagos para a Igreja de Cristo. Para reforar este entendimento, em 1537 o papa Paulo III declarou que os ndios eram "seres racionais, suscetveis cristianizao, e por isso no podiam ser privados de sua liberdade, ainda que estivessem afastados da f de Jesus Cristo ... nem deviam em nenhum caso ser escravizados". No se apresentava semelhante problema no que dizia respeito aos negros da frica. Na bula Dum diversa, de 1442, o papa Nicolau V outorgara a Afonso V de Portugal (o "Africano"), o direito de "atacar na costa da frica os infiis, pagos ou sarracenos, escravizar suas pessoas e apropriar-se de seus bens". Depois, em 1456, o papa Calixto V outorgara Ordem de Cristo a jurisdio eclesistica sobre a Guin, assegurando-lhe uma participao no trfico de escravos. Nessas condies, a escravizao dos africanos fora legitimada pelos papas, ao passo que a dos ndios fora proibida. Ocorria, no entanto, um fato que tornava inconsistente este argumento jurdico-religioso. Antes de embarcados para a Amrica, os negros eram coletivamente batizados, a tanto por cabea, o que os transformava em cristos. A Igreja, debaixo da pena de excomunho, proibia a escravizao de cristos. A seguir, os opositores da escravido indgena e partidrios da escravido negra, faziam-se fortes em argumentos de ordem econmica. O autctone se mostrava incorrigivelmente inadaptvel ao trabalho sedentrio. Quando no escapava para viver de novo no mato lei dos seus instintos naturais, morria em massa ceifado pelo mortfero contgio das doenas europias. J o africano era fisicamente robusto, possua uma tradio de vida sedentria e se mostrava dcil ao cativeiro, representando por isto a soluo prtica e necessria do problema da fora-de-trabalho para a empresa colonizadora. Desde logo, digno de nota que a despeito das reiteradas proibies das coroas ibricas e das apaixonadas campanhas dos religiosos, notadamente dos jesutas, a escravatura indgena sobreviveu de fato em inmeras regies da Amrica at fins do sculo XVIII e, em alguns casos, at o princpio do sculo passado. No Brasil tal se deu principalmente em So Paulo, no Maranho, no Par e em Gois, onde os colonizadores desabusadamente desconheceram e desafiaram, na extenso de quase dois sculos, a proibio legal do cativeiro indgena. Entre 1570 e 1755, a coroa portuguesa expediu pelo menos quarenta diplomas legais - leis, alvars, provises, resolues e regimentos - proibindo a escravido de ndios; Os papas emitiram pelo menos cinco bulas sobre a matria, cominando em alguns casos pena de excomunho aos infratores. Diversas vezes em que se procurou tornar efetiva a proibio, os colonos se rebelaram, depuseram governadores, expulsaram os jesutas e queimaram em praa pblica as cartas rgias. A explorao de trabalho indgena foi a base da produo agrcola de So Paulo - cereais, algodo, acar, caf - durante todo o perodo colonial e mesmo depois da Independncia at o incio da exportao do caf. No Maranho o trabalho indgena predominou at que a Companhia Geral do Gro Par e Maranho passou a introduzir maciamente escravos negros (1755). Na economia extrativista do Par, mesmo depois disso e da draconiana proibio de Pombal, a explorao do ndio perdurou dissimulada em formas de dependncia que pouco se distinguiam da escravido; falando na Cmara dos Deputados em 1827, o bispo da Bahia informava que em sua terra natal, o Par, o trabalho era todo efetuado por ndios, "excelentes para a agricultura" e "todo o gnero de aplicao". Na sua fase inicial a minerao se fez com trabalho indgena em Minas Gerais, Bahia, Gois e Mato Grosso. Mesmo nas grandes regies aucareiras, como Bahia e Pernambuco, sempre que por algum motivo declinava a importao de negros, apelava-se para o trabalho do escravo ndio. A falta de negros depois que os holandeses expulsaram os traficantes portugueses da Costa da Guin e de Angola, foi suprida pela explorao de escravos ndios vendidos pelos paulistas e por eles subjugados no Guair e nas misses orientais do rio Uruguai. Segundo autores mencionados por Afonso Taunay na sua hagiolgica histria dos caadores de escravos de So Paulo, teria excedido de dois milhes o nmero de ndios escravizados e vendidos. O fenmeno foi anlogo nas colnias espanholas. Malgrado a coroa castelhana se tenha empenhado a fundo no combate escravido de ndios, esta perdurou como fonte importante de aprovisionamento de fora-de- trabalho no decorrer de todo o perodo colonial. Tal como a portuguesa, a coroa castelhana teve de transigir e capitular diante da resistncia dos colonizadores. A pretexto de guerras justas contra os autctones que hostilizavam os espanhis - isso se dizia da resistncia indgena escravizao e ao esbulho das suas terras -, tolerou o cativeiro indgena: em outros casos, os colonizadores simplesmente ignoraram as proibies rgias, continuando a explorar grandes massas de trabalhadores indgenas. Como disse Clarence Haring no seu importante livro sobre o imprio hispnico na Amrica, "as leis que proibiam o trabalho pessoal forado dos ndios nunca passaram de letra morta e resultaram completamente inoperantes". Demais disso, em quase toda a Hispano-Amrica a escravido indgena perdurou dissimulada em instituies eufemsticas como a encomienda, a mitra e a naboria. As misses jesuticas da Repblica Guarani so a prpria prova da falcia de que o ndio sofria de ingnita averso ou inadaptao ao trabalho sedentrio. Nelas o ndio desempenhou excelentemente todos os misteres agrcolas, pastoris, extrativistas e artesanais. No que respeita falada mortalidade dos ndios, provinha menos das doenas transmitidas pelos europeus do que do esgotamento provocado pelo excesso de trabalho. A prpria barateza de tal fora-de-trabalho induzia os colonos a explor-la at a morte. De resto, notrio que os religiosos, sobretudo os jesutas, exageraram largamente a mortalidade indgena com fins propagandsticos. No se afigura mais convincente o argumento que atribui a substituio superioridade fsica ou tcnica do africano. A mortalidade negra no ficou provavelmente muito atrs da indgena, como o atesta o fato mesmo da necessidade de um ininterrupto e sempre crescente fluxo de trfico. Quanto ao nvel tcnico, certo que o dos negros superava de longe o dos ndios, mas no foi aproveitado no trabalho grosseiro e primrio das plantaes, das minas e dos engenhos, sofrendo pelo contrrio um brutal retrocesso. Menos ainda se poderia dizer que o negro se mostrasse mais submisso escravido porque j na frica fora escravo. O negro no conhecera na frica a escravido econmica, mas apenas, e ainda isto a ttulo inteiramente excepcional, uma escravido de tipo patriarcal. A histria das insurreies negras prova, de qualquer maneira, que a teoria da submisso totalmente infundada. Para concluir, o negro saa to consideravelmente mais caro, que a substituio apenas por si no oferecia proveito compensador aos colonizadores. Decerto as sociedades indgenas no constituam reservatrios humanos to abundantes como as africanas e no teriam fornecido igual nmero de escravos. Mas de indagar, de todo modo, por que no se aguardou o esgotamento das reservas demogrficas indgenas antes de apelar para as africanas. Parece claro que a substituio da escravatura indgena pela negra no obedeceu s razes ento invocadas pelos interessados e ainda hoje sustentadas por certa historiografia. Iv - A investigao do processo de substituio desvenda que a mesma se operou em todas as regies onde a economia se articulou com o comrcio internacional. Sempre que se deu esta articulao, o negro substituiu total e definitivamente o ndio, num processo rpido e irreversvel. No houve nesses casos qualquer resistncia sria dos colonizadores supresso da escravatura indgena. Bahia e Pernambuco revestem a esse respeito um valor de exemplo. Naquelas regies em que nunca se deu esta articulao - via de regra consagradas produo para a subsistncia, para o mercado interno ou para o mercado inter-regional - jamais se deu tampouco a substituio. O Paraguai pode ser considerado como o caso clssico. A encarniada resistncia dos colonos de certas regies abolio do cativeiro e correlata importao de escravos negros, cessou desde o momento em que medraram economias produtoras de matrias-primas destinadas ao mercado mundial. Exemplos tpicos: So Paulo, Maranho, Par, Chile, Peru, Nova Granada, Nova Espanha. Em todos esses lugares, eclodiram revoltas contra a introduo de africanos. Quando, porm, entraram no circuito do comrcio mundial, no apenas cessaram a resistncia seno que pediram a remessa de africanos. Nada ilustra melhor este processo de substituio que o caso do Par e do Maranho. Estas duas regies produziam at 1755 apenas para a subsistncia. Antes daquele ano, que marcou o incio da introduo de escravos negros, nada exportavam para o mercado mundial. As drogas no podiam competir com os similares orientais e africanos; a produo de acar, por sua vez, no podia competir com a nordestina. Em 1682, os negreiros portugueses criaram a Companhia Geral do Comrcio do Estado do Maranho, que recebeu da coroa o monoplio da venda de escravos negros. Para forar os colonos a adquirirem escravos negros, a coroa portuguesa expediu lei dispondo que dali por diante se no pudesse cativar ndio algum em nenhum caso, mandando processar os que cativassem ndios e pr em liberdade os ndios assim cativados (Lei de 1/4/1680). Os colonos, que nada exportavam, no tinham como adquirir os negros. Em 1684 estalou a revolta dos proprietrios, liderados por Manuel Beckman. Tomaram o poder, depondo o governador, abolindo o monoplio da Companhia, expulsando os jesutas e restabelecendo a escravatura indgena. A revolta foi sufocada e trs dos seus lderes morreram na forca. Apesar disso, o movimento alcanou seus fins. A coroa autorizou de novo a escravido de ndios e revogou o monoplio concedido Companhia. Em meados do sculo XVIII, eclodiu na Europa uma srie de lutas dinsticas protagonizadas principalmente pela Inglaterra e pela Frana, culminando na Guerra dos Sete Anos, que envolveu as possesses co loniais das Antilhas, do Oriente e da Costa da frica. Estas lutas desorganizaram a produo e comercializao de drogas e produtos tropicais daqueles pases, abrindo amplo mercado para similares brasileiros. A coroa portuguesa tratou de tirar proveito da conjuntura. Estimulou a formao de uma companhia de capitais privados que se comprometesse a fomentar a produo tropical no Norte do Brasil - a Companhia Geral do Gro Par e Maranho. A Companhia estabeleceu como condio que a coroa proibissse a escravido de ndios e impusesse a importao de africanos. No dia 6 de junho de 1755 uma lei estabeleceu a liberdade geral e irrestrita dos ndios do Par e Maranho. No dia seguinte, um alvar rgio assegurou Companhia a exclusividade da introduo de negros naqueles dois estados. Medida idntica provocara uma revolta setenta e trs anos antes; desta vez, provocou jbilo entre os proprietrios do Par e do Maranho. A diferena importante entre as duas situaes consistia no seguinte: em 1682, a companhia mercantil exigira a supresso da escravido indgena para pura e simplesmente vender africanos; em 1755, no apenas fizera estas exigncias, seno que simultaneamente se comprometia a adquirir tudo o que os proprietrios produzissem e exportassem em drogas e gneros tropicais. Em 1682, no havia mercado na Europa para aquelas produes; em 1755, havia um amplo mercado para o cacau, o arroz, o algodo, o caf, a salsa, o cravo fino, o cravo grosso, o tabaco, o anil, as madeiras de lei. O que as leis da coroa e as pregaes dos religiosos no haviam conseguido - a substituio da escravatura indgena pela escravatura negra - operara-se instantaneamente quando a economia regional se articulara com o comrcio mundial. A chave dos problemas da substituio reside, por conseguinte, na articulao da economia local com o comrcio internacional. Parece impossvel fugir concluso de que foi essa conexo que efetivamente baniu de certas regies a escravatura indgena para implantar em seu lugar a de negros. V - Esta a altura conveniente para inquirir em que consistiu o interesse do comrcio internacional em introduzir a escravatura negra. Suponhamos que a produo colonial de matrias-primas para exportao se baseasse exclusivamente no trabalho de escravos ndios. Nesse caso o mercantilismo europeu teria de adquirir as matrias-primas a peso de ouro e prata, pois o mercado interno para as manufaturas europias se limitava mnima minoria dos proprietrios. Sabe-se que a poltica mercantilista deitava razes na grande fome de metais preciosos que afligiu a Europa no perodo anterior aos descobrimentos. Nessa escassez de moeda residira em determinado momento o principal empecilho expanso da economia europia, e foi a desesperada urgncia de conseguir metais que impulsionou os descobrimentos. Nessas condies, ganhou fora de dogma o princpio de que o poder e a riqueza de um pas se baseavam nas suas reservas de ouro e prata, impondo-se evitar a evaso da moeda como imperativo de defesa do interesse nacional. Essa concepo criso- hedonista constou como pedra angular na poltica das naes em que floresceu o mercantilismo. Na hiptese de uma produo colonial baseada na escravatura indgena, os europeus teriam de adquirir as matrias-primas a peso de ouro e prata. Como consequncia, sobreviria uma descapitalizao da Europa em benefcio das colnias, o que importava uma negao da prpria razo de ser do pacto colonial. Os mesmos metais preciosos que a Europa nesse tempo extraa do Novo Mundo seriam recambiados para as colnias. Haveria acumulao de capital nas colnias e no nas metrpoles. Impunha-se, portanto, adquirir as matrias-primas coloniais com uma moeda no-metlica. Essa moeda viria a ser o negro - uma moeda extremamente barata. o mecanismo desses sistemas de trocas, conhecido como comrcio triangular, consistia esquematicamente na troca de manufaturas baratas europias por negros na costa da frica, na posterior permuta desses negros por matrias-primas nas colnias americanas e, por fim, na venda das matrias-primas na Europa a dinheiro de contado e preos altos. Na negociao da costa da frica no entrava moeda metlica, servindo esta apenas de padro de conta; fazia-se tudo por permuta. Os portugueses, por exemplo, usavam na Guin para a compra de escravos, panos grosseiros multicoloridos, contas de vidro coloridas, espelhos, artigos de vesturio, comestveis, bebidas e bugigangas diversas. o preo da venda desses artigos correspondia no mnimo ao quntuplo do seu preo em Portugal. Nos sculos XV e XVI os portugueses obtinham ouro de 23 quilates na costa da Guin em troca de sal, manilhas de lato, bacias de cobre, leno e panos. A venda desse escravo no Brasil acusava um lucro mdio de 300%, conforme o testemunham manifestos de navios negreiros. A safra do produtor colonial no bastava para o pagamento da totalidade do carregamento de escravos; o produtor ainda ficava a dever ao comerciante portugus, que cobrava sobre o dbito juros de usura. Sierra y Mariscal calculava, no incio do sculo passado, que a dvida dos senhores-de-engenho baianos para com os comerciantes portugueses, correspondia a pouco menos de um quarto do valor do patrimnio universal dos engenhos. Os proprietrios coloniais, afora os negros, apenas importavam da Europa comestveis e implementos agrcolas, pouco significativos no balano de pagamentos. Um economista annimo portugus de fins do sculo XVIII, dizia que o lucro da operao mercantil "de ordinrio todo consumido e esgotado no tratamento, sustento e vesturio decente da famlia dos proprietrios e senhorios-de-engenho". Nestas trocas entre os proprietrios coloniais e o mercantilismo portugus no entrava tampouco dinheiro metlico. O que permite entender, entre outras coisas, a constante e angustiosa penria de moeda que afligia a colnia, apesar do pactolo de ouro que ela produzia e metodicamente vertia na Europa. VI - O uso do negro como moeda para aquisio das matriasprimas coloniais, pode ser direta ou indiretamente ilustrado por diversas formas. Bastaria aqui citar um documento do sculo XVII que coloca as coisas de maneira perfeitamente clara. Trata-se de uma espcie de memorial, datado de 20 de agosto de 1650, de Manuel Fernandes Cruz, "antigo morador de Pernambuco", ao rei de Portugal, sobre a recuperao da capitania conquistada pelos holandeses. No parece haver dvida de que Manuel Fernandes Cruz era um mercador portugus, daqueles que haviam permanecido no territrio depois da conquista. Segundo Cruz, havia duas maneiras de recuperar a capitania: mediante pagamento de uma indenizao aos holandeses ou uma guerra para expuls- los. Expunha um plano detalhado sobre o modo de reaver Pernambuco "sem gasto da fazenda real nem extorso dos vassalos", em ambas as hipteses. Fizesse el-Rei "estanco do comrcio das peas de escravos de Angola para a costa do Brasil pelo espao de cinco anos". Isto significava que mandaria vir por conta da sua real fazenda os escravos, da seguinte forma: 12.000 peas em cada ano, sendo 5.000 para Pernambuco, 4.000 para a Bahia e 3.000 para o Rio de Janeiro, vendendo-se a 60 mil ris cada uma. Este preo de 60 mil ris "aos habitantes do Brasil pareceria muito moderado". Calculava que deste nmero de 12.000 escravos poderiam chegar vivos ao Brasil cerca de 10.000. Estimava em 250.000 cruzados o custo total da colocao destes 10.000 escravos nos portos brasileiros, compreendendo as manufaturas para a permutao na costa da frica e despesas da viagem a partir de Lisboa. Vendidos ao preo indicado, os 10.000 negros dariam em cada ano um milho e 500 mil cruzados. Os vassalos do Brasil, por sua vez, dariam o acar em "pagamento destas peas", o que importa em dizer que a safra de acar seria vendida por um milho e 500 mil cruzados real fazenda. Mais simplesmente, trocar-se-ia a totalidade do acar pelas peas de Angola. O acar a ser permutado pelas peas, seria o de todos os engenhos do Brasil, ou seja, 350 engenhos, desde o Nordeste at o Rio de Janeiro, os quais produziam um total de 1.200 arrobas de acar "ma cho". Este acar, ao preo de 5 cruzados cada arroba, renderia em Lisboa 6 milhes de cruzados. Em outras palavras, 10.000 negros que haviam custado 250.000 cruzados - o missivista inclua nesse custo as despesas do transporte e do comboio para Lisboa - serviam para comprar matrias-primas a serem vendidas na Europa por 6 milhes de cruzados. Conclua que dessa forma "todos estes benefcios se conseguiam sem gasto da fazenda real, e tambm sem protestos dos vassalos". Naturalmente, estes resultados seriam alcanados na hiptese de que a coroa explorasse diretamente o trfico e a comercializao do acar. O mercador no auferia os mesmos lucros, pois tinha de pagar um sem-nmero de tributos e taxas: impostos de sada dos escravos de Angola e entrada no Brasil, impostos de entrada do acar em Portugal, dcimas, fintas, dzimos, etc. O que aqui importa assinalar, que o colonialismo mercantilista como um todo, auferia aquele lucro ao comprar as matrias- primas coloniais mediante o uso do negro como moeda. Claro, portanto, que a substituio da escravatura indgena pela africana foi uma imposio dos interesses mercantilistas, objetivando a permitir- lhes a aquisio das matrias-primas coloniais com uma moeda no-metlica e barata - o negro. Por isso cumpria proibir a escravatura indgena. A menos que houvesse importao de negros, no haveria tampouco exportao de matrias-primas coloniais. A produo foi em ltima anlise toda trocada por escravos negros. O mesmo se pode naturalmente dizer da produo de ouro e diamantes. Se como afirmou Humboldt, metade do ouro das Amricas saiu do Brasil, pode-se por igual afirmar que aquele ouro apenas deixou em Minas Gerais e na Bahia igrejas e sobrados. Na extenso de quase trs sculos, quatro milhes de negros trabalharam para despejar riquezas num tonel de Danaides. Acumuladas na Europa, tais riquezas produziram transformaes progressistas. No Brasil, a no-acumulao de riquezas apenas produziu estagnao e misria. 2. Escravido na estncia gacha I - Na estncia gacha preponderaram desde o incio relaes de produo capitalistas. O peo, produtor direto, era um trabalhador livre desprovido de meios de produo, devendo por isso vender sua fora-de- trabalho para prover subsistncia. Portanto, a economia pastoril gacha apresentava aquilo que o trao especfico do capitalismo: no apenas a produo de mercadorias, de resto presente em outros sistemas, mas a transformao da prpria fora-de- trabalho em mercadoria, como outra qualquer. certo que uma pequena parcela da produo bovina se destinava ao consumo do estancieiro e seus trabalhadores, mas fundamentalmente o sistema produzia valores-de-troca. Tratava-se, pois, de um sistema de produo social baseado no trabalho assalariado, o que importa dizer capitalista. No o descaracterizava como tal o fato de que o estancieiro no pagasse totalmente em dinheiro o salrio. Parte do salrio era pago em espcie, ou seja, diretamente em meios de subsistncia. Em razo disso, assumiam peo e estancieiro uma dupla posio, em que ao mesmo tempo vendiam e compravam mercadorias. Num sistema capitalista desenvolvido, o trabalhador se apresenta frente ao capitalista apenas como um vendedor de mercadoria - sua fora de trabalho. O capitalista, por sua parte, representa apenas o papel de comprador da mercadoria fora-de-trabalho. Naquela economia pastoril, ambos compravam e vendiam mercadorias. Esta situao bifronte provinha do baixo grau de diviso do trabalho e da escassa quantidade de capital varivel empregado. A magnitude do trabalho excedente era determinada pelas condies naturais de produo. Quanto mais favorveis estas condies, a saber, as pastagens, tanto menor a quantidade de trabalho necessrio e, consequentemente, tanto maior a quantidade de trabalho excedente. _No geral, o tempo de trabalho necessrio manuteno e reproduo do peo se mostrava extremamente exguo. Os meios de subsistncia, consistentes quase s de carne, provinham de uma riqueza basicamente natural, quase uma ddiva da natureza. Demais, o clima temperado reduzia as necessidades no apenas da alimentao, mas de vesturio e abrigo. O baixo grau de desenvolvimento social do peo fazia dele um indivduo que se contentava com pouco - um pedao de carne, uma choa, uns farrapos. No h elementos que permitam medir exatamente o poder aquisitivo do salrio pago, mas uma vez que o valor da fora-de-trabalho correspondia ao valor dos meios de subsistncia, fora concluir que se tratava de salrio extremamente baixo. II - A propsito das relaes de produo na economia pastoril, necessrio discutir o papel da escravatura, objeto de viva controvrsia na historiografia gacha. Uma das principais fontes da controvrsia reside no famoso e fecundo dirio de viagem de Saint-Hilaire. O sbio francs alude frequentemente a "estncias" com nmero considervel de escravos, mas poucos e mesmo nenhum trabalhador livre. Estas observaes induzem historiadores concluso de que s vezes o trabalho pastoril fosse desempenhado predominantemente, quando no exclusivamente, por escravos, caracterizando-se, assim, como um sistema de produo escravista. Estncia proveio do arcaico estanciar ou estancar, lugar onde se parava ou permanecia por algum tempo. Ferno Lopes, nas Crnicas, diz estantes para designar residentes. Escrevendo em 1771 sobre o Continente de So Pedro, Francisco Joo Roscio diz "estncia ou casa". Estncia se disse depois a propriedade aonde vivia em carter permanente o dono de rebanhos; por extenso, chamou-se tambm assim a grande propriedade agrcola da campanha enquanto o gado no expulsou o cereal. No tempo em que Saint-Hilaire fez sua viagem, ainda prosperava uma significativa produo tritcola na base do trabalho escravo, o que explica que ele chamasse tais propriedades de estncias. A agricultura extensiva sempre se prestou bem ao trabalho escravo. Da que fosse "aprecivel" o nmero de escravos nas propriedades agrcolas, conforme assinala Jorge Salis Goulart. Nos municpios agrcolas, ou que combinavam agricultura e pecuria, a populao escrava era muito superior dos municpios exclusivamente pastoris. As informaes que possumos acerca de um certo Incio de Melo, proprietrio de uma "estncia" em Arroio dos Ratos, no sculo XVIII, so a este respeito elucidativas. Mau grado um rebanho de apenas 500 cabeas de gado e 800 cavalares, ele possua nada menos de 12 escravos. No se poderia admitir que os 12 escravos se ocupassem no trabalho pastoril, dado que o meneio de uma estncia de 10 mil cabeas podia fazer-se com meia dzia de pees. Sucede que Incio de Melo plantava muito trigo e mantinha um pomar de mais de 500 rvores frutferas. Estas produes reclamavam numerosa fora-de-trabalho e nelas que se ocupavam os escravos. Sant-Hilaire conheceu uma propriedade onde eram empregados 12 negros apenas no trabalho de um pomar. Numa propriedade de Santa Maria, reparou que "o dono da casa e seus filhos cuidam do gado e os negros da plantao". Nos municpios da campanha onde se conjugavam a pecuria e a charqueada, registrava-se por igual grande nmero de escravos. Ao se processar a diviso do trabalho entre estncias e charqueadas, medrou nestas ltimas um processo de produo baseado no trabalho escravo, centralizado no municpio de Pelotas e circunvizinhanas. Nos centros urbanos se condensava numerosa populao escrava, ocupada principalmente na produo artesanal e nos servios domsticos. III - A nenhum ttulo se recomendaria o emprego do escravo no trabalho pastoril. Desde logo, agravaria o problema da superviso e da vigilncia, crucial em todos os sistemas de produo baseados na oposio entre o produtor direto e os proprietrios dos meios de produo. Quanto maior a oposio, tanto mais importante o papel que a superviso e a vigilncia desempenham, atingindo o mximo nos sistemas de produo baseados no trabalho escravo. No pastoreio, haveria que colocar um feitor ao lado de cada escravo pastor, j que sem a vigilncia e a superviso este ltimo obviamente trabalharia pouco e mal, usando com toda a probabilidade o cavalo para fugir atravs das dilatadas, indivisas e despovoadas campanhas, cruzando a raia em busca de uma liberdade assegurada legalmente nas terras platinas. Semelhante vigilncia e superviso seria logicamente antieconmica. parte isso, os africanos no possuam experincia tcnica de trabalho pastoril. No poderia haver nada mais antieconmico que a importao de um negro da frica para submet-lo a um demorado adestramento. Nem se justificaria semelhante gasto de capital quando existia na campanha uma massa de trabalhadores livres dotada de experincia e tradio pastoris: os gachos ou gaudrios, ndios e mestios. No dizer que no houvesse em absoluto emprego de negros nas atividades pastoris. Nas crnicas e nos inventrios, aparecem reiteradas aluses a escravos "campeiros". Note-se, contudo, que os que desem penhavam atividades propriamente pastoris, eram como regra negros forros. Apenas havia emprego de escravos em trabalhos auxiliares do pastoreio, condio de que sobre eles se pudesse exercer a vigilncia. Tal ocorria, por exemplo, nas arreadas e nos rodeios, em que havia participao de capatazes. "Nas estncias pouco tem que fazer o negro, exceto na ocasio rara dos rodeios", testemunha Nicolau Dreys. Nas instrues do Conde de Piratini aos seus cartazes, documento precioso descoberto e publicado por Guilhermino Cesar, pode-se ver quais eram as tarefas atribudas aos escravos da estncia: ajudar o pastoreio; fazer lenha; limpar currais; queimar o campo; carregar madeira para mangueiras; tirar leite das vacas; cuidar dos porcos. No rodeio, servia de auxiliar dos pees, no constando, entretanto, que se lhe confiasse um cavalo para andar sozinho pelo campo. IV - De todo modo, os poucos escravos das estncias de gado tinham sua principal ocupao nos servios domsticos e na produo de subsistncia. Deve-se ao historiador gacho Paulo Xavier uma importante contribuio metodolgica para o estudo da histria da economia pastoril gacha. Mostrou ele que, ao lado da produo capitalista, vicejava uma economia natural que se destinava satisfao das prprias necessidades do estancieiro e sua famlia, conjugando, como sucede em toda economia natural, a agricultura e a indstria domstica. Havia em toda estncia um espao cercado em que se cultivava o trigo, o feijo, o arroz, a mandioca, o milho, a abbora, a hortalia, as rvores frutferas; ao mesmo tempo, havia uma indstria domstica gerida diretamente pela mulher do estancieiro, que produzia queijos, linguias, conservas, charque, tecidos, rendas, artigos de couro, etc. Os meios de subsistncia, as matrias-primas e os artefatos assim elaborados, eram na sua virtual totalidade consumidos direta e imediatamente pela prpria famlia do estancieiro e mais moradores da estncia. Desse modo, os habitantes da estncia satisfaziam as necessidades fundamentais baseados unicamente na sua prpria economia, independentemente do mercado ou dos movimentos exteriores da produo. Os processos de trabalho dessa economia natural eram desempenhados por escravos. Uma vez que o trabalho excedente produzia apenas valores-de-uso e no mercadorias destinadas ao intercmbio, esses escravos viviam submetidos a relaes de produo do tipo patriarcal. Essa economia natural indica o grau extremamente restrito da diviso social do trabalho, bem como as rgidas limitaes a que estava submetido o capitalismo pastoril nesta sua primeira fase. errnea a conceituao da estncia como sistema de produo escravista apenas porque nela havia escravos. O erro advm da ausncia de um claro conceito terico sobre a escravido. Enquanto forma de propriedade, a escravido apenas uma instituio jurdica. A simples existncia da escravido no determina necessariamente um processo de produo escravista. No h produo escravista nas formaes sociais em que, malgrado exista a instituio jurdica da escravido, a produo social no se baseie fundamentalmente no trabalho escravo. Tal o caso das formaes sociais em que o escravo est submetido a uma condio patriarcal, suplementando a fora-de-trabalho do amo, ou o das formaes em que o escravo desempenha predominantemente funes domsticas ou ostentatrias, descansando a produo sobre o trabalho de homens de condio servil ou livre. A existncia de um processo de produo escravista pressupe evidentemente a da instituio jurdica da escravido, mas, esta instituio, apenas por si no constitui um processo de produo escravista. V - Estabelecidas estas premissas tericas e metodolgicas, importa apreciar rapidamente algumas peculiaridades histricas do capitalismo pastoril gacho. As leis do processo de produo capitalista no operaram na sua plenitude em todas as pocas econmicas. Isto s ocorreu quando o aludido processo se tornou dominante em determinada formao social. Nos pases mais evoludos da Europa Ocidental, essa dominncia apenas se realizou na segunda metade do sculo XVIII; antes disso, o processo de produo capitalista era dependente e, por isso mesmo, dominado. O capitalismo pastoril gacho integrava uma formao social em que dominavam as relaes de produo escravistas. Em resultado disso, estava subordinado lgica e s necessidades do escravismo. Isto fazia dele um capitalismo impuro, dependente e atrasado. A acumulao de capital foi escassa. Dado que explorava reduzidssimo nmero de trabalhadores, produzia por igual pouca mais-valia. Isto explica que, no comeo do sculo, os estancieiros gachos no dispusessem de capital para a organizao de um simples frigorfico, como o demonstrou Sandra Jatahy Pesavento, em Repblica Velha Gacha, livro essencial ao conhecimento da histria sul-rio-grandense. 3. A guerra dos amos I - Para um exrcito estrangeiro, h-de ser sempre extremamente difcil, se no impossvel, a conquista de um pas no qual no conte com o apoio ou quando menos a simpatia de alguma classe social importante. Caso mesmo assim venha a efetivar a conquista, no lograr nnanter-se no territrio sem pagar um alto preo em vidas e dinheiro. Na hiptese de que o mvel da conquista tenha sido econmico, quase certo que os conquistadores no tiraro proveito compensatrio. Isto porque, em se tratando de um exrcito estrangeiro, assume redobrada validez a lei segundo a qual, nas sociedades de classes, as armas so impotentes se no repousarem sobre uma base social, poltica e ideolgica, ou, segundo a conhecida sentena, d para fazer tudo com as baionetas, menos sentar-se sobre elas. No h indicao de que Napoleo tenha sequer suspeitado de que os xitos de suas guerras no se deviam apenas a uma estupenda fiabilidade ttica, mas essencialmente ao apoio e simpatia de populaes que viam nele o bem-vindo inimigo do feudalismo. H motivos para crer que morreu sem compreender que os desastres de suas campanhas da Rssia e da Espanha tiveram por causa bsica a encarniada resistncia de todas as classes sociais, da nobreza ao campesinato. No faz muito, testemunhou-se o malogro da mquina de guerra mais poderosa de todos os tempos, a servio da nao mais rica da terra, contra um pequeno e pobre pas agrrio de uma pennsula asitica. De todo modo, h prata da casa para ilustrar melhor a tese: a ocupao do Nordeste brasileiro pelos holandeses no sculo XVII constitui um caso clssico. Comecemos pela conquista. Os holandeses tinham todos os motivos para esperar um xito fulminante. Na primeira metade do sculo XVII a indstria, a navegao, o comrcio e as finanas faziam dos Pases-Baixos a primeira nao da Europa. Medido pela escala militar da poca, o exrcito invasor era formidvel. Contra isso, o que havia em Pernambuco era uma praa pobremente guarnecida, equipada de armamento obsoleto e escasso. Apesar disso, os holandeses precisariam de sete anos de uma guerra cruel, destrutiva e extenuante, para poder consumar a conquista, limitada assim mesmo ao reduzido nmero de povoaes da orla martima. As dificuldades da conquista holandesa so atribudas ttica empregada pelos defensores luso-brasileiros - a guerra de emboscadas ou guerra de guerrilhas. No se pode esquecer, no entanto, que semelhante ttica apenas pode prosperar se tiver por si o respaldo da populao. A verdade que os holandeses no contavam com o apoio ou a simpatia de nenhuma classe social importante da sociedade colonial. Os senhores-de-engenho, que tinham o domnio interno a nvel econmico, social e ideolgico, ofereceram tenaz resistncia, mobilizando os estratos acessrios da populao livre. Os escravos, a outra classe fundamental, preferiram buscar a libertao em Palmares: viram logo que aquela no era a sua guerra. Os ndios aderiram em massa aos holandeses, mas essa adeso foi escassamente significativa, visto no se tratar de ndios integrados na sociedade de classes da colnia. Os holandeses apenas granjearam o apoio de renegados e aventureiros, apoio esse que, sem ser desdenhvel, no foi em todo caso decisivo. A to falada desero de Calabar teve grande utilidade para os invasores, mas no tanta que no tivessem de gastar mais cinco anos no remate da conquista. Nem se mostrou mais decisiva a adeso de elementos isolados, como Gaspar Dias Ferreira ou Fernandes Vieira. II - A guerra cessou quando os senhores-de-engenho chegaram concluso de que a continuao da resistncia apenas traria como resultado a total destruio das foras produtivas da colnia. Admitiram a conquista holandesa e abandonaram o exrcito luso-espanhol prpria sorte. Para os holandeses, consumada a conquista, tratava-se de colher o resultado econmico, ou seja, acima de tudo o acar. No tardaram a constatar, entretanto, que isso se mostrava muito mais difcil do que haviam imaginado. O fato que haviam conseguido o domnio militar, poltico e comercial de Pernambuco, mas no o domnio econmico e social. Este ltimo continuava pertencendo aos senhores-de-engenho. No decurso da luta, um nmero bastante considervel emigrara para a Bahia, porm a maioria permanecera na posse de suas propriedades. Os holandeses podiam pura e simplesmente despojar os senhores-de-engenho das suas propriedades e dos seus privilgios. Todavia, se o fizessem seriam obrigados a espalhar tropas por toda a vasta hinterlndia para debelar as hostilidades da populao livre, liderada pelos senhores-de-engenho. No dispunham de tropas para isso e ainda que as mandassem vir dos Pases- Baixos isso apresentaria um custo to elevado que no compensaria as vantagens econmicas. Isso para no falar em outros problemas igualmente importantes. Os holandeses eram mercadores, navegadores e guerreiros, mas nada sabiam da tcnica de produzir acar nem poderiam assimil-la com a rapidez desejada pelos acionistas da Companhia das Indias Ocidentais. Demais, no gozavam de prestgio sobre as categorias sociais subalternas. Para tanto faltava-lhes, como disse o padre Antnio Vieira com ufania tipicamente portuguesa, "indstria para tratar escravos". Frei Manuel Calado, um sagaz beneditino que ento vivia em Pernambuco, resumiu lucidamente a situao para um general holands: "Se Vossas Senhorias pretendem viver nesta terra e conserv-la, impossvel o poderem faz-lo sem os moradores que sabem plantar os mantimentos e beneficiar os canaviais, e fazer o acar e criar os gados, o que os holandeses no sabem fazer, nem podem, porque para isso necessrio que vivam no serto, e apartados uns dos outros em largas distncias, e que estejam sujeitos a lhes virem cada dia os soldados portugueses quebrar as cabeas sem o poderem remediar e ainda que andem dez mil flamengos em quadrilhas vigiando".. ) Assim que sem o favor dos moradores impossvel Vossas Senhorias conservarem-se nesta terra". Importa entender senhores-de-engenho, onde o frade dizia genericamente moradores. Na arenga de Calado estava implcita uma proposta de aliana entre os senhores-de engenho e os conquistadores, como nica forma de restabelecer a produo aucareira. Os dirigentes mais lcidos da Companhia das Indias Ocidentais logo entenderam que no havia outra sada. No faltou entretanto quem imaginasse e at tentasse alternativas. A mais bvia e tentadora consistiria em colonizar Pernambuco com camponeses batavos, o que oferecia a dupla vantagem de consolidar o domnio do territrio e reduzir a violenta tenso social imperante na metrpole. As dificuldades prticas dessa colonizao se acham expostas objetivamente em um documento holands, o Breve Discurso, publicado no volume 34 da Revista do Instituto Arqueolgico e Geogrfico de Pernambuco. Para comear, haveria que dar terras a esses colonos. No poderiam ser as que haviam sido confiscadas aos senhores-de-engenho emigrados para a Bahia, porquanto nesse caso a Companhia perdia a oportunidade de vend-las, com grandes lucros, como o vinha fazendo, nem as que pertenciam aos luso-brasileiros que continuavam na posse das suas propriedades, j que esse esbulho traria consigo a renovao das hostilidades de todos os senhores-de engenho. No seria melhor soluo o estabelecimento dos colonos holandeses em terras devolutas da hinterlndia. Isso em nada contribuiria para a consolidao do domnio holands: em caso de invaso pelo mar, os co lonos no poderiam acudir em tempo. De todo modo, no se resolveria o problema da produo: os camponeses batavos no teriam disposio para desbravar terras e florestas, lutar contra ndios e suportar secas. Sups-se possvel a coexistncia entre o latifndio-escravista dos senhores-de-engenho e pequenas propriedades trabalhadas pelo brao livre. No entanto, a experincia empreendida por Johan Harrison em Itamarac provou que a idia era pouco menos que utpica. Segundo o documento holands, "a agricultura nenhum particular adiantara e os colonos, reduzidos misria, se fizeram pela maior parte soldados"; por outro lado, soldados holandeses aos quais haviam sido dados pequenos lotes, no podiam "medrar a menos que se sujeitassem a um senhor-de-engenho". Sucedido, pois, aos colonos batavos, o que j antes sucedera aos pequenos sesmeiros luso-brasileiros: o latifndio engolia a pequena propriedade; o trabalho escravo expulsava o trabalho livre. III - Como claro, a aliana social e econmica entre os dominadores holandeses e os senhores-de-engenho teria de ser negociada politicamente. Para tanto, a Companhia das Indias Ocidentais colocou frente do governo de Pernambuco um hbil poltico, o conde Maurcio de Nassau. A negociao teve lugar em assemblia que Nassau convocou para a cidade de Mauricia no ano de 1649 e teve a durao de nove dias, participando deputaes de senhores-de-engenho de Recife, Olinda, Ita marac, Igarass, Porto Calvo e Serinham, conforme se pode ver das atas lavradas na ocasio. Na abertura dos trabalhos estipulou-se que as propostas "vigoraro e sero inviolavelmente guardadas nesta Repblica". Os holandeses asseguraram aos senhores-de engenho a propriedade, a liberdade religiosa, perdo geral "qualquer que seja o crime", justia equidosa, crditos para a compra de escravos, represso contra abusos de soldados e, finalmente, direito ao uso de armas de fogo. As discusses sobre a clusula relativa ao uso das armas de fogo, projetam luz clara sobre o significado da aliana celebrada entre os senhores-de-engenho e os conquistadores. Propuseram estes que somente aos senhores-de engenho fosse facultado o uso de armas de fogo. Excepcionalmente, para o combate aos "salteadores", isto , escravos rebeldes, poderiam usar armas de fogo os brancos pobres e os mulatos. Mas os senhores-de-engenho, receando mais os elementos das categorias populares que os mercenrios da tropa holandesa, opuseram-se exceo, insistindo em que a defesa da propriedade e da ordem coubesse exclusivamente tropa holandesa. Nassau deixou bem claro que no haveria contemplao para com os senhores-de engenho que de qualquer modo prejudicasse os interesses comerciais da Companhia. "Espias (sic) seriam colocados em todos os distritos, a fim de evitar descaminhos de acar. Os que comprovadamente faltassem ao ajuste, seriam "banidos da terra com todos os seus bens". O pacto de Mauricia funcionou a contento das partes interessadas at o momento em que os conquistadores - movidos em parte pela srdida avareza caracterstica do mercantilismo neerlands e em parte pelas presses da recesso econmica que ento atingia o auge na Europa - esqueceram imprudentemente que os senhores-de-engenho ainda tinham o poder econmico, social e ideolgico. Eis aqui o que aconteceu. No curso daqueles anos, a Companhia outorgara aos senhores-de engenho contnuos emprstimos, que na prtica se mostravam irresgatveis porque vinculados a juros escorchantes. Uma vez remida a dvida, apareciam os juros acumulados da usura, impondo novo endividamento. Com isso, os senhores-de-engenho estavam com seus patrimnios hipotecados Companhia ou a prestamistas mais ou menos ligados a ela. Segundo carta do general Francisco Barreto ao rei de Portugal - carta essa que pode ser vista na ntegra no Arquivo Histrico Ultramarino, PE, Caixa 4, Carte de 21.01.54, Consulta de 16.12.654, ou um resumo em Virginia Rau, Manuscritos da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, I, p. 90/96 - as dvidas dos senhores-de-engenho de Pernambuco com os holandeses montavam, em 1654, a pouco mais ou menos dez milhes de cruzados, o que equivalia, pelos preos correntes, ao valor da produo de quase cinco safras de acar postas em Amsterd. IV - Quando no governo, Nassau exercera uma ao habilmente contemporizadora no tocante a tais dvidas. Intervinha quase invariavelmente para assegurar prorrogaes quando a Companhia ou outros credores pretendiam executar os devedores em mora. Os Sucessores do Conde na direo da Companhia em Recife inauguraram uma nova poltica que significava em ltima instncia a total runa dos senhores-de-engenho. Mostraram-se inflexveis, a princpio pela recusa sistemtica de dilaes nos vencimentOs das dvidas e abertura de novos crditos, e depois pela execuo e sequestro dos bens dos devedores. Colocando dessa forma os senhores-de-engenho beira da runa total, a Companhia insnsatamente minava de contradies insanveis o prprio terreno social em que assentava o seu domnio em Pernambuco. Quando por fim iniciou o sequestro dos bens dos devedores, rompeu o pacto vigorante entre ela e os senhores-de-engenho. Para estes, o confisco representava o seu desaparecimento como classe social, o que somente poderia ser evitado pela insurreio. Situados num vazio social, os holandeses no tinham como esmagar a insurreio, a despeito da superioridade militar. Durante aqueles anos, haviam descarregado todo o peso da sua opresso sobre as baixas e mdias categorias sociais. Havia muito que essas categorias exigiam uma rebelio contra os holandeses, mas os senhores-de-engenho resistiam, porquanto ainda no a consideravam essencial aos seus interesses. No havia outra classe social em condies de deflagrar e conduzir a luta contra os holandeses. Os senhores-de engenho assim o fizeram, vencendo a superioridade blica do inimigo e-ignorando as dissuases da coroa lusitana. Por duas vezes, na resistncia invaso e na reconquista, os senhores- de-engenho reuniram debaixo do seu estandarte todas as categorias sociais de homens livres - brancos, negros, mulatos, ndios. Deixaram de fora os escravos. Nem poderia deixar de ser assim, uma vez que um escravo que pegasse em armas automaticamente se converteria em homem livre. A fuga dos escravos para Palmares permitiu aos senhores-de-engenho manterem a luta armada contra os holandeses, sem o perigo de um ataque, pelas costas, de parte dos oprimidos. No entanto, as duas guerras custaram um altssimo preo aos senhores-de- engenho. Simplesmente perderam seus escravos, parte mais valiosa dos seus patrimnios. No esqueceram esta experincia. Nas suas insurgncias futuras - 1817, Confederao do Equador, Praieira - deixariam de ir at o fim, compondo-se com o adversrio, para evitar o mal maior. 