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Como culturalem Portugal
dois anos, Odylo
Costa, filho, conheceu de perto Antonio ! de Oliveira Salazar, todo-poderoso do pais de 1927 a 1968. Agora, como enviado especial de REALID ADE, voltou a Lisboa e _ testerriunhou. os dias da "I : 1 /r -. .,. I, 54 0$$ S ala;r.ar acabou de reinar. A palavra final, priHicamente uma sentenga cassando os poderes do horoem que governou Portugal durante . quarenta anos, quem a da e urn medi- co, o Dr. Vasconcellos Marques, num quarto dp Hospital da Cruz Vermelha, em Lisbaa. 0 ' cirurgiao nao tern - e fato conhe- cido - qualquer simpatia pelo regime comandado com mao de ferro por esse velho de 79 anos que agora depende de seus cui.dados profissionais. Mas vai trata"lo com todo .a devotamento. Quan- do 0 ' lhe comunica que . e ne- cessaria al'ltorizagao expressa para a in- tervengao, Salazar apressa-se a da-la. 0 pr: Marques interrompe-lhe o gesto: Nao. Vossl!- Excelencia, com os sin- tornas que e em face do re- sultada . 4os exames cllnicos, nao pode mais ser consider ado em condig6es para isso. A assinatura . nao . deve ser sua. Era o. fi.in ... 0 . velho chefe se curva. Assinam o documento o ' Pre- sidente America Thomaz e o Minis- tro Motta da Veiga. Resta a Salazar a !uti contra a morte. Q ! poder ja nao esta em suas maos. . . Naquele dia, em Lisboa, urn reina- do chegava ao fim. Antes de Salazar, s6 dais reis - Afonso Henriques e Dam Joao V - governaram Portugal duran- te tao largo tempo. Nao se estranhe a comparagao de Antonio de Oliveira Salazar com os reis. A Gangalves Cerejeira, seu C?mpanheiro de republica em Caimbra e hoje Cardeal Patriarca (resignataria) de Lisboa, teria dito, ainda rapaz: - Sinio que nasci para primeiro-mi- nistro de urn rei absolute. I Primeiro-ministro, quase urn rei , ele o foi com sua forte vontade. E s6 a ate .a morte. ' - Considere como e passageira a .gloria dos homens - diz-me urn por- tugues eminente que tern visitado Sa- lazar no hospital. 0 senhor de Portu- gal durante quase meio seculo agora jaz inerte, Uma canula na garganta, p;ua respirar; uma canula no estomago, para receber alimento; canu- las nas veiM das pernas, para o plasma, e urn aparelho de respiragao artificial mantendo a vida. sse estado de agonia, com alternati- vas de dura muitos e mui- tos dias. Tudo comegou com uma queda: Salazar costumava sentar-se com tado o peso do corpo - uma imposi- gao da velb.ice au, quem sabe, urn ha- bito antigo e teimoso. Num dia de se- tembro, o presidente do Conselho de M inistros cleixou-se cair pesadamente na sua de lana, que veio abai- xo. Ao que parece, nao houve desde logo conseqliencias maiores dessa queda. Chamada, Q Professor Eduardo Coelho, ha longos anas medico de Salazar e expenente nao s6 .. do ccragao de seu cliente maill importante, como de nu- merosos outras - eu; proprio bati por vezes a sua porta - , recomendou que' 0 avisassem de qu3:lquer anormalidade. 'sses sintomas, quase despercebidos, apareceram pauca depois: em reuniao do Conselho de Ministros, Salazar per- guntou pelo ministro da Economia. Como as presentes se entreolhassem e lembrassem que ele se encontritva em viagem, corrigiu: - Ja sei. . . ja sei. .. Para Dona Maria de Jesus, sua go- vernanta, ele se queixa de forte e per- sistente dor de cabega. 0 exame me- dico revela a existencia de urn hema- toma no cerebra. Uma junta medica decide pela necessidade de intervengao cirurgica, cpnvoca-se o Dr. Vasconcel- los Marque$. Os sintomas desaparecem em dais Salazar se recupera rapi- damente e fala sobre a doenga como coisa do passado. Chega a provar o seu arroz de frango ao m6lho pardo e o seu vinho do Dao, o mais suave e saboroso de terras portuguesas, vindo de seu vale natal. E rebela-se ate con- tra as imposig6es do tratamento, ao ter de entregar o brac;:o para mais uma injegao. Uma das senhoras presentes (havia sempre urn car!nhoso drculo fe- 1 minino em torno dele) diz-lhe, em tom , de censuia afetuosa: - Agora, senhor presidente, agora mandam OS medicos . .. E ele, nipido, com autoridade: - Os medicos que eu escolhi . .. No dia 16, inesperadamente, sabre- vern uma hemorragia no hem.isferio ce- rebral direito, em conseqliencia da ru- t'ura de tuna arteria. sse acidente vas- cular nada tern a ver com o hematoma removido. Podia . acontecer a qualquer tempo. Agora a Iesao e mais grave. Nova e ii:n'ediata operac;:ao nao 0 livra da pa- ralisia e do estado de coma, mas lhe prolonga a vida, embora sob as formas mais vegetativas. ' ." . A.' vida na antecamara Chego a Lisboa tres dias depois, a .19. Nao ha sinal de crise nas ruas. As lojas fazem. o seu, comercio, os taxis sao 4isputados, OS b.ondes - aqui eles.. sao . chamados ' eh!tricos - so bern modorrentos 'as ladeiras do Bairro Alto. ' A noite, Ionge do centro, permanecem