Sobre Voltaire
Sobre Voltaire
Sobre Voltaire
So Paulo 2011
Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao em filosofia da Universidade So Judas Tadeu como parte das exigncias para a obteno do ttulo de mestre em filosofia por Julio Cezar Lazzari Junior Orientador: Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva
So Paulo 2011
Lazzari Junior, Julio Cezar A religio racionalista de Voltaire / Julio Cezar Lazzari Junior. - So Paulo, 2011. 226 f. ; 30 cm. Orientador: Paulo Jonas de Lima Piva Dissertao (mestrado) Universidade So Judas Tadeu, So Paulo, 2011. 1. Voltaire, 1694 - 1778 2. Filosofia - epistemologia 3. Liberdade religiosa I. Piva, Paulo Jonas de Lima II. Universidade So Judas Tadeu, Programa de PsGraduao Stricto Sensu em Filosofia. III. Ttulo
Agradecimentos A Deus, Senhor de tudo e de todos. minha esposa Gisele e minha me Idalina. Ao professor Piva, cuja dedicao nunca falhou. Sua valiosa orientao ajudou a construir cada parte desta dissertao, do comeo ao fim. Ao professor Floriano, por sua importante orientao na construo da estrutura desta dissertao. s professoras Regina e Snia, por suas relevantes observaes em meu exame de qualificao.
RESUMO O intuito desta dissertao de mestrado responder: qual a religio de Voltaire? O filsofo teria um modelo de religio a propor? Sabendo que a resposta positiva, trabalhamos, analisando as principais obras de Voltaire, para entender quais so os fundamentos mais importantes de sua religio, quais so as questes que mais aparecem nas obras do filsofo e como elas so respondidas. Para isso, apresentaremos a relao das ideias de Voltaire com o cristianismo vigente em sua poca, e a posio do filsofo a respeito de Deus, da alma e do livre-arbtrio, bem como o modelo de religio proposto pelo autor do Cndido. Palavras-chave: religio, Deus, alma, livre-arbtrio. ABSTRACT The aim of this masters paper is to answer: what is the religion of Voltaire? Does the philosopher have one religious model to propose? Since we know that the answer is affirmative, we analyze Voltaires main works, in order to understand what the most important bases of his religion are, what the questions that most appear in his works are, and how these questions are answered. So, we will present the relationship between Voltaires ideas and the Christian religion of his time, and what our philosopher thinks about God, soul and free will. We will present, too, what is the religion model of Voltaire. Keywords: religion, God, soul, free will.
SUMRIO
Introduo...............................................................................................................................3
Captulo 1: Voltaire e a religio do seu tempo: viso crtica do cristianismo.......................09 1.1. O ataque de Voltaire Bblia como o principal pilar do cristianismo.....................09 1.2. Crtica histrica Bblia...........................................................................................19 1.2.1. Emprstimos que a Bblia teria tomado da histria de outros povos...................................................................................................................19 1.2.2. Incompatibilidade da histria bblica com a histria de outros povos...................................................................................................................24 1.2.3. Problemas histricos internos..............................................................30 1.3. Absurdos, contradies e atrocidades constatados por Voltaire na Bblia...............36 1.4. A intolerncia do cristianismo.................................................................................52 1.4.1. A experincia de Voltaire na Inglaterra...............................................59 1.4.2. O caso de Jean Calas...........................................................................61
Captulo 2: O Deus de Voltaire.............................................................................................67 2.1. Argumentos a favor da existncia de Deus..............................................................67 2.1.1. Causas finais e as leis da natureza.......................................................72 2.1.2. Vazio e necessidade da matria...........................................................81 2.1.3. A moral universal: ideias inatas e empirismo......................................84 2.2. A relao do Deus de Voltaire com a humanidade..................................................98 2.2.1. O problema do mal e do sofrimento: combate ideia do melhor dos mundos................................................................................................................98 2.2.2. O terremoto de Lisboa.......................................................................113 2.3. Rejeio de Voltaire ao atesmo.............................................................................118
Captulo 3: A Alma em Voltaire.........................................................................................123 3.1. Quadro terico da discusso acerca da natureza da alma na filosofia dos sculos XVII e XVIII.......................................................................................................................123 1
3.1.1. O dualismo de Ren Descartes..........................................................124 3.1.2. O materialismo de Jean Meslier........................................................130 3.1.3. O materialismo de Denis Diderot......................................................147 3.2. Argumentos contra a espiritualidade e imortalidade da alma em Voltaire............160 3.2.1. A manuteno dos sentidos e da identidade aps a morte.................161 3.2.2. Falta de evidncias fsicas sobre a autonomia da alma.....................165 3.3. Suspenso de juzo sobre a natureza da alma.........................................................171
Captulo 4: Voltaire em face da liberdade metafsica.........................................................178 4.1. O pecado original...................................................................................................178 4.2. Liberdade metafsica e determinismo causal.........................................................187 4.2.1. Duas etapas da obra de Voltaire: defesa do livre-arbtrio e determinismo.....................................................................................................188 4.2.2. Continuao dos argumentos deterministas de Voltaire....................196
Captulo 5: A religio de Voltaire.......................................................................................205 5.1. O modelo de religio proposto por Voltaire..........................................................205 5.1.1. A religio submetida ao Estado.........................................................206 5.1.2. A religio natural e racional..............................................................212
Concluso............................................................................................................................218
Bibliografia.........................................................................................................................220
INTRODUO
A presente dissertao tem como objetivo principal responder a seguinte questo: qual a religio de Voltaire? Antes de apresentarmos o nosso trabalho, todavia, gostaramos de apresentar o filsofo, destacando alguns episdios relevantes em sua vida. Voltaire nasceu em Paris, no ano de 1694, cidade na qual tambm faleceu em 1778. Seu verdadeiro nome Franois Marie Arouet e talvez o nome Voltaire, pseudnimo adotado em 1718, seja um anagrama de Arouet le jeune (Arouet, o jovem, onde a letra i substituiria a letra j e a letra v substituiria a letra u), ou talvez o nome tenha existido na famlia de sua me. Sua me chamava-se Marguerite Daumard e veio de uma famlia nobre. Gostava de manter relaes sociais com pessoas cultas, que frequentavam sua casa. Seu pai, Franois Arouet, era tabelio e recebia multas na Cmara das Contas, sendo um homem de condio financeira muito boa. Voltaire estudou em um colgio jesuta chamado Louis-le-Grand entre 1704 e 1711 e seu pai queria que ele fosse advogado do rei. Desde bem jovem j escrevia versos e aprendeu dialtica com os jesutas. Seu pai no aprovava a ideia do filho querer seguir carreira literria, pois isso no seria financeiramente bom. Tambm em sua juventude Voltaire conheceu os crculos literrios de seu tempo e a vida no salo de uma conhecida cortes, e assim se inicia seu contato com a vida desregrada do seu tempo. Devido a essa vida de excessos, ou mesmo ao seu estilo polmico, seu pai o envia residncia de um parente, com o objetivo de afast-lo dessas situaes. O filsofo tambm escrevia peas de teatro, emprestava dinheiro a juros e fazia investimentos financeiros. Em 1717 foi levado preso bastilha por terem atribudo a ele dois poemas, os quais acusavam o regente de usurpar o trono. Depois de algum tempo solto. Aps uma contenda com o cavaleiro de Rohan, foi surrado por homens a mando do cavaleiro em 1726. Aps desafi-lo para um duelo, mandado novamente bastilha por influncia do cavaleiro, mas logo solto, com a condio de sair de Paris. nessa ocasio que o filsofo fica na Inglaterra entre 1726 e 1729, experincia essa que resultara em suas Cartas inglesas. A tolerncia religiosa teria sido um dos fatores mais marcantes na experincia do filsofo na Inglaterra. 3
Voltaire se envolveu com a Marquesa de Chtelet, estudiosa de cincia, mulher culta, a quem o nosso filsofo dedicava grande admirao e que marcou sua vida, embora o relacionamento tenha tido muitas turbulncias. Voltaire se relacionou com a Marquesa de 1733 at cerca de 1748, quando a sua amada se apaixona por um jovem, o Marqus de Saint-Lambert, para ira do filsofo, que tambm j tinha trado a Marquesa. Ela vem a falecer, de parto, em 1749, causando tristeza a Voltaire. O nosso filsofo foi influenciado por alguns pensadores, entre os quais destacamos Isaac Newton (1642-1727) e John Locke (1632-1704). Newton representava, para Voltaire, um homem que fazia cincia sria, que buscava conhecer o universo como ele , empiricamente, sem estabelecer verdades a priori. Locke, de igual modo, influenciou o autor do Cndido pela sua maneira de estudar a origem do conhecimento humano, a forma como o homem constri suas ideias a partir dos sentidos, refutando a concepo de que h ideias inatas. Voltaire teve grande ligao com Frederico da Prssia (que viria se tornar o rei Frederico II), tendo estabelecido correspondncia com ele de 1738 at o final de sua vida. Apesar dos mtuos elogios que um tecia ao outro por cartas, quando ambos passaram a conviver na mesma residncia, na corte de Frederico, o que ocorreu aps a morte da Marquesa de Chtelet, no foi possvel evitar os conflitos entre o filsofo e o rei, e o temperamento de Voltaire, que escreveu uma stira contra o presidente da Academia de Berlim, cooperou para a separao dos dois, alm do fato do filsofo ter feito um investimento proibido, o que irritou Frederico. Por volta dos anos de 1760, Voltaire comea a se tornar um militante em favor da causa da tolerncia. O filsofo se envolveu em tentativas de reverso de decises judiciais que envolviam intolerncia religiosa, sendo o caso do protestante Jean Calas, acusado injustamente de matar o filho que supostamente queria se tornar catlico, o mais conhecido de todos. Aps trs anos de trabalho, Voltaire conseguiu reunir evidncias para provar a inocncia de Calas. em Ferney, cidade que ficava prxima da fronteira entre Sua e a Frana, que Voltaire vai viver de 1758 at o final de sua vida. Foi em Ferney que o filsofo passou a receber diversas pessoas, de todos os tipos e posies, interessadas em ouvi-lo, em conhec-lo, em ter contato com um homem que tinha se tornado bastante conhecido e 4
reverenciado na Frana e na Europa por seus escritos e pela sua militncia em favor da liberdade. Nessa fase de sua vida, muitas pessoas procuraram o patriarca de Ferney para pedir-lhe ajuda, muitas vezes em casos envolvendo intolerncia. Em 1778 o filsofo volta a Paris, j com a sade debilitada. L recebido como um rei, como um heri nacional, como um mito. Vai ao teatro assistir a representao de sua pea Irne, e ovacionado pelo pblico. O filsofo retorna sua casa, exausto, e vem a falecer em 30 de maio de 1778.1 Passemos agora, ento, para a estrutura da nossa dissertao. Como antecipamos no incio, o objetivo deste trabalho responder a questo: qual a religio de Voltaire? Como responder a esta pergunta? O mtodo que encontramos para respond-la foi trilhando o caminho que expomos nos pargrafos a seguir. Comeamos, no primeiro captulo, apresentando a crtica de Voltaire ao cristianismo, em especial ao Catolicismo Romano, com o intuito de entender o modelo de religio que o filsofo rejeita, para, a partir da, comearmos a trilhar o caminho at chegarmos ao modelo de religio que ele defende. A crtica de Voltaire, no que se refere religio, no se limita ao cristianismo, mas se direciona a toda religio que se diz revelada, o que incluiria tanto o judasmo como o islamismo, as mais conhecidas, englobando, consequentemente, outras religies que tambm se enquadrariam neste quesito. Mas notrio que o autor do Cndido tem o cristianismo como seu foco principal e, dentro do cristianismo, o Catolicismo Romano seu mais importante alvo. Sendo assim, antes de tudo, apresentamos um quadro terico da crtica religio no sculo XVIII, com o objetivo de entendermos melhor o contexto intelectual no qual Voltaire se situa. O nosso propsito expor como a razo cultivada no sculo XVIII e, a partir dela, as religies seriam julgadas, analisadas, interpretadas. No s isso, mas o desenvolvimento de algumas cincias, como a fsica e a astronomia, se chocaria com a interpretao literal que a Igreja dava Bblia. Com isso, veremos como a mentalidade iluminista, o que inclui Voltaire, entra em conflito com a religio predominante da poca, o Catolicismo Romano.
Para conhecer mais ampla e detalhadamente a vida de Voltaire, indicamos as seguintes obras: Voltaire: nascimento dos intelectuais no sculo das luzes, de Pierre Lepape, Compndio da Cambridge sobre Voltaire, de vrios autores, cujo editor Nicolas Cronk, e Voltaire, de David Federico Strauss.
Aps isso, analisamos, ainda no primeiro captulo, a relao de Voltaire com o cristianismo, destacando sua crtica Bblia e intolerncia crist. Como veremos, o autor do Cndido era um estudioso da Bblia, o que lhe possibilitou manuse-la com certa facilidade. O filsofo submete o texto bblico anlise racional, ao seu conhecimento de histria, problematizando as Escrituras como documento histrico, refutando sua origem divina, buscando contradies internas, negando os milagres. O leitor ver como o patriarca de Ferney trabalha com a Bblia inteira, tanto com o Antigo como com o Novo Testamento, sempre refutando, zombando, tentando tirar seu crdito, buscando tornar sua veracidade e inspirao divina como algo invivel e contrrio razo. A investida do filsofo contra o cristianismo continua com uma interpretao diferente da histria da igreja crist, onde Voltaire entende que os cristos teriam sido intolerantes desde o seu princpio e, por isso, foram perseguidos. A intolerncia, prega o filsofo, faria parte do cristianismo desde o incio, tendo sido manifesta em seus primeiros conclios. Como partimos daquilo que Voltaire demole, isto , da religio que ele entende no ser vivel por ser intolerante e irracional, contra a qual ele lutou com seus escritos e com sua militncia, comeamos a verificar o que ele pe no lugar, ou seja, aps destruir, o que ele constri? Assim, analisamos, no segundo captulo, um dos principais pilares da religio voltairiana, isto , qual concepo de Deus o filsofo defende. Primeiro, trabalhamos com alguns argumentos usados na tradio filosfica que visam provar a existncia de Deus para, novamente, inserirmos o filsofo dentro do seu contexto intelectual, pois sabemos que ele era um estudioso da filosofia, tendo tido, assim, contato com ideias outrora usadas para provar a existncia de um Ser superior. A seguir, selecionamos os argumentos de Voltaire para provar a existncia de Deus, frisando a observao da natureza, das leis eternas do universo como evidncia de que a divindade existe. Depois, tratamos da abordagem do filsofo acerca da relao de Deus com os homens, se o Ser supremo interfere ou no na vida humana. Neste momento, apresentamos a crtica do filsofo aos milagres, sua tentativa inicial de explicar o sofrimento humano como parte de um desgnio geral e, ento, seu abandono total a qualquer tentativa de explicar o mal e o sofrimento por meio de qualquer sistema teolgico ou filosfico. E, ento, conclumos o captulo com a crtica do autor do Cndido ao atesmo, no apenas por sua suposta irracionalidade, como tambm por ach-lo perigoso para a moral. 6
Seguindo a nossa trilha, veremos, no terceiro captulo, o que o filsofo pensa sobre as discusses acerca da alma humana, uma das questes mais importantes para Voltaire. Para contextualizar Voltaire nas opinies que existiam em sua poca sobre o assunto, apresentamos duas concepes antagnicas existentes nos sculos XVII e XVIII, que so: o dualismo da substncia e o materialismo. A seguir, analisamos como o autor do Cndido problematiza a ideia da existncia de uma substncia espiritual, isto , a concepo dualista. Alguns dos principais argumentos focam na dificuldade em explicar como o ser humano manteria os seus sentidos aps a morte, como a identidade seria preservada aps o falecimento do indivduo e na suposta falta de evidncias biolgicas da existncia de uma substncia espiritual. Apesar de tudo o que escreveu contra a existncia de uma alma espiritual, o filsofo suspendeu o juzo sobre a questo, no ousando negar, categoricamente, que a alma possa existir e sobreviver morte. Depois, no quarto captulo, abordamos outra questo de grande relevncia na obra de Voltaire, que o problema da liberdade humana. A vontade humana livre ou causada? H um determinismo ou no? Apresentamos a crtica do filsofo ideia do pecado original, que veria o ser humano de maneira muito pessimista, e tambm limitaria sua liberdade para fazer o bem. Depois, tratamos das questes que envolvem a liberdade humana e como o patriarca de Ferney se prope a resolv-las. Veremos que Voltaire tem posies diferentes, mesmo antagnicas, acerca da questo da liberdade, e sua forma de argumentar muda radicalmente ao longo dos anos, o que veremos nas obras citadas. Em certo momento, a vontade apresentada como livre quando o homem age conforme sua vontade, isto , se o indivduo quer algo e faz, ele livre, mas, posteriormente, o filsofo percebe a dificuldade que explicar o que causaria a vontade, o que o leva a defender uma posio determinista. Por fim, aps trabalharmos com as questes mais relevantes que formariam a religio de Voltaire, conclumos a nossa dissertao, no quinto captulo, expondo o modelo prtico da religio do patriarca de Ferney, isto , como deve ser esta religio em suas relaes com o Estado e com a sociedade, e quais so as suas ideias principais. A religio de Voltaire, em verdade, composta por cada um dos itens abordados na dissertao, isto , o que ele pensa sobre Deus, sobre a alma, sobre a liberdade, bem como sobre outros temas relacionados a estes. Contudo, relevante entendermos como o filsofo concebe sua 7
religio na prtica, como ela deve ser, quais so seus elementos mais relevantes, qual sua relao com as leis, como ela deve se comportar, qual a origem dos seus valores mais importantes. Antecipamos que o modelo de religio do autor do Cndido uma religio baseada na razo, no na revelao ou em livros sagrados, fundamentada na tolerncia, na natureza, e no est acima do Estado e de suas leis.
CAPTULO 1
1.1. O ataque de Voltaire Bblia como o principal pilar do cristianismo Como o objetivo central da nossa dissertao expor a concepo religiosa de Voltaire, bastante relevante compreendermos qual a relao do filsofo com as religies de sua poca, como ele se posicionava a respeito delas. Como seus escritos demonstram abundantemente, no cristianismo que est o foco da crtica de Voltaire, principalmente no Catolicismo Romano, com a religio crist que o filsofo encontra as maiores dificuldades em conciliar a sua filosofia racional. Dentro deste assunto, da relao de Voltaire com o cristianismo, temos uma importante parte, bastante destacada nos textos do autor do Cndido, que a sua viso crtica da Bblia. No podemos tratar da crtica de Voltaire religio crist sem abordarmos a sua relao com as Escrituras Sagradas, j que o filsofo ataca a Bblia com o intuito de derrubar o pilar mais importante das religies crists, seja do Catolicismo, seja dos grupos oriundos da Reforma Protestante. Julgamos relevante contextualizar a crtica do filsofo ao seu tempo, para que entendamos, com clareza, a razo que o leva a atacar a viso judaico-crist, dum modo geral, e a Bblia, como seu fundamento mais relevante. Para tal, importante entendermos o que a religio crist, com seus dogmas, representa para o filsofo, e tambm o que ele busca como modelo de busca da verdade. Assim, chegaremos ao entendimento dos motivos que o levam, constantemente, a atacar o cristianismo e seus pilares. O conflito que Voltaire e outros filsofos iluministas enxergavam entre as ideias de revelao e de razo foi um dos motivos que levou o filsofo a combater com tanta veemncia a viso judaico-crist. Se, por um lado, a razo representaria emancipao, maturidade, liberdade, a autoridade da revelao manteria o homem preso, limitado, impedido de buscar a verdade, de ultrapassar as fronteiras a que tinha chegado at ento. Vejamos a declarao de Cassirer a este respeito:
[No Sculo das Luzes] a religio no deve ser mais algo a que se est submetido; ela deve brotar da prpria ao e receber da ao suas determinaes essenciais. O homem no deve ser mais dominado pela religio como por uma fora estranha; deve assumi-la e cri-la ele prprio na sua liberdade interior. (CASSIRER, 1994, p. 225).
Entendendo este esprito, compreendemos que, se assim for, no haver compatibilidade entre o cristianismo, no qual a revelao um dos pilares, e esta nova forma de pensar. Onde a religio instituda divinamente, no haveria espao para questionamentos, j que o homem estaria, assim, questionando o prprio Deus. A religio, agora, no dominaria mais o homem, no seria um elemento exterior, mas seria criada pelo prprio homem, interiormente. Ou seja, se o homem quem cria a sua prpria religio, conforme sua liberdade interior, ento uma religio com mandamentos divinos, como o cristianismo, no teria lugar nesta nova mentalidade. Vejamos a opinio de Luiz Roberto Salinas Fortes sobre a submisso da razo humana a qualquer outra autoridade no Sculo das Luzes:
Para ser efetivamente livre a Razo no pode se submeter a nenhuma autoridade que a transcenda ou a nenhuma regra que lhe seja extrnseca: ela , por si mesma, sua prpria regra. Mas tambm a regra para o universo em geral: se o homem reivindica um estatuto soberano para a sua Razo porque postula simultaneamente a racionalidade ltima do universo. Os seres e as coisas que nos circundam esto submetidos a certas regularidades. Caber ao homem descobri-las e para isto ele dispe do instrumento adequado, ou seja, sua prpria inteligncia. (FORTES, 1981, p. 18).
Desta forma, a citao de Fortes corrobora, em certo aspecto, a opinio de Cassirer. Neste, h a afirmao de que o homem no deve mais estar submetido religio, enquanto naquele a razo humana no pode estar sujeita a nada fora de si, o que inclui, naturalmente, a ideia de uma revelao. A busca pela verdade, a descoberta do universo se daria no pela revelao da religio, mas pela razo humana, pela inteligncia do homem. O conhecimento da verdade no viria de cima, viria de dentro. E, se a razo no deve se submeter a mais nada, a no ser s suas prprias regras, ento os milagres tambm estariam fora de cogitao. Trata-se de mais um motivo de incompatibilidade entre a f crist e certos aspectos da viso iluminista.
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Salinas Fortes confirma a soberania da razo na viso iluminista, citando Voltaire como exemplo:
No h nenhuma autoridade acima da Razo. Nada escapa ao livre exame, ao livre exerccio desta nobre faculdade de que nos achamos dotados. Soberana e livre, assim que a querem os iluministas e por uma tal imagem de Razo que se bater durante toda a vida com a eloqncia e o talento que lhe so prprios de um homem, por exemplo, como Voltaire. (FORTES, 1981, p. 19).
Assim, Voltaire um dos filsofos que busca uma razo livre, soberana, no submetida a nada nem a ningum, a no ser a si prpria. Por esta citao podemos comear a entender a incompatibilidade entre os escritos de Voltaire e a viso crist, promovida pela Bblia e por sua tradio, preservadas e pregadas pelo Catolicismo e pelo Protestantismo. Na f crist ortodoxa no possvel conciliar a interveno divina na histria, com muitos milagres, com a razo humana. A f transcende a razo do homem e o cristianismo no pode ser o que , no pode manter a sua identidade, se submeter doutrinas como a encarnao de Cristo, por exemplo, racionalidade humana. Elizabeth Dias confirma o critrio voltairiano de submeter tudo razo:
A esse tribunal da razo, Voltaire submete tanto os sistemas metafsicos e suas construes quimricas, que, ao pretenderem explicar a essncia das coisas, substituram a realidade por fantasias, quanto as crenas baseadas no testemunho da revelao, da tradio e da autoridade, que cegaram e paralisaram a razo ao apresentarem como verdadeiros os erros e os preconceitos e justos os privilgios e as injustias. (DIAS, 2000, p. 127).
Dias cita, provavelmente, a crtica de Voltaire aos sistemas metafsicos que buscam ir alm daquilo que a razo humana pode explicar, daquilo que pode ser conhecido e demonstrado racionalmente. De acordo com a autora, revelao e razo seriam incompatveis para o autor do Cndido , j que a primeira inverteria os valores, transformando o erro em verdade e a injustia em justia. Assim, Voltaire submete a religio, a metafsica, os sistemas, os dogmas razo humana, motivo pelo qual boa parte do cristianismo e da Bblia so rejeitados pelo filsofo. Da a sua guerra constante, por meio de suas obras e de sua militncia, contra a viso judaico-crist. Como afirma Fortes, a crtica sistemtica e tenaz do esprito teolgico e dos dogmas da tradio religiosa 11
constituir precisamente uma das grandes frentes de batalha para homens como os enciclopedistas. (FORTES, 1981, p. 15). Portanto, como vimos, se uma das caractersticas de boa parte da filosofia iluminista a supremacia da razo, colocar os dogmas debaixo da autoridade do pensamento racional, ento natural que uma batalha seja travada entre alguns filsofos e a viso judaico-crist. Dificilmente haveria espao para as duas vises conviverem juntas e pacificamente, j que, como pudemos ver brevemente, elas so essencialmente antagnicas. Vejamos a afirmao de Pierre Lepape a respeito:
Ora, quem dirigia as conscincias, quem formava os espritos, quem desempenhava na Frana todas as tarefas do ensino e tinha nas mos o essencial dos meios de informao, formao e reflexo? A Igreja. A filosofia, tal como era concebida por Voltaire e seus contemporneos, s podia ser pensada em termos de concorrncia com a propaganda religiosa. No podia pensar em fazer avanos a no ser ocupando o territrio no qual a Igreja havia se instalado sculos antes. Livro contra livro, ensinamento contra ensinamento, controle contra controle das instituies. (LEPAPE, 1995, p. 97).
Assim, corroborando o nosso pensamento, a briga de Voltaire, em se tratando de religio, contra o cristianismo, em especial contra o Catolicismo Romano. Ainda que o filsofo tambm mencione o Islamismo, em alguns momentos, e tambm cite o Antigo Testamento, tambm usado pelos judeus (no como Antigo Testamento, mas como Escrituras Sagradas), notrio que o seu foco a religio crist, como ficar mais claro nas sees a seguir. Portanto, se a Igreja Catlica tem o domnio das mentes, do ponto de vista intelectual e religioso, contra ela que Voltaire e muitos filsofos iluministas se voltam, usando suas penas como arma. A citao de Lepape que fala de livro contra livro uma demonstrao de que a Bblia um dos alvos principais da crtica iluminista, em especial de Voltaire. A Bblia, portanto, atacada no apenas porque seu contedo seria contrrio razo de certos filsofos do Sculo das Luzes, mas porque o pilar principal do cristianismo. Assim, destruindo o pilar, a casa se desmorona. A afirmao de Gargett demonstra ponto de vista semelhante:
Aquilo que julgava ser uma mitologia brbara e primitiva dos judeus [O Antigo Testamento] foi tornada clebre pela sua histria sagrada dos cristos; passou a ser considerado uma fonte de preceitos morais e, para
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piorar, uma justificativa para as contnuas pretenses e para a arrogncia soberba da Igreja Crist. Se o Velho Testamento fosse completamente refutado e o povo eleito se revelasse uma horda de ladres e bandidos, ento os eventos milagrosos poderiam ser desprezados ou destrudos por zombarias. O Cristianismo no estaria baseado em nada alm de areia. (GARGETT, 2010, pp. 243-244).
Sendo assim, entendemos que Voltaire no ataca a Bblia por acaso ou apenas por no julg-la racional, pois ele tem um objetivo. Seus constantes bombardeios ao Antigo Testamento, como veremos com mais detalhes nas sees seguintes, visam demonstram que um documento que considerado como divinamente inspirado pela viso crist no passaria de uma reunio de eventos absurdos e desprezveis. Gargett entende que as duras crticas de Voltaire aos judeus, chamados de povo eleito, visam tornar desacreditados os milagres narrados no Antigo Testamento, o que tambm afetaria o Novo Testamento, j que h uma ntima ligao entre ambos, e no possvel ler o Novo Testamento de maneira independente do Antigo Testamento. Voltaire, sabendo disso, buscou atacar toda a Bblia para destruir os pilares do cristianismo. Gargett tem a palavra novamente:
Acima de tudo, lInfme, geralmente, mas no exclusivamente simbolizada pela Igreja Catlica, retirava sua autoridade e seus fundamentos intelectuais da Bblia. De fato, a Igreja Crist como um todo baseava suas propostas transcendentais na Escritura, sendo que o Novo Testamento era no apenas visto como o sucessor do Antigo, mas como seu complemento. De maneira tenaz, contnua e qui obsessiva, Voltaire fez de tudo para solapar e desacreditar as duas partes da Bblia. (GARGETT, 2010, p. 241).
Gargett confirma que o alvo de Voltaire no simplesmente a Bblia, mas a Igreja Catlica e, consequentemente, todos os segmentos religiosos que se fundamentam na Bblia. Se Voltaire desacredita a Bblia, o cristianismo se desmorona. O leitor moderno pode entender, assim, o porqu de muitos grupos cristos conservadores lutarem, hoje em dia, contra propostas que sejam supostamente contrrias viso bblica, como a teoria da evoluo ou do Big Bang. Para muitos desses conservadores, se essas teorias forem verdadeiras, ento a Bblia estaria em descrdito. Da seus esforos, mesmo com argumentos pretensamente cientficos, em combater estas e outras teorias. Voltando ao sculo XVIII, o filsofo usa suas armas para mostrar a Bblia como um livro cheio de erros 13
cientficos, lgicos, racionais e indigno de crdito. Assim, ele atingiria em cheio a Igreja Catlica e suas ramificaes. Como diz Iotti, Voltaire, que se autodenomina o grande demolidor (...) defende que a construo do futuro depende da destruio do passado; em outras palavras, a afirmao da verdade consiste na incessante refutao do erro. (IOTTI, 2010, p. 156). Portanto, no haveria lugar para a filosofia voltairiana e para o cristianismo ao mesmo tempo, ao menos no como ambos se apresentavam no sculo XVIII. Para termos uma viso mais ampla dos motivos que levaram Voltaire a atacar a Bblia, no podemos apenas analisar estes aspectos vistos at ento, que seriam, em suma, a supremacia da razo sobre quaisquer outros fundamentos, e o desejo de Voltaire de, com seus ataques Bblia, atingir o cristianismo como um todo. No h dvida de que estes aspectos so verdadeiros, mas no apenas isso. Para Voltaire, a Bblia em si se chocaria com algumas reas de conhecimento, com algumas verdades j demonstradas de maneira clara. Vejamos um exemplo com a explicao de Cassirer:
Embora j estivesse bastante mais solto antes do sculo XVIII [o vnculo entre teologia e fsica], no fora ainda quebrado de modo nenhum. A autoridade das Escrituras continuava sendo respeitada em questes que s dependiam da fsica. As zombarias com que Voltaire atormentava inexoravelmente a fsica bblica parecem-nos hoje superadas e inspidas, mas um juzo histrico justo no deve esquecer que ele se defrontava no sculo XVIII com um adversrio que era ainda srio e perigoso. A ortodoxia ainda no renunciara, em absoluto, ao princpio da inspirao literal e o resultado lgico desse princpio era que o relato mosaico da Criao continha uma autntica cincia da natureza cujos dados no podiam ser abalados. No s os telogos, mas tambm os fsicos e os bilogos esforavam-se por sustentar e explicar essa cincia. (CASSIRER, 1994, p. 78).
Para quem est familiarizado com alguns debates cristos que envolvem f e cincia, fica claro que h certa flexibilidade, mesmo entre telogos conservadores, em relativizar a autoridade da Bblia em questes de cincia, embora, como j foi citado, algumas ideias ainda geram conflitos e no esto bem resolvidas. Seja como for, na poca de Voltaire o problema era bem diferente. Hoje inconcebvel que um departamento de fsica ou de biologia de uma universidade se fundamente em um livro sagrado para fazer cincia, mas, segundo Cassirer, no sculo XVIII mesmo os cientistas da poca usavam o relato bblico como fundamento literal de fsica, biologia e, logicamente, at de astronomia, 14
j que o Gnesis trata da criao do universo. Por exemplo, se a Bblia fosse interpretada literalmente e como fonte de conhecimento cientfico, ento o sol se moveria em torno da Terra, todas as espcies teriam sido criadas como so hoje (o que faria a teoria da evoluo das espcies, j embrionria na poca de Voltaire, ser rejeitada), a espcie humana teria meia dzia de milhares de anos, a morte s teria entrado no mundo de uns seis mil anos pra c, todos os males do nosso pequeno planeta seriam consequncia do pecado de Ado, etc. Assim, no haveria compatibilidade entre uma interpretao literal da Bblia e o progresso da cincia, pelo que, como afirma Cassirer, Voltaire zomba constantemente da fsica bblica. Para o filsofo, diversos episdios narrados na Escritura, como o dilvio, estariam em desacordo com as cincias. Maiores detalhes, com as palavras do prprio Voltaire, veremos nas sees seguintes a esta. Outro aspecto relevante que conduziu Voltaire s suas crticas e rejeio Bblia a sua viso da histria. A forma como Voltaire enxergava a histria da humanidade confronta-se, claramente, com aquilo que a Bblia informa. Um motivo essencial da incompatibilidade entre a viso voltairiana e a histria bblica que, para o filsofo, a histria histria dos homens, do ser humano apenas, enquanto a Bblia demonstra, vrias vezes, a interveno e o controle de Deus na histria de Israel e da humanidade. Maria das Graas de Souza comenta sobre o assunto:
O filsofo Bossuet, no sculo XVII, havia traado em seu Discurso sobre a histria universal, a histria de um mundo governado por Deus. Para ele, o processo histrico revelava, em ltima instncia, a realizao dos planos da Providncia divina. Ora, para Voltaire, cabe ao historiador descobrir, na sabedoria ou na loucura dos homens, apenas o prprio homem. (SOUZA, 1993, p. 45).
O leitor familiarizado com a Bblia v que, por exemplo, nos livros de Juzes, dos Reis e das Crnicas, aparecem ali constantemente relatos da interveno de Deus em levantar lderes para trabalhar em favor do seu povo. uma forma de apresentar a histria como teocrtica, com Deus governando a histria dos homens. Segundo Souza, se Voltaire v na histria humana apenas o prprio homem, ento, como claro, a consequncia natural que sua viso entre em choque com a viso bblica e ambas se tornem incompatveis. Pierre Lepape tem opinio parecida: 15
... passvel de crtica a sua [de Voltaire] documentao apressada, embora ele no parasse de perguntar, de pesquisar, de coletar depoimentos, de ampliar sua biblioteca em Cirey e de consultar, na medida do possvel, arquivos estrangeiros. Mas indiscutvel que inovou, e radicalmente: ao propor uma histria dos homens que no levava em conta nenhum projeto divino, nenhum castigo e nenhuma providncia; e, sobretudo, ao desenvolver uma filosofia da histria, um modo de ler o presente e, com a ajuda do passado, esboar um futuro possvel. (LEPAPE, 1995, p. 135).
O leitor da Bblia percebe que ela apresenta uma histria humana linear, com comeo, meio e fim, sempre controlada por um projeto divino. O universo foi criado, o homem vem em seguida, e acontece a queda, onde o homem teria sido criado inocente e, seduzido pela serpente, se tornou pecador. A redeno acontece por meio da morte de Cristo, que voltar no fim dos tempos para levar os remidos. A antiga ordem substituda por um novo mundo, por uma nova criao, perfeita, onde o que antigo destrudo e onde os homens que no aceitam o propsito de Deus so condenados. Em tudo isso, vemos uma linearidade histrica, um comeo, um meio e um fim, uma histria que acontece sob o controle divino. No a toa que a Bblia comea com o Gnesis, que narra a criao e a queda do homem, e termina com o Apocalipse, que narra a redeno de uns e a condenao de outros, bem como a criao de novos cus e nova terra, decretando o fim da velha ordem. Segundo Lepape, como Voltaire props uma histria dos homens que no levava em conta nenhum projeto divino, temos a mais uma clara confirmao de que sua viso era bastante incompatvel com a essncia da Bblia, da a sua crtica inevitvel e constante ao livro sagrado do cristianismo. Como buscaremos demonstrar nesta dissertao, Voltaire acreditava na existncia de Deus, mas no cria em sua interferncia na vida humana. O autor do Cndido tambm rejeitou a Bblia em vrios aspectos porque, alm de buscar na histria s aquilo que seria racional, o que excluiria os milagres como narrativas autnticas, ele tambm no confiava na veracidade das histrias antigas, o que incluiria as Escrituras. Para Maria das Graas de Souza, ao lermos os historiadores antigos, devemos tambm rejeitar, na opinio de Voltaire, tudo o que parece muito exagerado (SOUZA, 1993, p. 50). Nas prprias palavras do filsofo, resumindo, lendo qualquer histria, mantenhamo-nos alertas contra qualquer fbula. (VOLTAIRE, 2007a, p. 79). O filsofo fala mais sobre o assunto: 16
Os primeiros fundamentos de toda histria so os relatos dos pais aos filhos, transmitidos em seguida de uma gerao a outra; em sua origem, eles so no mximo provveis, quando no entram em choque com o senso comum, e perdem um grau de probabilidade a cada gerao com o tempo, a fbula cresce e a verdade se perde: vem da que todas as origens dos povos so absurdas. (VOLTAIRE, 2007a, p. 4).
O filsofo desconfia da tradio oral, j que tais relatos orais seriam transmitidos de uma gerao para outra e, como diz o ditado, quem conta um conto, acrescenta um ponto. J na sua origem, quando o fato poderia potencialmente ser conhecido com veracidade, a narrativa , para o filsofo, no mximo provvel, no confivel. Portanto, todas as histrias, em suas origens, no seriam dignas de confiana, motivo que nos faz entender a razo dele desconfiar da histria antiga, o que inclui, obviamente, a Bblia. Ainda mais quando elas entram em choque com o senso comum, ou seja, com o que seria razovel para a maioria das pessoas. Desta forma, os milagres bblicos, indiretamente, so rejeitados como verazes. O patriarca de Ferney no critica apenas a Bblia, mas tambm outras histrias que teriam fatos sobrenaturais, como vemos:
Os chineses no tm histria anterior de seus imperadores; quase no tm fices, nenhum prodgio, nenhum homem inspirado que se diga semideus, como entre os egpcios e entre os gregos; desde que escreve, esse povo escreve razoavelmente. (VOLTAIRE, 2007a, p. 103).
Sem debater aqui sobre a forma como Voltaire constantemente exalta a China, ele v na histria dos chineses um modelo a ser seguido, j que a histria deste povo no teria fices. Aqui os alvos do filsofo so os gregos e os egpcios, por suas histrias fabulosas. Tais histrias deveriam ser vistas com desconfiana pelo historiador srio, independente de quais povos elas tenham sido originadas. O filsofo fala sobre a sua desconfiana das histrias antigas:
Sou to ignorante que nem conheo os fatos antigos com que me iludem. Sempre temo enganar-me em setecentos ou oitocentos anos, pelo menos, ao procurar em que poca viveram aqueles heris antigos, considerados os primeiros a praticar o roubo e o banditismo numa grande extenso do pas, bem como aqueles primeiros sbios que adoraram estrelas, peixes, serpentes, monstros ou seres fantsticos. (VOLTAIRE, 1978d, p. 327).
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Notamos que Voltaire no confia nas histrias antigas, naquelas narrativas nas quais o fato est misturado a elementos sobrenaturais ou fabulosos, onde a documentao existente no permite caminhar num solo mais seguro. Percebemos, contudo, que ele reconhece algo de histria verdica nestas narrativas, j que ele teme enganar-se setecentos ou oitocentos anos sobre a data em que tais heris teriam vivido. Assim, o filsofo reconhece que h algo de histrico nessas narrativas, mas os elementos fantsticos provavelmente foram sendo acrescidos de gerao a gerao, como ele mesmo expressou na citao que selecionamos nesta seo. Auger confirma a desconfiana do nosso filsofo sobre a histria antiga:
Se a Histria tinha de ser til, tambm precisava focar no que era essencial. Ao escrever, Voltaire se debrua sobre uma enormidade de detalhes inteis e secos, sem reparos em deixar de fora aqueles que lhe parecem suprfluos e gratuitos ou que lhe parecem falsos e incertos: a verdadeira tarefa do historiador escolher, no copiar; o historiador precisa ser realmente crtico. Nesse sentido, a histria antiga, altamente suspeita, tinha necessariamente de ser considerada inferior histria moderna. (AUGER, 2010, p. 184).
Assim, o historiador, para Voltaire, deveria selecionar o que seria relevante. Ele deveria ter inteligncia e sensibilidade para separar o trigo do joio, para trazer ao leitor contemporneo o que tem importncia. Auger cita as palavras falsos e incertos como aquilo que deveria ser descartado da histria, e, como veremos nesta dissertao, os milagres encontram-se nestas categorias, provavelmente na primeira. E as histrias mais antigas estariam mais cheias de fbulas e absurdos do que as mais recentes, da a desconfiana do filsofo em relao s primeiras. Por fim, para encerrar esta seo, citamos o filsofo novamente para demonstrar mais um motivo, mais um critrio para ele ter rejeitado a Bblia em seu aspecto histrico, ao menos boa parte dela:
Quando Marco Polo falou, primeiro e apenas ele, da grandeza e da populao da China, ningum acreditou, e ele no pde exigir crdito. Os portugueses que entraram naquele vasto imprio sculos depois comearam a tornar a coisa provvel. Hoje isso certo, dessa certeza que nasce do depoimento unnime de mil testemunhas oculares de diferentes naes, sem que ningum tenha reclamado contra seu testemunho. (VOLTAIRE, 2007a, pp. 16-17).
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Um dos critrios que o filsofo estabelece para aceitarmos algo como verdico em histria o depoimento de um bom nmero de fontes confirmando o mesmo fato. S se pode dar por certo algo que no vimos com os nossos prprios olhos quando h o depoimento unnime de mil testemunhas oculares. Como veremos na seo 1.2.2., a ausncia deste critrio foi utilizado pelo filsofo para criticar algumas histrias bblicas, pois elas no teriam, segundo Voltaire, o testemunho de outras naes. O nosso propsito, nesta seo, foi apenas apresentar aspectos tericos gerais sobre os provveis motivos que levaram Voltaire a fazer as crticas que fez ao cristianismo e Bblia, da termos mais citaes de comentadores do que do prprio filsofo, j que se trata de interpretaes de especialistas, no das palavras do prprio filsofo, a no ser nas poucas citaes que constam aqui. Nas sees seguintes, buscaremos, tambm, nas palavras do filsofo, entender no os motivos, mas as crticas em si, conhecermos os critrios e argumentos que o autor do Cndido utiliza para atacar os textos bblicos. 1.2. Crtica histrica Bblia
Esta seo, que trata da crtica histrica que Voltaire faz Bblia, cita e analisa textos do filsofo que fazem comparao de certas narrativas histricas da Bblia com a histria de outros povos. Como veremos, Voltaire tem o intuito de demonstrar que a Bblia copiou e se apropriou de histrias de outros povos e que a forma como as histrias bblicas esto narradas, colocando Israel como o centro de tudo, incompatvel com as histrias de outras naes. Com isso, o filsofo tenta fazer da Bblia no a Palavra de Deus, mas um livro que plagia incessantemente outras narrativas, e da histria de Israel no a histria de um povo escolhido o qual Deus cuida, mas uma histria cheia de contradies, absurdos, cujo critrio de colocar esta nao como centro do mundo no deve ser a maneira correta de se fazer histria.
1.2.1. Emprstimos que a Bblia teria tomado da histria de outros povos Um dos argumentos de Voltaire para tirar o crdito da Bblia como livro inspirado e revelado por Deus buscar provas na histria de que o livro sagrado dos judeus e dos 19
cristos, longe de ter sido inspirado pelo Criador do universo, na verdade um conjunto de plgios das histrias de outros povos. Se o filsofo consegue ter xito em seu propsito, a autoridade da Bblia se relativiza, e as narrativas consideradas sagradas pela viso judaico-crist passam a ser vistas com naturalidade, no mais com reverncia, no como lies inspiradas por Deus que visam nos ensinar, corrigir, dirigir. A Bblia passa a ser apenas mais um livro, produzido humanamente, refletindo meramente a viso de um povo sobre a vida, sobre as leis, sobre Deus, etc. Assim, perdendo-se a autoridade da Bblia, o que sobra do cristianismo? A seguir, citamos o argumento do filsofo, comeando pelo relato da criao: Todos os povos de que os judeus estavam rodeados tinham uma Gnese, uma Teogonia , uma Cosmogonia, bem antes de esses judeus existirem. No se v de forma evidente que o Gnesis dos judeus foi tirado das antigas fbulas de seus vizinhos? (VOLTAIRE, 2006, p. 26). H duas ideias presentes na citao voltairiana: O Gnesis bblico foi copiado dos relatos de outras naes e seu carter fabuloso, ou seja, trata-se de uma fbula, de um relato que no tem carter histrico. Parece que esta maneira de ler a Bblia, comparando-a com a histria de outros povos, no era to incomum no sculo XVIII. A seguir, e em outros momentos, citaremos referncias da obra Brevirio filosfico ou histria do judasmo, do cristianismo e do desmo em 33 versos, de Antonio Giachino Cerutti, com o intuito de, novamente, contextualizar Voltaire ao seu ambiente intelectual:
A serpente desempenha algum papel em todas as religies. Os brmanes contavam a histria da serpente que havia roubado do homem o elixir da imortalidade. Os choens, ou sacerdotes do Egito, utilizavam esse rptil como smbolo da eternidade. Em todos os tempos, na China, a imagem dos drages alados foi o ornamento imperial e o paramento religioso. (CERUTTI, 2008, p. 53).