4. Independncia e escravido I - Sabemos que em muitos sentidos, nos tempos coloniais, os prprios dominadores nativos tambm eram, por sua vez, dominados. Internamente, a propriedade dos meios de produo lhes conferia a dominao a nvel econmico e social, mas, como decorrncia do status colonial, a dominao poltica pertencia metrpole portuguesa. Com isso, no era dado aos dominadores nativos tomarem as decises cruciais a respeito de seus interesses. No que estes fossem totalmente ignorados, e nem poderiam s- lo, pois os dominadores nativos estavam afinal de contas frente do processo de produo que alimentava os copiosos rditos da coroa. Todavia, prevaleciam em ltima instncia os interesses da classe que em Portugal aproveitava a produo colonial - uma burguesia mercantil que se notabilizava por uma srdida rapacidade. Como consequncia, tambm os dominadores se sentiam explorados, no considerando satisfatrio o seu quinho no processo de explorao dos dominados. No sculo XVII, o frade beneditino Domingos de Loreto Couto sintetizara a situao ao dizer que os senhores-de-engenho se limitavam a "feitorizar" escravos em benefcio dos comerciantes portugueses. Nos comeos do sculo XIX a situao no mudara, como assinalou um observador estrangeiro, Sierra y Mariscal: "O senhorio de engenho trabalha incessantemente para terceiro e no para si". No foi contudo seno no alvorecer do sculo XIX que os dominadores nativos adquiriram conscincia e fora suficientes para formular e executar um projeto de criao de um Estado Nacional. Num amplo sentido histrico, a Independncia brasileira se inscreve no ciclo de revolues que converteram as colnias do Novo Mundo em Estados Nacionais. Estas revolues foram especificamente anticoloniais e no outra coisa. Constituram subprodutos da revoluo industrial que na Europa encerrou o longo e asfixiante reinado do mercantilismo. A estrutura colonial, criao do mercantilismo, fundava-se essencialmente no monoplio metropolitano sobre o mercado dos territrios dominados. s colnias no era dado comerciar seno com a metrpole e nesse monoplio radicava a essncia mesma do pacto colonial. Quase desde o incio o monoplio foi burlado atravs do contrabando, modalidade de comrcio que dava a outras naes europias o acesso aos mercados coloniais e facultava s colnias permutarem as matrias-primas por manufaturas em condies mais compensatrias que as permitidas pelo mercantilismo metropolitano. Para o historiador argentino Rodolfo Puiggros, o contrabando constituiu o "oxignio" que permitiu s populaes coloniais respirarem e viverem. De todo modo, beneficiou principalmente a burguesia inglesa, que burlando-se do monoplio pde acumular capitais para financiar a revoluo industrial. Multiplicadas gigantescamente as necessidades de matrias-primas e mercados para manufaturas, j no bastou Europa industrial o mecanismo de trocas a conta-gotas do contrabando. Manifestou-se violenta contradio entre o mercantilisno monopolista e a nova ordem industrial, impondo como nica alternativa a supresso do monoplio e sua substituio pelo livre comrcio. Isto implicava logicamente a supresso do domnio das metrpoles sobre os territrios coloniais. Noutras palavras, para que houvesse liberdade de comrcio, era preciso que as colnias adquirissem a soberania poltica. A burguesia inglesa, que madrugara no processo da revoluo industrial, tinha mais interesse que qualquer outra na extino do monoplio mercantilista; natural, pois, que estimulasse decididamente as revolues anticoloniais. Deste modo, em cada colnia a revoluo foi obra de classes que, possuindo j o domnio econmico e social, aspiravam dominao poltica. II - A revoluo anticolonial brasileira foi um projeto exclusivo da classe dos senhores-de-escravos, que a dirigiu em proveito prprio; a falar verdade, quando a emancipao se declarou como uma irreversvel necessidade histrica, no havia outra classe apta a realiz-la. Nas conspiraes do sculo XVIII (Mineira - 1789; Baiana - 1798; Carioca - 1794) e na Insurreio Pernambucana de 1817, a elite nativa de senhores-de-escravos no conseguira resolver um crucial pro blema poltico: o de como fazer a revoluo sem sacrifcio da instituio escravista. A revoluo anticolonial no podia se transfigurar em revoluo social. Consentir que a Independncia se acompanhasse da emancipao escrava, importaria para os senhores-de-escravos em cavar a prpria runa. O perigo se apresentaria inevitavelmente na hiptese de uma prolongada guerra contra a metrpole. Como sustent-la, rodeados de escravos sempre espreita de uma oportunidade para a revolta? Esse medo explica o fato de que a classe como um todo no tenha secundado as tentativas precursoras da Bahia, Minas, Rio e Pernambuco, empreendidas por grupos que pretendiam apoiar-se nas dbeis foras urbanas de homens livres. Seduzia a tais conspiradores o exemplo das colnias inglesas, onde a instituio sobrevivera guerra. A Declarao de Independncia fora redigida por um senhor de escravos e afinal emergira uma repblica que no exclua o escravismo. Na verdade, havia diferenas capitais entre as colnias inglesas e a colnia portuguesa. Naquelas, ao contrrio do que sucedia aqui, dominava uma j vigorosa burguesia manufatureira que liderara a luta, aliando-se apenas taticamente aos senhores-de-escravos do Sul. Demais, o escravismo no era l a forma dominante de produo, no possuindo, por isso mesmo, a homogeneidade e a solidez do sistema brasileiro. Igualmente importante: ao passo que nas colnias inglesas os escravos no chegavam a 10% da populao, no Brasil representavam bem mais de metade. No caso da Insurreio Pernambucana de 1817, o problema se apresentou de forma particularmente dramtica. A historiografia da insurreio, particularmente a de Carlos Guilherme Mota e Manoel Maurcio de Albuquerque, j demonstrou que os insurretos no foram at o fim, preferindo compor-se com o poder colonial, por temerem que a conjuntura insurrecional criasse condies para a insurgncia escrava. Quando o retorno de Joo VI a Portugal e a palpvel ameaa de recolonizao pelas cortes portuguesas propuseram novamente a emancipao poltica, a elite nativa se viu mais uma vez diante do problema representado pelas possveis reaes da massa escrava no caso de uma guerra de independncia. No faltavam exemplos vivos dos perigos potenciais de semelhante guerra. As colnias espanholas haviam tido que sustentar durante 15 anos uma cruel luta pelas armas para alcanar a independncia e no curso dela os libertadores, atenazados pelas necessidades militares, haviam engajado e necessariamente emancipado os escravos. A situao no lhes deixara outra alternativa, pois por toda a parte os escravos faziam causa comum com as tropas realistas ou se revoltavam e massacravam os brancos nativos seus senhores. Simn Bolivar sentira particularmente este problema e fora o primeiro a decretar a abolio da escravatura. Ao findar a contenda, os patrcios criollos j no possuam mais escravos, pelo menos em nmero e condies que conformassem um sistema de produo escravista. Isto que nas colnias espanholas a opo fora consideravelmente menos difcil do que o seria no Brasil, uma vez que nelas o trabalho escravo no representava a forma principal de produo. No se descartava tampouco a hiptese de que a guerra desse de si um novo Haiti, onde os escravos aproveitando-se das dificuldades da metrpole e sobretudo da diviso interna da classe dominante, se tinham insurgido e massacrado toda a populao branca. Os estrategos da Independncia estavam cnscios desses perigos e por isso vacilavam em empreender a jornada emancipadora. Entre as "sinistras intenes" dos lusos, advertia Barbacena para Jos Bonifcio, em carta de Londres, figurava a de promover o "levantamento dos negros". O cnsul ingls Chamberlain achava que havia "perigo para toda a populao branca". Mareschal, encarregado de negcios da ustria, fala na populao branca "atemorizada pelo esprito da populao negra". rmitage, que ainda respirou a atmosfera da poca, concluiu que na hiptese de "uma guerra sanguinolenta e duradoura... a parte escrava teria pegado em armas, e a desordem e a destruio teriam assolado a mais bela poro da Amrica Meridional". A epopia de Palmares continuava viva na memria dos senhores-de- escravos; no podiam esquecer que fora um resultado indireto da guerra contra os holandeses. O historiador Oliveira Lima, apologista da escravido e do Imprio, evocou o receio de que os escravos praticassem "represlias como as do Haiti" e disse que "a recordao de Palmares fortalecia essa impresso". Explicando a sobrevivncia da escravido, escreveu que "o Brasil no tivera, para alcanar sua Independncia, que sustentar, como as colnias espanholas, uma porfiada luta pelas armas; se tal houvesse sido o caso, a abolio ter-se-ia ento realizado". Tobias Monteiro, outro historiador do Imprio, sublinhou igualmente que naquele momento "a recordao de Palmares, admirada dos prprios brancos, exaltava a imaginao dos escravos". Este obsessivo medo a uma revolta escrava explica a nfase de Jos Bonifcio no sentido de uma "independncia ordeira". Aquela foi de fato a Independncia mais ordeira de todo o Novo Mundo. Merc da entronizao de um prncipe portugus - ningum menos que o filho e herdeiro do rei de Portugal - os senhores-de-escravos aplacaram e neutralizaram a metrpole, evitando os perigos sociais inerentes a uma guerra. Excetuada a Bahia, onde a burguesia mercantil lusitana mobilizou a guarnio numa resistncia que durou nove meses e s no prosseguiu porque a massa escrava chegara a um alarmante estado pr-insurrecional, o Brasil no teve de sustentar uma verdadeira guerra para a conquista da Independncia. III - Em contrapartida, a Independncia feita por essa forma atrasou em sessenta e seis anos a constituio do Brasil como nao. A Independncia no se interessou pelos escravos e os escravos no se interessaram pela Independncia. Se os senhores no podiam admitir a emancipao dos escravos, estes por sua vez no podiam se comover por uma Independncia madrasta que lhes recusava quanto havia de mais importante, ou seja, sua prpria emancipao. Em suma: a emancipao poltica do pas no teve para os escravos a menor significao. Pois, como salientou Oliveira Lima, "antes de emancipar-se politicamente, tinham que se emancipar civilmente; antes da Independncia, careciam da alforria". Sabe-se que a Constituio de 1824 excluiu os escravos da nacionalidade, ainda que nascidos no Brasil. Desse modo, com sua classe trabalhadora reduzida ao cativeiro, o Brasil independente veio a ser uma nao inconclusa. Os escravos seriam durante sessenta e seis anos os bastardos da nao brasileira, situao anmala que no entanto no provocou entre os radicais do liberalismo, como assinalou Joaquim Nabuco, mais que um leve "desassossego da conscincia". A Independncia foi particularmente madrasta para com os libertos. Entre outras iniquidades, manteve em vigor a disposio das Ordenaes que permitia ao antigo senhor revogar a alforria por ingratido. "Tudo era justa causa de revogao", escreve Perdigo Malheiro. "Pode-se dizer uma verdadeira rede em que o liberto podia facilmente cair e ser arrastado de novo para a escravido". Para tanto, bastava uma simples injria verbal contra o antigo amo, malgrado no fosse na presena dele; tratava-se, nesse caso, da "ingratido verbal em ausncia". Conhecem-se inmeras escrituras de revogao da alforria e um nmero ainda maior de decises judiciais placitando essas revogaes quando arguidas pelos libertos. Ainda mesmo no silncio da escritura de alforria, ficava o liberto sujeito a um sem-nmero de obrigaes para com o ex-senhor, chamado patrono como em Roma: "Servios pessoais" ou "bons ofcios"; "respeito", "piedade filial" e "reverncia"; necessidade de autorizao judicial para demandar o patrono. Esta dependncia explica porque que as delaes de insurreies escravas partiam invariavelmente de libertos; do mesmo modo se entende o fato de que nas eleies os libertos votassem nos candidatos escravocratas, contra os abolicionistas. A constituio e as leis submeteram o liberto a restries jurdicoinstitucionais que virtualmente criavam um terceiro estamento na sociedade brasileira. Apenas podia votar nas eleies primrias; no podia ser eleitor e exercer cargos como deputado provincial ou geral, senador, jurado, juiz de paz, delegado ou subdelegado de polcia, promotor pblico, ministro, magistrado, diplomata. No podia receber ordens religiosas; podia servir no exrcito, mas no chegar ao oficialato. A menos que houvesse nascido no Brasil, no se tornava cidado brasileiro. Muitos libertos aos quais se negava a cidadania, observou um deputado Constituinte, haviam na Bahia lutado de armas na mo. A simples "suspeita" de envolvimento em insurreies escravas autorizava o governo a deport-los para a frica, como sucedeu com centenas de libertos depois da insurreio baiana de 1835. No uma das menores desditas da historiografia brasileira, o recente florescimento de uma concepo da nossa histria, a qual nem por bem intencionada deixa de ser nefasta. Quando se ocupa da Independncia, esse historicismo populista exalta a participao do "negro" nas lutas ento travadas, dando como exemplo os regimentos de negros da Bahia. Uma vez que a quase totalidade da massa escrava se compunha de negros, a afirmao sugere subliminarmente que os escravos lutaram pela Independncia. Na verdade, os efetivos desses regimentos negros se constituam de libertos e integravam o sistema de segurana dos senhores-de-escravos, desempenhando-se de resto com notvel eficincia na represso aos quilombos e s insurreies. Afora estes soldados negros, participaram da luta na Bahia libertos que apenas obedeciam a uma exigncia de seus patronos. O que no impediu que pelo menos dois deles, citados por Labatut em ordem-dodia como "bravos" - Pedro Alves e Joo Raimundo de lima - tenham sido deportados para a frica, como suspeitos de participao na insurreio de 1835, de acordo com o decreto imperial de 4 de maro daquele ano. A caracterstica essencial do 7 de setembro que foi uma independncia feita por proprietrios de escravos exclusivamente para proprietrios de escravos. 5. Senhores de escravos e burguesia mercantil I - Na Bahia, excepcionalmente, o processo da Independncia nada teve de pacfico. Os portugueses ofereceram encarniada resistncia, apenas vencida aps nove meses de luta bastante cruenta. A resistncia foi encabeada pelos comerciantes portugueses, que aliciaram a guarnio militar e parcela expressiva da populao. Dbeis na cidade, os patriotas se fizeram fortes no Recncavo, onde formaram um governo interino e mobilizaram foras, sitiando e afinal conquistando Salvador. Mesmo depois do triunfo, o partido da Independncia no deu trgua aos portugueses. Grassou virulento antilusitanismo que exigia a expulso dos portugueses, afinal efetivada depois de anos de tumultos e motins militares, que amide colocaram a velha provncia borda da anarquia. Na perspectiva idealista da historiografia brasileira, a resistncia portuguesa explicada apenas pelo sentimental empenho de manter a Bahia ligada a "me-ptria". Basta ver, no entanto, que o fenmeno no se repetiu em outros lugares, onde havia por igual comerciantes e militares portugueses. Nem se poderia atribuir o antilusitanismo ao temor real de uma tentativa de restaurao do domnio colonial. Batidos, desmoralizados e arruinados, no tinham os interesses portugueses possibilidade alguma de promover tal recolonizao, principalmente depois que Portugal se resignou Independncia brasileira. O exame das contradies existentes entre comerciantes portugueses e senhores-de-engenho brasileiros ilumina de maneira bastante clara os motivos da guerra que se travou na Bahia. Lembre-se que os interesses portugueses na Bahia superavam de lnge os de qualquer outra parte do Brasil, correspondendo na verdade prpria importncia econmica, social e poltica da provncia. Mesmo depois de perdida a condio de capital, continuou ela o primeiro centro urbano da colnia, o maior exportador de acar e fumo, o maior importador de manufaturas europias e o maior mercado de escravos da Amrica do Sul. o domnio da burguesia colonial lusitana sobre a Bahia no tinha paralelo, exercendo-se atravs de mtodos particularmente espoliativos que na mesma medida provocavam o endividamento e a animadverso dos magnatas baianos. Estes no dispunham de capitais lquidos para o custeio da produo - compra de escravos, implementos agrcolas e meios de subsistncia europeus. Os comerciantes portugueses lhes antecipavam esses recursos ou, por outra, "fiavam" tudo. Estavam numa posio que lhes permitia literalmente esquartejar os muturios. Para comear, os emprstimos eram feitos sobre as safras futuras. Dado que os preos do acar e do tabaco sofriam constantes oscilaes, os comerciantes arbitravam cotaes ridiculamente baixas. Faziam exatamente o contrrio no concernente aos escravos e s manufaturas, sem os quais era impossvel dar sequer incio produo. Sobre os adiantamentos em dinheiro, os comerciantes chegavam a cobrar juros de at 4% ao ms, a crer num annimo economista portugus de fins do sculo XVIII (Discurso Preliminar, Histrico, Introdutivo, com natureza de Descrio Econmica da Comarca, e Cidade da Bahia, Anais da Biblioteca Nacional, vol. 27). Enquanto o escoamento da produo se processou pelo sistema das frotas, extinto por Pombal em 1766, os brasileiros estiveram sujeitos a atrasos sistemticos na liquidao de seus dbitos e, consequentemente, aos pesados juros dos comerciantes. Isto porque a frota tardava dois, trs e at quatro meses. Nesse entrementes, os plantadores brasileiros necessitavam de novos suprimentos a fim de dar continuidade ao processo da produo, o que os deixava ainda mais merc dos onzenrios. o j citado economista portugus fala em "srdido comrcio e torpes e lesivos contratos", para concluir: "o senhorio de engenho trabalha incessantemente para terceiro e no para si". II - As cifras so bastante elucidativas. Pelos fins do sculo XVIII, o comrcio supria anualmente a lavoura aucareira com 658.000.000 rs. de capital de giro. Calcula-se que a venda do acar e derivados produzia 974000000 rs., o que dava para a economia aucareira em conjunto um lucro lquido anual de 316000000 rs., correspondente a 5% sobre o valor total dos engenhos, orado em 15 milhes de cruzados. Este lucro, observa o economista colonial, "de ordinrio todo consumido e esgotado no tratamento, sustento e vesturio decente da famlia dos proprietrios e senhorios-de-engenho". Assinale-se que estas estimativas correspondiam a um perodo de prosperidade e compreendem os engenhos como uma universalidade, no particularizando a situao de certas categorias integrantes do sistema, como pequenos engenhos, lavradores obrigados, arrendatrios e meeiros. O lucro de 5% era a bem dizer apropriado pelos senhorios de 150 engenhos reputados grandes, num conjunto de cerca de 400 engenhos. Seja como for, estavam todos, sem exceo, submetidos ao pesado servio de uma dvida sufocante que remontava grande e prolongada crise do perodo entre 1739-1770. Sabe-se que desde fins do sculo XVII o acar brasileiro entrou a sofrer a concorrncia do produto antilhano de ingleses, franceses e holandeses. No cabe, aqui, esmiuar os fatores que barateavam o produto antilhano, a saber, a tcnica superior, a produo prpria de implementos agrcolas, o menor preo dos escravos, a maior disponibilidade de capitais lquidos, a amplitude dos mercados e os fretes mais baixos. No que interessa Bahia, a escravatura representava um fator especial de encarecimento. Enquanto as demais regies aucareiras importavam quase exclusivamente escravos angolanos, a Bahia importava, predominantemente, os carssimos escravos sudaneses e guineanos da chamada Costa da Mina. A razo disso era que a Costa da Mina absorvia a maior parte da produo tabaqueira da Bahia. Os ingleses, franceses e holandeses, que dominavam a Costa da Mina e o respectivo mercado de escravos, impunham aos negreiros baianos pesados gravames, em virtude dos quais os escravos sudaneses e guineanos lhes saam muito mais caros que aos seus concorrentes, s vezes at 75% ... O produto baiano tinha, pois, um custo bastante mais elevado que o de outras regies aucareiras do Brasil, o que explica que a coroa lusitana o privilegiasse com um preo superior ao de Pernambuco, Maranho e Rio. A partir da quarta dcada do sculo XVIII, o acar brasileiro em geral e o baiano em particular ingressaram na pior crise da sua histria. As causas dessa crise foram mltiplas. Internas: grandes secas e epidemias. Externas: as pazes entre as potncias europias, permitindo s suas colnias antilhanas uma produo tima. O terremoto de Lisboa fez piorar ainda mais a situao do acar brasileiro, tanto pela destruio de uma safra depositada na alfndega da cidade como pela decorrente crise geral. A vista disso, simplesmente no havia compradores para o acar baiano. s vezes, despachava-se para Portugal acar que ficava armazenado em penhor de dvidas. Dado que os comerciantes enjeitavam o acar, os lavradores o expediam sua conta para Lisboa e Porto. Calcula nosso economista annimo que em certos anos a exportao decresceu a menos de metade. O que ia cada vez mais para Portugal era dinheiro, destinado ao pagamento das dvidas. Por volta de 1760, a maior parte dos engenhos baianos estavam sequestrados pela Real Fazenda, pelas ordens religiosas, pelos conventos, pelas irmandades e sobretudo pelos comerciantes; no poucos foram levados praa. III - O pulso de ferro de Pombal abrandou um tanto a crise depois de 1750. Para que o preo dos escravos baixasse e a Bahia aumentasse sua importao - de 10.000 ao ano cara para 4.000 - , o ministro proibiu a reexportao para outros pases (1751); reprimiu duramente o contrabando de manufaturas de Portugal para o Brasil (1755); facilitou a reabilitao dos falidos e regulou os fretes (1756); estabeleceu preos fixos para o acar e aboliu as frotas (1756); interditou o ingresso de filhos de senhores-de-engenho em clausuras, medida tendente a sustar a descapitalizao da lavoura, e mobilizou os capitais improdutivos das corporaes de mo-morta (1766). A dcada de 70 viu a retomada da prosperidade. Depois, no entanto, bem mais que a poltica pombalina, contriburam para isso, sucessivamente, as novas guerras europias, a Revoluo da Independncia dos Estados Unidos, a revolta dos escravos haitianos e, afinal, a Revoluo Francesa. Os preos e os volumes da exportao de acar, acresceram de 60'/( em relao ao perodo anterior crise. Nem assim, todavia, os magnatas baianos se safaram do guante dos comerciantes portugueses de Salvador. Pois estes, no os brasileiros, foram os principais beneficirios da prosperidade. No auge da crise, um certo nmero de credores executara os devedores, de modo que alguns senhorios-de-engenho mudaram de mos (tais os portugueses que fugiram do Recncavo para Salvador, depois da ecloso da luta pela Independncia). A maioria, no entanto, percebendo o alcance das medidas de Pombal e farejando o retorno da prosperidade, optara por celebrar com os devedores escrituras de transao e novao de dvidas, composies em que obtiveram a vantagem de juros extremamente altos. Os senhores-de-engenho da Bahia chegaram, pois, ao comeo do sculo XIX, onerados com uma dvida na ordem de 4 milhes de cruzados, correspondente a pouco menos de um quarto do valor universal do seu patrimnio. Os comerciantes portugueses, como se v, no poderiam estar melhor garantidos. Em condies normais, os brasileiros no teriam como remir-se desta dvida. Nas vsperas da Independncia, a situao econmico- financeira dos senhores-de-engenho era extremamente crtica. O que levava alguns, segundo Sierra y Mariscal, a maliciosamente empenhar a safra a trs e quatro comerciantes ao mesmo tempo, "passando com tudo miseravelmente". Os senhores, a seu ver, queriam a Independncia, para com ela "se verem livres dos seus credores". Mediante a expulso dos comerciantes portugueses, os senhores-de-engenho se libertariam da dvida de 4 milhes de cruzados; quanto aos comerciantes portugueses, para que pudessem salvar os capitais em patados, a Bahia devia continuar portuguesa. Entretanto, os dois grupos sociais se compuseram, pondo fim guerra. No podiam prosseguir, pois expunham-se sublevao escrava ou, na melhor das hipteses, necessidade de fazerem concesses aos escravos. IV - Os acontecimentos haviam evoludo dramaticamente desde que chegara Bahia a notcia do movimento constitucionalista do Porto. Desencadeou-se intensa agitao, que culminou em fevereiro de 1821, numa sedio contra as autoridades absolutistas. O governador conde da Palma foi obrigado a jurar a constituio e se formou uma junta de governo. No ano seguinte, houve eleio dos deputados baianos s cortes, todos sem exceo senhores-de-escravos. Em fevereiro de 1822, a notcia da nomeao do brigadeiro absolutista Madeira de Melo, para o comando das armas, precipitou os acontecimentos. A cmara se recusou a cumprir a formalidade do registro da nomeao, os quartis se dividiram, tumultos explodiram nas ruas e as famlias brasileiras fugiram para o Recncavo. O confronto armado explodiu a 19 de fevereiro, triunfando o partido lusitano, com um saldo de duzentas vtimas entre mortos e feridos. A resistncia nativa se concentrou nas vilas de Cachoeira, Santo Amaro e So Francisco. Na primeira, a 25 de junho, aclamou-se D. Pedro e formou- se uma junta de governo. Neste mesmo ms, Madeira se recusou a obedecer s ordens de D. Pedro para que reembarcasse as tropas portuguesas. Em lugar disso, lanou uma proclamao em que tentava dissuadir os senhores- de-engenho de se lanarem luta, aludindo ao perigo de levantes escravos: "Evitai revolues; em toda a parte elas so perigosas; porm muito mais neste pas". O governo de Cachoeira, que formara um exrcito composto de gente livre, iniciou o cerco de Salvador. Em outubro, chegaram reforos enviados do Rio, sob o comando do aventureiro francs Labatut. O cerco sobre Salvador se apertou, instalando-se o acampamento militar dos brasileiros em Piraj, quase s portas da capital. O partido brasileiro lutava em duas frentes, as tropas lusitanas em Salvador e a massa escrava na retaguarda. Nos engenhos, nas povoaes e estradas, os escravos depredavam, incendiavam e matavam. Em todo Recncavo formigavam os quilombos. Em novembro de 1822, o governo de Cachoeira tomou medidas enrgicas para evitar o que chamou de "uma sublevao de escravos". Os capites-mores das vilas deviam determinar aos capites e oficiais que fizessem rondar por escoltas de ordenanas todos os distritos onde houvessem quantidade de escravos, proibindo que estes se reunissem a pretexto de funes ou batuques, "vigiando muito escrupulosamente sobre a conduta dos mesmos". Todos os proprietrios e lavradores seriam intimados, sob pena de responsabilidade, a no consentirem que os seus escravos tivessem nas senzalas espingardas, lanas, chuos, foices, faces, espadas e facas. No poderiam mandar os escravos a parte alguma sem bilhete de autorizao e mesmo nesse caso eles no poderiam portar armas. Seriam presos os que andassem pelas estradas sem bilhete ou armados. Os escravos surpreendidos com armas sofreriam o castigo de cento e cinquenta aoites no pelourinho. Os capites-mores fariam correr as matas onde constasse existir quilombos. O governo interino estabeleceu o toque de recolher para os escravos s 9 horas da noite. Os que depois dessa hora fossem encontrados sem bilhete dos seus senhores, seriam submetidos a cinquenta aoites, se desarmados, e a duzentos aoites, se armados. Corria que os portugueses haviam espalhado pelo Recncavo agentes incumbidos de atiar a revolta escrava. O general Madeira estaria formando um contingente armado de negros e se preparava para dar alforria a todos que se levantassem contra os amos. Pouco depois de assumir o comando do exrcito patriota, Labatut recebeu ofcios do governo de Cachoeira, advertindo contra o perigo de uma insurreio geral de escravos e pedindo providncias urgentes. Algumas cmaras e muitos proprietrios instaram-no igualmente a que reprimisse a rebeldia escrava. Convencido, afinal, de que a escravatura estava "quase em perfeita insurreio", o general francs decidiu escarment-la. Mandou fazer reconhecimento num quilombo bastante populoso situado a escassa distncia de Piraj. Os quilombos hostilizaram os batedores, que responderam com uma fuzilaria, fazendo "dezenas de mortos". Poucos dias depois, na madrugada de 11 de novembro, os quilombolas retaliaram, atacando o acampamento. Foram dizimados, e, alm disso, deram a Labatut o pretexto que buscava. Cerca de um ms depois, o general exarou numa ordem do dia a ameaa de que fuzilaria todos os negros encontrados de armas na mo. Cerca de sete dias depois, a 19 de dezembro, uma tropa numerosa atacou o quilombo. Consta que houve "combate muito disputado", mas o baluarte negro caiu. As informaes so de que contava mais de trezentos moradores. Muitos tombaram mortos ou feridos, muitos outros conseguiram fugir e cinquenta e um caram prisioneiros. Havia trinta e um homens e vinte mulheres entre os prisioneiros. O general francs no os submeteu sequer a um simulacro de julgamento. Mandou fuzil-los, sumariamente. Cmaras e senhores-de-escravos aplaudiram o massacre, dizendo que depois disso os escravos haviam deixado de se sublevar. "Este exemplo terrvel", disse Labatut em ofcio a Jos Bonifcio, "tem obstado at agora a formarem-se outros quilombos". O bom entendimento entre o general francs e os potentados baianos, entretanto, no durou muito. As causas do dissdio foram mltiplas, figurando entre elas a tentativa do general de criar um Batalho de Libertos. Esta iniciativa, segundo os senhores-de- escravos, dera "azo a que corresse a voz de que o escravo que se lhe apresentasse para praa, ficava livre". Em maio de 1823, oficiais s ordens do governo de Cachoeira, destituram e prenderam Labatut. Como disseram numa representao ao governo imperial, o francs entrara em conflito com "todos os que pensam e possuem nesta provncia". Submetido a conselho de guerra no Rio, Labatut foi absolvido de todas as acusaes, principalmente quanto chacina dos escravos, considerada necessria para a "salvao da provncia at ento ameaada de sublevao da escravatura". V - Enquanto perdurou a luta contra Madeira, os senhores-de-engenho viveram no medo revolta escrava. Os habitantes de Jaguaribe opuseram-se a que a guarnio local se incorporasse ao exrcito patriota, devido ao perigo da "raa africana, cujas maldades j houveram (sic.) no tempo do conde da ponte". A cmara de Jaguaribe foi contra o emprstimo de escravos para o exrcito patriota, pois isso poderia "fazer rebentar nesta malfadada provncia o mais funesto de todos os vulces polticos". difcil acreditar que, na hiptese da guerra se prolongar, assumindo carter generalizado, os chefes do partido da Independncia pudessem evitar o engajamento macio de escravos. Teriam de recorrer a essa medida, ou para aumentar os seus efetivos, ou para impedir a insurreio. Quando o exrcito patriota finalmente entrou em Salvador, em julho de 1823, os escravos do Recncavo estavam em estado francamente pr-insurrecional. No h notcia, contudo, de que o mesmo ocorresse com os de Salvador, durante esse tempo singularmente apticos. Nos anos que se seguiram, caracterizados por uma agitao e instabilidade que davam Bahia, segundo o prprio governo, o "horrvel aspecto de anarquia", no se registraram tampouco insurgncias escravas em Salvador. Talvez isso se devesse impossibilidade de qualquer tentativa num ambiente de intensa mobilizao militar. No deixa de ser significativo que a vaga insurrecional somente ressurja depois de 1826, quando a luta entre as faces desavindas da classe dirigente se desloca do campo militar para o poltico. 