acesas as luzes do sexto piso - e como se diz aqui - .do Hospital' da Vermelha. Na anted.rnara do quarto n. 68 . ha vida em agitagao: conversam grandes figuras do regime, ministros, embaixadores, homens de empresa, che- fes militares, senhoras da sociedade. Faz-se polftica. La dentro, urn homem - urn homem so - !uta contra a morte. Dpas vezes par dia, as 13 e as 20 horas, urn boletim medico anuncia, com minucia, pressao, pulso e progn6stico, SEGUE SALAZAR CON'I'lNLIA(,!Al\ La o silencio; Ia o tumulto. sernpre reservado. E, como numa tarde o Dr. Bissaia Barreto, velho amigo de Salazar, anuncia de recupera- e as faz acompanhar de expressoes violentas, que os rep6rteres fixarn nos gravadores, contra os que estao "ven- dendo ern vida" 0 presidente, sao toma- das outras providencias: s6 podern falar sobre o estado do paciente o Professor Eduardo Coelho, o clinico, e o Dr. Vas- concellos Marques, o cirurgiao. Ou me- lhor, falern por eles OS boletins. 0 acerto da cirurgia praticada e o pessimisrno dos progn6sticos sao confirmados pelo Dr. Merritt Houston, famoso cirurgiao americana que operou Eisenhower. Em documento de proprio punho, distribufdo em fac-simile aos diretores dos jornais, ele da a SUa opiniao: OS medicos pOrt"ll- gueses agiram rapido e certo. Enquanto isso, na antecamara, a vida e mais tumultuada. J a agora nao ha . tantas de si'lencio, em- bora a porta do doente apenas seja aces- sfvel as pessoas mais chegadas da fami- lia, aos mais fntimos, as principais auto- ridades. Cruzam-se jornalistas vindos dos quatro cantos do mundo. E la em- baixo, no saguao, a fila dos humildes, dos velhos correligionarios. 'ste ou aquele personagem se destaca pe!o nome ou pela e logo o fot6- grafo do Diario de Noticias o guarda em imagem para o dia seguinte. Na antecamara discute-se politica sob formas sutis. Alguns sustentam que, quantc for vivo Salazar, nao se !he deve dar sucessor, outros acham que nao ha de mas que se deve encontrar uma forma de resolver o problema: sem a formalidade da exo- o ministro de Estado, Dr. Motta da Veiga, poderia continuar as- sinando por Salazar. Em muitas bocas anda o nome do Professor Marcello Caetano. No sabado, 21 de setembro, diz-se que ja esta con- vidado e ate conversou por uma bora com o famoso General Kaulza de Arria- ga, presidente da Junta de Energia Nuclear. Mas ha quem objete que Mar- cello Caetano e urn homem de 1940, e precise atender as novas mi- litares escolhendo outro, mais com todos os compromissos do exte- rior e nenhum compromisso no interior. E esse existe, e o rninistro dos Neg6- cios Estrangeiros, Franco Nogueira. Mas na segunda-feira ja e certa - a nao ser para alguns dos que apostaram contra ele - a escolha de Caetano. Um homem sobe Agora, os jornalistas rondam a casa de Marcello Caetano e terminam por surpreende-lo entre seus doze netos. homem que esta para subir ao po- der, que a do sis- tema juridico vigente na lei em que a popular coexiste com o regime corporative, contrasta com o soli- tario Salazar - o Dr. Salazar, como ele chama - na expansao do convivio familiar. A foto em que aparece corn seus doze netos grita esse contrast e. No sex to an dar do Hospital da Cruz Verrnelha, ainda se resisten- cias. Mas agora todos, gravemente, concordam que a melhor seja dada pessoalmente pelo presidente da Republica, apoiado como estii pelos chefes militares. Concordam tambem com o acerto da escol_ha de Marcello Caetano, depois de convocar os cos para lhe dizerern que Salazar nao voltaria a si. Todos sabem e cornentam a decisao, na antecamara de Salazar e nos corredores do Governo. Mas embal- de os jornais procuram divulgar a noti- cia, embora sob a forma de especula- Vao e voltam as pro vas. N ada feito. A Censura nao permite nem a de que se cogita dar suces- sor a Salazar e que entre os nomes apontados esta o de Marcello Caetano. A cidade continua calma, vivendo a sua vida de todos os dias. Pega-se urn taxi, o chafer chora Salazar; pe- ga-se outro, o chafer desabafa contra. Conversam as criadas: uma diz que Sa- lazar "vai durar muito a sofrer, ele fez muita gente sofrer e vai sofrer muito antes de morrer". Outra teme urn fan- tasma: "Quando ele 'morrer, volta logo pra aldeia, antes que o comunismo to- me conta". E, hi no Porto, dizem, uma mulher que vern do campo quer saber quem e esse Salazar, de quem tanto falam. Explicam-lhe que e o homem que governa Portugal ha quarenta anos e agora vai morrer. Ela fica muito triste, muito triste mesmo. - Mas agora talvez chamem para d Iugar a Irma Lucia, que viu Nessa sJ- nhora de Fatima. Ainda na manha de quarta-feira, 25, ha quem duvide de que Salazar seja exonerado. Ligo para o poeta Fernan- do Guedes, admirador de Salazar e companheiro de trabalho de Marcello Caetano na Editora Verbo. '1e acha que de novo sera adiada