A referncia serpente citada no Gnesis como o ser que levou o homem queda, e que veio a receber interpretaes posteriores como um smbolo do diabo.2 Cerutti, assim como Voltaire, busca quebrar a suposta exclusividade do texto bblico e demonstra que a narrativa contida na Bblia apenas mais uma entre outras, o que provavelmente no seria bem visto pela Igreja. Hoje em dia tratar os primeiros captulos da Bblia como mticos ou
Cf. Ap 12
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mesmo como tendo narrativas em comuns com as histrias de outros povos no traz maiores problemas para muitos estudiosos, em especial quando se estuda o texto bblico no meio acadmico, mas ainda assim a questo no est bem resolvida para muitas pessoas. Para muitos grupos, negar a historicidade de Ado e Eva, negar que o mundo foi criado em seis dias, que a morte s entrou no mundo quando Ado teria comido o fruto proibido, que o homem caiu do seu estado original de inocncia, etc, negar a verdade bblica, cometer uma heresia, negar que o homem precisa de salvao e, consequentemente, negar o sacrifcio de Cristo. Mesmo hoje em dia, quando se discute f e religio sob o ponto de vista da natureza, da biologia, criao e evoluo so ideias colocadas como pontos de vista antagnicos, como se houvesse apenas essas duas alternativas separadas para se aceitar, e muitos sequer pensam que algum pode ser criacionista sem negar as descobertas da cincia, ou que pode ser cientista e no necessariamente no ter f alguma. Assim, se nos nossos dias a questo no est bem resolvida para muitas pessoas, ento no sculo XVIII uma frase como essa, de Voltaire, no deve ter soado de maneira muito amigvel.3 Vejamos algumas informaes importantes dadas por Champlin, um dos mais importantes exegetas da Bblia do nosso sculo, que demonstram que a afirmao de Voltaire tem fundamento histrico e, por ser entendida como plausvel por um intrprete contemporneo, se reveste de importncia:
Vrias antigas cosmogonias, incluindo a dos babilnios, pintavam um caos primevo ao qual as foras da criao esforaram-se por emprestar boa ordem, produzindo um mundo bem organizado e embelezado. O relato babilnico dizia que o caos era governado pelo deus Apsu e pela deusa Tiamate. Somente o Deus supremo, Marduque, finalmente teve o poder de fazer reverter o caos de Apsu. A temvel Tiamate foi morta. O corpo dela foi dividido em duas partes, e uma metade tornou-se a terra, e a outra metade, o firmamento acima. (CHAMPLIN, 2001, p. 11).
Voltaire no trata de nenhuma cosmogonia especfica na citao mencionada, mas informa que os judeus copiaram as fbulas de seus vizinhos. Champlin corrobora um aspecto importante comum entre o Gnesis bblico e outros relatos de criao que o caos
Sobre um pouco da questo em nossos tempos, e como ela ainda incomoda muitos cristos, confira uma entrevista sobre criao e evoluo na seguinte fonte: http://www.cacp.org.br/movimentos/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=819&menu=12&submenu=4
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relativo aos primeiros tempos, antigo. Na Bblia, realmente, temos a informao de que a terra era sem forma e vazia (Gn 1:2), ou seja, havia um caos. Segundo a informao de Champlin, no relato babilnico da criao, Marduque o deus supremo que reverteu o caos, enquanto na Bblia Deus, a partir de uma terra j existente, porm catica, comea a estabelecer ordem (Cf. Gn 1:2ss). Na lenda babilnica houve uma diviso entre a terra e o firmamento acima, provavelmente uma referncia ao cu, oriunda do corpo de Tiamate, enquanto no Gnesis h uma separao entre as guas que ficam acima dos cus e as que ficam abaixo (Cf. Gn 1:6-8). Os cus foram criados para abrigar uma parte das guas, enquanto a terra abrigaria outra parte (Cf. Gn 1:9-10). Ambas as narrativas fazem a dicotomia terra/cu. Mais alguns paralelos entre o Gnesis e o mito babilnico so: uma serpente que trouxe confuso a um jardim; o homem feito de argila; a existncia de um jardim paradisaco; uma maldio por algum ter comido o que no deveria (Cf. CHAMPLIN, 2001, p. 4048). Como esta cosmogonia babilnica foi encontrada no sculo XIX Voltaire certamente no teve acesso a ela, todavia, se o contedo de tal relato refletir ideias que so comuns entre algumas cosmogonias antigas, entre elas o Gnesis, ento vemos que o filsofo, para fazer a afirmao que fez, teve contato com outros relatos de criao provavelmente semelhantes ao texto babilnico e chegou concluso de que a Bblia os copiou. No temos como ter certeza absoluta sobre tal afirmao, mas atualmente muitos estudiosos acreditam que o relato bblico da criao e do dilvio no original, mas reflete as ideias dos povos da poca.4 Assim, Voltaire faz uma afirmao importante para o estudo histrico da Bblia e, mesmo sem podermos afirmar absolutamente que o Gnesis copiou e adaptou os relatos de outros mitos5, ainda assim sua crtica demonstra que ele tinha familiaridade com a Bblia e com outros textos de outros povos. Continuemos, citando mais um exemplo que o filsofo emprega acerca da suposta no originalidade dos relatos bblicos:
A queda do homem degenerado o fundamento da teologia de quase todas as antigas naes. O pendor natural do homem a se queixar do presente e a exaltar o passado fez que se imaginasse em toda parte uma
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Para mais detalhes sobre esta opinio, consultar a fonte http://www.klepsidra.net/klepsidra23/gilgamesh.htm Para conferir uma opinio contrria, ver a seguinte referncia: UNGER Merril F. Arqueologia do velho testamento . So Paulo: Editora Batista Regular, 1998
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espcie de idade de ouro a que os sculos de ferro sucederam. (VOLTAIRE, 2007a, p. 101).
O filsofo demonstra, com este comentrio, que o texto bblico sobre a queda do homem apenas mais um, j que, se tal episdio narrado em documentos de diversas naes, ento a exclusividade que muitos enxergam na Bblia cai por terra. Ou seja, a Bblia no s perderia, assim, seu status de livro inspirado, como tambm se tornaria apenas mais um relato acerca do passado da humanidade. Vejamos novamente Cerutti seguindo caminho semelhante, isto , comparando a Bblia com outras narrativas antigas:
O autor do Gnesis estava lidando com um povo de ladres. Eva comeu o fruto proibido por curiosidade. Pandora, por curiosidade, abriu sua caixinha fatal. Por curiosidade, Psiqu feriu e perdeu seu amante imortal. Eu observo que: 1) de todas essas mulheres curiosas e fabulosas, a mais interessante a ltima; 2) todos os contos antigos, assim como todos os contos modernos, giram em torno da fraqueza das mulheres. (CERUTTI, 2008, pp. 54-55).
Com um tom parecido com o de Voltaire, depreciando os judeus, o escritor v, mais uma vez, paralelos entre a histria bblica e outras narrativas, igualmente fabulosas, mticas. Reforamos que, com essa citao, possvel ver que essa maneira crtica de ler a Bblia no era exclusiva de Voltaire, o que o texto demonstra bem. Na citao anterior, Voltaire atribui natureza do homem em exaltar o passado e se queixar do presente a existncia de tais narrativas, das quais a Bblia seria apenas mais uma. Champlin informa que material proveniente da biblioteca da Sumria, descoberto h cinqenta anos em Nipur, no sul da Babilnia, fala sobre um lugar chamado Dilmun, um lugar aprazvel onde eram desconhecidas a morte e as enfermidades. (CHAMPLIN, 2001, p. 24). Novamente reforamos, pela poca da descoberta do documento citado por Champlin, que Voltaire tambm no teve contato com este material especfico, mas frisamos que a essncia desses comentrios tem um bom fundamento histrico, pois a informao corrobora o que o filsofo afirma, que havia outros relatos, de outros povos, tratando de uma idade de ouro, o que se v tambm na Bblia. A Bblia de Jerusalm, comentando sobre Gn 1:30, afirma que o texto se refere a uma imagem de uma idade de ouro, na qual o homem e os animais viveriam em paz, alimentando-se de plantas. (p. 35).
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O filsofo ainda afirma que a histria de Moiss teria vrias semelhanas com a de Baco (Cf. VOLTAIRE, 2007a, pp. 134-135), e que a de Moiss no seria a original, mas a cpia (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 93), que os nomes bblicos de Deus, no hebraico, teriam sido copiados dos fencios (Cf. VOLTAIRE, 2007a, p. 83) e mesmo rituais como o batismo e a circunciso e at a crena nos anjos e nos querubins tambm teriam sido copiados de outras naes (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 61). Cerutti corrobora esta maneira de ler a Bblia por alguns estudiosos no sculo XVIII:
Gabriel, Rafael, Uriel, Miguel etc eram nomes caldeus. Os hebreus aproveitaram o cativeiro para enriquecer e refinar seu idioma o mais pobre e o mais grosseiro dos dialetos rabes. Eles trouxeram do Egito seu bezerro de ouro e, da Babilnia, seus anjos de prata, seus querubins, seus serafins etc. Toda a Bblia um plgio rabnico. (CERUTTI, 2008, p. 62).
Enfim, so diversas afirmaes que teriam que ser examinadas isoladamente e com maiores detalhes, o que no propsito deste trabalho e exigiria mesmo uma vasta pesquisa da Bblia e dos livros dos outros povos que conteriam as informaes citadas por Voltaire e tambm por Cerutti. Contudo, a essncia dessas argumentaes que as Escrituras teriam copiado boa parte de suas histrias antigas dos relatos de outros povos, no sendo, portanto, um livro revelado e inspirado por Deus e seria apenas mais um livro produzido por um povo como os demais, tendo, ainda, a desvantagem de no ter qualquer originalidade. 1.2.2. Incompatibilidade da histria bblica com a histria de outros povos No conto O touro branco , Voltaire fala de uma princesa, Amaside, que era filha de Amsis, rei de Tnis, no Egito. Havia um sbio de 1300 anos que estava sempre com ela e Mambrs era superintendente de sua casa. Mambrs6, antigo mago dos faras, teve uma disputa com o grande Moiss e, por foras divinas, foi derrotado. O amado de Amaside tinha sumido h sete anos e ela, por isso, chorava. Seu pai a proibira de falar o nome dele. Uma velha coberta de farrapos tinha alguns animais inusitados, que conversavam entre si. A serpente tinha olhos ternos e fisionomia nobre, o peixe era admirvel e havia tambm uma jumenta. J o touro era branco, elegante, leve, tinha chifres de marfim e no havia touro mais belo do que ele. O touro, ao encontrar a princesa, correu para ela, lanou-se aos
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seus ps, beijou-os, chorou, sentiu dor e alegria. A princesa se agradou do ato. A velha recebeu proposta para vender o touro para a princesa, feita por Mambrs, e disse que no podia vender, pois no lhe pertencia. O velho reconhece a mulher, que era a pitonisa de Endor7 (Cf. VOLTAIRE, 2005, p. 700). Ele era famoso por mudar os bastes em serpentes, o dia em trevas, os rios em sangue8 (Cf. VOLTAIRE, 2005, p. 701). O sbio quer saber quem so os animais que esto com a velha e ela diz: A serpente a do den, a jumenta a que falou com Balao, o peixe o que engoliu Jonas, o co o que seguiu o anjo Rafael e Tobias durante a viagem a Rags, na Mdia, o bode o que expia os pecados da nao e o corvo e a pomba so as que estavam na arca de No (Cf. Voltaire, 2005, p. 701). A seguir Mambrs fala pitonisa:
O Eterno revela o que quer, e a quem quer, ilustre pitonisa. Todos esses animais, encarregados convosco da guarda do touro branco, s so conhecidos na vossa generosa e aprazvel nao, a qual, por sua vez, desconhecida de quase todo o mundo. As maravilhas que vs e os vossos, e eu e os meus operamos, sero um dia objeto de dvida e escndalo ente os falsos sbios. Felizmente encontraro crdito entre os verdadeiros sbios, que se submetero aos videntes, numa pequena parte do mundo, e o que basta. (VOLTAIRE, 2005, p. 701).
Toda essa parte do conto tem como um dos objetivos mostrar que as histrias bblicas citadas no so compatveis com as histrias de outros povos. Nenhum povo conheceria as histrias bblicas da serpente falante no den, da jumenta que conversou com Balao, de Jonas, etc. Voltaire fala em tom zombeteiro, pois esses animais s seriam conhecidos na nao judaica, ou seja, as histrias bblicas que os citam no seriam conhecidas em lugar algum, exceto por quem as escreveu, clara referncia ao povo judeu. O filsofo tambm zomba dos milagres bblicos, pois o personagem Mambrs, provvel referncia a Jambres, que fez prodgios e milagres no conflito com Moiss no Egito, bem como a pitonisa, que teria trazido o esprito do profeta Samuel do mundo dos mortos, teriam um dia suas maravilhas postas em dvida pelos falsos sbios. claro que o filsofo est ironizando e zombando das histrias bblicas, j que quem as poria em dvida no seria, em hiptese alguma, um falso sbio. Os verdadeiros sbios, que acreditariam nestas histrias, se submeteriam aos videntes, ou seja, aos profetas, mais uma
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Para conferir a histria da pitonisa de Endor e Saul, ver I Sm 28. Referncia irnica a Moiss.
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demonstrao de que Voltaire zomba da superstio de quem cr nos profetas e nos milagres. Ainda vemos, na referncia acima, a expresso numa pequena parte do mundo, o que significa, novamente, que as histrias bblicas seriam conhecidas apenas entre os judeus, no em outras partes do mundo. Dessa forma, a crtica histrica de Voltaire Bblia passa pelo argumento de que suas narrativas no seriam conhecidas em outros lugares, o que significa, provavelmente, que elas no ocorreram, j que a histria precisa de evidncias de um bom nmero de testemunhas. O filsofo refora o seu argumento de que as histrias bblicas no teriam evidncias nos registros de outros povos, agora em seu trabalho O tmulo do fanatismo:
Ter havido um Moiss? De seu nascimento a sua morte, tudo nele to prodigioso que parece um personagem fantstico, como nosso encantador Merlin. Caso tivesse existido, caso tivesse operado os pavorosos milagres que supostamente fez no Egito, seria possvel que nenhum autor egpcio falasse desses milagres, que os gregos, amantes do maravilhoso, no tivessem dito uma s palavra a respeito? (VOLTAIRE, 2006, p. 12).
Sabemos que Voltaire rejeitava a existncia de milagres, at mesmo pela sua concepo de que Deus no os faz9, e certamente este foi um dos fatores mais importantes para a sua rejeio s narrativas bblicas, recheadas de relatos sobrenaturais. As passagens bblicas que tratam a respeito de Moiss, as quais contm narrativas de sinais e prodgios em vrios momentos, so rejeitadas pelo filsofo como sendo improvveis, j que, se tamanhos milagres tivessem ocorrido no Egito, algum autor desse pas deveria ter relatado alguma coisa sobre eles. Argumento semelhante o patriarca de Ferney usou para rejeitar os milagres de Jesus, j que, se eles tivessem ocorrido como narrados na Bblia, os romanos deveriam t-los relatado (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 115). Ou mesmo a origem dos hebreus e dos rabes, que teriam descendido do mesmo ancestral, Abrao, no teria como ser demonstrada pela histria (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 48). A Bblia no somente no teria suas histrias confirmadas pelos registros de outros povos, como tambm entraria em choque com elas. Esta tambm uma maneira que o filsofo encontrou de desacreditar as narrativas do texto bblico usando a histria como arma. Ironicamente ele afirma que o mais belo de todos [os milagres], a meu ver, aquele
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em que Jesus manda o diabo para o corpo de dois mil porcos, numa regio onde no havia porcos. (VOLTAIRE, 2006, p. 48). No temos a fonte que o filsofo usou para nos dar a informao citada, de que o local do milagre no teria porcos, mas a sua ideia demonstrar que o texto bblico est usando de falsidade. Argumento semelhante vemos na seguinte passagem da obra Deus e os homens:
So Lucas diz que Quirino era governador da Sria quando Jesus nasceu. Essa falsidade reconhecida por todos: sabe-se que o governador era Quintlio Varo. Eis, dizem, uma das mais grosseiras e mais patentes mentiras com que j se manchou a histria. (VOLTAIRE, 2000, pp. 138139).
O escritor do evangelho, Lucas, segundo a tradio crist, situa o nascimento de Jesus num recenseamento que teria ocorrido na poca do citado governador da Sria (Cf. Lc 2:1-2). O filsofo tambm critica a ideia de um suposto recenseamento universal narrado no texto bblico (Cf. VOLTAIRE, 2006, p. 64). Sobre o recenseamento, a Bblia de Jerusalm tem o seguinte comentrio:
Um recenseamento de todo o imprio sob Augusto desconhecido em outros lugares; o recenseamento que aconteceu quando Qurino era legado da Sria (2,2+) se referia somente Judia. Sem dvida Lc transpe uma questo local escala mundial... (p. 1789).
O comentrio desta moderna e importante traduo da Bblia de certa forma demonstra que a crtica voltairiana se reveste de fundamento histrico, j que um recenseamento universal seria desconhecido em outras naes, corroborando a crtica do filsofo ao tal recenseamento. O escritor bblico teria tomado a parte pelo todo, tornando um evento local em algo universal. Champlin, todavia, informa-nos que papiros encontrados no Egito corroboram a informao dada pelo escritor do evangelho, bem como haveria tambm informaes de que o governador da Sria j exercia poder na citada nao antes do que Voltaire pensava (Cf. CHAMPLIN, 1995, p. 25). No sabemos se o autor do Cndido tinha algumas informaes histricas que temos atualmente, mas, se por um lado suas crticas demonstram sua familiaridade com a Bblia e com a histria, bem como o bom fundamento de suas anlises, por outro preciso ser cauteloso ao afirmar categoricamente
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que tal fato no aconteceu, j que em histria nem tudo certo ou claro, e as descobertas que ocorrem de tempos em tempos esclarecem as nossas interpretaes sobre os fatos. O filsofo tambm no aceita a forma como a Bblia coloca os hebreus no centro da histria, como o texto bblico faz com que os israelitas sejam o povo de quem Deus cuida, muitas vezes castigando-o. Seria algo inconcebvel que os povos da histria se movam tendo como propsito fazer algo em favor ou contra os hebreus, seria ignorar o que de fato ocorre na histria. Vejamos a seguinte citao na obra O pirronismo da histria:
sempre audacioso querer penetrar nos desgnios de Deus; mas a essa temeridade mescla-se um grande ridculo quando se quer provar que o Deus de todos os povos da Terra e de todas as criaturas dos outros globos no se preocupava com as revolues da sia e que s enviava pessoalmente tantos conquistadores uns aps os outros em considerao do pequeno povo judeu, ora para o abater, ora para o encorajar, sempre para o instruir, e que essa pequena horda voluntariosa e rebelde era o centro e o objeto das revolues da Terra. (VOLTAIRE, 2007b, p. 20).
Num extremo estaria a arrogncia do homem em julgar os propsitos de Deus, mas no outro estaria a atitude de aceitar algo absurdo em nome do divino. A concepo que o filsofo tinha de Deus, de um Ser universal, criador de todas as coisas, o impediu de aceitar a viso bblica de que Deus escolheu um povo e o usou para seus propsitos na histria. Seria mesmo ridculo conceber a ideia de que o Ser supremo fez o pequeno povo judeu o centro das revolues da Terra. Para situar melhor o leitor dentro de provveis passagens bblicas que o filsofo tem em mente, citamos a seguinte: Eis que o Senhor far vir sobre eles as guas do rio, fortes e impetuosas, isto , o rei da Assria, com toda a sua glria; e subir sobre todos os seus leitos, e trasbordar por todas as suas ribanceiras. (Is 8:7). O contexto da passagem citada demonstra que Deus castigaria os hebreus por causa de sua infidelidade, e o faria usando a Assria, nao que veio a destruir o reino do norte de Israel e tambm trouxe grandes dificuldades para o reino do sul. A Assria vista, pelo profeta Isaas, como um instrumento de Deus, como um machado nas mos de quem o usa (Cf. Is 10:5, 15). Sendo assim, uma nao poderosa seria apenas um instrumento divino, na viso do profeta bblico, para castigar o seu povo, viso essa que, como vimos, rejeitada por Voltaire.
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Vejamos mais uma referncia bblica que se enquadra na viso rejeitada por Voltaire, dos hebreus como o centro, enquanto as outras naes seriam instrumento divino para abater o povo eleito:
Tambm todos os chefes dos sacerdotes e o povo aumentavam de mais em mais as transgresses, segundo todas as abominaes dos gentios; e contaminaram a casa do Senhor, que ele tinha santificado em Jerusalm. E o Senhor, Deus de seus pais, lhes enviou a sua palavra pelos seus mensageiros, madrugando e enviando-lhos; porque se compadeceu do seu povo e da sua habitao. Porm zombaram dos mensageiros de Deus, e desprezaram as suas palavras e mofaram dos seus profetas at que o furor do Senhor subiu tanto, contra o seu povo, que mais nenhum remdio houve. Porque fez subir contra eles o rei dos caldeus, o qual matou os seus mancebos espada, na casa do seu santurio, e no teve piedade nem dos mancebos, nem das donzelas, nem dos velhos, nem dos decrpitos; a todos os deu na sua mo. (2 Cr 36:14-18).
A conquista da nao de Israel feita pela Babilnia vista como mero instrumento nas mos de Deus por causa da rebeldia do povo hebreu. A persistncia dos hebreus na rejeio s exortaes dos profetas traria, fatalmente, o cativeiro babilnico como consequncia. Perceba o leitor que, segundo o texto bblico, foi Deus quem fez subir contra eles [os hebreus] o rei dos caldeus [Babilnia]. Como pudermos ver, Voltaire no aceita que essa pequena horda voluntariosa e rebelde [os judeus] era o centro e o objeto das revolues da Terra. Um Deus que escolhe um povo em detrimento dos outros inconcebvel para Voltaire, ainda mais quando esse povo passa a ser o critrio principal para explicar os eventos histricos de outras naes. Citamos outra referncia do filsofo com o mesmo tipo de crtica, agora em sua obra A filosofia da histria:
Se os reis da Babilnia, em suas conquistas, atacam de passagem o povo hebreu, unicamente para corrigir esse povo de seus pecados. Se o rei a quem se chamou Ciro se assenhora da Babilnia, para dar a alguns judeus licena para ir para casa. Se Alexandre vencedor de Dario, para estabelecer roupas-velheiros judeus em Alexandria. (VOLTAIRE, 2007a, p. 13).
Novamente o autor do Cndido critica a viso bblica que coloca os hebreus como o centro da histria. Ele no aceita que fatos importantes ocorridos na Terra tenham como 29
alvo os judeus. A histria no deveria ser interpretada dessa maneira. Citamos mais uma vez o texto bblico para esclarecer o leitor sobre o que Voltaire tem em mente:
Portanto assim diz o Senhor dos Exrcitos: Visto que no escutastes as minhas palavras, Eis que eu enviarei, e tomarei a todas as geraes do norte, diz o Senhor, como tambm a Nabucodonozor, rei de Babilnia, meu servo, e os trarei sobre esta terra, e sobre os seus moradores, e sobre todas estas naes em redor, e os destruirei totalmente, e po-los-ei em espanto, e em assobio, e em perptuos desertos. (Jr 25:8-9).
O texto citado do profeta Jeremias e tem teor semelhante ao que citamos anteriormente, j que ambos fazem da Babilnia um mero instrumento nas mos de Deus, visando castigar o povo hebreu por no obedecer suas palavras. Fica claro que Voltaire est citando esta ou outra passagem similar, j que cita nominalmente a Babilnia em suas conquistas como um meio para se corrigir os israelitas. Mais uma vez o teor da crtica voltairiana reforado, pois no seria razovel ver um pequeno povo como o centro de todas as coisas. O filsofo tambm cita o conhecido texto de Ed 1:1-4, onde Ciro, rei da Prsia, concedeu o direito dos judeus exilados da Babilnia voltarem para a sua ptria e reconstrurem sua cidade e seu templo. Novamente o texto bblico v o controle de Deus na histria em favor do povo eleito e Voltaire corrobora sua rejeio a uma histria que tem uma nao como centro.
Tendo percorrido o caminho da busca de incompatibilidade entre a histria bblica e a histria de outros povos, seja reforando a falta de evidncias das narrativas bblicas nas narrativas de outros povos, seja rejeitando a viso histrica que coloca os hebreus como centro de algumas importantes aes de outros povos, agora o filsofo buscar problemas histricos internos, ou seja, buscar contradies e inconsistncias nas narrativas bblicas, prosseguindo em seu ataque histrico ao texto bblico. Para vermos como o filsofo assim problematiza a histria bblica, selecionaremos algumas passagens citadas em suas obras. Comecemos por um texto onde Voltaire problematiza a cronologia da histria dos hebreus conforme narrada na Bblia: 30
Corramos os olhos por todas as naes do nosso Ocidente, desde Arcangel at Gibraltar; acaso h uma s que tenha tido leis e uma histria escrita antes de se reunir em cidades? Que digo? H um s povo na terra que tenha mantido arquivos antes de se ter estabelecido? Como apenas os judeus teriam essa prerrogativa? (VOLTAIRE, 2000, p. 53).
O filsofo est se referindo ao fato da Bblia dizer que os hebreus receberam a sua lei, a Tor, a Lei de Moiss, quando ainda estavam no deserto, antes de terem uma terra fixa para viver.10 A narrativa bblica segue a ordem inversa do que Voltaire afirma que aconteceu com outros povos, isto , as outras naes se renem em cidades, se organizam e ento fazem leis, com os hebreus, ao contrrio, a lei veio primeiro e ento eles, com uma lei em mos, partem para conquistar suas cidades. Para Voltaire, esta cronologia demonstraria a inconsistncia da narrativa bblica, seria uma demonstrao de que a Bblia no pode ser encarada como um livro histrico srio, j que tamanha contradio, em comparao com todas as outras histrias, demonstraria a falta de credibilidade das Escrituras Hebraicas. O filsofo confirma que a lgica da cronologia de um povo diferente daquela que a Bblia demonstra acerca dos hebreus:
A histria de uma nao nunca pode ser escrita seno bem tardiamente; comea-se por alguns registros sumrios que so conservados, na medida em que podem s-lo, num templo ou numa cidadela. Uma guerra infeliz s vezes destri esses anais, e preciso recomear vinte vezes como formigas cuja habitao foi pisada. S ao fim de vrios sculos que uma histria um tanto detalhada pode suceder a esses registros informes, e essa primeira histria sempre mesclada de um falso maravilhoso pelo qual se pretende substituir a verdade que falta. (VOLTAIRE, 2007a, pp. 222223).
A posio conservadora, tanto antiga como atual, atribui os cinco primeiros livros da Bblia a Moiss. E esses cinco primeiros livros, como sabemos, contm no s a lei dos hebreus, como tambm a sua histria, desde o seu incio at a poca em que receberam a sua lei. Ou seja, os primeiros livros da Bblia, ao narrar a histria dos hebreus, estariam demonstrando clara inconsistncia histrica, pois, para Voltaire, a histria de um povo s escrita bem tardiamente, no logo que essa nao est se formando. Se a Tor foi escrita
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O leitor pode conferir os livros da Lei, em especial xodo, Levtico, Nmeros e Deuteronmio, e ento o livro de Josu, que narra as conquistas geogrficas de Israel.
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por Moiss, e Moiss teria vivido ainda no incio da histria de Israel, quando os hebreus ainda no tinham sequer uma terra fixa, ento as narrativas contidas na mesma Tor no poderiam passar no teste histrico, j que a verdadeira histria de um povo s pode ser escrita tardiamente. Desta forma, o filsofo problematiza a histria de Israel, a cronologia bblica, e, com isso, toda a Bblia, que apresenta a histria dos hebreus a partir dos primeiros livros das Escrituras Hebraicas. O filsofo problematiza mais a histria bblica, ainda focando na Tor: Alm do mais, pergunto a todo homem sensato se verossmil que Moiss tenha dado, no deserto, preceitos para os reis judeus que s vieram tantos sculos depois dele... (VOLTAIRE, 2006, p. 11). Voltaire se refere seguinte passagem:
Pors certamente sobre ti como rei aquele que escolher o SENHOR teu Deus; dentre teus irmos pors rei sobre ti; no poders pr homem estranho sobre ti, que no seja de teus irmos. Porm ele no multiplicar para si cavalos, nem far voltar o povo ao Egito para multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos tem dito: Nunca mais voltareis por este caminho. Tampouco para si multiplicar mulheres, para que o seu corao no se desvie; nem prata nem ouro multiplicar muito para si. (Dt 17:15-17).
O texto bblico, como Voltaire diz, fala da lei de Moiss dando preceitos para reis que ainda no existiam sua poca. De acordo com a cronologia bblica, temos, entre Moiss e o incio da monarquia, um perodo de mais ou menos quinhentos anos de diferena. Para os telogos conservadores, no h problema algum na narrativa, j que o texto bblico atribui a lei mosaica a Deus, isto , sua origem seria divina, e o texto acima estaria apenas prevendo uma situao futura, que Deus j conhecia. Para Voltaire, ao contrrio, no concebvel que uma lei tenha carter preditivo, que ela se dirija a uma situao ainda inexistente. Nos dias atuais, e isso desde o sculo XVIII, aproximadamente, existe a teoria documentria, que atribui o Pentateuco a fontes, a grupos que teriam vivido em perodos diferentes, o que explicaria certos anacronismos contidos na Tor se ela fosse atribuda a Moiss.11 Voltaire continua a problematizar a Tor em sua obra O tmulo do fanatismo :
11 Para conferir um pouco da viso documentria do Pentateuco, ver a seguinte obra: DE PURY, Albert (org.), O Pentateuco em questo: as origens e a composio dos cinco primeiros livros da Bblia luz de pesquisas recentes. Petrpolis, RJ: Vozes, 1996
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O simples senso comum no seria suficiente para avaliar que um livro que comea com as seguintes palavras: Estas so as palavras que Moiss pronunciou na banda alm do Jordo s pode ser de um falsrio inbil, j que o mesmo livro garante que Moiss jamais atravessou o Jordo? (VOLTAIRE, 2006, p. 10).
Vejamos a referncia citada pelo filsofo, que fala que Moiss proferiu um discurso alm do Jordo: Estas so as palavras que Moiss falou a todo o Israel alm do Jordo, no deserto, na plancie defronte do Mar Vermelho, entre Par e Tfel, e Lab, e Hazerote, e Di-Zaabe. (Dt 1:1). Vejamos agora uma das referncias que fala que Moiss no passou o Jordo: Sobe ao cume de Pisga, e levanta os teus olhos ao ocidente, e ao norte, e ao sul, e ao oriente, e v com os teus olhos; porque no passars este Jordo. (Dt 3:27).12 Para o filsofo, o fato de uma referncia narrar Moiss discursando alm do Jordo e outra referncia afirmar que ele no passou o Jordo significa que h uma falsidade grosseira no livro de Deuteronmio. O filsofo s no pensou em um detalhe bem simples: estar alm ou aqum de um ponto de referncia depende do ponto de vista do observador. Por exemplo, pense o leitor numa avenida que tem num extremo o ponto A e no outro extremo o ponto B. Entre os dois extremos, no meio da avenida, h um museu, o nosso ponto de referncia. Pense o leitor que os moradores que vivem antes do museu e vivem no ponto A nunca passaram alm do museu. Raciocine o leitor que, aqueles que esto no ponto B, podem se referir naturalmente aos moradores do lado A como aqueles que esto alm do museu. Ou seja, se eu estou do lado A, me refiro ao meu grupo, aos moradores do lado A, como aqueles que nunca passaram alm do museu, mas para os moradores do lado B, somos aqueles que esto alm do museu. exatamente esse o caso que ocorre nas passagens bblicas que Voltaire cita, pois na primeira nos informado que Moiss proferiu o discurso alm do Jordo, e o texto, como claro, j foi escrito numa poca posterior ao ocorrido, o que significa, com grande obviedade, que quem escreveu o texto j tinha atravessado o Jordo, embora o texto diga que Moiss mesmo no o atravessou. Por isso, para o compilador (ou compiladores) do texto da Tor, bvio que Moiss estava alm do Jordo . Tanto no difcil de se chegar a essa concluso que h cidades citadas no texto de Dt 1:1, como Lab e Nazenote13, que so descritas como parte da trajetria de Israel no
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deserto, junto com Moiss, o que indica que o escritor est se referindo, com a expresso alm do Jordo, exatamente s cidades onde Moiss e os hebreus estiverem, e no terra onde eles no entraram. Portanto, o filsofo no se atentou a esses detalhes lgicos, geogrficos e tambm confundiu as palavras alm do Jordo com atravessar o Jordo. O filsofo agora problematiza uma citao do Novo Testamento, no evangelho de Joo:
No Evangelho atribudo a Joo h uma passagem que permite ver que esse livro no foi composto por um judeu. Jesus disse: Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Esse mandamento, longe de ser novo, consta expressamente e de uma maneira bem mais forte no Levtico: Amars o teu prximo como a ti mesmo. (VOLTAIRE, 2006, p. 74).
O autor do Cndido se refere ao seguinte versculo: Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vs, que tambm vs uns aos outros vos ameis. (Jo 13:34). Realmente o filsofo tem razo ao afirmar que o mandamento que ordena que se ame ao prximo como a si mesmo no era novo na poca de Jesus, pois j estava escrito na Tor (Cf. Lv 19:18), mas no tem razo ao interpretar o versculo do evangelho de Joo, pois o patriarca de Ferney se esqueceu de citar o restante do versculo: como eu vos amei a vs, que tambm vs uns aos outros vos ameis. Ou seja, Jesus no est simplesmente reproduzindo o mandamento da Tor, mas est lhe dando um aspecto mais avanado, mais profundo: os discpulos deveriam amar as pessoas assim como foram amados por Jesus. Eles deveriam amar a partir da experincia do amor que receberam, o que pode indicar, lendo as narrativas dos evangelhos, em amar o outro, muitas vezes, mais do que se ama a si prprio, no mais como a si prprio. Se o amor de Jesus pelos discpulos referncia para o novo mandamento, ento realmente no temos dvida de que ele est ultrapassando o que est escrito em Levtico. Continuando a citar o Novo Testamento, Voltaire agora cita o massacre dos inocentes, registrado no evangelho de Mateus14:
O massacre dos inocentes decerto o cmulo da inpcia, bem como o conto dos trs magos conduzidos por uma estrela. Como Herodes,
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Cf. Mt 2
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moribundo, poderia temer que o filho de um carpinteiro, que acabara de nascer numa aldeia, o destronasse? Herodes recebera seu reino dos romanos. Portanto, aquela criana teria que ter feito a guerra ao imprio. Tal temor pode surgir na cabea de um homem que no esteja totalmente louco? (VOLTAIRE, 2006, p. 60).
A passagem informa que Herodes, governador da Judeia estabelecido por Roma, ouviu dizer que o Messias tinha nascido e quis saber mais informaes. Uma parte da passagem diz o seguinte:
E, tendo nascido Jesus em Belm de Judia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalm, dizendo: Onde est aquele que nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a ador-lo. E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se, e toda Jerusalm com ele. (Mt 2:1-3).
Estes versculos ainda no falam do massacre das crianas efetuado por Herodes, segundo o texto bblico, mas contm a parte criticada por Voltaire, que foi o sentimento de perturbao de Herodes com o nascimento do Messias. Para o patriarca de Ferney, seria um grande absurdo, vindo da cabea de um homem completamente louco, temer o filho de um carpinteiro, nascido numa aldeia. O filsofo, todavia, no considerou que Herodes no sabia se tratar do filho de um carpinteiro, muito menos que Jesus no viria, dcadas depois, sequer cogitar tomar o poder poltico das mos de Roma e libertar Jud. Herodes apenas ouviu os magos dizerem: onde nasceu o rei dos judeus? Ora, como um lder de uma provncia rebelde se sentiria se viessem estrangeiros perguntando pelo rei daquele povo que acabara de nascer? No temeria uma conspirao? Champlin comenta sobre o assunto:
AS PROFECIAS dos fariseus indicavam que Deus julgaria a Herodes e que haveria uma revoluo. Herodes matou a muitos lderes judeus, incluindo os principais sacerdotes, e at mesmo sua prpria esposa, com receio dessas profecias (...) segundo alguns historiadores, como Suetnio e Tcito (...) naquela poca havia uma atmosfera de expectao, como se algum acontecimento importante estivesse prestes a ocorrer (...) Alguns dentre eles [dentre os judeus] estavam mesmo esperando seu [do Messias] aparecimento (...) Essas condies criaram entre o povo e no corao de Herodes um grande medo. Herodes tinha receio de perder o trono. (CHAMPLIN, 1995, p. 280).
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Segundo a citao de Champlin, Herodes matou muitos lderes judeus, e isso se deu, provavelmente, por problemas de rebelio, porque muitos judeus no aceitavam o domnio de Roma sobre Israel. Ou seja, a questo toda est no domnio de Roma sobre os judeus, sobre a legitimidade da autoridade do Imprio Romano sobre Israel. Assim, se Herodes teve problemas com os judeus e chegou mesmo a matar muitos deles, ento o seu temor ao ouvir que o rei dos judeus tinha nascido totalmente compreensvel para o leitor, o que confirmado por esses conflitos citados e o massacre dos inocentes tambm no se torna algo absurdo diante do carter cruel de Herodes informado pela histria. 1.3. Absurdos, contradies e atrocidades constatados por Voltaire na Bblia Alm da sua crtica histrica Bblia, como pudemos ver nas sees anteriores, Voltaire busca tratar o livro sagrado de judeus e cristos como um amontoado de absurdos, contradies, barbarismos e imposturas, sempre de maneira contundente, com o objetivo de desmoralizar o principal alicerce da f judaico-crist, como tambm pudemos constatar brevemente. Em sua misso, o filsofo ataca diversas narrativas dos dois testamentos da Bblia, suas histrias, milagres, oraes, concepes teolgicas, etc. Demonstrando familiaridade com o texto bblico, o patriarca de Ferney busca incessantemente contradies e absurdos na Escritura, e isso o faz em obras de perodos diferentes da sua vida, o que demonstra que sua forma de enxergar a Bblia no mudou, essencialmente, durante os anos. Comecemos citando a zombaria de Voltaire narrativa bblica do dilvio:
Tudo milagre na histria do dilvio: milagre que quarenta dias de chuva inundassem as quatro partes do mundo e as guas subissem quinze cvados acima das mais altas montanhas; milagre que houvesse cataratas, comportas, aberturas no cu; milagre que todos os animais comparecessem na arca, vindos de todas as partes do mundo; milagre que No encontrasse com que os alimentar durante dez meses; milagre que todos os animais se aguentassem na arca, com as suas provises; milagre que a maior parte no houvesse morrido; milagre que encontrassem de comer sada da arca... (VOLTAIRE, 1978c, p. 227).
O filsofo busca problematizar a literalidade, no texto bblico, de uma inundao universal como est narrada na histria do dilvio. relevante acompanharmos as citaes bblicas que Voltaire menciona, compararmos e entendermos a possvel realidade entre o 36
texto e a interpretao que o filsofo o d. Vejamos a meno bblica ordem divina para que No rena todos os animais e aves, como Voltaire cita em seu comentrio:
Faa entrar na arca um casal de cada um dos seres vivos, macho e fmea, para conserv-los vivos com voc. De cada espcie de ave, de cada espcie de animal grande e de cada espcie de animal pequeno que se move rente ao cho vir um casal a voc para que sejam conservados vivos. E armazene todo tipo de alimento, para que voc e eles tenham mantimento. No fez tudo exatamente como Deus lhe tinha ordenado. (Gn 6:19-22).
Um dos problemas que o filsofo coloca na narrativa bblica do dilvio logstico, pois como representantes de todas as espcies de animais e de aves do planeta poderiam ter comparecido arca construda por No? O dilvio seria um meio de destruir a humanidade, que teria se corrompido, enquanto No teria escapado de tal estado de corrupo a que os demais homens teriam chegado (Cf. Gn 6:7-8). Mas como executar, dentro dos limites da fsica, tal empreendimento? Segundo a referncia bblica selecionada, No fez tudo exatamente como Deus lhe tinha ordenado, o que Voltaire demonstra ser impossvel. Ainda mais com as medidas da arca, com 135 metros de cumprimento, vinte de dois metros e meio de largura e treze metros e meio de altura (Cf. Gn 6:15). Como caberiam, numa embarcao assim, tantos animais? O filsofo questiona como No teria conseguido armazenar tanto alimento para tantos animais, para que os alimentasse durante quase um ano. Segundo a Bblia, depois de 150 dias do incio do dilvio, as guas comearam a diminuir (Cf. Gn 8:3) e pouco mais de um ano aps o dilvio No e sua famlia sairam da arca (Cf. Gn 8:13-16). No seria possvel, para Voltaire, que durante todo esse tempo espcies que representariam todos os animais do planeta tivessem sido alimentados, sobrevivido dentro de uma arca e, alm de tudo, tido encontrado mantimentos aps o dilvio, j que tudo teria sido destrudo pelas guas. Gargett comenta a respeito:
Raras so as vezes em que a ironia de Voltaire teve um alvo mais proveitoso do que o Dilvio e a Arca de No. Mesmo admitindo que um homem de 600 anos e sua famlia pudessem construir tal embarcao, como poderiam ter reunido tantos animais, pssaros e insetos nela? Como poderiam ter-lhes dado de beber e comer? Por fim, como evitaram que as
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espcies carnvoras devorassem as outras? E, se lograram fazer tudo isso, que alimento deram aos carnvoros? Tambm so levantadas objees baseadas na fsica, uma vez que Voltaire defende no haver gua suficiente nos oceanos para cobrir as montanhas mais altas, segundo diz a Bblia. (GARGETT, 2010, p. 245).
Assim, haveria uma srie de impossibilidades fsicas para que a histria de No e do dilvio tenham acontecido, literalmente, como est registrado na Bblia. A idade de No, a construo da arca, a quantidade de comida para tantos animais, a sobrevivncia dos animais e tudo o que seria impossvel de ser executado como consta no texto bblico seriam evidncia de que a narrativa do dilvio no pode ter ocorrido como est registrada. Acerca da razo dos judeus terem escrito o relato de um dilvio de propores universais, o que cria imensas dificuldades, Voltaire opina o seguinte, em sua obra Deus e os homens:
Os judeus no podem ter imaginado o dilvio universal, a no ser depois de terem ouvido falar de alguns dilvios particulares. Como no tinham o menor conhecimento do globo, tomaram a parte pelo todo, e a inundao de uma pequena regio pela inundao da terra inteira. (VOLTAIRE, 2000, p. 97).
Na primeira citao Voltaire usa seu conhecido tom zombeteiro, mas nesta citao o filsofo busca um motivo natural para que os hebreus tenham pensado num dilvio universal, buscando entender a possvel razo do texto bblico conter tal narrativa. Os judeus teriam ouvido falar de outras histrias de dilvio e teriam tomado a parte pelo todo, ou seja, teriam transformado uma inundao local em um dilvio universal. O leitor moderno pode se perguntar se a crtica de Voltaire Bblia apenas um meio de atacar o cristianismo, fazendo isso sem seriedade intelectual, ou se suas crticas, como a que feita ao dilvio, se revestem de fundamento? Para tentar esclarecer este importante ponto, a Bblia de Jerusalm nos d uma informao relevante:
O tema de um dilvio est presente em todas as culturas, mas os relatos da antiga Mesopotmia tm um interesse particular por causa das semelhanas com o relato bblico (...) O autor sagrado carregou essas tradies com um ensinamento eterno sobre a justia e a misericrdia de Deus, sobre a malcia do homem e a salvao concedida ao justo...(p. 42).
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No o caso de discutirmos, do ponto de vista da cincia, se houve ou no um dilvio universal como diz a Bblia. Todavia, o comentrio de uma importante verso contempornea da Bblia de certa forma tem alguma relao com o que Voltaire escreveu no sculo XVIII, j que tanto um como outro reconhecem que os hebreus podem ter utilizado as tradies antigas sobre o dilvio. Champlin ratifica, sintetizando algumas semelhanas entre os primeiros captulos do Gnesis, em especial o dilvio, e o relato babilnico:
Na histria da criao h algumas semelhanas entre os registros hebraicos e os babilnicos: 1. Ambas as histrias registram um caos antigo. At mesmo o nome para esse caos semelhante em cada lngua. 2. Segundo os dois relatos, houve luz antes de os astros serem criados. 3. H paralelismo tambm nas crnicas do Dilvio: os deuses mandaram a inundao, mas salvaram um homem que construiu um navio para se abrigar da tempestade. O homem testa o trmino da catstrofe soltando pssaros e oferece sacrifcios quando tudo est terminado. (CHAMPLIN, 2001, p. 7).
Assim, de acordo com Champlin, o relato babilnico da criao e do dilvio teria semelhanas com o Gnesis bblico e, para Voltaire, as semelhanas no seriam mera coincidncia. O leitor da Bblia percebe que as semelhanas entre as duas narrativas do dilvio, nos pontos citados, so notrias. No sabemos se a Bblia tomou a histria emprestada das narrativas antigas ou se houve, realmente, um dilvio na regio da Mesopotmia e houve registros, independentes uns dos outros, com diferenas e semelhanas, baseados neste provvel dilvio local. Seja como for, a crtica de Voltaire, se no for possvel de ser comprovada como correta, ao menos se reveste de fundamento e, apesar do seu tom zombeteiro, continua a ser defendida por exegetas srios do nosso tempo. Mesmo a interpretao literal dos onze primeiros captulos do Gnesis, que envolvem as narrativas da criao do homem, da queda, da povoao do mundo, da origem dos povos, do dilvio e da Torre de Babel, deixada de lado por muitos intrpretes modernos e, de certa forma, isso uma maneira de reconhecer que os crticos, de alguma forma, tinham razo. Novamente citamos um comentrio da Bblia de Jerusalm:
Os onze primeiros captulos do Gnesis devem ser considerados parte. Atualmente fala-se freqentemente em mito. preciso compreender o termo como a designao do carter literrio, e no no sentido de histria fabulosa, ou legendria. Um mito simplesmente uma antiga tradio
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popular que conta as origens do mundo e do homem ou de certos acontecimentos, por exemplo, do dilvio universal, que teriam acontecido nas origens da humanidade. Um mito relato feito de modo imagstico e simblico; o autor do relato bblico tomou tal ou tal tradio de seu prprio ambiente porque ela servia ao seu desgnio didtico. Por outro lado, os mitos ou relatos de origens, tm normalmente carter etiolgico: tais relatos fornecem uma resposta s grandes questes da existncia humana no mundo; por meio dessas narrativas, d-se uma resposta a questes como a da origem do pecado ou do sofrimento humano. (p. 28).