6. Quilombos I- A grande massa escrava brasileira se condensou no quadro rural, o que dizer que se tratava de uma massa essencialmente camponesa. No tinham estes escravos camponeses a mais remota possibilidade de organizar uma insurreio geral para a destruio do regime escravista. As considerveis distncias que separavam uma propriedade da outra representavam um obstculo praticamente insupervel, pois os escravos no podiam se comunicar e articular. Por isso, quando fugiam ou se sublevavam, a nica soluo consistia em buscar um lugar distante, em geral montanhoso e selvtico, onde estabeleciam comunidades que com o passar do tempo se iam povoando graas adeso de novos elementos. Ao longo de toda a histria da escravido, estas comunidades constituam o principal meio de libertao dos escravos. Na documentao histrica as comunidades de ex-escravos aparecem designadas como niocarnbos. Trata-se de voz do idioma quimbundo, significando cumeeira ou telhado. Em Minas Gerais, no entanto, a partir da segunda metade do sculo XVIII, a documentao oficial referente a tais comunidades adota a denominao de quilombo. O termo aparece depois no extremo-sul do pas, estendendo-se no comeo do sculo XIX ao Rio de Janeiro, a So Paulo e ao Esprito Santo. Ao que parece, o termo se generalizou na literatura histrica e antropolgica a partir do seu emprego por Francisco Adolfo de Varnhagen. Hoje, quilombo est consagrado, a tal ponto que no se pode evit-lo ao tratar das comunidades de ex-escravos. Est bastante difundida a noo de que o quilombo foi uma verso brasileira da estrutura homnima que floresceu em Angola nos sculos XVII e XVIII. Tudo de fato concorre superficialmente para abonar a tese da transplantao: na sua grande maioria, os negros brasileiros provieram de Angola; o termo quilombo aportuguesamento de tiilonibu, que em quimbundo significa arraial ou acampamento; as comunidades brasileiras de ex-escravos apresentavam caractersticas de arraiais ou acampamentos; logo, os negros teriam recriado no Brasil estruturas que haviam conhecido na formao social angolana. Esta hiptese da origem angolana das comunidades de escravos rebeldes perde desde logo consistncia quando se considera que os primeiros escravos negros procediam da Guin e no de Angola; na verdade, at expulso dos holandeses do Nordeste, a populao escrava se comps predominantemente de negros guineanos. Uma vez que estes guineanos no podiam conhecer o idioma quimbundo, torna-se bvio que a denominao mocambo foi dada s comunidades de ex-escravos pelos prprios senhores- de-escravos. Seja como for, a investigao histrica elucida que no houve sequer semelhana entre as comunidades negras brasileiras e os quilombos angolanos, caracterizando-se eles, pelo contrrio, como substancialmente antinmicos. As comunidades negras brasileiras constituram na verdade uma negao do quilombo angolano. II - O quilombo foi introduzido em Angola pelas hordas dos imbangalas, que os portugueses fizeram jagas. As origens deste povo so um enigma histrico ainda no cabalmente elucidado. As hipteses mais acreditadas os fazem proceder de uma regio nas nascentes do Nilo ou do Zaire, ou, ento, das altas montanhas da Serra Leoa. Forados a abandonar seu pas, no se sabe se devido invaso de outros povos ou exausto do solo, marcharam para o sul do continente, em hordas dedicadas pilhagem. Na segunda metade do sculo XVI, penetraram em territrio Mbundu, habitado por povos pastores e agricultores tributrios do reino do Congo. Estes povos formavam uma confederao de cls encabeada por um chefe, chamado Ngola pelos nativos e "rei" pelos portugueses. Todos os anos, o rei do Congo fornecia aos portugueses quatro ou cinco mil escravos extrados do territrio Mbundu. Afora isso, o prprio Ngola mercadejava escravos diretamente com os comerciantes portugueses que atracavam em Luanda. Este comrcio se intensificou e fez emergir um reino independente. Empenhado em preservar o monoplio de escravos, o Ngola resistiu encarniadamente ao avano dos jagas atrados pelo trfico negreiro. No teve xito, pois os jagas entabularam relaes diretas com os portugueses. Em fins do sculo XVI, no intuito de adquirir uma posio mais estratgica para o trfico de escravos, os jagas recuaram para leste e se estabeleceram entre os rios Lui e Kwango. Esta regio foi convertida pelos jagas no maior emprio de escravos da frica Central. Armados de mosquetes e espingardas pelos portugueses, empreendiam constantes razias para escravizar e vender os nativos. Ao mesmo tempo, fizeram-se soldados de fortuna a servio dos portugueses, defendendo fortalezas e esmagando rebelies nativas. Dessa forma, tornaram-se "odiados dos gentios destes reinos", segundo Antonio de Oliveira Cadornega, o cronista clssico das guerras angolanas. Na segunda metade do sculo XVII, a legendria Rainha Ginga, da dinastia dos Ngolas, decidiu cessar a resistncia contra os portugueses. Em criana. fora batizada crist em Luanda e quando se tornara rainha passou a vender escravos aos portugueses. Os holandeses invadiram Angola em 1641 e receberam imediatamente a adeso de Ginga e dos jagas contra os portugueses: pagavam melhores preos pelos escravos. Derrotados e expulsos os holandeses, a rainha se apoiou num grupo de jagas para abrir caminho at Matamba, a leste, onde se fixou e subjugou os povos nativos, vendendo-os como escravos aos portugueses. Dado que estes controlavam o litoral e, consequentemente, o trfico, Ginga no podia seno entrar em acordo com eles. Para afianar sua fidelidade, casou-se catolicamente em 1657 e, desde ento, os portugueses a reconheceram como rainha de Matamba. Fixou sua capital em lugar aprazvel margem de um rio, batizando-a de "Quilombo e Cidade de Santa Maria de Matamba". Construiu neste e em outros quilombos igrejas assistidas por missionrios capuchinhos. Os quilombos de Ginga se transformaram em copiosos emprios de escravos. Os traficantes reputavam as peas vendidas pela rainha e arrebanhadas pelos jagas em incessantes razias, como as melhores de Angola. No surpreende, pois, que Cadornega a descrevesse como "mulher cheia de bondade e virtudes crists, sem fingimentos nem hipocrisias". Ginga adotou ao mesmo tempo a estrutura jaga do quilombo, insupervel para a guerra e o comrcio de escravos. O termo quilombo designava tanto o territrio dominado por um potentado como a povoao em que ele vivia. O padre capuchinho Joo Antnio Cavazzi de Montecuccolo, que viveu entre os jagas, escreveu o seguinte sobre as povoaes ou os quilombos dos jagas: "A vida dos jagas, que um contnuo nomadismo, sugeriu-lhes uma forma de habitao fcil de construir e de transportar. As suas cidades no passam de simples aglomeraes de palhoas, e chamam-se libata ou quilombo. So edificadas maneira dos antigos acampamentos dos romanos e tm todas a mesma planta". Cabe informar que libata foi termo criado pelos portugueses, designando o conjunto das casas de um indivduo rico e dos seus escravos". O padre capuchinho deixou-nos uma descrio minuciosa do quilombo. Constava de sete quarteires, cada um dos quais chefiado por um oficial. No centro, erguia-se a Habitao do chefe principal - "se nhor de quilombo", segundo os portugueses - rodeada por uma cerca quadrada de sebe muito forte, em forma de labirinto para dificultar o acesso. No interior da cerca e volta da habitao do chefe, ficavam as habitaes dos conselheiros e servidores pessoais. Seguia-se um quarteiro confiado ao angolanibole ou matue-a-ita, "chefe da gente de guerra". Cabia a este marchar frente dos soldados e tomar a iniciativa dos combates, bem como mudar o quilombo para outro lugar, segundo as necessidades tticas. No terceiro quarteiro, morava o tandala ou icoca, "comandante da retaguarda". Era a segunda pessoa na estrutura do poder; substitua o chefe nos seus impedimentos ou nas suas ausncias e possua autoridade para sentenciar os rus, especialmente durante a guerra. Na parte direita, a leste, ficava a mutanda, residncia do muenelumba - "superintendente do cercado". Administrava tudo que estivesse dentro do cercado e podia entrar na casa do chefe sem ser anunciado. Do lado oposto, a poente, morava um oficial incumbido das misses secretas - um misto de oficial de informaes e diplomata. O sexto quarteiro era ocupado pelo quicumba, subordinado ao ngolambole; era o "comandante da bagagem", encarregado de guardar armas, munies, alimentos e roupas, e dirigir escravos. A seguir, vinha o quarteiro do ilunda, que tinha a seu cargo a proteo do guarda-roupa do chefe. Finalmente, o quarteiro do mani-cudia, que exercia as funes de vivandeiro. Seguiam-se outros oficiais ou quilambas. Desempenhavam papel importante os macotas, homens velhos que serviam de conselheiros; na guerra e na paz, nada se fazia sem consult-los. A unidade militar bsica era o songo, que Cadornega traduz para "tero", armado primitivamente de lanas e arcos e, depois do contato com os portugueses, de mosquetes e espingardas. Havia esquadres de exploradores, chamados pombos. No possuindo cavalos, combatiam a p, o que fazia da velocidade um elemento valioso. A mdia de habitantes jagas em cada quilombo era de cerca de mil, entre homens e mulheres. No havia hereditariedade na sucesso do quilombo, a eleio se fazendo de acordo com a fama e a experincia. A horda jaga era um composto tnico. Os genunos jagas no passavam de nfima minoria no conjunto de seus 16.000 guerreiros. Os efetivos do exrcito eram preenchidos com prisioneiros. Submetidos a uma escravido temporria, estes prisioneiros tornavam-se homens livres depois que davam provas de valor e destreza nos combates. Em cada regio, os jagas adotavam a lngua dos povos conquistados. A intermediao no comrcio de escravos era efetuada pelos pombeiros, em geral escravos negros dos traficantes portugueses. Estes pombeiros permaneciam no quilombo at que os jagas lhes fornecessem a desejada quantidade de escravos, pagando com armas de fogo, bijuterias, sedas e vinhos. A autoridade de Ginga e dos potentados jagas se tornou virtualmente nominal depois que acederam exigncia portuguesa da presena permanente de um capito-mor e soldados regulares nos quilombos. A funo destas guarnies era proteger os pombeiros e controlar o trfico de escravos. Cadornega enumera suas atribuies: evitar que os jagas especulassem nos preos das peas, advertir os "tratantes" sobre o que devem guardar e seguir"; representar o governador portugus junto aos senhores de quilombo; exercer a poltica sobre os pombeiros. Nas pendncias entre jagas e pombeiros, o capito-mor arbitrava e sentenciava. Se os jagas no cumpriam a avena, o capito-mor podia puni-los at com a morte. Os portugueses, portanto, exerciam completo controle sobre os quilombos. Comenta Cadornega: "O Prncipe Nosso Senhor, por esta preeminncia, fica dominando estes to poderosos quilombos de jagas e reino de Matamba". III - V-se, de tudo isso, que o quilombo angolano desempenhava o papel de base e instrumento do trfico negreiro. O "quilombo" dos negros brasileiros, enquanto isso. foi um baluarte na luta e resistncia contra a escravido. O termo quilombo se revestiria evidentemente de um significado sinistro para os negros, muitos dos quais haviam sido reduzidos escravido e vendidos exatamente naqueles ergstulos. No verossmil que batizassem de quilombos os seus basties livres. J para os senhores-de-escravos, aquelas aglomeraes de negros deviam evocar os quilombos angolanos - viveiros e depsitos de escravos. Os senhores, e no os escravos, devem haver adotado o termo quilombo. O uso consagrou-o, impondo ainda hoje seu emprego, feita a reserva de que em nenhum sentido se tratava da mesma coisa. Os quilombos como regra se localizavam em serras selvticas e incgnitas, inacessveis aos ataques. Ocultavam-se de tal forma que s vezes se tornavam necessrios muitos anos para descobri-los. Houve quilombos apenas descobertos vinte, trinta e at cinquenta anos aps sua fundao; alguns nunca foram descobertos, como o prova a sobrevivncia ainda hoje de algumas dessas solitrias e primitivas comunidades em regies perdidas da hinterlndia brasileira. Na regio amaznica, os quilombos se localizaram nos grandes rios, erguendo-se muitas vezes em igaps e sobre jiraus. Houve, ainda, os quilombos suburbanos, principalmente na Bahia, no Rio e Belm. Segundo a forma de subsistncia, houve pelo menos sete tipos de quilombos: os agrcolas, que prevaleceram por toda a parte do Brasil; os extrativistas, caractersticos da Amaznia, onde viviam das drogas do serto; os mercantis, tambm na Amaznia, que adquiriam diretamente de tribos indgenas as drogas para mercadej-las com os regates; os mineradores, em Minas Gerais, Bahia, Gois e Mato Grosso, os pastoris, no Rio Grande do Sul, que criavam gado nas campanhas ainda no apropriadas e ocupadas pelos estancieiros; os de servios, que saam dos quilombos suburbanos para trabalhar nos centros urbanos, fazendo-se passar por negros forros: os predatrios, que existiram um pouco por toda parte e viviam dos saques praticados contra os brancos. Nos seis ltimos tipos, a agricultura no estava ausente, mas desempenhava um papel subsidirio. No dispomos de fontes diretas dos prprios quilombolas, que nada deixaram escrito, o que nos reduz s informaes indiretas dos seus inimigos. A maior soma de informaes se refere aos quilombos agrcolas, que predominaram de maneira absoluta em todo o Brasil. As investigaes empricas efetuadas j permitem hoje desvendar a Formao Social desses quilombos. Os quilombolas viviam todos no interior de um recinto fechado e fortificado. Circundavam a povoao de cercas muito fortes de madeira e pedra, cercas s vezes duplas e triplas, dotadas de torneiras a dois fogos a cada braa, de flancos, de redutos, de redentes, de faces e guaritas capazes de assegurar aos defensores incolumidade quase completa. Mais ainda, escavavam largos e profundos fossos, dissimulados por vegetao e eriados de estrepes, puas pontiagudas de ferro que chegavam altura das virilhas e at mesmo da garganta de um homem. As reas semeadas de estrepes se estendiam no raro por considervel distncia fora das fortificaes. Um homem que assomasse no lado oposto, convertia- se em alvo fcil dos atiradores e arqueiros negros. Este tipo de fortificao prevaleceu no Nordeste e foi uma criao dos negros palrnarinos. No se v um sistema de defesa to elaborado nos quilombos de Minas Gerais, da Bahia, do Rio e do Par. A defesa predominante consistia a em trincheiras largas e profundas, no havendo notcia de cercas. Todos mantinham, em pontos estratgicos, vigias permanentes para dar aviso da aproximao de estranhos. O arco e a flecha figuravam como armas predominantes, mas sempre possuam algumas armas de fogo. As roas, que se situavam fora desta cidadela - o mais prximo possvel - abrangiam a cultura de toda classe de gneros alimentcios. As terras pertenciam coletivamente ao quilombo, que as distribua em lotes aos camponeses de acordo com o tamanho da famlia. o simples fato de um campons pertencer ao quilombo, assegurava-lhe o acesso terra. No se sabe se esta posse era hereditria, nem em que condies o campons podia ser privado dela. No h dvida, de todo modo, de que o regime constitucional do quilombo assegurava a todo campons o acesso terra. Seria necessrio nada menos que uma revoluo para privatizar a terra. As investigaes indicam que em Palmares o chefe Ganga-Zumba tentou despojar o quilombo da propriedade da terra, para atribu-la aristocracia que se formara; se houvesse xito, o resultado seria a constituio de uma classe de proprietrios feudais. H indicaes menos seguras, mas ainda assim bastante convincentes, de que Atansio, chefe do grande quilombo conhecido como Cidade Maravilha, teria tentado anloga feudalizao. Dado esse regime de propriedade da terra, a proletarizao do campons quilombola, ou seja, sua separao dos meios de produo, mostrava-se impossvel; ao mesmo tempo, entretanto, isso representava um obstculo a qualquer evoluo interna do sistema. A famlia camponesa quilombola constitua uma unidade auto-suficiente de produo e consumo. No seu lote, explorava principalmente a agricultura, mas a criao de animais de pequeno porte, a caa e a pesca representavam fontes regulares de abastecimento. o desenvolvimento da agricultura era bastante significativo, dado que usavam implementos de ferro. Estes implementos, fornecidos pelo quilombo coletivamente, provinham de forjas existentes ou, na falta de ferro, dos saques nas propriedades escravistas. o campons mantinha uma indstria domstica, que produzia tecidos, cermicas, acar, azeite, farinha, aguardente. o trabalho da terra era executado pelo campons e sua famlia, mas, nas colheitas, havia a cooperao de todos os Habitantes do quilombo. o campons quilombola no produzia para um mercado; produzia apenas valores-de-uso. No entanto, uma parcela da sua produo se transformaria em mercadoria quando ia ter s mos da classe qual ele pagava tributo. o crescimento demogrfico do quilombo era deliberadamente restringido, em ateno s condies ecolgicas e s convenincias da defesa. Tornava-se especialmente perigoso estender demasiado longe do quilombo as terras agricultadas. Portanto, quando o nmero de camponeses e habitantes do quilombo atingia certo ponto, partia-se para a fundao de outro quilombo, a uma distncia ditada pelas convenincias tticas. Nesse caso, o quilombo matriz passava a desempenhar o papel de capital; os "quilombos filhos", por sua vez, davam nascimento a outros quilombos. Nunca havia, por isso, apenas um quilombo em determinada regio. o quilombo da Serra da Barriga foi a matriz de mais de uma dezena de quilombos dispersos num imenso territrio da ento capitania de Pernambuco. Outro tanto se pode dizer do quilombo da Cidade Alaravilha, aparentemente o segundo em importncia na histria da escravatura brasileira. Pode-se de resto afirmar pacificamente que esta foi a regra em quase toda a parte. Os diferentes quilombos, por sua vez, se articulavam atravs de uma unidade poltica que tinha sua sede no quilombo-capital. Caberia portanto falar em confderao de quilombos. IV - Os quilombos se estruturavam como sociedades de classes. o processo desta diferenciao social pode ser reconstitudo nas suas linhas gerais. Os fundadores do quilombo, aqueles que haviam devassado a regio, construdo as primeiras fortificaes e criado as bases da produo econmica, adquiriram com o tempo o privilgio de viverem como no- produtores. de crer que a necessidade de uma organizao militar que defendesse o quilombo contra as expedies dos senhores-de-escravos tenha sido a origem dessa classe. A isso seguiram-se as necessidades de coordenao poltica e administrativa do quilombo. Noutras palavras, desenvolveram-se aparatos estatais: burocracia civil, burocracia militar, burocracia judiciria. Para prover subsistncia prpria e dos aparatos, reclamaram do quilombo o pagamento de um tributo em produtos. Tudo leva a crer que o compromisso do pagamento deste tributo foi inicialmente voluntrio; a ameaa externa dos senhores-de-escravos e o crescimento ou multiplicao dos quilombos, justificavam a reivindicao. A responsabilidade do pagamento do tributo recaa sobre o quilombo como coletividade, no sobre os produtores diretos individualmente; noutras palavras, a dependncia frente a essa classe dominante era do quilombo. Os "quilombos-filhos" pagavam um tributo maior que o "quilombo-matriz". Isso est claramente evidenciado no caso da Repblica dos Palmares. A Cerca Real do Macaco, na Serra da Barriga, merc da sua privilegiadssima posio estratgica, constitua a principal garantia dos "quilombos- filhos". No s estava em condies de interceptar as expedies que pretendiam atacar os outros quilombos, seno que, nos momentos de maior perigo, podia acolher no interior das suas fortificaes quase todos os habitantes daqueles quilombos. Tanto assim que a destruio da Repblica de Palmares apenas se tornou possvel quando a Cerca Real finalmente tombou vencida no ano de 1694. Os camponeses depositavam o excedente no paiol e a a classe dirigente dele se apropriava. Os camponeses ao mesmo tempo se sujeitavam a trabalhos de interesse coletivo, entre os quais, notadamente, as obras de fortificaes e defesa. No se deve ver como feudal esta classe dominante. No tinha a propriedade da terra nem de quaisquer meios de produo. No se sabe de um nico caso em que o quilombo tenha perdido a propriedade eminente da terra. o produto apropriado no se transformava em renda-dinheiro, no se acumulava. Destinava-se: a) ao consumo dos chefes e mais membros da "famlia"; b) manuteno da burocracia civil e militar; c) a trocas com os brancos para obteno de armas, munies, sal, ferro, artigos de "luxo". Note-se que, quando no podia obter estas coisas dos brancos atravs de trocas, a aristocracia funcionria recorria ao saque das propriedades escravistas. Havia entre os membros dessa classe "relaes de parentesco". Os produtores diretos estavam fora desta maranha de relaes de parentesco; elas somente vigoravam no interior da classe dominante. Vinculavam jurdica, poltica e ideologicamente entre si, os membros da classe. Tratava-se, evidentemente, de relaes de parentesco fictcias, salvo nos casos reais de consanguineidade. Segundo sua importncia, os membros da classe assumiam a condio de "filhos", "sobrinhos", "primos", "netos" do Grande Chefe. Correspondia isto a uma hierarquia. Os chefes dos demais quilombos, por exemplo, apareciam todos como "Sobrinhos" do Grande Chefe (caso de Zumbi, chefe de um quilombo que tinha seu nome). Os conselheiros do Grande Chefe eram "irmos" e "primos" os funcionrios civis mais graduados. No se configurava como uma classe "pura" e "perfeita". Isto porque, por um lado, no era proprietria dos meios de produo; e, por outro lado, no constitua. uma classe separada do Estado, antes se confundindo com ele e podendo por isso ser denominada de classe-estado. Desempenhava sem dvida funes socialmente teis e necessrias, mas nem por isso deixava de ser exploradora, na medida em que se considere como tal todo grupo social que de qualquer modo se apropria do excedente criado pelo trabalho dos produtores diretos. Em todos os quilombos, o Grande Chefe, cabea desta aristocracia, era eleito por toda a vida. No h informaes claras sobre o colgio eleitoral que o elegia. No de crer que os camponeses o integrassem, mas esta hiptese no pode ser descartada. Enquanto a investigao emprica no se aprofundar, ser de toda convenincia deixar a questo em aberto. Ele nomeava e destitua os demais chefes e funcionrios, sentenciava em ltima instncia, a ningum prestava contas. Vivia num "palcio" separado da povoao, com criados e guardas; possua diversas mulheres; cercava-se de grande pompa. Com variantes, exibiam esta conduta todos os chefes de quilombos mais conhecidos: Ganga-Zumba, de Palmares; Flix, de Caxi (Amaznia); Felipa, de lcobaa, e Atansio, da Cidade Maravilha, no Par; Cosme, do Maranho. Veja-se o que um documento diz sobre Ganga- Zumba: "Reconhecem-se todos obedientes a um que se chama Ganga-Zumba, que quer dizer Grande Senhor; a este tm por rei e senhor de todos os mais, assim naturais dos Palmares como vindos de fora ... tem palcio, casas de sua famlia, assistido de guardas e oficiais que costumam ter as casas reais. tratado com todos os respeitos de rei e com todas as honras de senhor. Os que chegam sua presena pem os joelhos no cho em sinal de seu reconhecimento e protestao de sua excelncia. Habita a sua cidade real, que se chama Macaco..." Esta descrio est a indicar um governante revestido de grande autoridade e poder, mas no um dspota no sentido corrente da palavra, o de um soberano absoluto e tirnico. Os romanos chamaram de dspotas os soberanos que impunham um tributo s comunidades aldes, sem que isso significasse o exerccio de poder de maneira arbitrria. Tributo se tornou sinnimo de despotismo. Foi nesse sentido que Marx elaborou o conceito terico de despotismo oriental como formao social; quando ele escreve despotismo oriental, leia-se classe que impe um tributo s comunidades aldes. Os chefes quilombolas no eram absolutos, como o prova, por exemplo, o fato de que no conseguiram feudalizar as terras. GangaZumba foi por esta razo deposto e morto. V - A contradio entre as classes era de resto muito moderada, o que por sua vez provinha do carter igualmente moderado da explorao. O que se explicava pela baixa produtividade do trabalho: o tempo de trabalho necessrio absorvia a maior parte da jornada de trabalho. A principal contradio no era entre produtores diretos e exploradores no plano interno do quilombo, mas entre o quilombo como um todo e o escravismo externo. Diante da ameaa externa dos escravocratas, tornava- se secundria a contradio social. A recordao dos horrores da escravido e a possibilidade de voltar a ela ou mesmo morrer, amortecia ou anulava a luta de classes. Nunca houve incompatibilidade ou conflito tnico entre negros e ndios ou brancos. A porcentagem de ndios nos quilombos sempre foi bastante expressiva. Atansio, o chefe do quilombo Cidade Maravilha, era cafuzo. Nunca faltou a presena de brancos nos quilombos, predominando os soldados desertores e os perseguidos pela justia dos dominadores. O quilombo constituiu uma criao dos escravos em resposta s condies peculiares do escravismo brasileiro; no foi a transplantao de formaes sociais africanas. O historiador chileno Rolando Mellafe, especialista em histria da escravido nas colnias espanholas (onde estas comunidades se chamavam quilombo, palenque, repblica, ciniarrones) opina igualmente que no se tratava de "grupos tribais empenhados em recriar estruturas originrias da frica". A investigao sistemtica destas originais formaes sociais constitui uma das mais urgentes tarefas que se impem historiografia brasileira. 7. Os libertos I - Malgrado sua significao demogrfica e social, o estamento dos libertos ou forros recebe geralmente pouca ateno nos estudos sobre o escravismo brasileiro. Esta categoria estamental foi definida nas Ordenaes Filipinas, que por sua vez se inspiraram no direito romano; depois da Independncia, teve sua situao regulada simultaneamente pelas Ordenaes e pela Carta de 1824. Antes de 1871, o escravo no gozou do direito alforria - palavra oriunda do rabe al-horria, que significa liberdade do cativeiro. Em 1853 o Conselho de Estado decidiu que "no pode o senhor ser obrigado a alforriar o escravo contra sua vontade, mesmo dando aquele seu valor" e isso porque "a Constituio garante a propriedade em toda a sua plenitude". Houve contudo excees antes de 1871. Uma resoluo de 1837 mandou alforriar todos os escravos do Imperador que dessem o seu valor. A partir de 1847, adotou-se esta prtica em relao aos escravos da Nao. Por ltimo, os donos dos escravos armados pelos Farrapos foram desapropriados, e se os mandou indenizar. No seu artigo 6, 1, a Constituio distinguia dois tipos de libertos: os africanos, nascidos na frica, e os crioulos, nascidos no Brasil. Os primeiros no receberam a cidadania brasileira, sob a alegao de que eram estrangeiros. A discriminao era injusta a todos ttulos. Haviam sido trazidos fora, muitas vezes em tenra idade. Os que chegaram depois da Lei de 7 de novembro de 1831, tornaram-se legalmente livres, mas foram na sua quase totalidade mantidos na escravido; no entanto, ao adquirirem a liberdade, no adquiriam a cidadania brasileira. A discriminao se tornava ainda mais brutal vista do tratamento dispensado aos brancos que no haviam nascido no Brasil. Assim, todos os nascidos em Portugal e suas possesses, mas residentes no Brasil poca da Independncia, adquiriram a cidadania mediante simples opo. Outros estrangeiros adquiriam a cidadania mediante naturalizao, a qual era recusada aos libertos africanos, conforme o decidiu o Conselho de Estado em 1851. Em decorrncia disso, os libertos africanos no tinham o direito de viver definitivamente no Brasil. Podiam ser deportados para a frica atravs de simples deciso administrativa, como sucedeu a vrias centenas deles depois da insurreio dos negros muulmanos da Bahia em 1835; por sinal, a deciso determinou a deportao mesmo daqueles que a autoridade policial julgasse apenas "suspeitos" de participao no movimento e ainda que houvessem sido absolvidos pelo jri. De resto, durante todo o regime da escravido sempre aparecem nos repertrios administrativos casos de libertos africanos deportados. O mais inquo destas deportaes que importavam na separao das famlias nos casos em que a mulher e os filhos houvessem nascido no Brasil. O projeto de Constituio elaborado pela Constituinte fechada por Dom Pedro I, negava a cidadania brasileira at mesmo aos libertos nascidos no Brasil. De todo modo, a cidadania outorgada pela Carta de 24 foi apenas parcial, pois a alforria no transformava o escravo em um homem inteiramente livre, igual ao seu senhor. Desde que possuam a renda necessria - renda lquida anual de cem mil ris por bens de raiz, indstria, comrcio ou empregos - podiam os libertos brasileiros votar nas eleies paroquiais ou primrias que elegiam os eleitores que nomeavam os deputados, senadores e membros dos conselhos gerais das provncias. No podiam, porm, ser eleitores e votar nestas eleies de segundo grau, mesmo quando tivessem patentes militares ou ordens sacras. Em consequncia, o liberto brasileiro no podia ser senador, deputado geral ou provincial, jurado, juiz de paz, promotor pblico, ministro, magistrado, diplomata. Podia servir no exrcito, mas no chegar ao oficialato. Seja como for, mesmo no exerccio do direito de voto nas eleies primrias, o liberto brasileiro no gozava de independncia poltica. Pois sua liberdade era precria, podendo ser revogada pelo antigo senhor. II - Este direito do senhor de revogar a alforria se baseava nas Ordenaes Filipinas. A Lei de 20 de outubro de 1823 disps que as Ordenaes continuariam em vigor enquanto se no organizasse novo Cdigo ou no fossem elas especialmente alteradas. As Ordenaes, como se sabe, constituram nossa lei civil durante todo Imprio. As Ordenaes rezavam: "Se algum forrar seu escravo, livrando-o de toda a servido, e depois que for forro, cometer contra quem o forrou, alguma ingratido pessoal em sua presena, ou em absncia (sic), quer seja verbal, quer de feito e real, poder esse patrono revogar a liberdade, que deu a esse liberto, e reduzi-lo servido, em que antes estava" (Ord., Livro IV, Ttulo LXIV). Considerava-se a alforria uma doao e "o doador pode revogar a doao feita ao donatrio". Em outras passagens, as Ordenaes se mostravam ainda mais explcitas no tocante s causas de revogao: a) "... se o donatrio disse ao doador, quer em sua presena, quer em sua absncia, alguma grave injria, assim como se lhe dissesse em juzo, ou em pblico, perante alguns homens bons, de que o doador recebesse vergonha"; b) se o agredisse ou ferisse; c) se ao tratar de negcio do patrono lhe causasse prejuzo ("grande perda e dano"), ainda que de boa-f; d) quando ameaasse o patrono de perigo ou dano, ou "lhe procurasse a morte, ou perigo de seu corpo, ou estado"; e) em geral, quando o liberto deixasse de cumprir alguma promessa feita ao amo para que este lhe desse a alforria; f) dava causa revogao, a injria feita ao patrono morto, revogao essa promovida pelos herdeiros; g) se no alimentasse o patrono, quando este se visse reduzido necessidade. A revogao podia ser promovida por terceiros. Dava-se isto nos casos em que a alforria houvesse sido feita por "nulidade em geral", particularmente em fraude dos credores do libertando, das legtimas dos herdeiros necessrios ou da meao da mulher. A revogao da alforria do liberto nascido no Brasil importava em cassao da cidadania brasileira. Juristas chamaram a ateno para o fato de que a Constituio estabelecera, no artigo 69, 19, e no artigo 94, os nicos casos de perda da cidadania, entre os quais no constava este da ingratido do liberto para com o patrono. Importava isso, ademais, em reduzir uma pessoa escravido, o que o artigo 179 do Cdigo Criminal capitulava como crime. Juristas e tribunais, porm, contra-argumentavam que as Ordenaes continuavam em vigor. A controvrsia foi liquidada pelo mais eminente jurista da poca, Teixeira de Freitas, que declarou: "Repugna ... salvar a Lei Fundamental custa da moralidade". Argumento que, diga-se de passagem, nada tinha de jurdico. Que sucedia aos filhos tidos pelo forro depois da alforria? Opinou Teixeira de Freitas: "So escravos os filhos concebidos depois da revogao, no assim os concebidos antes dela". Segundo a jurisprudncia, o liberto devia ao patrono servios pessoais ou bons ofcios; "respeito", "piedade filial" e "reverncia". Para demandar o patrono, necessitava o liberto de autorizao judicial. Em causas criminais, no podia testemunhar contra o patrono. "Tudo era justa causa de revogao", escreveu Perdigo Malheiro. Havia segundo o jurista "uma verdadeira rede em que o liberto podia facilmente cair e ser arrastado de novo para a escravido". A situao do liberto era verdadeiramente a de uma liberdade vigiada. A prtica da alforria permitia a um indivduo constituir uma clientela de homens obrigatoriamente dedicados. Merc da alforria, o poltico escravista podia aumentar o nmero de votos que controlava nas eleies primrias ou paroquiais. Nisto reside a explicao da circunstncia, repetidamente lamentada por Joaquim Nabuco, de que nas eleies os libertos votavam nos candidatos antiabolicionistas. Por medo de serem acusados de ingratos, os libertos denunciavam as conspiraes escravas. O liberto se vinculava ao patrono at mesmo pelo sobrenome. Escravos, como se sabe, no tinham sobrenome, e por isto ao se alforriarem adotavam o do patrono. III - No se deve contudo idealizar a massa de libertos. Se alguns adquiriam a liberdade a peso de dinheiro amealhado atravs do trabalho, no exerccio de uma atividade especializada - caso dos chamados escravos- de-gaitho - outros entretanto o adquiriam mediante uma dedicao canina ao senhor. Isentos dos trabalhos mais pesados e ingratos, faziam conscientemente a carreira para a alforria, denunciando e perseguindo os outros escravos, sobretudo os que se insurgiam. No foi pequeno o nmero de libertos que se tornaram proprietrios de escravos e s vezes de muitos escravos. houve os que se fizeram realmente ricos e assim gozaram de total independncia. Do mesmo modo, tornavam-se inevitavelmente partidrios da escravido e receberam a abolio com o mais profundo desgosto. De uma maneira geral, se os amos os desprezavam, os escravos os odiavam. A Lei Rio-Branco, de 1871, ao revogar o dispositivo das Ordenaes que facultava a revogao da alforria, conferiu a todos os libertos a mais completa independncia jurdica, mas nem por isso suprimiu a restrio aos seus direitos polticos. 8. As insurreies de escravos muulmanos na Bahia I - Ao amanhecer do dia 14 de maio de 1835, cinco negros muulmanos - os escravos Gonalo, Joaquim e Pedro, e os libertos Jorge da Cruz Barbosa e Jos Francisco Gonalves - foram fuzilados no cam po da Plvora, da cidade de Salvador, no meio de um quadrado de quase mil soldados de armas embaladas e sob as vistas de uma multido de mais de quinze mil brancos e mulatos. Haviam sido condenados morte como lderes de uma grande insurreio negra na noite de 24 para 25 de janeiro; outros treze negros, tambm condenados morte, haviam tido suas penas comutadas. A execuo dos cinco negros no fora fcil nem tranquila. Marcada para o dia 13 de maio e armada a forca com muitos dias de antecedncia, no se achava quem quisesse servir de carrasco. No dia 12 de maio, o juiz comunicou ao presidente da provncia que at noite do dia anterior "no havia indivduo algum nas prises para servir de executor da justia". A vista disso, alvitrava que "se oferecesse uma quantia um pouco avultada, at 20 ou 30 mil ris". Estava certo de que com esta recompensa "se acharia nas cadeias um dos presos pronto para esse fim". Nem assim o carcereiro-mor encontrou quem aceitasse o encargo. "No h quem queira aceitar", comunicou aos superiores, depois de percorrer as prises, uma a uma. "Nenhum quer por recompensa alguma e nem mesmo outros negros querem aceitar, apesar das diligncias que lhes tenho feito, com grandes promessas, alm do dinheiro". Face a isso, resolveu-se fuzilar os cinco negros. As circunstncias desta execuo testemunham o estado de tenso existente em Salvador. Em documento pblico, a Regncia falou no "terror que se tem apoderado da populao dessa Cidade, em consequncia da revolta de africanos na noite de 24 para 25 de janeiro". Na verdade, havia quase trs dcadas que a populao no-negra de Salvador vivia sob o terror das insurreies dos negros muulmanos. Para pr fim a esta ameaa, a Regncia determinou a deportao para a frica de todos os libertos muulmanos "suspeitos de terem tido parte naquela revolta, ainda quando pelo motivo acima citado sejam absolvidos no jri da Cidade" (Coleo de Leis do Imprio do Brasil, v. VI, parte XIV, pginas 79 e 80). Os que fossem escravos, no poderiam em nenhuma hiptese sair da provncia, e no seriam postos em liberdade a menos que os senhores assinassem "termo de segurana em que afiancem sua conduta". A execuo dos cinco negros encerrou um ciclo de insurreies que abalou a cidade de Salvador, a intervalos mais ou menos breves. entre os anos de 1807 e 1835. Estas foram, ao que se saiba, as nicas insurreies urbanas de negros, no Brasil e no Novo Mundo; em toda parte, os protestos negros sempre tiveram lugar no quadro rural. Estas insurreies representaram igualmente as nicas tentativas negras de tomada do poder no Brasil. No decurso da histria da escravatura brasileira, os libertos nunca se solidarizaram com os escravos e muito menos se integraram nos quilombos; nas insurreies de Salvador, libertos de confisso muulmana tiveram papel destacado e aproveitaram sua condio para assumir a liderana. Os insurretos tiveram contra si, no apenas os brancos e os mulatos, mas tambm os negros no-muulmanos. Nunca aceitaram a escravido. Organizavam insurreies durante a viagem entre a frica e o Brasil; depois, ainda nos depsitos de escravos novos destinados venda, revoltaram-se; esmagada uma insurreio, comeavam imediatamente a organizar outra. Presos e torturados, nunca falaram. Artesos hbeis e inteligentes, reuniam rapidamente o peclio para a aquisio da liberdade; quase todos sabiam ler e escrever em rabe, e muitos podiam ser considerados cultos. Nunca se deixaram espesinhar; levavam vida devota e austera. Como resultado da insurreio de 1835, nunca mais um negro muulmano pisou no Brasil como escravo. No empenho de extirpar completamente sua presena e influncia na Bahia, as autoridades passaram a tolerar, quando no a estimular, as demais religies africanas, cujo carter conformista constitua, como disse o Conde dos Arcos, governador da Bahia, "o garante mais poderoso das cidades do Brasil". II - Antes de fazer a narrativa destas insurreies, ser til falar sobre o Isl Negro no continente africano ao sul do Saara, particularmente nas regies de que procediam os muulmanos da Bahia, a saber, as regies sudanesas, onde floresceram civilizaes superiores e s vezes brilhantes. O desenvolvimento das sociedades sudanesas esteve intimamente vinculado grande expanso islmica do medievo. A penetrao islmica se processou atravs do deserto do Saara; mas no, segundo pretende a perspectiva idealista, como um puro fenmeno ideolgico operado no vazio. A convenincia ou a necessidade ditaram a converso das aristocracias sudanesas f muulmana, e o af de capturar as fontes do ouro sudans, no o fanatismo religioso", incitou os governantes do Magrib a enviarem missionrios, comerciantes e soldados. A propagao do islamismo ao Sudo teve uma base material - o intercmbio mercantil transaariano. J bastante antes do sculo XVIII, porm depois disso em escala crescente, o Sudo e o Magrib desenvolveram um circuito de trocas, os sudaneses fornecendo ouro, cobre, marfim e escravos, e os muulmanos sal, manufaturas e artigos de luxo. O ouro, produto mais importante desse intercmbio, constituiu por assim dizer, a base monetria da grande expanso islmica que atingiria seu znite no sculo XIII. Sabemos que no foi seno para obter esse mesmo ouro que os cristos empreenderam as navegaes exploratrias da costa da frica. O intercmbio transaariano operou transformaes revolucionrias nas sociedades Sudanesas. A afluncia de mercadores islamitas gerou ncleos urbanos que serviam de base a um comrcio local, regional e internacional. O desvio de fora-de-trabalho para a lavra do ouro desmantelou as tradicionais economias familiares de subsistncia. A criao de novas necessidades dependentes da importao desagregou sociedades que at ento haviam sido mais ou menos autrquicas. Nas sociedades mais diretamente vinculadas ao trfico transaariano, processou-se uma destribalizao bastante acentuada. O novo sistema, que repousava essencialmente na espoliao de camponeses por aristocratas agrrios e mercadores urbanos, no podia operar atravs das antigas superestruturas gentlicas. Faziam-se necessrias superestruturas no-tnicas e supratribais. Vale dizer, administraes centralizadas, burocracias letradas, exrcitos permanentes e mecanismos fiscais. O islamismo dispunha de vasta experincia sobre estruturas estatais no-tnicas e supratribais; o ecumenismo cornico permitia estabelecer a coeso entre etnias estranhas e amide hostis entre si. Portanto, o islamismo j tinha pronto o modelo institucional necessrio nova ordem sudanesa. A adoo pelos sudaneses da ideologia correspondente a esse modelo, a religio muulmana, seria obviamente inevitvel, tanto mais que, no mundo islmico, a sociedade civil e a religio se confundiam. Quando a aristocracia ganesa resistiu islamizao, os exrcitos almoravides-berberes se