a ofi- cial, pois o chefe de Estado nao fala a sem o previo an(mcio de suas pa- lavras. E nem os vespertinos dizem nada. Mas sera hoje. Sabe-se, nas dos jornais, que o presidente da Repu- blica teve de interromper tres vezes, ao gravii-la no video para retransmissao, a mensagem. Porque tres vezes chorou, tal e a magoa funda com que exonera Salazar. A noite, a imagem do presidente da Republica aparece na teve. Nota-se que o Almirante Americo Thornaz estii co- movido. Baixa os olhos para o papel. Sente-se o que faz, como quem se obstina contra si mesmo para cum- prir urn dever. E vai a ponto de fazer urn hiato, que o silencio da noite torna maior, separando "Marcello Jose das Neves" de "Alves Caetano", ao proferir o nome do novo presidente do Conse- lho. Fala com gravidade simples, a mesma gravidade teimosa que re- sistiu as sugestoes para s6 preencber 0 cargo depois da morte de Salazar. Yejo a cena bist6rica no aparelho de televisao de uma casa amiga. As criadas sao convocadas a sala para ouvir o pre- sidente de seu pals. Ninguem !hes disse SEGUE A censura
anda mas depressa nada. S6 esta noite os jornais circularao com a biografia do novo governante. Mas elas "sabem" - "Era o que ele queria, coitadito!" "Ie" e Salazar, que ja nao tern mais vida, apenas uma chama. Vive artificial- mente - para a piedade dos fntimos. No dia seguinte, Marcello Caetano e aclamado quando anuncia, na Assem- bleia Nacional: - Acabou o tempo do homem de genio, a epoca dos homens como os outros. Um homem como os outros a vez de urn homem como os outros govemar Portugal. No hospital, Salazar, o homem solitario e "de genio", continua em sua luta inconsciente peta vida. Mal a acompanham os jornais: custava muito caro manter as equipes para limitar-se a receber os l:loletins oficiais. Uma das empresas de cinema chegou a revezar, nos primeiros dias, dezesseis homens, atentos ao ins- tante decisivo, para transmiti-lo as televisoes do mundo. Foi das primei- ras a desistir. 0 mais intimo colaborador de Sala- zar, Paulo Rodrigues, que controlava a irnprensa e os demais meios de co- e acumulara 6dios pela mao dura com que o fazia (por fidelidade, diz-me urn amigo; por sadismo, dizem- rne os jornais), deixa o cargo de subsecre- tario de Estado da Presidencia do Con- selho. Escreve uma carta ao Presiden- te Americo Thomaz dizendo que, com Salazar morto, serviria a qualquer urn; com ele vivo, nao servin:i a ninguem. E declara a urn jomal que goza os primeiros dias do que se vai chamar de degelo ou "Hoje, s6 quem sai do Govemo e Salazar". Quarenta anos. A pagina acaba de ser virada. Mas a antecamara do quar- to- n. 0 68 ainda se agita com as visitas dos ministros que saem, dos ministros que chegam, do Presidente Americo Thomaz, do presidente do Conselho, Marcello Caetano. Marcello Caetano, o professor de Lisboa, com doze netos, que relutou em aceitar a Presidencia do Conselho, e 0 mesmo que ainda estudante de di- reito fundou uma revista, Ordem Nova, rnarcada pelo individualismo d'l direita: Antirnoderna, antiliberal, antiburguesa, contra-revolucivnaria, reacionaria, cat6- lica, apost61ica e romana; monarquica, iiltolerante e intransigente; insolidaria com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais das letras, das artes e da itnprensa. Hoje, aos 62 anos, reune em torno de si praticamente a unanimidade da opi- niiio. Iucido, honesto, sereno. Con- voca os diretores de jornais de Lisboa e do Porto para dizer-lhes que o pais esta em guerra e por isso nao pode sus- pender a Censura. Ela sera conservada como arma potencial, para impedir que as tropas que lutam no Ultramar sejam apunbaladas pelas costas, pelo menos enquanto la estiverem. Ja e uma aber- tura: as provas dos jornais voltam dos censores em quinze minutos, e nao em muitas horas, como antes; e praticamen- te nao ha cortes. A imprensa, que tanto esperou por este dia, esta meio atonita, nao sabe ate onde deve ir, para nao desajudar o novo Governo. Sabado, 28, vou a serra d'Ossa, no Alentejo, pagar uma velha promessa ao eminente escritor portugues Hernani Cidade, que quer mostrar-me sua ter- ra natal. De volta, jantamos num res- taurante regional, em Vendas Novas. Ha muita gente, a televisao esta ligada. Mas e tal o burburinho e a com que se ouve o noticiario sobre o de saude de Salazar (da1 a ins- tantes, a mensagem de Americo Thomaz e o discurso de Marcello Caetano, mais urna vez retransmitidos, sao objeto do in- teresse geral), que s6 ao chegar a Lisboa sei de nova crise. Sera a decisiva? Nao. Nao e. De novo, o velho de oitenta anos afasta a morte. Mas a semana se passa - toda a gente voltada para o novo Govemo. A cada dia, urn homem da me diz quantas deposita na cor- e no equilfurio de Marcello Cae- tano. "Urn hornern como os outros. " Que publica livros, da aulas, fala com os