No nosso propsito debater a questo da narrativa bblica, se mito ou histria literal, mas apenas entend-la dentro da crtica feita por Voltaire, o seu fundamento, a sua relevncia hoje. Sabemos que h, atualmente, intrpretes que buscam provar, por meio da histria e da cincia, que os onze primeiros captulos do Gnesis no so mticos, mas h outros, reconhecendo que invivel interpretar todas aquelas narrativas como histricas, que reconhecem que o importante se extrair de l lies morais e espirituais, no sendo relevante saber at que ponto h histria verdica contida ali, at que ponto o mito entra. Assim, no que se refere ao dilvio, no haveria necessariamente conflito entre o tipo de crtica que Voltaire faz Bblia e a f crist, pois h cristos que no encontram problema em manter sua f e interpretar certas passagens da bblia de maneira no literal. Mas continuemos a abordar outras passagens bblicas criticadas por Voltaire. O filsofo cita, agora, as pragas mencionadas na Bblia contra o Egito. A Bblia menciona dez pragas de Deus, por meio de Moiss e Aro, contra o Egito, como castigos por Fara no libertar os hebreus da escravido e no permiti-los sarem do Egito (Cf. Ex 7-11). Citando o episdio, Voltaire objeta a narrativa bblica, em sua obra A filosofia da histria:
[os sbios] perguntam como Fara pde perseguir os judeus com uma cavalaria numerosa, depois de todos os cavalos morrerem na quinta, na sexta, na stima e na dcima pragas. Perguntam por que seiscentos mil combatentes fugiram, tendo Deus sua frente, e se podiam combater com vantagem os egpcios, cujos primognitos haviam todos sido mortos. Perguntam tambm por que Deus no deu o frtil Egito a seu povo eleito, em vez de faz-lo errar por quarenta anos em horrveis desertos. (VOLTAIRE, 2007a, p. 173).
H um grupo de estudiosos que acredita na veracidade da narrativa, inclusive na interveno divina, h outro grupo que entende que o relato no passa de fbula e h 40
tambm outro grupo que cr nas pragas mencionadas, mas busca explic-las naturalmente, sem qualquer interveno sobrenatural. Para reforar, no nosso intuito aqui discutir tais questes luz da teologia e da f, exceto onde elas se relacionem com a crtica de Voltaire Bblia, isso com o objetivo de entendermos a essncia, relevncia e seriedade das objees de Voltaire ao texto bblico. Assim, nos atentaremos aos argumentos do filsofo ao texto, buscando compreender a sua crtica e, se necessrio, problematiz-la. A quinta praga citada por Voltaire teria sido uma grave peste que atingiu o gado e os animais em geral dos egpcios, matando todo o gado (Cf. Ex 9:1-6). A sexta praga teria sido uma sarna que atingiu homens e animais (Cf. Ex 9:10), a stima foi uma grave saraiva (Cf. Ex 9:18) e a dcima foi a morte de todos os primognitos do Egito, de homens e de animais (Cf. Ex 11:5). O questionamento de Voltaire , com todas essas pragas, inclusive com a meno de que a quinta praga matou todo o gado e outros animais, como Fara ainda tinha cavalos para perseguir os hebreus? Como o autor do Cndido est hipoteticamente admitindo a suposta realidade das pragas, ento as pragas destacadas teriam que ter matado todos os animais dos egpcios, inclusive os cavalos de Fara. O problema lgico desta crtica que Voltaire est pensando, ainda que hipoteticamente, pois provavelmente ele no acreditava que isso tivesse acontecido, que todas as pragas ocorreram uma atrs da outra, sem qualquer intervalo. O fato do texto bblico no informar intervalo entre as pragas no significa que elas tenham ocorrido sem espao de tempo entre uma e outra. Assim, no h motivos para que Fara no possa ter adquirido cavalos aps as pragas, pois no sabemos com exatido como tudo teria acontecido, j que, admitindo a hiptese de um provvel intervalo entre os acontecimentos, nada mais natural que ele tenha recuperado seus bens aps t-los perdido. Frisamos que a questo no debatermos o texto com esprito apologtico, mas sim analisar o argumento de Voltaire, sua lgica, consistncia, fundamento, seriedade. Voltaire cita, agora, o livro do profeta Jeremias, em O tmulo do fanatismo :
Como se sabe, Jeremias tinha forte ligao com os reis da Babilnia; evidente por suas rapsdias, que era pago pelos babilnios e traa seu povo: est sempre querendo que se rendam ao rei da Babilnia. (VOLTAIRE, 2006, p. 20).
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Se comeamos citando, nesta seo, uma crtica sria (ainda que em tom zombeteiro) de Voltaire a um certo tipo de interpretao da narrativa bblica, ou seja, a interpretao que entende o texto bblico de maneira literal, mesmo nos onze primeiros captulos do Gnesis, o exegeta bblico no pode deixar de questionar a seriedade de um estudioso que conhecia a Bblia como Voltaire ao fazer esta crtica ao profeta Jeremias. O filsofo acusa o profeta de trair o seu povo por aconselhar a Israel que se submeta Babilnia, afirmando que Jeremias era pago para dar tal conselho. De fato, Jeremias profetizou que Israel deveria se submeter Babilnia (Cf. Jr 27:1-22), pois, caso contrrio, o povo morreria pela espada, pela fome, pela peste (Cf. Jr 27:13). Os hebreus seriam levados ao exlio da Babilnia devido sua desobedincia a Deus (Cf Jr 13) e o livro de Jeremias demonstra a tentativa do profeta em levar os hebreus a mudarem o seu caminho de vida e tambm a no resistirem ao poder do rei da Babilnia. Voltaire ignora o quanto Jeremias no queria pregar esta mensagem, pois ele foi preso devido sua profecia, tendo sido lanado num calabouo cheio de lama (Cf. Jr 38:1-28), teve seus escritos queimados pelo rei de Jud (Cf. Jr 36:1-32), tendo inclusive chegado a acusar Deus de t-lo iludido (Cf. Jr 20:7) e chegou a pensar em no mais profetizar (Cf. Jr 20:9). Que o povo e os magistrados da poca de Jeremias o considerassem um traidor por aconselhar submisso ao inimigo compreensvel, mas insustentvel defender tal opinio aps, com o conhecimento da histria, sabermos que ele estava com a razo, que os hebreus, de fato, foram levados cativos para a Babilnia, contra a qual no tinham a menor chance, e que outros profetas, como Isaias, Ams e Miqueias, tambm tinham dito a mesma coisa cerca de um sculo antes de Jeremias. Se os hebreus tivessem ouvido o que Jeremias disse, Jud no teria sofrido a destruio que ocorreu, como eles mesmos narraram em seus livros histricos (Cf. 2 Rs 25 e 2 Cr 36). Citemos agora a meno de Voltaire a um dos mais importantes apstolos, Simo Pedro:
Pedro Simo Barjonas fez muito bem em ressuscitar a costureira Dorcade: o mnimo que se pode fazer por uma moa que consertava grtis as tnicas dos fiis. Mas no desculpo Simo Pedro Barjonas por ter feito morrer de morte sbita Ananias e sua mulher Safira, duas criaturas de bem, que supostamente foram tolas o suficiente para dar todos os seus bens aos apstolos. O crime deles foi o de ter conservado consigo do que prover suas necessidades prementes. (VOLTAIRE, 2006, p. 115).
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Voltaire cita a conhecida histria de Ananias e Safira, narrada no livro bblico de Atos dos apstolos15. O patriarca de Ferney tem razo ao citar a morte do casal, mas parece que a essncia da histria no foi entendida pelo nosso filsofo exegeta. Por qu? Porque a histria no atribui a morte de Ananias e Safira ao fato deles terem guardado dinheiro para sobreviver, para suprir suas necessidades, mas sim porque mentiram, enganaram, ignoraram o ambiente sagrado em que estavam. Segundo o texto, o casal vendeu uma propriedade, ficou com parte do preo dessa propriedade e fez a doao do restante do valor aos apstolos, valor esse que, segundo o costume da Igreja Primitiva, era dividido com os pobres (Cf. At 2:44-45). O problema, segundo a narrativa, no foi o casal ter ficado com parte do valor da propriedade, j que Pedro mesmo disse a Ananias, o esposo de Safira: Guardando-a no ficava para ti? E, vendida, no estava em teu poder? Por que formaste este desgnio em teu corao? No mentiste aos homens, mas a Deus. (At 5:4). Voltaire, todavia, critica a Pedro porque, segundo o filsofo, o apstolo queria todo o valor da propriedade. A passagem, todavia, desmente esta interpretao, mostrando que Pedro, na verdade, at mesmo disse que seria melhor Ananias no ter vendido a propriedade (atentese o leitor para a pergunta: guardando-a [a propriedade] no ficava para ti?) ou, se tivesse vendido, seria melhor ter ficado com todo o dinheiro (veja a pergunta de Pedro: E, vendida [a propriedade], no estava [o dinheiro] em teu poder?) do que ter mentido, brincado com coisas sagradas. Voltaire ainda diz que Ananias e Safira foram tolos o suficiente para dar todos os seus bens aos apstolos, mas ignora que o esprito comunitrio que existia na igreja primitiva era totalmente diferente da realidade do cristianismo do seu tempo, e que os apstolos, diferente do que faziam e fazem muitos lderes religiosos, repartiam os bens com os necessitados, sendo eles mesmos homens pobres. Assim, parece que Voltaire, ao analisar a Bblia, oscila entre a crtica sria e a apelao para qualquer tipo de artifcio, mesmo a crtica que no se sustenta mediante a anlise mais detalhada do texto. Citamos novamente O tmulo do fanatismo, dando sequncia s crticas do filsofo ao texto bblico:
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Quando se mostram a pessoas sensatas essas passagens execrveis, perdidas na barafunda das profecias, elas mal conseguem se recuperar de seu espanto. No conseguem conceber que um Isaas ande nu em plo no meio de Jerusalm, que um Ezequiel divida a barba cortada em trs pores, que um Jonas passe trs dias no ventre de uma baleia etc. (VOLTAIRE, 2006, p. 39).
Para se entender um pouco mais do papel dos profetas no Antigo testamento recomendamos a leitura da introduo da Bblia de Jerusalm aos livros dos profetas. Entre outras coisas, vemos ali que, muitas vezes, o profeta servia, ele mesmo, como um sinal de sua mensagem. Neste caso, a mxima de que o meio a mensagem, to utilizada no meio publicitrio, j era usada pelos antigos profetas. Da, algumas vezes, temos algumas cenas estranhas protagonizadas por estes homens. No caso da primeira citao mencionada por Voltaire, frisamos o seguinte versculo: Nesse mesmo tempo falou o SENHOR por intermdio de Isaas, filho de Ams, dizendo: Vai, solta o cilcio de teus lombos, e descala os sapatos dos teus ps. E ele assim o fez, indo nu e descalo. (Is 20:2). A leitura literal d a entender que o profeta andou sem nenhuma roupa, mas parece que a nudez, citada no texto, se refere ausncia da tnica externa, mostrando, assim, a tnica curta, que ficava por baixo (Cf. CHAMPLIN, 2001, p. 2846). Quanto ao uso do termo nu em outras passagens, veja I Sm 19:24; Mt 25:43; Jo 21:7. A nudez do profeta era a representao, o smbolo do exlio do Egito e da Etipia para a Assria, nao bastante destacada nos textos de Isaas (Cf. Is 20:1-6). Quanto mensagem da barba e do cabelo de Ezequiel cortados como smbolo do exlio e da destruio de Jud, ver Ez 5:1-17. J a citao do filsofo ao profeta Jonas merece um pouco mais da nossa ateno. O leitor percebe, obviamente, que Voltaire est citando passagens da Bblia supostamente absurdas para coloc-las em descrdito, tratando-a como um livro recheado de histrias estranhas ou mesmo impossveis de serem verdicas. Acerca da histria citada pelo filsofo, o leitor pode conferir o livro bblico de Jonas, em especial os captulos um e dois. O relato bblico, sem dvida, faz Jonas ser engolido por um grande peixe por interferncia divina e ficar l dentro durante trs dias e sobreviver tambm pela mo de Deus. Sobre isso, gostariamos de citar uma curiosa histria, como segue:
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Os registros oficiais do Almirantado Britnico fornecem evidncias documentadas sobre a espantosa aventura de James Bartley, um marinheiro britnico que foi engolido por uma baleia e escapou com vida para contar a histria (...) Em certo momento foi arpoada uma grande baleia [do navio onde Bartley estava] (...) ocorreu que seu corpanzil [da baleia] esmigalhou o bote, e muitos homens caram no mar. Dois homens no puderam ser encontrados, e um deles era o Sr. Bartley (...) [Depois da baleia capturada] fizeram uma grande inciso no estmago da baleia, e apareceu um p humano. Era James Bartley, dobrado em dois, inconsciente, mas ainda vivo (...) muitos mdicos de vrios pases vieram examin-lo. Viveu mais dezoito anos depois dessa experincia. Sua pele ficara com uma desnatural colorao esbranquiada, mas ele no sofreu outros maus efeitos alm desse. Na lpide de seu tmulo foi escrito um breve relato de sua experincia, com o acrscimo: James Bartley, 1879 a 1909, um moderno Jonas... (CHAMPLIN, 2001, pp. 3549-3550).
No temos como ter certeza sobre a veracidade da histria de Bartley, mas ela bastante curiosa. O relato bblico no depende, no que se refere aos milagres, de confirmao histrica ou cientfica, j que uma questo de f, mas, se a histria citada mesmo verdica, o relato de Jonas teria um paralelo bastante curioso, contendo mais um daqueles casos em que coisas extraordinrias acontecem e a razo no consegue expliclas. O relato sobre Bartley informa que sua pele ficou esbranquiada aps sua estadia dentro da baleia. Teria ocorrido o mesmo com Jonas? O relato bblico informa que o sermo consistiu nas seguintes palavras aos homens de Nnive, capital da Assria: Ainda quarenta dias, e Nnive ser subvertida. (Jn 3:4). Aps o que os homens de Nnive creram na mensagem do profeta e se arrependeram. S por isso? Ou um homem recm-sado de uma baleia, com a pele descolorida, gritando como um maluco que a cidade de Nnive seria destruda foi como uma espcie de sinal para tais homens? Vejamos mais uma crtica de Voltaire aos supostos absurdos contidos na Bblia, focando mais uma vez em um profeta, mas que talvez, novamente, tenha carecido de uma anlise mais minuciosa: ... vrios crticos ficaram revoltados com a ordem que lhe [a Ezequiel] deu o Senhor de comer, durante trezentos e noventa dias a fio, po de cevada, de trigo e de milho coberto de excrementos humanos. (VOLTAIRE, 1978c, p. 179). A referncia bblica citada a seguinte: E o que comeres ser como bolos de cevada, e cozlos-s sobre o esterco que sai do homem, diante dos olhos deles. (Ez 4:12). O leitor moderno pode at se sentir enojado com este texto, mas a Bblia de Jerusalm informa que o excremento seco usado como combustvel no Oriente (p. 1487). E Champlin 45
complementa: [comer po cozido sobre um fogo que queimava esterco humano era uma] ao inimaginvel para qualquer judeu, mas permissvel para os pagos. (CHAMPLIN, 2001, p. 3209). Ou seja, no se trata de misturar excrementos humanos ao alimento, mas sim de uma prtica comum, segundo as fontes citadas, dos povos antigos, em usar excremento como combustvel. Perceba o leitor que o protesto do profeta contra Deus se refere ao aspecto ritualstico, religioso que tal ato implicava, no a estar se alimentando de algo nojento: Ah! Soberano Senhor! Eu jamais me contaminei. Desde a minha infncia at agora, jamais comi qualquer coisa achada morta ou que tivesse sido despedaada por animais selvagens. Jamais entrou em minha boca qualquer carne impura. (Ez 4:14). Ou seja, a passagem trata meramente de algo comum aos povos no judeus, mas de algo detestvel para os filhos de Israel, como o protesto de Ezequiel demonstra. A interpretao voltairiana, todavia, desconsidera este aspecto que a prpria passagem no deixa encoberto. No sabemos at onde o nosso filsofo tinha informaes sobre o pano de fundo histrico deste ato, mas inegvel que ele tomou um sentido diferente do que a passagem sugere em sua interpretao. Citamos, a seguir, duas referncias de Voltaire, ambas tratando de uma mesma passagem dos evangelhos, nas obras O tmulo do fanatismo e Deus e os homens, respectivamente:
[Jesus] entra no templo, ou seja, nesse grande espao cercado onde ficavam os sacerdotes, nesse ptio onde pequenos comerciantes estavam autorizados por lei a vender galinhas, pombos, cordeiros, aos que vinham sacrificar. Pega um grande chicote, d com ele nas costas de todos os comerciantes, expulsa-os a golpes de aoite, eles, suas galinhas, seus pombos, seus carneiros e at seus bois, joga todas as suas moedas no cho, e ningum o impede! (VOLTAIRE, 2006, p. 47). Se acreditarmos nos Evangelhos, mal chega a Jerusalm Jesus expulsa e maltrata uns mercadores que estavam autorizados pela lei a vender pombos no trio do templo para os que quisessem oferec-los em sacrifcio. Esse ato, que parece to ridculo a milorde Bolingbroke, a Woolston e a todos os franco-pensadores, seria to repreensvel quanto se um fantico, entre ns, se pusesse a chicotear os livreiros que vendem na igreja de So Paulo o livro das Preces comuns. (VOLTAIRE, 2000, pp. 115-116).
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O filsofo se refere, agora, ao conhecido episdio narrado nos evangelhos, no qual Jesus agride com um chicote e expulsa os comerciantes do templo de Jerusalm (Cf. Mt 21:12-17; Jo 2:13-17). Em ambas as passagens Voltaire frisa que os vendedores estavam autorizados pela lei a comercializarem seus produtos no templo. Provavelmente a inteno do filsofo pintar Jesus como um fantico fora da lei, que no respeitava o que estava institudo legalmente. Na primeira passagem o filsofo se questiona sobre o fato de ningum t-lo impedido de fazer tal coisa, dando a entender que, se Jesus tivesse mesmo tentado fazer o que fez, no teria conseguido fazer sem impedimento daqueles que sofreram sua ao. Na segunda, o destaque ao absurdo de tal cena, onde homens autorizados pela lei a vender animais so expulsos arbitrariamente! Novamente gostaramos de frisar que no sabemos at onde Voltaire tinha informaes sobre o que est alm do texto, sobre o pano de fundo, mas relevante, para fazermos exegese sria, as citarmos, pois, apenas lendo o texto superficialmente, sem maiores informaes, podemos no entend-lo completamente, ou mesmo podemos ter um entendimento equivocado. Nem sempre os escritores bblicos do maiores informaes, pois provavelmente eles e seus leitores as conheciam, e no imaginavam que seus escritos seriam lidos sculos e milnios depois. Vejamos, assim, algumas informaes que esclarecem a passagem citada pelo filsofo, comeando por um comentrio da verso King James dos evangelhos:
Os romeiros que vinham de todas as partes da Palestina, para as celebraes da Pscoa, tinham de comprar animais que satisfizessem as exigncias rituais. Os sacerdotes mantinham um acordo com os vendedores e somente os animais comprados (a preos exorbitantes) dentro dessa rea do templo recebiam uma espcie de visto de aprovao sacerdotal... (p. 171).
A Bblia de Jerusalm concorda ao dizer: Uns forneciam a moeda, outros as vtimas necessrias para as oferendas dos peregrinos. Mas esse uso legtimo dava lugar a abusos. (p. 1741). Teramos que fazer uma pesquisa muito mais ampla e profunda para termos conhecimento se Voltaire foi negligente ou se simplesmente no teve acesso a algumas informaes relevantes para a interpretao do texto. Seja como for, a prpria narrativa informa que Jesus chamou os homens do templo de salteadores, ladres, o que poderia ser, pelo menos, um indcio para o nosso filsofo desconfiar que Jesus no era um fantico que simplesmente entrou e comeou a derrubar as mercadorias sem motivos, 47
mas expressou uma revolta com o extremo abuso que os sacerdotes exerciam contra os pobres, fazendo o templo perder a sua razo de ser. A King James nos d mais uma informao relevante, que nos mostra os sacerdotes sob uma luz um pouco diferente do que o autor do Cndido, em suas raras menes positivas aos judeus, demonstra nas citaes acima:
Vrios sacerdotes lideravam a corrupo institucionalizada no templo, posto que ao receberem os animais para holocausto, em vez de efetuarem o ritual do sacrifcio, matavam apenas alguns deles, e repassavam todos os demais para comerciantes fraudulentos, que os revendiam sucessivas vezes. (p. 90).
A se confiar nas informaes dadas pelas fontes mencionadas, tnhamos, ento, no apenas abuso nos preos dos animais usados para os rituais do templo, como tambm uma prtica mentirosa, hipcrita, j que os sacerdotes levavam os animais para trs do vu do templo, onde eram efetuados os sacrifcios, fingiam que sacrificavam e os vendiam novamente. Assim, a reao violenta de Jesus, aparentemente a de um fantico, apenas proporcional atitude hipcrita e desonesta dos representantes da religio judaica de ento. Sendo assim, o adjetivo ladres que Jesus emprega a tais pessoas adequado, e somente algum com bastante coragem se levantaria contra os homens poderosos da religio. O filsofo, todavia, tem tambm outro ponto de vista sobre Jesus, como vemos:
Os maiores inimigos de Jesus devem concordar com que ele tinha a rarssima qualidade de atrair discpulos. Ningum adquire essa dominao sobre os espritos sem talento, sem costumes isentos de vcios vergonhosos. preciso tornar-se respeitvel aos que se quer conduzir; impossvel fazer-se crer quando se desprezado. No obstante o que se tenha escrito a seu respeito, o fato que ele devia ter atividade, fora, candura, temperana, arte de agradar e, sobretudo, bons costumes. (VOLTAIRE, 2000, p. 131).
Embora Voltaire tenha tentado demonstrar Jesus como um fantico no episdio conhecido nos evangelhos como a purificao do templo, a vida de Cristo narrada no Novo Testamento , para o patriarca de Ferney, recheada de elementos positivos. O fato de Jesus ter discpulos era evidncia de que ele teria talento, bons costumes, temperamento equilibrado, sabedoria. Jesus era um homem que defendia o amor a Deus, ao prximo, a 48
moral universal, e o cristianismo, tal como tinha se tornado na histria, nada tinha a ver com os ensinamentos de Cristo (Cf. VOLTAIRE, 2000, pp. 121, 123). Tirando o que considera absurdo, como alguns milagres, o filsofo, todavia, afirma que houve um Jesus respeitvel, que s deve ser consultado com a razo. (VOLTAIRE, 2000, p. 111). Outro aspecto bastante destacado por Voltaire em sua crtica Bblia se refere s suas narrativas que envolvem violncia, guerras, assassinatos, atos brbaros. Citamos um texto do filsofo, em sua obra O tmulo do fanatismo:
Se passarmos das fbulas dos judeus aos costumes desse povo, no so eles to abominveis quanto seus contos so absurdos? Como eles mesmos reconhecem, so um povo de ladres que carregam para um deserto tudo o que roubaram dos egpcios. O lder deles, Josu, atravessa o Jordo por um milagre semelhante ao milagre do mar Vermelho; para qu? Para pr a fogo e a sangue uma cidade que no conhecia, uma cidade cujos muros seu Deus faz cair ao som da trombeta. (VOLTAIRE, 2006, p. 28).
O leitor familiarizado com a Bblia sabe que h diversas narrativas em que, por tratarem de perodos da histria de Israel que envolviam muitas guerras, h muitas cenas recheadas de violncia, seja no Pentateuco, seja nos livros de Josu e Juzes, bem como nos livros de Reis e Crnicas. As batalhas, que visavam ora proteger o territrio, ora expandilo, nos proporcionam narrativas que, para a mentalidade moderna, podem causar espanto e rejeio. Acerca da histria de Josu16, citada por Voltaire, a passagem bblica est descrevendo a fase em que os hebreus saem do deserto e partem para conquistar territrios, buscando a terra prometida. Neste cenrio de conquistas, obviamente, as cenas de guerra aparecem como consequncia natural do conflito entre os hebreus e outros povos e o livro de Josu, como um memorial da histria de Israel, realmente tem este aspecto sanguinrio destacado pelo filsofo. Voltaire, que lutou por uma religio tolerante, se escandalizava com tais cenas descritas pelo Antigo Testamento. A histria da conquista de Jeric, como descrita no texto bblico, chocava o filsofo, pois ele repete a sua indignao, como vemos:
Diz-se que, mal Jeric fica indefesa, os judeus imolam ao Deus deles todos os moradores, velhos, mulheres, meninas, crianas de peito e todos os animais, salvo uma mulher prostituda que havia escondido em casa os
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espies judeus, espies inteis por sinal, j que as muralhas deviam cair ao som das trombetas. Por que matar tambm todos os animais que podiam servir? (VOLTAIRE, 2007a, p. 179).
Em Js 6:21, temos a seguinte citao: E tudo quanto havia na cidade destruram totalmente ao fio da espada, desde o homem at mulher, desde o menino at ao velho, e at ao boi e gado mido, e ao jumento. Sem dvida essa referncia que Voltaire menciona na citao acima. Ele no se conforma com o homicdio de pessoas que estavam em sua cidade, sem piedade, de crianas, adultos, velhos, sem distino, at mesmo dos animais. Para que tudo isso? At os animais? Eles, pelo menos, no poderiam ter alguma serventia? Isso escandalizava profundamente o nosso filsofo, que via nos hebreus um povo abominvel. As mortes narradas no livro de Josu, no s no relato de Jeric, aparecem outras vezes nas citaes do filsofo, o que mostra que, provavelmente, este livro se destacou na mente do filsofo como um dos que mais contm atos abominveis (Cf. VOLTAIRE, 2007a, p. 165). Gargett comenta a respeito:
... as crticas mais pesadas de Voltaire ao Velho Testamento esto relacionadas com sua suposta imoralidade, como, por exemplo, a passagem de Josu 10, 12-14, em que Deus estende o dia para que os israelitas tenham mais tempo para matar os amoritas... (GARGETT, 2010, p. 247).
As histrias que envolvem poder esto recheadas de conspiraes e homicdios. A histria de Salomo e de seu irmo Adonias no diferente. Quando o rei Davi estava para morrer, Adonias, filho de Davi, se proclamou rei. Todavia, o trono tinha sido deixado para Salomo, irmo de Adonias. Adonias reconheceu que o trono era de Salomo e este, por 50
precauo e talvez por medo de perder o trono para o irmo, na primeira oportunidade o matou (Cf. I Rs 1-2). Por uma histria com este teor estar num livro tido como inspirado por Deus, tais acontecimentos eram inadmissveis para o filsofo. Ele censura constantemente os atos violentos contidos na Bblia. Afinal, a histria dos Reis contendo apenas acontecimentos nada instrutivos, e mesmo muitos crimes, pretendeu-se que no parecia digno do Ser eterno escrever tais acontecimentos e crimes. (VOLTAIRE, 2007b, p. 11). Acerca da meno que o filsofo faz ao contedo ertico do cntico salomnico, o leitor pode conferir este poema bblico no livro Cnticos dos cnticos ou, em outras verses, Cantares de Salomo. Voltaire se mostra familiarizado com os textos bblicos, inclusive com os salmos, parte importante do Antigo Testamento , e continua a criticar os judeus:
Se pudssemos conjecturar o carter de uma nao pelas preces que ela faz a Deus, perceberamos facilmente que os judeus eram um povo carnal e sanguinrio. Eles parecem, em seus salmos, desejar a morte do pecador, em vez de sua converso; e pedem ao Senhor, no estilo oriental, todos os bens terrestres. (VOLTAIRE, 2007a, p. 193).
A teologia classifica os salmos citados por Voltaire como imprecatrios, aqueles salmos onde os escritores bblicos rogam a Deus que amaldioe, castigue os seus inimigos. Talvez o filsofo tenha em mente salmos como o de nmero 137, como vemos a seguir um trecho: Ah! filha de Babilnia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir o pago que tu nos pagaste a ns. Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras. (Sl 137:8-9). O escritor judeu, no exlio da Babilnia, cativo, escravo, longe de sua terra, expressa o seu sentimento por aquele que destruiu o seu pas, que o afastou de sua ptria, e deseja que os filhos dessa nao sejam atirados nas pedras, ou seja, mortos! Voltaire, quase como um cristo que ora por seus inimigos, repreende os judeus por desejarem vingana contra os pecadores. As oraes dos hebreus contra os seus inimigos revelaria, para o nosso filsofo, seu carter, mostrando que eles eram carnais, sanguinrios.17 E o autor do Cndido ratifica sua rejeio violncia contida nos salmos bblicos:
Considerem, por favor, a quem se atribui a maior parte dessas canes [os salmos bblicos]. a um celerado que comea como violinista do rgulo
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Saul, que se torna seu genro e que se revolta contra ele; que se pe frente de quatrocentos ladres; que saqueia, degola mulheres, meninas, crianas de peito; que passa a vida nos assassinatos, no adultrio, na depravao; e que ainda assassina por meio de seu testamento. Esse Davi, esse o homem segundo o corao de Deus. (VOLTAIRE, 2000, p. 185).
Davi, suposto autor da maioria dos salmos bblicos, no passaria de um bandido, adltero e homicida e o seu carter estaria transparecido nos seus salmos. O leitor pode examinar a vida de Davi lendo os dois livros de Samuel e o primeiro livro de Crnicas, o que confirmar, de certa maneira, o que Voltaire est dizendo. Todavia, talvez seja reducionista ver apenas os atos ruins de Davi sem ver os bons, e tambm ignorar o contexto no qual ele vivia. Seria possvel, por exemplo, ser rei numa nao como Israel, h trs mil anos atrs, sem fazer muitas coisas que Davi fez? No h dvida de que as cenas descritas em alguns livros do Antigo Testamento podem chocar o leitor moderno, mas, embora no justificando o que est l, preciso julgarmos uma pessoa luz do seu contexto, no luz do contexto de quem analisa. Assim, embora as descries de Voltaire sobre alguns salmos, sobre Davi e Salomo sejam confirmadas pelos respectivos textos bblicos, a questo no se torna to simples assim se levamos em considerao todo o ambiente no qual esses homens viveram, a posio que ocuparam, a forma de vida que era tida como normal em suas pocas. 1.4. A intolerncia do cristianismo
At aqui ns apresentamos a crtica de Voltaire Bblia, que tinha como intuito desmoronar o cristianismo, fazendo isso por meio da destruio do seu principal pilar, as Escrituras. Se ele consegue fazer da Bblia um livro cujas histrias no so mais do que plgios das histrias de outras naes, cujas narrativas so recheadas de absurdos e contradies, cujos personagens so violentos e selvagens, cujo mtodo de fazer histria no deve ser levado a srio, ento ele consegue o seu objetivo principal, que derrotar a f crist. Neste momento, a nossa inteno selecionar textos do filsofo que demonstram que o cristianismo como um todo, seja em sua histria, seja no momento em que Voltaire viveu, uma religio intolerante, que tem na sua essncia perseguir a quem pensa diferente 52
de si. Com isso, veremos como o filsofo critica o cristianismo no apenas como um intelectual, mas como um militante, como algum que tem como objetivo instaurar a tolerncia, que v na Igreja uma ameaa a uma sociedade pacfica, tolerante, livre, que deseja substituir os dogmas cristos por uma moral laica, baseada na razo. Comecemos demonstrando que o autor do Cndido via que o cristianismo era intolerante desde o princpio de sua histria:
Vejam a guerra de lngua, pena, espadas e punhais entre os arianos e os atanasianos. Tratava-se de saber se Jesus era semelhante ao Criador, ou se era identificado com o Criador. Ambas as proposies eram igualmente absurdas e mpias; com certeza no se as encontrar enunciadas em nenhum dos Evangelhos. (VOLTAIRE, 2000, p. 160).
O filsofo se refere aos debates cristolgicos dos primeiros sculos da igreja crist, onde os debates sobre a natureza de Cristo geraram diversos conclios, brigas e at exlios. O debate bblico para se chegar ao verdadeiro conhecimento sobre Jesus, sobre sua divindade e humanidade, teria gerado a guerra de lngua, pena, espadas e punhais que o filsofo cita. Mesmo tendo feito crticas aos evangelhos, como vimos nas sees anteriores, nesta citao o filsofo quer demonstrar que as questes debatidas pelos cristos sequer se encontram nos evangelhos, o que no deixa de ser uma crtica Igreja, que teria se apartado do evangelho ao qual se prope a pregar. A perseguio e as brigas motivadas por discusses dogmticas eram motivo de grande indignao para o nosso filsofo, como ele expressa em sua obra O preo da justia:
De que servem virtude distines teolgicas, dogmas baseados nessas distines, perseguies baseadas nesses dogmas? A natureza, aterrada e revoltada contra todas essas invenes brbaras, brada a todos os homens: sede justos, e no sejais sofistas perseguidores. (VOLTAIRE, 2001, p. 3).
O patriarca de Ferney questiona aos partidrios dos grupos teolgicos sobre a utilidade dos dogmas. Para que servem, seno para gerar perseguio? As divises dogmticas seriam invenes brbaras, contrrias natureza, opostas religio natural18, a qual se basearia na justia para com o prximo. O dogma, portanto, seria contrrio natureza, o que indica que ele no seria oriundo de Deus, mas dos homens.
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O filsofo refora que o cristianismo foi intolerante desde o seu incio, agora em sua obra Deus e os homens:
A discrdia foi o bero da religio crist e ser provavelmente seu tmulo. Desde que os cristos existem, eles insultam os judeus, seus pais; insultam os romanos, sob cujo imprio vivem; insultam a si mesmos reciprocamente. Mal predicaram Cristo, acusam-se uns aos outros de anticristos. (VOLTAIRE, 2000, p. 160).
Desde o princpio a discrdia estaria no seio do cristianismo, fazendo, portanto, parte ntima de sua histria. O filsofo profetiza, por outro lado, que a discrdia que esteve com o cristianismo desde o princpio ser o seu tmulo, ou seja, far a religio crist destruir a si mesma, ou, talvez, ser vencida por um modelo de sociedade onde a intolerncia no tem lugar. O cristianismo estaria em guerra, segundo o filsofo, contra tudo e contra todos desde a sua fundao. Entrou em conflito com os judeus, com os romanos e contra si mesmo. Reforando, para Voltaire, a seita crist foi a nica que, no final do segundo sculo de nossa era, ousou dizer que queria a excluso de todos os ritos do imprio e que ela devia no s dominar, mas esmagar todas as religies. (VOLTAIRE, 2006, p. 108). Um movimento assim, movido pela intolerncia, um dia cairia no prprio buraco que um dia abriu. A intolerncia crist no estaria apenas em seus conclios histricos do passado que discutiam temas teolgicos, mas estaria tambm na histria da Europa, chegando aos tempos do prprio Voltaire. O filsofo d livre curso sua crtica no Tratado sobre a tolerncia:
O furor que inspiram o esprito dogmtico e o abuso da religio crist mal compreendida derramou sangue, produziu desastres tanto na Alemanha, na Inglaterra e mesmo na Holanda, como na Frana. (VOLTAIRE, 1993, p. 25).
Vimos que nas citaes anteriores o filsofo fala da intolerncia como algo presente na histria do cristianismo desde o princpio, o que pode ser uma crtica ao cristianismo em si como uma religio intolerante em sua essncia, desde o seu nascimento. Aqui, todavia, o autor do Cndido atribui a intolerncia m compreenso da religio crist, ou seja, temos a impresso de que nesta passagem o filsofo pondera, dando a entender que a perseguio 54
no algo que faz parte do cristianismo, mas sim daqueles que o compreendem mal. Talvez pelo prprio intuito da obra, que a defesa da tolerncia, haja aqui um esprito mais moderado, um dilogo, no uma crtica cida e contundente. A seguinte referncia, extrada da mesma obra, demonstra isso:
Digo-o com horror, mas com verdade: ns, cristos, que fomos perseguidores, carrascos, assassinos! E de quem? De nossos irmos. Ns que destrumos cidades, com o crucifixo ou a Bblia na mo, e no cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras... (VOLTAIRE, 1993, pp. 62-63).
Embora a linguagem seja forte, o filsofo fala dos cristos na primeira pessoa, usando o pronome ns, embora saibamos que isso no seja verdade. Todavia, Voltaire parece querer apelar aos cristos para no serem intolerantes, usando o esprito de irmandade, falando com os seguidores da religio crist como um grupo ao qual ele, pelo menos retoricamente, pertenceria, desejando que tais pessoas reflitam sobre sua atitude terrvel de perseguir ao prximo. Assim, a crtica do filsofo ao cristianismo forte, embora o seu tom varie conforme a obra. Dum modo geral, todavia, sua guerra contra o cristianismo declarada, e seus textos so bastante contundentes contra a Igreja. Vejamos o que falam alguns comentadores a respeito, comeando por Marcos Antnio Lopes:
Voltaire extrai da documentao o que lhe vem ao caso, principalmente quando o assunto religio. Em seu combate impenitente contra o catolicismo, que sintetiza sua luta contra a intolerncia religiosa, ele vai empregar as mesmas armas de seus opositores. Para combater a intolerncia usa a intolerncia. (LOPES, 2000, p. 47).
Lopes faz duas crticas a Voltaire, que so: o filsofo seria tendencioso ao selecionar os textos que lhe convm sua crtica e, querendo combater a intolerncia, seria tambm intolerante. Pensando na primeira crtica, talvez Lopes esteja se referindo documentao que trata da histria do cristianismo, onde Voltaire, talvez, teria selecionado apenas os textos histricos que lhe interessavam para combater o Catolicismo Romano. Nesse caso, entendemos que, de certa forma, Lopes est declarando haver desonestidade intelectual na anlise crtica de Voltaire ao cristianismo, j que, ao analisar uma situao, um movimento ou o que quer que seja, necessrio ver o todo, no s certas partes. 55
Provavelmente a referncia a seguir confirme que a crtica de Lopes a Voltaire, sobre extrair da documentao o que lhe vem ao caso, seja uma censura sua suposta tendenciosidade:
Em matria de religio, o Voltaire historiador s v a rvore. Deixa-se cegar pelo argueiro do anticlericalismo. No consegue divisar a floresta do sentimento religioso, vigorosa desde tempos remotssimos na histria da Europa crist. Curiosamente, ele defende uma religio de Estado. E mais paradoxalmente, ele se arvora em escudeiro de todas as crenas religiosas, mas para marcar posio contra a Igreja Catlica. (LOPES, 2000, p. 31).
A metfora de enxergar s a rvore, no a floresta, confirma o que Lopes disse na outra citao, que Voltaire s v o que lhe interessa, para chegar ao seu objetivo. Assim, o Voltaire historiador no estaria, de fato, fazendo histria, analisando o todo, vendo os fatos em geral, mas apenas tomando da histria o que lhe seria til. Lopes ainda afirma o seguinte: a verdade histrica em Voltaire, muitas vezes, apenas a sua verdade particular, que ele tenciona impor atravs de uma argumentao rigorosa, mas que no suficiente para mascarar suas prevenes. (LOPES, 2000, p. 46). No que se refere intolerncia de Voltaire contra o cristianismo, mencionada na primeira citao, talvez Lopes se refira ao tom com o qual o filsofo trata o cristianismo. De certa forma, as duas crticas de Lopes a Voltaire esto interligadas, j que, se algum analisa um movimento com esprito tendencioso, torcendo a histria, isso j indcio de intolerncia, pois quando h desonestidade intelectual no h boa vontade para o dilogo, para ouvir o outro, seno para destruir o oponente. John Gray expressa opinio semelhante de Lopes:
s vezes, o dio de Voltaire ao Cristianismo arrasta-o para a intolerncia. Seu anti-semitismo origina-se, em parte, desse dio. Como seu grande admirador, Nietzsche, ele no podia perdoar o povo que dera nascena ao Cristianismo. Ao mesmo tempo, seus repulsivos preconceitos antisemticos eram os de toda a Cristandade europeia. (GRAY, 1999, p. 10).
Gray interpreta toda a investida do autor do Cndido contra o cristianismo como uma ao que, s vezes, movida pela intolerncia. Mesmo a repulsa de Voltaire aos judeus teria origem, em parte, no seu dio ao cristianismo. Assim, Gray e Lopes concordam 56
que o filsofo combate intolerncia com intolerncia, dio com dio, o que pode mostrar que o filsofo no seria to diferente assim da religio que combatia. Pierre Lepape explica um pouco da militncia de Voltaire contra o cristianismo, em especial contra o cristianismo catlico:
Foi em 18 de maio de 1759, numa carta a Frederico II, que Voltaire pela primeira vez usou o termo a infame para qualificar a superstio. A palavra agradou-lhe tanto que ele iria tom-la como slogan de sua atividade propagandstica. Esmaguem a infame [crasez l infame], ou abreviadamente esm. a inf. [cr. l inf.], logo iria se transformar em Leitmotiv da maioria de suas cartas aos amigos. Mas infame j no designava somente a superstio; com ela Voltaire procurava atingir a religio como um todo. E j que era conveniente escolher um alvo bem definido, ele preferiu a religio catlica entre as demais, e os jesutas entre todos os outros eclesisticos. (LEPAPE, 1995, pp. 220-221).
Como vimos nas sees anteriores, o combate de Voltaire Bblia foi uma das maneiras que ele encontrou em desqualificar o cristianismo. Sua militncia, todavia, no se limita a isso, mas passou a ser uma das causas mais importantes de sua vida. O cristianismo, assim, no precisaria ser reformado ou corrigido, mas esmagado. A inteno do filsofo vencer a superstio, a ignorncia, o dogmatismo teolgico, e o seu alvo, segundo Lepape, o Catolicismo Romano. Voltaire escolhe o segmento predominante dentro do cristianismo, selecionando um alvo grande para os seus ataques. A escolha de um inimigo necessria para se vencer uma guerra. E a expresso esmaguem a infame se torna a marca de Voltaire em sua militncia contra a intolerncia, um slogan que vai marclo em sua vida e tambm como importante figura da histria da filosofia. Vladimir Mota comenta a respeito da militncia do filsofo contra o fanatismo:
Com esse fim de libertar a humanidade do que impede seu bem-estar, preciso esmagar todo fanatismo praticado pelas igrejas constitudas, que gera intolerncia ante a opinio divergente, levando os homens a se perseguirem, provocando guerras sangrentas; a infame tambm a ignorncia que conduz a humanidade a prticas cruis e mantm preconceitos do passado. (MOTA, 2010, p. 46).
Embora Voltaire talvez tenha sido intolerante em sua busca pela tolerncia, no podemos negar que a sua inteno o bem-estar geral, que seu desejo ver uma sociedade livre, racional, tolerante, e o cristianismo era visto por ele como um empecilho para tal 57
modelo de sociedade. Embora os textos de Voltaire no mostrem exatamente que ele era tolerante com a opinio diferente da sua, o filsofo via com horror a ideia de perseguir, prender e matar quem quer que fosse por causa de dogmas, de teologia, de opinies. Mesmo zombando de muita gente e, muitas vezes, sendo agressivo, o filsofo pensa que necessrio que cada um tolere ao outro e que a perseguio que no deve ser tolerada. Por isso ele um defensor da diversidade religiosa, da liberdade de crena, o que ele expressa com clareza: Com o tempo, no ser de interesse do bem pblico que duas pessoas de religies opostas se renam? Acaso haver maneira mais suave e segura de estabelecer finalmente a tolerncia que a Europa deseja? (VOLTAIRE, 2001, p. 68). Desta forma, a guerra contra o catolicismo talvez tivesse sido necessria na mente do filsofo, pois com ele no poder essa diversidade religiosa no seria possvel, e, assim, a Europa seria dominada por uma instituio que impediria o nascimento de uma sociedade livre. Lepape corrobora o objetivo pacifista de Voltaire e de outros aristocratas no sculo XVIII em sua guerra contra o Catolicismo:
As querelas religiosas, que eram cada vez mais raivosas e transbordavam para as ruas, tambm serviram para persuadi-lo, como alis ocorreu com muitos aristocratas e burgueses, de que a Igreja no estava mais em condies de desempenhar o papel pacificador e unificador que historicamente era o dela, e de que, por conseguinte, crescia a ameaa de novas guerras religiosas. (LEPAPE, 1995, p. 183).
A instituio que deveria proclamar a paz fazia exatamente o contrrio, sendo promotora de conflitos religiosos, que atrapalhavam o desenvolvimento dos pases europeus. O dio teolgico, que gerava brigas, no deveria ter mais lugar na sociedade francesa. Lendo o comentrio de Lepape, entendemos melhor o motivo da guerra de Voltaire contra a Igreja, pois ela seria um obstculo para a evoluo da sociedade, para uma sociedade onde reinasse a paz, a tolerncia, a justia. Maria das Graas de Souza confirma, ao afirmar que ... Voltaire, de seu lado, parece acreditar que a felicidade e o bem-estar da sociedade seriam assegurados pela simples instituio da tolerncia e da liberdade de expresso. (SOUZA, 1983, p. 55). Ou seja, o filsofo no combate a religio crist meramente por discordar de suas ideias teolgicas, mas tambm porque est pensando no bem-estar coletivo, porque a felicidade geral teria que passar pela liberdade de expresso, o que o Catolicismo impediria. 58
1.4.1. A experincia de Voltaire na Inglaterra A experincia de Voltaire na Inglaterra, quando teve que se retirar, foradamente, da Frana, vista como um momento de grande relevncia em sua vida, e a defesa militante da tolerncia passa por sua experincia entre os ingleses. Sua obra Cartas inglesas reflete aspectos de sua experincia na Inglaterra, e, por isso, aproveitamos para citar um trecho da mesma:
Entrai na Bolsa de Londres, praa mais respeitvel do que muitas cortes. A vereis reunidos, para a utilidade dos homens, deputados de todas as naes. O judeu, o maometano e o cristo negociam reciprocamente como se pertencessem todos mesma religio. S infiel quem vai bancarrota. O presbiteriano confia no anabatista, e o anglicano, na promessa do quacre. Ao sair dessas assemblias livres e pacficas, uns vo sinagoga, outros vo beber. Um vai ser batizado numa grande cuba de gua, em nome do Pai, do Filho e do Esprito Santo. Outro leva o filho para que lhe cortem o prepcio e despejem sobre sua cabea resmungos hebraicos incompreensveis. Outros vo sua igreja e, enchapelados, esperam a inspirao de Deus. E todos esto contentes. (VOLTAIRE, 1978a, p. 11).