impuseram a ferro e fogo, na metade do sc. XI. Se as aristocracias sudanesas desde logo abraaram o islamismo, a massa do povo campons, entretanto, s na aparncia aceitou uma religio estrangeira que era o instrumento da sua opresso. No geral, manteve-se fiel aos seus animismos tradicionais; o islamismo foi a religio dos reis, nobres e mercadores. Todavia, num processo lento, o islamismo ganhou a massa do povo campons, a tal ponto que Vicent Monteil poder dizer que na frica moderna "o Islo sobretudo uma religio de camponeses". No medievo sudans, o intercmbio transaariano criou imprios como os de Gana e Mali, no Sudo Ocidental; Estados como os Mossi e Hausa, no Sudo Central; Cidades-Comerciais, como Timbuctu, no Sudo Ocidental, e Jene, no Sudo Oriental. A partir dos sculos XV e XVI, o retrocesso islmico ante os golpes cristos na pennsula ibrica e no norte da frica, produziu o declnio e afinal o colapso do sistema de trocas transaarianas, base econmi ca das estruturas sudanesas islamizadas. Simultaneamente, a expanso crist fez medrar na frica atlntica um novo circuito comercial. Povos que se haviam mantido margem do comrcio transaariano, assomaram como potncias dedicadas ao trfico de ouro e escravos. As elites sudanesas exacerbaram a espoliao dos camponeses e povos submetidos. O islamismo sudans herdara a tradio escravista da sua variedade oriental e o trfico de escravos para o norte da frica sempre fora uma fonte de renda para as classes dominantes sudanesas. Esse trfico se fazia custa de inimigos e prisioneiros de guerra. Mas agora, fustigadas pela crise, dedicavam-se profissionalmente caa e escravizao de nativos para vend-los aos traficantes atlnticos. O descontentamento social tornou-se profundo. Os efeitos polticos se traduziram numa desarticulao geral das aristocracias sudanesas, sucedendo-se conspiraes, golpes de estado, lutas pelo poder e revoltas de vassalos. Uma das mais dramticas comoes poltico-sociais ocorreu nos Estados Hausa, origem dos escravos que propagaram o islamismo em Salvador e encabearam as primeiras insurreies negras. Convencionou se chamar Hausalndia o espao geogrfico em que se situavam, no Sudo nigeriano. Presume-se que j antes do sculo XV, mas em todo caso provadamente a partir de ento, as populaes hausas se apresentam unidas sob uma pluralidade de Estados, destacadamente seis: Daoura, Rano, Zaria, Gobir, Katsena e Biran. Tal como aconteceu em outras regies sudanesas integradas no sistema do comrcio transaariano, a aristocracia da Hausalndia tomou de emprstimo aos islamitas um modelo institucional supra-tnico e supratribal, o que conduziu adoo do credo muulmano - sob a influncia dos comerciantes mandingas -, todavia restrito s aristocracias e aos mercadores, beneficirios do sistema. Como em toda parte no Sudo, a massa camponesa manteve-se muito tempo apegada aos seus tradicionais animismos. Entre os artesos urbanos, os animismos se recobriram de um verniz islamita, ou seja, o islamismo assumiu uma feio altamente sincrtica. Os Estados Hausas eram governados por monarquias oligrquicas (sarki), havendo indicaes de que chegaram a formar entre si uma espcie de confederao. Para compreenso dos revolucionrios hausas de Salvador, ser necessrio saber que os Estados Hausas assumiram configurao marcadamente urbana. A prpria agricultura era praticada em glebas dispersas nas proximidades dos centros urbanos. Geralmente muradas, essas cidades serviam a um tempo de refgio e mercado. Nelas se centralizava o comrcio: comrcio local (onde os camponeses trocavam seus produtos agrcolas por produtos artesanais), comrcio nter-regional (onde os povos lindeiros trocavam o ouro, o marfim e os escravos por produtos artesanais), comrcio internacional (o intercmbio transaariano). Os artesos hausas - ferreiros, tintureiros, tecedores, tanoeiros, curtidores - gozavam de uma reputao de excepcional habilidade tcnica e seus produtos eram exportados no s para outras regies sudanesas como para o prprio norte da frica. Um especialista em civilizaes sudanesas, Pathet Diagne, afirma: "As indstrias txteis e de couro dos hausas se contavam entre as mais florescentes do mundo". Mais: "Talvez em nenhuma parte da frica Ocidental a indstria e o comrcio tenham atingido to grande desenvolvimento como no pas hausa". Baumann assinala que enquanto em outras regies da frica Ocidental no se pode generalizar quanto ao grau de civilizao, pois nos mesmos lugares civilizaes superiores (neo- sudanesas ou palco mediterrneas) se sobrepem a formaes palco- sudanesas ou palco nigrticas, na Hausalndia se verificava uma impressionante unidade de civilizao superior. O que fez grandes contingentes destes povos hausas chegarem como escravos Bahia, foi uma revoluo social e poltica ocorrida na Hausalndia no alvorecer do sculo XIX. Os povos peuls ou fulani, pastores transumantes, oriundos do antigo Imprio de Gana, comearam a partir do sculo XIII a se infiltrar com seus rebanhos em direo ao sudoeste sudans (Futa-Toro, Alto Gmbia, confins do Futa-Djalon) e ao sudeste sudans (Macina), atingindo finalmente a Hausalndia. No incio do sculo XIX, os peuls deflagraram uma revoluo na Hausalndia. Usaman Dan Fodio, lder religioso, poltico e militar - um erudito que deixou uma centena de obras sobre os problemas religiosos, sociais e polticos de sua poca - pregou a guerra santa, o iliacl. Nos seus escritos, condenava com veemncia a misria popular, atribuindo-a aos abusos dos privilegiados. Indignava-se com a escravido dos muulmanos livres, "ilegtima, vivam eles em terras do Isl ou territrio inimigo". Incriminava esta situao de explorao e opresso como contrria aos preceitos cornicos. Desta forma, social no seu contedo, a revoluo peul assumiu uma forma religiosa. No aspecto estritamente confessional, no houve diferena importante entre o islamismo dos hausas e o dos peuls. Provi nham ambos de fontes berberes e, pois, em princpio, almoravides. Para concluir, a reforma islmica preconizada pelos peuls no era mais que a mscara ideolgica de uma reforma social e poltica. Em toda parte, as monarquias oligrquicas do sarki foram substitudas pelos sistemas centralizados e autocrticos dos emirados. Os generais do reformador conquistaram os reinos de Nupe, Illorin e Oyo, malogrando na tentativa contra o imprio de Kanem-Bornu. Os sucessores de Dan Fodio no se mantiveram por via de regra fiis aos propsitos originais do movimento. Entre outras coisas, dedicaram-se ao trfico para a costa atlntica, primeiro vendendo como escravos os hausas islamizados "herticos" das cidades, depois explorando como reserva de escravos toda a parte "pag" do seu imprio, no centro da atual Nigria. parte disso, os emires nem sempre se mostraram capazes de defender seus povos contra as expedies dos caadores de escravos. A acusao de "heresia" se converteu frequentemente em pretexto para a escravizao de populaes islamizadas. Assim chegaram os hausas como escravos Bahia. III - Quando isso ocorreu, no fim do sculo XVIII e princpio do sculo XIX, a cidade de Salvador era o maior centro urbano do Brasil e um dos maiores, se no o maior, de todo Novo Mundo. Segundo as melhores estimativas - na base de estatsticas escassas e precrias - sua populao andaria, includos os subrbios, pelos cento e quinze mil habitantes, quase metade do total da Bahia. Centro urbano de tal magnitude constituiria uma singularidade numa economia essencialmente agrria. Mas Salvador era a cidade mais antiga do Brasil, fra at metade do sculo a capital do vice-reinado e tinha uma importncia administrativa e comercial correspondente da produo que se escoava pelo seu porto. Outra singularidade de Salvador consistia na sua populao negra. Apenas 28% dos habitantes passavam por brancos, cerca de 20% constavam como "pardos" e nada menos que 52% eram negros. Salvador era uma cidade negra, e os negros, por sua vez, na sua grande maioria, escravos. o que em si constitua outra singularidade: a que atribuir a existncia de tantos escravos, j que o eixo econmico se situava no quadro rural? A funo da cidade como escoadora de uma imensa produo agrria implicava por isso mesmo uma multiplicidade de servios que apenas podiam ser executados por escravos, dada a lei de Gresham que fazia o trabalho escravo expulsar o trabalho livre. Nenhum homem livre admitiria degradar-se executando trabalho de escravos. Havia, por exemplo, enormssima porcentagem de escravos domsticos. Informa Vilhena sobre "muitas famlias que das partes para dentro tm sessenta, setenta e mais peas desnecessrias". Todavia, explorava-se porcentagem muito maior de escravos urbanos no "ganho" - os escravos-de- ganho. Esta modalidade de explorao do escravo existiu em todas as sociedades escravistas. Conheceram-na Grcia e Roma; existiu em todos os centros urbanos do escravismo do Novo Mundo. Mas talvez em parte alguma a explorao do escravo-de-ganho tenha atingido propores comparveis s da Bahia. A modalidade principal consistia em atribuir-lhes uma ocupao, mediante a obrigao de pagar, diria ou semanalmente, determinada quantia em dinheiro. Mandavam-se escravos ao "ganho" como carregadores, alfaiates, sapateiros, padeiros, ferreiros, carregadores-de-cadeirinhas, vendedores de iguarias. Vilhena fala sobre os vendedores de iguarias: "Das casas mais opulentas desta cidade, onde andam os contratos e as negociaes de maior porte, saem oito, dez ou mais negros a vender pelas ruas a prego, as coisas mais insignificantes e vis, como sejam iguarias de diversas qualidades". Exigia-se dos escravos cegos e aleijados que mendigassem porta das igrejas, com a obrigao de cada semana pagar ao senhor "quatrocentos e tantos ris, pena de spero castigo". Havia explorao de escravas como prostitutas, "mulheres de tarifa", no dizer de Vilhena.' Senhoras das mais ilustres famlias de Salvador vestiam e embelezavam suas escravas mais jovens e belas para a prostituio. De resto, tratava- se de velha prtica que vinha do incio do sculo XVIII e chegara a ser legitimada pelo senado da cmara de Salvador mediante a cobrana de uma finta. Casas opulentas usavam escravos para venda de artigos de contrabando. Alugavam-se escravos para todo tipo de trabalho, os interessados inserindo anncios nos jornais. Os escravos-de-ganho no geral se vestiam e alimentavam prpria custa. No viviam em senzalas nas casas dos senhores, mas em casas ou casebres espalhados pela cidade. Contanto que pagassem a quantia estipulada, podiam viver onde e como bem entendessem. Sistema que desagradava o Conde da Ponte, pois os escravos "viviam sem sujeio alguma". Graas s sobras do "ganho", muitos reuniam rapidamente o dinheiro necessrio aquisio da alforria. Havia por isso em Salvador mais libertos que em qualquer outra cidade do Brasil; no seria exagerado estimar em 20% o nmero de negros libertos. Sonho de todo escravo-de- ganho, a alforria nem por isso proporcionava uma melhoria muito importante. Tanto na escala social como na condio econmica, quase se confundiam com os escravos. Praticando um micro-comrcio ou exercendo os mesmos ofcios dos escravos-de-ganho, mal conseguiam s vezes o necessrio para viver. Sofriam igual desprezo e no tinham a menor possibilidade de ascenso social. Mas ainda, dado que num sistema escravista o trabalho assalariado se mostrava por definio quase impossvel, os libertos que precisavam de um auxiliar no tinham outra alternativa seno comprar escravos; e havia libertos que possuam muitos escravos. IV - Mal chegados Bahia, os usss - designao que se deu aos negros hausas -, trataram de tirar proveito das condies de relativa liberdade, para converterem outros negros e organizarem insurreies. Empresa repleta de dificuldades. Os escravos crioulos nunca tomaram parte nas insurreies: haviam aceitado sua situao e viam os escravos nascidos na frica como estrangeiros; ademais, na sua grande maioria, professavam a religio catlica. Entre os africanos, lavravam dios profundos. No podiam esquecer que haviam sido reduzidos escravido pelos seus atuais companheiros de infortnio; no mnimo, continuava viva a memria de antigas e sangrentas guerras. Associadas como estavam sua condio atual, as religies os separavam ainda mais. Basil Davidson mostrou o papel desempenhado pelas religies africanas na escravizao de uns povos pelos outros. A idia de pertencer nica religio verdadeira inspirou a convico de que os no-pertencentes - isto , seus vizinhos territoriais - deviam ser justamente escravizados: "Cada guerra se converteu numa guerra religiosa, na qual o homem lutava no apenas pelo lucro ou para defender, mas tambm por uma idia especial e exclusiva de verdade e sobrevivncia alm-tmulo. Estas guerras de agresso e escravizao eram, num sentido amplo, similares s guerras de religio entre cristos e muulmanos, ou protestantes e catlicos. Converteram-se numa maneira, no apenas justificada e lcita, mas mesmo necessria, de tratar os no-crentes com o mesmo tipo de fria e ativa perseguio com que os europeus, por sua parte, haviam tratado os herticos e pagos. S havia salvao dentro do seu prprio grupo; o resto da humanidade, no importa qual a cor da sua pele, estava fora do nmero dos eleitos". Os governantes coloniais tinham plena conscincia do papel divisionista das religies africanas. Quando certa vez os senhores da Bahia se queixaram coroa pelo fato do governador Conde dos Arcos permitir aos negros a prtica dos seus cultos, ele assim se justificou perante os superiores: "O governo ... olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensvel e maquinalmente, de oito em oito dias, a renovar as idias de averso recproca que lhes eram naturais e que todavia se vo apagando pouco a pouco com a desgraa comum; idias que podem considerar-se como o garante mais poderoso das cidades do Brasil, pois que se uma vez as diferentes naes da frica se esquecerem totalmente da raiva com que a natureza os desuniu e ento os agoms vierem a ser irmos com os nags, os geges com os ausss, os tapas com os sentis, e assim os demais, grandssimo e inevitvel perigo ento assombrar e desolar o Brasil. E quem haver que duvide que a desgraa tem o poder de fraternizar os desgraados? Ora, pois, proibir o nico ato de desunio entre os negros vem a ser o mesmo que promover o governo indiretamente a unio entre eles, de que no posso seno ver terrveis consequncias". Apesar de tudo, os usss converteram ao islamismo um nmero bastante expressivo de negros. Mas os no-conversos, movidos pelo dio religioso, quase sempre delataram as conspiraes e insurreies. Isso se verificou j por ocasio da primeira tentativa, no ano de 1807. O liberto Antnio e o escravo Baltazar sobressaem como lderes desta tentativa. O primeiro vivia de pequeno comrcio entre Salvador e Santo Amaro, gozando de grande prestgio entre os negros; com o ttulo de "embaixador", era o coordenador geral do movimento. O escravo Baltazar, com o ttulo de "capito", servia de elemento de ligao entre Antnio e os demais conspiradores. O escravo Incio, oficial de ferreiro, manufaturava as flechas e as facas a serem usadas. No casebre de Antnio se encontraram armazenadas 400 flechas, molhos de varas para arcos, meados de cordel, espingardas, pistolas e um tambor. Escravos do Recncavo participavam da conspirao. O plano consistia em se apoderarem da Casa da Plvora e das Armas para se proverem de mais material blico. Simultaneamente, outros incendiariam a alfndega e a capela de Nazar, visando com isso a distrair a tropa e o povo. Nessa altura, chegariam os rebeldes do Recncavo. Haveria uma matana dos senhores e, uma vez vitoriosos, constituiriam um governo, elegeriam um rei e se apossariam das embarcaes existentes no porto para retornar frica. Marcou-se a insurreio para 27 de maio, dia da procisso de Corpus-Cristi. No dia 21, porm, um escravo delatou o movimento. No dia 27, como se nada houvesse, o governador Conde da Ponte participou calmamente da procisso. Findo o ato religioso, agiu rapidamente, expedindo ordens de prprio punho aos chefes dos corpos de infantaria e artilharia para que ficassem de prontido e preparassem patrulhas. s 6 horas da tarde, silenciosamente - "sem toque de tambor, sem que na cidade soasse o menor rudo" - as patrulhas bloquearam as entradas e sadas da cidade. Os capites-de-mato saram pelos caminhos, prendendo todos escravos que encontravam. Um contingente cercou e invadiu a casa de Antnio, prendendo-o com outros treze negros. Em diferentes pontos da cidade, as patrulhas prenderam os demais cabeas, o mesmo fazendo os capites-do-mato no Recncavo. A 28 de maro de 1808, Antnio e Baltazar foram enforcados, ao passo que os demais sofriam penas de aoites em praa pblica. V - o fracasso no desanimou os usss. Pelo menos desde meados de 1808, pode-se perceb-los a organizarem nova insurreio, da qual participavam libertos e escravos de outras naes, principalmente nags e geges. o levante ocorreria, mais uma vez, simultaneamente em Salvador e no Recncavo. A ttica, porm, seria diferente. Os rebeldes de Salvador fugiriam para o Recncavo, concentrando-se em determinado ponto; os rebeldes do Recncavo convergiriam para esse mesmo ponto. Pretendiam oferecer combate tropa fora da cidade, para depois a ocuparem. Na madrugada do dia 26 de dezembro, escravos do Recncavo tomaram a iniciativa, incendiando canaviais, depredando propriedades e matando os que tentavam barrar-lhes o passo. Marcharam em direo ao riacho da prata, num ponto distante nove lguas de Salvador, a espera dos outros insurgentes. Estes somente passaram ao nove dias depois, a 4 de janeiro de 1809. Em nmero superior a quatrocentos, fugiram da cidade e tomaram a estrada das Boiadas, em direo ao riacho da Prata, devastan do, incendiando e matando. Reunidos todos no ponto combinado, prepararam-se para o ataque. Inteirado destas ocorrncias, o Conde da Ponte expediu incontinenti tropas no encalo dos fugitivos, dando ordens para "matar todos os que resistissem". Ordenou, ainda, vigilncia nas sadas das estradas que iam ter ao Recncavo, afim de impedir que a notcia chegasse aos engenhos. Na manh do dia 6, a tropa cercou os insurretos, impondo-lhes rpida e completa derrota. Ignora-se o nmero de mortos e feridos; noventa e cinco negros - oitenta e trs homens e doze mulheres - foram feitos prisioneiros; os demais conseguiram escapar. No h notcia das penas aplicadas aos cabeas. Os prisioneiros por muito tempo trabalharam acorrentados no desentulho da praa de So Bento. Os sistemas opressivos vivem submetidos a uma dialtica infernal. Se endurecem a represso, apenas exacerbam o esprito de revolta, que cedo ou tarde acaba explodindo, e se a mitigam, no fazem seno criar oportunidade a uma igual exploso, em prazo talvez ainda mais breve. Ao assumir o governo da Bahia em setembro de 1810, o Conde dos Arcos se viu metido neste dilema. Concluiu, afinal, que uma poltica mais tolerante contribuiria para evitar a repetio das insurreies. Mas os amedrontados senhores-de-escravos se apressaram a protestar. Passando por cima do governador, encaminharam, diretamente ao Regente, memorial em que enumeravam os perigos de uma tal poltica. Sublinhavam que a considervel superioridade numrica dos escravos expunha a populao a graves riscos. Condenavam a liberdade dada aos escravos para realizarem seus batuques, suas festas e suas danas, j que isso facilitava sua arregimentao. Por mais rigor que empregassem, havia crescente dificuldade em "manter a ordem e a disciplina". Falavam de mulheres brancas atacadas por escravos. Citavam uma ocorrncia que reputavam alarmante: Certo escravo acusado de furto na alfndega fora preso e conduzido por dois meirinhos para a cadeia situada nos subterrneos do palcio do governo. Quando os meirinhos subiam as escadinhas do palcio, um grupo de escravos atacara os funcionrios da justia e libertara o preso. O outro caso, era o de dois escravos do cnsul ingls que se haviam dirigido a um depsito de negros recm-chegados da frica e destinados ao Maranho, e, a haviam concitado os companheiros a se revoltarem e no embarcarem. Os signatrios do memorial se declaravam "amedrontados com a situao". Pediam maior rigor repressivo e, afim de contrabalanar a superioridade numrica dos negros, a imigrao de brancos de Portugal e das ilhas. O Conde dos Arcos cedeu em parte a esta presso. Interditou os batuques, mas sem deixar de recomendar que se executasse a medida com moderao. VI - Os receios dos senhores-de-escravos se viram no ano de 1814 confirmados pela ecloso de uma das mais violentas insurreies dos negros muulmanos. Essa insurreio tem sido geralmente descrita como uma exploso espontnea e desesperada de escravos flagelados pela fome. Documento existente na Biblioteca Nacional demonstra que, na realidade, foi pa ciente e meticulosamente organizada. O acrdo proferido na devassa concluiu que "no fora obra de um momento ou comoo por objeto imediato e irreflexo, mas pelo contrrio obra de combinao de idias e disposies antecedentes". O plano consistia em sublevar os escravos das armaes, estender o movimento ao Recncavo e depois, todos reunidos, atacarem a cidade de Salvador, ou, nas palavras do acrdo, havia a "idia concebida de entranharem-se no Recncavo, para revolucionar outros e aumentar nmero com que pudessem descarregar o ltimo golpe na cidade". A base da insurreio seriam as "armaes", estabelecimentos de pesca e beneficiamento da Bahia nesse tempo existentes junto ao mar, nas proximidades de Salvador. Introduzida pela coroa no incio do sculo XVIII como atividade livre, a pesca da Baleia fora posteriormente privilegiada, ficando a coroa proprietria das armaes. Em 1798, a coroa abolira o privilgio, arrendando as armaes a particulares. A explorao da Baleia tivera seus dias de grandeza na metade do sculo XVIII. No princpio do sculo XIX, malgrado estivessem em franca decadncia, ainda revestia certa importncia econmica. Uma armao compreendia escravos, embarcaes, armazns e utenslios. Era bastante considervel o nmero de escravos que trabalhavam numa armao - entre trezentos e seiscentos. As mais importantes se achavam situadas em Rio Vermelho, Itapo, ltaparica, Ponta d'Areia, Amoreiras e Gameleira. Uns escravos faziam a pesca, preando os baleotes a arpo e depois a lanaos; outros frigiam a carne para a extrao do azeite. Seca ou em salmoura, a carne era colocada em barris para servir de vitualha aos navios negreiros que demandavam a Costa da Mina ou Angola. o azeite era usado na iluminao. Exalava-se destes lugares horrvel fedentina de putrefao. As condies de vida dos escravos eram excepcionalmente cruis. Entre as armaes mais importantes, estavam as de Manuel Incio da Cunha Menezes, futuro visconde do Rio Vermelho, Joo Vaz de Carvalho e Loureno da Costa Lima. Nesse tempo, predominavam os usss entre os escravos das armaes, embora houvesse tambm bom nmero de negros de nao nag, tapa e outras. A insurreio foi organizada por um grupo do centro de Salvador, no qual se constata a participao de elementos muulmanos. o grupo dirigente enviou elementos para as armaes, onde se infiltraram e arregimentaram adeptos. o coordenador geral era um certo Francisco Cidade, escravo de Euzbio Nunes. Francisco dissimulava sua atividade conspirativa como "presidente das danas da sua nao, protetor e agente delas". A pretexto de custear os batuques, coletava dinheiro entre os escravos. Consta que era um negro dotado de grande simpatia e vivacidade, gozando de prestgio entre os demais, que o tratavam como a um superior. Ele e sua companheira Francisca percorriam as armaes e povoaes do Recncavo para confabular com os cabeas de cada um desses lugares, sempre a pretexto das "danas". Em "papis" escritos em rabe apreendidos pelas autoridades, Francisco e sua companheira so indicados como "rei" e "rainha". Francisco se deslocava constantemente entre o centro da cidade e as armaes, a fim de receber instrues e transmiti-las aos companheiros. A justia concluiu que "fora ele quem combinara, seduzira e persuadira a rebelio". Em cada armao ou povoao, havia um grupo de dirigentes. Nas matas do Sangradouro, os conspiradores organizaram um pequeno quilombo, no qual se foram concentrando negros fugidos de Salvador. Para esse local, enviavam tambm armas, como machados, facas, lanas, arcos e flechas, no havendo referncia a armas de fogo. Na casa de Francisca tambm foram sendo reunidas armas. A deflagrao do movimento foi marcada para as 4 horas da madrugada do dia 28 de fevereiro. Na vspera, muitos escravos se deslocaram do centro de Salvador para o Sangradouro. hora marcada, puseram-se em movimento e se dirigiram pela estrada das Brotas para a armao de Manuel Incio, onde os aguardavam os demais conjurados. A senha era "mansoca", o que significava "ns j chegamos". Estabelecido o contato, os escravos da armao se levantaram como um s homem. Incendiaram e depredaram tudo. Para que as casas ardessem mais facilmente, untaram-nas com azeite. Queimaram tudo que servia para o funcionamento da armao - cordoaria, marrames e linhas. O feitor, sua mulher e filhos, foram trucidados. Apossaram-se dos cavalos existentes, que foram montados pelos cabeas. Feito isso, rumaram para a armao de Francisco Loureno da Costa Lima. Os revoltosos eram a essa altura em nmero superior a duzentos e sua frente marchavam, a cavalo e armados de machados, os negros Caio, escravo de Pedro Antnio Torres, Sebastio e Vitorino, os dois primeiros usss e o ltimo nag. Caio, que o acrdo aponta como "um dos chefes deste malvado projeto", trs semanas antes fugira do seu senhor e se aquilombara no Sangradouro. Pessoalmente, incendiara quatro casas na armao de Manuel Incio. Sebastio fora visto montado a cavalo com uma tocha na mo, pondo fogo em outras casas da armao. Vitorino, que trazia uma grilheta na perna, subira ao telhado da casa principal para lanar fogo. Na armao de Francisco Loureno, os insurretos eram esperados pelos escravos, onde se repetiram as mortes e os incndios. Seguiram para a povoao de Itapo, onde ficava a armao de Joo Vaz de Carvalho. Na marcha, gritavam: Morram os brancos e os mulatos e Viva a liberdade. Aqui tambm mataram e incendiaram, dirigindo-se a seguir em direo ao rio Joanes, intentando alcanar o Recncavo. Nesse entrementes, a notcia do levante chegara a Salvador. Imediatamente, o governador enviou ao encontro dos rebeldes um destacamento de trinta homens de cavalaria e alguns soldados de infantaria, comandados pelo seu ajudante de ordens coronel Jos Toms Bocaciari. Com igual rapidez, a notcia chegou aos distritos circunvizinhos. o sargento-mor de milcias da Torre, Manuel da Rocha Lima, mobilizou sua fora e todos os moradores, marchando ao encontro dos insurretos, a fim de impedir que seguissem para o Recncavo. o encontro se deu em Santo Amaro de Ipitanga, ao longo do caminho que seguia o rio Joanes. Manuel da Rocha Lima intimou os revoltosos a se renderem, mas um dos chefes, que montava a cavalo, adian tou-se e respondeu: "Morrer sim entregar no". Em seguida, disparou sobre a tropa uma arma de fogo. Os escravos no esperaram a reao, tomando logo a iniciativa. No tinham mais que trs ou quatro armas de fogo, desvantagem que naturalmente lhes foi fatal. Ainda assim, o combate se prolongou por algumas horas. Os negros no recuavam, s cedendo quando as balas os prostravam. Pelas 2 horas da tarde, estavam completamente derrotados e a revolta fora sufocada. o acrdo proferido na devassa declarou que era impossvel calcular o nmero de mortes. Caldas Britto, que parece haver examinado detidamente os autos, diz que os insurretos tiveram cinquenta mortos, alm de maior nmero de feridos e prisioneiros. Os demais se dispersaram. Muitos jogaram-se ao rio, morrendo grande nmero afogados; outros se enforcaram em rvores. Desde o Sangradouro at Santo Amaro de Pitanga, haviam percorrido quatro lguas. Haviam dado morte a quatorze pessoas brancas e ferido um nmero ainda maior. Haviam incendiado um total de oitenta casas, afora as outras instalaes das armaes. Os prejuzos apenas de Joo Vaz de Carvalho foram calculados em sessenta mil cruzados. Os prejuzos totais montaram a mais de noventa mil cruzados. Os prisioneiros foram algemados e conduzidos para a cidade. No dia seguinte, pela manh, seguiu para o local o ouvidor do crime a fim de proceder devassa. Embora reconhecendo que ao major Lima se devia a "salvao pblica", o governador criticou-o por haver agido "precipitadamente" e usado armas de fogo contra "uns miserveis". A sentena foi proferida a 17 de novembro do mesmo ano. Seis negros foram condenados morte. Seriam conduzidos pelas ruas pblicas de Salvador at praa da Piedade onde, depois de enforcados, teriam suas cabeas cortadas, as quais seriam levadas aos lugares dos delitos e a colocadas em postes altos, expostas at que o tempo as consumisse. A pena de condenao morte recaiu sobre os seguintes negros: Caio, por haver sido "visto montado a cavalo comandando uma diviso dos revoltosos em todos os pontos"; Antnio Vasco, que fora visto queimando casas na armao de Manuel Incio e preso no combate do rio Joanes; Vitorino, visto pondo fogo na casa principal da armao de Manuel Incio e, depois, frente dos revoltosos, montado a cavalo e armado de machado; Sebastio, visto pondo fogo, a cavalo, com uma tocha na mo; Joo Alaso, ou Alomi, "comissrio" dos negros reunidos no Sangradouro, escravo de Jos Agostinho de Sales, foragido no Maranho e que seria considerado banido, caso no o encontrasse a justia; e Francisco Cidade. Este teve sua pena comutada para a de ser conduzido pelas ruas pblicas com barao e prego, dar trs voltas ao redor da forca, sofrer duzentos aoites e degredo perptuo para o presdio de Benguela. Foram condenados mesma pena de Cidade, com a diferena de que o degredo seria para as gals de Moambique, os seguintes negros: Domingos, escravo de Joo Manuel Vieira da Fonseca, preso de armas na mo no combate do rio Joanes; Manuel, escravo de Jos Manuel de Melo Verssimo, cuja participao no indicada; Saul, como um dos mais ativos organizadores do movimento; Benedito, como "scio em todos os delitos at o combate de Joanes", Incio, escravo de Joo Vaz, por participao comprovada nos incndios; Bernardo, escravo do capito Lus Portugal e Benedito, escravo de Manuel Jos de Arajo Borges, por fazerem parte do contingente que sara do Sangradouro. Aplicou-se a pena de barao e prego pelas ruas pblicas, trs voltas na forca, quatrocentos aoites cada um no pelourinho e degredo perptuo para as gals de Angola, por comprovada participao na revolta, aos seguintes negros: Fernando, escravo de Manuel Jos de Melo; Duarte, Leandro e Abrao, escravos de Manuel Incio; Francisco, escravo do cirurgio-mor Pessoa; Joaquim, escravo de Manuel Antnio e Benedito, escravo de Joaquim de Magalhes. O negro Anto, escravo de Manuel Incio da Cunha, foi condenado a assistir aos enforcamentos com barao e sofrer quinhentos aoites. Foram condenados a sofrer quatrocentos aoites cada um, depois vendidos a favor do fisco e exportados para fora da capitania, os seguintes negros: Jos, Joaquim, Ventura e Afonso, escravos de Jos Vaz da Rocha; Lus e Roberto, escravos de Joo Antunes Guimares; Anselmo, escravo do cirurgio-mor Barata; Caetano e Ventura, escravos de Germano Mendes Barreto. Os negros Marcolino e Davi, escravos respectivamente de Francisco Vieira e Joo Dias, foram condenados a sofrer duzentos aoites cada um e ser vendidos para fora da capitania. As negras Ludovina, escrava da liberta Leonor; Felicidade, escrava de uma mulher do terreiro de Salvador, e Teresa, escrava de um soldado de Gravatal, foram condenadas a cem aoites cada uma na cadeia e degredo perptuo para Angola. Germana, escrava de Ana de tal, foi condenada a cinquenta aoites. Treze negros, entre escravos e libertos, foram absolvidos. Mais de vinte morreram na priso, enquanto aguardavam o julgamento. A insurreio produziu grande comoo em Salvador e repercutiu intensamente na corte. O governo central oficiou ao conde dos Arcos recomendando-lhe "uma poltica mais severa a respeito dos escravos da cidade da Bahia; medidas sempre necessrias com essa classe de gente, mas particularmente em que, mais de uma vez, os negros mostraram sua tendncia aos levantamentos e tumultos, e tentado sacudir o jugo da escravido, o que poderia provocar resultados muito perniciosos". O ofcio transmitia a determinao do regente no sentido de se proibirem os batuques, tanto de dia como noite. Era certo que se permitiam tais reunies no Rio, mas havia uma grande diferena entre os negros de Angola e Benguela do Rio e os da cidade de Salvador, "muito mais resolutos, intrpidos e capazes de qualquer empresa, particularmente os da nao hausa". Em virtude deste ofcio, proibiu-se novamente o andarem os escravos noite nas ruas sem ordem escrita dos seus senhores ou a companhia destes, sob pena de cento e cinquenta aoites. Instrues positivas foram expedidas aos capites-mores, a fim de extinguirem os quilombos de seus distritos. A todos os comandantes de corpos e fortalezas mandou-se que aplicassem as medidas repressivas do conde da Ponte. Quanto aos batuques, o Conde dos Arcos, sempre favorvel aos mesmos, por entend-los, como se recorda, um fator de discrdia entre os escravos, tratou de abrandar a proibio. Alegou que "certos proprietrios de escravos reconhecem a necessidade e vantagem que h de diminuir o horror do cativeiro, permitindo aos seus escravos se divertirem para esquecer durante algumas horas a sua triste condio". Alm disso, "em toda cidade policiada do mundo os divertimentos pblicos so autorizados, mesmo s pessoas das classes baixas". Decidiu, finalmente, que as reunies de escravos no seriam proibidas em dois lugares da cidade, a Graa e o Barbalho, onde poderiam danar at hora da Ave Maria, quando deveriam se retirar para a casa de seus amos. Esta tolerncia suscitou imediato e veemente protesto dos senhores-de- escravos de Salvador. Diziam-se receosos de sofrer a mesma sorte dos colonos do Haiti, tanto mais que os negros comentavam o que se passara na antiga colnia francesa. Mais ainda que na capital, crescia no Recncavo o receio de um levante geral dos usss e demais escravos africanos. O juiz de fora e o senado de cmara de Cachoeira oficiaram a 16 de maro ao governador, requisitando socorros de armas, munies e at peas de campanha, para a guarnio dos regimentos auxiliares de infantaria e cavalaria, a fim de poderem garantir os habitantes contra um ataque inesperado dos usss, muito numerosos na vila e engenhos do distrito. No cedeu o governador a este pedido, alegando que o medo dos senhores se devia exatamente crueldade com que tratavam os seus escravos: "Ainda no tenho informaes midas e exatas, porque a gente da Bahia, clebre pelo temor que tem dos negros, a quem maltrata cruelmente, est de tal sorte espaventada com este sucesso e com outros muitos, que sua imaginao lhe representa prximos e iminentes, que no prudente acreditar nada do que por ora dizem". A despeito da sangrenta derrota de fevereiro, os usss no haviam desanimado, iniciando quase imediatamente a organizao de novo levante, que abrangeria escravos e libertos da capital e do Recncavo. Os escravos-de-ganho das docas de Cachoeira, Dourado e Corpo Santo estavam frente do movimento. Os conjurados se reuniam numa capoeira situada nos fundos das roas do lado direito da capela de Nossa Senhora de Nazar, numa roa na estrada de Matat fronteira Boa Vista e nos matos do Sangradouro. Escolheram para o levante a noite de 23 de junho, vspera de So Joo, a fim de tirar partido da barulheira que se produzia nesses festejos. Saindo dos lugares de reunio, pretendiam massacrar a guarda da Casa da Plvora do Matat, apoderando-se da plvora necessria e molhando o resto. Essa operao seria em parte diversionista, pois, quando as tropas sassem de Salvador para reprimilos, os demais se levantariam no centro da cidade, atacando os brancos. Consta que surgiu entre os escravos um desentendimento quanto data mais conveniente para o levante, querendo uns o adiamento para 10 de julho. Mantida a data primitiva, um escravo de nome Joo, pertencente a Manuel Jos Teixeira, partidrio do adiamento, delatou os companheiros. A delao chegou ao governo em fins de maio, atravs de um advogado de sobrenome Lasso. Inteirados da delao, os chefes trataram de ocultar tudo que pudesse denunci-los. Quando, pois, as autoridades de Salvador deram uma batida, por ordem do conde dos Arcos, nada acharam. o que fez o conde suspeitar que a denncia no passara de trama dos desafetos interessados em desacreditar seu governo. Em todo caso, como medida preventiva, fez publicar, ao som de tambores, pelas ruas centrais da cidade, uma portaria proibindo o divertimento de fogos de So Joo, principalmente buscap, rouqueiras e foguetes, debaixo de penalidades aplicveis independentemente da categoria social dos infratores. Os senhores andavam aterrorizados. Enxergavam em toda parte conspiraes escravas; estavam quase beira da histeria. Isso ficou evidente numa assemblia que realizaram na vila de So Francisco, presidida pelo inspetor da tropa, marechal Felisberto Caldeira Brandt Pontes, futuro marqus de Barbacena. Era ele um dos mais ricos proprietrios do Recncavo, onde tinham engenhos e numerosa escravatura. Descontente com a poltica do governador sobre os escravos, movia-lhe encarniada campanha, dirigindo sucessivas representaes corte do Rio. Compareceram assemblia quase todos os oficiais superiores dos regimentos milicianos do Recncavo, proprietrios de Santo Amaro, Iguape, Piraj, Maragogipe, Campos da Cachoeira, Jaguaripe e Nazar. As propostas apresentadas revelaram o estado de pnico dos senhores. Chegou-se a propor, com gerais e calorosos aplausos, a mudana do governador. Tambm se props que cada engenho conservasse um ou mais soldados, que os senhores pudessem prender e deportar todo negro suspeito, e que pudessem enforcar sumariamente o escravo sublevado. A assemblia dirigiu ao governador uma representao subscrita por trinta e quatro proprietrios dos mais ricos do Recncavo. Exigia medidas radicais para extirpar os quilombos e refrear as insurreies. Pleiteava que nenhum negro pudesse permanecer sentado diante de um branco e que o escravo encontrado sem passaporte fosse preso e imediatamente entregue ao senhor. Em presena da famlia, receberia cento e cinquenta aoites. Caso o senhor no procedesse assim, o comandante do distrito daria parte ao governador. No confiando que o governador adotasse as medidas propostas, enviaram um emissrio corte para que as advogasse perante o regente. Felisberto Caldeira, dando parte das deliberaes da assemblia ao marqus de Aguiar, acusava sem rebuos o governador de parcialidade a favor dos escravos. Dizia: "Las Casas solicitando aos ps do trono da Espanha a piedade real a favor dos ndios, Wilberforce e outros advogando no parlamento ingls a extino da escravatura, sem dvida so benfeitores da humanidade e dignos de louvor eterno, mas aquela mesma linguagem na boca de um vice- rei do Mxico, ou governador da Jamaica, provocaria um assassnio de todos os espanhis e ingleses, e causaria a execrao do universo. Tal , nem mais nem menos, a nossa situao. Aqui so os negros os diletos filhos do representante do soberano. No pois de admirar o atrevimento dos pretos, nem o susto e confuso dos brancos". O conde dos Arcos acedeu apenas s medidas que julgava mais convenientes e compreendidas na sua alada. Isso descontentou os senhores-de-escravos do Recncavo e particularmente a Felisberto Caldeira, que desencadeou contra o governador nova e virulenta campanha. Escrevendo ao marqus de Aguiar, usava contra o governador as mais violentas expresses. Pouco depois, partia para a corte, onde conseguiu a aprovao de todas as