estudantes ( da sua e de outras tur- mas, pois sua cadeira e a mais freqlien- tada por alunos e ouvintes da Faculdade de Direito), que deixou de ser rei tor quando a polfcia entrou em choque com os rapazes da universidade. No Hospital da Cruz Vermelha, Sala- zar continua melhorando. Sabado, 5 de outubro, aniversario da Republica, pela primeira vez depois da crise inicial fecham-se todas as Lisboa vive a beleza tranqtiila de urn feriado de festa dvica. Nao sairao os vespertinos, amanha nao havera matu- tinos. Cessou o plantao aflito que joga- va os rapazes de jornal madrugada adentro. dia 8, chega o mtrnstro das Relac;:6es Exteriores do Brasil, Ma- galhaes Pinto, para uma visita a Sala- zar. A tarde, as 3 horas, o presidente do Conselho, em sua: casa da Rua Duarte, Pacheco, no Alvalade, abre-me a porta do gabinete para uma longa con- versa. E acaba de me dizer quanto ama os poetas brasileiros quando o chamam ao telefone, primeiro o ministro da Sau- de, depois o Dr. Vasconcellos Marques. Salazar entrou. novamente, na sombra. Mas. ao me dar a noticia, Marcello Caetano nao se precipita: - 0 Dr. Salazar tern resistido a tantas crises que podera veneer mais esta. Parece que nao. A pressao desceu a 3,5, o pulso sobe a 100. Cai a tem- peratura. Medicos ouvidos pelos jor- nais olio tern duvidas: e o fim. pode sobreviver em tais condic;:oes. Na Embaixada do ,Brasil, a noite, discute-se urn problema delicado: como agira Ma- galhaes Pinto se sobrevier a morte de Salazar? Quantos dias durarao as exe- quias? Devera o chanceler brasileiro permanecer em Lisboa? Mas as 3 da SF.Gt.; l': SALAZAR coN1' I NUAC; .t o Se Maria falasse ... mas ela s6 faz chorar. rr.adrugada chega a not!cia aos jornais: o Dr. Eduardo Coelho acaba de se re- tirar do hospital. Salazar venceu a rnor- te outra vez. Vinte dias depois as rnelhoras se acen- tuarn tanto, que se anuncia sua volta para casa. Cbega a sentar-se. Logo volta a prostrar-se, porem. ~ quando toda uma sucessao de novos acidentes circulato- rios derrota OS medicos. Mas ja nao e 0 chefe do Governo, na plenitude dele, depois de quarenta anos de mando, que cede, afinal, nessa !uta contra a morte. ~ apenas urn bomem, que desde 16 de setembro de 1968 nao recupera a lucidez, e em cuja antecfunara cbo- ram os intimos. A mulher mais triste Entre os que permanecem na anted- mara ha uma mulher, sempre a chorar, e que tern muito o que contar. : Dona Maria de Jesus Freire, governanta de Salazar. Ela o acompanha desde os tem- pos de Coimbra, onde ele fundou - no antigo Convento dos Grilos - com o entao Abade Manoel Gonc;alves Cerejei- ra e o Professor Mario Figueiredo, hoje presidente da Assembleia N acional, uma republica para moc;os estudantes. Maria ja trabalhava para o abade e foi encarregada de dirigir a casa. Cerejeira gostava de mudar, Salazar nao. Falan- do daqueles tempos da republica instala- da no Convento dos Grilos, disse Salazar: - Eu nao mudava - nunca! - urn move! do Iugar. Meu companheiro, hoje cardeal, era, ao contrario, todo ele fan- tasia. Aproveitava minhas ausencias para tumultuar tudo: a mesa, as cadeiras, os quadros, e pretendia ter assirn a irnpres- sao de habitar urn apartamento novo. Mas, quando Salazar regressava, a casa voltava ao ponto de partida. E assim, em quinze anos, nada mudou, ate que Salazar trocou a republica pelo Governo de Portugal. Num depoimen- to sobre o amigo, diz Cerejeira: - Nunca observei tantos contrastes num ser. .le aprecia a companhia das mulheres e sua beleza, mas leva vida de monge. Nele se chocam sem cessar o ceticismo e a flama, o orgu- lho e a modestia, a confianc;a e a 'des- confianc;a, a bondade mais desarmante e por vezes a dureza mais inesperada. A este tipo de homem, Dona Maria de Jesus Freire, hoje apenas uma mu- lher que chora, serviu com extraordina- ria dedicac;iio. Acompanhou-o, devota- da, entregue, patetica, toda a vida. Di- zia-se que ele mandava em Portugal, e ela, nele. Em 19 51, uma jovem jornalista fran- cesa, Christine Garnier, conseguiu con- quistar as simpatias de Salazar, a quem acompanbou durante ferias no vilarejo natal de Vimieiro, defronte a Santa Comba, no vale do rio Dao. Ouviu-lhe as confidencias: - Nunca trago comigo carteira ou dinheiro. Para que? Nunca escolhi uma s6 gravata, urn so terno. Nao sei quantas camisas possuo. Desde minha chegada a Lisboa, : \ ~ a r i a tomou conta de tudo. Ela me libertou de toda preocupacrao material. Conhece meus neg6cios melhor do que eu! Vive minha vida, compreen- de? Sua intuicriio e tal, que desconfia dos perigos possiveis muito antes de que me advirtam. N em min has irmiis tomaram conta ~ mim a esse po.nto ... Maria niio foi apenas a governanta, a selecionadora de gravata ou a fiscal atenta dos prates que se destinavam a mesa do senhor presidente do Conselho: era, segundo as palavras do proprio Sa- lazar, "uma especie de secretaria". - Muitas pessoas - dizia ele - , nao desejando escrever-me de maneira ofi- cial, dirigem suas cartas a Maria. Ela recebe, assim, urn correio consideravel. Oucro-a as vezes queixar-se: "Perco meu tempo a responder a essas cartas todas, quando tenho tanto o que fazer em casa". ~ por Maria, enfim, que me chegam os ruidos do exterior, os boatos mais secretes e, palavra de honra, ate as criticas. 