O leitor percebe, pela passagem citada, que o autor do Cndido pinta a Inglaterra como um pas exemplar, que abriga, pacificamente, pessoas de todas as religies. Representantes de religies que, historicamente, tiveram muitos problemas com conflitos, como o islamismo, judasmo e cristianismo, viveriam pacificamente na Inglaterra, negociando, trabalhando, sem perseguirem um ao outro. Cada um seguiria a sua religio sem ter problemas com as autoridades, que permitiriam cada um seguir a sua f, cumprir os seus rituais. Pela descrio que o filsofo faz desse pas, sua luta pela tolerncia teve relao com sua experincia, pois a vida dos ingleses seria um modelo de liberdade a ser exportado para a Frana, onde Voltaire no enxergava a mesma liberdade. A liberdade religiosa seria to grande na Inglaterra que, um ingls, como homem livre, vai para o cu pelo caminho que lhe agradar. (VOLTAIRE, 1978a, p. 9). Turnovsky corrobora a admirao de Voltaire pela liberdade inglesa:
Voltaire passou dois anos e meio na Inglaterra, estudando a filosofia e a cincia inglesas, visitando poetas como Alexander Pope, Jonathan Swift e
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Edward Young, e admirando a liberdade sobre a qual uma cultura comercial e de tolerncia religiosa era erguida. (TURNOVSKY, 2010, p. 43).
Se por um lado Voltaire deseja que o homem tenha uma religio natural, baseada na razo19, por outro lado ele v a necessidade de que as religies existentes, mesmo que no sejam baseadas no modelo que ele deseja, convivam pacificamente. J que elas existem, que, pelo menos, se tolerem. A tolerncia no deve partir apenas das autoridades, mas dos cidados, pois de nada adianta o Estado permitir a liberdade religiosa se as pessoas no agirem de igual modo. A pluralidade religiosa seria mesmo um meio contra o despotismo, pois a religio no seria, assim, um instrumento de domnio de um ou outro grupo ou mesmo do prprio Estado (Cf. MIRANDA, 2007, p. 298). Alguns comentadores, todavia, duvidam que a liberdade na Inglaterra fosse to grande como o patriarca de Ferney escreve. Vejamos a opinio de Beeson e Cronk:
A Inglaterra pratica a liberdade de credo, criando assim uma sociedade baseada na tolerncia religiosa. ( claro que se trata de uma descrio idealizada, e Voltaire deu-se conta de que a realidade estava aqum do ideal, admitindo na carta cinco que apenas dentro da Igreja anglicana se pode fazer carreira no servio pblico.) Para Voltaire, tolerncia e prosperidade esto interligadas, o que ele demonstra por meio da descrio na carta seis, de homens de diversas crenas, conduzindo seus negcios juntos no Royal Exchange: comrcio une onde a religio divide. (BEESON; CRONK, 2010, p. 80).
Ou seja, ainda que a liberdade existisse na Inglaterra, havia um colorido do prprio Voltaire na pintura desse quadro. O filsofo teria dado uma exagerada, tendo ele mesmo
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admitido que os anglicanos eram mais favorecidos em seu sucesso profissional, o que demonstra que a tolerncia no era to grande assim. Leigh concorda:
impossvel que Voltaire no tivesse se dado conta de que a liberdade religiosa na Inglaterra era, de fato, fortemente cerceada. Porm, com a inteno de denunciar a intolerncia francesa, ele falseou a situao. Voltaire estava pronto para exagerar as liberdades religiosas na Inglaterra a fim de fazer os franceses sentirem ainda mais o peso das suas cadeias. (LEIGH, 2010, p. 116).
Se Beeson e Cronk usam um termo mais leve para a suposta viso torcida que o filsofo apresentou da Inglaterra, idealizada, Leigh mais direto, afirmando que o filsofo falseou a situao. A falseada que o filsofo teria empregado em suas Cartas inglesas para descrever a tolerncia na Inglaterra teria como objetivo combater a intolerncia na Frana, talvez com o intuito de mostrar o quanto os franceses ainda estavam atrasados em suas brigas religiosas, em sua forma de ver a heresia como crime, em privilegiar uma doutrina religiosa em detrimento da outra. Se assim for, podemos pensar que Voltaire nem sempre est interessado em descrever a verdade sobre um assunto qualquer, como, neste caso, a real situao da Inglaterra, mas em vencer os seus adversrios, em fazer o seu objetivo prevalecer, em implantar o que acha melhor, ainda que isso seja feito custa da honestidade intelectual. De qualquer forma, a experincia na Inglaterra teve relevncia para o filsofo e, de alguma maneira, teve parte em sua militncia em favor da tolerncia, da defesa dos direitos de cada um defender as suas ideias sem sofrer perseguio.
No podemos deixar de falar do caso do protestante Jean Calas ao falar de Voltaire, ainda mais quando tratamos da luta do filsofo contra a intolerncia. O caso o fato mais conhecido da militncia do patriarca de Ferney em favor da tolerncia religiosa, contra a crueldade cometida em nome da religio. O filho de Jean Calas, protestante de Toulouse, teria se suicidado. Como os suicidas, segundo a lei, eram arrastados numa carreta com o rosto para baixo e pendurados numa forca, o pai teria pedido a parentes e amigos para testemunhar que foi uma morte natural. Todavia, Jean Calas foi acusado de matar o filho 61
para impedi-lo de se converter ao catolicismo. Foi torturado e morto. Essa , dum modo geral, a histria do protestante Jean Calas. No nosso intuito aqui entrar em detalhes ou mesmo abordar aspectos jurdicos da questo. Queremos, por outro lado, tomar o caso como um exemplo de intolerncia, que levou o nosso filsofo a se levantar e agir, no apenas por meio dos livros, mas trabalhando para que o processo de Calas, mesmo depois de morto, fosse revertido, o que seria uma vitria da filosofia, da tolerncia, e um indcio de que casos semelhantes poderiam no mais acontecer. Vejamos o que Pierre Lepape comenta sobre a atitude de Voltaire em se levantar em favor da memria de Jean Calas e de sua famlia:
Cumpre medir a amplitude e a audcia de tal golpe. Um homem s, um escritor perdido no fundo de uma provncia fronteiria, decidia reabrir um processo. Para faz-lo, no tinha a menor competncia, nem institucional nem profissionalmente falando: no era parlamentar, nem juiz, nem advogado. Era total a sua incompetncia para polemizar com os juzes de Toulouse. Mas o simples fato de ter entrado naquela batalha, de ter pensado em trav-la, mostra Voltaire na posse de um poder que no lhe fora dado por nenhum soberano, nenhuma instituio, nenhuma pessoa fsica, mas fruto de sua glria artstica, atestada pelo apego do pblico quilo que escrevia. (LEPAPE, 1995, p. 227).
A ousadia do filsofo pode ser compreendida pelo fato dele querer mudar uma sentena judicial, em especial uma sentena que envolvia questes religiosas numa poca em que era perigoso at mesmo expressar uma f diferente da estabelecida. Lepape destaca que Voltaire no tinha nenhuma autoridade poltica ou institucional para fazer o que fez, o que, para o comentador, um indcio de um outro tipo de autoridade que ele possua, a autoridade conquistada junto ao pblico por suas ideias, por seus escritos, por sua filosofia. Que o leitor pare para pensar e veja que a atitude do filsofo demonstra um nvel elevado de ousadia, ainda mais levando-se em conta que isso foi feito quando ele j tinha mais de 60 anos (Cf. FORTES, 1981, p. 41). Muitas vezes uma pessoa tem sua fase de militncia em sua juventude, no auge de sua fora fsica e com sentimentos de otimismo que s vezes o tempo apaga, mas com o nosso filsofo d-se exatamente o contrrio, pois j numa fase de bastante maturidade que sua militncia vai se manifestar. Renwick comenta a respeito da mudana de atitude do filsofo em sua batalha pela defesa da liberdade e da tolerncia:
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Qualquer anlise dos anos entre 1716 e 1760 mostraria, porm, que os pensamentos de Voltaire sobre a tolerncia constituam aquilo que j foi chamado de meditaes. Em finais da dcada de 1750, sua obra publicada refletia amplamente esse seu comprometimento com o ideal, mas era no importa quo intensamente ele percebia o fato um comprometimento que no saa da sua torre de marfim (...) No , contudo, a forma especfica de atividade a que tanto seus contemporneos como a posteridade atribuem ao paladino home aux Calas. Essa transformao ocorreu quando seu engajamento tornou-se prtico, parte inseparvel de um sentido do dever ativo para consigo mesmo e para com os outros, parte inseparvel de um desejo de preocupar-se com o bemestar dos homens que padecem. (RENWICK, 2010, p. 230).
Talvez a mudana de postura do filsofo tenha contribudo bastante para a forma como ele viria a ser visto no final de sua vida e pela posteridade. O legado deixado pelo autor do Cndido torna-se consideravelmente diferente com a militncia, com a luta, e o impacto da vida de Voltaire na histria seria diferente se sua defesa da tolerncia no tivesse sado dos livros, contos e cartas. difcil sabermos o que levou o filsofo a mudar sua postura to radicalmente em uma fase da sua vida em que poderia pensar em viver tranquilamente, recebendo amigos, escrevendo cartas, apresentando suas peas de teatro. Seja como for, a atitude do filsofo admirvel, corajosa, inspiradora e deve servir de exemplo para sairmos da nossa posio confortvel e lutarmos por aquilo que acreditamos, por aquilo que pode fazer a diferena na vida de muitas pessoas. Lepape trata da importncia do caso Calas na forma como Voltaire passou a ser visto:
compreensvel que a grande voga da iconografia voltairiana tenha comeado com o caso Calas. Os aspectos dramticos e emocionantes das desventuras de Calas e sua famlia, a nobreza da atitude de Voltaire, o feliz desfecho da batalha, a emoo que o caso suscitou na opinio pblica, tudo isso devia inspirar os artistas e garantir o sucesso das gravuras e dos folhetos coloridos que naquela ocasio arrebataram o pblico. (LEPAPE, 1995, p. 264).
No difcil entender a razo da comoo pblica que o filsofo conseguiu provocar por meio da sua luta em favor da famlia de Calas. A morte injusta de Calas, a dor de sua famlia, o desamparo da esposa e dos filhos, a revolta de quem comeou a perceber a inconsistncia das provas juntam-se ao ato corajoso do patriarca de Ferney, contribuindo 63
para torn-lo um heri nacional, o cone da nao, o smbolo da defesa da tolerncia e da liberdade. Vejamos agora um trecho da carta de Voltaire ao senhor Damilaville, de 01 de maro de 1765, que demonstra o seu sentimento no caso Calas:
Devorei, meu caro amigo, as novas memrias de Beaumont sobre a inocncia dos Calas; admirei-as, verti lgrimas, mas nada de novo aprendi; h muito que dela estava convencido, e tive mesmo a felicidade de apresentar as primeiras provas. (VOLTAIRE, 1970, p. 369).
Como dissemos, no nosso intuito entrar nos detalhes do caso e discuti-lo juridicamente, mas perceba o leitor que o filsofo, alm de ter entrado numa batalha extremamente difcil, que reverter uma deciso judicial, teve que dedicar muito do seu tempo para apresentar provas que visavam apresentar o equvoco da condenao de Calas. Parece, pelo trecho citado da carta, que houve outras provas levantadas por outras pessoas, mas Voltaire declara ter sido o pioneiro na apresentao das evidncias da inocncia do injustiado Calas. A emoo do filsofo transparece em sua correspondncia, mesmo estando lendo algo que declara j ter conhecimento. O envolvimento do patriarca de Ferney com o caso, com a famlia de Calas, mostra seu lado mais humano, que se compadece com o sofrimento e com a injustia cometida contra pessoas indefesas. A favor deles se levantou o corajoso filsofo, como um guerreiro vitorioso que defende a causa dos fracos e oprimidos. Maria das Graas de Souza comenta a respeito do sentimento de Voltaire no caso:
O que h de notvel em toda essa histria a maneira pela qual Voltaire soube mobilizar a opinio pblica em nome da justia, ao mesmo tempo que alertava para o grande perigo do fanatismo. O caso Calas um dos momentos mais brilhantes na luta de Voltaire contra a infmia. Conta-se que, ao receber em Ferney a notcia da reabilitao, Voltaire abraou o mensageiro, e, emocionado, disse aos presentes: a filosofia sozinha que obteve esta vitria! (SOUZA, 1993, p. 17).
O filsofo zombeteiro, temperamental, briguento, vaidoso, mostra agora sua faceta mais humana, seu lado altrusta, sua bondade, seu forte sentimento de justia, de doao, de generosidade. O filsofo empresta seu prestgio, sua fama, para conquistar a opinio pblica, para mover muitas pessoas a no aceitarem mais que se condene uma pessoa 64
injustamente. Voltaire se torna um apstolo, um missionrio da tolerncia, um cone da justia, da defesa de que todos sejam julgados justamente. A infame, aqui, teria uma forte derrota pblica, sua fora destruidora no prevaleceria novamente contra a justia. A batalha e a vitria no seriam de Voltaire, mas da filosofia, como ele mesmo expressa na mesma carta ao senhor Damilaville:
Sei com que furor o fanatismo se ergue contra a filosofia. Esta tem duas filhas que aquele desejaria aniquilar, como Calas: a Verdade e a Tolerncia , enquanto a filosofia no deseja seno desarmar as filhas do fanatismo: a Mentira e a Perseguio . (VOLTAIRE, 1970, p. 370).
No se tratava apenas de exposio de ideias diferentes de Voltaire contra a religio, mas de uma verdadeira batalha, onde o vencedor definiria quem iria reinar: a tolerncia ou a perseguio. A filosofia sofreria com o furor do fanatismo religioso, que desejaria aniquil-la, mas aquela por fim seria a vencedora, tirando as armas das mos do sentimento fantico, instaurando a paz, a tolerncia, o fim da perseguio a quem no segue a religio dominante. Assim, o caso de Calas tem um forte sentido filosfico e poltico, o que Lepape corrobora:
Voltaire no teve dificuldade, portanto, em ligar sua campanha pela transparncia da justia que agora empreendia pela liberdade religiosa e o laicismo do Estado: o tema da tolerncia, usado como bandeira no caso Calas, dava unidade filosfica quele movimento de contestao poltica e religiosa. O injusto suplcio de Calas expunha os estragos causados pelo fanatismo. (LEPAPE, 1995, p. 230).
A morte injusta de Calas era uma demonstrao prtica de que o fanatismo tinha que se retirar de cena imediatamente, de que a intolerncia religiosa no poderia ter mais lugar na Frana e na Europa. Se nada fosse feito, outros Calas poderiam ser mortos da maneira terrvel como Calas foi. O caso se tornaria um smbolo da defesa da liberdade religiosa, da necessidade de mudana, do fracasso da religio crist como poder a governar os homens. O Estado deveria ser laico, a Igreja deveria perder sua hegemonia, a intolerncia no poderia mais continuar a causar estragos tais como no caso de Calas. Beeson e Cronk concordam com a importncia do caso Calas no combate intolerncia:
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Uma obra importante da campanha de Voltaire foi seu Trait sur la tolrance, de 1763. Nele, declara que a tolerncia est na raiz de todas as relaes de ordem natural entre as pessoas e que, em ltima anlise, se assenta sobre o preceito de que no devemos fazer aos outros aquilo que no queremos que os outros faam conosco (...) A concluso que a intolerncia com relao ao pensamento heterodoxo que a Frana demonstra e demonstrou, especialmente no caso Calas uma aberrao que deve ser combatida. (BEESON; CRONK, 2010, p. 89).
A intolerncia seria, assim, antinatural, pois nenhum homem gostaria de receb-la como paga de sua f. Por isso, se ruim para mim, ruim para o outro. Portanto, a tolerncia seria natural e o fanatismo, consequentemente, a perverso da natureza. As autoridades da Frana no deveriam mais permitir que a intolerncia ao pensamento heterodoxo chegasse ao ponto que chegou. Certamente a militncia de Voltaire no caso deixou mais claro o nvel baixo, absurdo e inadmissvel a que se tinha chegado. A forma como o filsofo se engajou no caso fez com que ele no passasse despercebido, seja por seus contemporneos ou pela posteridade, e um dos mais, talvez o mais importante momento da vida do patriarca de Ferney na sua luta contra o fanatismo, contra a intolerncia, contra a perseguio religiosa. Sua vitria o elevou a status de heri, de cone, e marcou Voltaire como um dos grandes defensores da tolerncia na histria.
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CAPTULO 2
2. O DEUS DE VOLTAIRE
Tendo trabalhado, at aqui, com a crtica de Voltaire a muitas concepes teolgicas existentes em sua poca, em especial cridas e pregadas pelo cristianismo, e tambm tendo visto que o autor do Cndido buscou demolir os pilares da religio do seu tempo, buscaremos compreender, a partir de ento, se ele coloca algo no lugar daquilo que buscou eliminar. Isto , Voltaire apenas um demolidor ou tambm um construtor? Ele prope colocar algo no lugar daquilo que entende que deve ser tirado? Nas sees a seguir, o nosso intuito demonstrar que Voltaire tem uma concepo de Deus, de um Ser supremo, mas diferente, em certos aspectos, da viso judaico-crist, que ele tanto criticou. Assim, mostraremos como o patriarca de Ferney se esfora para provar a existncia de Deus sem o auxlio dos livros sagrados ou da ideia de revelao, usando apenas as faculdades da razo, tentando implantar a ideia de um Deus filosfico. Sabendo que o nosso filsofo era um leitor assduo das obras de diversos filsofos, relevante tentarmos situar, antes disso, seus argumentos dentro da histria da filosofia, isto , contextualizarmos os argumentos de Voltaire sobre a existncia de Deus dentro da tradio filosfica, tomando textos de alguns filsofos como exemplo. Nos ateremos, ao citarmos esses textos, aos argumentos que utilizam a natureza como evidncia para provar a existncia de Deus, que um dos principais argumentos usados por Voltaire. Trata-se de uma exposio geral e introdutria, que tem como objetivo conduzir o leitor a entender como alguns argumentos se repetem na histria e como o autor do Cndido utiliza provas da existncia de Deus outrora usadas por pensadores de outras pocas. Para isso, usaremos o trabalho de Plnio Junqueira Smith, Dez provas da existncia de Deus, obra que rene argumentos de diversos filsofos, que viveram em diferentes momentos da histria, que visam provar a existncia de um Ser supremo. Comecemos com Ccero (106 a.C.-43 a.C), em sua obra De natura deorum, onde o senador filsofo trata dos argumentos dos estoicos sobre a existncia dos deuses: 67
... no parece sequer exigir argumentao [a existncia de deuses], pois quando olhamos para o cu e contemplamos os corpos celestes, o que pode ser mais bvio e manifesto do que deve existir algum poder que possui inteligncia pela qual essas coisas so governadas? (CCERO, 2006, p. 63).
A contemplao da natureza parece ser um argumento bastante utilizado para demonstrar que tudo o que existe no foi causado por si mesmo, mas por um ser externo natureza, ou, no caso da citao acima, de seres externos a ela, isto , seres independentes da natureza, que a causaram. Segundo o texto de Ccero, os estoicos veriam como bvia a existncia dos deuses, pois os corpos celestes demonstrariam inteligncia, um poder que as governa. Vemos argumento semelhante sendo usado at mesmo nos textos bblicos, onde a natureza usada para demonstrar a existncia, glria e poder de Deus.20 Ccero confirma a essncia do argumento citado, falando dos mesmos estoicos:
Quando vai a uma casa, foro ou ginsio, e observa em todos arranjo, regularidade e sistema, um homem no pode supor que essas coisas se produziram sem uma causa. Ele percebe que existe algum que preside e controla. Com muito mais razo, portanto, com relao aos vastos movimentos e fases dos corpos celestes, e a esses processos ordenados de uma multido de enormes massas de matria, que atravs de pocas incontveis do passado infinito nunca foram minimamente falsos, ele est obrigado a inferir que esses movimentos de mundo poderosos so regulados por alguma mente. (CCERO, 2006, pp. 69-70).
Usando uma analogia, se h regularidade, ordem, naquilo que o homem faz, como no ver a mesma ordem e regularidade na natureza? E, se aquilo que tem ordem demonstra que algum est por trs da mesma obra, tendo efetuado tudo com um propsito e com inteligncia, como na natureza seria diferente? Os corpos celestes, movendo-se ordenadamente, com regularidade, no s hoje, mas no passado tambm, demonstram que h um mente, uma inteligncia por trs de tudo. Como veremos mais detalhadamente a seguir, uma das maneiras mais evidentes para Voltaire de se demonstrar a existncia de Deus olhar para a sua obra, ou seja, para a natureza (Cf. VOLTAIRE, 1978c, p. 247). Afinal, como Ccero refora, ainda falando dos argumentos estoicos, esses processos e
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essa harmonia musical de todas as partes do mundo seguramente no poderiam continuar se no fossem sustentados por um nico esprito divino que tudo permeia. (CCERO, 2006, p. 72). Assim, a existncia de Deus parece ser demonstrada, para muitos, por meio da experincia humana, de onde se conclui que uma obra que demonstra alguma inteligncia e propsito, qualquer que seja, aponta para a existncia de um obreiro. Se assim com os objetos construdos pelo homem, assim com a natureza tambm. Vejamos tambm um dos argumentos de Toms de Aquino (1224-1274), em sua Suma contra os gentios:
Vemos que as coisas que no tm conhecimento, como os corpos naturais, agem em direo a um fim, e isso evidente por agirem sempre, ou quase sempre, da mesma maneira, de forma a obter o melhor resultado. Assim, bvio que essas alcanam seu fim, no por acaso, mas por desgnio (...) Portanto, algum ser inteligente existe, por quem todas as coisas naturais so ordenadas para seu fim. E esse ser chamado de Deus. (AQUINO, 2006, pp. 192-193).
Como o leitor percebe, o filsofo tambm utiliza a natureza como um sinal da existncia de Deus. A lgica que, como um corpo natural qualquer age e age com um fim, isto , com um propsito, e com um bom propsito para se atingir o melhor resultado, isso demonstra que h um Ser inteligente por trs desse propsito, desse desgnio, pois os tais corpos naturais no teriam esse conhecimento, essa inteligncia em si mesmos. Talvez Toms esteja pensando em um astro, talvez, no sol, na lua, nas estrelas e nos planetas, os quais, sem possuir sabedoria, agem ordenadamente, se movem, fazem parte de uma ordem estabelecida no por si mesmos, mas por Deus. Sempre buscando entender esses argumentos luz do que Voltaire escreve sobre a existncia de Deus, o que veremos mais frente, sabemos que o autor do Cndido tambm utiliza os desgnios vistos na natureza como evidncia de que h um Ser supremo por trs de todas as coisas (Cf. VOLTAIRE, 1996, p. 26). Toms de Aquino continua a argumentar:
No h casos conhecidos, nem, de fato, possvel, nos quais se descobre que uma coisa seja a causa eficiente de si mesma, porque, nesse caso, essa seria anterior a si mesma, o que impossvel (...) Ora, se nas causas eficientes fosse possvel seguir at o infinito, no existiria uma causa eficiente primeira, nem existiria um efeito ltimo, nem quaisquer causas
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eficientes intermedirias, o que obviamente falso. Portanto, necessrio admitir uma primeira causa eficiente, qual todos do o nome de Deus. (AQUINO, 2006, p. 191).
Ainda percebemos que o argumento se baseia na experincia natural, ou seja, uma coisa causa outra. Um leo no gerou a si mesmo, mas foi gerado por outros lees anteriores a ele. Uma pessoa foi gerada por seus pais. Seus pais por seus avs e assim por diante. Essa experincia natural teria que ter um princpio, ou seja, no se pode ir infinitamente ao passado em busca de causas, pois necessrio que tenha havido uma primeira causa para todas as coisas. Algo no poderia ser a causa de si mesmo, pois, neste caso, seria anterior a si, o que seria impossvel. Se h efeitos, h causas, se h causas, h uma causa inicial e essa causa inicial Deus. Assim, a natureza continua a apontar para um Ser supremo, divino, que criou todas as coisas, que anterior a tudo, o nico que no precisou de uma causa para ser o que . Toms de Aquino refora este argumento:
Suponhamos vrios motores e movidos em ordem, ou seja, que um moveria o seguinte segundo a ordem. Nesse caso, ao remover-se o primeiro motor, ou quando este cessar de mover-se, necessariamente nenhum outro se moveria nem seria movido, porque o primeiro seria a causa do movimento dos demais. Se, porm, ocorresse uma cadeia infinita de motores e movidos, no haveria uma causa primeira de movimento, mas todos os objetos seriam intermedirios. E, assim, nenhum desses poderia iniciar o movimento, e, por conseguinte, no haveria movimento no mundo. (AQUINO, 2006, pp. 169-170).
Novamente o filsofo demonstra que deve haver uma causa inicial, aqui vista como o primeiro motor de todas as coisas. Se no h uma primeira causa, se formos ao infinito na busca por causas, as causas sero sempre intermedirias, ou seja, nunca tero sido geradas por uma primeira causa, e, assim, essas causas supostamente intermedirias no poderiam ser a origem do movimento, e assim no haveria nada que se movesse. Portanto, preciso ir a uma primeira causa, a um primeiro motor, a um Deus que a primeira causa de todas as coisas. Portanto, as leis naturais de causa e efeito apontariam para a existncia de Deus. A natureza parece ser um meio bastante eficaz para se demonstrar a existncia de Deus na histria da filosofia e mesmo nos textos bblicos, o que o argumento de George Berkeley (1685-1753) parece confirmar, em sua obra Alciphron : 70
Um homem, com sua mo, no pode fazer uma mquina to admirvel quanto a prpria mo, nem pode qualquer um desses movimentos pelos quais expressamos a razo humana, aproximar-se da habilidade e destreza daqueles movimentos maravilhosos do corao, do crebro e de outras partes vitais, que no dependem da vontade do homem. (BERKELEY, 2006, pp. 256-257).
A complexidade da natureza um algo que impressiona os homens, e Berkeley enxerga uma parte do corpo humano, a mo, como uma mquina admirvel. O fato do homem no conseguir fazer algo como uma parte do seu prprio corpo demonstraria que essa mquina engenhosa teria sido causada por Deus. Novamente, notamos mais um filsofo argumentando que a natureza, em sua complexidade grandiosa, aponta para algo alm de si mesma, isto , para Deus. E o argumento do desgnio presente na natureza tambm aparece nos escritos desse filsofo, como vemos:
Alm disso, no existe, nos efeitos e produes naturais, uma evidente unidade de plano e desgnio? No so as regras fixas e imutveis? No valem as mesmas leis do movimento por todas as partes? As mesmas na China e aqui, as mesmas dois mil anos atrs e hoje? (BERKELEY, 2006, p. 257).
As leis universais e atemporais demonstrariam a existncia de Deus, a ordem que se v na natureza seria a demonstrao de que algum a planejou, a criou, a fez. O filsofo enxerga no s um desgnio, mas tambm unidade na natureza, o que apontaria para a existncia de um Deus, um Ser que tem um propsito que visto por meio de sua criao. So leis que demonstram unidade e universalidade, que no mudam, que existiam ontem e hoje, que independem da vontade humana. Ainda que no seja o nosso objetivo, nesta pequena seo, expor ou aprofundar muitos argumentos sobre a existncia de Deus na histria da filosofia, julgamos esclarecedor selecionar textos de alguns pensadores relevantes para contextualizar os
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argumentos de Voltaire, em especial textos que usam argumentos semelhantes aos que o patriarca de Ferney veio a usar para provar a existncia do Ser supremo.21
A existncia de Deus, de um Ser Supremo que fez todas as coisas, algo evidente para Voltaire, uma verdade que pode ser provada pela razo. Sem dvida um dos pilares da sua religio, j que o tema constante em suas obras como uma verdade categrica e evidente. Assim, sendo a existncia de Deus algo demonstrvel para o nosso filsofo, ele trata de argumentar, dentro das fronteiras da razo, para provar seu ponto de vista usando a filosofia, sem necessitar da f. Um dos argumentos de Voltaire para provar a existncia de Deus o que ele chama de causas finais, que ele assim define em seu Dicionrio filosfico : Quando os efeitos so invariavelmente os mesmos, em qualquer lugar e em qualquer tempo, quando esses efeitos uniformes so independentes dos seres aos quais pertencem, nesse caso h, visivelmente, uma causa final. (VOLTAIRE, 1978c, p. 191). Vendo a definio do filsofo sobre o que seria uma causa final, podemos ver como o patriarca de Ferney argumenta sobre o assunto, ainda no seu Dicionrio filosfico:
Todos os animais tm olhos e vem; todos tm orelha e ouvem; todos tm boca, com a qual comem; estmago, ou coisa parecida, por onde digerem; todos tm um orifcio que expulsa os excrementos; todos, tambm, um instrumento adequado procriao: e tais dons da Natureza atuam neles sem que nenhuma arte se intrometa. Eis algumas causas finais claramente estabelecidas e perverter o nosso pensamento negar uma verdade to universal. (VOLTAIRE, 1978c, p. 191).
Voltaire cr em causas finais, ou seja, ele cr que uma Providncia fez a natureza para seus devidos fins. Isso, claro, quando os efeitos naturais so invariveis e uniformes. O desgnio visto na natureza, a racionalidade presente nos elementos naturais indicava, para o filsofo, a existncia de um Ser inteligente por trs de tudo o que existe. A universalidade das funes naturais nos animais tornava a existncia de Deus algo bastante evidente para
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Ao leitor que deseja conhecer melhor os argumentos a favor da existncia de Deus na histria da filosofia, sugerimos a j citada obra de Plnio Junqueira Smith, Dez provas da existncia de Deus.
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Voltaire, to evidente que negar o desgnio presente na natureza seria perverter o nosso pensamento. Percebemos, portanto, que o funcionamento do corpo, seja humano ou no, semelhante a uma mquina complexa e bem ajustada, uma demonstrao de que um Ser superior estabeleceu tudo isso segundo o seu propsito. Ainda que nesta referncia especfica, citada acima, Voltaire no fale de Deus, em outras veremos que ele se refere a um Ser que criou tudo, que fez a natureza, que responsvel pela ordem geral. Em seguida a este texto, nos pargrafos seguintes Voltaire nega que aquilo que fazemos com a matria-prima dada pela natureza seja uma causa final. Por exemplo, construir um edifcio com pedras. O estmago foi feito para digerir, mas a pedra no foi feita para construirmos casas (Cf. VOLTAIRE, 1978c. p. 191). Todavia, ele diz:
Mas as pedras, em qualquer lugar e em qualquer poca, no formam edifcios; nem todos os narizes trazem culos; nem todos os dedos trazem anis; nem todas as pernas andam de meias de seda. Um bicho-da-seda portanto no feito para cobrir as minhas pernas, como a vossa boca feita para comer e o vosso traseiro para ir retrete. Portanto, h efeitos produzidos por causas finais e efeitos em grande quantidade a que no se pode dar esse nome. Mas uns e outros esto igualmente no plano da Providncia geral: sem dvida, nada se faz contra a vontade da Providncia, nem, at, sem ela. Tudo o que pertence Natureza uniforme, imutvel, a obra imediata do Mestre; foi ele quem criou as leis pelas quais a Lua entra em trs quartos como sendo a causa do fluxo e refluxo do oceano, e o Sol como no quarto restante; foi ele que deu um movimento de rotao ao Sol, pelo qual este astro emite em cinco minutos e meio raios de luz nos olhos dos homens, dos crocodilos e dos gatos. (VOLTAIRE, 1978c, p. 191).
Voltaire v desgnio no somente na natureza, mas na utilizao da matria-prima, na forma como o homem faz uso da natureza. disso que trata a expresso uns e outros, no incio do segundo pargrafo, referindo-se ao desgnio presente na natureza e quilo que o homem faz com ela para se desenvolver. Assim, ainda que a rvore no tenha sido, diretamente, feita para construirmos nossos mveis, o desgnio geral da Providncia que permite que a rvore se transforme em um mvel. Dum modo geral, nada escapa ao domnio divino. J estaria na mente de Deus tudo o que o homem faria com os elementos naturais, mesmo usar o couro de um jacar para fazer um sapato, por exemplo. Portanto, talvez poderamos dizer que h um desgnio diretamente planejado por Deus, o que se v na natureza em seus fenmenos universais, e um desgnio indireto, que a permisso divina 73
para que o homem usufrua da natureza, se desenvolva, usando para seu bem-estar o que a natureza lhe proporcionou. No s o desgnio presente nos seres vivos, como o estmago ter sido feito para digerir, por exemplo, impressiona o nosso filsofo, como tambm as leis do universo so para ele a evidncia de um legislador. Em tudo h uma ordem. O sol, a lua, as estrelas, os corpos celestes esto em ordem, obedecem a leis universais e imutveis, cumprem os desgnios destinados a eles. Voltaire refora o seu argumento, agora em sua obra Elementos da filosofia de Newton:
Muitas pessoas talvez se espantem com o fato de que, dentre todas as provas da existncia de Deus, a das causas finais seja a mais forte para Newton. O desgnio, ou antes, os desgnios infinitamente variados, que se revelam nas mais vastas e nas menores partes do universo, constituem uma demonstrao que, por ser sensvel, quase desprezada por alguns filsofos. Mas, enfim, Newton pensava que estas relaes infinitas, que percebia mais do que qualquer outro, eram a obra de um arteso infinitamente hbil. (VOLTAIRE, 1996, p. 26).
Temos aqui o clssico argumento de que a natureza seria uma obra de arte que apontaria para o trabalho de um artista. Voltaire no conseguia contemplar a natureza como obra do tempo e do acaso. No seria uma coincidncia ou um acaso termos tantas leis universais, tanta complexidade, tanto desgnio, tantas vidas que seguem leis em comum e que tm inmeras semelhanas. Mais uma vez Voltaire usa a expresso causas finais para se referir ao desgnio presente na natureza, s leis, ao propsito que vemos demonstrado na ordem geral do universo. Portanto, a existncia de Deus, para Voltaire, algo claro e racional. Na opinio de Vladimir Mota, Voltaire insiste incessantemente no argumento da ordem e das causas finais do universo como possvel prova da existncia de Deus... (MOTA, 2010, p. 118). Realmente, concordamos com Mota sobre a insistncia do filsofo neste tema, sobre a sua incessante repetio neste argumento, o que indica que para Voltaire este era um ponto fundamental para provar a existncia de Deus. Elizabeth Dias comenta, em sua tese de doutorado, a respeito do assunto em Voltaire:
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A natureza no tem nela mesma o princpio de sua explicao. Tudo no universo criado, arte. E a arte anuncia um artfice. Deus este artfice, o relojoeiro que idealizou, criou e regula constantemente o universo. A existncia do relgio uma prova insofismvel de que existe o relojoeiro. (DIAS, 2000, p.106).
Ou seja, a natureza conduz o nosso entendimento para algo alm dela, para um criador que mostra a sua sabedoria por meio de tudo o que existe. Esta analogia da natureza com o relgio, onde ambos apontam para algum que fez as duas obras, tornou a ideia da existncia de Deus, em Voltaire, algo que persistiu durante toda a sua vida, o que se v em suas diversas obras. Beeson e Cronk reforam a presena deste argumento na obra do nosso filsofo:
Voltaire mais uma vez sublinha sua viso lockeana de que muitos dos assuntos da filosofia so incognoscveis. O livro [O filsofo ignorante] comea com uma breve afirmao das questes fundamentais da metafsica: quem somos?, de onde viemos?, o que fazemos?, o que nos tornaremos? Isso leva a uma ampla reviso das tentativas de respond-las. A concluso de que h poucas coisas das quais podemos ter certeza. Uma delas a existncia de Deus, criador e legislador do Universo, porque sabemos que o Universo sujeito a leis e que essas leis precisam de inteligncia para ser explicadas. Do contrrio, a especulao filosfica conduz a pouco mais que obscuridades que no trazem qualquer benefcio prtico para a humanidade. (BEESON; CRONK, 2010, p. 90).
As questes formuladas pelo filsofo, tais como quem somos, de onde viemos, o que nos tornaremos, etc, embora naturais, no seriam possveis de ser respondidas pela razo. O homem permaneceria eternamente em sua ignorncia acerca destas perguntas. Todavia, quando se trata da existncia de Deus, a natureza, as leis universais responderiam que h um Ser Supremo que as fez. As leis apontam para um legislador, a obra de arte nos remete a um obreiro, leis inteligentes precisam de uma inteligncia por trs de si. Assim, a observao das leis naturais conduz evidncia de que h um Deus que as criou, que as formou, que as sustenta. O conto Histria de Jenni ou o ateu e o sbio, de 1775, tambm aborda a questo da existncia de Deus, usando argumentos filosficos. Freind, o personagem que Voltaire coloca como o sbio da histria, ao olhar para a natureza, reconhece que os planetas seguem leis matemticas e fala do corpo humano para provar a existncia de Deus, usando o argumento das causas finais (o olho foi feito para ver, o ouvido para ouvir, a boca para 75
comer e falar, etc). Birton, o ateu, questiona a existncia de Deus devido presena do mal no mundo, do sofrimento, da fome, dos desastres naturais. Ele comeou a usar estes exemplos aps Freind falar que Deus bom. Quem assistia ao debate comeou a crer que Birton tinha razo. Com isso, Voltaire talvez queira dizer que os argumentos dos ateus so bons, mas, como a continuidade do conto demonstra, por fim so vencidos. Freind, respondendo, comea a falar dos aspectos favorveis da natureza, como o clima bom em muitos lugares, os alimentos. Mostra tambm que as catstrofes naturais so a exceo, no a regra. E, fazendo uma metfora sobre as catstrofes da natureza que destroem, s vezes, alguns homens, diz: "Se um homem tivesse inventado uma mquina hidrulica que regasse e fertilizasse toda uma provncia, havereis de censurar-lhe que a gua que ele vos propinou afogasse alguns insetos?" (VOLTAIRE, 2005, pp. 663-664). Com isso, Deus seria o homem que inventou esta mquina que beneficia a provncia, mas, no processo, alguns insetos morrem. Estes insetos seriam os homens que morrem em algumas catstrofes naturais. uma metfora forte, pois o Deus de Voltaire trataria os seres humanos como um inventor se preocuparia com insetos. Lembra-nos da imagem que Voltaire faz dos homens no Cndido, comparando-os a ratos que habitam um navio, enquanto Deus seria o piloto da embarcao. Dessa forma, o que importaria para o Deus de Voltaire seria a ordem geral, no sendo relevante se, aqui e ali, alguns seres humanos morram por meio de um terremoto ou de outra catstrofe natural. No foi esse o sentimento que o filsofo expressou quando ocorreu o terremoto de Lisboa, matando cerca de trinta mil pessoas, mas o que ele tenta passar para o seu leitor nesse momento. Birton usa a maldade humana como argumento para negar a Providncia e a bondade divina. Freind reafirma a bondade divina e atribui o mal liberdade humana, sem a qual os homens seriam mquinas. Respondendo ainda a Birton sobre a maldade humana, Freind fala sobre pessoas e naes virtuosas que j viveram neste mundo. Nos Elementos da filosofia de Newton Voltaire tambm responde a este argumento:
Est provado que h mais bem do que mal neste mundo, j que, na realidade, poucos homens desejam a morte (...) Quando tiverdes examinado as relaes que se encontram nos princpios de um animal e os desgnios que se manifestam em todas as partes na maneira pela qual este animal recebe a vida, com a qual ele a sustenta e com a qual ele a d, reconhecereis sem dificuldade este arteso soberano. (VOLTAIRE, 1996, p. 29).
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Voltaire, ainda que no tenha resolvido o problema satisfatoriamente, coloca o mal como exceo na vida, j que, se ele fosse a regra, a maioria dos homens desejaria morrer. Aproveitando, o filsofo refora o desgnio que opera na natureza para defender a existncia de Deus, o que faz com frequncia em outras obras. Voltando ao conto, Birton afirma que Deus faz tudo, inclusive o mal, pois "... ele conduz o brao do carrasco que lhe corta a cabea; no, no posso admitir um Deus homicida" (Voltaire, 2005, p 668). Ao passo que Freind responde:
Deus no comete, nem ordena, nem permite o crime, mas fez o homem, e fez as leis do movimento; essas leis eternas do movimento so igualmente executadas pela mo do homem caridoso que socorre o pobre e pela mo do celerado que degola seu irmo. (VOLTAIRE, 2005, p. 668).
Ou seja, se para Birton Deus responsvel pelo mal porque conduziria a mo do criminoso a matar uma pessoa, para Freind Deus no responsvel por tal ato, mas apenas permite, por meio das leis do movimento, que o homem mau faa o mal, e que o homem bom faa o bem. O argumento de Birton seria semelhante ao de um homem que, ao ver uma pessoa esfaquear outra, culparia a empresa que fabricou a faca por tal ato cruel. Freind responde a Birton que Deus se deu a conhecer aos homens por meio de suas obras. Ao final, Birton, Jenni e os demais assistentes se renderam aos argumentos de Freind, mudando suas ideias e seu comportamento. Portanto, Voltaire faz o homem que cr em Deus vencer o debate, j que o atesmo seria irracional, contrrio s evidncias que a natureza nos deixou sobre a existncia de um arteso supremo. Alm disso, o problema do mal e do sofrimento humano, que tanto incomodou Voltaire, no seria suficiente para provar que Deus no existe, seria apenas uma dificuldade superada pela reflexo filosfica. Portanto, vimos at aqui que a existncia de Deus, para o nosso filsofo, no uma questo de f, mas de razo, algo possvel de ser demonstrado por meio do prprio funcionamento da natureza. Assim, crer em Deus uma questo de exercer a razo e o contrrio ser irracional. O filsofo tem a palavra em sua obra Deus e os homens:
A mesma fora de nosso entendimento que nos fez conhecer a aritmtica, a geometria, a astronomia, que nos fez inventar as leis, tambm nos fez, portanto, conhecer Deus (...) no necessria uma revelao para
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compreender que o homem no se fez a si mesmo e que dependemos de um Ser superior, qualquer que seja. (VOLTAIRE, 2000, p. 9).
Em outras palavras, saber que h um Deus algo natural para Voltaire, desde que a pessoa tenha condies de raciocinar. O mesmo Deus que fez o homem deu-lhe condies para descobrir a Sua existncia por meio da sua razo, do seu pensamento, da sua reflexo acerca da natureza. Ainda que o filsofo no ouse dizer quem Deus, ele sabe que h um. Se o homem existe, porque um Ser Supremo o fez, pois o homem no a causa de si mesmo. Sendo o homem o efeito, h uma causa, o Supremo Arteso. O contrrio disso era absurdo para o nosso filsofo, era atentar contra a razo. Sendo assim, a razo universal, dada por Deus ao homem, o leva, em todos os lugares e pocas, a reconhecer que h um Ser Supremo, como o filsofo afirma: Meu nico objetivo mostrar que todos os grandes povos civilizados, e mesmo os pequenos, reconheceram um Deus supremo desde tempos imemoriais. (VOLTAIRE, 2000, p. 36). O filsofo ratifica: Quanto mais avanamos no conhecimento das naes que povoam a Terra, mais veremos que quase todas tm um Deus supremo. (VOLTAIRE, 2000, p. 23). Mesmo de maneira obscurecida, os povos da terra teriam reconhecido um Deus supremo, nas palavras do filsofo:
Tambm incontestvel que os romanos, como os gregos, adoravam um deus supremo. Seu Jpiter era o nico a ser tido como o senhor do trovo, o nico a ser chamado de Deus muito grande e muito bom (...) Assim, da Itlia ndia e China, encontramos o culto de um deus supremo e a tolerncia em todas as naes conhecidas. (VOLTAIRE, 2007a, p. 217).
Portanto, reconhecemos que esta uma das verdades metafsicas de Voltaire, a existncia de Deus. No importando que nome deram a este Ser, o que variaria conforme a cultura, o importante, para o filsofo, que o conhecimento de um Deus supremo seria algo evidente na histria dos povos. Alm das evidncias naturais que demonstram a mo de um criador, a razo humana, em todos os tempos, confirmaria tal verdade por meio do testemunho de todas as naes, segundo a anlise do filsofo. O leitor pode objetar que o consenso universal sobre a existncia de um Ser supremo no seria evidncia da existncia de Deus para Voltaire, isto , a concordncia no significa estar com a verdade. Para isso, citamos o filsofo mais uma vez: 78
Podem objetar-me que o consentimento dos homens de todos os tempos e todos os pases no uma prova da verdade. Todos os povos acreditaram na magia, nos sortilgios, nos endemoninhados, nas aparies, nas influncias dos astros e em cem outras tolices desse gnero. O mesmo no ocorreria com o justo e o injusto? Parece-me que no. Primeiramente, falso que todos os homens tenham acreditado nessas quimeras. verdade que foram o alimento da imbecilidade do vulgo, e h o vulgo entre os grandes e o vulgo entre o povo. No entanto, uma multido de sbios sempre zombou delas e, ao contrrio, sempre admitiu o justo e o injusto, tanto quanto o povo, ou at mais do que este. A crena nos feiticeiros, nos endemoninhados, etc., est longe de ser necessria ao gnero humano. A crena no justo e no injusto uma necessidade absoluta, portanto um desenvolvimento da razo dada por Deus, enquanto a idia de feiticeiros , pelo contrrio, uma perverso dessa mesma razo. (VOLTAIRE, 1978d, pp. 319-320).
Como o leitor pode notar, o contexto da discusso na referncia citada no a existncia de Deus, mas de uma moral universal. O filsofo vem, ao longo dos pargrafos anteriores, defendendo a existncia de uma moral natural, que faria parte da constituio humana. E, para demonstrar que o consenso dos homens demonstraria a verdade, usou o argumento citado na referncia acima. O filsofo, assim, nega que algumas coisas quimricas tenham sido cridas universalmente pelos homens, ao contrrio da noo de justia e injustia, que seria necessria, racional e dada por Deus. Assim, se o filsofo usa o argumento do consenso universal como evidncia de verdade na questo da moral, talvez possamos entender que, para ele, o mesmo se daria com Deus, j que, tanto a existncia de uma moral universal como de Deus so verdades que o filsofo busca provar em muitas de suas obras, sendo, portanto, fundamentais para ele. E, como vimos at aqui, se crer em Deus uma questo de usar a razo, e a razo dada por Deus aos homens, ento podemos deduzir que o consenso universal sobre a existncia de Deus, baseado na razo, seria, para Voltaire, evidncia de que esse consenso evidncia de verdade. A partir da Voltaire no avana muito. Como veremos aps esta seo, o Deus de Voltaire no interfere na realidade e no se relaciona com o homem. Alm do mais, a no ser sua existncia e alguns poucos atributos, Voltaire pensa que no se pode descobrir mais nada sobre o criador.