medidas da representao. Ao regressar Bahia, recebeu do governador ordem de priso, logo relaxada. Os dois adversrios somente vieram a se reconciliar para juntos reprimirem o movimento pernambucano de 1817. A cruel represso desencadeada contra os escravos produziu resultado. No se registrou, em Salvador ou no Recncavo, por espao de alguns anos, nenhum movimento coletivo digno de meno, apenas os costumeiros motins seguidos de fugas para os quilombos. VII - Os hausas haviam comeado a chegar Bahia nos fins do sculo XVIII e j no incio do sculo XIX se estancava seu afluxo. Assumiu desde ento importncia crescente a importao dos negros iorubs ou nags. Estes iorubs se propagaram por muitas comarcas da Guin, porm tiveram um habitat prprio, a Iorubalndia, espao geogrfico situado na Guin oriental, entre a fronteira do Daom e as embocaduras do Niger. o termo iorub abrangia grande nmero de fraes e divises, destacando-se os oyos, egbas, eifs. A lngua falada filia-se ao grupo kwas, principal das lnguas nigrticas da frica Ocidental (D. Westermann). A origem dos iorubs configura ainda uma incgnita histrica. Tradies fazem-nos de origem rabe, o que a maioria dos estudiosos considera implausvel. Admite-se que proviessem do Sudo Ocidental, onde, como outros povos, teriam sofrido a influncia niltica. As primeiras notcias histricas datam do sculo XIII, com os iorubs j solidamente estabelecidos no If; mudaram depois sua capital para Oyo, no nordeste. o Estado assumia a forma de Cidades-Estados, similares s da Hausalndia, que talvez tenha nesse sentido exercido influncia. Apesar do predomnio da agricultura, isso conferiu um carter acentuadamente urbano sociedade iorubana. No incio do sculo XVII, os iorubs iniciaram um processo de expanso com Oyo como ncleo; a expanso teve como causa o comrcio de escravos. De incio, a expanso assumiu a forma de um movimento de unificao nacional, que veio a constituir o Imprio Oyo. Depois, Oyo estendeu seu domnio a outros povos. Pelos meados do sculo XVII, j implantara sua hegemonia sobre toda a Iorubalndia at o sul de Ibadan, controlando os centros de comrcio escravo. Obtinham esses escravos em incessantes campanhas blicas que levaram imposio de tributo (escravos) a Borgu (Daom), Nupe (Nigria), Abom e outros. Pelo comeo do sculo XVIII, o Imprio Oyo abarcava toda a rea entre o rio Volta, a oeste, e o Niger, a leste. Na segunda metade do sculo XVIII, os tributrios daomeanos assumiram gradativamente o controle do comrcio atlntico da Costa dos Escravos. No incio do sculo XIX, o poder de Oyo estava reduzido a uma sombra. Desse modo, os iorubanos que tanto haviam mercadejado escravos, foram sua vez tambm caados e vendidos como escravos. As informaes so no sentido de que j na segunda dcada do sculo passado os nags preponderavam absolutamente na Bahia sobre os escravos de outras origens. Francis de Castelnau, ento cnsul da Frana em Salvador, afirmava que nove dcimos dos escravos da cidade eram nags. o que ocorria, na verdade, era que o nag se convertera mais ou menos em lngua geral dos negros baianos. J na Costa dos Escravos, fazia este papel de lngua geral e da que no fossem propriamente iorubs todos os negros que Bahia chegavam falando aquela lngua. Uma negra acusada de participao na insurreio de 1835, declarou ao ser interrogada que j na frica falava lngua nag, mas que "l cada um tem a sua terra", Depois, a lngua se imps aos demais negros, novos e crioulos. A isso atribua Varnhagen o fato de que "nesta cidade tantos escravos aprendiam menos o portugus, entendendo-se uns com os outros em nag". o caso dos nags se soma a muitos outros para ilustrar a impossibilidade de se entender a frica Negra luz de critrios lingusticos, antropolgicos ou etnogrficos. Todos eles brigam entre si. as fronteiras demarcadas pelo antroplogo no correspondem precisamente s que descobre o linguista e nem uma outra se sobrepem s divises etnogrficas. Na frica, os iorubs pouco haviam sofrido a influncia islmica. Na Bahia que muitos se converteram ao islamismo, como resultado do trabalho proselitista dos hausas. Tornar-se-o os principais protagonistas das insurreies de negros muulmanos. VIII - Um incidente ocorrido no dia 17 de dezembro de 1826 conduziu as autoridades descoberta e ao desbaratamento de um amplo movimento insurrecional que nags muulmanos vinham organizando em Salvador e no Recncavo. Nesse dia, alguns capites-do-mato atacaram um quilombo localizado nas matas do Urubu, no intuito de prender negros recentemente fugidos. Fazia dias que escravos do Recncavo fugiam dos engenhos, concentrando-se em quilombos situados nas proximidades de Salvador. Na noite de Natal os nags se levantariam em Salvador e os quilombolas marchariam para se lhes reunir. Os quilombolas opuseram sria resistncia aos capites-do-mato, matando trs e ferindo gravemente um quarto. A seguir, tomaram o caminho do Cabula, atacando brancos e mulatos; deixaram em estado grave uma mulatinha, um capito-do-mato e outras pessoas. Retornaram depois ao quilombo a fim de se fazerem fortes, na expectativa de um ataque. Uma tropa de doze soldados, que tarde sara de Salvador, atacou o quilombo, sendo repelida. Pouco depois, reuniu-se a esta tropa um contingente de vinte soldados do regimento de Piraj, sob o comando de um sargento. Puseram cerco ao quilombo e intimaram os negros a se renderem. Invs disso os negros, em nmero de mais ou menos cinquenta, lanaram-se contra a tropa, armados de foices, faces, lazarinas, lanas. Gritavam: Mata! Mata! Quando a tropa abriu fogo, os negros recuaram e se entrincheiraram atrs de um carro de bois. A tropa levou a melhor, dispersando os negros, que deixaram mortos, feridos e prisioneiros. Entre os prisioneiros, figurava uma negra de nome Zeferina, que armada de arco e flecha lutou bravamente antes de ser submetida priso. As autoridades se inteiraram assim da insurreio que se preparava, desencadeando ampla operao preventiva de que resultou a priso de centenas de escravos e libertos. Os casebres da cidade e seus arredores foram sistematicamente vasculhados. Entre os negros presos, cabe mencionar um soldado, Cristvo Vieira, e um escravo do dr. Sabino Vieira, futuro lder da Sabinada. A devassa nada apurou, pois os, presos se recusavam obstinadamente a falar; mas ficou pelo menos a concluso de que se tratava de negros muulmanos. No se acreditou que a planejada insurreio houvesse sido realmente desarticulada. Nos meses que se seguiram, a cidade viveu sobressaltada, na expectativa de uma insurreio. Esta ocorreu no dia 11 de maro de 1828, quando grande nmero de negros fugiu para as matas, de onde saiu no dia seguinte para atacar as armaes, saqueando e incendiando as casas. Esperavam ganhar a adeso dos escravos das armaes de Manuel Incio e Loureno Francisco, mas, exceo de uns vinte negros novos, os demais no quiseram se incorporar ao movimento. Nisto os insurretos se inteiraram de que uma tropa sara de Salvador para atac-los. Tomaram pelo rio das Pedras, rumo ao lugar Engomadeira, onde se deu o choque. Os insurretos tomaram a iniciativa, obrigando a tropa a recuar; esta teria sido desbaratada, no fra o socorro de um batalho da Torre. No combate morreram oito escravos. No dia do levante ocorreu em Salvador um episdio que ilustra o clima de terror reinante na cidade. Um indivduo chamado Lus Onofre de Carvalho propalou em guas dos Meninos que cerca de trs mil ne gros da cidade estavam na iminncia de se levantar com o desgnio de atacar a tropa pela retaguarda e depois, reunidos aos primeiros revoltosos, acometerem a cidade, massacrando brancos e mulatos. A notcia se espalhou rapidamente, provocando o fechamento das residncias e casas comerciais; os habitantes se armaram e ficaram de atalaia. No dia 22 de abril de 1829, nags muulmanos do engenho Vitria, prximo a Cachoeira, insurgiram-se, desencadeando um movimento que se alastrou a outros engenhos e no foi dominado seno depois de dois dias de luta. No dia 26 de outubro, houve nova sublevao de nags do Recncavo, em trs engenhos distantes seis lguas de Salvador. Incendiaram um dos engenhos e mataram trs brancos. Comunicando o fato ao Ministro da Justia, o presidente da provncia dizia que "os moradores do Recncavo estavam sobremodo receosos e sobressaltados". Em memorial dirigido ao presidente da pro vncia, pedindo reforo dos destacamentos nos pequenos centros urbanos, quatorze grandes senhores-de-engenho do Recncavo falavam no "perigo iminente que ameaa suas pessoas e bens ... pelas frequentes revoltas escravas". s 7 horas da manh do dia 19 de abril de 1830 ocorreu na cidade baixa um episdio que serviu para aumentar ainda mais o nervosismo da populao branca e mulata. Um grupo de dezoito a vinte nags fortes e resolutos assaltaram uma loja de armas e se apoderaram de doze espadas e cinco facas, ferindo gravemente o dono da loja e os caixeiros. Dirigiram-se em seguida a uma segunda loja, da qual levaram apenas uma parnaba, pois o dono ameaou fazer fogo contra eles. Numa terceira loja, apoderaram-se de mais seis parnabas. Marcharam ento pela rua do Julio, dirigindo-se a um depsito de negros novos. Cerca de cem destes negros os seguiram, ficando apenas dezoito, feridos por se recusarem a aderir. Tomaram o caminho da Soledade, engrossada pela adeso de outros nags. Na Soledade atacaram a guarda policial, onde havia sete soldados e um sargento; feriram mortalmente um dos soldados. Desde a ladeira da Soledade, vinham sendo perseguidos por milicianos e soldados de polcia. Fez-se um massacre: cinquenta negros mortos. Clvis Moura entende que esta foi uma revolta realizada "mais ou menos de improviso". O chefe de polcia e o promotor afirmaram que a ao era preparatria de uma "insurreio premeditada". Para Nina Ro drigues, foi "exploso parcial de uma insurreio de peso que os nags estavam urdindo para o dia 12". Havia de fato um movimento marcado para o dia 13. Os conspiradores j haviam reunido armas e buscavam obter outras. Por intermdio de um dos conspiradores, a liberta Alexandrina Joaquina da Conceio se inteirou do fato e o delatou s autoridades. Diante disso, parece plausvel que a ao do dia 1 tenha sido uma tentativa desesperada de precipitar de qualquer forma a insurreio. IX - Sntese das experincias adquiridas na longa srie de tentativas anteriores, a insurreio de 1835 revela quanto haviam amadurecido ttica e politicamente os negros muulmanos. Nada teve de espontnea ou improvisada; pelo contrrio, foi paciente e meticulosamente articulada por uma organizao revolucionria fechada, operando segundo normas de rigorosa clandestinidade. o promotor que acusou os insurretos, ressaltou a "constncia e o inviolvel segredo" do movimento. Possua uma direo central que tomava as decises em contato permanente com as bases. o movimento se tornou conhecido como revoluo dos mals. A origem e o significado desta palavra so ainda hoje objeto de controvrsia entre os eruditos. No aspecto estritamente histrico, no h dvida de que a palavra designava negros muulmanos. Calculou-se em mil e quinhentos o nmero de membros da organizao revolucionria. Os chamados nags predominavam, de longe, sobre os negros de outras naes, seguindo-se bastante abaixo os usss. Constata-se ainda a participao de negros iabus, benins, minas, geges, mundubis, tapas, bornus, baribas, grumas, calabares, camares, congos, cabindas. o predomnio de sudaneses era de todo modo absoluto, registrando-se apenas sete negros originrios de regies da frica ao Sul do Equador. No se registrou a participao de nenhum negro crioulo. A proporo de negros libertos era considervel. No processo apareceram cento e vinte e seis libertos para cento e sessenta escravos, o que no permite contudo saber se essa era a proporo exata do movimento, uma vez que os senhores usaram de seu dinheiro e prestgio para salvar da condenao seus escravos, ao passo que os libertos no tinham nada nem ningum por si. Na opinio de Luis Viana Filho, houve neste movimento uma aliana entre muulmanos e animistas; mas no h dvida de que os primeiros predominavam nas funes de direo. Exerciam os revolucionrios as mais diferentes profisses: carregadores de cadeirinhas, alfaiates, cozinheiros, acendedores de lampio, domsticos, marinheiros, remadores de saveiros, pedreiros, barbeiros, calafates, padeiros, pescadores, aougueiros, tanoeiros, ferreiros, carpinteiros, enroladores de tabaco, vendedores de tabaco, empregados de botequins, comerciantes, vendedores ambulantes, vendedores de cal, vendedores de carvo e lenha, vendedores de comida e doces, peixeiros, lavadeiras. A organizao tinha ncleos em todas as freguesias urbanas: S, Conceio da Praia, Pilar, Carmos, Itapagipe, Brotas, Santana, Passo, Vitria; tinha-os igualmente nas freguesias suburbanas: Piraj, Paripe, Co tegipe, Matoim, Ipitanga, Torre, Itaparica, Santo Amaro de Itaparica e Pass. X - Conhecem-se os principais centros de reunio dos insurretos. Um dos mais importantes era uma casa que ficava na Ladeira da Praa, quase esquina de um beco, numa zona repleta de casebres habitados por negros. Era um sobrado em cuja parte superior morava o major Alexandre Jos Fernandes. Na parte trrea, morava o liberto Domingos Marinho de S, que cedia suas dependncias aos conspiradores. Domingos era um pardo de quarenta e trs anos, alto, magro, rosto descarnado, olhos "finados" e pretos, barba cerrada, nariz chato e cabelos pretos corridos. Locara o andar trreo quatro anos antes, exercia a profisso de alfaiate e vivia com a parda Joaquina Rosa Santa Ana. Vivia tambm na sua companhia o nag Incio, escravo de seu irmo Joo Marques de Queiroz, residente na barra do rio da Cachoeira, no Recncavo. Incio fora mandado viver com Domingos oito meses antes, declaradamente para o "ganho", talvez para militar na organizao, na qual se revelou muito ativo. Era um negro alto e magro, de barba cerrada, cor fula e sinais no rosto. Domingos sublocara a "loja", nome que se dava ao poro, aos negros Manuel Calafate e Aprgio, dois dos mais destacados dirigentes da organizao. o primeiro era um nag liberto e exercia a profisso de ca lafate. Aprgio, tambm liberto, era um nag cj, ganhando a vida como vendedor de po e carregador de cadeiras. Alm disso, Domingos sublocara quartos a outros militantes da organizao: Benedito, um nag alto, de corpo cheio e sem barba, carregador de cadeiras, escravo de Antnio Jesus, morador ao Forte de So Pedro; Belchior, um nag de Cobrai, alto, reforado, de barba cerrada, contando cinquenta e tantos anos, carregador de cadeiras, escravo do coronel Jos Joaquim Xavier; Joaquim, um gege de estatura ordinria, negro retinto, contando mais ou menos trinta anos, calafate de profisso, escravo do tenente coronel Antnio Jos Soares; Conrado, de quem se sabe apenas que era vendedor de sapatos, e escravo de Joo Batista Fetal. Entre os assduos frequentadores da "loja" figuravam: Joaquim, um nag alto, cheio de corpo, cor fula, lbios grossos, oficial de sapateiro e escravo do guarda-mor Jos da Silva Romo; Pompeu, um nag alto, morador rua do Tijolo; Laurearia, uma nag liberta, de estatura ordinria e rosto pequeno, moradora nas proximidades. Aprgio, Belchior e Joaquim sabiam ler e escrever "com letras e caracteres estranhos". Os dois primeiros carregavam a mesma cadeira, tendo seu ponto na Mangueira, onde podiam ser vistos escrevendo com ponteiros molhados em tinta duma garrafa, e ensinando rezas aos demais. Tudo indica que a casa fora adrede escolhida pela sua excelente posio estratgica. Conforme assinalou o chefe de polcia, Francisco Gonalves Martins, ficava distncia de um tiro de pistola do palcio do governo, de um tiro de espingarda dos batalhes de terceira linha e muito prxima do Colgio, onde havia uma tropa. Os revolucionrios fizeram no local um esconderijo com capacidade para abrigar pelo menos sessenta homens. No menos importante como ponto de reunio, era a casa do liberto Belchior da Silva Cunha, rua da Orao. Belchior era nag, exercia a profisso de pedreiro, sublocava quartos e vivia com a nag Agos tinha. Um dos moradores era o liberto Gaspar da Silva Cunha, alfaiate e senhor de um escravo chamado Jos. Gaspar vivia na companhia da tapa Teresa, num quarto alugado por ela dez anos atrs. o escravo Jos era de nao congo e trabalhava como alfaiate. Outro morador era Jorge da Cruz Barbosa, um liberto nag, carregador de cal. Um dos mais assduos frequentadores da casa era um escravo chamado Lus, conhecido entre os negros como Sanim. Morava com seu senhor junto igreja do Guadalupe, trabalhava como enrolador de fumo no cais do Dourado e falava a lngua nag. Era um homem velho, de cabelos brancos, e considerado pelos demais como "mestre", ou seja, um sacerdote muulmano. Aparecia com muita frequncia, mas, rapidamente, falando apenas com Belchior, que por sua vez tambm ia casa dele. Era quem fazia os "papis" encontrados depois pelas autoridades policiais e que continham instrues para os companheiros. Na sextafeira, vspera da insurreio, estivera na casa, pouco mais ou menos s 8 horas da noite. Ficara na porta, falara rapidamente com Belchior e fora embora. Apareciam, tambm, com frequncia: Ov, um escravo nag, carregador de cadeiras, cujo senhor morava rua das Laranjeiras; Dada, ou Mateus, um nag que trabalhava como ferreiro e era escravo de um ferreiro com tenda na Barroquinha; Oju, um nag carregador de cadeiras, escravo do vigrio da rua do Passo; Namonim, ou Namonera, nag, vendedor de po e escravo de um padeiro que morava na igreja do hospcio do Pilar; Aliara ou Jos, nag liberto; Sule, ou Vitrio, um nag que trabalhava como vendedor ambulante e morava na mesma rua. Aos domingos, efetuavam-se nessa casa reunies com a presena de muitos militantes. A essas reunies comparecia Sanim, que dava instrues aos companheiros e lhes entregava "papis". rua das Laranjeiras, ficava outro ponto importante de reunio, na casa do liberto Incio Jos de Santa Ana, mais conhecido como pai Incio. Este Incio "possura" numerosos escravos, no se sabendo se, poca da insurreio, ainda os possua. Vivia de alugar quartos a escravos e libertos. Um dos quartos fora alugado ao nag Joaquim, carregador de cadeiras e escravo do brigadeiro Manuel da Cunha, residente nas vizinhanas; ao nag Roque, fazedor e vendedor de roscas, escravo do padeiro Francisco Lopes, estabelecido na Piedade; ao nag Pacfico, escravo do cirurgio Antnio Varela e ao nag Joaquim, vendedor de roscas e escravo do j citado Francisco Lopes. O aluguel era pago pelos quatro, que mantinham o quarto com a nica finalidade de se reunirem, pois cada um continuava a viver na casa de seu senhor. Pacfico, conhecido entre os seus pelo nome africano de Licutan, era um dos lderes de maior prestgio. Quando estourou a rebelio, achava-se preso por penhora feita a seu senhor pelos frades do Carmo. Na priso era assiduamente visitado por outros negros, que o tratavam com verdadeira venerao. O negro Joaquim, escravo do brigadeiro Manuel da Cunha, parecia ser tambm um dirigente importante, havendo indicaes de que atrara para a conspirao outros escravos do brigadeiro, entre os quais Antnio e Jos, carregadores de cadeiras. Outro dirigente que frequentava o local era o uss liberto Joo, carregador de cadeiras e morador na casa do brigadeiro, onde fora escravo de um escravo deste. A gege liberta Helena, vendedora de peixe e moradora na casa de pai Incio, servia aparentemente como elemento de ligao entre estes dirigentes e os pescadores. As reunies se realizavam de dia, a pretexto de comer e realizar "funes". Eram muulmanos, mas, na justia, negaram isso, alegando, como prova, que "no sabiam ler nem escrever". A casa do negro Sule, ou Vitrio, rua da Orao, servia tambm como ponto de reunio, o que indica que ele transmitia a outros militantes instrues recebidas na casa de Belchior. Na casa dos negros Incio de Limeira e Joaquim de Matos, rua das Vernicas, realizavam-se frequentes reunies, geralmente mais concorridas aos domingos e dias santos. Pacfico Licutan tambm usava a sua casa, no Cruzeiro de So Francisco, como ponto de reunio. Outro local de reunies era a porta do Convento das Mercs. Os negros que pertenciam ao convento, reuniam-se pela manh para discutir planos e receber instrues. Os dirigentes do grupo eram aparentemente os escravos Agostinho e Francisco. Sabe-se, ainda, dos seguintes pontos de reunio no centro da cidade: a casa de um negro chamado Lus, atrs da rua do Julio; a casa do nag Ambrsio, rua do Taboo; a casa de Jos Saraiva e muitos outros. O arrabalde da Vitria, distante trs quartos de lgua ao sul da cidade, era um dos focos de mais intensa arregimentao. Este arrabalde, assentado num promontrio, dominando a ilha de Itaparica e a baa, era muito aprazvel, nele residindo quase todos os estrangeiros de Salvador, representantes consulares ou grandes comerciantes. A participao dos escravos residentes neste arrabalde ressaltada pelo fato de que eles eram em nmero de cinquenta entre os cento e sessenta processados: quarenta e cinco pertenciam a ingleses, trs a franceses, um a norte- americano e um a alemo, todos escravos domsticos. Entre esses insurretos, havia vrios "mestres" muulmanos, tais como Dassalu, Nicob e Gustad, escravos de um ingls de sobrenome Stuart. Reuniam-se em uma casa de palha construda por eles prprios e localizada nos fundos da casa do Ingls Abrao. Entre seus dirigentes mais ativos figuravam os nags Diogo, Ramil, James, Cornlio, Toms e outros; reuniam-se regularmente, s vezes com elementos do centro da cidade e saveiros de Santo Amaro e Itaparica, aos quais se achavam articulados. O elemento de ligao entre esses escravos e os dirigentes do centro da cidade era o negro Sule, tido entre eles como capito. Os membros do grupo se identificavam por um anel e um deles ensinava os demais a escrever em caracteres arbicos. O fato de haver entre os insurretos tantos escravos pertencentes a ingleses, gerou nas autoridades e na populao a convico de que esses amos no s toleravam, como ainda estimulavam a atividade conspiratria. A julgar pelo nmero de membros do movimento, devia haver focos conspirativos em toda a cidade de Salvador. Pouco se sabe sobre a penetrao alcanada pela organizao no Recncavo. certo, porm, que o movimento vinha sendo articulado entre os escravos dos engenhos e os quilombolas. Manuel Calafate, por exemplo, ia com frequncia vila de Santo Amaro. Cresciam as fugas de escravos para os quilombos e para Salvador. XI - Os insurretos vinham, havia muito, aprovisionando-se de armas de fogo. Com o dinheiro de uma "caixa" para a qual todos contribuam com parte dos seus ganhos, compravam bacamartes, garruchas, sabres e espadas. Um dos fornecedores era um nag liberto, armeiro, chamado Antnio Manuel do Bom Caminho. As armas obtidas, por sua vez, vinham sendo distribudas entre os que deviam combater. Os insurretos planejavam sair luta uniformizados. Para tanto, confeccionaram com antecedncia os uniformes. Belchior e Aprgio vinham fazendo estes uniformes havia mais de seis meses. Os uniformes consistiam de barretes ou carapuas de pano branco e azul; camisolas grandes ou "roupetas" por cima das calas e apertadas na cintura com cintos brancos de algodo. Em todos os lugares onde depois se realizaram buscas, foram encontrados estes uniformes. Envergavam-nos os que iniciaram a insurreio na Ladeira da Praa e os que morreram nos combates. Adotaram uma bandeira, que devia tremular frente dos revoltosos. o plano militar consistia na diviso da cidade em cinco partes, de maneira que os insurretos se dividiriam tambm em cinco grupos. o padre Etienne Ignace encontrou no Arquivo Pblico de Salvador um desenho que parece ter sido o plano militar traado pelos chefes. Este desenho, combinado com outros elementos, permite reconstituir a ttica a ser empregada. o levantamento se daria ao romper da alvorada, hora em que os escravos costumavam sair das casas de seus senhores para buscar gua nas fontes pblicas. Desta forma, poderiam reunir-se em grande nmero aos insurretos. De incio, alguns grupos provocariam, simultaneamente, incndios em diversos pontos da cidade, para distrair a ateno da polcia e da tropa, fazendo-os deslocarem-se para fora dos quartis. A confuso assim estabelecida, permitiria aos insurretos mais facilmente atac-los e desarm-los. Ento, o grupo do centro da cidade atacaria o quartel de So Bento, marchando depois para reunir-se ao grupo da Vitria. Assim reforados, apossar-se-iam do Forte So Pedro e do quartel da Mouraria. Descendo em seguida rapidamente ao Taboo e Conceio da Praia, onde os aguardavam outros contingentes, atacariam o quartel da cavalaria, o mais srio baluarte a ser vencido, pois interceptava a passagem para o Bomfim. Trucidados os brancos e libertados os escravos, enquanto alguns grupos se manteriam em posies conquistadas, outros convergiriam para o Cabrito, atrs de Itapagipe, onde fariam juno com os escravos do Recncavo. Ento dariam o assalto final, fazendo-se senhores da cidade. Papis escritos em "caracteres arbicos", encontrados pelas autoridades, proporcionam outros detalhes do plano militar. Um papel dizia que "a gente havia de vir da Vitria tomando a terra e matando toda a gente da terra de branco e passariam por guas de Meninos at se ajuntarem todos no Cabrito, atrs de Itapagipe, para o que as espingardas no haviam de fazer dano algum". Um bilhete de um negro para outro dizia que deviam sair todos "das 2 at s 4 horas invisveis, e que depois de fazerem o que pudessem iriam se juntar no Cabrito, atrs de Itapagipe, em um buraco grande que ali h, com a gente de outro engenho, que fica atrs e junto, porque esta gente j tinha feito aviso, e quando esta no viesse iriam juntar-se ao mesmo engenho, tendo muito cuidado de fugir dos corpos de guardas para surpreend-los at eles sarem logo da cidade". Encontrou- se, ainda, "uma espcie de proclamao para juntar gente com sinais, ou assinaturas de vrios, e assinada por um de nome Mala Alukabar, afirmando que no h de acontecer coisa alguma no caminho, porque ho de passar livremente". Um escrito de um negro de nome Afiei, para um de nome Ado, escravo de um ingls na Vitria, avisava que "s 4 horas havia de l estar e que o outro no sasse sem ele l chegar." Consta que, depois de massacrar todos os "brancos e mulatos" e libertar os "negros", pretendiam os insurretos apossar-se das embarcaes existentes no porto e rumar para a frica. Foi escolhida para o levante a madrugada da noite de 24 para 25 de janeiro. Dia 25 era um domingo em que se realizava no templo do Bomfim a popular festa de Nossa Senhora da Guia. A populao branca, desde muito cedo, costuma acorrer ao templo, ficando assim desertas as casas e produzindo-se nas ruas grande movimento. Na vspera, todas as providncias haviam sido tomadas. Os diferentes grupos, armados e uniformizados, concentraram-se nos lugares preestabelecidos. Mas, na noite de 24, houve a delao. XII - Como sempre sucede em todas as insurreies, dias antes pairava algo no ar. Os escravos se mostraram nervosos e excitados. Aqui ou ali, a propsito de qualquer coisa, ouvia-se uma ameaa ou uma insinuao. Na manh do dia 19, um meirinho acompanhado de um soldado municipal, foi chamar os negros Belchior e Aprgio para conduzir na cadeira um homem embriagado. Ambos se recusaram, porm, diante das ameaas, concordaram em transportar o brio, dizendo ao meirinho - "Deixa, que logo voc h de procurar negro no canto e no h de achar, e voc mesmo quem h de botar cadeira no ombro". O armeiro Antnio Manuel do Bom Caminho, conversando com o liberto gege Domingos Jos de Magalhes, comentou que a situao andava mal, mas que dentro de alguns dias haveria uma "desordem" e ento tudo melhoraria. Os negros de saveiros se mostravam particularmente excitados e faziam em voz alta comentrios sobre dias melhores que no tardariam a chegar. No sbado, na casa do deputado Rebouas, uma negra comentou que os escravos andavam a preparar algo que aconteceria no dia seguinte. A negra Marcelina, de nao mundubi, escrava de Efignia de Argolo, freira do Desterro, ouviu de sua ama que "se falava em levante". O nag liberto Domingos Fortunato ouviu na tarde do mesmo sbado, de alguns negros chegados de Santo Amaro, que a sua vinda era para "com os outros desta cidade tomarem conta da terra, matando os brancos, cabras e crioulos". De volta sua casa, na rua do Bispo, Domingos Fortunato comentou esses rumores com a companheira, a nag liberta Guilhermina. Disse-lhe que queria mandar por escrito um aviso a seu patrono, morador no Pilar, pois tinha "medo de faz-lo pessoalmente". Enquanto estava janela pensando no assunto, Guilhermina viu passar dois ou trs nags dizendo que "quando tocasse a madrugada nas guardas e os negros sassem para a fonte", haveria "fogo" na cidade baixa, para o que no faltava gente, que viera at mesmo de Santo Amaro. vista do que ouviu, Guilhermina disse a Domingos que tambm ela avisaria seu patrono, Joaquim de Souza Velho, o que efetivamente fez. Quando voltava casa, encontrou-se com sua comadre Sabina da Cruz, uma nag liberta que fora escrava de Jos Manuel Gonalves. Sabina vinha pedir-lhe que informasse a algum branco do governo que havia muita gente armada para fazer guerra de madrugada e que lhe dessem dois soldados para tirar seu companheiro Sule do local em que se encontrava. Eis como Sabina se inteirara da planejada insurreio. s 4 horas da madrugada de sbado, tivera uma briga com Sule. tardinha do mesmo dia, voltando da cidade baixa, onde costumava passar o dia ocupada em seu negcio, foi casa de Belchior da Silva Cunha buscar a chave que este costumava guardar durante a ausncia do casal. Em casa, encontrou tudo em desordem, inclusive sua roupa. Supondo que Sule fra embora devido briga, saiu a procur-lo por casas de conhecidos. No o encontrando, lembrou-se finalmente, de procur-lo em casa de uns negros de Santo Amaro, rua de Guadalupe, os quais costumavam visitar Sule. Chegando aludida casa, entrou no corredor e se ps a escutar a uma porta, ouvindo apenas um sussurro em lngua nag. Sentiu medo e, por isso, no quis entrar, dirigindo-se para a porta da rua. Nesse momento saa uma negra nag-b chamada Edun. Sabina indagou a Edun se Sule se encontrava naquele local. Diante da resposta afirmativa, Sabina pediu a Edun que fosse cham-lo, ouvindo ento que Sule somente sairia quando fosse hora de "tomar a terra". Puxando conversa, Sabina ouviu de Edun que de madrugada, quando os soldados tocassem, seriam soltados foguetes nas "lojas" da praia e ento os conspiradores sairiam para, reunidos a outros negros, matarem os brancos, crioulos e cabras. A isso respondera Sabina que os conspiradores seriam senhores da "surra" e no da "terra". Edun jurara que lhe daria resposta no dia seguinte. Assustada, Sabina correra a contar tudo sua comadre Guilhermina. Esta se dirigiu casa de um vizinho, o liberto Andr Pinto da Silveira, onde se encontravam os brancos Antnio de Souza Guimares e Francisco Antnio Malheiros. Contou o que soubera acerca do levante. Imediatamente, Antnio de Souza Guimares e Francisco Antnio Malheiros procuraram o juiz de paz do primeiro distrito do Curado da S, Jos Mendes da Costa Coelho. O juiz, sem perda de tempo, dirigiu-se ao palcio a fim de transmitir ao presidente da provncia as informaes recebidas. Em seguida, na companhia do coronel Manuel Sande, comandante do corpo de permanentes, dirigiu-se casa de andr Pinto da Silveira. Chamada, a negra Guilhermina confirmou, circunstancialmente, a denncia, em depoimento que foi reduzido a termo. XIII - O presidente da provncia recebeu a denncia cerca de 10 horas da noite. Enviou incontinenti um ofcio ao chefe de polcia, Francisco Gonalves Martins, que se encontrava no Bomfim: "Neste momento me dada a denncia, de que esta manh muito cedo deve haver uma insurreio de escravos, a qual parece apresentar alguns indcios verdadeiros". Ordenava-lhe que fizesse guardar todos os distritos por patrulhas dobradas e detivesse todas as pessoas suspeitas ou que trouxessem armas. Sem esperar pelo chefe de polcia, o presidente da provncia, s 11 horas e um quarto dirigiu igual ofcio aos juzes de paz dos vrios distritos da cidade. O juiz Jos Mendes da Costa Coelho mandou guardas permanentes cercarem diversas casas na Ladeira da Praa, no Maciel e em outros lugares. Quando chegou Ladeira da Praa, encontrou j alguns cidados armados, guardas permanentes sob o comando do tenente Lzaro do Amaral, o comandante geral tenente-coronel Sande e o Juiz de paz do distrito Caetano Vicente de Almeida Galio. Haviam cercado a casa de Domingos Marinho de S. Da a pouco, chegava o chefe de polcia, Francisco Gonalves Martins, com novo contingente de soldados. Depois de determinar que vasculhassem a casa, retirou-se do local. Fez guardar por um destacamento o palcio do presidente, o Largo do Teatro e o Colgio, e dirigiu-se ao quartel de cavalaria, que j encontrou pronto para enfrentar o ataque. Em seguida, acompanhado de um piquete de soldados, dirigiu-se a toda pressa ao Bomfim para, segundo disse, organizar a proteo das famlias que l se encontravam. Logo que o chefe de polcia se retirou da Ladeira da Praa, os acontecimentos se precipitaram. O juiz perguntou a Domingos e sua companheira se na casa havia pretos africanos, ouvindo a resposta que no havia mais que um escravo. O juiz insistiu que lhe constava haver outros negros e ento ambos admitiram haver mais dois, porm muito velhos e sossegados. Pedindo o juiz a Domingos e Joaquim que lhe abrissem a porta, responderam-lhe que entrasse pela janela, pois no sabiam onde estava a chave. Depois de muita insistncia do juiz e de uma intimao para que a porta fosse aberta, sob pena de arrombamento, Domingos deu muitas voltas no ferrolho ou chave, o que, segundo uma testemunha, "bem se inculcava estar se dando algum sinal". Aberta finalmente a porta, entraram o juiz, o tenente Lzaro com quatro soldados e outras pessoas. Domingos ia frente iluminando o caminho com um archote. Um dos soldados informou ao juiz que vira uma porta fechar-se precipitadamente. Ordenou ento o juiz aos soldados que batessem porta e, caso no fosse aberta, a arrombassem. No mesmo instante, a porta se abriu e dela saiu um grupo de cinquenta ou sessenta negros. Segundo o relato do chefe de polcia: "Vendo-se descobertos e perdidos, fizeram um ato de desesperao, saindo violentamente, e dispersaram os sitiantes, que no contavam com esta erupo e se acovardaram ao primeiro mpeto". Com efeito, os negros saram disparando armas de fogo ou acometendo com espadas, no s a tropa, o juiz e os oficiais, como todas as pessoas que se encontravam do lado de fora da casa. Soldados e civis recuaram, naquilo que um deles chamou de "retirada defensiva e ofensiva". Ao irromperem do seu esconderijo, os negros feriram gravemente o tenente Lzaro e um soldado chamado Fortunato Jos Braga, que depois morreu no hospital. Os guardas permanentes fugiram em pnico, exceto dois, aos quais o juiz mandou que abrissem fogo. Estabeleceu-se uma luta confusa. o inspetor de quarteiro Joaquim Pereira Arouca Junior, que participava do cerco, quase foi morto por um dos negros. Salvaram-no dois escravos, um moleque crioulo e outro nag, que mataram o negro a pauladas. Outro insurgente feriu um paisano de nome Cerqueis e espancou um oficial de justia, sendo morto por um guarda permanente que fez fogo do alto duma casa. Desde que saram do seu esconderijo, os negros gritavam "mata soldado". Uma testemunha diz que "gritavam maneira da sua terra". Enquanto uns poucos insurgentes ficavam no local lutando com os que ainda resistiam, os demais se dividiram em dois grupos: um grupo tomou pela Ladeira da Praa e o outro pela rua dos Capites. frente do primeiro grupo ia Manuel Calafate; frente do segundo, Comado. XIV - A insurreio, tal como fora planejada, fracassara. o elemento surpresa, vantagem de todos os insurretos, estava descartado. As autoridades haviam podido tomar medidas preventivas, pondo de sobreaviso a guarnio militar e as foras auxiliares. Dado o alarma, a populao branca se armara e imobilizara os escravos que viviam em suas casas. Por sua vez, os escravos articulados no movimento se viram desorientados, sem saber o que fazer. A confiana e o entusiasmo haviam cedido lugar ao medo e ao pnico. Para o grupo de insurretos da Ladeira da Praa, no entanto, no havia outra alternativa seno lutar de qualquer maneira, na esperana talvez de que a sorte, apenas a sorte, pudesse favorec-los. Os dois grupos se reuniram e marcharam para a Ajuda, no propsito de arrombar a cadeia e'libertar os companheiros que ali se encontravam. Fizeram desesperadas e repetidas tentativas, sem resultado. A guarda da cadeia, bem protegida, pde frustrar seus esforos. Seguiram para o Largo do Teatro, onde oito soldados permanentes que tentaram det-los foram postos em fuga. Dirigiram-se, ento, para o Forte de So Pedro, matando no caminho dois pardos que os hostilizaram com armas de fogo. No Forte de So Pedro, havia um quartel de artilharia, bem defendido e municiado. O objetivo deste ataque ao quartel de artilharia era conseguir fazer juno com o grupo que devia vir da Vitria, o qual, pela distncia em que o arrabalde se encontrava do centro da cidade, no sabia certamente do fracasso do plano e seria de esperar que marchasse na forma combinada. O grupo da Ladeira da Praa no se animou a atacar frontalmente o quartel, julgando prefervel aguardar o grupo da Vitria, para faz-lo com maiores foras. Houve algumas escaramuas, nas quais morreu um sargento e ficaram feridos diversos soldados. Todas as vezes que os insurretos se aproximavam do quartel, eram alvo de um fogo violento. vista disso, resolveram esperar em Campo Grande a chegada do grupo de Vitria. Este, contudo, sem saber o que acontecera no centro da cidade, somente se ps em movimento na hora previamente combinada. Quando chegou ao quartel, foi recebido debaixo de intensa fuzilaria. Nem por isso desistiu, tentando mesmo investir contra o quartel. Repelido com pesadas perdas, tratou apenas de passar pela rua fronteira, a fim de realizar a juno com o outro grupo. Teve xito, sofrendo outra vez, pesadas perdas, mas ferindo muitos soldados. Reunidos os dois grupos, marcharam para a Mouraria, onde havia um quartel de permanentes defendidos por doze homens. Os defensores fecharam o porto do quartel, contra o qual os insurretos investiram sem xito sob o fogo vivo do inimigo, perdendo dois mortos e diversos feridos. Descendo Barroquinha tomaram novamente pela Ajuda e fizeram mais uma tentativa fracassada de arrombar a cadeia. Rumaram em seguida para o Colgio, defendido por vinte e duas praas sob o comando de um sargento. A guarda se recolheu, o porto foi fechado e os insurretos se viram sob o fogo cruzado dos defensores e de um contingente de permanentes que os atacou pela retaguarda. Os negros mataram um soldado de artilharia, mas perderam um homem e tiveram vrios feridos. Enveredaram pelo Taboo, passando por detrs da Cadeia do Terreiro e se dirigiram em seguida ao quartel de cavalaria, situado em guas de Meninos. Eram 3 horas da madrugada e haviam marchado incessantemente, cumprindo um itinerrio difcil e cansativo. O quartel de cavalaria se constitua no maior de todos os obstculos. No se pode deixar de indagar o motivo que levou os insurretos a atac-lo. Uma das hipteses de que, vencido esse obstculo, teriam a cidade em suas mos. Sugere-se ainda que pretendiam abrir caminho para chegar ao Recncavo, numa tentativa de sublev-lo. H tambm a hiptese de que esperassem conquistar a adeso dos escravos de alguns engenhos situados pouco adiante. O chefe de polcia, Gonalves Martins, esperava o ataque dos insurretos e tomara medidas extraordinrias. Atravs