0 homem s6 Urn homem de pouco aparecer em publico, de raro se mostrar na intimi- dade. Mesmo em fotografia. Nao se casou, embora haja quem jure que houve urn casamento secre- to. Se, no futuro, baseado no retrato com a beca de professor e aliancra no dedo anular esquerdo, exposto em Coim- bra, a'lguem afirmar que Antonio dF Oliveira Salazar era ca:;ado, se enganli: o corpo e as vestes, no retrato, sao d' o Professor Marcello Caetano, s6 a cabe9a e de Salazar. : urn Fetrato montado, gracras a cooperacrao daquele que viria a ser o seu sucessor. Sobre as mulheres na vida de Salazar ha outro depoimento dele proprio, no livro de Christine Garnier, "o unico que fala a verdade, pois Christine viveu co- rnigo". Quando Christine, ao aborda-lo pela primeira vez, contou-lbe que de muitas pessoas ouvira ser-lhe a compa- nhia das mulheres insuportavel, Salazar rebenta de rir: "Sao talvez as que recusei receber que espalham essa reputac;iio". Mais tarde, estabelecida a intirnidade, Christine Garnier soube do sonho da mocidade de Salazar. Seu pai fOra feitor das terras de uma rica familia da Beira Alta. Formando, o moc;o foi pedir a mao da menina da casa. Recusaram-na: "Mas nao ve logo .. . " Nao via. Julg.a- va que o diploma em Coimbra bastas- se para elevar o filho do feitor ate a si- nha-dona. Permaneceu solteiro? Nao o poem em duvida, repelindo com indig- nacrao o rumor do casamento secrete, portugueses eminentes. Mas adotou duas meninas - Micas e Maria Antonia - ligadas pelo sangue a Dona Maria de Jesus e por ela trazidas a. casa. Na ver- dade, esse homem do poder, para quem o pod'er era realidade maior, pensava em ter filhos (poucos) , possuir uma rnu- lher fie!. embora sem amor, uma casa limpa, urn jardim perfumado, onde viver recitando o rosario sem querelas nem processes. f.sses desejos estiio con- sEcc.a .:1ALAZAR CONTI N 'A<;.in Governava seguin do o exemplo materno tidos nos versos de urn soneto de Plan tin, que ele tinha emoldurado em sua sala de trabalho. Em muitas oportunidades, Salazar falou da influencia exercida por sua mae, Dona Maria do Resgate Salazar. Tinha ela 44 anos quando nasceu o me- nino Antonio (28 de abril de 1889). Dos onze aos dezenove anos, ele morani Ionge dos pais, no Seminario de Vizeu. Vai depois para Coimbra. Mas a pre- senya materna se identifica em cada momento de sua vida de mo9o. Com Dona Maria do Resgate passa, invaria- velmente, os domingos. Na aldeia, Ion- ge de Coimbra. E, quando a 11 de junbo de 1926 ele aceita voltar a Lisboa para ser, de novo, ministro das Finan9aS, e 0 conselho de sua mae doen- te, a cuja cabeceira se encontra, que o decide. Mais tarde, felicitado pela re- cupera9lio economica do pais, responde: - Aprendi com minha mae. Adminis- tro o Estado como uma pensao. Com de- cisao e economia. Quando a mae morreu, ficou ao pe da cama ate a ultima semana. E diria depois: SEGUE 0 GOLPE FRACASSADO 0 que o Almirante Thomaz fez a 27 de setembro de 1968 - desi&- nar urn novo homem para ocupar o paste de Salazar - jli lhe fora propos- to, sete anos antes, pelo Ministro da Defesa, General Botelho Moniz. Em 1960 ha, pela ultima vez. direta . para presidente da Republica. Antigo salazarista exaltado - bunca foi homem de fazer as coisas sem paixao -, o Oeneral Humberto Delgado o candidate da e corre Portugal de ponta a ponta. No Porto, segunda cidade do pais, tern uma que e, per si s6, uma E de volta a Lisboa, quando lhe perauntam o que fara, se eleito, a Salazar, responde, incisive: - Demito-o! Ainda hoje hli, entre correU&ionarios de Delgado. quem afirme que esse crro de tatica o liquidou. 0 certo que o re&ime endureceu, e as urnas apenas registraram para Humberto Delaado 236 528 votos, contra 758 998 a America Thomaz. A contesta esses da dos oficiais. Mas nao era facil encerrar, pelo sufnigio popu:ar, urn re- gime como o de Portuaal. Dai por diante, a elei!;lio passa a ser indireta. Em 1965, ja a nao teve candidate. Thomaz foi reeleito sem competidor. A ultima tentativa de mi litar contra 0 regime e 0 golpe de Esta- do fracassado de 1961, que e aqui con tado pela primeira vez em lingua por- tuguesa: os jornais de Lisboa e do Por- to nem fotografias tern em seus arquivos. No inicio da de 60, Portugal tern muitas dificuldades no plano exter no. Perde, pela fOr!;a, Goa para a 1ndia; Henrique Galviio apodera-se do transa- tl!ntico Santa