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O filsofo tem a palavra: Enfim, tambm metafsica, Deus, que conhecemos por suas obras, mas que nosso orgulho quer definir: Deus, de quem sentimos o imenso poder; Deus, separado de ns por um abismo infinito e cuja nobreza ousamos sondar. (VOLTAIRE, 1978c, p. 247). A chave da questo est no fato de Voltaire crer que a natureza e a razo so os nicos meios de se conhecer a Deus. Desta maneira, o nico meio do ser humano conhecer a Deus olhar para a natureza e, a partir dela, construir suas ideias. Por exemplo, vejo que os seres da natureza so bastante complexos e organizados. Deste fato, concluo que Deus deve ser muito inteligente e tem uma capacidade criativa imensa. Todavia, o Deus do desta Voltaire est separado de sua criao por um abismo infinito. um Deus distante, frio, pouco interessado na vida humana. Voltaire refora a ignorncia humana sobre Deus: A simples palavra o indica: metafsica, acima da natureza; teologia, conhecimento de Deus. Como conhecer o que no natural? Como o homem pode saber o que Deus pensou e o que ele ? (VOLTAIRE, 2000, p. 151). Reforamos que o ponto de vista do filsofo, de que o conhecimento da natureza o nico meio de se conhecer a Deus, a chave para entendermos a limitao que ele impe ao conhecimento a respeito do Criador. A pergunta retrica, como conhecer o que no natural?, nos faz entender o abismo que o filsofo afirma existir entre Deus e o homem. Pensando nesta lgica, se o homem natural e Deus est alm do que natural, ento o homem no pode conhecer a Deus, a no ser pelo que a natureza revela. Esta maneira de raciocinar est presente em toda a filosofia de Voltaire, filosofia esta que rejeitava verdades a priori, estabelecidas antes da experincia. O filsofo refuta tudo aquilo que no emprico, que no pode ser provado pela experincia, pelos sentidos, pela razo. Elizabeth Dias tem um importante comentrio a respeito disso:
O objetivo de Voltaire, ao se debruar sobre a metafsica, no construir sistemas para explicar a natureza e as causas dos seres abstratos, pois ele mesmo reconhece sua ignorncia a esse respeito; mas traar os limites do esprito humano, identificando as verdadeiras aquisies de nossa razo, s possveis atravs da experincia, e afastar como quimricos ou ilusrios os sistemas metafsicos que, atravs de suas conjecturas, de sua verborreia, de suas especulaes vs, pretendem resolver questes insolveis e nos fazer crer que podemos apreender os primeiros princpios das coisas. (DIAS, 2000, pp. 47-48).
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Como Dias afirma em outra passagem de sua tese, o movimento iluminista considera o esprito de sistema como sinnimo de especulao metafsica, de suposies infundadas (Cf. DIAS, 2000, p. 19). Assim, entendemos quando Dias afirma que Voltaire no quer construir sistemas, j que o sistema, entendido dessa forma, seria um conjunto fechado de verdades sobre aquilo que o homem no pode conhecer, as quais, alm de serem especulaes infundadas, fechariam, em torno de si mesmas, as portas para a verdade, para aquilo que de fato o homem poderia descobrir. No dizer de Vladimir Mota, o iluminismo entendia por esprito de sistema uma especulao metafsica infundada e atribui a esse termo uma conotao bastante negativa... (MOTA, 2010, p. 149). Assim, considerando este ponto de vista, Voltaire um filho de sua poca, seguindo a mentalidade iluminista quanto a este aspecto, no que se refere rejeio de verdades a priori, de sistemas que no se baseiam no conhecimento, o qual s seria possvel de se chegar pela experincia.
O debate filosfico se o mundo pleno ou se existe o vazio tem relao com a fsica, mas no esse o interesse da nossa abordagem nesta seo. Passaremos rapidamente pela questo, apenas com o intuito de que o leitor conhea mais um dos argumentos de Voltaire a favor da existncia de Deus. Embora nem todos faam a associao entre a existncia do vazio e a existncia de Deus, ou entre um universo pleno, sem vazio, e a no existncia de Deus, veremos que o patriarca de Ferney associa uma coisa a outra, da a nossa abordagem do assunto neste captulo. O filsofo tem a palavra a respeito do assunto nos seus Elementos da filosofia de Newton:
Ao contrrio, se existisse o vazio, a matria no um ser necessrio, existindo por si mesma etc. Pois aquilo que no est em todo lugar no pode existir necessariamente em nenhum lugar. Portanto, a matria um ser no-necessrio, logo, foi criada. (VOLTAIRE, 1996, p. 32).
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A questo central do argumento de Voltaire est na necessidade.22 Seguindo o raciocnio do filsofo, se o mundo vazio, isso significa que h partes dele onde no h matria, ou seja, h partes do mundo onde h vazio, onde no h coisa alguma. Se h partes do mundo e do universo onde h vazio, isso significa que a matria no necessria, ou seja, ela no tem que estar em todos os lugares ou mesmo ela no tem que estar, necessariamente, em lugar algum, no absolutamente necessrio que a matria seja onipresente e plena. Sendo assim, ela precisou, em algum momento, ser criada, pois s no precisaria ser criada se fosse necessria, se fosse Deus. O filsofo detalha a sua explicao:
Se o vazio fosse impossvel, se a matria fosse infinita, se extenso e matria fossem a mesma coisa, seria preciso que a matria fosse necessria; ora, se a matria fosse necessria, existiria por si mesma com uma necessidade absoluta, inerente sua natureza, primordial, antecedente a tudo. Logo, ela seria Deus. Portanto, aquele que nega a possibilidade do vazio, se raciocinar de modo conseqente, no pode admitir outro Deus a no ser a natureza. (VOLTAIRE, 1996, p. 32).
Acompanhando o encadeamento do raciocnio de Voltaire, se no h vazio, ento a matria plena, ocupa todo o espao e absolutamente necessria. Ela no pode no ser, pois ela total e absolutamente necessria. Se assim, ento a matria existe por si mesma, pois, se ela no existisse por si mesma, no seria necessria. E, se existe por si mesma, ento a matria divina, ela Deus. Esta a consequncia que o filsofo extrai do debate sobre o vazio ou mundo pleno. No dizer de Rodrigo Brando, para Voltaire,
se a matria necessria ela deve existir desde sempre, deve ter uma existncia por si mesma, dispensando assim um criador. Mais do que isso, sendo anterior a tudo, ela seria uma propriedade de Deus ou o prprio Deus. Contrariamente, se aceitamos o vazio, a matria deixa de ser necessria, passa a ser criada, evitando todos os problemas que se seguem do materialismo (...) A existncia do vazio prova que a matria no necessria, pois aquilo que no est em todo lugar no pode existir necessariamente em nenhum lugar, de modo que ela deve ser resultado da criao. Ao contrrio, num mundo pleno, a matria sendo necessria, existiria por si mesma com uma necessidade absoluta, inerente sua natureza, primordial, antecedente a tudo. (BRANDO, 2008, p. 47).
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Portanto, Brando corrobora que, para Voltaire, o vazio favorece a existncia de Deus, enquanto o mundo pleno faria a matria ter atributos divinos, ou ser ela prpria um deus. Tomando como referncia a opinio do prprio Voltaire, podemos problematizar o argumento da necessidade da matria como um condutor ao atesmo. Como pudemos ver claramente, o filsofo entende que, se a matria plena, se no h vazio, se a matria necessria, ento ela no foi criada, significando que a matria Deus, o que faria Deus no existir de fato, pois ele seria a prpria natureza. Portanto, se Deus tudo e tudo Deus, Deus no existe. A citao abaixo de Voltaire, na obra O filsofo ignorante :
Nascido de um germe, vindo de outro germe, houve uma sucesso contnua, um desenvolvimento sem fim desses germes e toda a Natureza sempre existiu como uma decorrncia necessria desse Ser Supremo, que existia por si mesmo? Se acreditasse apenas em meu fraco entendimento, diria: parece-me que a Natureza sempre foi animada. No posso conceber que a causa que age contnua e visivelmente sobre ela, podendo agir desde todos os tempos, no tenha agido sempre. Uma eternidade de cio pareceme incompatvel com o ser agente e necessrio (...) Teria havida o nada no espao onde hoje h alguma coisa? Isso me parece incompreensvel. (VOLTAIRE, 1978d, p. 308).
Temos que considerar que as primeiras citaes foram extradas dos Elementos da filosofia de Newton , obra datada de 1738, enquanto O filsofo ignorante foi escrito em 1766, portanto, vinte e oito anos depois, e o filsofo, talvez, possa ter mudado algo em sua opinio sobre a questo durante este perodo. Embora o texto acima citado no esteja, abertamente, contrariando o que foi afirmado sobre a necessidade da matria como uma opinio que conduz ao atesmo, a necessidade aparece neste texto, ainda que sutilmente. No contexto, como podemos notar, o filsofo est discutindo se a natureza sempre existiu ou se em algum momento no existiu e foi criada por Deus. A concluso a que ele chega que a natureza existe desde sempre, ou seja, no houve um momento em que houvesse o nada, ou, usando outras palavras, um completo vazio. Assim, se nos Elementos da filosofia de Newton Voltaire no aceita a plenitude da matria, defendendo o vazio, aqui, em O filsofo ignorante , ele no concebe o vazio, ainda que esteja falando de um vazio pleno, no de um vazio parcial. Mas o 83
problema principal que o filsofo no concebe que Deus possa ter criado a natureza em algum momento, ele s concebe a ideia de que Deus tenha que ter agido sobre a sua criao desde que existe, ou seja, desde sempre. No teria havido, portanto, qualquer momento em que Deus no tenha agido sobre a natureza. Assim, a natureza seria eterna com Deus, portanto, ela seria necessria. Se ela no fosse necessria, teria que ter sido criada em algum momento, e, no raciocnio de Voltaire, Deus teria tido uma eternidade de cio, o que seria incompatvel com sua natureza. Assim, se a natureza sempre existiu como uma decorrncia necessria de Deus, ento ela tambm necessria. Do contrrio, teramos um Deus ocioso. Assim, a necessidade da natureza, aqui nesta citao, no conduz ao atesmo. Pelo contrrio, demonstra que h um Deus que age desde sempre sobre sua criao, e esta coexistiria com Deus, nunca tendo tido um princpio. E o defensor de um universo pleno que no fosse ateu poderia dizer a Voltaire, usando seus prprios argumentos, que Deus quis que houvesse plenitude, portanto, necessrio que seja assim, e que sempre foi assim como decorrncia da eterna atuao de Deus sobre sua criao. Portanto, o argumento do nosso filsofo fica seriamente comprometido.
O homem tem uma noo universal de moral, de padres de comportamento tico, ou tudo no passaria de regras sociais, de padres relativos a cada poca, cultura, pas? Para Voltaire, a primeira opo verdadeira. E tal questo est relacionada, nos textos do nosso filsofo, existncia de Deus. Para ele, a moral vem de Deus e, por isso, ao olhar para o comportamento dos povos na histria, veramos a mo do Ser supremo, j que a moral universal seria a consequncia da existncia de um Ser universal supremo. O autor do Cndido tem a palavra em O filsofo ignorante:
A moral parece-me to universal, to calculada pelo Ser universal que nos formou, to destinada a servir como contrapeso a nossas paixes funestas e a aliviar as penas inevitveis desta curta vida, que, desde Zoroastro at Lorde Shaftesbury, vejo todos os filsofos ensinarem a mesma moral, embora todos tenham idias diferentes sobre os princpios das coisas. (VOLTAIRE, 1978d, p. 322).
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A moral universal, portanto, teria vindo de Deus, teria sido calculada por ele, sendo, assim, algo que no dependeria de pocas, culturas ou religies. Voltaire entende que os filsofos, dum modo geral, ensinaram a mesma moral, embora em outras questes eles tenham discordado. A moral serviria de equilbrio nossa natureza, para contrabalanar as nossas paixes, os nossos desejos. Deus teria dado a moral na medida exata, pois o filsofo entende que ela foi calculada pelo Ser universal que nos formou. Voltaire reflete mais sobre a questo:
Quanto mais vi homens diferentes pelo clima, pelos costumes, pela linguagem, pelas leis, pelo culto e pela medida de sua inteligncia, tanto mais observei que todos possuem o mesmo fundo moral: todos tm uma noo grosseira do justo e do injusto, sem saber uma palavra de teologia. (VOLTAIRE, 1978d, p. 317).
Maria das Graas de Souza trata da importncia da viagem na filosofia de Voltaire, em sua relevncia para adquirir conhecimento, em sua ligao com o empirismo (Cf. SOUZA, 1983, p. 123). Sendo assim, as viagens de Voltaire serviram para que ele percebesse as diferenas entre os homens devido variedade cultural, mas sua concluso foi de que, apesar das distintas culturas que existem em vrios pases, h uma noo universal de justia que independe desses fatores. O clima, que afeta os costumes, a alimentao, a forma de se vestir, a sade, no influenciaria, segundo Voltaire, nas questes morais. As leis variavam devido aos hbitos, ao modelo poltico, s relaes comerciais, mas no teriam interferido na noo do certo e do errado. Nem mesmo o grau de inteligncia maior de uns e menor de outros teria sido capaz de impedir os diferentes homens de terem, pelo menos, um consenso bsico sobre a forma de tratar o prximo. A noo grosseria do justo e do injusto provaria justamente que h sempre alguns fatores na relao com o prximo que sero consensuais, pois nesta noo bsica de justia residiria a concordncia moral. Em suma, Voltaire est dizendo que, no importa o lugar, a religio, a cultura ou qualquer outro fator sociolgico, a moral ser sempre a mesma, pois nenhum destes fatores pode apagar inteiramente a noo universal de justia que o ser humano teria. Apesar de no ter montado um sistema sobre o que seriam estes padres, o filsofo deixa claro que h um consenso, entre os homens racionais, sobre uma moral universal e
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atemporal. Mas, qual seria o critrio, ento, para se conhecer esta moral? Voltaire esboa um conceito, dizendo que o seguinte:
Que a lei natural? O instinto que nos faz sentir a justia. Que chamais justo e injusto? O que aparece como tal ao universo inteiro. (VOLTAIRE, 1978c, p. 230).
Ou seja, a moral universal seria composta pelos padres que os homens seguem globalmente, independentemente de suas variaes culturais. O homem seria possuidor de um instinto, de algo que faz parte de sua natureza, que o faria sentir o que justo. Isso, por fazer parte da natureza humana, seria universal. O filsofo cita alguns exemplos do que seriam aes morais universais em seu Dicionrio filosfico, mesmo sem entrar a fundo na questo ou sistematizar o tema:
... encontrei-me a pensar com aprazimento que h uma lei natural independente das convenes humanas: o fruto do meu trabalho deve pertencer-me; devo honrar pai e me; no tenho direito algum sobre a vida do meu prximo e este nenhum direito tem sobre a minha, etc. (VOLTAIRE, 1978c, p. 233).
Parece que o objetivo de Voltaire no era estabelecer uma moral dogmtica, ditar regras, estabelecer um sistema (o que ele via com horror), mas fazer entender que a moral no deve ser relativa, baseada nas variantes culturais, sociais. Ainda assim, ele no deixou de dar alguns exemplos ilustrativos, exemplos esses que o nosso filsofo deve ter visto, na histria e nas suas viagens, serem seguidos por todos os homens que se guiam pela razo. Apesar disso, Voltaire talvez no tenha se atentado aos problemas de algumas de suas afirmaes, j que, por exemplo, a mxima de que o fruto do meu trabalho deve pertencerme no to simples assim, pois uma pessoa, trabalhando conforme as leis de seu pas, pode chegar a um nvel de riqueza extrema, enquanto outras pessoas podem no ter sequer o suficiente para viver. Assim, o filsofo cita alguns exemplos de aes morais universais, mas elas podem ser problematizadas e questionadas, e Voltaire no discutiu mais profundamente sobre esses preceitos nas passagens em que trabalhou com o conceito de moral universal. No contexto dessa passagem, o prprio Voltaire se questiona sobre a sua moral universal, pensando em como os homens matam tolamente uns aos outros (Cf. 86
VOLTAIRE, 1978c, p. 233). Ainda assim, os preceitos que ele cita como universais no so discutidos mais amplamente. O filsofo d mais alguns exemplos, em sua obra O preo da justia:
No seria possvel fazer uma distino entre deveres universais e devereis locais? Respeitar pai e me, aliment-los na indigncia, pagar suas dvidas, no ultrajar ningum, socorrer os sofredores na medida do possvel: esses so deveres tanto no Sio quanto em Roma. Casar-se apenas com uma mulher um dever local. (VOLTAIRE, 2001, p. 63).
O sentimento de honrar e respeitar os pais citado novamente pelo filsofo, j que dificilmente algum discordaria do dever de ter tais sentimentos e atitudes para com os seus respectivos genitores. Ajudar o prximo usado tambm como dever universal, o que tambm dificilmente algum diria algo contrrio. Assim, o filsofo refora que h uma moral universal, e em alguns textos, sem discutir profundamente a questo, cita exemplos do que lhe parece ser uma verdade que se encontra na natureza humana, em todos os seres que se desenvolveram racionalmente, em todo homem cujo esprito for bem constitudo (Cf. VOLTAIRE, 1978c, p. 231). Mas frisamos, novamente, que Voltaire no se atentou, ou simplesmente no quis discutir a questo mais detalhadamente, ao fato de que algumas de suas afirmaes podem ser problematizadas ao se debater se, realmente, os preceitos citados como parte de uma moral universal o so de fato universais e inquestionveis. Por exemplo, pagar as dvidas dos pais. E se um desses pais for um prdigo incorrigvel? E se o pai, ou a me, faz dvidas desnecessrias, vivendo regaladamente, sem nenhuma prudncia e o filho, ao contrrio, moderado, prudente, equilibrado? O filho tem obrigao de pagar as dvidas dos pais? No se trata aqui, da nossa parte, de discutir a validade ou no do que Voltaire estabeleceu como preceitos universais, mas sim em reforar que nem tudo o que ele citou como ao moral universal inquestionvel e absoluto. Vejamos mais alguns exemplos que o filsofo emprega acerca de supostas aes morais universais:
Juntai de um extremo da terra ao outro os simples e tranqilos agricultores: todos facilmente chegaro a acordo quanto a vender aos seus vizinhos os excedentes de trigo e que a lei contrria inumana e absurda (...) que um pai de famlia deve ser o senhor em sua casa; que a religio deve agrupar os homens para os unir e no para os tornar fanticos e
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perseguidores; que aqueles que trabalham no se devem privar do fruto dos seus trabalhos para dotar a superstio e a ociosidade: numa hora faro trinta leis desta espcie, todas teis ao gnero humano. (VOLTAIRE, 1978c, pp. 233-234).
Pegando o primeiro exemplo, o filsofo fala de donos de trigo que venderiam o excesso, pois no precisariam daquele excesso e o bvio seria vend-lo a quem precisa e, nesse caso, quem precisasse se alimentaria e quem vendesse lucraria com isso. Lgica perfeita. Mas quem disse que o ser humano sempre lgico? E justo? E se os donos desse trigo que est sobrando deixassem estragar uma parte para que os provveis compradores, passando fome, tivessem que pagar mais caro pelo trigo de que precisariam desesperadamente? Algum duvida que alguns homens possam agir assim? Ou ser que a histria da humanidade, que Voltaire tanto estudava, no tem exemplos suficientes para nos ensinar isso? Ou, tomando o segundo exemplo dado por Voltaire na citao acima, quem disse que um preceito universal que um pai de famlia deva ser senhor em sua casa? Voltaire no est olhando excessivamente para os costumes de sua poca e tornando-os parte de uma moral universal? Mas, voltando ao conceito de moral universal, sem necessariamente discutir quais seriam as aes morais, o filsofo corrobora a origem divina da moral no Dicionrio filosfico :
Quem nos concedeu o sentimento do justo e do injusto? Deus, que nos concedeu um crebro e uma cabea. Mas quando que a vossa razo vos ensina que h vcio e virtude? Quando nos ensina que dois mais dois so quatro. No h conhecimento inato pela mesma razo por que no h rvore que traga folhas e frutos ao sair da terra. Nada o que se chama inato, quer dizer, nada se desenvolve; mas, convm repeti-lo, Deus faznos nascer com rgos, os quais, medida que crescem, nos fazem sentir tudo o que a nossa espcie deve sentir para a conservao dessa mesma espcie. (VOLTAIRE, 1978c, p. 229).
Voltaire ratifica sua crena de que h um Deus criador, um Ser supremo que formou todas as coisas, inclusive o sentimento de justia que temos. Todavia, o filsofo no aceita que esta noo de moral seja inata, que ela j esteja numa suposta natureza espiritual anterior ao homem biolgico, mas ela seria desenvolvida ao longo da vida. Desta forma, podemos entender que haveria um conceito de moral universal anterior ao homem, que teria 88
sido criado por Deus, mas o conceito no inato na natureza humana. Vladimir Mota afirma que, em Voltaire,
...os homens no possuem princpios morais inatos, enquanto idias de justo e injusto desenvolvidas, impressas por Deus em seus crebros em algum momento do seu nascimento. Porm, receberam da divindade leis morais que fazem parte de sua constituio, de sua natureza. (MOTA, 2010, p. 107).
A metfora da rvore que no tem folhas e frutos ao sair da terra nos mostra que, para o filsofo, o homem no nasce com um conceito inato de moral, pronto, mas nasce com uma natureza que o levar a possuir um conceito universal de moral, com uma natureza que desenvolver uma moral, pois a crena no justo e no injusto uma necessidade absoluta, portanto um desenvolvimento da razo dada por Deus... (VOLTAIRE, 1978d, p. 319). J em A filosofia da histria , obra de 1765, portanto, escrita um ano antes de O filsofo ignorante, Voltaire diz que est provado portanto que a natureza por si s nos inspira idias teis que precedem todas as nossas reflexes. O mesmo ocorre na moral. (VOLTAIRE, 2007a, p. 63). Assim, parece que, neste texto, a opinio do filsofo um pouco diferente, pois, se nas citaes anteriores ele afirma que a moral desenvolvida com a razo, aqui a natureza nos d ideias que precedem as nossas reflexes, ou seja, seriam anteriores razo. Voltaire, que bebeu na fonte de John Locke (1632-1704) para contrariar a concepo de ideias inatas (Cf. VOLTAIRE, 1978d, p. 315), o combateu em um desdobramento a respeito do assunto, pois Locke, ao afirmar que o homem no tem ideias inatas, negou que haja uma moral universal. Neste ponto, interessante colocarmos os dois filsofos para dialogar, j que o patriarca de Ferney foi um forte defensor do empirismo, influenciado por Locke, mas a concluso a que ambos os filsofos chegaram acerca de uma moral universal antagnica. Como diz Vladimir Mota, sempre fiel a Locke, ao menos quanto perspectiva acerca da origem das idias, Voltaire defender a primazia da experincia na aquisio do conhecimento. (MOTA, 2010. p. 85). Comecemos, ento, citando Locke, em seu Ensaio sobre o entendimento humano, sobre a questo das ideias inatas:
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Os objectos externos fornecem mente as ideias das qualidades sensveis que so todas essas diferentes percepes por elas produzidas em ns; e a mente fornece ao entendimento as ideias das suas prprias operaes. Se fizermos uma reviso completa de todas estas ideias e dos seus diversos modos, combinaes e relaes, veremos que contm a totalidade das nossas ideias e que nada temos nas nossas mentes que no proceda de uma dessas duas vias. Examine cada qual os seus prprios pensamentos e penetre a fundo no seu entendimento e diga-me, depois, se alguma das ideias originais, que a tem, no so ideias de objectos dos seus sentidos ou de operaes da sua mente, consideradas com objetos da sua reflexo. (LOCKE, 1999, pp. 108-109). Locke comea explicando o processo de como uma ideia se forma. A nossa mente alimentada pelos objetos externos. Tais objetos abastecem a nossa mente com as suas qualidades sensveis, ou seja, com tudo aquilo que podemos perceber pelos nossos sentidos, por exemplo, quente, frio, vermelho, grande, pequeno, etc. E a mente, abastecida com essas informaes recebidas pelos sentidos, as transmite ao entendimento. E o entendimento, tendo todos esses ingredientes, faz suas operaes, combinaes, etc. Teramos, assim, em primeiro lugar o recebimento das informaes externas por meio dos sentidos e, em seguida, o processamento dessas mesmas informaes pelo nosso entendimento. Tudo o que o homem sabe, segundo Locke, no pode vir de outra fonte seno dessas duas, ou seja, do que os sentidos recebem dos objetos exteriores e do entendimento que processa e interpreta essas informaes. O filsofo convida cada pessoa a examinar a si mesma de maneira profunda, e tal anlise levaria o sujeito a concluir que no h qualquer ideia que no tenha sido produzida por esse processo. Vejamos mais do assunto nas palavras do filsofo:
Primeiro, os sentidos deixam entrar as ideias particulares e com elas como que abastecem um armrio ainda vazio; depois o esprito gradualmente vai-se familiarizando com elas, alojando-as na memria e dando-lhes nomes; por ltimo, faz sobre elas abstraces e, pouco a pouco, aprende a usar nomes gerais. (LOCKE, 1999, p. 39).
Veja o leitor que so os sentidos que permitem que as ideias se formem em uma pessoa, como vimos na citao anterior. Locke compara o ser humano a um armrio vazio, ou, pensando numa metfora semelhante, seramos algo como uma folha em branco. Aps 90
os sentidos abastecerem o homem com ideias, o indivduo, pouco a pouco, se acostuma com elas, e assim o homem vive, pensa, d nome s coisas, etc. As ideias se tornam parte do homem e o mesmo no percebe como elas se formam, pensando, assim, que elas so inatas. Locke demonstra mais um argumento contra as ideias inatas e tambm o porqu de muitos acreditarem na veracidade deste ponto de vista:
... tendo sido formados desta maneira, no podem mais tarde os homens, quando atingem a idade da reflexo, encontrar no seu esprito nada de mais antigo do que essas opinies que lhes foram ensinadas antes de a sua memria comear a registrar as prprias aces, ou algo de novo lhes aparecer; por tal motivo, no tm escrpulo em concluir que tais mximas, de cujo ensino no conservam recordao, foram naturalmente impressas no seu esprito pela mo de Deus, e por mais ningum. (LOCKE, 1999, p. 75).
Os homens aprenderiam, antes de atingirem capacidade de refletir, provavelmente na infncia, muitas verdades, muitas lies, coisas diversas. A expresso de Locke antes de a sua memria comear a registrar as prprias aes provavelmente indica isso, ou seja, se refere ao aprendizado que a pessoa tem em sua infncia, bem no incio de sua vida, fase essa da qual no ter muitas lembranas quando for adulto. Sendo assim, ao crescer, ao adquirir capacidade de raciocinar, mas sem lembrar o que viveu nos primeiros anos de sua vida, o homem concluiria que muitas coisas nas quais acredita so verdades inatas, dadas pelo prprio Deus. Em suma, o filsofo est afirmando que um dos motivos que levam os homens a crerem em verdades inatas seria a falta de memria, a falta de capacidade de nos lembrarmos das nossas primeiras impresses e ensinos. No havendo ideias inatas, o homem adquire princpios somente com o ensino, com a experincia, com a educao, o que Locke ratifica:
Mas eu gostaria que os partidrios do inatismo me dissessem, em termos definitivos, qual o efeito da educao e dos costumes. que, na verdade, s h uma alternativa: ou no podem apagar do esprito os princpios originrios, e, nesse caso, sendo eles os mesmos para toda a Humanidade, se encontram necessariamente em cada homem em particular, ou podem faz-lo, e, nessa hiptese, dever ser naqueles que menos sofreram a aco da educao e dos costumes, ou seja, as crianas e os iletrados, que mais facilmente haveremos de surpreend-los. E seja qual for a resposta que derem alternativa, certamente acabaro por reconhecer que qualquer
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Para quem defende que o homem recebe princpios inatos, anteriores experincia, o filsofo prope as seguintes alternativas: 1. Se esses princpios so inatos e no podem ser apagados, anulados, ignorados, ento haveria um consenso universal entre os homens no que se refere a tais ideias; 2. Se esses princpios so inatos e podem ser apagados, anulados, ignorados, ento aqueles que menos sofreram influncia do ambiente, da educao, devem ser os que mais manifestam esses princpios inatos, pois no teriam ainda sido influenciados pelo meio, pela sociedade, pelos costumes. Para Locke, qualquer das duas alternativas que se aceite se chega a concluses erradas: no h consenso universal sobre as supostas ideias inatas e tambm no se v efeitos de ideias inatas nas pessoas que menos foram influenciadas pela cultura. Logo, a educao, os costumes, a religio e tudo o que o homem recebe de influncia do seu ambiente que forma suas ideias. Voltaire expressa a mesma opinio, agora em suas Cartas inglesas:
Ensina-se a honestidade aos homens, seno poucos chegariam a t-la. Deixai vosso filho, desde a infncia, agarrar tudo que lhe caia nas mos: aos quinze anos roubar pelas estradas. Louvai-o por ter mentido: tornarse- uma testemunha falsa. Vangloriai-o por sua concupiscncia: certamente ser um debochado. Ensina-se tudo aos homens: a virtude e a religio. (VOLTAIRE, 1978a, p. 54).
Ou seja, para quem acha que a moral inata, Voltaire afirma que a experincia da educao demonstra o contrrio, j que a criana, se no for ensinada a fazer o certo, aprender a fazer coisas terrveis, para si e para o prximo. Mesmo aquilo que Voltaire defendia ser universal, como a moral e a crena em Deus, no so para ele noes inatas, mas adquiridas por meio do ensino, da razo. Isso concorda com Locke, pois o filsofo entende que no possvel sustentar, analisando os fatos, que qualquer coisa que o homem creia seja anterior experincia. a educao, os costumes, que ajudam a formar no homem as suas ideias. Voltaire corrobora, no verbete conscincia, do seu Dicionrio filosfico:
O homem nasceu sem princpio algum, mas com a faculdade de receber todos. Seu temperamento torn-lo- mais inclinado crueldade ou doura; seu entendimento f-lo- compreender um dia que o quadrado de
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doze cento e quarenta e quatro, que no se deve fazer aos outros aquilo que no se quer que lhe seja feito, porm no compreender por si mesmo estas verdades na sua infncia; no entender a primeira e no sentir a segunda. (VOLTAIRE, 1978c, p. 125).
Perceba o leitor que, para o autor do Cndido , tanto a matemtica como a moral se aprendem por meio da razo, do raciocnio, do aprendizado. No haveria, portanto, uma dicotomia entre coisas santas e coisas profanas, tudo seria adquirido por meio do aprendizado. O homem no carrega noo alguma dentro de si antes do seu nascimento, mas nasce com o potencial de aprender, de receber princpios, entendimento, moral. No uma moral inata que leva o homem a aprender o princpio universal de que no se deve fazer aos outros aquilo que no se quer que lhe seja feito, mas sim o entendimento, o aprendizado, a razo. Se, por um lado, Voltaire discordou de Locke quanto existncia de uma moral universal, por outro, ele concordou que os princpios morais no so inatos. Brando confirma ao dizer que as noes morais no so propriamente idias inatas, contedos presentes na mente do homem desde sempre, mas potencialidades que se desenvolvem com o tempo. (BRANDO, 2008, p. 88). Continuemos o dilogo entre os dois filsofos agora acerca da moral universal, ponto em que Voltaire vai discordar de Locke:
Na verdade, penso que ser difcil pretender, para qualquer regra moral, uma aceitao to geral e pronta como a da seguinte proposio: O que , . Ou que possua to manifesta veracidade como a afirmao que nos diz ser impossvel que uma mesma coisa seja e no seja. (LOCKE, 1999, p. 53).
Ao contrrio de Voltaire, Locke rejeita a afirmao de que haja uma moral universal, pois no haveria nenhum princpio moral aceito universalmente, por todos os homens, em todas as pocas. Locke utiliza este argumento para combater a concepo de ideias inatas, como vemos:
A grande variedade de opinies relativas s regras morais decorre naturalmente da grande variedade de concepes da felicidade que so propostas ao homem. Ora, tal no se verificaria se essas regras fossem inatas e gravadas diretamente na nossa alma pela mo de Deus. (LOCKE, 1999, p. 57).
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Se em Voltaire a moral dada por Deus para que o homem tenha um equilbrio em sua natureza, j que a moral contrabalancearia as paixes, em Locke, nesta citao, a moral resultado da concepo de felicidade proposta ao homem, ou seja, a moral seria um meio para que o homem atingisse a felicidade. Para Locke, h uma variedade de opinies relativas moral, enquanto para Voltaire a moral universal. Os dois filsofos tiraram concluses diferentes ao contemplarem a histria da humanidade. Locke corrobora a sua concluso ao analisar a histria:
Quem percorrer a Histria da Humanidade e olhar, no seu conjunto, todas as naes que hoje cobrem a Terra, para a estudar o seu comportamento, verificar por si mesmo que no existem normas de moral universais, salvo aquelas cuja observncia absolutamente indispensvel para a sobrevivncia das sociedades; essas mesmas, sem embargo, so desrespeitadas pelos grupos sociais nas suas relaes com outros grupos estranhos. (LOCKE, 1999, p. 61).
Perceba o leitor que Locke at admite uma exceo sua regra, que seria a existncia de possveis regras universais necessrias sobrevivncia de um determinado grupo, ou seja, novamente temos aqui a moral como um meio. Na citao anterior, as diferenas morais seriam, em Locke, resultado das diferentes concepes de felicidade, o que faria da moral um meio para o homem ser feliz. Aqui, o filsofo entende que, se em algum momento houver algum princpio moral universal, apenas para a sobrevivncia de um determinado grupo. Ainda assim, o tal grupo s aplicaria a moral entre si, ignorando-a com os que no pertencem ao grupo. Para o filsofo, isto provaria que no uma moral universal. Locke refora o seu argumento contrrio moral universal:
Alis, no se v como poderiam os homens transgredir essas regras, sem cuidados e com perfeita serenidade, se elas fossem inatas e estivessem estampadas nos seus espritos. Repare-se, por exemplo, no comportamento de um exrcito que saqueia uma cidade: nem observncia de princpios morais, nem rebates de conscincia se vislumbram nos desmandos cometidos; roubos, assassnios, raptos so a prtica alegre de homens que se sabem livres de punio e censura. E no houve naes, mesmo das mais civilizadas, onde o abandono das crianas, para que morressem de fome ou fossem devoradas pelas feras, no fosse prtica corrente e aceite? Em algumas regies no se usa ainda enterrar vivos os recm-nascidos juntamente com as mes que morreram de parto? Ou no
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se matam porque um astrlogo qualquer as declarou nascidas sob maus astros? E no h outros lugares, onde os filhos abandonam ou matam os pais que a idade tornou inteis, sem nenhum remorso? (LOCKE, 1999, p. 59).
Locke d exemplos de como os homens quebram regras morais serenamente, mais uma evidncia para ele de que no h uma moral universal. O baixo nvel a que os soldados desceriam nas guerras, saqueando, sequestrando, matando, demonstraria que a moral relativa a cada povo, e que, se houvesse uma moral impressa nos espritos de todos os homens, tais coisas terrveis no poderiam ocorrer. Veja o leitor que Locke diz que tais aes so prtica alegre de homens que se sabem livres de punio e censura. O filsofo acredita que os saqueadores roubam, sequestram e matam com alegria e serenidade, ou seja, esto em paz consigo mesmos porque no sero punidos. Vejamos agora a resposta que Voltaire d a Locke, citando exemplos parecidos de aes cruis que ocorrem nas guerras, em sua obra O filsofo ignorante:
Vencedores comeram os escravos que conquistaram pela guerra. Acreditaram que praticavam uma ao muito justa; acreditaram ter sobre eles o direito de vida e de morte e como possuam poucas iguarias para suas mesas, acreditaram que lhes era permitido nutrir-se com o fruto de sua vitria. Nesse ponto foram mais justos do que os triunfadores romanos que mandavam estrangular, sem nenhum fruto, os prncipes escravos que haviam acorrentado a seus carros triunfais. Os romanos e os selvagens tinham uma falsa idia da justia, admito, mas, enfim, uns e outros acreditavam agir justamente. (VOLTAIRE, 1978d, p. 320).
Como vemos, o filsofo no est combatendo exatamente a mesma referncia de Locke, mas est dando, de maneira semelhante, exemplos de prticas abominveis que ocorrem nas guerras, se dirigindo diretamente a Locke no contexto da citao. Locke cita, por um lado, roubo, sequestro e homicdio, e Voltaire, por outro, fala da prtica de se alimentar dos povos vencidos. Para Locke, os homens agiam assim tranquilamente, menosprezando totalmente a moral, enquanto para Voltaire os mesmos homens acreditavam agir com justia, ainda que estivessem enganados. Mesmo a atitude mais estpida, para Voltaire, seria praticada pelos homens com o senso de estarem agindo com justia. O ponto de discrdia entre Locke e Voltaire, portanto, no est nas aes, mas na motivao, no sentimento ntimo dos homens. Para sustentar a moral universal, Voltaire 95
precisou justificar ou pelo menos suavizar os atos de crueldade dos homens ao defender que, ao menos, eles tinham boas intenes. Todavia, parece que a opinio de Voltaire sobre o assunto nem sempre foi assim, como est expressa em O filsofo ignorante, de 1766, pois no seu Dicionrio filosfico , escrito a partir de 1752, embora publicado em 1764, ele diz o seguinte, no verbete conscincia:
Locke mostra o exemplo dos selvagens que matam e comem sem nenhum remorso na conscincia, e soldados cristos bem educados, que, numa cidade tomada de assalto, pilham, enganam, violam, no somente sem remorso, mas com um prazer encantador, com honra e glria, com aplausos de todos os seus companheiros. Seguramente, nos massacres da noite de So Bartolomeu, e nos auto-def, nos santos atos-de-F da Inquisio, a conscincia de nenhum assassino jamais se reprovou ter massacrado homens, mulheres, crianas; ter feito gritar, desmaiar, morrer nas torturas os infelizes que tinham como nico crime celebrar a Pscoa de modo diferente do dos inquisidores. (VOLTAIRE, 1978c, p. 125).
O leitor percebe que nesta referncia Voltaire no combate Locke quando este defende que os homens praticam maldades com prazer, sem nenhum peso na conscincia. Aqui o autor do Cndido no est preocupado em justificar os homens ou suavizar os seus atos de crueldade em defesa da moral universal. Pelo contrrio, ele parece querer reforar o que Locke disse, dando como exemplo o massacre da Noite de So Bartolomeu, dizendo, ironicamente, que o motivo de tantas mortes teria sido religioso, teria sido a maneira de celebrar a Pscoa. Ou seja, por algo supostamente banal os homens massacrariam uns aos outros. Talvez o fato de Voltaire ter percebido que o argumento de Locke afetaria a sua ideia de moral universal o tenha feito argumentar, anos depois, de maneira diferente. Voltando citao feita em O filsofo ignorante, onde Voltaire combate o argumento de Locke, Beeson e Cronk comentam o seguinte:
O objetivo do prximo argumento de Le Philosophe ignorant este: Voltaire comea por apontar suas armas para o argumento de Locke segundo o qual a adoo de diferentes padres em vrias sociedades mostra a relatividade dos valores morais. Para Voltaire, h princpios comuns a todas as culturas, em particular o conceito de justia. Aqueles que indicam o que h de aparentemente injusto, cruel ou brbaro no comportamento de homens em circunstncias diferentes falham em levar
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em conta que os prprios perpetradores sentem-se justificados naquilo que fazem: os soldados, por exemplo, massacram pessoas que veem como inimigas. Uma reviso mais profunda de muitas autoridades, que dessa vez cobre uma gama extensa de culturas, mostra que todas se alinham essencialmente com o mesmo conjunto de valores. (BEESON; CRONK, 2010, p. 91).
Assim, segundo a interpretao do filsofo, as atitudes cruis executadas nas guerras no seriam feitas por maldade ou por desprezo moral, mas com um sentimento de justia da parte dos executores. Sem querer tomar o partido de um ou de outro filsofo na questo, repare o leitor num trecho da citao de Locke:
...nem observncia de princpios morais, nem rebates de conscincia se vislumbram nos desmandos cometidos; roubos, assassnios, raptos so a prtica alegre de homens que se sabem livres de punio e censura. (LOCKE, 1999, p. 59).
O filsofo afirmou no apenas que tais homens agiam com perfeita serenidade, como tambm sabiam que no seriam punidos. Ora, no foi o mesmo Voltaire quem cansou de dizer que os homens precisam crer numa punio ps-morte como freio para os seus crimes? Isso porque, se no crerem que sero punidos por Deus, podero cometer diversos crimes se no temerem a justia humana? S como exemplo, esta ideia aparece em obras importantes como o Dicionrio filosfico (Cf. VOLTAIRE, 1978c, p. 221) e tambm no conto A histria de Jenni, onde o atesmo e a ideia de que no h um Deus que pune e recompensa, levaria as pessoas a viverem desregradamente (Cf. VOLTAIRE, 2005, p. 643). Portanto, Voltaire no est dando razo a Locke, ainda que sem querer? Por um lado Voltaire afirma que os homens cometiam barbaridades acreditando estar agindo justamente, mas por outro lado defende a ideia de que o ser humano precisa crer em uma punio ps-morte contra seus crimes secretos. Sendo assim, os crimes no seriam cometidos com este senso de justia de que Voltaire fala, pois seno no haveria necessidade de temerem uma punio ps-morte. Afinal, se os homens acreditavam estar agindo justamente, por que temeriam um castigo depois da morte? Se acreditavam agir justamente, por que Voltaire defende a doutrina do inferno como freio para os crimes? Ou uma coisa ou outra: 1. ou os homens cometem barbaridades sabendo que esto agindo injustamente, e neste caso necessitariam, pelo critrio de Voltaire, acreditar numa punio 97
ps-morte para no cometerem barbaridades, ou 2. Os homens cometem barbaridades crendo agir com justia, e neste caso no haveria eficcia na doutrina da punio divina ps-morte, pois quem cr agir justamente no teme punio divina. Voltaire, ao contrrio, talvez no tenha percebido a contradio em defender estas duas ideias ao mesmo tempo. O autor do Cndido acreditava mesmo que os homens cometem barbaridades com senso de justia no ntimo ou foi o nico argumento que encontrou para rebater Locke? Que o leitor decida.
As sees a seguir abordaro a viso de Voltaire sobre a relao de Deus com o mundo. Existe uma relao? Deus interfere em sua obra? H milagres? A posio do filsofo a respeito da questo foi a mesma durante toda a sua vida? Trataremos da abordagem do patriarca de Ferney ao problema do mal e do sofrimento humano e sua relao com a existncia de um Deus bom e onipotente. possvel resolver esta questo?
Um dos pontos mais importantes no debate sobre a relao do Deus de Voltaire com o mundo o conhecido problema do mal e do sofrimento humano. Afinal, se Deus existe, bom e onipotente, por que os homens sofrem tanto? O problema no passou despercebido por Voltaire e o filsofo tenta resolver a questo sem negar a existncia de Deus. O leitor perceber que o assunto aparece em um bom nmero de obras do filsofo, ocupando sua mente em diferentes momentos de sua vida, o que indica que a questo nunca deixou de incomod-lo. Vejamos ento o patriarca de Ferney abordando a questo em seu Tratado de metafsica:
Com respeito s crticas de injustia e de crueldade endereadas a Deus, respondo primeiramente que, supondo-se que haja um mal moral (o que me parece uma quimera), parece-me to impossvel explic-lo pelo sistema da matria como por aquele de Deus. Respondo, em seguida, que
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os nicos ideais de justia que temos so aqueles tomados de toda ao til sociedade e conformes s leis estabelecidas por ns para o bem comum. Ora, a idia de justia, sendo somente uma idia da relao homem a homem, no pode ter analogia alguma com Deus. to absurdo, nesse sentido, dizer que Deus justo ou injusto quanto dizer que azul ou quadrado. (VOLTAIRE, 1978b, p. 67).
O filsofo tenta resolver o problema do sofrimento humano relativizando o mal, fazendo-o ser algo meramente relacionado s relaes humanas, sem qualquer carter absoluto. Ele reconhece, todavia, que, negando ou afirmando a existncia de Deus, no seria possvel explicar o porqu do mal existir. O bem, o mal, a justia e a injustia, porm, seriam apenas nomes que damos quilo que til sociedade, s relaes interpessoais, seriam apenas termos que se referem ao nosso bem-estar. Desta forma, o sofrimento humano, o mal, a injustia, ao serem permitidos por Deus, no poderiam ser usados como fatos para se censurar o Ser supremo, j que todos os nossos infortnios seriam apenas infortnios para ns, seriam injustias para ns, no para Deus. E, sarcasticamente, o filsofo afirma que atribuir tais adjetos a Deus, como justo e injusto, seria como dar a ele cores ou formas geomtricas, o que seria tolice, j que estaramos julgando a Deus segundo ideias, critrios e padres humanos. O autor do Cndido tambm trata do problema nos Elementos da filosofia de Newton e, aps citar o argumento atesta, de que no h um Deus devido ao sofrimento humano, responde o seguinte:
Responde-se a este ateu: a palavra bom, o termo bem-estar, so equvocos. O que mal em relao a vs bom na ordem geral. A idia de um ser infinito, todo-poderoso, todo inteligente e presente em todos os lugares, no revolta vossa razo. Negareis um Deus por terdes tido um acesso de febre? Dizei que ele vos devia o bem-estar. Que razo tendes para pensar assim? Por que ele vos devia o bem-estar? Que tratado havia feito convosco? S vos falta ento ser sempre feliz na vida para reconhecer um Deus? Vs, que no podeis ser perfeito em nada, por que pretendeis ser perfeitamente feliz? Mas suponho que, numa felicidade contnua de cem anos, tendes uma dor de cabea: este momento de sofrimento vos bastaria para negar um Criador? No parece que isto possa acontecer. Ora, se um quarto de hora de sofrimento no vos incomoda, por que duas horas, um dia, um ano de tormento vos faro rejeitar a idia de um arteso supremo e universal? (VOLTAIRE, 1996, p. 28).