do relatrio que depois fez ao presidente da provncia, pode-se reconstituir a ao que desenvolvera depois de se retirar da Ladeira da Praa. Achando que no podia haver nenhum perigo no centro da cidade, onde os numerosos quartis e corpos de guarda haviam sido postos em prontido, dirigira-se para o quartel de cavalaria, que encontrara j preparado para a luta. Seguiu, ento, para o Largo do Bonfim, acompanhado de um piquete, por temer pela sorte das inmeras famlias que l se encontravam, longe do centro e nas proximidades de engenhos, onde havia numerosa escravatura. No largo do Bonfim, tomou medidas para acautelar o perigo e pouco depois chegava a todo galope uma patrulha de cavalaria para anunciar que os negros haviam atacado alguns pontos da cidade. Face a esta notcia, deu ordem a um destacamento municipal de dezoito homens postados no Bonfim para que, em caso de perigo, fizessem as famlias se recolherem igreja, e ali resistissem a qualquer ataque, at que pudessem ser socorridos. Retornou ao quartel de cavalaria, onde chegou pelas 3 horas da madrugada. Afirma que o encontrou em "alarme". A fora deste quartel compreendia nesse momento um esquadro de cavalaria, quinhentos infantes e um contingente do batalho de artilharia que acudira ao local. Disps os infantes no interior do quartel para fazer fogo sobre os negros pelas janelas e a cavalaria no largo para os atacar. Poucos minutos depois, chegavam os negros em nmero de cinquenta a sessenta, armados de "espadas, lanas e mesmo pistolas e outras armas". Embora recebidos a tiros de pistola e fuzil das janelas do quartel, avanaram com deciso. A cavalaria carregou mas os negros a enfrentaram em corpo-a-corpo, com tamanha resoluo que a fora retirou com seu comandante Francisco Teles Carvalhal gravemente ferido. O chefe de polcia assumiu ento o comando e frente de um contingente de cavalarianos carregou sobre os negros. Estes recuaram perseguidos pelos cavalarianos. Foi quando surgiu outro grupo de negros. Estando sem cavalarianos, o chefe de polcia entrou para o quartel, donde continuou o fogo por espao de um quarto de hora, dizimando os negros. Entrementes, os cavalarianos impeliam os negros para o mar, ao qual muitos se lanaram, salvando-se uns a nado e outros perecendo afogados. Ainda outros embrenharam-se pelas matas e montanhas vizinhas. Os marinheiros de um escaler da fragata Baiana, postada nas imediaes por ordem do presidente da provncia, mataram diversos negros. O chefe de polcia confessou-se admirado de tanta coragem e concitou os negros que ainda lutavam a que se rendessem: "Todos preferiram morrer". O combate terminou s quatro da madrugada. Cinquenta negros haviam tombado mortos e era grande o nmero de feridos". o chefe de polcia ainda temia algum ataque no Bonfim, para onde se dirigiu frente de cavalarianos e onde permaneceu at certificar-se de que nos engenhos vizinhos no havia movimento algum. Ao amanhecer, voltou ao quartel de cavalaria e deu novas ordens para prevenir qualquer ataque inesperado. Cerca das sete horas da manh, seis negros fugiram da casa do rico proprietrio Joo Francisco de Rates. Depois de incendiar a habitao, dirigiram-se a guas de Meninos, mas foram desbaratados no caminho. Os grupos que deviam sair pela madrugada, informados do mau xito da insurreio, abstiveram-se de qualquer iniciativa. Desorientados, desorganizados, privados de seus dirigentes no pensavam seno em escapar represso. Pois, malogrado o levante, seguia-se a represso. XV - "No dia seguinte era horrorosa a carnificina; as ruas estavam juncadas de cadveres". O padre Etienne Ignace, autor de uma monografia sobre a insurreio, recolheu essa informao de testemunhas oculares. Os cadveres no eram apenas de negros que haviam tomado parte na luta. Na exultao do triunfo, soldados e populares massacravam negros indiscriminadamente. Em relatrio oficial, o chefe de polcia admitiu que "os soldados prendem, espancam e mesmo matam escravos, que por mandado de seus senhores vo rua". Apesar disso, julgou "bem natural que hajam (sic.) tais abusos". A represso foi feroz. A polcia adotou no dia seguinte medidas repressivas ilegais logo convalidadas pela assemblia provincial, que suspendeu por trinta dias as garantias individuais, permitiu buscas em quaisquer residncias onde houvesse negros e prises por simples suspeita. No domingo mesmo, o chefe de polcia determinou que fossem "corridas todas as casas de africanos sem distino alguma". Passados uns dias, ordenou idntica medida nas casas de brancos. As autoridades se preocuparam desde logo em encarregar todos os "mestres de escolas cornicas". No se tinha dvida de que estes negros, possuidores no raro de inteligncia e cultura superiores s de seus senhores, haviam sido os inspiradores e dirigentes da insurreio. Portanto, as investigaes se orientaram no sentido de apreender tudo quanto se afigurasse como prova de adeso ao credo islmico. Houve negros condenados apenas por terem consigo papis escritos em idioma rabe. Por exemplo, o promotor pediu e obteve a condenao do negro Joaquim, escravo de um certo Romo, s porque "sabia ler e escrever nas tboas que foram achadas aos insurgentes". Tudo era pretexto para prises e condenaes. Em uma busca numa sobreloja no beco do Forro, apreenderam-se dois tabaques, uma cruz de madeira, uma figa de chifre, uma caixinha redonda de madeira com um bichinho e um cacete. Bastou isso para que seu possuidor fosse condenado a duzentos aoites. As investigaes foram particularmente severas no arrabalde da Vitria. Isso porque, segundo o chefe de polcia, "se notou que uma quantidade grande de insurgentes eram escravos dos ingleses e estavam melhor armados, devendo-se atribuir estas circunstncias menor coao em que so tidos por estes estrangeiros, habituados a viver com homens livres". A populao branca estava convencida de que os ingleses, hostis escravatura, haviam instigado a insurreio. Considerava-se prova disso a categrica recusa dos britnicos a permitir buscas em suas casas. Os ingleses, por sua vez, escudavam-se no privilgio britnico da inviolabilidade do domiclio. "Esta invocao do privilgio", escrevia para o Foreign Office o cnsul ingls na Bahia, John Parkinson, "no tem deixado de exacerbar os sentimentos desfavorveis contra os ingleses em geral; eles so abertamente acusados de incitar seus prprios escravos a se insurgir e de estimul-los a repetir os horrores do Haiti". No h qualquer prova de estmulo ou ajuda dos ingleses aos insurgentes, mas evidente que sua oposio escravatura os tornava mais tolerantes para com os negros. Em poucos dias, as prises estavam repletas de negros. Cadeias no era o que faltava na Bahia. Os presos foram distribudos pelo Aljube, Forte de So Marcelo, Fortaleza do Barbalho, Forte de Santo Antonio e Cadeia do Terreiro. As condies dessas prises eram, naturalmente, pssimas. Os que no sucumbiam s torturas, morriam de doenas ou de fome. A brutalidade da soldadesca ilustrada por fatos como este: Josefa, uma escrava que vendia legumes pelas ruas, ao passar certo dia pelo Aljube, foi chamada pelos prisioneiros, que lhe pediram alguns legumes; a sentinela no se fez rogar para deix-la entrar, porm, depois impediu-a de sair, mantendo-a encarcerada por muitos dias. A congnita e incurvel lentido da justia costuma-se transmudar em eficincia e rapidez verdadeiramente notveis quando se trata dos pequenos e dos fracos. A justia baiana, trabalhando sem cessar dia e noite, pronunciou em menos de um ms diversas sentenas, inclusive de morte. Os interrogatrios, os vereditos dos jris e as sentenas dos juzes, mostram que os julgadores no se sofriam muito com formalidades, bastando o mais leve indcio para fundamentar uma condenao. No geral, os negros processados se portaram com rara dignidade. Praticamente no houve confisses. Negavam tudo, contra toda a evidncia. Colhidos em contradio ou surpreendidos com alguma prova convincente, pura e simplesmente se calavam. Tpico foi o caso de Pacfico Licutan, que o promotor qualificou como "um dos grandes e distintos da insurreio". Ele insistia em dizer que no conhecia nenhum dos negros que lhe eram mencionados; no se lembrava de nenhum nome, sequer o dos que o visitavam. O nag Henrique, escravo de Vicente Ferreira da Maia, apresentava diversos ferimentos gangrenados que o faziam sofrer horrivelmente. Manteve, apesar disso, uma atitude de desafio durante todo o interrogatrio. Quando insistiram para que falasse, replicou encolerizado que "no dizia mais nada, porque no gente de dizer duas coisas e o que disse est dito at morrer". O termo do depoimento registra que enquanto dizia isso, fazia gestos ameaadores com a cabea. O liberto Antnio Manuel do Bom Caminho, que provia os insurretos com armas, declarou que jamais fizera armas para outros clientes que no brancos; porm solicitado a dar os nomes de tais clientes, disse que no lembrava. A avareza dos senhores-de-escravos revelou-se em muitos casos mais forte que o interesse de classe. Todos os que tinham prestgio ou dinheiro, empenharam-se em salvar suas propriedades. Houve senhores que compareceram em juzo para proporcionar libis aos rus, declarando que os mesmos estavam em casa a dormir durante a insurreio. Foi enorme a porcentagem dos rus que juraram haver passado a noite a dormir, apesar da barulheira. Quando no podiam libertar seus escravos pela influncia junto s autoridades ou aos juzes, os senhores-de-escravos contratavam advogados para defend-los e muitos interpuseram todos os recursos cabveis, em todas as instncias. Os libertos, que no tinham por si dinheiro nem influncia, sofreram a maior severidade nos julgamentos e nas penas. vista de tudo isso, os resultados dos processos no refletem exatamente o grau de participao dos condenados no movimento insurrecional. No podemos nem mesmo ter a certeza de que os condenados morte fossem lderes mais importantes, muitos dos quais, ou morreram em combates, ou conseguiram subtrair-se ao da justia. Nos arquivos de Salvador constam os nomes de duzentos e noventa e quatro indiciados. Duzentos e sessenta eram homens e vinte e seis mulheres. Cento e sessenta eram escravos e cento e vinte e seis libertos. Grande nmero de negros foram processados e condenados revelia. Como os arquivos da Bahia no possuem a documentao completa da insurreio de 1835, no se pode apurar a totalidade das penas aplicadas e nem mesmo se todas elas foram efetivamente aplicadas. De zoito foram condenados morte; um condenado a vinte anos de trabalhos forados; trs a doze anos de trabalhos forados; nove a oito anos de trabalhos forados; treze a gals perptuas; dois a quinze anos de gals; quatro a dois anos de priso; quatro a banimento para a frica. As condenaes a aoites foram numerosas e severas. Houve dois condenados a mil e duzentos aoites, cada um; trs condenados a mil aoites, cada um; dois condenados a oitocentos aoites, cada um; um condenado a setecentos aoites; trs condenados a seiscentos aoites, cada um; cinco condenados a quinhentos aoites, cada um; trs condenados a trezentos aoites, cada um; um condenado a duzentos e cinquenta aoites; dois condenados a cento e cinquenta aoites, cada um; e um condenado a cinquenta aoites. Seja, um total de treze mil e quinhentos aoites, aplicados razo de cinquenta por dia. As penas de aoites foram aplicadas no Campo da Plvora, no Campo Grande e guas de Meninos. Diariamente, um mdico examinava o sentenciado para verificar se estava em condies de continuar a receber o castigo sem perigo de vida. Estes diagnsticos, no entanto, nem sempre eram precisos, como se v do caso do nag Narciso, escravo de Jos Moreira da Silva Macieira, condenado a mil e duzentos aoites, e que no resistiu. Houve condenaes a aoites verdadeiramente absurdas. Pacfico Licutan, foi condenado a mil aoites pela nica razo de gozar da estima da populao nag de Salvador. Jos do Congo, sofreu a condenao de seiscentos aoites apenas por ser escravo de Gaspar da Silva Cunha e por isso presumir-se que estava ao corrente da conspirao. A nag Agostinha e a tapa Teresa, ambas libertas, foram condenadas a dois anos de priso apenas por serem companheiras de Belchior da Silva Cunha e Gaspar da Silva Cunha. Os condenados a gals cumpriram suas penas em estabelecimentos pblicos, nas mais atrozes condies. Alguns obtiveram liberdade em 1837, por ocasio da Sabinada, a fim de pegar em armas. Um destes negros, chamado Joo, outrora escravo de uma firma inglesa, foi destacado para a Fortaleza do Barbalho. Vinte anos depois foi descoberto, esquecido de todos, na mesma fortaleza, onde servia de criado do comandante. Em fins de 1858, ningum ainda conseguira chegar a uma concluso sobre se era cativo ou livre. Houve um pequeno escndalo, graas ao qual o imperador o agraciou. No se conhecem os nomes de todos os dezoito condenados morte, mas sabe-se que treze tiveram suas penas comutadas. Um deles foi Luiz Sanim, cujo senhor obteve a anulao do julgamento do jri por inobservncia de formalidades legais. XVI - Francisco Gonalves Martins, que reprimira a insurreio, era um rico senhor-de-escravos e um dos polticos mais conservadores de sua classe. O xito alcanado na represso prestigiou-o para chegar a senador, presidente da provncia e ministro do Imprio. Quando de sua visita Bahia, em 1859, o imperador d. Pedro II outorgou-lhe o ttulo de visconde de So Loureno, sabendo-se que o esmagamento da rebelio escrava figurou entre os servios que o credenciaram nobilitao. Por todo o ano de 1835 e ainda depois, a vigilncia e a represso contra a escravatura continuaram rigorosas. Os batuques ficaram durante anos proibidos, as patrulhas armadas de cidados percorriam a cidade noite, escravo algum podia depois da Ave-Maria andar na rua sem passaporte do senhor. Em maio de 1835, o legislativo provincial estabeleceu uma poltica permanente em cada distrito. Em agosto do mesmo ano, o presidente da provncia publicou o "plano de segurana pblica em qualquer ocasio de incndio, tumulto ou insurreio de escravos". O parlamento emendou em junho de 1835 o Cdigo de Processo Criminal, revogando o dispositivo que exigia a unanimidade para a imposio da pena de morte. Quando o ru fosse escravo, a condenao poderia ser proferida por apenas dois teros de votos. No caberia recurso algum da deciso condenatria do jri, nem poderia o condenado usar da petio de graa. desencadeou-se uma campanha contra os libertos. Em discurso de 3 de maro de 1835, o presidente da Bahia, Francisco de Souza Martins, afirmou que era necessrio "fazer sair do territrio brasileiro todos os libertos africanos perigosos nossa tranquilidade". Isso porque "esses indivduos, no tendo nascido no Brasil e possuindo lngua, religio e costumes diferentes, mostrando-se inimigos de nossa tranquilidade no curso dos ltimos acontecimentos, no devem mais gozar das garantias asseguradas pela constituio aos cidados brasileiros". O pedido de deportao dos africanos libertos fora formulado a 14 de fevereiro e j a 4 de maro de 1835 era deferido pela Regncia. Trata-se de documento edificante, merecendo transcrio integral: "Ilustrssimo e Excelentssimo Senhor. Levei ao conhecimento da Regncia, em Nome do Imperador o Sr. D. Pedro II, o contedo do ofcio de V. Excia. N 7 datado de 14 de fevereiro passado, no qual expon do V. Excia. o temor que se tem apoderado da populao dessa Cidade, em consequncia da revolta de Africanos na noite de 24 para 25 de janeiro ltimo, exige do Governo Imperial algumas medidas extraordinrias que, sem ofensa das Leis, dos Tratados, e princpios gerais do Direito das Gentes, se podem, e devem quanto antes tomar para dar a maior segurana Provncia, e sossegar os espritos receosos da impunidade dos mesmos Africanos, visto que tendo sido cometido o crime nas trevas da noite, no era fcil achar contra todos os criminosos provas bastantes para a condenao; e sobre este objeto por Ordem da Mesma Regncia tenho de responder a V. Excia. o seguinte: 1 Que fica V. Excia. autorizado para fazer deportar ou desterrar para fora do Imprio quantos Africanos libertos forem suspeitos por indcios de terem tido parte naquela revolta, ainda quando pelo motivo acima citado sejam absolvidos pelo jri da Cidade, ou das Vilas da Provncia, por deficincia de prova para a condenao. 2 Que quanto aos escravos constitudos nas mesmas circunstncias, no consinta V. Excia. que saiam das prises, sem que por ordem de V. Excia. o Promotor Pblico obrigue os Senhores a assinarem termo de segurana em que afiancem sua futura conduta na forma dos artigos 123, 124, 125 e seguintes do Cdigo de Processo Criminal. 3 Que d V. Excia. as mais enrgicas providncias para que no saiam dessa provncia para aqui, ou para outra qualquer, africanos envolvidos em tal revolta, e que o interesse individual sempre inimigo do pblico, tente subtrair s pesquisas das Autoridades Policiais, ordenando que nenhum escravo embarque sem guia ou licena do Chefe de Polcia, dada sobre folha corrida por todos os Escrives de Paz do lugar. 4 Finalmente, que quanto importao de novos Africanos, que continua na Provncia, por ora nada mais se pode fazer seno cumprir as Leis e Tratados existentes com todo o rigor, enquanto se no podem obter meios mais fortes e decisivos, que o que no cessa de solicitar de todas as Naes civilizadas da Europa e da Amrica, e reclamar da Assemblia Geral. A Regncia espera do reconhecido zelo e inteligncia de V. Excia. a mais pronta e rigorosa execuo das providncias acima. Deus Guarde a V. Excia. Palcio do Rio de Janeiro em 4 de maro de 1835 - Manoel Alves Branco". No se sabe ao certo quantos foram deportados. H informaes de que pelo menos em um navio embarcaram cerca de 400 africanos libertos, homens e mulheres. Em junho do mesmo ano, os deputados baianos na Cmara dos Deputados pleitearam a fundao de uma colnia na costa da frica para onde se pudessem mandar todos os negros que se alforriassem da por diante ou que apenas fossem "suspeitos" de intenes de se rebelarem. Ainda no mesmo ano, o presidente da provncia fazia ver ao Ministro da Justia que os libertos eram "os mais perigosos insufladores de rebelies", tachando-os de "perigosos hspedes" que "aumentavam cada dia o perigo das insurreies". Conclua pedindo autorizao para enviar frica todos os negros livres, ou seja, mesmo os nascidos no Brasil. Os acontecimentos de Salvador criaram um clima de apreenso entre os senhores-de-escravos de todo o pas. A assemblia provincial do Rio de Janeiro manifestou o receio de que na capital do Imprio ocorressem fatos anlogos: "Uma insurreio de escravos parece ameaar de runa total no somente esta bela parte do Imprio, mas tambm todas as outras provncias". A presena de to grande nmero de escravos libertos representava uma sria ameaa: " evidente para todos que as doutrinas haitianas so pregadas aqui, que os escravos so atrados pelo desejo de liberdade e incitados por malignos espritos nacionais e estrangeiros, do interior e do exterior, a participar de movimentos semelhantes ao do funesto exemplo da Bahia; h na Corte sociedades secretas que trabalham sistematicamente nesse sentido; h caixas a que contribui um grande nmero de scios de cor, livres e cativos; destas caixas provm os subsdios com os quais so mantidos e enviados os emissrios encarregados da propagao de doutrinas subversivas entre os escravos das plantaes, onde se introduzem a ttulo de comerciantes e vendedores ambulantes". Conclua a moo: "A assemblia legislativa da provncia entende portanto que oportuno interditar o desembarque imprudente de escravos ladinos trazidos da Bahia e de outros portos do norte para serem vendidos aqui e fazer proibir a entrada dos africanos emancipados qualquer seja a sua procedncia. Todos os africanos capturados por barcos de guerra nacionais e estrangeiros devem ser exportados para fora da provncia". o partido monarquista, composto exclusivamente de brancos, atribua ao partido federalista, no qual militavam muitos mulatos, o propsito de se utilizar dessas revoltas de negros para massacrar os adversrios. o governo procurava dissimular a gravidade da situao dando o mnimo de publicidade aos atos de crueldade dos senhores e s reaes dos escravos. Um deputado falou na Cmara sobre o perigo representado pelos escravos da Bahia, "elementos de desordem, contrrios propriedade e parte mais ilustrada da provncia". Quando chefe de polcia da Bahia, o Baro de Cotegipe, que pelo casamento se tornara proprietrio de cerca de oitocentos escravos, pediu ao governo imperial que mandasse retirar para o Rio os libertos, pois " espantoso o nmero de africanos que entopem esta cidade". A insurreio de 1835 estimulou a luta pela abolio do trfico. Em maro de 1835, Fox, Ministro do Exterior da Inglaterra, assinalava a Palmerston, Primeiro-Ministro, que "o terror que se propaga longe e largamente atravs do Brasil, depois da ltima insurreio de negros da Bahia, tornou o presente momento favorvel para que este governo receba bem qualquer disposio melhorando e reforando a legislao contra o trfico de escravos. Os olhos de quase todas as pessoas comearam a se abrir, se no infmia do trfico de escravos, ao menos ao enorme perigo de deixar entrar no Brasil esta multido de novos africanos". Em outubro de 1835, a Sociedade de Agricultura, Comrcio e Indstria da Provncia da Bahia, apreciou projeto de Miguel Calmon du Pin sobre o estabelecimento de uma companhia de colonizao na provncia, com o propsito de promover a "introduo de braos livres" e "prevenir, com eficcia e evidente utilidade, a funesta necessidade de africanos, ou os efeitos mais funestos de exstncia de tantos brbaros neste abenoado pas". Conclua que a "ltima insurreio dos africanos, rompendo o vu da credulidade e indiferena, patenteou aos olhos de todos um abismo insondvel". Em agosto de 1836, o Dirio da Bahia advertia: "Ns sabemos certamente sem que para isso seja necessrio apresentar mais exemplos, que os escravos africanos so constantemente dispostos fuga e revolta". Nunca mais, porm, se registrou uma insurreio de escravos em Salvador. A ferocidade da represso ao movimento de 35 prostrou a massa escrava no desnimo e no pessimismo. Os negros passaram a repelir o termo mal, pois os expunha a represlias cruis; os poucos mestres cornicos que sobreviveram no encontravam proslitos. No se importaram mais negros muulmanos. No apenas os nags, mas todos os negros, abraaram o candombl, religio conformista e inofensiva que gozou primeiro da tolerncia e depois do estmulo dos senhores-de-escravos e das autoridades. A crise geral do escravismo baiano contribuiu igualmente para que no se repetissem as insurreies. A proibio de 1831, como se sabe, longe de diminuir o trfico, antes o aumentou. No se dirigiu, todavia, para as decadentes economias aucareiras, mas para as novas e florescentes economias cafeeiras do Sudeste. Declinou assim na Bahia a importao de escravos novos, os mais propensos revolta, e dada a baixa natalidade a populao escrava baiana comeou a envelhecer. A partir da efetiva proibio do trfico em 1850, o peso da escravatura no conjunto da populao baiana diminuiu de maneira bastante acentuada. A proibio fez subir enormemente o preo dos escravos, que se venderam por mais que o dobro do preo. "Subindo o preo dos escravos, dobrou essa espcie de riqueza no norte", declarou um deputado na Cmara. Essa mesma desvalorizao do escravo contribuiu, no entanto, para um maior debilitamento do escravismo baiano. Somente a economia cafeeira em plena expanso podia pagar os altos preos alcanados pelos escravos. Durante os anos do trfico interprovincial a Bahia perdeu para o Sudeste uma mdia anual de cerca de trs mil escravos jovens e robustos. Crianas, filhas de escravos e libertos, foram sequestradas para serem vendidas no Sudoeste. Nas feiras de Sorocaba trocavam-se escravos por bestas. Os polticos nordestinos, alarmados ao ver suas regies se despovoarem de escravos, promoveram medidas para cercear o trfico interprovincial. O resultado foi um extraordinrio florescimento do contrabando. Da Bahia se faziam grandes descimentos pelo serto e pelo So Francisco. Para burlar o imposto incidente sobre o trfico interprovincial, muitos senhores baianos levaram seus escravos como serviais nas viagens ao Sudeste e a os usavam como moeda para despesas e negcios. O eixo do escravismo e, por consequncia, do protesto escravo, se deslocou para o Sudeste. XVII - A ideologia religiosa muulmana agremiou e conduziu luta escravos africanos de diferentes etnias. A grande atrao que essa ideologia exercia sobre eles provinha certamente do dogma cornico de que nenhum muulmano podia ser escravo ou escravizar um "irmo". Nisso o islamismo contrastava com as religies africanas, que admitiam a escravizao de membros da mesma etnia; muitos escravos haviam sentido isso na prpria carne. No tiveram os muulmanos igual xito em relao aos escravos crioulos. No houve adeso de crioulos, nem tentativas de alici-los. Mas tampouco h indicaes de hostilidade recproca. Conformados com seu destino e acomodados a uma vida na qual gozavam de bastante liberdade, no viam motivos para lutar e morrer; demais, haviam aderido ideologia religiosa catlica, o que os fazia repelir o islamismo. Serve o fato para desautorizar a noo idealista de que todo explorado e oprimido, s devido a esta condio, est sempre pronto a lutar pela sua emancipao. Por conseguinte, tratava-se de insurreies antiescravistas protagonizadas por escravos africanos. Assim tambm, a ideologia muulmana induziu negros libertos a lutarem ao lado de escravos, caso nico na histria da escravido brasileira. A nvel ideolgico-religioso, esta posio dos libertos advinha do preceito cornico de que um muulmano devia lutar para libertar o "irmo" escravizado. No fundo, expressava um protesto social contra uma condio tanto mais humilhante quanto que eram homens instrudos e conscientes de sua superioridade. Todavia, o proselitismo muulmano apenas conquistou libertos africanos. As medidas repressivas adotadas no deixam quaisquer dvidas quanto a isso. Conforme se viu, os libertos crioulos demonstravam uma forte animadverso aos muulmanos. Sempre foram os delatores das conspiraes. Os motivos deste antagonismo no aparecem suficientemente claros, e sua elucidao depende de um aprofundamento da investigao histrica. O projeto dos insurretos se resumia em massacrar os brancos e os mulatos, e em seguida regressar frica. O dio aos mulatos se devia a que estes estavam integrados no sistema escravista, quer como senhores de-engenho, quer como funcionrios e militares, votando grande desprezo aos negros, e s vezes maltratando-os mais que os prprios brancos. Mulatos dos quais dizia Vilhena que "queriam ser fidalgos, muito fofos e soberbos, pouco amigos dos negros". No projetavam transformar a sociedade em benefcio de todos os explorados e oprimidos; numa palavra, no tinham um projeto revolucionrio. De todo modo, sua luta configurava objetivamente uma luta contra a escravido. O discurso dos insurretos no era poltico, mas messinico. A maneira quase suicida com que se lanavam luta, desprezando o perigo e imolando a vida, oferece a imagem perfeita do fhad. Por ltimo, estas insurreies ilustram ao vivo aquilo que j sabamos atravs de toda histria da escravido brasileira, a saber, que a sociedade escravista vivia em estado de terror permanente. O medo das insurreies escravas assombrava as noites dos brancos. Como dizia o cronista colonial de Palmares, o escravo constitua o "inimigo de portas a dentro". 9. Impotncia revolucionria dos escravos I - A impotncia revolucionria marca tragicamente as lutas dos escravos. Estas lutas indubitavelmente prejudicavam e sobressaltavam o sistema, mas na verdade o deixavam intato. Tratava-se de lutas repetitivas e sem esperana que no conseguiam subjugar e transformar a sociedade. A supresso da escravatura foi essencialmente determinada pela interveno de um elemento externo, a saber, as presses inglesas para a cessao do trfico, o que por sua vez originou a degradao do sistema e afinal sua morte por obsolescncia. A impotncia da massa escrava para derrubar o sistema e se libertar coletivamente provinha da extrema debilidade de uma classe - a classe escrava existente no interior do estamento escravo. semelhana de todas as formaes sociais pr-capitalistas, a formao escravista brasileira se organizava estamentalmente antes de se organizar em classes. A lei atribua aos indivduos uma condio jurdica na sociedade, de acordo com o nascimento, distinguindo duas grandes condies estamentais, a saber, a dos homens livres e a dos escravos. Afora estas, apareciam duas outras condies estamentais: a dos libertos e a dos ndios aldeados. Os libertos no eram homens livres na acepo integral do termo, mas ex-escravos submetidos a mltiplas restries estabelecidas pela lei. Os ndios aldeados viviam numa condio semi- servil, sob a jurisdio dos padres, cmoda no espiritual e parcial no temporal. A escravido apenas por si no configurou jamais um modo de produo. No se pode falar em modo de produo escravista seno nas sociedades em que prevalecia um sistema de produo social baseado no trabalho escravo, caso do Brasil. vista disso, os escravos enquanto apenas escravos, no compunham uma classe social. Apenas na medida em que participavam do processo produtivo que se estruturavam como tal. Nem todos os escravos, pois, faziam parte dela. A existncia de escravos pressupunha logicamente a da instituio jurdica da escravido, ou seja, a propriedade do homem pelo homem. Esta instituio jurdica da escravido, entretanto, apenas por si no fazia dos escravos uma classe. Bem assim, a condio livre no constitua os indivduos em classe. Sequer os proprietrios de escravos formavam, apenas devido a isso, uma classe. Estruturavam-se como classe social os proprietrios que participavam do processo produtivo, mediante a explorao econmica do trabalho escravo. Afora a propriedade dos meios de produo - terras, matrias-primas, jazidas aurferas ou diamantferas, instrumentos de trabalho - tinham a propriedade do prprio homem-trabalhador. Todos os membros desta classe possuam um bom nmero de escravos que no eram explorados na produo, como os domsticos e outros que prestavam servios de natureza pessoal. A classe dos escravos, portanto, era constituda pela massa de produtores diretos: classe extraordinariamente dbil, sua mesma debilidade dando a medida da fora da classe senhorial. II - A ausncia de unidade tnica sobressaa como causa primeira dessa debilidade: a massa de escravos proletrios se caracterizava por uma catica heterogeneidade tnica. Quando teve incio o trfico de escravos, os povos da frica Negra ainda no haviam chegado a se constituir em naes. O que havia no Continente Negro eram etnias, ou seja, comunidades lingusticas e culturais que ocupavam determinados espaos geogrficos. Nas regies mais evoludas, como a sudanesa, despontavam formas embrionrias de nacionalidades, porm nada que em rigor se pudesse qualificar como tal. Vicejava um nmero incalculvel de etnias e entre elas lavrava permanentemente hostilidade ditada sobretudo pela disputa de territrios. No bastasse isso, os traficantes mesclavam ainda mais a composio dos seus carregamentos, sabedores de que a identidade tnica podia contribuir para agremiar os escravos, impelindo-os luta e revolta. A histria do trfico d testemunho da ecloso de motins a bordo sempre que os traficantes deixavam de tomar esta precauo. Nas insurreies urbanas ocorridas em Salvador, a breves intervalos, entre 1807 e 1835 - por sinal, as nicas insurreies urbanas de escravos do Brasil e do Novo Mundo - os insurretos pertenciam a umas poucas etnias. ristteles frisava que "o ideal que os escravos no pertenam todos ao mesmo povo ... pois assim sero menos inclinados a se rebelar". Nestas condies, os negros de uma plantao ou mina formavam um grande mosaico tnico. Dado que falavam distintas lnguas, no tinham no comeo meios de se comunicar. A seguir tinham de aprender a lngua dos dominadores - condio para poderem entender as ordens dos feitores - comunicando-se entre si numa lngua estranha. o sistema pouco a pouco os despojava de sua identidade tnica e os submetia a um processo de desintegrao cultural. Ao mesmo tempo, estes escravos se antagonizavam em funo de arraigadas e exacerbadas animadverses oriundas da sua prpria histria africana. No raro, um escravo fora subjugado pelo povo de seu companheiro de trabalho e sofrimento. o dio levava-os frequentemente a delatarem as conspiraes de outras "naes". o fracionamento e a disperso geogrfica se erguiam como obstculos praticamente insuperveis organizao da massa escrava proletria. Distncias muito considerveis separavam as plantaes, agravando a incomunicao entre escravos. Submetidos feroz vigilncia dos feitores, no tinham como entrar em contato com os companheiros de outras plantaes para a organizao de uma revolta. Quando se insurgiam, precisavam percorrer enormes distncias para se articular aos escravos de outras propriedades, dando assim tempo s foras da represso para se mobilizarem. Finalmente, a prpria inacessibilidade dos centros do Poder Escravista tornava materialmente impossvel qualquer tentativa de tomada do poder. No restava portanto aos rebeldes outra alternativa que a da fuga para o mato e a organizao de quilombos. Somava-se a isso a transitoriedade da participao do escravo na classe, em consequncia da constante renovao do contingente explorado na plantao ou na mina. A renovao obedecia por sua vez ao propsito de manter os ndices de produtividade. Isto porque a taxa de depreciao do escravo produtivo no ficava por menos de 6% ao ano, o que tinha como resultado que em 10 anos seu valor se reduzia a 40%, na melhor das hipteses. A renovao se fazia mediante a aquisio dos chamados escravos novos incessantemente trazidos pelos traficantes. o escravo substitudo se separava da classe e o recm-chegado demorava a estabelecer vnculos de classe. A transitoriedade da participao na classe obstava transmisso de experincia de luta, bem como formao de uma conscincia de classe e de quadros dirigentes. Bastava que um escravo manifestasse tendncia rebeldia ou capacidade de liderana para ser imediatamente punido e vendido, desfalcando-se assim a classe dos elementos capazes de organiz- la e lev-la luta. De resto, a inaudita dureza do sistema repressivo exercia poderoso efeito dissuasrio. Pela sua eficcia em aterrorizar o indivduo e priv-lo de qualquer vontade de luta, as plantaes e as minas escravistas prefiguravam o campo-de-concentrao dos nossos dias. Outro fator de fraqueza residia no nvel tcnico e cultural extremamente baixo deste proletariado escravo. No iam para as plantaes e as minas os chamados negros ladinos, que em seu pas de origem j possuam algum tipo de qualificao tcnica ou cultural, notadamente os de extrao urbana. Os proprietrios empregavam estes escravos, muito reputados no mercado negreiro, em atividades fora do sistema de produo econmca, o que os integrava no grupo dos escravos privilegiados. A massa de escravos proletrios se compunha dos negros chamados boais, que no geral haviam sido na frica rudes camponeses habituados opresso e explorao. No quadro do sistema escravista no havia possibilidade de que estes escravos elevassem seu nvel tcnico e cultural. Sofriam os efeitos da estagnao e do arcasmo inerentes ao sistema de produo escravista. O progresso tcnico pressupe a acumulao de experincia do trabalho por parte dos produtores diretos. Isso era obstado pela rotatividade da fora-de-trabalho e pelo desinteresse do escravo por um aumento da produo que em nada o beneficiaria. No havia por isto progresso qualitativo; a economia escravista apenas conseguia crescer quantitativamente atravs do aumento do nmero de escravos e da intensificao do trabalho. Quando o Nordeste se desescravizou em consequncia da supresso do trfico negreiro, as tcnicas de plantio da cana e da fabricao do acar eram exatamente as mesmas do sculo XVI. O atraso dos trabalhadores gerava o da economia e vice-versa, numa ulterao dialtica. Para que houvesse progresso tcnico seria em ltima anlise necessrio um alto nvel de luta de classes. Neste caso, teriam os senhores de fazer concesses aos escravos, melhorando-lhes a condio atravs da reduo do tempo de trabalho, de melhor alimentao e de outras vantagens reivindicadas. Ento, para evitar uma queda na taxa de lucro, seria necessrio que os senhores se compensassem mediante a introduo de inovaes tcnicas no processo de produo. No entanto, a debilidade dos escravos como classe social tornava sumamente baixo o nvel da luta de classe. O baixo nvel da luta de classe determinava a estagnao tcnica. III - Mais ainda, esta massa proletria vivia em quase completo isolamento social. No havia nenhuma outra categoria vitalmente interessada em abolir o sistema, porquanto todas bem ou mal viviam as expensas do trabalho escravo. A simples identidade da cor no gerava solidariedade entre os negros. Isto porque eles no se encontravam todos na mesma situao. Havia entre eles, pelo contrrio, diferenas que se sobrepunham igualdade da cor: negros livres e negros escravos; negros escravos submetidos ao terrvel trabalho das plantaes ou das minas, e negros que viviam em condies de parasitismo ou de explorao muito branda, caso de certos escravos domsticos; negros libertos que passavam fome e negros libertos que s vezes possuam nmero considervel de escravos; negros escravos expropriados de todo o fruto do trabalho, como os das plantaes e das minas, e negros escravos que auferiam uma renda monetria, como os escravos-de-ganho; enfim, do mesmo modo que no impedira na frica que se escravizassem uns aos outros para abastecer o trfico, a identidade da cor no impedia que no Brasil muitos colaborassem com os brancos para manter subjugados e oprimidos os demais negros. Tampouco a identidade da condio estamental era fator de solidariedade entre os escravos, pelo menos a ponto de soldar uma aliana para a luta contra a instituio da escravatura. As diferenas nas condies de existncia dos escravos proletrios e dos escravos domsticos, por exemplo, obstavam a uma efetiva solidariedade, quando no os convertiam em inimigos. Os escravos proletrios representavam uma forma de capital fixo e, como qualquer mquina, tinham um tempo de vida econmica, durante o qual o amo tratava de extrair o mximo possvel de lucro, submetendo-os para tanto a um trabalho extenuante, da aurora noite, sob a compulso de um sistema de terror macio e permanente. s imperativas exigncias da produo econmica, no a motivaes psicolgicas, deve atribuir-se a crueldade dos senhores. O desgaste e a morte desses escravos no representavam depois de certo tempo - em mdia cinco anos nos engenhos de acar e trs nas plantaes de caf - um efetivo prejuzo econmico para o dono. J produzira a essa altura o lucro esperado e, de qualquer modo, sua reposio estava prevista. Seja como for, o trabalho produtivo reclamava escravos jovens e robustos, a ele se destinando as levas de escravos- novos. Saa mais barato comprar um escravo que cri-lo. Um escravo domstico, ao contrrio, destinava-se ao consumo. Sua morte prematura representava um puro prejuzo. No havia lucro a extrair dele; destinava-se prestao de servio... Os senhores lhe dispensavam por isto mesmo um tratamento paternal. De mais a mais, a juventude e a robustez no eram, em relao a estes escravos, requisitos essenciais. Uma cozinheira seria como regra mais hbil aos cinquenta que aos vinte anos. Entre os escravos e amos se estabeleciam muitos laos de dependncia e afetividade. Sentimentos de compreensvel afeio medravam entre os amos e as escravas que lhes amamentavam os filhos. Um arteso muito hbil