Marfa (23-1-1961) e has teia no mastro principal a bandeira de outra santa - a "Santa Liberdade" - e navega para o Brasil , onde recebe asilo: a 4 de fevereiro do mesmo ano sao assaltadas a academia militar e a policia de Luanda, em Angola. e a IS de irrompe a revolta no Noroeste desse territ6rio. Em principios de abril, o General Botelho Moniz, ministro da Defesa, es- creve uma carta a Salazar, da qual sao distribuidas c6pias em segredo. Acon- selha uma nova politica, extema e inter- na, em nome des comandos militares. No dia 7, o ministro pede a America Thomaz uma audiencia urgente. Res- pondem-lhe que o almirante vai a uma Moniz fala diretamente com o presidente: - Mas e urgente. Depois da ca<;a- da . . . - Tenho urn jantar com personali- dades cinegeticas. - Entao. depois de jantar. :e mesmo urgente! Da-se o encontro - depois do jan- tar. mais de meia-noite, a conversa e cQrdial, a indicacio, muito clara. Moniz informa que os comandos mill- tares, montados dia a dia em diligente querern dar a Salazar des- canso compu s6rio, iniciar em Anaola, transitar paclficamente para a democracia, numa abertura liberal. America Thornaz ouve com muita atencao. E opina: na questao extema acha primeiro necesd.rio resistir. para com a vit6ria admitir solu!;lio politica; quanta a Salazar, pondera que e ho- mem de idade, que dedicara tOda a vida ao publico, sacrificara-se pelo pais e por tudo isto era justo ter com ele as que de- corriarn dos anos e dos trabalhos. Tranqililo quanta a eficiencia do sis- tema que armara de ponta a ponta de Portugal, o Ministro Botelho Moniz des- pede-se e vai dorrnir. No dia seguinte. entre altos escaliies e em companhia, inclusive, do ex-Presidente da Republica Marechal Craveiro Lopes, que o foi buscar a casa, disposto a acao e com a farda de gala numa pasta, para as responsabilidades a assumir (estava em uniforme de campanha), o aeneral-mi- nistro aguarda a sua bora. Esta no edi- ffcio do Ministerio da Defesa, na Cova de Moura, decorado de metralhadoras nos quatro cantos. Enquanto isso. de posse do radio, da televisao, da irnprensa oficial, da Cen- sura e demais instrumentos da pollcia (a famosa PIDE - Policia Intemacio- nal de Defesa do Estado). Salazar de- milia o ministro - de cinco em cinco minutes, a popula!;lio, sem saber o que estava acontecendo, ouvia a noticia - , demitia os comandantes em seus quar- teis e nos seus barcos, estendia o brac;o pelas provincias de aquem e alein-mar e esvaziava a conspiracao sem chegar nem mesmo a prender os conspirado- res, que foram saindo para casa e em casa ficaram detidos sob palavra. Ate hoie, os iomais portugueses nao contaram essa hist6ria. para nao reve- lar a de Craveiro Lopes, ex- presidente. nurn ate ostensive contra Salazar. Urn amigo de Craveiro garan- te que a do marechal era de ir as maxirnas conseqilencias. S6 desis- tiu quando os demais chefes militares !he perguntaram o "que fazer" . A r-es- pasta: - Deem-me os meios de a<;ao e sa- berei o que fazer. , Ninguem tinha mais meios de acao. Eram todos ex: ex-presidente, ex-min,i:;- tros, ex-comandantes. No Ministerio da Defesa, onde ainda se encontrava, 'o General Botelho Mo- niz recebeu duas canas; de Salazar, bas- tante cordial, lamentando ter de !he dis- pensar os servi<;os;. e a de America Thomaz, bastante seca, demitindo-o. E isso encerrava o golpe de Estado. . .. r .. Proressor subversivo e deputado pol" urn dia -- Acredito que as circunstancias de- sempenham papel capital em nossas vidas. Quante ao que me concerne, .nao teria ficado muito tempo ministro se ntinha mae nlio tivesse morrido. Ela nii.o podia viver sem mim, e eu era in- capaz de trabalhar quando a sentia inquieta. Uma tarde no Parlamento Ha urn trac;o do carater de Salazar que o rnarca desde rnenino: o rnesmo senso de disciplina que o leva a nao permitir o deslocamento de urn so mo- vel na republica de Coimbra ja no se- mimirio de "Vizeu o destaca entre os _. colega5. -.As '"celas sao individuais, nias ...,._ abertas dia e noite. Os alunos nao .tern o direito "qe _ entrar uns pelas portas dos outros, o regularnento o proibe: Mano de Figueiredo recebia frangos assados, - bolos-de-amor, papos-de-anjo. Convocado pelo amigo, Salazar pedia primeiro, cerimoniosamente, permissao ao padrepara partilhar daqueles requin-- tes gasttonomicos. Mas niio passava a soleira, comia deliciado no corredor, de pe. A regra escrita antes de tudo. Sua carreira polftica na republica parlamentar e freqtientemente esquecida. fez parte, logo depois de 1910; quando ainda estudante, do Centro Aca- demico de Democracia Crista, mas em 1962 ressalvava que a palavra nao ti- nha, cinqtienta anos antes, o senti do de . hoje: "A denominac;ao nao era 1<1 muito feliz, mas prevalecia 0 acento sobre a palavra crista e nao sobre a pal avra dernocracia, de que