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Veja o leitor que, se na citao anterior o filsofo relativiza o mal, aqui ele relativa o bem, numa estratgia semelhante de fazer aquilo que ns assim chamamos ser algo apenas relativo, relacionado a ns, s nossas relaes e bem-estar. Note o leitor que Voltaire afirma que o que mal em relao a vs bom na ordem geral, uma demonstrao de que, nesse momento de sua vida, o filsofo tenta se consolar com a ideia de que, se o particular de um indivduo no vai bem, a ordem geral do universo no afetada. O filsofo ainda desafia o seu interlocutor com perguntas retricas, dizendo: Deus te deve alguma coisa? Ele fez algum trato com voc em te dar sade, bem-estar? Para reconhecer a Deus voc precisa ser feliz? Assim, tudo o que incomoda ao homem, que ele no tem e que o leva a questionar a existncia de Deus, usado pelo filsofo como algo que o homem deseja sem ter direito algum. Note o leitor tambm que Voltaire usa uma estratgia psicolgica em seu argumento (perdoe o nosso anacronismo), que perguntar ao seu interlocutor: se voc for feliz por 100 anos e tiver uma dor de cabea, isso suficiente para negar um Criador? bem provvel que um nico sofrimento em 100 anos de felicidade, ao ser imaginado pelo oponente de Voltaire no debate, no o levaria a pensar em um problema do sofrimento e do mal no mundo e, assim, no haveria razo para se negar a existncia de Deus. E, partindo desse provvel sentimento do seu oponente, de que um nico sofrimento durante uma vida de felicidade no o incomodaria, Voltaire vai aumentando, aos poucos, os dias de sofrimento de um homem, com o intuito de demonstrar que tambm no seria plausvel negar a Deus pelo que sofremos na vida. Ou seja, se no racional negar a existncia de Deus em uma vida de plena felicidade, com uma pequena exceo, por que seria racional neg-lo se eu sofrer mais do que um dia, um ms ou um ano? Aps tratar bem e mal como coisas que tm significado apenas nas relaes humanas, sendo, assim, relativos nossa felicidade, o filsofo demonstra a insignificncia do homem diante de Deus com uma metfora curiosa, numa carta ao prncipe real da Prssia, datada de 26 de agosto de 1736:
Os camondongos que habitam pequenos buracos num imenso edifcio no sabem, nem se o edifcio eterno, nem quem foi o arquitecto, nem porque o arquitecto o construiu. Tratam de conservar a vida, de povoar os buracos e de escapar aos animais destruidores que os perseguem. Somos os camondongos, e o divino arquitecto que construiu este universo no
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revelou ainda, que eu saiba, seu segredo a nenhum de ns. (VOLTAIRE, 1970, p. 346).
O filsofo, com tal metfora, tenta demonstrar a insignificncia que o homem teria perante Deus. O camundongo nada saberia sobre a construo da sua morada, sobre quem a construiu ou a razo de ter sido construda. Ele apenas vive, se multiplica, foge dos perigos da vida. Nada mais faz alm do que viver conforme suas necessidades. O homem, de modo semelhante, nada saberia sobre Deus, sobre o propsito da vida, da natureza, e apenas seguiria vivendo sua vida, se reproduzindo, fugindo dos perigos da vida, e envolto nas trevas de sua ignorncia. Assim, ainda que a citao acima no esteja falando do sofrimento humano, a pequenez do homem diante de Deus, do seu propsito, sua ignorncia sobre o que a divindade teria pensado, obrigam o indivduo a se calar e suspender o seu juzo. Maria das Graas de Souza comenta sobre uma metfora voltairiana semelhante citada acima:
Que relaes o homem pode estabelecer com este ser supremo que sua explicao ltima? Quase nenhuma. S nos possvel reconhecer a sua existncia. Tal ser supremo ocupa-se desta sua criatura? Existe uma providncia? Para responder a esta questo bastaria lembrar a imagem tantas vezes retomada nos textos voltaireanos que compara os homens aos ratos que habitam o poro de um navio. Que importncia teriam esses ratos no cotidiano do capito? (SOUZA, 1983, p. 29).
Novamente a ideia fazer o homem um ser insignificante perante Deus. O criador do universo no estaria preocupado com a sorte dos homens aqui neste planeta, da mesma forma que o capito do navio, em s conscincia, no estaria preocupado com os ratos que habitam o seu poro. Como diz Rodrigo Brando, ... o Deus de Voltaire o velho deus frio e distante dos filsofos, criador, mas distante de sua obra e despreocupado com o seu andamento. (BRANDO, 2008, pp. 19-20). O Deus do autor do Cndido , assim, no se relacionaria com o homem, estaria distante dele, no interferindo em seus problemas, em seu sofrimento, em sua vida. Como mais uma demonstrao de que o Deus de Voltaire no interfere no mundo, vejamos o que ele fala acerca de milagres, em suas Cartas inglesas:
Quem no iluminado pela f encara um milagre unicamente como uma contraveno s leis eternas da natureza. No lhe parece possvel que
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Deus altere sua prpria obra; sabe que tudo no universo est ligado por elos que nada pode romper. Sabe que, sendo Deus imutvel, suas leis tambm o so; e que uma roda da grande mquina no pode parar sem que a natureza inteira sofra com isso. (VOLTAIRE, 2007a, p. 151).
No incomum o leitor encontrar, nos textos de Voltaire, a metfora do universo como uma grande mquina, onde todas as suas peas estariam interligadas, e uma no poderia sofrer modificao em seu movimento sem afetar toda a mquina. A natureza, o planeta, o universo, seriam esta mquina criada por Deus, e Ele, como criador da mquina, no alteraria o trabalho da sua mquina no meio do seu funcionamento. O milagre, assim, seria contrrio s leis da natureza, que so eternas com Deus e, por isso, no poderiam sofrer qualquer interferncia, nem mesmo de Deus. Portanto, a interferncia de Deus na vida humana, o milagre, a providncia, estariam descartados. O filsofo corrobora sua viso no Dicionrio filosfico, no verbete milagres:
Por que razo faria Deus um milagre? Para satisfazer determinado desgnio acerca de alguns seres! Deus diria, portanto: No logrei preencher mediante o estabelecimento do universo, mediante os meus decretos divinos, mediante as minhas leis eternas, um certo desgnio; vou mudar as minhas idias eternas, as minhas leis imutveis, para tratar de executar o que no consegui com elas! Estaramos perante uma confisso de fraqueza e no de poder. Eis o que seria, parece-nos, a mais inconcebvel das contradies em Deus. Assim, pois, ousar supor a prtica de milagres por Deus realmente insult-lo... (VOLTAIRE, 1978c, p. 248).
A ideia de milagre seria, assim, um contrassenso, pois seria como se Deus tivesse deixado de fazer algo quando criou todas as coisas para fazer no percurso da histria. Era como se Deus estivesse deixando para depois o que poderia ter feito duma vez. O filsofo no concebia que o criador de todas as coisas tivesse propsitos individuais com o homem a ponto de interferir em sua vida. Em sua concepo racional, Voltaire s aceitava um Deus que tivesse criado suas leis universais e eternas e nunca mais interferisse em absolutamente nada, seja na vida humana ou no universo como um todo. Seria mesmo uma ofensa a Deus pensar em sua interferncia na vida, pois isso seria um sinal de fraqueza, uma evidncia de que Deus estaria interferindo naquilo que criou, como se o relojoeiro precisasse, a todo o momento, consertar o seu relgio, o que demonstraria a sua limitao e incompetncia.
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O filsofo tambm trabalha com o problema do sofrimento humano em alguns de seus contos, dos quais destacamos dois: Zadig , escrito em 1747, e Cndido, escrito em 1759. Nos dois contos o leitor poder notar como Voltaire trabalha com a questo do sofrimento do homem e comparar as semelhanas e diferenas que aparecem nas duas obras em relao ao problema. Zadig era um jovem rico, moderado, sbio, justo, honesto, virtuoso, mas sofre uma srie de infortnios em sua vida. Sua amada se casou com um homem perverso, que tentou rapt-la, apesar de Zadig t-la defendido, e tambm se separou da moa a quem conheceu a seguir (Cf. VOLTAIRE, 2005, pp. 86, 89). Ele preso injustamente, sob a acusao de ter roubado a cadela e o cavalo da rainha e do rei, embora depois tenha sido revelada a sua inocncia (Cf. VOLTAIRE, 2005, pp. 98, 100). Aps cair nas graas do rei e da rainha, a rainha comea a sentir afeto por Zadig, e ele por ela, e o jovem virtuoso luta contra esse sentimento. Mesmo assim, o rei descobre e decide matar a ambos. Assim, mesmo sendo virtuoso e agindo sempre corretamente, Zadig sofre um infortnio atrs do outro e exclama:
Que coisa ento a vida humana? De que serviste, virtude? Duas mulheres me enganaram indignamente; a terceira, que no culpada, e mais bela que as outras, vai perder a vida. Todo o bem que pratiquei foi sempre para mim uma fonte de maldies, e s fui elevado ao cmulo da grandeza para tombar no mais horrvel precipcio do infortnio. Se eu tivesse sido mau como tantos outros, seria hoje feliz como eles. (VOLTAIRE, 2005, p. 108).
Com esta frase, Voltaire trata do problema da relao entre virtude e benefcio, ou seja, o filsofo expressa a angstia do homem justo, que faz o bem, mas recebe como prmio o sofrimento. Este um dos problemas que muitos homens justos e virtuosos encontram, a desproporo entre as suas boas aes e o que colhem da vida. A tentao do homem justo pensar que, alm da virtude no lhe servir de nada, o contrrio dela, isto , o mal, poderia ter lhe dado vantagens na vida. Zadig, se no tivesse agido corretamente, poderia estar feliz como os homens maus que ele encontrou no caminho da vida. Rodrigo Brando comenta sobre este aspecto do conto:
O conto [Zadig] est permeado pelas mais distintas preocupaes do autor, mas seu tema principal emerge das peripcias por que passa Zadig, pondo em questo a difcil conciliao entre a ordem da natureza e a ao
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humana, entre a providncia e a liberdade do homem. O virtuoso Zadig sofre num mundo feito para os maus, ele parece ser apenas um joguete nas mos de uma providncia que favorece sempre os patifes. Quando achamos que sua inteligncia e sagacidade, seu cultivo da experincia e sua justia sero recompensados, logo ele sofre nova desventura. (BRANDO, 2008, p. 115).
A expresso de Brando, dizendo que Zadig sofre num mundo feito para os maus, demonstra que, talvez, um dos propsitos de Voltaire seja mostrar que o mundo, tal como , parece ser algo bastante contraditrio, j que ele mesmo defende, como vimos nesta dissertao, que h um Deus que estabeleceu leis naturais e deu uma moral ao homem, mas, ao mesmo tempo, o justo sofre e o homem mau triunfa. Observando o problema, Maria das Graas de Souza se pergunta se o mundo-relgio de Voltaire no est desregulado ou enlouquecido. (SOUZA, 1983, p. 133). Ao mesmo tempo em que o filsofo defende a ordem estabelecida por Deus na natureza, o que inclui o homem, ele faz a vida humana parecer uma loucura, o planeta Terra um lugar onde a justia no impera, ao contrrio, o homem perverso seria recompensado com a felicidade. Esta ideia aparece novamente no conto, pois Zadig foge para o Egito e, ao defender uma mulher que era espancada, mata o homem violento, o que lhe rende a escravido pelo homicdio cometido. Todavia, por sua sabedoria, ganha a confiana e amizade do seu senhor. Depois, Zadig encontra um rabe ladro que se julgava o mais feliz de todos os homens (Cf. VOLTAIRE, 2005, p.123). E, aps tudo dar errado a Zadig, escapou-lhe enfim murmurar contra a Providncia, e foi tentado a crer que tudo era governado por um destino cruel que oprimia os bons... (VOLTAIRE, 2005, p. 136). Assim, percebemos que a tentao do homem justo em entender que h um destino que favorece os maus tema presente no conto, pois, apesar de justo, Zadig sempre se d mal. Todavia, o conto apresenta algumas tentativas racionais de explicar o sofrimento humano, como vemos a seguir:
[Zadig] admirava esses vastos globos de luz que no parecem a nossos olhos mais que fracas centelhas, ao passo que a Terra, em verdade apenas um imperceptvel ponto na natureza, afigura-se nossa cupidez uma coisa to grande e nobre. Via ento os homens tais como so na realidade: insetos a se entredevorarem num pequeno tomo de lama. Essa imagem verdadeira parecia aniquilar suas desventuras, retraando-lhe o nada da sua existncia e a de Babilnia. Sua alma arrebatava-se at o infinito e contemplava, liberta dos sentidos, a imutvel ordem do
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universo. Mas quando, em seguida, de volta a si mesmo e penetrando de novo em seu corao, pensava em Astartia sacrificada por sua causa, o universo desaparecia a seus olhos, e ele apenas via, em toda a natureza, Astartia moribunda e Zadig desgraado. (VOLTAIRE, 2005, p. 108).
O filsofo tenta apresentar uma soluo para o problema, mas vemos que ela no consola o homem em seu sofrimento. Para entender o mal particular, o homem teria que olhar para o todo, para a ordem geral que existe no universo. Ao ver o todo, o homem contemplaria que a Terra apenas um pequeno e imperceptvel planeta em relao ao universo. H inmeros planetas espalhados no espao e o nosso apenas mais um pequeno ponto. E, dentro deste pequeno ponto quase insignificante, h homens que causam sofrimento uns aos outros, mas a realidade desses homens tambm insignificante em comparao com o todo, com a ordem geral, com o universo, sendo como insetos que se devoram entre si. Quase como um platnico, Voltaire coloca o seu personagem principal numa situao em que sua alma se encontra liberta dos sentidos, situao essa que lhe permitiu conhecer a verdade, vendo o todo, a ordem geral do universo. Ao contemplar tudo isso, ele percebe que o homem insignificante e que seu sofrimento algo como nada perante as leis eternas da natureza. A Terra no passaria de um pequeno tomo de lama. Rodrigo Brando confirma, ao afirmar que ao olhar para os cus, no entanto, Zadig reconhece grandeza e ordem, a natureza d testemunho contrrio quele que prova com suas infelicidades. (BRANDO, 2008, p. 116). Todavia, perceba o leitor que, ao voltar a si, Zadig se v em meio ao seu intenso sofrimento, longe de sua amada, em desgraa, o que nos d a entender que, embora o homem possa entender que seja possvel, talvez, compreender o sofrimento humano como algo insignificante perante a ordem geral do universo, isso no alivia o seu sofrimento. Ou seja, saber que diante da ordem geral da natureza o meu sofrimento pouco importa no me consola muito (Cf. BRANDO, 2008, pp. 119-120). A tentativa de explicar o problema do sofrimento racionalmente continua:
Convieram [Zadig, um eremita e um filsofo], na conversao, em que as coisas deste mundo no marchavam sempre ao agrado dos mais sensatos. O eremita sustentava que no se conheciam os caminhos da Providncia, e que os homens faziam mal em julgar um todo de que s percebiam a mais nfima parte. (VOLTAIRE, 2005, p. 139).
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Embora os trs personagens estivessem de acordo que o mundo no andasse de uma forma muito adequada, o eremita aparece para sustentar a opinio de que o homem no conhece os caminhos da Providncia, e que no deveramos julgar o todo se conhecemos apenas a parte. O eremita, todavia, agia estranhamente. Roubou uma bacia de ouro de algum que o recebeu bem em sua casa, deu-a a um homem que o tratou muito mal e incendiou a casa de outro homem que foi muito hospitaleiro com ele. Alm disso, assassinou o sobrinho de uma mulher e disse a Zadig:
Pois fica sabendo que, debaixo das runas dessa casa que a Providncia incendiou, o proprietrio encontrou um tesouro imenso; e bom que saibas que esse jovem, a quem a Providncia torceu o pescoo, teria assassinado a sua tia dentro de um ano, e a ti daqui a dois anos. (VOLTAIRE, 2005, p. 140).
O eremita, na verdade, era um anjo, que veio esclarecer Zadig sobre o destino. Veja o leitor que, por trs dos absurdos das aes do eremita-anjo, existe um propsito divino. Os males causados pela Providncia resultaram em bem. Se no houvesse a revelao do anjo, Zadig no saberia o porqu daqueles males terem acontecido e continuaria achando tudo absurdo. O dilogo continua e o anjo, chamado Jesrad, diz o seguinte:
- Os maus respondeu Jesrad so sempre infelizes: servem para experimentar um pequeno nmero de justos espalhados sobre a Terra, e no h mal de que no provenha um bem. - Mas, disse Zadig e se s houvesse bem, e nenhum mal? - Ento replicou Jesrad este mundo seria outro; o encadeamento dos fatos obedeceria a uma outra ordem de sabedoria; e essa outra ordem, que seria perfeita, s pode existir na morada eterna do Ser Supremo, de quem o mal no pode aproximar-se. Criou Ele milhes de mundos, nenhum dos quais pode assemelhar ao outro. Essa imensa variedade um atributo de seu poder imenso. (VOLTAIRE, 2005, p. 141).
O anjo contraria a opinio expressa por Zadig no conto, de que os maus so sempre felizes. Eles teriam o desgnio de provar os homens justos, o que aconteceu com Zadig durante sua infeliz jornada. O jovem virtuoso no fica satisfeito com a resposta e pergunta ao anjo como seria se houvesse s bem e nenhum mal. O que fica implcito que Voltaire quer dizer: no seria melhor assim? Ao passo que o anjo d a sua rplica e, quando Zadig ia fazer mais questionamentos, o anjo voa e lhe manda ir para Babilnia. Zadig se torna rei da
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Babilnia, faz o bem a muita gente com quem esteve em suas aventuras e viveu no mais belo sculo da Terra, com justia e amor (Cf. VOLTAIRE, 2005, pp. 144-145). O que entender desse final? Houve um final feliz? Parece que sim. A explicao do anjo plausvel? Talvez. A pergunta de Zadig sobre a existncia de um mundo onde no houvesse nenhum mal, que na verdade representa a dvida do homem que reflete, no tem uma resposta satisfatria. A forma como o anjo se retira quando Zadig vai fazer mais perguntas talvez demonstre que no cabe ao homem saber muita coisa e que Deus no satisfar as suas curiosidades. O fato de Zadig ter terminado feliz, ainda encontrando e fazendo bem a muita gente com quem se encontrou em suas infelizes aventuras, talvez demonstre que o anjo tenha dado uma explicao razovel e que, ao final de tudo, o mal realmente culmine em bem para os homens virtuosos. J no Cndido temos uma aventura semelhante de Zadig, j que o personagem principal da histria tambm sofre uma srie de infortnios em sua vida, mesmo sem merec-los. O alvo da crtica de Voltaire no Cndido, todavia, o otimismo de Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), do qual far caricatura neste conto. Por isso, veremos que, se em Zadig aparece uma soluo razovel para o problema do sofrimento humano, no Cndido a zombaria do filsofo contra qualquer soluo otimista demonstra a ausncia de tentativa para resolver o problema. A crtica, como veremos a seguir, ao melhor dos mundos possveis defendido por Leibniz. Para entendermos melhor a crtica do patriarca de Ferney a este filsofo, citaremos alguns de seus comentrios em sua obra Discursos de metafsica, fazendo, com isso, a comparao com a crtica que aparece no Cndido. Comecemos, ento:
De forma alguma poderei tambm aprovar a opinio de alguns modernos que ousadamente sustentam que aquilo que Deus faz no possui toda perfeio possvel e que Deus poderia ter agido muito melhor (...) agir imperfeitamente agir com menos perfeio do que se teria podido. desdizer a obra de um arquiteto mostrar que poderia faz-la melhor. (LEIBNIZ, 2004, p. 6).
A essncia do argumento de Leibniz que, se o mundo no possui toda perfeio possvel, isso significa que Deus poderia ter feito este mundo de maneira melhor, mais perfeita do que fez. Com isso, acusaramos a Deus de ter agido com imperfeio, censurando o criador por no ter trabalhado de maneira adequada. como se dissssemos a 107
um artista que ele poderia melhorar em alguns aspectos o seu quadro, o que indicaria que sabemos mais do que o artista. Como o artista, nesse caso, Deus, no seria adequado pensarmos assim. Portanto, isso significa que este mundo o melhor que Deus pde fazer. Assim, ns vivemos no melhor dos mundos. Voltaire assim descreve Pangloss, o mestre otimista de Cndido:
Provava admiravelmente que no h efeito sem causa e que, neste melhor dos mundos possveis, o castelo do monsenhor Baro era o mais belo dos castelos e a senhora a melhor das baronesas possveis. (VOLTAIRE, 1998, p. 8).
Pangloss falava coisas bvias (no h efeito sem causa), mas era admirado por isso. Ele provava que a modesta casinha do baro era o mais belo dos castelos e sua esposa a melhor dentre as baronesas, pois eles estavam no melhor dos mundos possveis. Com isso, Voltaire faz caricatura da filosofia otimista, zombando mesmo da admirao que tal filosofia provocaria em seus seguidores. Voltemos a Leibniz:
Creio, tambm, haver uma infinidade de passagens da Sagrada Escritura e dos Santos Padres favorveis a minha opinio, mas no muitas desses modernos, que, no meu entender, desconhecida de toda a antiguidade e baseada apenas no diminuto conhecimento que temos da harmonia geral do universo e das razes ocultas na conduta de Deus, fazendo-nos temerariamente julgar que muitssimas coisas poderiam ser melhoradas. (LEIBNIZ, 2004, p. 6).
O filsofo recorre Bblia, aos pais da Igreja e ao conhecimento que a antiguidade demonstrou acerca da questo debatida para favorecer a sua opinio. Leibniz censura aqueles que defendem que muitssimas coisas poderiam ser modificadas para melhor naquilo que Deus criou. Quem assim pensa no reconhece o nosso limitado conhecimento da harmonia geral do universo e ignora as razes que Deus poderia ter tido ao criar o mundo como criou. Note o leitor que, no conto Zadig , Voltaire usa este argumento, pois l o eremita, que o anjo Jesrad, afirma que os homens fazem mal em julgar o todo, conhecendo apenas uma pequena parte. Assim, se o anjo Jesrad representa mesmo uma provvel, ainda que no satisfatria, tentativa de resoluo do problema do mal, ento o argumento da ignorncia humana acerca do todo, da ordem geral do universo, concorda 108
com o argumento de Leibniz. Comeamos, assim, a ver como Voltaire tem postura diferente ao trabalhar o problema do sofrimento nos dois contos. Leibniz refora o seu argumento sobre a ignorncia humana acerca dos desgnios divinos:
suficiente, portanto, ter em Deus esta confiana: ele tudo faz para o melhor e nada poder prejudicar a quem o ama. Conhecer, porm, em particular, as razes que puderam mov-lo a escolher esta ordem do universo, permitir os pecados e dispensar as suas graas salutares de uma determinada maneira, eis o que ultrapassa as foras de um esprito finito, mormente se ele no tiver alcanado, ainda, o gozo da viso de Deus. (LEIBNIZ, 2004, p. 10).
O filsofo comea sua fala afirmando que nada pode prejudicar a quem ama a Deus, isto , Leibniz admite a existncia do mal no mundo, mas entende que ele no pode prejudicar os fieis. No adiantaria ao homem se perguntar sobre o porqu do mal existir no mundo, sobre a razo de Deus permitir o pecado ou sobre o motivo da graa de Deus no se estender a todos os homens, pois um esprito finito no teria condies de resolver tais questes, uma provvel referncia incapacidade humana em entender as razes de Deus agir desta ou daquela forma. Leibniz, agora, demonstra que o mal particular resultar em um bem posterior, e corrobora a ignorncia humana sobre o problema do mal:
Pois Deus v, desde sempre, que existir um certo Judas, cuja noo ou idia que dele tem contm esta livre ao futura. Resta, portanto, to-s a questo de saber por que existe atualmente um tal Judas, o traidor, que s possvel na idia de Deus. Mas para esta questo no h neste mundo resposta a esperar, a menos que em geral deva dizer-se que, visto Deus ter achado bom que ele existisse, no obstante o pecado previsto, foroso este mal recompensar-se com juros no universo, dele tirando Deus um bem maior e, em suma, essa srie de coisas, em que se compreende a existncia desse pecador, mostrar-se a mais perfeita entre todas as outras maneiras possveis. (LEIBNIZ, 2004, p. 64).
O filsofo cita o exemplo conhecido de Judas Iscariotes, discpulo que traiu Jesus. A questo entre oniscincia divina e mal bem exemplificado nesse caso, pois fica a pergunta: se Deus j sabia que Judas trairia Jesus, por que permitiu? Mais do que isso, se Jesus mesmo j sabia que Judas seria o traidor, por que o escolheu como discpulo? Para 109
Leibniz, no h neste mundo resposta a esperar, apontando novamente para a incapacidade humana em se resolver questes difceis como essa. Contudo, mesmo sem resposta, podemos esperar que o mal provocado por Judas, em algum momento, seja recompensado no futuro, que deste mal Deus tire um bem maior. E, mais ousadamente, a situao da traio de Judas, que representaria, no exemplo dado, a questo do mal no mundo perante a oniscincia divina, seria a mais perfeita dentre todas as situaes, isto , no haveria forma melhor da histria de Jesus ter acontecido seno com um traidor em seu grupo. Deus assim o quis, essa foi a melhor maneira das coisas ocorrerem e um dia isso ser revertido em bem. Voltemos a Voltaire, que continua a zombar do sistema otimista no Cndido :
bem diferente da Westphalia e do castelo do senhor baro: se nosso amigo Pangloss houvesse conhecido Eldorado, jamais teria dito que o castelo de Thunder-tem-Tronckh era o que havia de melhor sobre a terra. A verdade que preciso viajar. (VOLTAIRE, 1998, p. 70).
Em sua viagem a Eldorado Cndido v que l tudo vai bem. Chega mesmo a dizer que se tudo vai bem, no Eldorado, e no no resto da Terra (VOLTAIRE, 1998, p. 80). Tudo vai bem apenas num lugar que no existe, em um lugar criado pela imaginao humana. No mundo real, no est nada bem. A necessidade de viajar demonstra que preciso o homem ver a realidade com seus prprios olhos, e da tirar suas concluses, no apenas raciocinar e ignorar o que evidente. Se Pangloss, o mestre de Cndido, tivesse conhecido melhor o mundo, jamais chamaria a humilde residncia do senhor baro de o mais belo dos castelos. No s Pangloss no tinha visto o suficiente para saber que o castelo do baro no era o melhor de todos, como tambm ele ignorava, teimosamente, o que via, o que sentia, com o objetivo de manter o seu sistema filosfico. Vejamos: Pangloss advertia que sempre sofrera horrivelmente. Mas, tendo sustentado uma vez que tudo ia s maravilhas, ele o sustentaria sempre, embora no acreditasse. (VOLTAIRE, 1998, p. 133). Pangloss, na verdade, sabia que seu sistema era incompatvel com a realidade. O fato dele sustentar algo em que no acreditava demonstra que Voltaire acusa o sistema otimista de desonestidade intelectual, que a atitude de se defender algo em que no se acredita, de se sustentar algo
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insustentvel, de se manter uma opinio at o fim, mesmo quando ela se revela falsa. Os fatos eram contundentes demais para se sustentar que tudo ia bem. Vejamos o comentrio de Philip Stewart:
Na abertura do livro [Cndido], tudo parece ser parte de um sistema coerente, mas que se revela mope. O prprio Pangloss evidentemente incorrigvel. Persiste sozinho at o fim na sua tentativa de dar sentido ltimo a cada experincia; mas, antes disso, todos j desistiram. Pangloss menospreza as dores humanas, mesmo as prprias, considerando-as efmeras e ignorantes; a nica diferena entre si e um fatalista pessimista que ele classifica qualquer coisa como boa a priori. (STEWART, 2010, p. 167).
Se Pangloss incorrigvel, com afirma Stewart, ento os fatos jamais o convencero a mudar de opinio. Ele defender o que acredita at o fim, acontea o que acontecer. Nada o convencer a refletir sobre o seu sistema filosfico. Nem mesmo seu prprio sofrimento foi capaz de faz-lo repensar seu otimismo. Tudo era visto como bom a priori, isto , antes da experincia, mesmo as maiores infelicidades eram encaixadas em seu sistema como parte de algo bom, que cumpriria um desgnio favorvel ao bem geral. Marilena Chau concorda com a incompatibilidade da experincia com o sistema otimista de Pangloss:
inevitvel que Cndido veja sua vida como uma sucesso de sonhos funestos e de sonhos agradveis, como alucinao que paralisa o bom senso comum. Por que sonho? Porque dispe de um glossrio vazio. O aparato lingstico e conceitual, fornecido por seu mestre, Orculo palrador, no capaz de dar conta daquilo que ele realmente ve e sente. (CHAU, 1999, p. 128).
A experincia de Cndido no poderia ser explicada pelo sistema de Pangloss. Sua filosofia, que tinha uma explicao para todo o mal que acontecia, no era capaz de explicar com coerncia todo o sofrimento pelo qual Cndido passava. A experincia de ver e de sentir corresponderia muito mais verdade do que um sistema que busca explicar tudo, mas no convence nem mesmo a quem o defende, como ocorre com Pangloss. Em outras palavras, o sistema otimista no corresponde ao que uma pessoa, de fato, vive, experimenta, sofre ao longo de sua vida.
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Assim, o leitor pde notar como a soluo para o problema do mal diferente nos dois contos, Zadig e Cndido. Ambos tm a semelhana em ter o personagem principal como algum que sofre insistentemente uma srie de infortnios sem ter feito nenhum mal, mas o personagem que tenta explicar a razo de tudo o que acontece diferente nos dois contos. Vejamos o comentrio de Rodrigo Brando a respeito:
Sem dvida que comparado ao Cndido, Zadig est mais prximo do otimismo de Leibniz e Pope, pois, alm da presena de um plano providencial em Zadig e de sua ausncia em Cndido, os personagens encarregados de encarnar a mensagem otimista em cada conto tm valores diferentes. Enquanto Pangloss risvel aos olhos do leitor, Jesrad desperta o sentimento ambguo de respeito e desconfiana. Em Zadig , Voltaire se aproxima do otimismo, mas mantendo suas dvidas, um movimento cheio de hesitaes, enquanto que, no Cndido, reconhecemos um afastamento completo, justamente pela ausncia do nvel providencial na narrativa. (BRANDO, 2008, p. 139).
Relembrando um pouco do anjo Jesrad, ele faz coisas estranhas, mesmo horrveis, que causam grande espanto em Zadig. Todavia, quando ele se revela a Zadig como um anjo, as explicaes dadas passam a fazer sentido, embora as perguntas de Zadig no sejam satisfatoriamente respondidas. Desta forma, o leitor pode entender, como uma possibilidade de interpretar esse personagem, que se trata de uma tentativa de Voltaire em explicar, de maneira racional, porm limitada, o porqu do mal existir no mundo. Haveria uma providncia que extrai o bem do mal, mas que no nos d maiores explicaes sobre as nossas dvidas a respeito. Todavia, o personagem no deixa de ser estranho, de fazer coisas absurdas. Da, talvez, a opinio de Brando de que ele provoca respeito e desconfiana. J Pangloss, por outro lado, uma caricatura do sistema otimista, um filsofo teimoso, cuja opinio no deve ser levada a srio, a no ser por algum cndido como Cndido. Jesrad d uma orientao a Zadig, para que ele v para a Babilnia, e tudo d certo ao final de tudo. Para Cndido no h explicaes ou final feliz. A melhor coisa a se fazer, neste mundo de sofrimentos, trabalhar, cultivar o jardim, exercer as nossas funes bsicas da vida sem esperar respostas. Maria das Graas de Souza comenta sobre o final do Cndido:
No ltimo captulo, encontramos a seguinte concluso: em qualquer lugar do mundo estamos sujeitos infelicidade e ao mal, no importa o que faamos. Diante do mal, no adianta ficar perguntando por que ele existe. melhor se calar, e trabalhar para tornar a vida suportvel. O final do
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conto bem pessimista. Neste mundo sem uma finalidade explcita ou conhecida, os homens se defrontam com males incurveis. A filosofia no ajuda quase nada. Trabalhemos, pois, sem discutir, diz Cndido. (SOUZA, 1993, p. 56).
Diferente de Zadig, Cndido no encontra uma resposta. O trabalho, segundo Maria das Graas, seria um meio, no Cndido, de fazer a vida de sofrimento algo suportvel, uma atividade que ocuparia as nossas mentes para no pensarmos demasiadamente na questo, que permaneceria sem soluo. Parece, assim, que a postura de Voltaire teve uma certa mudana em relao ao assunto, abandonando, de vez, a tentativa de responder racionalmente acerca do problema. Encerramos esta seo com uma citao de Marilena Chau:
A teodicia esgotou todas as possibilidades metafsicas, chegando a um impasse. Tais possibilidades e seu esgotamento antinmico so oferecidos pelas figuras metafsicas do Cndido : o otimismo tagarela de Pangloss, o pessimismo resignado de Martin, o ceticismo descuidado de Pococurante e o misticismo silencioso do derviche. A sucesso dessas figuras espelha o percurso da prpria metafsica: teimosia, resignao, tdio e silncio. (CHAU, 1999, p. 124).
A citao a seguir, de Pierre Lepape, nos d algumas informaes sobre o terremoto de Lisboa e sua implicao no debate sobre o problema do mal:
No dia 1 de novembro de 1755 um maremoto inundou Lisboa. A cidade foi quase inteiramente destruda, e trinta mil pessoas morreram (...) Para Voltaire, como para a maioria dos seus contemporneos bem-informados, a destruio de Lisboa teve uma profunda ressonncia metafsica, cuja extenso hoje dificilmente poderamos avaliar. Era como se as idias de Providncia, justia divina e harmonia universal, sobre as quais repousava a serenidade cotidiana, desabassem e fossem varridas. (LEPAPE, 1995, p. 201).
Certamente Voltaire sabia da existncia de terremotos e tragdias naturais que mataram pessoas antes do terremoto de Lisboa acontecer. Ele j estava com 61 anos. O que muda, ento? No sabemos. Contudo, possvel pensar que, mesmo quando sabemos da existncia de um problema, quando ele acontece perto de ns, no nosso contexto, quando, 113
de alguma maneira, nos envolvemos com ele, emocionalmente, a nossa perspectiva pode mudar. O terremoto de Lisboa no ser visto apenas como um fenmeno da natureza que j tinha ocorrido tantas vezes em outros lugares, mas como um acontecimento com uma forte implicao no debate sobre o problema do mal e da existncia de um Deus bom que tem o controle de todas as coisas. A ideia de uma providncia seria seriamente abalada para Voltaire com esse acontecimento. Vejamos o comentrio de Dynes sobre o terremoto de Lisboa e sua relao com os debates filosficos da poca:
the Lisbon earthquake occurred at a time and a place which made it a part of the debate over modernity. Its location in Europe made it a topic in the intellectual debates of the times. These debates had greater impact on the changing cultural context than the physical intensity of the earthquake might imply. The earthquake occurred when there were many strains between tradition and new ideas about progress. It was a time when traditional ideas and institutions were being challenged, when nation states were being created, and when rivalries among states led to tensions and conflict. Further, it was a time when the bonds of traditional religious authority were being challenged by a growing enthusiasm for intellectual freedom and for reason. These major political and institutional shifts were reflected in the meanings that were assigned to the Lisbon earthquake. (DYNES, 1999, p. 2).
A intensidade do terremoto foi menor do que suas implicaes intelectuais, do que os debates que ele gerou. Como vemos, a voz de Voltaire no foi isolada no episdio, pois outros intelectuais trataram do assunto. Dynes cita a tenso existente entre a tradio e as novas ideias de progresso. Bem neste momento ocorre o terremoto como um ponto importante a ser debatido. Afinal, se as posies da tradio crist defendem a atuao de uma providncia, isso deveria ser debatido racionalmente e o terremoto de Lisboa proporcionaria uma boa ocasio para tal. A seguir, citamos um trecho do Poema sobre o desastre de Lisboa, escrito por Voltaire em 1756:
Oh, infelizes mortais! Oh terra deplorvel! Oh, de todos os mortais um amontoado terrvel! Permanncia intil de dores eternas! Filsofos enganados, que gritais tudo est bem, Correi, contemplai estas runas horrveis, Estes destroos, estes molambos, estas infelizes cinzas,
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Estas mulheres, estas crianas jogadas umas sobre as outras, Sobre estes mrmores quebrados, os membros dispersados, Cem mil desafortunados devorados pela terra, Que, ensanguentados, rasgados, e ainda palpitantes, Enterrados sob seus tetos, terminam, sem socorro, No horror dos tormentos, seus lamentveis dias! (SOUZA, 2006, p. 190).
Vemos que o filsofo ataca a concepo otimista de que tudo est bem, crtica provvel ao melhor dos mundos possveis de Leibniz, j comentado por ns na seo anterior. Os filsofos otimistas so convidados pelo patriarca de Ferney a olharem para as runas de Lisboa. A cena terrvel, de milhares de pessoas mortas, com destaque para mulheres e crianas, causaria grande perturbao, dor, tristeza, questionamentos sobre o porqu daquilo ter ocorrido. O filsofo continua falando do terremoto:
Ao ouvir os gritos engastados de suas vozes expirantes, Diante do espetculo de suas cinzas fumegantes, Por acaso direis: o efeito de eternas leis, Que exigem a escolha de um Deus livre e bom? Ser que direis, ao ver esta montanha de vtimas: Deus se vingou; sua morte o preo de seus crimes? Que crime, que falta cometeram estas crianas Que sangram esmagadas no seio de suas mes? Lisboa, que no mais existe, teve ela mais vcios do que Londres, Paris, mergulhadas nas delcias? Lisboa foi destruda, e se dana em Paris. Tranquilos espectadores, espritos intrpidos, Contemplando os naufrgios de vossos irmos agonizantes, Procurais, em paz, as causas das tempestades. (SOUZA, 2006, p. 190).
Veja o leitor que a perturbao do filsofo se d com a dificuldade em conciliar tamanha tragdia com a existncia de um Deus bom, cujas leis eternas teriam causado o terremoto. Como entender tamanha contradio? queles que buscavam explicar o terremoto como consequncia dos pecados dos moradores de Lisboa, o filsofo pergunta: e estas crianas, o que fizeram? Algum, no perfeito uso de sua razo, diria que a providncia estaria se vingando daqueles infantes? Ou ainda, para quem sustenta esse raciocnio, Lisboa foi mais pecadora do que Paris? No, esta explicao no daria conta do fenmeno, do sofrimento gratuito de tanta gente, do fato de milhares de vidas terem sido ceifadas antes da hora. 115
O sofrimento do prximo nos tornaria mais humanos, nos faria sentir a dor do outro, nos levaria a termos mais compaixo. Voltaire justifica a sua queixa como inocente diante da morte de milhares de pessoas. Os bons sofreriam no s pelas mos da maldade do destino, como tambm pela ao dos homens maus, sofrendo ataques de todos os lados. O filsofo se solidariza com os que sofrem, chamando-os de companheiros nos males, colocando-se, ele mesmo, no grupo daqueles que so afligidos pelos infortnios da vida. Assim, o terremoto de Lisboa teria sido o episdio que levou Voltaire a esquecer definitivamente a possibilidade de haver uma providncia divina atuando na vida humana? Talvez. O poema de Voltaire sobre o terremoto de Lisboa gerou reaes de um dos seus maiores admiradores, Jean Jacques Rousseau (1712-1778). O genebrino, apesar de sua reverncia pelo patriarca de Ferney, no aceitou o teor do poema, sua queixa contra o sistema otimista, contra a ideia de uma providncia, etc. Vejamos, nas prprias palavras de Rousseau, a sua crtica a Voltaire em carta enviada ao autor do Cndido:
Todas as minhas queixas, portanto, referem-se ao vosso poema sobre o desastre de Lisboa, porque eu esperava dele efeitos mais dignos do sentimento de humanidade que parece vos ter inspirado ao faz-lo. Censurais Pope e Leibniz de insultar nossos males ao sustentarem que tudo bem, e vs aumentais de tal maneira o quadro de nossas misrias que acabais por agravar o sentimento que temos delas; ao invs das consolaes que esperava, vs apenas me afligis; dir-se-ia que temeis que eu no veja o suficiente o quanto sou infeliz; e acreditais, parece, tranqilizar-me muito, provando-me que tudo mal. (ROUSSEAU, 2006, p. 160).
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Embora Voltaire tenha dito que sentir o sofrimento do outro nos torne mais humanos, Rousseau critica o autor do Cndido justamente neste ponto, acusando-o de no ter tido eficcia em seus pretensos sentimentos de humanidade ao escrever o poema. As queixas do filsofo s aumentariam o sofrimento que j temos, s nos levariam a pensarmos que realmente somos infelizes. O consolo de Voltaire a quem sofre seria intil, j que, em vez de confortar, agravaria o sofrimento. De nada adianta dizer a algum que j sofreu com uma catstrofe que este mundo mal, que um lugar ruim para se viver. Se Voltaire critica Leibniz e Pope por estes terem dito que tudo est bem, tampouco o autor do Cndido est com a razo ao provar que tudo est mal. Ele estaria completamente enganado ao acreditar que seu poema consolaria quem quer que fosse. Continuemos com a crtica de Rousseau ao poema de Voltaire:
... deveis convir, por exemplo, que a natureza no havia absolutamente ajuntado ali vinte mil casas de seis andares, e que, se os habitantes dessa grande cidade estivessem espalhados mais igualmente e mais levemente alojados, o estrago teria sido muito menor e, talvez, nulo. Todos teriam fugido ao primeiro abalo, e no dia seguinte teriam sido vistos a vinte lguas de l, to alegres como se nada tivesse acontecido; mas foi preciso ficar, teimar em permanecer em volta das casas, expor-se a novos tremores, porque o que se deixa vale mais do que aquilo que se pode levar. Quantos infelizes pereceram nesse desastre por querer buscar roupas, outros seus documentos, o outro seu dinheiro? (ROUSSEAU, 2006, p. 162).
Note o leitor que Rousseau no aceita o argumento de que Deus teria causado a morte dos habitantes de Lisboa como consequncia necessria de sua vontade, de suas leis eternas. Pelo contrrio, o genebrino afirma que a culpa das consequncias do terremoto, na proporo ocorrida, era dos prprios moradores de Lisboa. Eles no teriam agido corretamente ao se amontoarem no mesmo lugar, ao terem teimado em permanecer no lugar, em voltar para pegar os bens que ficaram em suas casas. Se os moradores de Lisboa tivessem agido corretamente, com bom senso, no teria ocorrido tamanha tragdia, pouca gente teria morrido, e a vida seguiria normalmente nos dias seguintes ao terremoto. Rodrigo Brando confirma ao dizer o seguinte: A Carta sobre a Providncia uma defesa do otimismo e um ataque ao desespero de Voltaire. Mais do que isso, sua carta inaugura um novo modo de tratamento da questo do mal, ao desloc-la de Deus ao homem. (BRANDO, 2008, p. 202). Portanto, se em Voltaire temos um grito desesperado contra a 117
providncia, em Rousseau o problema apenas logstico. Sem dvida, so formas bastante diferentes de interpretar o mesmo fenmeno. A crtica de Rousseau tem mesmo um tom irnico contra o poema de Voltaire: Vamos dizer agora que a ordem do mundo deve mudar segundo nossos caprichos, que a natureza deve submeter-se a nossas leis, e que, para impedir um tremor de terra em algum lugar, basta construir nele uma cidade? (ROUSSEAU, 2006, p. 163). As leis eternas existem e os homens no podem mudar tal fato. Assim, os fenmenos naturais, cuja fora o homem no pode resistir, fazem parte desta regra. Ento, Voltaire quer que a ordem geral do mundo seja mudada porque os homens assim desejam? Ou, ironicamente Rousseau questiona, se o homem quiser impedir um terremoto em determinado lugar, basta construir l uma cidade? Nas entrelinhas notamos que Rousseau percebe uma certa ingenuidade nos argumentos de Voltaire, pois ele no estaria vendo o bvio, que o fato de que as leis naturais existem independente da vontade humana, que os fenmenos da natureza se manifestaro quando tiverem que se manifestar, no dependendo de onde os homens queiram construir cidades ou casas. Assim, entendemos que a filosofia de Voltaire se encaminhou, ao longo dos anos, para a ideia de que existe um Deus criador de leis eternas, mas que no se relaciona com o homem, que no interfere no que acontece no nosso pequeno planeta. Podemos dizer, portanto, que o Deus de Voltaire criou o universo, o mundo, suas leis, o homem, mas no interfere em sua obra, tal como o relojoeiro que deu corta no relgio e permite que ele funcione sem qualquer necessidade de ajuste.
2.3. Rejeio de Voltaire ao atesmo Cremos que foi possvel demonstrar, nas sees anteriores, que Voltaire buscou usar bons argumentos filosficos para defender a ideia da existncia de Deus. Por meio das leis da natureza, do desgnio presente na vida, do vazio, o filsofo argumentou um bom nmero de vezes, em diferentes obras, para demonstrar a existncia de um Ser Supremo pelas vias da razo. Assim, parece ser razovel concordarmos que Voltaire acreditava na existncia de Deus, embora esse Deus no exercesse qualquer atuao direta sobre a vida humana. Todavia, veremos nesta seo que o filsofo no rejeitava o atesmo apenas por julg-lo falso, mas tambm por entender que a crena em Deus e em punies e 118
recompensas ps-morte era extremamente necessria para a manuteno do bem-estar de qualquer sociedade, com raras excees. O filsofo entendia que muitas pessoas cometeriam crimes se no temessem ser punidas com a condenao ao inferno, pelo que tal crena deveria ser mantida para a maioria das pessoas. Uma sociedade de ateus no poderia subsistir, na mentalidade do autor do Cndido. Comecemos citando um texto do filsofo em seu Dicionrio filosfico no verbete ateu, atesmo:
Por que razo ser impossvel uma sociedade de ateus? Porque se considera que os homens sem freio nunca poderiam fazer vida coletiva viver juntos; que as leis nada podem contra os crimes secretos ocultos; que faz falta um Deus justiceiro que castigue, neste mundo ou no outro, os malvados que conseguiram ludibriar a justia humana. (VOLTAIRE, 1978c, p. 104).