era uma raridade, custava caro e dificilmente o amo se desfazia dele. Como regra, sequer a aspirao da alforria palpitava nesses escravos. Numa economia em que praticamente inexistia um mercado de trabalho livre a alforria representava um castigo, condenando talvez o forro a morrer de fome. Por tudo isto, a massa de escravos improdutivos - uma proporo varivel entre 30% e 40% da populao escrava, segundo as regies e as pocas - formava um importante ponto de apoio da classe dominante na luta contra os escravos proletrios. No apenas se abstinham de participar das insurreies, seno que as delatavam, tomando o partido dos amos. No foi escasso o nmero dos que receberam com desgosto a abolio, optando por permanecer nas casas de seus amos. Depois da Independncia, quando adquiriram direito de voto nas eleies primrias, os libertos apoiavam candidatos escravocratas. Nabuco queixou-se do fato de muitos negros libertos "seguirem o estandarte de seus antigos senhores com um autntico esprito servil". Contribua para isso, certo, a faculdade que tinha o ex-senhor de revogar a alforria, de acordo com disposies das Ordenaes Filipinas, s derrogadas em 1871. - Que a identidade simplesmente tnica ou estamental no gerava solidariedade contra a dominao escravista, evidenciado por uma instituio peculiar da escravatura brasileira - as irmandades ne gras. Idealiza-se esta instituio como uma forma de luta contra a discriminao racial e a escravido, quando o contrrio que verdade, ou seja, ilustra a aptido do sistema para dividir a massa de oprimidos e desencorajar a luta contra os dominadores. As irmandades floresceram nos centros urbanos, compondo-se de negros libertos ou escravos domsticos e de "ganho". Havia participao de brancos, malgrado a recproca no fosse verdadeira; nas irmandades brancas, muito pelo contrrio, exigia-se prova de "limpeza de sangue", sujeitos expulso os que contrassem casamento com "pessoa infecta". Os brancos associados s irmandades negras ocupavam quase sempre posies importantes na vida econmica, social e poltica, o que indica o objetivo de control-las. Havia nelas absoluta predominncia de negros libertos. Estes libertos em geral possuam escravos, e alguns possuam na verdade muitos escravos, explorados no "ganho" ou alugados para o trabalho das minas e lavouras. Em suma: negros senhores-de-escravos, perfeitamente integrados no sistema escravista. Na Bahia, h notcia de escravos proprietrios de escravos, situao que de resto configurava uma manifesta aberrao jurdica. Se os escravos improdutivos formavam uma aristocracia escrava, por sua vez os negros das irmandades formavam uma aristocracia negra empenhada em se afirmar socialmente, atravs da construo de templos ostentosos ou da realizao de cerimnias aparatosas, tudo semelhana das irmandades brancas. A declarada finalidade das irmandades de prestarem assistncia religiosa aos escravos - batizados, missas, confisses, enterros - atendia a um importante interesse pecunirio dos senhores-de-escravos. Os padres viviam a fulminar do plpito os senhores que no davam assistncia religiosa a seus escravos; os bispos impunham pesadas multas aos relapsos e os ameaavam de excomunho. A recalcitrncia dos senhores, no entanto, se prendia s altas taxas cobradas pelos padres, iguais para pessoas livres e escravos. Desta forma, para o possuidor de grande nmero de escravos, a assistncia religiosa representava um pesado encargo financeiro. Convinha pois, fili-los a uma irmandade. Outro tanto se pode dizer das funes beneficentes das irmandades, amparando os membros em caso de doena e outras adversidades. O papel financeiro das irmandades ilustra por igual a adeso da aristocracia negra ordem escravista. Naqueles tempos de generalizada insegurana, as slidas e bem protegidas sedes das irmandades eram usadas para depsito de dinheiro. Malgrado no pagassem juros aos depositantes, as irmandades emprestavam este dinheiro a terceiros cobrando juros onzenrios. Uma das garantias exigidas na Bahia consistia no compromisso dos muturios libertos de entregarem como escravos temporrios um ou mais filhos. Do mesmo modo que as homlogas brancas, as irmandades negras possuam grande nmero de escravos, alugados para o trabalho produtivo ou diretamente explorados no ganho. As irmandades refletiam em tudo as divises sociais existentes entre os negros. Os mais endinheirados se constituam em irmandades separadas; os negros crioulos mantinham-se parte dos africanos; e, para realar a importncia dos seus membros, cada irmandade se aplicava a erguer igrejas que superassem as demais em suntuosidade. As irmandades assumiam uma postura reformista perante o sistema escravista. Promoviam a alforria dos seus membros ou advogavam medidas para melhorar a condio dos libertos ou dos escravos, mas no negavam ou contestavam o sistema escravista. Nem se poderia tal esperar, dado que como se viu tanto as irmandades como muitos dos seus membros possuam escravos. Isto explica porque que nem mesmo no auge do movimento abolicionista se fez ouvir a voz das irmandades; bem assim, explica a oposio de muitos negros forros Abolio. Na medida em que incorporavam tais negros ao sistema - no apenas pela propriedade de escravos como pela adoo da ideologia escravista -, ou atenuavam a tenso entre os brancos e negros mediante o aceno possibilidade de emancipao individual, as irmandades constituam um importante ponto de apoio dos dominadores. Desencorajavam as revoltas ou pelo menos a adeso s revoltas dos escravos proletrios. Nesse sentido, a irmandade se configurava como o antiquilombo; documentos fazem expressa meno a este papel das irmandades. No o percebendo, o historiador Augusto de Lima Junior admirou-se de que no inspirassem receio: "o que existe de curioso na histria dessas organizaes de negros que, num tempo de absolutismo e de brutalidades, ningum visse nelas uma ameaa ou um perigo segurana do Estado". J Rugendas, deu-se perfeitamente conta de que os negros livres ofereciam proteo contra as revoltas escravas: "... se o curso dos acontecimentos, a imprevidncia dos partidos ou a imprudncia dos governantes, provocarem um dia uma revolta de escravos, s ser possvel domin-los mediante o apoio da populao livre de homens negros. por conseguinte muito importante lig-los, definitivamente, por um interesse comum". Nem falar quanto a outras categorias sociais, como os brancos pobres, massa excluda e desmoralizada que vivia da caridade dos magnatas, evocando em tudo a plebe romana. Enquanto o sistema foi pujante e prspero, recebeu o apoio e a solidariedade de toda a populao no- escrava. A ideologia escravista dominava avassaladoramente todas as categorias sociais de homens no escravos. Desta forma se explica que apenas em 1880, quando a escravatura j agonizava como instituio e como modo de produo, tenha despontado um movimento abolicionista organizado. A solidez e a coeso internas da formao escravista tornavam ineficazes as contestaes escravas. A massa de escravos proletrios, pateticamente isolada, lutava contra tudo e contra todos. Por isto no se libertou; foi libertada pela interveno de foras externas. 10. O impasse histrico da formao social escravista I - Impotente a massa escrava para se libertar e desprovida de perspectiva a luta de classes, estabelecia-se um dramtico impasse histrico. A dizer verdade, se a soluo do problema da evoluo histrica dependesse exclusivamente das contradies internas da sociedade, a escravido como instituio jurdica e como base de um sistema de produo social, seria a-histrica e jamais teria desaparecido. A formao social escravista simplesmente seria eterna. Este no foi um problema exclusivo da formao escravista brasileira. Nenhuma formao escravista, na antiguidade clssica ou nos tempos modernos, teve uma classe revolucionria capaz de dirigir um processo de transformao; em nenhuma a superao do modo de produo escravista se deu em virtude de uma evoluo interna; os antagonismos de classe no conduziram em nenhum caso a uma transformao revolucionria; todas estavam submetidas a um bloqueio histrico. o que induziria concluso de que as formaes escravistas representavam uma exceo lei histrica segundo a qual as mudanas sociais so produzidas pelas contradies internas da sociedade. De fato, no se pode aplicar mecanicamente a todas as formaes sociais esta lei da revoluo social. Apangio das formaes capitalistas e ps-capitalistas, inaplicvel s formaes pr- capitalistas em geral e escravista em particular. Os historiadores que procedem a uma extrapolao retroativa, vem-se metidos num beco sem sada, sem poder provar um nico caso. No entanto, valha a surrada verdade de que a histria no prope problemas insolveis. A superao do impasse histrico das formaes escravistas se dava atravs da interveno de foras externas. Vinha isto em primeiro lugar da peculiaridade de que a reproduo da fora-de-trabalho tinha uma base externa. Na formao capitalista a reproduo se processa no seu interior atravs da natalidade. As formaes escravistas, porm, no possuam nenhum mecanismo de auto- reproduo, por isso que sua fora-de-trabalho no conseguia se estabilizar homeostaticamente no seu interior. Nisto consistia seu problema crucial. Ao mesmo tempo que se mostravam altamente destrutivas da fora-de-trabalho, no logravam reproduzi-la de forma natural, a no ser em limites extremamente estreitos. A criao de escravos se revelaria absolutamente antieconmica. A este respeito, no passa de lenda a verso segundo a qual os escravocratas do Sul dos Estados Unidos mantinham studs para a criao de escravos. Em todas as formaes escravistas a fora-de- trabalho teve que ser recrutada em reas exteriores ou perifricas mediante processos extraeconmicos, consistentes em ltima anlise na direta ou indireta conquista e submisso de outros povos. Nestas condies, desde que possussem fontes regulares e permanentes de aprovisionamento de fora-de-trabalho, as formaes escravistas durariam eternamente. Isto porque, como se viu, gozavam de uma coeso e solidez interiores que obstavam ao aparecimento de uma classe revolucionria. Nessas formaes no havia evoluo, e a revoluo filha da evoluo. Aquilo, no entanto, que lhes conferia fora, constitua igualmente seu calcanhar-de-Aquiles e fator bsico da ruptura. o caso da formao escravista romana ilustra vivamente este tipo peculiar de contradio. o imprio Romano se aprovisionava de escravos mediante incessantes guerras contra povos da periferia. Contudo, a partir de determinado momento essa forma de reproduo se tornou crescentemente difcil e afinal impossvel. A pax-romana ps fim s revoltas dos povos subjugados, pretexto para sua escravizao. A soluo residiria na busca de escravos no meio tribal circundante, mas este manifestou depois de Trajano uma vigorosa e feroz resistncia, para afinal iniciar uma tenaz presso sobre as fronteiras do Imprio. certo que o afluxo de escravos no cessou e at mesmo por vezes se avolumou, alimentado j agora no pela guerra, mas pela pirataria ou pela compra nas fronteiras. o resultado foi uma violenta alta de preos dos escravos. No I e no II sculos da nossa era estes preos se tornaram entre oito e dez vezes superiores aos dos dois sculos antes de Cristo. Essa forma de abastecimento, portanto, longe de resolver o problema, apenas serviu para agrav-lo. o escravismo sofreu uma degradao na sua base econmica e passou a sustentar uma desesperada luta pela sobrevivncia. Os senhores-de- escravos romanos procuraram compensar a diminuio do abastecimento de escravos mediante uma tentativa de aumentar a produtividade. Nesse sentido, adotaram medidas que suavizaram e melhoraram a condio dos escravos, como peclio, prmios em dinheiro, promessas de alforria, casamento entre escravos, etc. Semelhantes reformas tinham no entanto um alcance limitado, apenas paliando a crise sem resolv-la; de mais a mais, configuravam um processo de desescravizao. A degradao da base econmica determinou uma forte crise da superestrutura poltica, ensejando uma multiplicao de revoltas escravas que causavam perturbaes e prejuzos, malgrado se mostrassem impotentes para destruir o sistema e transformar revolucionariamente a sociedade. A crise apenas se resolveu atravs da interveno de um elemento exterior, representado pelas hordas "brbaras". Elas invadiram o Imprio, desmantelaram o Estado Escravista e originaram o aparecimento de um novo modo de produo. Marx no parece haver alimentado dvidas de que a superao da formao escravista romana no resultou de uma evoluo interna, mas da destruio violenta efetuada pelos "brbaros". Engels sustentou expressamente que o modo de produo escravista romano se encontrava "exangue", num "impasse sem sada", privado de toda "capacidade de desenvolvimento" e incapaz de encontrar em seu seio o princpio de uma transformao positiva, o que imps a necessidade de uma "soluo externa" e uma "contribuio exterior". Na historiografia do escravismo romano prevalece hoje um consenso sobre isso. Num ensaio clssico, Kovaliov demonstrou que a debilidade das foras produtivas e das classes antagnicas criou "a necessidade histrica da conquista exterior, que assestou o golpe decisivo". Do mesmo modo, lpatov sustenta que "a decomposio do sistema escravista romano proveio de foras de fora das suas fronteiras". Shtaermann no menos peremptrio quando acentua que a crise se aguou pela "redobrada presso dos brbaros", que liquidaram o sistema depois de sucessivas "ondas de conquista". Para Samir min, a "periferia brbara" do Imprio suscitou um "processo social evolutivo a um estado superior". No seu soberbo estudo sobre a passagem da antiguidade clssica para o feudalismo, Perry Anderson sublinhou que "foras vindas do exterior assestaram o golpe de graa" no escravismo romano. Sem negar o importante papel, desempenhado pelos movimentos sociais no interior do Imprio, principalmente as revoltas escravas e as presses dos estratos sociais acessrios, todos so unnimes, no entanto, em que no se pode falar de uma "revoluo de escravos", ou seja, uma revoluo da classe explorada que era produto especfico das relaes de produo escravistas. II - A insurreio haitiana - nica insurreio vitoriosa de escravos que a histria registra - confere igualmente validez teoria da interveno do elemento exterior. No este o lugar para reconstituir as condies extremamente peculiares do escravismo haitiano que possibilitaram o xito daquela insurreio. Alguns dados, no entanto, so imprescindveis para a compreenso do processo. o escravismo haitiano vicejou num territrio incrivelmente minsculo - apenas um tero da ilha de Santo Domingo, ou seja, 27.500 quilmetros quadrados, uma rea correspondente a cerca de 28% do territrio atual do Estado de Pernambuco. No bastasse isso, 80% do territrio era montanhoso e imprprio para a agricultura. No obstante isso, os franceses converteram aquele territrio na mais rica e prspera colnia das Antilhas. Na vspera da Revoluo Francesa, produzia metade do acar consumido pelo mundo; o comrcio sobrepujava em valor o das treze colnias que viriam a constituir os Estados Unidos; em 1789 proporcionou Frana cerca de 82% do total de suas riquezas coloniais. A produo escravista do Haiti foi, ajuzo de Georges Lefevre e lbert Soboul, o principal fator de enriquecimento e fortalecimento da burguesia francesa, capacitando-a a empreender a Revoluo. Este fulgurante xito econmico foi possibilitado pela conjugao de condies naturais privilegiadas e fora-de-trabalho escrava excepcionalmente barata e abundante. o solo haitiano tinha uma fertilidade cinco vezes superior das colnias inglesas das Antilhas; no ano de 1787 a colnia francesa importou cerca de 40 mil escravos, o que correspondia a uma renovao anual de 8% da fora-de-trabalho, contra a importao de 12.000 escravos pelo Brasil, 1% da fora de-trabalho; a esta altssima taxa de renovao somava-se o custo consideravelmente inferior dos escravos haitianos, em mdia 70% mais baratos que os brasileiros. Outra singularidade residia numa superioridade demogrfica negra sem paralelo em qualquer outra regio do Novo Mundo. Havia cerca de 500.000 escravos numa populao total de 558.000 habitantes e desses escravos cerca de 2/3 haviam nascido na frica. Uma vez que o restante da populao se compunha de 30.000 brancos e 28.000 mulatos libertos, os escravos perfaziam cerca de 90% do total de habitantes, num tempo em que no Brasil os escravos formavam 48,6% do total. Contavam-se 17 escravos para cada branco. Esta enorme massa escrava, concentrada num minsculo territrio, no tinha contra si, como os escravos brasileiros, a desvantagem da disperso e da comunicao. Cerca de 80% dos escravos desempenhavam trabalho produtivo, contra mais de metade no Brasil. Em tudo mais os escravos haitianos padeciam das debilidades inerentes sua classe em todas as formaes escravistas. Insurgiam-se de forma idntica dos escravos brasileiros, criando nas montanhas selvticas estruturas sociais semelhantes aos quilombos. O estmulo de fatores externos, no entanto, permitiu-lhes organizar uma insurreio geral. A classe dominante local se compunha de brancos e mulatos em nmero quase igual. Os mulatos, embora grandes proprietrios de terras e escravos, viviam numa situao estamental de inferioridade civil e poltica, o que dava causa a um violento antagonismo entre as duas etnias. Ao estalar a Revoluo na Frana, os escravocratas mulatos invocaram para si - no para os escravos e os negros em geral - a igualdade proclamada pela Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado; mas a assemblia francesa, cedendo s presses da escravocracia branca do Haiti, negou a pretendida igualdade. Os mulatos, em resposta, tentaram em outubro de 1790 uma insurreio facilmente esmagada. A diviso dos dominadores sempre uma das condies para a insurgncia dos dominados. Em meados de 1791 os escravos se insurgiram. Incendiavam, matavam e depredavam sem cessar, no poupando nada nem ningum que de qualquer forma simbolizassem seus sofrimentos. Ao fim de quatro meses de ao destrutiva, anrquica e inconsequente, viram-se sem condies de luta, ceifados pela fome e pelas doenas, sem armas nem munies. A insurreio caiu num ponto-morto. Sobreveio, ento, a ajuda da Espanha. Havia guerra entre Espanha e Frana; interessados em fomentar uma insurreio que causasse complicaes aos franceses, os espanhis forneceram armas, munies e vveres aos escravos. Apesar disso, a insurreio no realizou progressos significativos. A sorte apenas mudou verdadeiramente quando os ingleses invadiram Santo Domingo em setembro de 1793. A conquista da rica colnia francesa se inscrevia entre as ambies da Inglaterra, que decidiu tirar proveito das dificuldades da rival - a braos com a revoluo e a guerra externa - invadindo a ilha com uma expedio de mais de 20 mil homens. Para no perder a colnia, a burguesia francesa buscou o apoio dos escravos, abolindo a escravatura. o governo francs outorgou a patente de general ao chefe negro Toussaint Ouverture e lhe forneceu material blico. Em 1797 o general negro consumou a definitiva expulso dos invasores ingleses e espanhis. Dois anos depois assumiu em nome do governo francs toda autoridade na ilha. Toussaint Ouverture teve de pagar burguesia francesa o preo da ajuda. Impediu que os negros repartissem entre si as terras da ilha; os brancos receberam de volta seus latifndios; a pretexto da necessidade de trabalhadores para as plantaes, restabeleceu o trfico de escravos. Os trabalhadores negros se viram submetidos a um regime de trabalho compulsrio supervisionado pelo exrcito; confinados nas plantaes e sujeitos a cruis punies em caso de abandono, trabalhavam das 5 da madrugada s 5 da tarde, como nos tempos da escravido. o general negro se fez nomear governador vitalcio e formou uma assemblia cujos membros escolhia segundo um critrio puramente pessoal. Sequer assim a burguesia francesa se deu por satisfeita: apenas a escravido pura e simples permitiria restabelecer os antigos ndices de produo. Em 1801 Napoleo despachou contra Santo Domingo poderosa expedio de 20 mil homens comandada por seu cunhado Leclerc. Derrotado e preso, Toussaint foi encerrado nas geladas montanhas do Jura, onde morreu em 1803. A independncia efetiva do Haiti se consumou pouco mais de oito meses depois, sob a chefia do general negro Dessalines. Os negros, porm, estagnados numa arcaica economia de subsistncia e explorados por despticas minorias mulatas ou negras, passaram a viver num estado de semiescravido. Haviam feito uma insurreio, no uma revoluo. III - Claro que as foras que minavam e afinal destruram o escravismo eram exteriores apenas formao social; por outras palavras, emanavam de outra formao social, diferena do que se d por exemplo na formao capitalista, onde as contradies que determinam a mudana se incubam e medram no seu interior. No se diz que fossem exteriores estrutura poltica em que vicejava o escravismo. A supresso do escravismo do Sul dos Estados Unidos no se deu em virtude da interveno de foras ou interesses extracontinentais. Tanto as foras e os interesses escravistas como os antiescravistas se situavam na mesma estrutura nacional edificada no curso da guerra da Independncia. No interior da mesma entidade nacional coexistiam modos de produo to antagnicos que tornavam absolutamente precrios os vnculos da unidade poltica. Em termos esquemticos, o capitalismo do Norte no podia prosseguir seu processo de expanso sem romper as travas que o escravismo do Sul opunha uniformizao do mercado interno, diversificao da produo e ampliao das necessidades econmicas. Para que o capitalismo nortista pudesse estabelecer a supremacia de seus interesses, tinha primeiro de assumir o controle do poder poltico central, compartilhado pelas duas classes dominantes desde a Independncia. A eleio de Lincoln assegurou aos capitalistas a hegemonia poltica nos Estados Unidos. Ento, ante a evidncia de que a burguesia do Norte estava completamente decidida a liquidar o escravismo, os sulistas levantaram o estandarte da secesso. Organizaram seu prprio Estado no Sul, condio para se assegurarem a posse do poder poltico e preservarem o sistema escravista. Os escravos no se revoltaram no curso da guerra, limitando-se a aderir aos exrcitos nortistas quando estes chegavam. Seria incorreto dizer que os escravos no contriburam para o enfraquecimento do escravismo do Sul. O perodo anterior guerra civil conheceu inmeras insurgncias, sobressaindo a de Nat Tumer na Virgnia em 1831, com o saldo de 57 brancos mortos, e a de John Brown, em que os revolucionrios brancos e negros se uniram para lutar contra a escravido. A queda do sistema escravista do Sul, no entanto, deve ser atribuda fundamentalmente interveno de uma fora externa, ou, como diz Eugene Genovese, "s baionetas da burguesia do Norte". IV - O desaparecimento do escravismo brasileiro reproduziu o processo geral. Do mesmo modo que nos casos anteriores, foi um elemento exterior que desagregou o sistema. O elemento exterior foi aqui a presso inglesa, exercida de maneira mais enrgica que em qualquer outro pas do Novo Mundo. Tornou-se necessrio nada menos que a penetrao de canhoneiras inglesas nos portos brasileiros, apreendendo e metendo a pique os navios negreiros, para que o trfico cessasse. " irrisrio pensar que sem o terror do cruzeiro ingls teramos podido aniquilar de um golpe o poder do trfico", sublinhou Joaquim Nabuco. Suprimido o trfico, no se fez tardar a crise do sistema escravista: crise aguda que se traduziu num rpido processo de desescravizao. Para comear, a desescravizao a nvel regional. O deslocamento do centro de gravidade econmico do sistema, do Nordeste para o Sudeste, determinado pela ascenso do caf como produto mais importante nas exportaes brasileiras (49% do total em 1850, contra 21% para o acar e 6% para o algodo, proporo essa modificada na dcada de 1871/80 para 47%, 12% e 4,2% respectivamente), suscitou o trfico interprovincial em benefcio da regio que possua maior poder de compra. Como consequncia, o Nordeste que nos tempos coloniais possura mais de 70% do total de escravos do pas, viu-se reduzido em 1874 a menos de um quarto; as quatro provncias cafeeiras, enquanto isso, possuam naquele ano 3/4 do total de escravos do pas e mais que o dobro do Nordeste. O trfico interprovincial desescravizou a seguir o Extremo-Norte e o Extremo-Sul. Nessas regies desescravizadas, houve em consequncia a substituio das relaes de produo escravistas por relaes de produo semi-servis ou assalariadas. Isto contraiu a base geogrfica, econmica e social do escravismo. A seguir, a desescravizao a nvel demogrfico. Em 1810, os escravos perfaziam 53% da populao. Quarenta anos depois sua participao no conjunto da populao decrescera para 18%; em 1874, formavam apenas 15,8% da populao e, dez anos depois, a proporo cara para 9%; no ano da Abolio, os escravos compunham apenas 5% da populao. Simultaneamente, decrescia a proporo entre homens e mulheres na populao escrava. Nos tempos do trfico internacional, a proporo fora de maneira geral de 3 ou 4 homens para uma mulher. Em 1884, j era quase igual o nmero de homens e mulheres; em certas regies, o nmero de mulheres j superava o de homens. Outrossim, a populao escrava envelhecia e morria; entre 1871 e 1884, a morte dizimou meio milho de escravos. Isto autorizava a afirmao de Joaquim Nabuco de que "a escravido est acabando no Brasil, mas isso se d porque os escravos esto morrendo". o Visconde de Jequitinhonha, por sua vez, podia sustentar em 1885 a desnecessidade da abolio "porque a mortalidade dos escravos dar a extino da escravatura em vinte anos". Ao mesmo tempo, desescravizao a nvel jurdico e social. No empenho de preservar e se possvel multiplicar a existente fora-de-trabalho, mitigou-se o princpio do utere et abutere - o poder do amo de dispor irrestritamente da pessoa do escravo. Semelhante prtica apenas se justificava quando havia pletora no suprimento de escravos. Os prprios proprietrios tomaram iniciativas: menos tempo de trabalho, melhor alimentao e atenuao dos castigos; generalizao da prtica do escravo-de-ganho nos centros urbanos e da alforria mediante contrato de servios no meio rural. Mais importantes foram as medidas adotadas pelo Estado Escravista no sentido de reformar a instituio para melhor preserv-la ou, na pior das hipteses, prolong-la. o uso do chicote contra os escravos condenados a trabalhos forados foi proibido; limitou- se o nmero de aoites com que o senhor podia castigar o escravo e afinal se proibiu o prprio aoite; reconheceu-se ao escravo o direito de formar peclio, e receber doaes, legados e heranas; admitiu-se que demandasse o amo e prestasse testemunho contra ele em processos criminais; assegurou-se-lhe o direito alforria mediante depsito do preo; permitiu-se que contratasse seus servios com terceiros mediante aprovao do senhor; estabeleceu-se a obrigao de cuidados escrava grvida, aos recm-nascidos e s crianas; proibiu-se a venda separada de escravos casados e seus filhos com menos de 15 anos; ampliou-se o elenco de faltas submetidas apreciao da justia, que de resto passou a proteg-los atravs de sutis construes jurisprudenciais. Em consequncia de tudo isso, a escravido desaparecia em sua forma pura e perdia sua feio clssica. Por ltimo, o Estado Escravista empreendeu, atravs da Lei dos Nascituros, ou Lei Rio-Branco, de 1871, uma desesperada tentativa de estimular a natalidade escrava. Este tentame se traduziu na disposio que assegurava ao proprietrio uma polpuda indenizao, paga pelo Estado, quando as crianas escravas atingissem os oito anos de idade; caso o proprietrio no se quisesse desfazer do nascituro, poderia explor-lo at os 21 anos de idade. A prpria natureza do sistema, no entanto, exclua a possibilidade de uma reproduo natural da fora-de-trabalho escrava. Na altura de 1885, a instituio agonizava. Foi nisso que os proprietrios das provncias cafeeiras, sobretudo os de So Paulo, atravs da Lei Saraiva-Cotegipe decidiram extinguir a escravatura, fazendo-se indenizar generosamente com os recursos do Fundo de Emancipao, baseado na imposio de uma taxa de 5% sobre todos os impostos, menos o de exportao. Inconformadas em pagar a indenizao generosa aos proprietrios das provncias cafeeiras, as elites dominantes das provncias que virtualmente j no mais tinham escravos, precipitaram a Abolio pura e simples em 1888. 11. O reformismo escravista I - o regime escravista serviu-se habilidosamente da lei chamada dos Nascituros, do Ventre Livre ou Rio Branco, para tentar convencer a opinio abolicionista do Brasil e da Europa de que se tratava de um passo decisivo no sentido da supresso da escravatura. o projeto foi redigido em segredo e, antes de sua apresentao ao Parlamento, enviado considerao da Sociedade Emancipadora de Londres. Aps sua aprovao, os agentes diplomticos brasileiros propalaram na Europa que a lei praticamente extinguia a escravatura. Os abolicionistas brasileiros se deram de uma maneira geral por satisfeitos com a lei. "A ela se tinha seguido uma trgua dada escravido", admitiu Joaquim Nabuco. Tanto assim que o lder abolicionista dedicou os dois anos seguintes composio de um drama, em versos e em francs, sobre os horrorosos sofrimentos dos habitantes da Alscia-Lorena sob o jugo prussiano. Na realidade, a lei foi uma clarividente tentativa de reformar a instituio para lhe prolongar a existncia. Na justificao do projeto, o governo admitiu veladamente este objetivo, ao declarar que visava a "reestabilizar a vida econmica e social do pas, reparar os danos causados pela polmica em torno da escravatura e revitalizar o crdito agrcola". H semelhana impressionante entre as providncias preconizadas por essa lei e as que foram adotadas pelo escravismo romano na sua fase de decadncia; o legislador brasileiro parece haver-se inspirado diretamente no direito romano. No se pode fugir concluso de que a libertao dos nascituros teve entre suas finalidades essenciais o estmulo natalidade negra. Como consequncia da supresso do trfico e da incapacidade do sistema para reproduzir a fora-de-trabalho pela natalidade, a crise se tornara dramtica. Em 1800, depois de uma importao de 2.600.000 negros durante dois sculos e meio, a populao escrava no passava provavelmente de 1.500.000. Em meio sculo, entre 1800 e 1850, importaram-se pelo menos 1.350.000 escravos; apesar disso, em 1874 a populao escrava continuava a mesma de 1800, ou seja, 1.500.000. A participao dos escravos no conjunto da populao desvenda ainda mais claramente a degradao da base econmica do escravismo. Em 1810 os escravos perfaziam cerca de 53% da populao. Quarenta anos depois, em 1851, sua participao decrescera para 18%; naquele perodo, enquanto isso, o nmero total de habitantes crescera de 3.618.000 para 8.430.000. Com a cessao do trfico, caiu ainda mais rapidamente o peso demogrfico da escravatura. Em 1874, formava apenas 15,8% da populao, e, dez anos depois, a proporo cairia para 9%. No ano da abolio, numa populao de 14.000.000, haveria 710.000 escravos, 5% do total. A baixa taxa de natalidade se devia em parte resistncia da prpria mulher-escrava. No se interessava em dar luz um novo escravo para favorecer o amo, um filho de que podia a qualquer momento ser separada. Desenvolvera por isso eficazes mtodos anticoncepcionais e recorria largamente ao aborto. A lei de 1871 buscou interessar a escrava na natalidade. A partir da, seu filho nasceria legalmente livre, e depois dos 21 anos se tornaria livre de fato. Mais ainda, estabeleceu-se a possibilidade de remisso do nus de servir at os 21 anos. Se obtivesse a liberdade, a escrava teria direito posse do filho. Em caso de alienao poderia fazer-se acompanhar dos filhos menores de 12 anos. Passava a contar com a garantia legal de que os filhos seriam bem tratados, pois do contrrio o senhor podia perder o direito a seus servios. Em caso de alienao ou transmisso, ficava proibido separar os cnjuges, e os filhos menores de 12 anos, do pai e da me. A famlia escrava passava a existir - estmulo poderoso natalidade. Para que o prprio senhor se interessasse pela natalidade escrava, a lei criou um incentivo pecunirio. Por cada filho de escrava que completasse oito anos, o senhor receberia do Estado uma indenizao de 600000reais, paga em ttulos de renda com o juro anual de 6%, pelo prazo de 30 anos. Esta indenizao por uma criana de oito anos correspondia a pouco menos que o preo de um escravo robusto de 20 anos. o que foi que determinou a fixao da idade de oito anos? "A maior mortandade era at os sete anos", declarou Perdigo Malheiro no Parlamento. Segundo o empedernido escravocrata Pereira da Silva, cerca de 70% das crianas escravas morriam antes dos sete anos. o abolicionista Baro de Vila da Barra, entretanto, elevava esta porcentagem para 95%. Passada aquela idade, a curva decrescia acentuadamente. Caso no quisesse optar pela indenizao, podia o senhor utilizar-lhe os servios at os 21 anos. Estes servios futuros podiam ser objeto de compra e venda e na realidade isto se transformou depois em rendoso negcio. Assim se entende a declarao de Rio Branco de que a lei visava a "reestabilizar a vida econmica e social do pas". Ao mesmo tempo, na medida em que reafirmava o direito propriedade escrava, concorria para "reparar os danos causados pela polmica em torno da escravatura". Quando da apresentao do projeto, o ministro da Justia, Sayo Lobato, acentuara que havia o propsito de garantir a propriedade escrava, dando aos senhores a tranquilidade de que jamais perderiam escravos "seno com justa indenizao". Demais, criou a lei o Fundo de Emancipao, que permitiria emancipar com indenizao os escravos velhos ou invlidos. De todo modo, a lei implicava uma desfigurao da instituio escravista, j que o ingnuo ficava em estado de servido temporria Como sublinhou Perdigo Malheiro: "Que seja por toda a vida ou por algum tempo, no altera a essncia da servido". De resto, a figura jurdica da servido j existia no caso dos negros do Imperador, que os possua em usufruto perptuo. Na verdade, a lei visava a transformar cada senzala num stud de escravos. A precariedade das estatsticas no permite avaliar seus efeitos, mas Cotegipe, em aparte no Parlamento em 1879, declarou que a lei Rio Branco "teve o benfico efeito de aumentar as crias nas senzalas". Declarao tanto mais significativa, quanto que ele se opusera lei. II - Tal e qual como sucedera em Roma, tratou a lei de estimular a produtividade do trabalho escravo. Nesse sentido, estipulou o direito do escravo formao do peclio, com o que lhe proviesse de doaes, legados e heranas, e com o que, por consentimento do senhor, obtivesse de seu trabalho e economias; a famlia podia suced-lo no peclio. Se o escravo fizesse judicialmente o depsito do preo, no podia o senhor recusar-lhe a alforria. Derrogou-se o ttulo 63, livro 4 das Ordenaes, que autorizava a revogao da alforria por motivo de ingratido. Instituiu-se outra modalidade de alforria - a alforria com clusula de servios. O escravo podia contratar seus servios com terceiro, por um prazo de at sete anos - uma legalizao da velha prtica da escravatura- de-ganho; a inovao consistia aqui em que ao fim do prazo adquiria a liberdade. Noutras palavras, isto correspondia ao pagamento do preo da alforria em prestaes. No faltou, para estimular a produtividade, uma medida de carter previdencirio; em caso de velhice ou invalidez, no podia o escravo ser abandonado, cabendo-lhe o direito de requerer ao Juiz de rfos a fixao de alimentos. Restaria indagar porque foi que o autor do projeto declarou que ele visava a "revitalizar o crdito agrcola". A partir de 7 de novembro de 1831, a introduo de negros no pas foi equiparada ao contrabando e todos os que desde ento entraram em territrio nacional se tornaram legalmente livres. No obstante isso, entre 1831 e 1850 cerca de meio milho de negros foram introduzidos no pas e mantidos como escravos. o Estado Escravista empenhou-se por todas as formas em legitimar a posse destes escravos. o Marqus do Paran props no Senado a tese da prescrio: "Os pacficos fazendeiros que tm escravos anteriormente adquiridos, qualquer que tenha sido a forma por que os compraram, no devem esperar perseguio alguma por parte do governo, porque este tem em considerao o estado do pas e as desordens que poderia suscitar uma inquirio imprudente sobre o passado em que h to grande nmero de apreendidos". No era -toa que Paran defendia semelhante tese: grande proprietrio, era ele prprio grande comprador de escravos de contrabando. Nabuco de Araujo, pai de Joaquim Nabuco, invocou razo de Estado em favor desta forma de prescrio. Mandou desautorizar certo juiz de direito que pretendia processar um proprietrio de escravos de contrabando. o juiz estava a usar "de um rigor contrrio utilidade pblica e pensamento do governo". Louvava os "escrpulos e hesitao" do chefe de polcia em cumprir a ordem do juiz. Nabuco Araujo, conspcuo jurista do Imprio, alegava existir um conflito "entre a lei e a prescrio". Segundo ele, errava o juiz ao no' levar em conta "a prescrio que o governo imps com a aprovao geral do pas e por princpios de ordem pblica e alta poltica anistiando esse passado cuja liquidao fora difcil, cujo revolvimento fora uma crise". Explicava que se adotara esta peregrina forma de prescrio "a bem dos interesses coletivos da sociedade, cuja defesa incumbe ao governo". No convinha um julgamento "em prejuzo e com perigo desses interesses, um julgamento que causaria alarma e exasperao aos proprietrios". Todavia, esta jurisprudncia nunca foi inteiramente pacfica. Os ingleses primeiro e os abolicionistas depois, contestaram-na veementemente. No tempo da lei Rio Branco, multiplicavam-se os casos de juzes que mandavam pr em liberdade estes escravos. Face a isso, os bancos relutavam em aceitar em hipoteca os escravos de contrabando; quando muito, aceitavam- nos mediante aviltamento da avaliao. A legalizao da posse desta massa escrava importava em "revitalizar o crdito agrcola". Mandou a Lei Rio Branco que se procedesse matrcula de "todos os escravos existentes no Imprio". No precisava o senhor indicar a origem destes escravos, ou seja, a filiao; bastar- lhe-ia alegar que a mesma era "desconhecida". semelhana de todos os reformismos sociais, o do escravismo brasileiro teve em mira transfigurar o sistema para melhor preserv-lo. Teve um xito pelo menos parcial, pois assegurou instituio uma sobrevida de dezessete anos. 12. A base social do movimento abolicionista I - No foi seno quando j a escravatura agonizava como instituio e modo de produo que despontou um movimento abolicionista organizado. Enquanto o sistema foi pujante e prspero, toda populao livre lhe emprestou apoio e solidariedade. A ideologia escravista dominava avassaladoramente todas as categorias sociais de homens livres. Por isso, a simples idia da abolio realizara durante dois sculos e meio progressos extremamente lentos. Nos tempos coloniais, ouviram-se apenas vozes isoladas. O padre Manuel Ribeiro da Rocha, em O Etope Resgatado, editado em 1758, ter sido talvez o primeiro a questionar o sistema. Preocupaes similares manifestou em fins do sculo XVIII um professor portugus que vivia na Bahia, Lus dos Santos Vilhena, na Recopilao de Noticias Soteropolitanas e Braslicas. Em 1810, o magistrado paulista Veloso de Oliveira dirigiu ao Regente uma memria em que sugeria a libertao dos filhos de escravas. Manifestaes mais explcitas surgiram depois que os ingleses iniciaram sua campanha antitrfico. Hiplito da Costa, notrio porta-voz dos interesses ingleses, assinalou no Correio Braziliense (1808/22) que a emancipao gradual dos escravos era uma "necessidade para o Brasil". Em 1821, Joo Severiano Maciel da Costa, futuro Marqus de Queluz e ministro do Exterior do Brasil em 1827, editou em Coimbra uma Memria sobre a Necessidade de Abolir a Introduo dos Escravos Africanos no Brasil. Em 1822, o deputado baiano Borges de Barros, depois visconde de Pedra- Branca, props sem resultado s cortes constituintes um projeto de emancipao gradual. Para contentar os ingleses, a Assemblia Constituinte preconizara no artigo 254 de seu projeto de constituio "a emancipao lenta dos negros". Seguira-se em 1825 o projeto de emancipao progressiva de autoria de Jos Bonifcio. Um ano depois, um oficial do exrcito, Jos Eli Pessoa da Silva, publicou uma memria a favor da emancipao franca. Em 1830 e 1833, o deputado Antnio Pereira Frana ofereceu projetos abolicionistas de que a Cmara sequer tomou conhecimento. medida que progredia a crise do sistema, proliferavam as idias e os projetos abolicionistas, destacando-se o de Pimenta Bueno, Marqus de So Vicente, em 1866. De todo modo, o que houve antes de 1880 foi apenas uma opinio abolicionista, no qualquer movimento organizado. II - Quando surgiu um movimento abolicionista organizado, fazia dois sculos e meio que os escravos lutavam sozinhos contra a escravatura. A partir da Independncia, sua luta foi secundada pelas presses diplomticas inglesas. o antiescravismo ingls, contudo, jamais cogitou de mobilizar os prprios escravos, ou quando menos apoiar-se neles para destruir o sistema: semelhante soluo seria de todo incompatvel com a ndole e, mais que isso, os interesses do capitalismo ingls no Brasil. H indcios de que a grande insurreio escrava de Salvador de 1835 recebeu o discreto apoio de comerciantes ingleses, mas esse apoio foi sem dvida dado a ttulo pessoal. o limitado xito do antiescravismo ingls se deveu a dois fatores principais. Um deles, a falta de uma base interna de classe, j que sistematicamente esbarrava na homogeneidade e solidez da estrutura escravista. No se pode duvidar de que se a Inglaterra mobilizasse maciamente toda sua fora e influncia, imporia rapidamente a abolio. As contradies do capitalismo ingls, contudo, impediam que seus interesses antiescravistas exercessem algo mais que presses diplomticas. A limitada eficcia dessas presses advinha de que a diplomacia inglesa no representava o conjunto dos interesses do capitalismo ingls no Brasil. A ttulo de exemplo: a burguesia financeira inglesa nunca desamparou o escravismo brasileiro, outorgando-lhe, pelo contrrio, constantes emprstimos. Os banqueiros ingleses concederam emprstimos ao Imprio nos anos de 1839, 1843, 1852, 1858, 1859, 1860, 1863, 1865, 1875, 1883, 1886 e 1888. o intercmbio comercial jamais desfaleceu, ainda nos momentos de conflito mais spero entre os diplomatas ingleses e os governantes brasileiros em torno da escravatura. Na verdade, o Brasil era o melhor parceiro comercial da Inglaterra na Amrica Latina, absorvendo cerca de 30% das suas exportaes manufatureiras. No foi seno depois que o sistema escravista brasileiro entrou em agonia que os interesses antiescravistas ingleses ganharam uma base interna de classe, expressa no movimento abolicionista. Esta base social residiu fundamentalmente nas classes dominantes das regies em que o processo de desescravzao atingira maior amplitude. A as classes sociais se tinham transfigurado. A classe dominante proprietria de terras e escravos se convertera em proprietria de terras exploradas atravs de relaes de produo de tipo feudal. Os escravos se tinham transformado de fato em semi-servos. Vale dizer, haviam desaparecido as duas principais classes do sistema escravista, os escravos e os senhores-de-escravos, emergindo em seu lugar classes novas. Iniciado nas provncias do Extremo-Norte e do Nordeste, este processo de transio propagara-se s regies do Estremo-Sul. Aqui a agricultura passou a se basear num sistema de produo mercantil simples, operado por imigrantes alemes e italianos. Ao mesmo tempo, o processo de transio j se desenvolvia a ritmo acelerado nas provncias cafeeiras. Nada obstante, embora a escravido j no mais fosse naquelas regies a base da produo, persistia ainda, em larga medida, como uma forma de propriedade. O escravo constitua um valor em si mesmo e sua converso em dinheiro configurava um interesse real para os proprietrios. O trfico interprovincial de escravos para as provncias cafeeiras conferiu enorme liquidez propriedade escrava. Isto impediu que as classes dominantes de tais regies se alistassem na causa abolicionista. A situao mudou quando em 1880 os senhores-de-escravos do Sudeste fizeram aprovar nas respectivas assemblias provinciais leis que interditavam o trfico interprovincial. Os magnatas do caf tinham conscincia de que a abolio j era apenas questo de tempo; j no valia mais a pena investir em trabalhadores escravos; nessa altura, bem mais que um tero dos trabalhadores das plantaes de caf se compunha de homens livres; buscava-se intensificar a imigrao de trabalhadores europeus, principalmente italianos, iniciada em 1874. No contribuiu menos para a interdio do trfico interprovincial, a preocupao de salvaguardar a unidade poltica da classe dos senhores-de- escravos. Em So Paulo, o autor do projeto proibitivo, deputado Moreira Barros, declarou que o mesmo oferecia "a vantagem poltica de sustar o antagonismo que eu vejo com pesar desenvolver-se entre as duas partes do Imprio e colocar todas as provncias no mesmo p de interesse". Um jornal paulista dos bares do caf escreveu que "a desproporo, sempre crescente, entre o nmero de escravos das provncias do Sul e do Norte, cada vez determina mais a necessidade duma medida proibitiva, a fim de conservar homogneo o interesse de todo o pas". No mesmo diapaso, O Jornal do Comrcio, do Rio de Janeiro, declarava que a proibio do trfico interprovincial tinha por objetivo "impedir que se agrave (...) a anomalia da desigualssima repartio da populao escrava entre as diversas seces do territrio nacional". O prestigioso deputado paulista Martim Francisco Ribeiro Andrada denunciava o perigo de uma secesso anloga dos Estados Unidos: "Ns, os representantes das provncias do Sul do Imprio, apreciamos a integridade deste vasto pas, mas no tanto que, para conserv-la, queiramos tolerar a liquidao geral das fortunas e a destruio da propriedade escrava, para que tanto tm concorrido as grandes remessas, que nos tm feito as provncias do Norte, de escravos que nos vendem por avultada soma". Proibido o trfico interprovincial, o valor dos escravos desceu nas regies desescravizadas a menos de metade, exacerbando ainda mais o ressentimento contra as prsperas provncias cafeeiras. O dinheiro do Fundo de Emancipao no dava para indenizar todos os proprietrios. Na coletnea de deliberaes do governo imperial correspondente ao ano de 1881, depara-se um caso que indica a que ponto os escravos se tinham tornado inteis em certas regies. Certo proprietrio do Maranho, props ao governo imperial libertar um lote de 100 escravos, mediante indenizao do Fundo de Emancipao; e, de lambujem, entregaria aos negros alforriados "vrias fazendas" com todas suas instalaes. III - Ao invs de soldar a unidade da classe dos senhores-de-escravos, a proibio do trfico interprovincial ainda mais acentuou suas contradies. Uma vez que j no mais exploravam economicamente seus escravos nem podiam vend-los a bons preos nas provncias do caf, os proprietrios das regies desescravizadas abraaram a causa abolicionista. No foi por acaso que o movimento abolicionista se estruturou no mesmo ano da proibio do trfico interprovincial. O objetivo declarado deste movimento consistia na abolio mediante indenizao dos proprietrios. O abolicionismo somente advogou a abolio sem indenizao depois da Lei Saraiva-Cotegipe (1885), por motivos a serem adiante ilustrados atravs do exame daquele diploma legal. A principal base social do movimento abolicionista residiu nas classes dominantes das regies desescravizadas; o objetivo consistia em promover a abolio mediante indenizao dos proprietrios. Mobilizaram para esta campanha as emergentes classes mdias urbanas - profissionais liberais, funcionrios pblicos, intelectuais, pequenos e mdios comerciantes -, das quais saram os quadros secundrios, principalmente para o trabalho de agitao. Essas classes mdias se sentiam sufocadas diante da rigidez e estreiteza da formao escravista. J no suportavam sua excluso da vida poltica, resultado de um sistema eleitoral censitrio que dava direito de voto a menos de 1% da populao. A classe escravista preservava o monoplio do poder poltico merc desta rgida limitao do eleitorado. Para que pudessem conquistar um espao poltico, precisavam as classes mdias aniquilar o poder econmico e social da elite de senhores-de-escravos. A grande burguesia comercial e a nascente burguesia industrial no se mostraram partidrias da abolio. Em manifesto lanado em 1881, a Associao Industrial - "composta de industriais brasileiros e estrangeiros domiciliados no Brasil" - reclamou medidas protecionistas, mas no disse palavra sobre a abolio. o presidente da entidade, Antnio Felcio dos Santos, declarou em 1882 que o escravo era "uma absoluta necessidade". Outro tanto a Associao Comercial do Rio de Janeiro, que em 1884 denunciou os abolicionistas como "irresponsveis". No mesmo ano, a congnere de Minas Gerais exortou o governo a adotar medidas "fortes" contra o movimento abolicionista. O peso da massa escrava como fora antiescravista se reduzira em consequncia de seu decrscimo numrico e sua menor participao no processo produtivo. S nas provncias cafeeiras continuava a representar uma fora importante. Desenvolveu uma aprecivel militncia antiescravista, atravs de fugas e pequenos levantes, mas sem criar em nenhum momento um perigo de insurreio geral. Portanto, pode-se definir o movimento abolicionista como a expresso poltica e vanguarda militante das foras sociais interessadas na supresso da escravatura. Estruturou-se em sociedades, a primeira das quais a Sociedade Brasileira contra a Escravido, fundada em 1880 por Joaquim Nabuco, surgindo logo outras, na capital e nas provncias. O contedo de classe do movimento desvendado por alguns textos de Joaquim Nabuco, o mais brilhante e lcido dos doutrinrios abolicionistas. Importa assinalar que descendia de uma das mais antigas famlias escravistas do Nordeste. Um dos antepassados, Joo Pais Barreto, fundador em 1530 do famoso Morgado do Cabo, fora um dos maiores proprietrios de escravos de Pernambuco. Seu pai Nabuco de Araujo se destacara como estadista do Imprio, especialmente hbil em dar cobertura jurdica aos interesses escravistas. Possua idias sociais e polticas muito claras. Declarava-se "exaltado partidrio de Thiers", o homem que massacrara os comunards, e manifestava ilimitada admirao pela Inglaterra. Via o socialismo como um "ressentimento das posies alheias"; seu "impulso revolucionrio" provinha apenas da "inveja". Fez a apologia do "bom senhor", dizendo que ele suscitava no escravo "o orgulho ntimo, alguma coisa parecida com a dedicao do animal". Esses escravos "haviam amado e livremente servido" seus amos. Concluia: "Oh! os santos pretos!" Sublinhou o empenho de evitar a participao popular, dizendo que a abolio teria de ser feita pela "lei" e no "parlamento", no em "quilombos" ou nas "ruas e praas pblicas". Os abolicionistas, acrescentava, "querem conciliar todas as classes, e no indispor umas contra as outras". No era sua inteno "instilar no corao do oprimido um dio que ele no sente". Seria "covardia incitar insurreio", expondo os senhores " vindita brbara e selvagem de uma populao mantida at hoje ao nvel dos animais". Fixou com nitidez os limites sociais da abolio ao dizer que os abolicionistas eram "capazes de destruir um estado social levantado sobre o privilgio e a injustia, mas no de projetar sobre outras bases o futuro edifcio". Por isso, escrever depois, "a realizao da sua obra parava assim na supresso do cativeiro ... a corrente abolicionista parou no dia mesmo da abolio e no dia seguinte reflua". O desgnio consistia em remanejar a estrutura: "No h em todo o movimento abolicionista, e no futuro que ele est preparando, seno benefcio para a agricultura... Tudo isso servir para reconstruir, sobre bases slidas, o ascendente social da grande propriedade ... Volte a nossa lavoura resolutamente as costas escravido, como fez com o trfico, e dentro de vinte anos de trabalho livre os proprietrios territoriais brasileiros formaro uma classe a todos os respeitos mais rica". A campanha das organizaes abolicionistas se desenvolveu fundamentalmente no parlamento e na imprensa, orientada para evitar extravasamentos sociais e buscar uma soluo nos quadros legais. O grande problema ttico dos abolicionistas fora sintetizado em 1862 por Sayo Lobato: "Como se poder chegar abolio sem revoluo?". IV - Os escravocratas articularam vigorosa reao agitao dos abolicionistas e o resultado foi que estes ltimos saram fragorosamente derrotados nas eleies de novembro de 1881. Enquanto os dirigentes abolicionistas, perplexos e desorientados, marcavam um compasso de espera, as elites dominantes de algumas provncias tomaram a iniciativa. Imediatamente aps a proibio do trfico interprovincial, brotou impetuoso movimento abolicionista no Cear. O processo de desescravizao atingira nessa provncia amplitude superior de qualquer outra provncia. Desde 1870 quase todo o trabalho agrcola realizava-se com trabalhadores no-escravos. Na dcada de 1870/80, a exportao de escravos s foi excedida pela do Rio Grande do Sul. A grande seca que devastou a provncia entre 1877 e 1880 forou os proprietrios a venderem em massa seus escravos. No exato ano do trfico interprovincial, as exportaes de escravos do Cear atingiram seus mais altos ndices. vista disso, a suspenso do trfico significou um duro golpe para os proprietrios cearenses. Trataram ento de fazer sua prpria abolio - mediante indenizao. Fundaram a Sociedade Cearense Libertadora, em ato pblico que recebeu apoio do presidente da provncia, do comandante da guarnio do exrcito, de todas as autoridades, das famlias mais ricas. As categorias subalternas foram mobilizadas num grande movimento de massas contra a escravido. Promoveram-se subscries pblicas para arrecadar fundos destinados a indenizar os proprietrios. A 25 de maro de 1884, proclamou-se o fim da escravido no Cear. Seguiu-se a abolio no Amazonas. Como resultado do trfico interprovincial, em 1884 apenas restavam 1.500 escravos, ocupados quase todos em servios domsticos. O presidente da provncia tomou a iniciativa de pedir assemblia provincial verba para indenizar os proprietrios. Estes foram indenizados por um valor exagerado. Mas o Amazonas podia naquele momento se permitir a despesa: desde 1882 a borracha ocupava o terceiro lugar nas exportaes brasileiras. Em 10 de julho de 1884, anunciou-se o fim da escravido na provncia. Atendera-se, segundo um jornal de Manaus, "s aspiraes da civilizao". Nesse tempo milhares de ndios e mestios morriam em massa nos seringais, dizimados pelo excesso de trabalho, pela fome e pela malria. A escravido deixou praticamente de existir no Rio Grande do Sul. Cessado o trfico, brotou um movimento abolicionista, e rapidamente, em questo de meses, dois teros dos 60.000 escravos foram libertados atravs do Fundo de Indenizao ou contratados com clusulas de servio. Quando sobreveio a abolio em 1888, a provncia tinha pouco mais de oito mil escravos; quinze anos antes, ainda contava cerca de cem mil. Malgrado houvessem sofrido perdas considerveis atravs do trfico interprovincial, as grandes provncias do Nordeste, como Pernambuco e Bahia, ainda possuam as maiores populaes escravas depois das provncias do caf. No estavam menos interessadas que as outras na abolio, mas a o problema no podia resolver-se por meio de subscries pblicas, verbas provinciais ou os limitados recursos do Fundo de Emancipao. Cumpria que o poder central assumisse o encargo da indenizao. Havia nestas provncias uma massa especialmente numerosa de escravos velhos cuja manuteno representava um nus cada vez mais pesado. Sempre houvera o costume de alforriar os escravos que excedessem s necessidades ou possibilidades econmicas dos proprietrios. Como s vezes os negros velhos se recusavam desesperadamente a deixar as casas dos amos, estes usavam o ardil de conduzi-los a uma estrada perdida e a abandon-los. A Lei Rio Branco, porm, proibira o abandono dos escravos velhos, autorizando o juiz a impor aos amos o pagamento de alimentos. Nessas condies, impunha-se emancipar estes escravos por fora de lei. O Projeto Dantas, apresentado ao Parlamento em julho de 1884, teve em mira acudir a estes dois interesses bsicos dos proprietrios nordestinos: alforria dos escravos velhos e emancipao dos demais mediante indenizao. Apresentou-o o presidente do Conselho de Ministros, o baiano Rodolfo Dantas; Rui Barbosa, outro baiano, redigiu o projeto. V - Todo escravo de 60 anos, cumpridos antes ou depois da lei, adquiria ipso facto a liberdade. O senhor podia conserv-lo na sua companhia, ministrando-lhe alimento, vesturio e socorros em caso de enfermidade ou invalidez. Caso no cumprisse esta obrigao, o juiz de rfos proveria alimentao e ao tratamento do enfermo ou invlido, correndo as despesas por conta do Estado (art. 1, 1, III, do Projeto). Isto importava na revogao da disposio da Lei Rio Branco que autorizava o juiz a impor alimentos ao senhor. O projeto criava uma nova e formidvel fonte de receita para o Fundo de Emancipao - uma taxa adicional de 6% sobre todos os tributos, exceto os impostos de exportao. o produto desta receita seria integralmente aplicado na indenizao dos proprietrios dos escravos. O prprio senhor arbitraria o valor: "O valor declarado pelo proprietrio vigorar para as alforrias pelo fundo de emancipao e quaisquer outras, independentemente de arbitramento, salvo o caso de invalidez, ou estado valetudinrio do escravo, que anule ou reduza notavelmente seu valor" ( 3, I, do Projeto). A lei fixava, entretanto, o limite mximo do valor arbitrado por declarao do senhor; este limite era fixado de acordo com a idade do escravo. Tratava-se, pois, de uma abolio mediante indenizao dos senhores. Os abolicionistas saudaram jubilosamente o projeto. Nabuco disse que, apesar de seus defeitos, tinha o mrito de traduzir "a converso do partido liberal aos princpios ... que os abolicionistas proclamam h seis anos". Para Jos do Patrocnio, era um "grito de justia", provocando por isso o "dio da oligarquia agrcola". Rui Barbosa qualificou-o de "nobre iniciativa" que se caracterizava pelo seu "carter enrgico e amplo" e "honrar para sempre o gabinete benemrito". Os deputados nordestinos apoiaram maciamente o projeto. Afirmou um deles: "Soou para a indstria do acar a hora da redeno; com a redeno do cativo, tambm ela se liberta". Esta jogada dos-proprietrios nordestinos foi entretanto frustrada pelo slido bloco parlamentar dos proprietrios das provncias do caf. O prprio partido de Rodolfo Dantas se dividiu em torno do projeto e o gabinete foi derrubado por voto de desconfiana. Dissolvida a cmara e realizadas novas eleies em dezembro de 1884, Dantas foi reconduzido chefia do governo, porm os escravocratas do caf tornaram a derrub-lo em maio de 1885, sepultando assim o projeto. No que a escravocracia do caf fosse em princpio contrria abolio mediante indenizao: quela altura, na verdade, no desejava outra coisa. O que sucedia era que as condies estabelecidas pelo projeto lhe seriam gravemente lesivas. Primeiro de tudo, na questo dos sexagenrios. Note-se que cerca de 80% do meio milho de escravos importados entre 1831 e 1851 haviam sido adquiridos pelas provncias do caf. A Lei Rio Branco criara a matrcula obrigatria a fim de possibilitar a legalizao da posse de tais escravos. Uma vez que a lei de 7 de novembro de 1831 declarava que todos os africanos entrados a partir da no Brasil seriam livres, os donos destes escravos haviam tido que matricul-los com idade superior real, como se importados antes da proibio. Isto importara num aumento fictcio da idade dos escravos. Para exemplificar, tome-se o ano de 1849, quando foram importados 54.000 negros. Atribuindo-se a estes negros uma idade de mdia de 18 anos em 1849, teriam 53 em 1884. Para que constasse que haviam sido importados antes de 1831, os donos haviam tido que acrescentar 18 anos sua idade real, o que lhes dava, em 1884, uma idade legal de 71 anos. Nessas condies, pelo projeto Dantas, estes escravos de 53 anos seriam alforriados como sexagenrios ... O prejuzo no seria contudo apenas na questo da alforria dos sexagenrios. Os valores mximos das indenizaes a serem pagas pelo Fundo de Emancipao variavam segundo a idade dos escravos; quanto mais velhos, tanto menor a indenizao. Assim, os escravos das provncias do caf seriam indenizados na base de uma idade legalmente superior verdadeira, o que importaria em receberem uma indenizao consideravelmente inferior que receberiam na base da idade real. A vingar o Projeto Dantas, os escravocratas do caf seriam vtimas da fraude que haviam engendrado em 1871. vista disso, elaboraram um projeto, que veio a converter-se na Lei Saraiva-Cotegipe. No que dizia respeito aos sexagenrios, cuidava de compensar os proprietrios das provncias cafeeiras da prematura libertao dos escravos cuja idade real fosse inferior idade legal. Para tanto, os "sexagenrios" ficavam obrigados a prestar servios gratuitos a seus senhores pelo espao de trs anos, a ttulo de indenizao pela alforria. Preenchido este tempo de servio, permaneceriam disposio dos ex- senhores, que usufruiriam "os servios compatveis com as foras deles". verdade que se facultava a estes libertos o buscarem em outra parte os meios de subsistncia, mas apenas condio de que os juzes de rfos os julgassem "capazes de o fazer". Acrescia-se em 20% o valor dos escravos alforriados pelo Fundo de Emancipao. Na indenizao das mulheres, fazia-se abatimento de apenas 25%, quando no mercado valiam menos da metade. No bastasse isso, depois de receberem o generoso preo do escravo, poderiam pelo tempo de cinco anos usufruir os servios dos libertos, os quais receberiam uma "gratificao pecuniria" arbitrada pelos ex-senhores. A forma da aplicao da taxa adicional - reduzida para 5% - desvendava ainda mais claramente o propsito de beneficiar os bares do caf em detrimento dos proprietrios nordestinos. Dividir-se-ia em trs partes iguais o produto da taxa. Uma tera parte se destinaria a subvencionar a colonizao, mediante o pagamento do transporte de imigrantes europeus. No se destinava a verba aos que se estabelecessem no Rio Grande do Sul e Santa Catarina - camponeses independentes que ao chegar recebiam um pequeno lote de terras - mas a aqueles que fossem trabalhar nos cafezais de So Paulo. Dessa forma, o pas todo pagaria para que os cafezais paulistas se reaprovisionassem de fora de-trabalho. Isto importava evidentemente num desvirtuamento do Fundo de Emancipao, criado para emancipar os escravos, como se inferia da sua prpria denominao. Outra tera parte seria aplicada na "emancipao dos escravos de maior idade". Noutras palavras, seria utilizada para indenizar os proprietrios de escravos que, j no sendo jovens, contassem entretanto menos de sessenta anos. Por essa forma, os proprietrios paulistas receberiam indenizao pelos escravos mais velhos a preos bastante superiores aos do mercado, compensando-se da diferena entre a idade real e a idade legal. A inteno de beneficiar os proprietrios paulistas se revelava de maneira igualmente clara no tocante aplicao da outra tera parte da taxa adicional. Seria aplicada " libertao por metade ou menos da metade de seu valor, dos escravos de lavoura e minerao cujos senhores quiserem converter em livres os estabelecimentos mantidos por escravos". A disposio no aproveitava aos proprietrios nordestinos, que j haviam promovido a "converso". parte disso, a indenizao "por metade", correspondia de fato aos preos vigorantes no mercado. Ainda no era tudo. Uma vez indenizado do valor do escravo, o ex-senhor poderia explor-lo, na condio de liberto, pelo espao de cinco anos, pagando em troca uma "gratificao" por ele prprio arbitrada. Calculou- se que as primeiras gratificaes arbitradas depois da Lei Saraiva- Cotegipe correspondiam a 1/12 dos juros pagos pelo Estado. As indenizaes seriam pagas mediante ttulos emitidos pelo Estado a juros de 5% ao ano. A amortizao e os juros poderiam absorver at dois teros do produto da taxa adicional. O sistema de alforria adotado pela Lei Saraiva-Cotegipe daria a extino da escravatura em prazo breve. Consta dos anais do Parlamento a estimativa minuciosa e documentada feita por um economista. Considerando uma reduo anual de 10% na populao escrava (2% de bitos e 8% das emancipaes particulares, das emancipaes pelo peclio e das locaes de servios) e a receita provvel da taxa adicional, calculava que a extino se verificaria em seis anos. Joaquim Nabuco calculou que o sistema da lei retardaria em 14 anos a extino, mas no fundamentou seu clculo. VI - No h dvida de que pela Lei Saraiva-Cotegipe toda nao fazia um generoso presente aos proprietrios das provncias do caf. No se fez tardar a reao violenta dos proprietrios do Nordeste, do Extremo-Norte e do Extremo-Sul. A reao deve ser apreciada luz do profundo descontentamento contra a hegemonia poltica exercida pelo Sudeste desde a Independncia. Esta hegemonia tinha por base a organizao unitria e centralizadora do Estado. Os nordestinos e os gachos se tinham levantado em armas para reivindicar uma organizao genuinamente federativa (Confederao do Equador, Sabinada, Farrapos, Praieira). Sua derrota consolidara a hegemonia do Sudeste e acentuara a desigualdade do crescimento econmico. Mais que todos, os nordestinos atriburam suas dificuldades supremacia poltica do Sudeste cafeicultor. Em 1878, em congresso agrcola realizado em Recife, queixaram-se amargamente por no gozarem dos mesmos favores financeiros das provncias cafeeiras, as quais "sempre encontram francas as portas do Banco do Brasil"; devido a esta falta de amparo, viam-se "obrigados a desfazer-se de seus instrumentos agrcolas, os escravos, para satisfazerem seus compromissos". As rendas do Imprio se distribuam em benefcio das provncias do caf. Dos 8 mil quilmetros de ferrovias existentes no pas, apenas 2.035 estavam no Nordeste. Ao passo que os portos do Nordeste jaziam ao abandono, em difceis e onerosas condies de navegabilidade, o governo imperial efetuava grandes investimentos para melhorar os portos do Sudeste, principalmente o de Santos. Para tanto, o governo imperial contraa no exterior emprstimos que pesavam sobre todo o pas (nessa altura, o servio da dvida externa consumia 37% da receita do Imprio). A Lei Saraiva-Cotegipe se afigurou mais um esbulho praticado pelo Sudeste cafeicultor contra as demais regies. A taxa adicional de 5%, argumentavam os abolicionistas, seria tambm paga pelas provncias que j haviam de fato suprimido a escravido ou nas quais esta se tornara inexpressiva. Na verdade, o mesmo argumento seria vlido para o Projeto Dantas, que haviam apoiado e que fixava o percentual da taxa em 6%. As acesas discusses sobre a tarifa das indenizaes deram Cmara dos Deputados o aspecto de um mercado de escravos. Nabuco props a abolio imediata com a clusula de servios; pouco antes, em meados de 1885, ainda no chegara sequer a esta posio, esclarecendo que no pedia a "libertao imediata", mas que a escravido fosse reduzida a um "estado compatvel com o grau de adiantamento nacional" e que fosse "humanizado o cdigo negro". A clera contra aquilo que se reputava como um presente da nao aos proprietrios de So Paulo, radicalizou o movimento abolicionista, que passou a exigir a abolio sem indenizao. Os militantes abolicionistas desencadearam um movimento de ao direta, instigando os escravos a fugirem das propriedades. Nas provncias do caf, criou-se um estado pr- insurrecional. O colapso do Estado Escravista se desenhou claramente quando a polcia e o exrcito se recusaram a reprimir as fugas de escravos. Para evitar o pior, os dois grandes partidos da classe dominante, o Conservador e o Liberal, promoveram a 13 de maio de 1888 a formalizao jurdico-institucional de uma situao de fato. No caberia em rigor dizer que a abolio se fez sem indenizao. Antes da Lei Saraiva-Cotegipe, uma grande massa de escravos fora alforriada com indenizaes pagas atravs de peclios, de subscries pblicas, de verbas provinciais e do fundo de emancipao criado pela Lei Rio Branco. A taxa adicional de 5% figurou nos oramentos de 1886, 1887, 1888 e 1889, e foi devidamente distribuda. Em So Paulo a Sociedade Promotora da Imigrao, fundada em 1886, recebeu a tera parte da taxa adicional. Afora isso, depois da abolio, os proprietrios receberam indenizao indireta atravs dos chamados auxlios lavoura. Para tanto, o ministrio Joo Alfredo contraiu no exterior um emprstimo de seis milhes de libras. Segundo o reconhecia Joo Alfredo, a situao financeira do pas era "boa" e a do tesouro "satisfatria"; o cmbio estava firme e acima do par; o ouro aflua para o pas. Justificou, entretanto, a "necessidade imperiosa" do emprstimo numa "poca em que se transforma o regime do trabalho". o auxlio lavoura se fez atravs dos chamados contratos de emprstimos. o tesouro emprestava certa soma aos bancos, sem juro, condio de que emprestassem lavoura o duplo da soma recebida, a prazos de trinta anos e juro prefixado de 6%. vista da taxa interna de inflao, isso equivalia a presentear dinheiro aos proprietrios. Embora no ministrio seguinte a situao financeira continuasse favorvel, contraiu-se novo emprstimo externo de vinte milhes de libras: um dos objetivos do emprstimo foi "facilitar a organizao do regime de trabalho livre" e a "corrente da imigrao". o que se traduziu em novos emprstimos para auxlios lavoura. No total, os proprietrios - principalmente os de So Paulo, Rio e Minas - receberam emprstimos no valor de 86 milhes de contos, equivalentes a pouco mais ou menos 60% da receita oramentria do Imprio. 13. Uma revoluo social de tipo arcaico I - Exemplificando o carter precrio de certas periodizaes histricas, o historiador ingls Cristopher Hill comenta que seus manuais escolares de histria davam a impresso de que uma bela manh os europeus despertaram e, olhando pela janela, exclamaram: "Salve! Acabou a Idade Mdia! Comearam os Tempos Modernos!" A passagem de uma formao social para outra, no pode de fato ser estabelecida cronologicamente. No caso da Idade Mdia, a mudana se processou de forma to lenta e imperceptvel que os contemporneos sequer se deram conta, salvo talvez um que outro observador mais clarividente. O processo da transio se revestiu de tamanha complexidade que ainda hoje resiste investigao histrica. No coincidiu nos diferentes pases europeus, nem assumiu em toda parte a mesma forma ou produziu os mesmos resultados. O que importa dizer que no h nada mais precrio que as periodizaes baseadas em eventos histricos isolados. As periodizaes cronolgicas se mostram particularmente arbitrrias, engendrando todos os absurdos imaginveis. A formao social escravista brasileira no desapareceu por fora de lei no ano de 1888. A lei apenas consagrou a nvel jurdico uma transformao econmico-social que se operara a partir da supresso do trfico. O que houve foi um lento processo de desintegrao que se diversificou de regio para regio. Medrou por toda parte uma pluralidade de relaes de produo, nenhuma das quais em sua forma pura. Durante um longo perodo as relaes de produo aparecem entremisturadas numa tal confuso que no h como determinar qual a que exercia dominncia. No estado atual da investigao histrica, manda a prudncia que se fale apenas em formao social de transio. Menos difcil se afigura a elucidao do tipo de transformao social configurado pela substituio das relaes de produo escravistas por relaes de produo no-escravistas. A anlise partir do pressuposto de que toda substituio de um tipo de relaes de produo por outro constitui uma revoluo social. primeira vista, pareceria imprprio classificar como revoluo social uma mudana lenta, pacfica e legal, sem comoes sociais ou confrontos dramticos entre classes. Essa espcie de mudana no corresponderia ao conceito marxista de revoluo social. Na revoluo social, segundo este conceito, d-se uma encarniada luta de classes, seguida em determinado momento de uma guerra civil mais ou menos prolongada que culmina na vitria da classe dirigente da revoluo. Essa classe vitoriosa se apodera ento do poder poltico, impe uma ditadura e desencadeia um processo violento de destruio das antigas relaes sociais de produo. II - Naturalmente, nada que se parea a isso ocorreu na transio brasileira das relaes escravistas para relaes no-escravistas. o sistema conheceu sem dvida uma luta de classes bastante viva, mas no houve insurreio vitoriosa dos oprimidos e, menos ainda, uma guerra civil. Os oprimidos no saram vitoriosos desta luta, no conquistaram o poder poltico e no se converteram em classe dominante. Bem pelo contrrio, a despeito da supresso da propriedade escrava e da converso dos escravos em homens juridicamente livres, os oprimidos continuaram oprimidos, nos escales mais subalternos da sociedade brasileira, ao passo que os exploradores no saram vencidos e, o que mais, preservaram a propriedade dos meios de produo, sobretudo a terra, mantendo assim sua dominao econmica e social. No apenas no houve vencidos nem vencedores, seno que as classes adversas desapareceram na voragem do processo. No se tratou evidentemente de desaparecimento fsico das classes, mas de desaparecimento enquanto categorias sociais. Desaparecida a forma escravista de propriedade e explorao, deixaram de existir as duas classes que lhe correspondiam, a dos escravos e a dos senhores-de- escravos. Marx se referiu indubitavelmente luta de classes do regime escravista quando afirmou que sua culminao era o "desaparecimento das classes beligerantes". Diferentemente do que ocorre em outras revolues sociais, esta no teve uma classe dirigente. Os escravos no desempenharam o papel de classe revolucionria e no se pode, a despeito das frequentes insurreies escravas, falar em uma "revoluo dos escravos"; por outra, os escravos no impuseram, a partir de uma posio dominante, uma nova ordem social; ou ainda, os oprimidos e explorados no promoveram um reordenamento geral da sociedade, de acordo com seus interesses e suas necessidades. Diga-se mais que estiveram completamente ausentes deste processo de mudana social as caractersticas que se apresentam em toda sua plenitude nas revolues burguesas e socialistas: uma mudana radical na estrutura da sociedade, a instaurao de um sistema novo e progressista, mudanas profundas em toda a vida econmica, social, poltica e ideolgica. Incide-se no equvoco de aplicar a todas as formaes um conceito de revoluo social elaborado na base das experincias das revolues burguesas e socialistas. O que era especfico destas revolues, foi convertido em teoria geral das revolues e modelo explicativo de todas as transformaes sociais, sejam quais forem as formaes histricas. Semelhante teoria peca por abstrata e a-histrica na medida em que generalizada a todas as formaes. Toda revoluo social h-de ser apreciada segundo as leis de uma formao historicamente determinada. No so iguais as leis que regulam as economias capitalistas ou socialistas e as economias escravstas ou feudais. Seria absolutamente abusivo transferir para as formaes pr- capitalistas leis que so especficas das formaes capitalistas ou ps- capitalistas. Cada formao social possui suas leis prprias e as categorias tericas que servem para explicar umas no servem para explicar outras. As caractersticas das revolues sociais sero assim diferentes em cada caso. A cada formao histrica corresponde um nvel distinto das foras produtivas e das classes antagnicas, pelo que a luta social se desenvolve em distintos graus de conscincia de classe. A forma da revoluo social ser tanto mais desenvolvida quanto mais elevado o nvel das foras produtivas. Tal nvel que determinar a conscincia, a coeso e a energia da classe revolucionria. A revoluo social se d, em uma palavra, segundo condies histricas concretas e determinadas. Desta forma, a profundeza e a amplitude das transformaes sociais operadas pelas revolues capitalistas ou socialistas, constituram o resultado de um excepcional desenvolvimento das foras produtivas. Formaes sociais evoludas ou superiores produziram revolues correspondentemente evoludas ou superiores. A projeo destas formas histricas desenvolvidas ou superiores de revoluo social sobre formaes sociais pr capitalistas importa em extrapolao histrica que restringe a validez do conceito de revoluo social e induz em ltima anlise negao da sua ocorrncia em formaes atrasadas ou inferiores. III - Nas formaes escravistas ou feudais, os oprimidos e explorados no podiam se constituir e em nenhum momento se constituram em classes revolucionrias - classes aptas a se transformarem em agentes de transformaes radicais. Simplesmente no possuam a conscincia que desempenha papel to importante nas revolues de tipo desenvolvido ou superior. No se diz, naturalmente, que as lutas destes oprimidos e explorados no se revestissem de um cunho revolucionrio. Quando os negros lutavam nos quilombos palmarinos questionavam o sistema escravista e isso conferia s suas lutas um cunho revolucionrio. Apenas, como no tinham capacidade de promover a ruptura total do sistema e criar em seu lugar outro mais progressista, deixavam de constituir uma classe revolucionria. Noutras palavras, suas lutas estavam privadas de perspectiva. Adveio disso a forma lenta e quase imperceptvel assumida pela substituio da forma antiga pela nova. No se poderia talvez falar em transformaes no sentido prprio da palavra, mas numa srie de pequenas e graduais metamorfoses, sem estrpito e sem lances espetaculares. Para dizer tudo: revoluo sem insurreio. A prpria inexistncia de uma classe revolucionria, colocava as classes dirigentes em condies de evitar transformaes amplas e profundas. Mantendo o controle do processo, procediam em ltima anlise a um remanejamento da estrutura. Com sua proverbial lucidez, Joaquim Nabuco sublinhou esta caracterstica da transio operada no Brasil: "O movimento abolicionista foi ... proeminentemente um movimento da prpria classe dos proprietrios". Inevitavelmente, o processo ficou inconcluso. o novo sistema, em lugar de eliminar radicalmente o antigo, absorveu-o em larga medida; o processo, a bem dizer, perpetuou a ordem antiga no momento mesmo em que a negava. A antiga classe dominante se metamorfoseou e desta forma at conseguiu sua base de dominao. IV - As revolues deste tipo ofereciam um saldo escassamente progressista e pobremente libertrio. Marx tinha-as sem dvida em mente ao dizer nas Grundrisse que nas formaes pr-capitalistas "todas as apropriaes revolucionrias eram limitadas". A revoluo antiescravista no produziu no Brasil uma sociedade nova, moderna e dinmica. Na medida em que preservou mltiplos elementos da formao anterior, assumiu um carter no apenas conservador, mas, na verdade, arcaico. Salvo melhor juzo, deve-se ao historiador russo Serguei Kovaliov a conceituao das revolues pr-capitalistas como revolues de ripo arcaico, ou seja, revolues que apenas produziam sociedades atrasadas e conservadoras. Nisso parece consistir a especificidade da transformao social operada no Brasil com o desaparecimento da escravatura.
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