uns erarn adeptos, outros nao". Ern 1919, ja professor em Coimbra, Salazar e suspenso juntamente com tres colegas, por suspeita de ac;:ao subversiva monarquica. Abre-se inquerito. Sua de- fesa - "A minba resposta" - e por vezes insolente: "Nao sabem se sou monarquista ou nao . . . eu sei muito bern o oue sou, mas nao direi"'. Tres a-nos mais tarde, aceita candida- tar-se a deputado nacional, pelo Cen- tro Cat6lico de Guimaraes. Eleito, to- rna posse a 2 de setembro de 1921. nesse mesmo <lia renun ia e volta . a Coimbra. Ninguein entendeu direito, naquela . tarde, o. gcsto ,brusco. U rna confidericia ialvez o explique: 1,1m dos homens da maioria, . urn chefe po- litico conservador, que antes ocupara as mais altas posic;oes, !he disse: "N ada podemos fazer. Na Franc;a, as elei96es derrotaram os conservadores. a hora das esquerdas". Mais tarde, Salazar Ji - garia esse episodic ao seu desencanto pela democracia: - Nunca se apagou de minha me- moria essa triste irnpressiio de urn go- verne que tinha maioria na Camara e se sentia rnoralmente abatido porque. num pais estrangeiro, o resultado das tomara certo colorido. Aquele instante de oscilac;ao de am- mo no jogo dos corredores parlamen- tares tomaria, no espirito do jovem deputado, saber de exemplo. E nunca mais participou, depois daquela tarde, do Parlamento. Nunca - por outro lado - subiu a tribuna popular. Sernpre como governante absolute, no estilo lucido e direto a que nao faltavam luminosidade e grandeza. - A natureza nao me dotou para os discursos - dissera ern 1909, no Co- legio da Via Sacra, em Vizeu. Mas, p<)sto em frente do papel, sabia escrever. "le usa sernpre a ordern di- reta", diziam com admirac;ao. 0 Estado forte .. Antonio de Oliveira sem- pre foi obstinado na defesa . de suas convic96es. Dizia: "Nao ha Estado forte onde o Poder Executive- o nao e. 0 o Gover- no a tirania da assembleia J>Oiftica, atra- Ves da ditaduni -irresponsavel e tumul- tuciria dos 0 Estado corpora- tive garante o Estado forte, pela segu- independencia e continuidade da cbefia do Estado c do Mas mesmo o sistema em que se mis- . turavam a popular - .que escolhia a AS5embleia Nacional - e o regime corp<)rativo -__: que tinba a Ca- mara Corporativa .. como uma especie de sen ado - nunci funcionou de verdade com Salazar. Marcello Caetano dizia ha- ver em Portugal urna bicefalia. As duas eram o presidente da Republi- ca, que escolhia o presidente do Conse- lho, e o presidente do Conselho, que mandava em tudo. Mas ele tambem se referia a monocracia do bomem de ge- nio. E os homens de genic aparecern esporadi camente, as vezes com intervalos de seculos: a normalidade das institui96es assenta nos homens comuns .. Ainda agora, 0 novo presidente do Conselbo oxigenou o sistema corporative, acabando com a exigencia de aprova- c;ao pelo Ministerio das d!!s eleic;:6es sindicais (o Dr. Vasconcellos Marques, o cirurgiao que operou Sala- zar, era ba sete meses diretor da Ordem dos Medicos de Lisboa, mas a a:retori a nao fora aorovada oor causa de suas opini6es). E. anunci a que vai proceder a eleicces de verdade oara a Assembleia Nacional, em outubro de 1969 .. Vai ver .: ... . ---- Ele jamais 0 la, e quando rnuito a Sevilha, para en- contrar-se com Franco. Em quarenta anos de poder - ete dominou o pais efetivamente a partir de 1928, quando foi feito Ministro das - , Salazar conservou o roes- roo sentimento de desconfi an<;a pela iro- deixou poder. N prensa. Uma desconfian<;a que vi nha em da adolescencia. Certa vez, contava ele. discutira, no Convento dos Grilos, com Cerejeira, o valor informative do jornal. Ao contrario do que fora noticiado, nao a passe1o. como funciona, agora, o sistema a que deu ordena<;io juridica. - 0 sistema foi montado para nao funcionar - observa o Sr. Afonso Ari- nos de Mello Franco, de passagem por Lisboa. - E o paradoxa e que funcio- nou com a escolha, pelo presidente da Republica, do novo presidente do Conse- lho, sem urn grito, sem urn tiro. Alias, era isso que respondia Salazar, quando lhe sugeriam que depois dele seria o diluvio. Sua substitui<;lio era coisa normal, prevista na Constitui<;ao. 0 pre- sidente da Republica escolheria outro presidente do Conselho. Problema gra- ve seria o da substitui<;lio do proprio pre- sidente da Republica, porque o corpo eleitoral era rna is numeroso ... Uma viagem de metro 0 homem que nao gostava de mudar OS m6veis SOube segurar as redeas do poder absolute. Nesse mister, poucas ve- zes saiu de seu palacio de Lis.boa. Falta- va-lhe a inquietude da viagem. A nao ser a Santa Comba Dao, so ia ao Forte de Santo Antonio, em Sao Joao do Esto- ril, perto de Lisboa, onde passava as ferias de verao e onde foi acidentado. Viagens mais longas contam-se nos de- dos. Em 1924 foi a ilha da Madeira, mas nao saiu da capital, Funchal; no mesmo ano foi a Bruxelas, em compa- nhia do futuro Cardeal Cerejeira, para urn congresso cat61ico; e em 1927, urn ano antes de ser nomeado ministro das Finan<;as com amplos poderes para re- formar a economia de Portugal, foi a Fran<;a. Nao esqueceu mais essa viagem. Fala a Christine Garnier: --- - A Frnn<;a; como-ela -e bela. Fui a Lourdes. Conhe<;o tambem Paris, mas muito pouco. Fiquei uns dias apenas. Vi- sitei os museus e admirei os edificios. Sabe o que fiz na vespera da partida? Tomei o metro, sem destino, vi desfilar esta<;oes - Barbes-Rechechouart, Art- et-Metiers, ttoile ... e tive a ilusao de co- nhecer urn pouco a capital do espirito. Depois de 1928. o poder prende Sala- zar a Portugal. 