Sabendo que nem todos os crimes seriam punidos pela justia, os homens precisariam crer, para que a sociedade permanecesse em ordem, que h um Deus que pune e recompensa, no s nesta vida, mas na outra tambm. O medo da punio divina seria um freio eficaz contra os homens incontinentes, controlando a natureza humana, que nem sempre nos leva a fazer o que bom. Como estudioso de histria, Voltaire interpretou a escatologia de alguns povos do ponto de vista da utilidade social, ou seja, para o filsofo, praticamente todos os povos da terra tiveram na doutrina da punio ps-morte um freio moral, um recurso psicolgico para manter a ordem social. Vejamos a confirmao do filsofo, ainda no Dicionrio filosfico :
Desde que os homens vivem em sociedade, j devem ter-se apercebido que autnticos criminosos escaparam severidade das leis. Estas punem crimes pblicos e era preciso arranjar um freio para os crimes secretos; somente a religio podia ser esse freio. Os persas, os caldeus, os egpcios, os gregos imaginaram castigos para depois da morte; e, de todos os povos antigos que conhecemos, os judeus foram os nicos que s admitiram castigos temporais. (VOLTAIRE, 1978c, p. 221).
Veja o leitor que Voltaire escreve que era preciso arranjar um freio para os crimes secretos, o que d a entender que ele no reconhece na crena de recompensas e castigos 119
ps-morte apenas algo em que as pessoas acreditavam, mas principalmente v esta ideia como algo inventado com um claro objetivo, que seria impedir que os homens cometessem certos crimes. O horror punio na outra vida seria eficaz, o potencial tormento psicolgico de algum que poderia furtar, matar ou cometer outro crime o impediria de realizar tais aes. A psicologia do medo era necessria para que a sociedade no se transformasse em um caos. O filsofo refora a utilidade desta crena, agora em outra obra, Deus e os homens:
Nenhuma sociedade pode subsistir sem justia; anunciemos, pois, um Deus justo. Se a lei do Estado pune os crimes conhecidos, anunciemos, pois, um Deus que punir os crimes desconhecidos. Que um filsofo seja espinosista, se quiser, mas que o homem de Estado seja testa. (VOLTAIRE, 2000, p. 187).
O leitor percebe que Deus, para Voltaire, deve ser anunciado s pessoas conforme a utilidade social. Ele no est se importando se Deus far ou no isso ou aquilo, j que ele mesmo no acreditava na interferncia de Deus na histria e tampouco na imortalidade da alma23. Neste caso, os fins justificam os meios, pois o importante no que as massas busquem um conhecimento autntico e honesto de Deus, mas sim que elas se mantenham domadas. Pierre Lepape comenta a respeito da til doutrina dos castigos ps-morte na filosofia voltairiana:
O atesmo amedrontava e chegava mesmo a horrorizar Voltaire tanto quanto a desordem social; ambos, alis, tinham a mesma natureza: eram uma loucura, um atentado lei natural. Ponhamos de lado as convices religiosas de Voltaire, profunda e apaixonadamente desta, para considerar apenas o perigo que o atesmo representava para o empreendimento voltairiano. Era um perigo com vrias faces. (LEPAPE, 1995, p. 181).
Medo e horror so os dois sentimentos que Lepape atribui a Voltaire no que se refere ao atesmo. A mistura desses sentimentos negativos teria levado o filsofo a combater com as armas necessrias o atesmo presente em sua poca. O curioso que, se Voltaire est pensando na crena da vida ps-morte como algo til para a manuteno da
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Ver a seo 3.2., que contm os argumentos de Voltaire contra a espiritualidade e a imortalidade da alma.
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ordem, isso entra em choque com o seu esforo em divulgar uma viso desta, onde Deus no interfere na vida humana. Talvez o desmo voltairiano e a sua vontade de ver uma sociedade testa tenham se chocado, e ora um prevaleceu, ora outro se sobressaiu. John Gray tem uma sugesto sobre estas duas posies antagnicas:
Voltaire s vezes duvidava de que os homens, como um todo, pudessem ser instrudos na verdade do desmo. semelhana de outros muitos philosophes, era tentado pela idia da mentira nobre, de uma religio ou mitologia manufaturada para manter a massa sob controle. Conservou sempre um senso profundo das funes civis da religio e deplorava o atesmo no apenas por julg-lo falso, mas tambm em virtude dos riscos que a seu ver ele oferecia paz social. (GRAY, 1999, pp. 35-36).
Para Voltaire, o desmo era a verdade a respeito da relao de Deus com os homens, ou seja, no haveria interferncia divina na vida humana. Como frisamos, o filsofo buscou divulgar isso em muitas de suas obras, como no Cndido, combatendo as narrativas de milagres ou de uma histria controlada por Deus. Mesmo com esses esforos, temos tambm um bom nmero de passagens em outros textos voltairianos que pregam justamente o contrrio. A mentira nobre citada por Gray tem um tom de crtica, j que mentira e nobre so palavras que no combinam muito uma com a outra, alm do que ele afirma que Voltaire era tentado a tal comportamento, outra palavra que tem sentido pejorativo. O nosso filsofo chegou mesmo a fazer caricatura do ateu como algum extremamente perigoso para a sociedade, como a citao a seguir demonstra:
No desejaria, se fosse eu o soberano, ter queslias com corteso ateus, cujo interesse fosse envenenarem-me: ver-me-ia obrigado a beber antdotos ao acaso todos os dias. pois em absoluto necessrio, para os governantes como para os povos, que esteja profundamente gravada nos espritos a idia de um Ser supremo, Criador, que premia e castiga. (VOLTAIRE, 1978c, p. 105).
Voltaire pinta o ateu como uma figura perigosa, imoral, que no hesitaria em envenenar um inimigo. A falta de temor a Deus seria catastrfica se fosse propagada em larga escala. O rei no poderia confiar nos seus cortesos ateus, prontos a mat-lo a qualquer momento, j que, se no temiam a autoridade mxima na terra, o que mais os 121
impediria de assassinar o soberano? Para Voltaire, s o temor de Deus, s o medo de ser punido para um Ser superior a qualquer autoridade humana, nesta ou em outra vida. O filsofo manteve este ponto de vista durante toda a sua vida, j que esta ideia aparece na obra A filosofia da histria, datada de 1765, quando o filsofo j tinha 70 ou 71 anos (Cf. VOLTAIRE, 2007a, p. 107), e tambm no conto A histria de Jenni, escrito em 1775, trs anos antes da sua morte. No citado conto, Jenni, o personagem principal da histria, passou a ter uma vida de orgias, por influncia de seus companheiros ateus, e feriu um credor. O pai de Jenni, um cristo esclarecido, elogiado por suas virtudes. Um dos amigos de Jenni traz-lhe um livrinho para provar que "... no h Deus, nem vcio, nem virtude..." (VOLTAIRE, 2005, p. 643). Ou seja, Jenni passou a ter uma vida desregrada por culpa de seus amigos ateus, que desencaminharam o bom rapaz. O livro de um dos amigos associa a no existncia de Deus com a relativizao de todos os valores morais, como se virtude e vcio no existissem, fossem apenas convenes sociais. Portanto, a nossa concluso que Voltaire rejeitou o atesmo no apenas porque o achava irracional, j que a existncia de Deus poderia ser demonstrada pelas vias da razo, como tambm acreditava que a ausncia de f em um Deus que pune e recompensa levaria a sociedade ao mais absoluto caos. Como diz Maria das Graas de Souza, provas tericas parte, o que Voltaire ope mais fortemente ao atesmo o argumento do perigo social numa sociedade de ateus. (SOUZA, 1983, p. 60).
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3.1. Quadro terico da discusso acerca da natureza da alma na filosofia dos sculos XVII e XVIII
A existncia ou no de uma alma imaterial uma das questes mais relevantes nos debates metafsicos, e por isso o assunto ocupa muitssimas pginas nos trabalhos de diversos autores. Sem dvida, uma das questes que inquietam muitos homens. E, como seus escritos demonstram com clareza, o debate sobre a existncia e a natureza da alma ocupa muitas pginas das obras de Voltaire, das primeiras s ltimas. Para entendermos melhor como estava tal questo na filosofia da poca de Voltaire, buscaremos trabalhar com dois pontos de vista diferentes: o dualismo da substncia e o materialismo. No primeiro, h uma alma espiritual dentro do homem, h uma essncia imaterial que existe sem depender dos sentidos e que sobrevive morte biolgica. Para isso, usaremos o exemplo de Ren Descartes (1596-1650), extraindo algumas citaes de duas de suas principais obras: Paixes da alma e Meditaes metafsicas. Sobre o materialismo ao qual nos referimos, posio que rejeita a ideia de uma substncia incorprea, autnoma e imortal que existiria no homem, utilizaremos Jean Meslier (16641729)24, um padre ateu cujas obras tiveram impacto na vida de Voltaire, como veremos com mais detalhes na seo que tratar de Meslier, e tambm o filsofo Denis Diderot (1713-1784), buscando reflexes em cinco obras relevantes: Dilogo entre D'Alembert e Diderot, O sonho de D'Alembert, Continuao do dilogo, Carta sobre os cegos para uso dos que vem e Dilogo de um filsofo com a marechala de.... Como veremos, Meslier e Diderot so materialistas e, ao contrrio de Descartes, buscam explicar as funes do corpo humano, o pensamento, o sentimento e a vida em si apenas materialmente, rejeitando que haja uma alma espiritual e imortal nos seres humanos. O nosso objetivo no explicar profunda ou extensamente as ideias de Descartes, de Diderot e de Meslier, mas sim us-los como exemplos de ideias antagnicas sobre a
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alma, a fim de entendermos melhor os pontos de vista que existiam sobre o assunto na poca de Voltaire. Por um lado, temos em Descartes um filsofo do sculo XVII que teve fortemente suas ideias combatidas no sculo XVIII e, por outro, em Diderot, um pensador do sculo XVIII que representou bem a tradio materialista presente na filosofia do perodo.
Ren Descartes um dos defensores do ponto de vista dualista, segundo o qual a natureza humana seria composta por uma parte fsica e outra parte espiritual. Aquilo que comum em muitas religies e aceito pela f, Descartes busca provar por meio da razo, a fim de que faa parte da filosofia como algo possvel de ser demonstrado. Desta maneira, o nosso filsofo constri um sistema, sendo bastante rigoroso quanto ao modo de erguer o seu edifcio filosfico sobre a natureza da alma e argumentando do modo mais lgico possvel. Franklin Leopoldo e Silva fala desta caracterstica do filsofo:
Descartes ter sempre em mente que a solidez do saber depende da coeso e do encadeamento de todas as suas partes. Por isso ele dar nfase, no seu trabalho, ao carter sistemtico do pensamento. (SILVA, 1993, p. 14).
Descartes estabelece o seu critrio, o modo de se chegar ao conhecimento sobre a natureza da alma, a forma para se chegar verdade racional sobre o assunto, em sua obra Paixes da alma :
... no h melhor caminho para chegar ao conhecimento de nossas paixes do que examinar a diferena que existe entre a alma e o corpo, a fim de saber a qual dos dois se deve atribuir cada uma das funes que existem em ns. (DESCARTES, 1998, p. 28).
Notamos que, neste texto, Descartes conclui que o ser humano composto por duas substncias, uma espiritual e outra material, e o seu objetivo distinguir as faculdades e caractersticas que cabem ao corpo e as que cabem alma, ou seja, quais seriam as funes de cada uma destas substncias. Se os materialistas do sculo XVIII buscam explicar todas as funes humanas usando o conhecimento cientfico da poca, compreendendo que tudo 124
o que se atribua a uma alma espiritual deveria ser explicado apenas fisicamente, Descartes tem o objetivo de descrever o homem em sua totalidade dualista, de fazer conhecida humanidade a integrao entre as substncias fsica e espiritual, de explicar como esta mquina engenhosa funcionaria fsica e espiritualmente. Descartes expressa um critrio importante em sua filosofia sobre a distino entre o que pode ser atribudo ao corpo e o que pode ser atribudo alma, como vemos a seguir:
No encontraremos nisso grande dificuldade se observarmos que tudo o que sentimos existir em ns e que vemos que tambm pode existir em corpos totalmente inanimados deve ser atribudo apenas ao nosso corpo; e que, ao contrrio, tudo o que existe em ns e que no concebemos de maneira alguma que possa pertencer a um corpo deve ser atribudo nossa alma. (DESCARTES, 1998, pp. 28-29).
Por exemplo, tanto a pele humana como um pedao de madeira podem absorver lquido. Por isso, absorver lquido no seria um atributo da alma, mas do corpo. Ou ainda, se atearmos fogo a um corpo humano ou a um pedao de papel, ambos sero consumidos. Por isso, sofrer os efeitos do fogo em sua matria no dependeria da alma, somente do corpo. E, de maneira geral, qualquer atributo que o homem tenha em comum com substncias inanimadas, deve ser atribudo ao corpo, no alma. Silva comenta:
Em tudo aquilo que no diz respeito alma, o homem se assemelha a uma mquina, se bem que perfeita, posto que criada por Deus. Todas as funes orgnicas podem ser comparadas, segundo Descartes, ao funcionamento de uma mquina muito bem construda. Os seres que no possuem alma, os animais, so constitudos apenas por esse maquinismo. (SILVA, 1993, p. 95).
Portanto, para Silva o homem tem semelhanas com os outros seres, como os animais, e so estas semelhanas que no devem ser atribudas alma em Descartes. O funcionamento orgnico dos seres vivos no seria provocado pela alma, pois seno Descartes teria que atribuir uma alma aos animais tambm. Dessa forma, a soluo encontrada pelo filsofo foi contemplar os animais como mquinas e os homens, de certa forma, parcialmente como uma mquina, mas possuidor de uma substncia espiritual. Assim, fica estabelecido por Descartes que aquilo que o homem tem em comum com os
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outros seres, como o funcionamento semelhante ao de uma mquina engenhosamente construda, deve ser atribudo ao corpo. Por outro lado, ainda comentando a citao acima de Descartes, para falar daquilo que deve ser atribudo alma, o filsofo afirma que deve ser de responsabilidade de nossa substncia espiritual aquilo que no pode ser concebido, de forma alguma, como um atributo do corpo. Ou seja, tudo fica no campo das ideias, no da anlise emprica. Silva fala sobre este mtodo de Descartes:
Sendo o intelecto, de agora em diante, o nico princpio de conhecimento, a realidade sensvel do mundo material ter que ser de alguma forma demonstrada no nvel do intelecto, da idia, para que possa vir a possuir algum valor. (SILVA, 1993, pp. 7-8).
Este mtodo ser bastante criticado no sculo XVIII, inclusive por Voltaire, que contemplava nesta maneira de se chegar ao conhecimento algo infrutfero, levando o homem a produzir romances, no conhecimento srio. O mundo material, para muitos filsofos do sculo XVIII, o nico meio de se produzir conhecimento, ao qual o homem chegaria por meio dos sentidos. Da o conflito constante entre as ideias de Descartes e de Voltaire, j que para o primeiro as certezas sero construdas a partir do raciocnio, no na observao do mundo, como Silva ratifica:
O conhecimento no pode ser imediatamente uma relao entre o sujeito e o mundo externo porque este deixou de funcionar como princpio de conhecimento. A primeira realidade que dada a um sujeito pensante no pode ser outra seno o prprio pensamento. (SILVA, 1993, p. 9).
Voltando citao de Descartes, se podemos conceber o que o homem tem em comum com outras substncias como algo pertencente matria, o sentimento jamais poderia ser atribudo ao corpo. A madeira absorve gua, mas no se entristece. O corpo humano digere, mas no pensa. O filsofo tem a palavra: Assim, como no concebemos que o corpo pense de maneira alguma, temos razo de crer que todos os tipos de pensamentos que existem em ns pertencem alma. (DESCARTES, 1998, p. 29). Descartes no concebia como algo abstrato, no-fsico, sem extenso ou matria poderia ser
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produzido por um elemento fsico. Dessa forma, se a razo humana no pudesse conceber algo como possvel, isso deveria ser descartado. O filsofo continua o seu argumento:
As percepes que relacionamos somente com a alma so aquelas cujos efeitos sentimos como estando na prpria alma, e das quais habitualmente no conhecemos uma causa prxima qual possamos atribu-las. Tais so os sentimentos de alegria, de clera e outros semelhantes, que s vezes so excitados em ns pelos objetos que movem nossos nervos e s vezes tambm por outras causas. (DESCARTES, 1998, p. 45).
Alm de ter mostrado que aquilo que no concebemos pertencer ao corpo deve ser visto como um atributo da alma, nesta citao Descartes apresenta o sentimento como uma evidncia daquilo que deve ser atribudo nossa parte imaterial. Talvez este raciocnio seja semelhante ao seguinte exemplo, que pode nos ajudar a entender melhor o filsofo: Sinto que meu estmago digere, portanto, digerir algo que deve ser atribudo ao corpo, que detm o estmago, o qual, por sua vez, material. Por outro lado, no sinto um rgo que se relacione minha tristeza, portanto, a tristeza tem relao com a alma. Percebo que a dor causada, por exemplo, por um objeto que se choca com o meu corpo. Vejo que perfeitamente natural conceber a dor tendo relao somente com o corpo, sem a necessidade de uma substncia espiritual para explic-la. J a alegria no pode ser explicada da mesma forma, pois ela no material, no tem extenso, no est em parte alguma do meu corpo, por isso no pode ser explicada materialmente. Assim, o que percebido fisicamente, o que parece estar relacionado ao que fsico, tem relao com o corpo, e o que no pode ter uma causa fsica, ou ainda o que no conseguimos atribuir ao corpo, deve ser atribudo alma. Aquilo que acontece e que no conseguimos buscar uma causa fsica, tem relao com a alma. Estes so alguns dos argumentos e critrios usados por Descartes. Ele ratifica, dando exemplos:
As percepes que relacionamos com nosso corpo, ou com algumas de suas partes, so as que temos de fome, da sede e de nossos apetites naturais; s quais podem-se acrescentar a dor, o calor e as outras afeces que sentimos como estando em nossos membros, e no como estando nos objetos que existem fora de ns. (DESCARTES, 1998, p. 44).
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A fome teria relao com o corpo, bem como a sede ou outros dos nossos desejos, pois esto associados ao corpo, tm relao com os nossos rgos, com os nossos membros, e tambm podem ser vistos em outros seres que no o homem. Diferentemente das coisas que devem ser atribudas alma, acerca das quais no temos uma causa prxima qual possamos atribu-las, os exemplos citados pelo filsofo podem ser atribudos, sem problemas, ao corpo, pois so sensaes as quais podemos encontrar uma causa prxima, isto , podemos explicar a dor, o calor, a fome, etc, fisicamente, pelo corpo, pela nossa estrutura fsica, pela forma como os nossos rgos funcionam. O nosso filsofo, alm de buscar explicar o que deve ser atribudo ao corpo e o que tem relao com a alma, afirmou que as duas substncias esto intimamente ligadas. Afinal, a alma de uma natureza que no tem a menor relao com a extenso nem com as dimenses ou outras propriedades da matria de que o corpo composto, mas somente com todo o conjunto formado por esses rgos. (Descartes, 1998, p. 49). Em outras palavras, a alma no tem relao com as partes do corpo, mas com o corpo todo. Ela no se associa com o fgado, com o corao, com os rins ou com os pulmes, mas com o ser em geral, o qual s existe plenamente com sua alma. Sem a alma, ele no teria uma srie de sentimentos e atributos, sem os quais no seria um ser humano. Descartes refora a ligao entre o corpo e a alma:
... entre nossa alma e nosso corpo h tal ligao que, uma vez que tivermos unido alguma ao corporal a algum pensamento, posteriormente um dos dois no se apresenta a ns sem que o outro tambm se apresente. (DESCARTES, 1998, p. 119).
Por exemplo, se pensarmos na morte e tal pensamento produzir em ns um calafrio, isto explicaria, para o nosso filsofo, a ntima relao entre corpo e alma. A alma pensaria na morte e o corpo produziria o calafrio. Assim, sempre que eu pensar na morte, terei um calafrio, o que seria a evidncia da ligao entre corpo e alma. Ou, se eu, quando cozinho, sempre penso no meu antigo emprego, sempre que eu cozinhar, naturalmente vou pensar no meu antigo emprego, isto , a ao que deve ser atribuda ao corpo, cozinhar, estar associada a ao que deve ser atribuda alma, pensar. Esta associao provaria, para Descartes, a associao fortssima entre as nossas substncias fsica e espiritual. E a glndula pineal seria a parte do corpo, situada na parte interna do crebro, na qual a alma se 128
irradiaria para todo o corpo, sendo, assim, a substncia que ligaria corpo e alma (Cf. DESCARTES, 1998, pp. 50-51). Descartes tambm entendia que o esprito nos transmitia informaes mais seguras do que os sentidos, como se fosse superior a eles. Eis a citao que comprova esta afirmao: ... conhecemos os corpos apenas pela faculdade de entender que est em ns, e no pela imaginao nem pelos sentidos, e que no os conhecemos pelo fato de os vermos, ou de os tocarmos, mas somente pelo fato de os concebermos pelo pensamento... (DESCARTES, 2000, pp. 54-55). Eis uma frase que causaria grande rejeio no sculo XVIII por parte dos filsofos empiristas. Para Descartes, o pensamento, que seria um atributo da alma, que faz o homem conhecer a matria, isto , outro corpo. Ele d o seguinte exemplo: estando em uma janela, vejo homens distantes de mim. Pelos olhos (empirismo) s enxergo chapus, devido distncia, e s sei que so homens, no homens fictcios, pela capacidade de julgar do esprito, no pelos olhos (Cf. DESCARTES, 2000, p. 52). Emanuela Scribano comenta sobre o exemplo de Descartes:
Cheguem janela e observem os transeuntes que passeiam pela rua. Vocs no hesitam em dizer que vem homens e, contudo, o que vem so apenas casacos e chapus que se movem e poderiam talvez cobrir espectros. A rigor, vocs no vem de modo algum homens, mas acham que os vem; o juzo sempre supera o dado sensvel, e at o torna possvel acreditarmos ver o que no vemos graas a um juzo do entendimento. (SCRIBANO, 2007, p. 69).
O objetivo deste exemplo dado pelo filsofo e comentado por Scribano demonstrar que o juzo do entendimento, a capacidade de julgar do esprito seria mais confivel do que o julgamento baseado nos sentidos, neste caso, pelos olhos. Olhando os homens pela janela, no tenho como ter certeza que so, realmente, homens, pois a minha viso no pode garantir que se tratam, de fato, de pessoas andando pelas ruas. Assim, o juzo emitido pelo pensamento, pela razo, sem o auxlio dos sentidos, seria mais seguro do que o conhecimento produzido pelos olhos, pelo ouvido, pelo tato, etc. Como Scribano corrobora, a mente uma substncia independente do corpo e por isso o conhecimento tambm do que material pode ser independente da experincia. (SCRIBANO, 2007, p. 75). Talvez um filsofo empirista responderia a Descartes que, antes dele julgar que eram homens de verdade, seus sentidos lhe deram experincias semelhantes, como, por exemplo, 129
ver um objeto diminuir de tamanho conforme ele se distanciava do mesmo. E, por este mesmo sentido, a viso, ele tinha visto que l embaixo, quando estava prximo a elas, andavam pessoas e, associando isto experincia anterior de j ter visto, inmeras vezes, objetos distantes diminurem, soube, quando estava distante, que aqueles chapus que ele contemplava l do alto de sua janela no eram homens fictcios, mas homens de verdade. Provavelmente porque ele nunca tinha visto homens fictcios andarem na rua. Talvez por isso esse argumento, que provaria que o esprito mais digno de confiana na produo do conhecimento do que os sentidos, no impressionaria os empiristas.
Devido ao fato de Jean Meslier no ser to conhecido como os outros filsofos citados nestas sees, Ren Descartes e Denis Diderot, faremos uma breve apresentao sobre ele que, alm de levar o leitor a conhec-lo, tambm nos far entender melhor o seu materialismo. Ao conhecermos os seus pontos de vista sobre outros assuntos, como Deus, religio, poltica e f, veremos que as opinies de Meslier sobre Deus e sobre as religies em geral esto fortemente ligadas ao seu materialismo. Jean Meslier nasceu em 1664, numa das aldeias das Ardenas, na Frana, e morreu em 1729. Foi um homem que, apesar de ter vivido como padre durante toda a sua vida, cumprindo os ritos da sua funo sacerdotal, no acreditava em nada do que pregava, e seus escritos, divulgados aps a sua morte, revelaram que ele no somente era ateu, mas repugnava a religio crist e todas as formas de f religiosa. Maria das Graas de Souza comenta a respeito:
As Memrias dos pensamentos e sentimentos de Jean Meslier comeam por uma acusao que ao mesmo tempo uma autocrtica, onde o acusador se situa ao mesmo tempo entre os acusados. O vigrio comea pois suas memrias pedindo perdo a seus paroquianos por ter, durante toda a sua vida, pregado idias inteis e falsas. (SOUZA, 1983, p. 46).
Meslier buscou, com seus escritos que foram divulgados aps sua morte, desmentir aquilo que pregou durante a sua vida, negar o que julgava ser erro e iluso, fazer afirmaes contrrias ao que falou como sacerdote catlico (Cf. MESLIER, 2003, p. 36). O fato de 130
termos conhecimento de um padre que durante toda a sua vida pregou o que qualquer padre pregaria e deixou escritos desmentindo o que pregou, em si j causa curiosidade para lermos suas obras. David Strauss comenta:
Leg a la posteridad con este manuscrito, extendido en tres copias de 366 pginas cada una, escritas de su puo y letra, con trazos claros y casi floridos una de las cuales se cuid l mismo de depositar en la cancillera del juzgado de Saint-Menehould -,bajo el ttulo de Mi testamento , una obra en que expona sus verdaderas y autnticas convicciones a los feligreses a quienes durante toda su vida enseara la fe catlica y la obediencia hacia sus superiores. (STRAUSS, 1955, p. 294)
Ou seja, como se estes textos do padre Meslier fossem uma grande revelao, algo que seria profundamente impactante aos seus paroquianos. O escndalo dos fieis seria grande ao descobrirem que o seu lder religioso repugnava tudo aquilo que tinha ensinado durante sua vida. Sua obra revelaria suas verdadeiras convices. Meslier no estaria mais entre os seus fieis para dar qualquer explicao, para sofrer qualquer perseguio. Paulo Piva opina sobre os motivos que teriam levado o nosso padre a omitir as suas opinies durante toda a sua vida:
Por temer represlias dos seus superiores eclesisticos, a perseguio do senhor do vilarejo onde habitava e pregava e a condenao das implacveis instncias repressivas do Antigo Regime, Meslier fez, como j sabido, a angustiante opo de no tornar pblicas, em vida, as suas opinies acerca dos governos, das religies e dos costumes da humanidade, todas elas, alis, de uma impressionante contundncia para um cura, o que poderia custar-lhe no apenas a excomunho e a perda do ofcio, mas sobretudo a prpria vida. (PIVA, 2006, pp. 137-138).
Assim, Meslier chegou aos seus 64 ou 65 anos de idade, o tempo que ele viveu, cumprindo os rituais religiosos de sua profisso como sacerdote catlico romano at o fim, mas, como veremos, seus sentimentos eram de rejeio ao que fazia. Meslier considerava falsos e fabulosos os mistrios da religio crist e afirma que no fazia nada para que os seus ouvintes os cultivassem e nem recomendava a sua prtica. Mas, se sentindo obrigado a exercer o seu ofcio como padre, o chama de "falso dever" e afirma que:
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Nessas ocasies tinha a amargura de me ver na penosa necessidade de agir e de falar inteiramente contra aquilo em que acreditava. Tinha a amargura de ser eu prprio a imbuir-vos de erros imbecis e de vs supersties, bem como de idolatrias que o odiava, que condenava e que detestava de todo o corao. (MESLIER, 2003, p. 56).
Sua insatisfao com o sacerdcio era grande. Ele sentia por seu ofcio a mais extrema repugnncia. Em virtude disso, cumpria contrariado os rituais religiosos e tudo o que dizia respeito ao seu papel de conquistador de conscincias. Meslier confessa em sua Memria que a sensao de pregar contra os prprios sentimentos e contra as prprias convices j era uma experincia terrvel, e que se tornava ainda pior toda vez que vinha tona a conscincia de que, ao fazer isso, tambm abusava da boaf dos seus incautos paroquianos. (PIVA, 2006, p. 87).
Voltaire ouviu falar de Meslier em 1735 e publicou uma certa verso da obra do padre em 1768, omitindo que ele era ateu e comunista, pois, como sabemos, o patriarca de Ferney via o atesmo como algo irracional e perigoso para a sociedade e entendia que a igualdade social era quimrica, ilusria, inconveniente, provavelmente porque era um homem rico. A verso verdadeira da obra de Meslier, Memria dos pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier, foi publicada em 1864. Citando um trecho de uma carta de Voltaire a Thieriot, de 1735, na qual Voltaire pede a este um manuscrito da obra de Meslier, Maria das Graas de Souza diz:
No possumos provas suficientes para saber se Thieriot teria ou no enviado o manuscrito, nem mesmo se Voltaire alguma vez chegou a ter em mos um texto completo das Memrias. De qualquer forma, seu espanto perfeitamente compreensvel. Ningum podia esperar que o testamento de um proco de uma cidadezinha do interior contivesse um verdadeiro tratado de atesmo. (SOUZA, 1983, p. 45).
Cremos que o choque de Voltaire foi grande e a obra, por seu contedo e por ter sido escrita por um sacerdote catlico, se divulgada na ntegra, reproduziria o escndalo que o nosso filsofo teve ao ler os escritos de Meslier. Da o medo que Voltaire teve em divulgar a obra na ntegra e sua atitude em omitir as partes da Memria que julgava perigosas e detestveis. Paulo Piva fala sobre a atitude de Voltaire ao divulgar as obras de Meslier com modificaes tendenciosas: 132
Em sua iniciativa indubitavelmente criminosa, o clebre filsofo iluminista [Voltaire] chegou ao cmulo de atribuir a Meslier uma orao na qual este pede perdo a Deus por ter pregado o cristianismo e outros dogmas eclesisticos ao invs da religio natural, isto , o desmo voltairiano. Em outras palavras, em sua mutilao, falsificao e desonestidade intelectual, Voltaire subtraiu da Memria o que ela teria de mais radical, original e marcante: o seu materialismo ateu e comunista. (PIVA, 2006, p. 112).
Meslier foi to contundente em suas crticas religio crist quanto Voltaire, e provavelmente este foi um fator que chamou a ateno do filsofo na obra do nosso padre. Talvez o fato de Meslier ter sido padre pode ter impressionado ainda mais Voltaire por ele, exercendo o sacerdcio, ter sido contundente contra a f bblica. As semelhanas entre os pensamentos podem ter levado Voltaire a divulgar a obra de Meslier, como Souza sugere:
A atrao exercida por Meslier sobre Voltaire, que o levou a publicar o extrato de 1762, tem suas razes na prpria filosofia voltaireana. A rigorosa crtica a toda a tradio bblica, um anticlericalismo radical, a recusa da filosofia cartesiana, presentes nas Memrias, so constantes tambm nos textos de Voltaire. (SOUZA, 1983, p. 65).
Mas mesmo o nosso filsofo liberal preferiu no divulgar tudo o que o padre ateu pensava na ntegra. Se Meslier temeu pela sua prpria vida e preferiu no divulgar suas ideias, Voltaire talvez tenha temido pela sociedade e, por isso, divulgou um Meslier mais ameno. Ou seja, se o filsofo enxergava o atesmo como sinnimo de perigo moral, como o conto A histria de Jenni demonstra bem, ento plausvel que pensemos que Voltaire tenha temido divulgar a Memria na ntegra devido ao seu contedo radical, a qual poderia, para ele, causar desordem social. Embora o nosso objetivo seja tratar do materialismo em Meslier, julgamos que o materialismo, o atesmo, o problema do mal e a repugnncia pelas religies estejam intimamente ligados e, por isso, tambm devem ser abordados em alguns de seus aspectos. Afinal, se um padre v muita corrupo e injustia em seu meio religioso, e fora dele tambm, isso pode lev-lo a perder a f, e, perdendo a f na sua religio, pode perd-la em Deus e, assim, no acreditar que haja uma substncia espiritual vinda do Criador habitando
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o ser humano. Corroboramos a relao entre o atesmo e o materialismo de Meslier com mais uma citao de Maria das Graas de Souza:
Uma vez afastadas as idias de Deus e de criao do mundo, resta que "o ser, ou a matria, que so uma e a mesma coisa, s pode possuir sua existncia e seu movimento por si mesmo". Esta a proposio fundamental do materialismo de Meslier, que se ope a todas as proposies daqueles que ele chama de "decolas" e "cristcolas". As partes da matria, juntando-se, unindo-se e modificando-se umas s outras diversamente, compem por si mesmas todos os corpos. (SOUZA, 1983, pp. 50-51).
Assim, como veremos na citao a seguir, alguns dos motivos que levaram o nosso padre a no crer em Deus foram o sofrimento humano, as maldades, a injustia, etc. No crendo em Deus, no h motivo tambm para se acreditar que o homem tenha uma alma espiritual e imortal. Afinal, a base para se crer que somos compostos por uma substncia espiritual que h um Deus espiritual e/ou um mundo espiritual, que existe e independe da vida material. Excluindo-se Deus, exclui-se, na grande maioria dos casos, a necessidade de uma realidade espiritual, o que normalmente conduz a pessoa ao materialismo. Devido aos males da vida como misria, injustia, crueldade, etc, Meslier afirma o seguinte:
... no existe nenhum Ser infinitamente bom e infinitamente sbio capaz de lhe fornecer um remdio conveniente, e, por consequncia, no h nenhum Ser todo-poderoso que seja infinitamente bom e infinitamente sbio, como pretendem os nossos cristcolas. (MESLIER, 2003, p. 76).
O padre, por ver o sofrimento humano, por constatar o mal no mundo, concluiu que no haveria um Deus composto por uma infinita bondade, pois, se este o fosse, teria que interferir a favor dos que sofrem. Voltaire, que tanto enfatiza as desgraas que acontecem em nosso planeta, preferiu adotar a posio desta, ou seja, h um Criador, mas ele no interfere na realidade humana. Para o testa, h um Deus que fez tudo o que existe, que interfere na realidade, mas isso no significa que ele v sempre frear os males que os homens causam uns aos outros. Meslier refora o seu argumento:
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Basta pensar no que sofrem as moscas, as aranhas ou os vermes que esmagamos sob os nossos ps para demonstrar que eles no so obra de um Deus todo-poderoso, infinitamente bom e infinitamente sbio, pois, se fossem suas obras, ele zelaria certamente pelo seu bem e pela sua conservao e proteg-los-ia de todo o mal. (MESLIER, 2003, p. 98).
curioso que o nosso padre veja como argumento da no existncia de Deus a morte dos pobres insetos. Talvez, ao rezar sua missa, o nosso padre visse com horror uma criana qualquer, na igreja, matando um mosquito, uma aranha ou talvez uma barata. Pensava o padre: Se Deus existisse, este inseto no poderia ser morto por esta criana. E assim continuava, revoltado, a pregar os textos das Escrituras. Por isso, se Deus existisse e fosse bom, na mente do nosso padre, ningum poderia morrer ou sofrer, nem mesmo os insetos, talvez at as bactrias. Mas, claro, nem todos os argumentos do nosso padre so to ingnuos assim. O problema do sofrimento, da maldade, da desigualdade, da injustia realmente causa perturbao a quem se pe a pensar. Mesmo alguns escritores bblicos, como Asafe (Cf. Salmo 73), J (Ver o livro inteiro de J) e o profeta Habacuque (Cf. Hc cap. 1) se queixaram destas questes e ficaram grandemente angustiados, ainda que no tenham perdido a f em Deus. Mas, por alguns momentos, a tiveram abalada. Meslier usa a poltica para enfatizar o mal no mundo e trata da questo da posse da terra e do abuso que os homens praticavam uns contra os outros, provocando injustias extremas. Tal situao era, para ele, evidncia de que no haveria um Deus bom cuidando da humanidade, como uma das citaes anteriores demonstrou. Assim o nosso padre se expressa:
Um outro abuso ainda, e que quase universalmente aceito e autorizado no mundo, a apropriao particular que os homens fazem dos bens e das riquezas da Terra, quando deviam possu-los todos igualmente em comum e desfrutar deles igualmente todos em comum. (MESLIER, 2003, p. 67).
Como citamos no comeo, Meslier defendia um certo tipo de comunismo, ou seja, que todos desfrutassem igualmente da terra e dos bens que ela produz. J que a terra pertencia a todos por direito natural, ento nada mais justo do que todos desfrutarem daquilo que receberam da natureza. Vejamos o nosso padre expressando o que seria, talvez, o principal pilar da sua viso comunista: 135
Todos os homens so iguais por natureza. Tm todos igualmente o direito de viver e de caminhar sobre a terra, igualmente o direito de a gozar da sua liberdade natural e de participar dos bens da terra trabalhando proveitosamente, uns e outros, para as coisas necessrias e teis para a vida. (MESLIER, 2003, p. 64).
Talvez a principal base do comunismo de Meslier seja a ideia de igualdade natural entre os homens. O cenrio de desigualdade, consequentemente, seria antinatural. Dessa forma, o comunismo, para ele, seria uma forma de respeitar a suposta igualdade natural entre os homens, enquanto a distribuio desproporcional de recursos naturais seria o oposto. Todos os homens teriam direito a terra e liberdade de desfrutar de tudo o que produzido. J o cenrio de sua poca, ao contrrio, fazia da maioria dos homens escravos de uma minoria, vivendo uma vida indigna. Meslier fundamenta mais outros aspectos de sua utopia comunista:
Se os homens possussem e usufrussem igualmente em comum, como referi, dos bens, das riquezas e das comodidades da vida, se se dedicassem todos sem exceo a algumas honestas e teis tarefas ou a algum honesto e til trabalho do corpo ou do esprito, e se administrassem sabiamente entre eles os bens da terra e os frutos do seu trabalho e do seu engenho, teriam todos a possibilidade de viver felizes e contentes, dado que a terra produz quase sempre o suficiente, e mesmo abundantemente o necessrio para os alimentar e os manter, se fizessem sempre um bom uso dos seus bens, pois s muito raramente a terra no produz o bastante para dela poderem viver. (MESLIER, 2003, pp. 70-71).
O argumento parece ser simples: se cada um fizer a sua parte e usufruir somente do que precisa, haver bens e recursos para todos e todos vivero felizes, pois a terra quase sempre produz o suficiente para todos viverem bem. Todavia, o que parece simples na teoria e nas nossas ideias no to simples assim na prtica, levando em considerao a diferena entre os homens, os diferentes desejos e ambies de cada um e o fato de que nem todos estariam dispostos a colaborar com a sua parte para que todos fossem felizes. Assim, por mais que o nosso padre tenha boas intenes, nem todos os homens querem apenas viver bem e feliz, mas muitos querem dominar os outros, acumular bens e mais bens insaciavelmente, ter poder tanto quanto for possvel, etc.
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Piva corrobora o comunismo de Meslier, todavia enfatizando mais o seu aspecto utpico e a ausncia de um projeto de como colocar sua ideia em prtica:
Meslier, na verdade, no dispunha propriamente de um projeto poltico, porm, era enftico em propor um comunismo utpico, uma ordem social baseada na fraternidade, na valorizao do trabalho e na explorao comum da terra. (PIVA, 2005, p. 104).
Assim, se Meslier no tinha exatamente um projeto poltico para colocar em prtica, sua defesa do comunismo era mais a expresso de revolta contra a desigualdade social existente em seu tempo do que propriamente um modelo social. A citao a seguir, de Piva, nos informa sobre o cenrio da poca de Meslier, que gerou o sentimento de indignao do padre contra os ricos e poderosos:
Neste longo perodo, de 1500 a 1789, imperou inabalvel na Frana uma monarquia absoluta e uma rgida hierarquia social composta fundamentalmente por nobres, eclesisticos, burgueses e camponeses (...) Desnecessrio dizer que a maioria da populao vivia no campo e na mais brutal misria, agravada sobretudo pela insuportvel sobrecarga de impostos e de obrigaes feudais, o que significa que a economia orbitava em torno do trabalho na terra (...) Para se ter uma noo da sua dimenso na Frana do sculo XVIII vale dizer que dos 26 milhes de habitantes que compunham a sociedade francesa em 1789, portanto, s vsperas da Revoluo, 22 milhes eram de camponeses. Desses 22 milhes, uma parcela expressiva no desfrutava de terras prprias, fato que os compelia a se submeterem s humilhaes do trabalho nas propriedades dos nobres abastados. (PIVA, 2006, p. 217).
Esse cenrio geral explica a revolta de Meslier contra a desigualdade social. Esse sentimento no aparece em Voltaire, pois, como sabemos, o nosso filsofo era possuidor de muitos bens e tratava a igualdade social como quimrica. Vejamos, antes de voltar aos argumentos de Meslier, um pouco mais da opinio de Voltaire sobre o assunto, expressa em seu Dicionrio filosfico, no verbete igualdade:
No nosso desgraado globo impossvel que os homens que vivem em sociedade no estejam divididos em duas classes: a dos ricos, que governam, e a dos pobres, que servem; e estas duas subdividem-se em outras mil e estas mil, ainda, possuem caracteres distintos. (VOLTAIRE, 1978c, p. 217).
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No contexto da citao, o filsofo afirma que se o homem encontrasse alimentao fcil e garantida, e um clima adequado sua natureza, um homem no escravizaria o outro. Ou seja, a natureza, segundo o filsofo, no produziria alimento suficiente para todos e por isso os homens subjugam uns aos outros para terem garantidos os recursos de que precisam para sobreviver. O autor do Cndido entendia que a prpria natureza humana fazia com que a igualdade no fosse algo possvel de existir na prtica. Deixemos o nosso autor continuar a falar, no mesmo verbete citado acima:
Todos os homens nascem com uma tendncia bastante violenta e pronunciada para o domnio e os prazeres, e uma queda acentuada para a preguia: por conseguinte, qualquer homem gostaria de possuir o dinheiro e as mulheres ou as filhas dos outros, ser o amo deles, submet-los a todos os caprichos seus e no fazer nada ou, pelo menos, fazer apenas o que muito bem lhe apetecesse. J vem que, com to lindas disposies, impossvel que os homens sejam iguais, como impossvel que dois pregadores ou dois professores de teologia no tenham cimes e inveja um do outro. (VOLTAIRE, 1978c, p. 217).
Se antes Voltaire responsabilizou a natureza pela desigualdade, pois no haveria recursos garantidos para todos, agora o filsofo v a ganncia humana como elemento primordial para que haja desigualdade entre os homens. Sendo a natureza humana voltada para o prazer e para dominar os outros, seria impossvel pensar em igualdade na prtica, j que seria impossvel mudar a natureza humana. Se o homem, segundo Voltaire, deseja possuir tudo o que do outro, e todos teriam esta tendncia, ento no h mesmo como pensar a igualdade como algo possvel de ser posto em prtica. O filsofo continua a sua exposio sobre o assunto, expondo outro aspecto para defender a desigualdade:
Todo e qualquer homem, no ntimo do corao, est no seu direito de julgar-se inteiramente igual aos outros homens; da, no se deve concluir que o cozinheiro dum cardeal deva obrigar este a fazer-lhe o jantar; mas o cozinheiro pode argumentar: Sou um homem tal qual meu amo, nasci como ele a chorar; h de morrer, como eu, nas mesmas angstias e nas mesmas dores da agonia. Ambos fazemos as mesmas funes animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e, nessa altura, eu for cardeal e o meu amo cozinheiro, hei de tom-lo a meu servio. Essa arenga razovel e justa, duma ponta a outra; mas, enquanto aguarda que o Grande Turco se
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aposse de Roma, o cozinheiro tem de cumprir o seu dever, ou toda a sociedade humana est pervertida e dar consigo em pantanas. (VOLTAIRE, 1978c, p. 218).
O filsofo pensa agora na manuteno da ordem social. Para que fosse assim, a desigualdade seria algo necessrio, do contrrio, o caos se instalaria. Voltaire reconhece que qualquer pessoa tem o direito de se achar igual aos outros, mas s no ntimo do seu corao, j que, na prtica, isso no seria possvel de acontecer. Curioso que Voltaire comea a dar o exemplo de um homem que sonhava com a igualdade, mas na verdade o tal homem no quer igualdade, ele quer que as posies se invertam: que o seu amo vire seu cozinheiro. Desta forma, ao menos Voltaire coerente com o seu raciocnio, de que os homens desejam mesmo dominar uns aos outros. Contudo, temos que pensar que a igualdade no pressupe que todos faam as mesmas coisas, que tenham as mesmas funes, mas sim que a distribuio dos recursos seja, pelo menos, mais justa e digna para todos. Mas para o nosso filsofo, para que a sociedade se mantenha organizada, necessrio que os homens ocupem posies diferentes e que os dominados fiquem com sua igualdade somente em seus coraes. Meslier, ao contrrio, sentia mais de perto o sofrimento do povo. Segundo a informao de Piva, 85% da populao francesa do sculo XVIII viviam em condies ruins, do ponto de vista econmico e social. A rgida hierarquia social impedia que as pessoas das classes mais baixas crescessem, melhorassem de vida, conquistassem um futuro melhor. E a religio seria, para Meslier, um dos elementos primordiais para perpetuar a desigualdade, como vemos nas palavras do prprio padre:
Com efeito, querendo uns injustamente dominar por todo o lado e outros alcanar qualquer v reputao de santidade, e por vezes mesmo de divindade, uns e outros, no s se serviram habilmente da fora e da violncia, mas empregaram toda a espcie de astcia e de artifcios para seduzir as gentes e atingir mais facilmente os seus fins. (MESLIER, 2003, p. 39).