0 mais lange que vai e a Ciudad RrJrigo, na fronteira espanho- saira de casa, nao tamara o trem, nao fOra ao Iugar citado nas folhas. Mas o cardeal, bern pensadas as coisas, con- cluia que sim, que fora, o que valia era a versao, nao 0 fato. . Pequenos episodios como este que valor tiveram na forma<;ao de Salazar para anima-lo na pesada mae que fez cair sobre OS jornais portugueses, Obri- gados, por lei, a fazer constar de cada exemplar a indica<;ao "ste numero foi visado pel a Censura ''? Shakespeare censurado Nos ultimos anos, a institui<;ao, em si rnesrna detestavel, se tornara ridicula. Certamente porque a politica do turis- mo visava proteger a industria hoteleira do Algarve e destacava a sua paisagem ensolarada, o calor de suas aguas, era - dizem-me - impassive! mencionar a existencia de parques de campismo perto de Lisboa ou as neves ao sol na serra da Estrela. Quando Salazar completou 79 anos, esse numero foi cortado nos titulos. Urn telegrama sobre 0 aumento da prostitui- <;lio na Tcbecoslovaquia depois da inva- sao russa foi proibido, porque se acenava com regulamenta<;lio da chamada mais velha profissao do mundo. E, como antes da invasao OS jornais nao puderam contar que a Censura tcheca fora sus- pensa, nao foi facil noticiar que ela fora restabelecida ... Atenta a malicia das revistas litera- rias, a tesoura desabava sobre 0 verso final de urn trecho de Shakespeare, tra- duzido por Sophia de Mello Breyner Andersen, a ser publicado no mensario 0 Tempo e o Modo, nas comemora<;oes centencirias do poeta, porque pedia, apontando para o fantasma: "Fa-lo pa- rar, fa-lo parar, Marcello". So abdican- do dessa passive! alusao a Marcello Caetano a revista pode circular. Nao havia censura previa para os li- vros, mas os editores corriam o risco de te-los apreendidos por motives de ordem moral ou politica. Basta contar que entre os confi scados est a va A Guerra das Salamandras, o famoso romance de fic- cientifica construfdo como antevi- sao de urn mundo subjugado por seres do abismo, pelo tcheco Karel Kapek, antes da guerra de 1914. Ou Os Pastores da Noite, do nosso Jorge Amado, urn dos autores mais populares em Portugal. Na verdade, Salazar assurnia a res- ponsabilidade das impostas a liberdade da cultura. "Encantador, mas ainda ere em Jean-Jacques Rousseau", foi o 3eu comentario sobr e Eisenhower. Max Fischer !he perguntou certa vez: SALAZAR cONTl!WA(;Ao
nem her6i, nem nem santo. - Se urn editor quiser publicae 0 Capital, de Marx, a Censura permitin1? - Nao! E acrescenta: - Alias, meu gesto nao diminuida i de urn s6 0 numero dos qut!. falam dele sem o ter lido. Governar e protegee as pessoas contra elas mesmas. . Assisti, faz (res a UJ!la . entre brasileiros sabre OS que os portugueses contrarios a.Salazci,r e que se consideravam maioria riaq .o depunham. Estava urn cas!il ilustre, que sempre militara, imp9tc:mi:'; 'j na Nao !he era facil explica.r que no sistema das ditaduras ; de que o Marques de Pombal foi o pre- cursor, o Governo s6 cai por uma liao militar, uma guerra estrangeira ou uma de palacio. ' . 1 muito distante "Nem her6i, nem sabio, nem Salazar define-se em 1958, ao .proclamar candidato o Almirarite Americo Thomaz. Mas conseguira conservar, talvez subcons- cientemente, o paraiso perdido da infan- cia, como visao de urn Ponugal alheio aos valores da industrial. se horrorizava se lhe dissessem que sua polltica se encontrava, por certas coinci- dencias, com o ideal anarquista. Antes Portugal pobre, que Portugal diferente ... Ser rico nao e ser feliz. A novidade, a o importuna- vam. Conta-se que, ao saber, pelo rninis- tro de Ultramar, da descoberta de pe- tr61eo em Angola, exclamou: - S6 me faltava mais esta! Costumava reclamar da sua propria falta de liberdade, nunca se sentia a von- tade, mesmo para camirihar no parque - "imaginem que numerosos vizinhos, alias gentilissimos, podem me espiar das janelas dos arredores". Mas, numa de suas ultimas entrevis- tas, fez uma previsao do tempo neces- saria as na<;:oes africanas para 0 exerd- cio da liberdade: - Precisarao quatrocentos, quinhen- tos anos ... F !M