Ou seja, a religio aqui vista como instrumento de domnio, manipulao e opresso contra os mais fracos. Os lderes religiosos usariam seu poder de persuaso, seus status de homens espirituais, ungidos ou at divinos para atingir os seus objetivos, sempre 139
em benefcio prprio e dos poderosos. Dessa forma, entendemos que o atesmo de Meslier, entre outras coisas, tem forte relao com a postura da religio, em especial do cristianismo catlico, com sua forma de atuar sobre as massas. Maria das Graas de Souza comenta:
Tais Memrias denunciam toda forma de religio como impostura e falsidade, opem aos fatos bblicos a razo natural, criticam a violncia e a desigualdade sociais estabelecidas atravs das representaes de Deus, enfim, anunciam uma filosofia de carter absolutamente materialista. (SOUZA, 1983, p. 44).
Chama a ateno a expresso representaes de Deus. Talvez estas palavras se refiram ao que as religies e a filosofia falam sobre Deus, ao que pregado, imagem que se tem da divindade. Certamente, imagens que representam apenas o que o homem pensa e que levam a todo tipo de abuso. Tais representaes de Deus podem ser pensadas como as figuras dos lderes religiosos e dos reis, j que ambos desfrutavam de status de ungidos, espirituais, cuja autoridade teria sido dada pelo prprio Deus. E, para Meslier, eram eles que causavam sofrimento ao povo. Curiosamente, apesar das crticas veementes de Meslier contra o cristianismo e contra toda forma de religio, ele admira a forma como os primeiros cristos viviam, no que se refere ao modelo social. A comunidade crist que se formou, oriunda do judasmo e influenciada pela viso judaica sobre o cuidado com os pobres, seria referncia para que no houvesse desigualdade social. Vejamos na citao de Piva:
... ao que tudo indica, uma das referncias primordiais da sua proposta poltica e social a comunidade dos primeiros cristos, um exemplo clssico de comunismo milenar. Meslier afirma que nas origens do cristianismo tudo era comum entre os seus adeptos e que, portanto, no havia miserveis entre eles, fato que a Igreja recusava a admitir. Em outras palavras, as comunidades crists primitivas consistiam numa organizao baseada na convivncia pacfica e solidria entre os seus membros, na explorao comum da terra e na comunho dos bens produzidos por todos. (PIVA, 2006, p. 232).
Assim, segundo Piva, o comunismo de Meslier teria como modelo aquele descrito no livro bblico de Atos dos Apstolos. Cremos que a seguinte referncia seja uma das mais fundamentais para se compreender o assunto:
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Todos os que tinham abraado a f reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um. Dia aps dia, unnimes, mostravam-se assduos no Templo e partiam o po pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de corao. (At 2:44-46).
Os primeiros cristos, que eram judeus, talvez tenham herdado este sentimento de cuidado com os pobres de algumas referncias da Tor, a qual tem mandamentos que buscam diminuir a desigualdade existente entre os homens. Talvez a venda de propriedades para diviso dos recursos entre os outros cristos tenha, como um dos motivos, a expectativa da eminente vinda de Cristo, que existia entre os primeiros crentes (Cf. At 1:914; I Co 15:51-58). Seja como for, havia uma espcie de comunismo entre os primeiros cristos, mas difcil determinar at quando isso durou e tambm sabemos, pelas outras partes do Novo Testamento, que isso no acontecia em todas as comunidades crists. Entrando agora na anlise dos argumentos de Meslier sobre a matria, o padre, ao ver a natureza, que, para muitos, incluindo Voltaire, indica a mo de um criador sbio e onipotente, no acreditava que a natureza tivesse sido criada por um poder externo a ela. O padre comenta a respeito:
... no que respeita beleza, ordem e perfeio que vemos nas obras de arte, temos de concordar com eles que a sua beleza e a sua perfeio demonstram necessariamente a existncia, a fora, o poder, a destreza, a sabedoria, etc., do obreiro que as fez, uma vez que vemos claramente que estas no podiam fazer-se por si prprias tal como so se no fosse por obra de um hbil obreiro. Mas temos necessariamente de reconhecer que a beleza, a ordem e as outras perfeies que se encontram naturalmente nas obras da natureza, ou seja, nas obras do mundo, no demonstram e de modo algum provam a existncia e, por conseguinte, a sabedoria de outro obreiro ou obreira que no a prpria natureza, que faz tudo o que podemos ver de mais belo e de mais admirvel. (MESLIER, 2003, p. 99).
O argumento analgico, de que, assim como uma obra de arte indica o trabalho de um artista, na natureza temos a evidncia do trabalho de um Artista Supremo, em Meslier no vlido. Ele concorda que uma obra de arte no pode ser a causa de si mesma, mas entende que a prpria natureza que faz todas as coisas, que o belo, o admirvel, tudo o que olhamos e que nos causa prazer pela sua ordem no indica a mo de um ser sbio que criou todas as coisas. A prpria natureza seria a causadora de tudo o que h, ou seja, a
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natureza seria a causa de si mesma, de sua beleza e organizao, pois, j que ela faz tudo o que podemos ver de mais belo e de mais admirvel, isso significa que ela mesma faz o que chamamos de natureza, tudo aquilo onde enxergamos beleza e harmonia. Para Meslier, a matria, o espao, a extenso no foram criados, pois:
mesmo impossvel que estas coisas no sejam infinitas em si mesmas, cada uma no seu gnero e na sua espcie (...) E no preciso mais para ver claramente que estas coisas no podem ter sido criadas, e se estas coisas no podem ter sido criadas, como acabmos de demonstrar, daqui decorre evidentemente que no h nada de criado e, por consequncia, que no existe um criador. (MESLIER, 2003, pp. 100-101).
Ou seja, em outras palavras, se estas coisas (a natureza, tudo o que existe) so eternas, ento a natureza deixa de ser obra de um criador e passa a ser algo que sempre esteve onde est. Esta posio semelhante que Voltaire defende na sua obra O filsofo ignorante, embora o filsofo, ao defender a eternidade da natureza, afirma que ela causada por Deus, ou seja, Deus atua "desde sempre" sobre sua criao, pois, para Voltaire, uma eternidade de cio era incompreensvel para Deus. Para Meslier, todavia, no h um criador para a natureza. Armando Farrachi, introduzindo a obra Memrias, diz que "na natureza, Meslier no v em nenhum lado a mo de Deus nem a obra da Providncia, mas to-s a natureza, uma natureza que, para existir, s precisa de ser por si mesma..." (MESLIER, 2003, p. 24). Da falta de necessidade de um criador que Meslier utiliza para ver a natureza como infinita em si mesma, passamos ao seu materialismo em relao ao ser humano. Como veremos neste mesmo captulo, o paralelo homem/animal, expresso utilizada por Maria das Graas de Souza em sua dissertao de mestrado, era um argumento bastante usado pelos materialistas do sculo XVIII e j aparece nos trabalhos de Jean Meslier. Este paralelo consiste em comparar os homens com os animais, ver as semelhanas entre seus rgos e constituio fsica e, assim, ver que no h necessidade de uma substncia espiritual para explicar as funes humanas atribudas, por muitos, alma. Deixemos a Meslier a palavra:
[os animais so] seres vivos e mortais como ns, feitos de carne, de sangue e de ossos como ns, possuidores como ns de todos os rgos da
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vida e do sentimento, ou seja, olhos para ver, ouvidos para ouvir, narinas para cheirar e distinguir odores, uma lngua e um palato na boca para distinguir os sabores das carnes e dos alimentos que so ou no bons para eles, e tm ps para andar; e, alis, vendo como ns vemos neles todas as marcas e todos os efeitos das paixes que sentimos em ns prprios, temos indubitavelmente de acreditar tambm que eles so sensveis tanto como ns ao bem e ao mal, ou seja, ao prazer e dor. (MESLIER, 2003, p. 92).
A anlise anatmica dos seres vivos mostraria, para os materialistas, que o homem tem tantas semelhanas com os animais em sua constituio fsica que no haveria lugar para uma substncia espiritual. A superioridade do homem se relativizaria com esta comparao, j que, se os animais sentem dor, comem, bebem, tm gosto e cheiram, assim como os humanos, ento conclui-se que o homem no tem uma alma espiritual. Meslier continua sua argumentao:
... eles [os animais] so sensveis dor como ns, apesar do que afirmam infundadamente, falsamente e ridiculamente os nossos novos cartesianos, que os olham como puras mquinas sem alma e sem sentimento algum, e que, por esta razo, e com base num raciocnio falso que fazem sobre a natureza do pensamento, de que estariam privadas as coisas materiais, afirmam que neles est inteiramente ausente todo o conhecimento e todo o sentimento de prazer e dor. (MESLIER, 2003, p. 91).
A ideia de ver os animais como mquinas, que no sentem dor ou no tm memria ou sentimentos, foi bastante zombada pelos filsofos do sculo XVIII, em especial por Voltaire. Como vemos, a semelhana entre homens e animais a fora do argumento materialista de Meslier, bem como do prprio Voltaire. Como vimos neste captulo, onde tratamos do dualismo de Descartes, o filsofo atribui o pensamento ao esprito, pois no conseguia conceber como a matria poderia ser responsvel por uma funo aparentemente no-material. Assim, raciocinava-se que os animais no pensam e os homens sim e, por isso, s estes ltimos teriam uma alma espiritual. No sculo XVIII este argumento se torna muito questionado. Meslier continua a criticar os cartesianos:
O que que imaginam, senhores cartesianos? No suficientemente claro para vs que eles [os animais] comunicam tambm entre si? Que eles se amam, que eles se acariciam, brincam e se divertem muitas vezes juntos?
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E que por vezes se odeiam, lutam e que no se suportam uns aos outros? Do mesmo modo que os homens que se odeiam e que no se suportam? (MESLIER, 2003, p. 94).
O sentimento, a memria, o afeto perdem aqui sua exclusividade como atributos somente dos seres humanos no apenas devido anlise anatmica de homens e de animais, como tambm deixam de ser um argumento levado a srio pela simples observao, pois qualquer pessoa poderia perceber que os animais tambm tm sentimentos. Ou seja, se em Descartes o sentimento no pode ser atribudo matria, em Meslier o comportamento dos animais prova exatamente o contrrio. Assim, ou os animais tm uma alma espiritual ou os homens no a tm. Para Meslier, Voltaire, Diderot e outros, a segunda opo verdadeira. Piva refora a oposio de Meslier, defendendo o materialismo, a Descartes, que defendia o dualismo da substncia:
No seu entender [de Meslier], tudo o que existe material, ou seja, s h matria no universo, apenas uma nica substncia na natureza. E substncia para ele toda realidade corporal. A matria a realidade, o Ser propriamente dito. E como Ser, a matria a causa de si mesma e de tudo o que (...) A idia da existncia de uma outra substncia alm da matria, uma substncia imaterial e imortal, refutada como fantasiosa. Nesse sentido, Meslier ope-se frontalmente a Descartes, o qual concebe o homem como uma substncia composta, mais precisamente como uma unio substancial constituda de matria e esprito, extenso e pensamento. (PIVA, 2005, p. 103).
Sei bem que no fcil conceber precisamente aquilo que faz com que a matria se mova desta ou daquela maneira, ou com esta ou aquela fora e velocidade. Confesso que no consigo imaginar a origem e o princpio eficaz deste movimento. No entanto, no sinto qualquer repugnncia, nem vejo qualquer absurdo nem qualquer inconveniente em atribu-lo prpria matria, e no vejo que se lhe possa encontrar algum, e os prprios partidrios do sistema da criao no conseguiriam encontrar nenhum. (MESLIER, 2003, p. 99).
A causa do movimento da matria, o que causa sua fora, velocidade, no conhecido por Meslier, mas, suspendendo o seu juzo sobre a questo, o nosso padre
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prefere entender que tudo causado pela matria, ainda que se abstendo de maiores explicaes. Assim, deixa de ser necessria, deste ponto de vista, uma substncia espiritual responsvel pelas nossas funes biolgicas. Afinal, para ele, no ver nenhuma ligao necessria entre a ideia de um corpo e a ideia de uma fora motora no quer dizer que no haja nenhuma. (MESLIER, 2003, p. 100). Ou seja, h uma fora motora causadora do movimento da matria, mas o homem no a conhece, assim como os dualistas tambm no conheceriam. Desta forma, tanto o materialista como o dualista estariam na ignorncia, mas Meslier entende que, ainda que o homem no conhea qual esta fora motora e como ela opera, ela no pode estar fora da matria. O filsofo corrobora a ignorncia humana acerca da sua prpria natureza e agora trata da origem dos pensamentos e dos sentimentos:
... no devemos ver nem conhecer ou sentir pelos nossos prprios pensamentos nem pelo nosso sentimento o que so os nossos pensamentos ou os nossos sentimentos, e no devemos ver nem conhecer ou sentir a maneira como eles se formam em ns. Basta-nos saber e estar seguros e certos de que pensamos e temos conhecimentos e sentimentos. Mas no necessrio que sintamos a maneira como se formam em ns. Imagino que isso tenha de algum modo a ver com o nosso esprito, ou seja, com a faculdade e a capacidade que temos naturalmente de pensar e de sentir, tal como com a faculdade e a capacidade que temos naturalmente de ver com os olhos do corpo e de agarrar qualquer coisa com as mos, e nenhuma mo seria capaz de se agarrar a ela prpria. De igual modo, compreendemos, concebemos e, por assim dizer, agarramos todas as coisas com o nosso esprito, embora o nosso esprito no possa agarrar-se nem compreender-se ou conceber-se por si prprio, e da mesma maneira tambm que vemos todas as coisas com os nossos olhos, ainda que os nossos olhos no possam ver-se a eles prprios, do mesmo modo igualmente que vemos tudo e percebemos tudo pelos nossos pensamentos e pelos nossos sentimentos, apesar de no conhecermos nada da natureza dos nossos pensamentos nem dos nossos sentimentos. (MESLIER, 2003, pp. 102-103).
Provavelmente Meslier esteja dialogando com os dualistas que atribuam os nossos pensamentos e sentimentos a uma substncia espiritual, como vimos, na seo anterior, que era o ponto de vista de Descartes. O padre, como falamos, apela para a ignorncia humana acerca do modo como o pensamento formado, fazendo uma analogia interessante: ns vemos com os olhos, mas os olhos no enxergam a si prprios. Ns pegamos com as mos, mas as mos no pegam a si prprias. Assim, o esprito agarra as demais coisas, mas no 145
agarra a si prprio, ou seja, o pensamento entende as outras coisas, mas no entende a si prprio, ele entende como o mundo funciona, mas no consegue entender como ele mesmo funciona. Assim, o nosso padre usa a ignorncia humana sobre a sua natureza, sobre o processo de como o pensamento formado, para suspender o juzo sobre a questo, sobre o seu modus operandi, mas, sem dvida, vendo em tudo apenas processos e substncias materiais. Novamente contrariando Descartes, Meslier afirma: "Podemos afirmar que os pensamentos e as sensaes dos corpos vivos se fazem atravs dos movimentos, das modificaes e das agitaes internas das partes da matria de que so compostos..." (MESLIER, 2003, p. 105). Se para Descartes no era concebvel, de forma alguma, atribuir o pensamento matria, para Meslier isso bastante natural. Maria das Graas refora o materialismo ateu de Meslier:
Recorrer alma espiritual para explicar o homem to intil quanto recorrer a um deus para explicar a natureza. "Ns sentimos... interiormente e exteriormente por ns mesmos, que no somos seno matria, e que nossos pensamentos mais espirituais so apenas matria em nosso crebro, e que eles dependem da constituio material deste crebro". O que chamamos alma constitudo apenas por uma espcie de matria mais malevel e mais sutil. A alma no portanto nem espiritual nem imortal, ela , ao contrrio, de natureza estritamente fsica, como todos os outros corpos da natureza. (SOUZA, 1983, p. 51).
Sendo o crebro material, e sendo o pensamento gerado pelo crebro, por que ento continuar a atribuir o pensamento a algo imaterial? Esta a pergunta que poderamos formular, a favor dos materialistas, em cima da citao acima. O pensamento no somente faria parte do crebro, como tambm ele mesmo seria material. Mesmo as nossas ideias mais inspiradoras, os sonhos msticos ou qualquer coisa que a teologia atribui ao esprito, o nosso padre contempla como produo material. Portanto, no haveria nenhuma vida fora do corpo, nenhuma sobrevivncia aps a morte, nenhum lugar ps-morte preparado para o ser humano. Da entende-se a razo de Meslier julgar as religies falsas, j que elas, dum modo geral, defendem uma vida ps-morte, uma realidade espiritual, um Deus (ou deuses, para as religies politestas) que fez tudo ou que sustenta a ordem natural. Portanto, ainda que o nosso objetivo no tenha sido expor com detalhes os pensamentos de Meslier, pudemos ter uma ideia geral do seu materialismo, atesmo e 146
comunismo. E, com isso, entender a razo de Voltaire no s ter publicado a obra de Meslier, ainda que com modificaes substanciais, como tambm a influncia que este exerceu sobre aquele.
D'Alembert, na condio de personagem de Diderot na obra Dilogo entre D'Alembert e Diderot, comea o dilogo dizendo o seguinte:
Confesso que um Ser que existe em alguma parte e que no corresponde a nenhum ponto do espao, um Ser que inextenso e que ocupa extenso, que totalmente inteiro sob cada parte dessa extenso, que difere essencialmente da matria e que lhe est unido, que a segue e que a move sem mover-se, que atua sobre ela e sofre todas as suas vicissitudes, um Ser do que no tenho a menor idia, um Ser de uma natureza to contraditria, difcil de admitir. (DIDEROT, 1985b, p. 85).
O que nos parece, por esta fala que Diderot coloca na boca de D'Alembert, que haveria uma dificuldade muito grande em se conceber como uma substncia espiritual se relacionaria com a matria, j que ela no seria material e teria atributos totalmente contraditrios com a matria. Ou seja, Diderot comea a sua obra problematizando a concepo da relao entre matria e esprito usando um jogo de palavras para tornar inadmissvel e inconcebvel que o ser humano tenha uma substncia no material trabalhando por trs da matria. Todavia, DAlembert pondera que, se por um lado haveria dificuldades em se conceber como uma substncia espiritual se relacionaria com a matria, por outro lado excluir uma substncia alm da matria tambm causaria problemas, pois, desta forma, se a sensibilidade for uma qualidade essencial da matria, substncias materiais como a pedra deveriam sentir (Cf. DIDEROT, 1985b, p. 85). Afinal, se o sentimento um atributo da matria, ento como explicar que a pedra no sente? Diderot tenta resolver o problema e passa a explicar a passagem do estado de matria bruta para matria sensvel usando o exemplo de um mrmore que se junta ao organismo humano (Cf. DIDEROT, 1985b, pp. 85-86). O filsofo pensa em um material de mrmore feito em pedaos, modo, que, quando fosse reduzido a p, seria lanado na terra. Ele mistura o p do mrmore a terra, deixando-os l por muito tempo, no importa quanto, 147
pois para a natureza tempo no problema, e o mrmore feito em pedaos se juntaria a terra. As verduras e os legumes plantados naquela terra, de alguma maneira, se juntariam ao mrmore, que por sua vez estava na terra. E o homem, ao comer a verdura e os legumes, vindos da terra, estaria tambm comendo o mrmore junto com esses alimentos. Desta forma, no processo de digesto, o mrmore, matria bruta, passaria a ser matria sensvel, juntando-se ao corpo, fazendo parte do organismo humano, que vivo. Assim, o mrmore deixaria de ser matria bruta e passaria a ser matria viva, sensvel, a fazer parte do homem. Portanto, desta maneira que o filsofo pretende resolver a dificuldade de como a matria bruta passa a ser matria sensvel, isto , por meio de processos materiais, fsicos, atravs do funcionamento natural do organismo humano. Todavia, o problema que fica o seguinte, proposto pela personagem DAlembert: Com tudo isso o ser sensvel no ainda o ser pensante (DIDEROT, 1985b, p. 86). Ou seja, Diderot se esforou por fazer a matria sem vida fazer parte de um organismo vivo, uma substncia bruta se tornar parte de um ser vivo, passando ela mesma, assim, a ser uma substncia viva. Todavia, como fazer esta substncia viva passar para o estado de ser pensante? O filsofo utiliza o exemplo da gestao, falando da gravidez desde o seu princpio, onde o ser vivo seria ainda um germe raro, se tornaria um feto e cresceria dentro do tero materno (Cf. DIDEROT, 1985b, p. 87). E o filsofo complementa:
E aquele que expusesse Academia o progresso da formao de um homem ou de um animal no empregaria seno agentes materiais cujos efeitos sucessivos seriam um ser inerte, um ser sensvel, um ser pensante, um ser que resolve o problema da precesso dos equincios, um ser sublime, um ser maravilhoso, um ser que envelhece, que enfraquece, que morre, dissolvido e restitudo terra vegetal. (DIDEROT, 1985b, p. 87).
Ou seja, o ser sensvel, que seria o indivduo no processo de gestao, passa a ser um indivduo que pensa, isso ao longo do processo de sua vida. Desta forma, o filsofo entende ter resolvido o processo de entender como a matria bruta passa para o estado de matria sensvel e, deste, para o estado de um ser pensante. Assim, quem quisesse falar da vida humana do ponto de vista da cincia, da razo, no deveria falar seno como um materialista. O homem concebido, nasce, cresce, se desenvolve, tudo isto com grande complexidade, vai envelhecendo, se desfazendo, at voltar terra. Enfim, Diderot s
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contempla elementos materiais em tudo isso, um processo aps o outro, at que o homem simplesmente acabe, termine, desaparea, e sua matria mude de forma na natureza. Ainda sobre a concepo de um ser humano, Diderot refora: Como se produziu isso? Comendo, e por outras operaes puramente mecnicas. Eis em quatro palavras a frmula geral: Comei, digeri, destilai in vasi licito, et fiat homo secundum artem (DIDEROT, 1985b, p. 87). Segundo a nota de rodap desta citao, no recipiente lcito, e o homem se fez como manda a arte. Ou seja, basta o homem se alimentar, para que o seu corpo tenha os ingredientes de que precisa para se manter vivo e em pleno funcionamento, digerir e ter relao sexual com uma mulher para que nasa outro ser material. O filsofo detalha mais a sua ideia da concepo ter apenas processos mecnicos e fisiolgicos envolvidos, dando o exemplo de como a formao da vida de uma ave ocorreria dentro do ovo, como vemos:
Vedes este ovo? com ele que se derrubam todas as escolas de Teologia e todos os templos da Terra. O que este ovo? Certa massa insensvel, antes que o germe seja nele introduzido; e depois que o germe introduzido, o que ainda? Certa massa insensvel, pois o germe no passa, por sua vez, de um fluido inerte e grosseiro. Como passar essa massa a outra organizao, sensibilidade, vida? Pelo calor. Quem produzir o calor? O movimento. Quais sero os efeitos sucessivos do movimento? Em vez de me responder, sentai-vos e acompanhemo-los com os olhos de momento a momento. Primeiro um ponto que oscila, um filete que se estende e que se colora; carne que se forma; um bico, pontas de asas, olhos, patas que aparecem; certa matria amarelada que se divide e produz intestinos; um animal. Este animal se move, se agita, grita; ouo seus gritos atravs da casca; ele se cobre de penugem; ele v. O peso da cabea, que oscila, leva incessantemente seu bico de encontro parede interna de sua priso; ei-la quebrada; ele sai dela, anda, voa, se irrita, foge, aproxima-se, sofre, ama, deseja, goza; tem todas as vossas afeces; todas as vossas aes, ele as executa. (DIDEROT, 1985b, p. 89).
O filsofo deseja expor o processo de formao de vida do pintainho passo a passo, desde o momento em que o germe seria introduzido no ovo at o nascimento da ave. O objetivo do filsofo demonstrar que o processo de gerao de vida pode ser explicado somente com elementos materiais e que, desde o estado em que o ovo apenas uma matria sem vida at o momento em que o pintainho nasce, tem vida e at sentimentos, no necessrio empregar nada alm daquilo que podemos investigar, ou seja, processos materiais. Por meio de todos estes processos materiais, temos um novo ser. Diderot trata 149
no apenas do processo materialista da formao de um ser vivo no humano, mas tambm o compara a um ser humano, falando dos sentimentos da ave que so paralelos aos sentimentos do homem (amar, desejar, gozar) e tambm afirmando que todas as aes e afetos humanos tambm so atributos da pequena ave. Com isso, o homem s mais um ser na natureza, deixa de ter uma superioridade absoluta em relao aos demais seres e tambm, assim como o pintainho, precisa somente de processos materiais para ter sua vida explicada. Para Luiz Roberto Salinas Fortes, o homem, para Diderot, em nada difere dos outros seres do universo: uma poro de matria constituda de tomos e construda segundo as leis universais que regem toda a Natureza. Alm disso, no h nenhum Deus. (FORTES, 1981, pp. 55-56). Maria das Graas de Souza comenta a respeito do assunto em Diderot:
Um ovo, em princpio matria inerte, atravs do calor passa vida e sensibilidade. No Sonho de dAlembert, trata-se ainda da origem da sensibilidade e do pensar: Primeiro nada, depois um ponto vivo... mas um animal! um todo! um sistema, tendo conscincia de sua unidade...no...eu no compreendo. Qual a importncia da questo que povoa o delrio de dAlembert, ou seja, se a matria bruta pode ou no passar sensibilidade e vida? Ora, se a matria inanimada pode passar por si mesma vida e em seguida sensibilidade e ao pensar, a natureza inteira pode organizar-se a si mesma, sendo ela mesma responsvel pelas suas formas atuais. (SOUZA, 1983, pp. 89-90).
Assim, Maria das Graas entende que o objetivo do filsofo com o exemplo do ovo demonstrar que a vida se forma de uma substncia inanimada (o ovo), o que nos levaria a entender que a matria sem vida passou a ter vida e organizou a si prpria. Desta forma, para entender a natureza, o filsofo materialista precisaria olhar apenas para a matria para entender como se deu o processo de formao de todas as coisas. Se para Voltaire a natureza evidncia da mo do Artista Supremo, para Diderot tudo se explica por meio de processos materiais. A explicao baseada em uma substncia espiritual, a ideia de uma alma no material que anima o corpo no foram aceitas por Diderot, o que reflete o ponto de vista do materialismo do sculo XVIII. As explicaes de Descartes caram por terra e eram vistas apenas como romances sobre a alma, como Voltaire mesmo falou. Assim, um elemento espiritual soava estranho para os tais filsofos, como Diderot refora: 150
Sede lgico, e no substituais uma causa que existe e que explica tudo por outra causa que no se concebe, cuja ligao com o efeito se concebe ainda menos, que engendra uma multido infinita de dificuldades e que no resolve nenhuma. (DIDEROT, 1985b, p. 90).
Esta outra causa que no se concebe a alma, uma causa espiritual, algo que o materialismo no aceitava como realidade. A ligao de uma substncia espiritual com a matria era algo inconcebvel para o filsofo. No se poderia conceber como o movimento, o pensamento, o funcionamento dos rgos e qualquer outra funo biolgica teria, por trs, uma causa espiritual. Era algo absurdo para Diderot que uma substncia no material se relacionasse com uma substncia material (o corpo), como um elemento sem extenso estaria dentro de outro elemento com extenso e assim por diante. Em suma, no se poderia conceber como algo com uma natureza diferente do corpo poderia ter uma relao to ntima com ele. Dessa forma, seria melhor entender a natureza do ser humano, sua vida e tudo o que vemos apenas buscando respostas na concepo materialista. O filsofo demonstra sua rejeio ao dualismo da substncia, reforando que tudo o que existe composto por matria:
No h seno uma substncia no universo, no homem, no animal. A serineta de madeira, o homem de carne. O canrio de carne, o msico de uma carne diversamente organizada; mas ambos tm uma mesma origem, uma mesma formao, as mesmas funes e o mesmo fim. (DIDEROT, 1985b, p. 90).
O leitor pode perceber que o filsofo trata como materiais algo inanimado como a madeira e seres animados como o canrio e o prprio homem. A diferena entre essas substncias materiais est na organizao de sua matria, no em um dualismo corpo/esprito que caracterizaria o ser humano. Assim, o homem difere dos outros seres da natureza no por ser absolutamente superior a eles, por possuir uma substncia espiritual ou por qualquer outro elemento alm da natureza, mas somente pela forma como seu corpo est organizado. Diderot demonstra, tambm a favor do materialismo, as aberraes naturais que fazem uma pessoa no ter sua constituio fsica normal, dando o seguinte exemplo:
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[um homem] tinha as vsceras interiores do peito e do abdmen numa situao invertida, o corao direita precisamente como vs o tendes esquerda; o fgado esquerda; o estmago, o bao, o pncreas, no hipocndrio direito; a veia porta no fgado do lado esquerdo, quando o seu lugar no fgado do lado direito; a mesma transposio no comprido canal dos intestinos; os rins, acostados um ao outro sobre as vrtebras dos lombos, imitavam uma ferradura. E que venham depois disso nos falar de causas finais! (DIDEROT, 1985c, p. 107).
A causa final, se tiver aqui em Diderot o mesmo significado que Voltaire expressa em seu Dicionrio filosfico, no verbete fim, causas finais, se refere ideia, por exemplo, de afirmar que o estmago foi feito para digerir, que o corao foi feito para bombear sangue para o corpo, que os olhos foram feitos para enxergar, etc. Enfim, aquilo que faz o que faz, na natureza, em todos os lugares e pocas foi feito para fazer o que vem fazendo desde sempre, ou desde que existe. Para Diderot, a exceo, a pessoa que tem seus rgos fora do lugar, que no funcionam adequadamente, seria a evidncia de que no existem causas finais. Por exemplo, se a causa final diz que os dentes servem para mastigar e, dessa forma, provam a existncia de um desgnio para o corpo humano, do qual os dentes seriam uma pequena e importante parte, o que provaria um criador para este mesmo corpo, um ser humano, que por algum motivo natural no tivesse seus dentes, seria a prova de que no h causas finais. Ou seja, ainda que os rgos humanos ou dos animais desempenhem funes claras e tenham objetivos bem conhecidos pelo ser humano, a exceo provaria, em Diderot, que no h propsito algum a priori. O objetivo do filsofo apresentar o ser humano apenas como um ser biolgico, no espiritual, no como uma criatura que existe por propsito divino, mas que foi se desenvolvendo pela prpria necessidade que a natureza lhe imps, como veremos no pargrafo adiante. A complexidade do corpo humano e seus rgos que desempenham determinadas funes so vistos por Diderot como um desenvolvimento natural, consequncia da necessidade, como ele fala por meio do mdico Bordeu: ... os rgos produzem as necessidades e reciprocamente as necessidades produzem os rgos. (DIDEROT, 1985c, p. 102). Isto quer dizer que, como um dia eu precisei que o meu sangue fosse bombeado para todo o corpo, ento o meu corpo, necessitando deste processo complexo, com o auxlio da natureza, desenvolveu o meu corao. O filsofo detalha sua explicao por meio do mdico: 152
Suponde uma longa srie de geraes manetas, suponde esforos contnuos, e vereis os dois lados dessa pina se estenderem, se estenderem cada vez mais, se cruzarem sobre as costas, voltarem para a frente, talvez se digitarem nas extremidades, e reconstiturem braos e mos. A conformao original se altera ou se aperfeioa pela necessidade e pelas funes habituais. Andamos to pouco, trabalhamos to pouco e pensamos tanto, que no desespero que o homem acabe sendo apenas uma cabea. (DIDEROT, 1985c, p. 102).
A repetio de um ato por parte de um indivduo, consequncia de uma necessidade, faria com que as partes do corpo humano fossem se modificando pouco a pouco. Veja que o filsofo usa a expresso uma longa srie de geraes manetas, o que sugere que ele est pensando numa teoria evolucionista que necessita de bastante tempo para demonstrar os seus efeitos. Diderot refora esta concepo evolucionista embrionria em seu pensamento:
No sabemos o que foram [os animais] assim como no sabemos o que se tornaro. O vermezinho imperceptvel que se agita na lama encaminha-se talvez para o estado de grande animal; o animal enorme, que nos apavora por sua grandeza, encaminha-se talvez para o estado de vermezinho, talvez uma produo particular momentnea deste planeta. (DIDEROT, 1985b, p. 87).
O filsofo relativiza as espcies como estados absolutos e imutveis, vendo-as como temporrias, momentneas, transitrias, entendendo que aquilo que foi hoje tem a possibilidade de no ser amanh e vice-versa. Naturalmente este ponto de vista se chocaria com a viso crist que interpreta o Gnesis de modo literal, pois ali os animais so criados segundo as suas espcies pelo prprio Deus (Gn 1:25). Assim, fazer das espcies estados momentneos, que poderiam ser diferentes em outros tempos, seria, do ponto de vista bblico-literal, excluir Deus como criador das espcies, da natureza, ou ento questionar a veracidade do texto sagrado. Portanto, Diderot naturalmente entraria em choque com a viso da Igreja acerca da formao dos seres vivos, o que mais tarde ocorreu com a teoria da evoluo de Darwin. Vejamos mais uma referncia que no s defende o materialismo, mas tambm a efemeridade das espcies na viso do nosso filsofo:
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Extinto o sol, o que acontecer? As plantas perecero, os animais perecero, e eis a Terra solitria e muda. Reacendei esse astro, e no mesmo instante restabeleceis a causa necessria de uma infinidade de geraes novas entre as quais eu no ousaria assegurar que no decurso dos sculos nossas plantas, nossos animais de hoje se reproduziro ou no se reproduziro. (DIDEROT, 1985b, p. 87).
O sol, como algo material, seria a condio para que a vida fosse causada e tambm a condio necessria para a sua manuteno. Portanto, a vida material depende de algo material, o que exclui, na viso do filsofo, qualquer parte espiritual no processo ou na natureza dos seres. Indiretamente tambm Diderot critica a viso bblica das espcies como criaturas divinas, pois ele no garante que, se a condio para a vida, o sol, fosse tirada e, por algum motivo retornasse, as espcies seriam como so atualmente. Os animais, as plantas e os outros seres vivos poderiam ser diferentes, o que os relativizaria como espcies, fazendo do seu estado algo temporrio e condicionado somente natureza, no a algo externo a ela. A seguir, veremos algumas consequncias da concepo materialista do filsofo. Diderot faz Bordeu, o mdico, na obra O sonho de D'Alembert, falar:
... passastes dois teros de vossa vida a sonhar de olhos abertos e a agir sem querer; sim, sem querer, bem menos que em vossos sonhos. Em vosso sonho comandais, ordenais, sois obedecido; ficais descontente ou satisfeito, experimentais contradio, deparais obstculos, vs vos irritais, amais, odiais, censurais, ides, vindes. No decurso de vossas meditaes, mal vossos olhos se abriam de manh quando, presa novamente da idia que vos preocupara na vspera, vs haveis vos vestido, sentado vossa mesa, meditado, traado figuras, seguido os clculos, almoado, retomado vossas combinaes e s vezes deixado a mesa para verific-las; vs haveis falado a outrem, dado ordens vossa criada, ceado, vs haveis vos deitado, adormecido sem ter praticado o menor ato de vontade. No fostes seno um ponto; agistes mas no quisestes. Ser que se quer, por si? A vontade nasce sempre de algum motivo interior ou exterior, de alguma impresso presente, de alguma reminiscncia do passado, de alguma paixo, de algum projeto no futuro. Depois disso, dir-vos-ei sobre a liberdade apenas uma palavra, que a derradeira de nossas aes o efeito necessrio de uma causa una: ns, muito complicada, porm una. (DIDEROT, 1985c, p. 118).
O materialismo de Diderot o levou a um certo determinismo, ao menos nas obras que estamos analisando. A citao acima comea usando o exemplo da pessoa que faz as suas aes automaticamente, mecanicamente, sem refletir, pensar, decidir. O exemplo dado 154
trata de uma pessoa que acorda pensando em um problema e, provavelmente por isso, vai fazendo as suas atividades cotidianas sem pensar, mas de maneira automtica, pensando naquilo que a aflige. Alm disso, o filsofo afirma que a nossa vontade nasce sempre de outro motivo, externo ou interno, de algo anterior a ela. Desta forma, a vontade no seria autnoma e o homem no seria livre. Como veremos no captulo que trata da liberdade em Voltaire, esta tambm foi a concluso a que o patriarca de Ferney chegou em suas obras mais avanadas. No dilogo entre a Senhorita de l'Espinasse e Bordeu, aps o mdico dizer a gente nasce afortunada ou desafortunadamente; somos irresistivelmente arrastados pela torrente que conduz um glria e outro ignomnia (DIDEROT, 1985c, p. 118), ela o questiona acerca dessa afirmao e ele a responde: Puerilidade fundada na ignorncia e na vaidade de um ser que se imputa a si prprio o mrito ou o demrito de um instante necessrio. (DIDEROT, 1985c, p. 118). Ou seja, negar que o determinismo verdadeiro baseia-se na vaidade do homem, que no admite que o que lhe acontece necessrio, ou fruto da ignorncia humana. A Senhorita de lEspinasse o questiona, ainda, sobre recompensas e castigos impostos pelas leis, j que o determinismo tornaria a moral e as punies aos crimes algo problemtico, j que o criminoso no seria responsvel, assim, por suas aes, e eis a resposta de Bordeu: So meios de corrigir o ser modificvel que se denomina mau, e encorajar o que se denomina bom. (DIDEROT, 1985c, p. 119). Aps a senhorita questionar o sbio mdico sobre a utilidade de recompensas e castigos que a lei impe, j que tudo determinado pela natureza, ele responde a ela que servem apenas para corrigir quem modificvel, ou seja, servem apenas para quem no est predestinado, pela natureza, a ser o que fatalmente. Quem pode sofrer modificao, ser exortado pelo castigo do criminoso, quem no pode sofrer mudana, no ser modificado. E, aquele que denominado bom, continuar a fazer o bem ao ver o exemplo que o magistrado d sociedade ao punir o homem. Assim, nada pode escapar ao destino implacvel imposto pela natureza. Na Continuao do dilogo, a curiosa senhorita passa a interrogar o mdico sobre questes sexuais. A viso materialista do homem influenciaria, assim, as questes morais anteriormente estabelecidas pela religio. A senhorita de LEspinasse pergunta ao mdico Bordeu o que ele pensa sobre a mistura de espcies, hibridao, e ele responde: 155
Por minha f, a pergunta tambm boa. Penso que os homens atriburam muita importncia ao ato da gerao, e que foi com razo; mas estou descontente com suas leis tanto civis como religiosas. (DIDEROT, 1985d, p. 125).
O mdico explica o motivo do seu descontentamento: ... [as leis] foram feitas sem eqidade, sem objetivo e sem nenhum respeito para com a natureza das coisas e a utilidade pblica. (DIDEROT, 1985d, p. 125). As leis, ou as regras referentes ao sexo, tendo forte influncia da viso judaico-crist, seriam sem equidade, ou seja, injustas para o mdico materialista. Seriam injustas, provavelmente, porque ele as considerava contrrias natureza humana. Sendo assim, ao implantar leis contrrias natureza, os homens no apenas so injustos com seus semelhantes, como desrespeitam as leis naturais. Diderot coloca na boca do mdico um discurso contra a castidade e contra a continncia, como vemos:
Logo, a despeito dos magnficos elogios que o fanatismo lhes [ castidade e continncia] prodigalizou, a despeito das leis civis que as protegem, ns as excluiremos do catlogo das virtudes, e conviremos que nada h de to pueril, de to ridculo, de to absurdo, de to nocivo, de to desprezvel, nada h de pior, exceo do mal positivo, do que essas duas raras qualidades...(DIDEROT, 1985d, p. 126).
O fanatismo seria um dos motivos, para o filsofo materialista, da castidade ser vista como virtude. Todavia, ele no poupa adjetivos pejorativos para descrever a abstinncia, sendo ela derrotada apenas, no catlogo das coisas ruins, pelo mal positivo, provavelmente uma referncia ao mal que um indivduo possa fazer ao outro. O filsofo defende a prtica da masturbao e da relao sexual como um meio de impedir que as jovenzinhas adolescentes ficassem loucas (Cf. DIDEROT, 1985d, pp. 126127). Mais uma vez, temos em Diderot a ideia de que as restries referentes ao sexo, vindas da religio, so prejudiciais s pessoas. Portanto, para o filsofo a relao sexual era uma questo de sade pblica, expresso bastante usada nos nossos dias, e as regras morais tradicionais serviriam apenas para prejudicar as pessoas.
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Voltando mistura de espcies defendida pelo mdico, temos a uma questo cientfica, a qual, em Diderot, deveria estar acima da religio. A citao a seguir demonstra esta ideia:
... [devido] s nossas repugnncias, s nossas leis, aos nossos preconceitos, h pouqussimas experincias [mistura de espcies] feitas; que se ignoram quais seriam as cpulas inteiramente infrutuosas; os casos em que o til se reuniria ao agradvel; que sorte de espcies se poderia esperar de tentativas variadas e seguidas; se os faunos so reais ou fabulosos; se no se multiplicariam de cem maneiras diversas as raas dos mulos, e se as que conhecemos so verdadeiramente estreis. (DIDEROT, 1985d, p. 128).
Os conceitos morais estabelecidos, ento, atrapalhariam o desenvolvimento das espcies. A cincia estaria perdendo tempo e conquistas por causa da moral inspirada pela religio, por causa do preconceito. A mistura de espcies poderia gerar seres que nem conhecemos, poderia provar que alguns animais estreis, na verdade, poderiam ser reprodutores. Enfim, se o filsofo j concebia uma espcie de teoria da evoluo presente na natureza, ento o homem poderia, por meio do seu conhecimento, ajudar neste processo, fazendo, por meio da hibridao, as espcies a evolurem, ou mesmo fazer surgir novos seres. O mdico Bordeau tambm defende que o ser humano participe da mistura de espcies, dando como exemplo o cruzamento do homem com a cabra, pois assim ... tiraramos dela uma raa vigorosa, inteligente, infatigvel e veloz, da qual faramos excelentes domsticos. (DIDEROT, 1985d, p. 128). Na sequncia, Diderot diz, por meio do mdico, que o homem no seria mais uma besta de carga, o que sugere que ele seria mais forte para exercer o trabalho braal, fazendo deste mesmo trabalho algo no to penoso assim. Portanto, Diderot mistura as caractersticas da cabra (infatigvel, veloz e vigorosa) com um atributo humano (a inteligncia) e pensa em um ser composto por tudo isso. Assim, os homens estariam perdendo tempo em no cruzar as espcies e at envolver o ser humano neste suposto processo de evoluo dos seres vivos. A obra Carta sobre os cegos para uso dos que vem tambm relevante para compreendermos um pouco mais sobre o materialismo de Diderot. Se nas obras que aqui analisamos anteriormente vimos a concluso do filsofo de que o ser humano feito 157
somente por matria e alguns desdobramentos desta concepo, neste trabalho o filsofo busca tratar de algo mais especfico, ou seja, sobre como os nossos cinco sentidos influenciam os conceitos morais e a metafsica. Assim, para Diderot, no h ideias inatas acerca da moral, mas os sentidos constroem os nossos sentimentos, conceitos, pontos de vista, padres. Portanto, uma substncia espiritual que veio de Deus e recebe dele princpios universais substituda pelos sentidos e pela experincia. Nesta obra temos tambm a crtica do filsofo queles que quiseram dar explicaes sobre a alma sem ter qualquer conhecimento sobre sua natureza. Diderot satiriza aquilo que os filsofos falaram sobre a natureza da alma sem conhec-la, usando o exemplo do cego de nascena que buscava conhecer aquilo que a ausncia da viso no lhe permitia. Assim, o cego de nascena, por ter ouvido falar, discorre to bem e de maneira to justa acerca de tantas coisas que lhe so absolutamente desconhecidas... (DIDEROT, 1985a, p. 4). O cego, na verdade, apenas repetia aquilo que tinha ouvido falar e, de tanto ouvir, acabava explicando muito bem algo que nunca tinha visto e cuja viso seria essencial para ele explicar. Contudo, mesmo sem conhecer, suas explicaes eram convincentes. O filsofo faz o seu personagem cego de nascena tentar explicar o que a viso:
A vista, deve ele concluir, portanto uma espcie de tato que se estende apenas aos objetos diferentes de nosso rosto, e afastados de ns. Alis, o tato lhe d idia apenas do relevo. Portanto, acrescenta, um espelho uma mquina que nos pe em relevo fora de ns mesmos. (DIDEROT, 1985a, p. 4).
O cego, sem ter conhecimento sobre o que a viso, a imagina a partir do tato, tentando juntar as informaes da sua experincia com o tato com aquilo que ouvia das pessoas que enxergavam. Por isso, Diderot faz o cego chegar a uma concluso curiosa sobre a viso que no conhecia, e jamais iria conhecer, a fim de mostrar, talvez, as concluses absurdas a que os homens chegavam ao falar sobre a natureza da alma que no conheciam. O cego tem a palavra: e no compreendo de modo algum como esse outro ns mesmos, que, segundo ele, o espelho repete em relevo, escapa ao sentido do tato. (DIDEROT, 1985a, p. 5). O cego, mais uma vez, pensa a viso a partir do tato. De fato, ele raciocinava bem com os sentidos que possua, mas o seu raciocnio jamais chegaria ao 158
conhecimento da viso sem possu-la, fazendo-o mesmo a chegar a uma concluso absurda sobre o reflexo que o espelho produzia da imagem. Diderot demonstra que o cego desenvolve melhor os quatro sentidos que possui do que as pessoas que enxergam e, assim, ele se estima mais do que os que enxergam. E, fazendo um paralelo com os animais, que Diderot afirma raciocinarem, eles, os animais, se considerariam superiores ao homem, pois possuem algumas capacidades superiores ao ser humano (Cf. DIDEROT, 1985a, p. 6). Uma guia, por exemplo, se acharia superior ao homem por voar e enxergar bem melhor do que os humanos, assim como o cego se julga superior aos que enxergam por possuir tato e audio mais bem desenvolvidos. Portanto, assim como o homem que v pode se sentir superior ao que no v, enganando-se, assim tambm o homem se engana ao se sentir superior aos animais, j que estes ltimos tm capacidades que os seres humanos no tm. Com isso, Diderot tira do homem a sua posio de um ser superior aos animais, relativizando a sua superioridade ao trazer tona a sua inferioridade fsica. Como dissemos, para o filsofo, os sentidos influenciam na moral, como vemos: ... o estado de nossos rgos e de nossos sentidos tem muita influncia sobre nossa metafsica e sobre nossa moral... (DIDEROT, 1985a, p. 8). Segundo Diderot, o cego sentia grande averso ao roubo, pois seria facilmente roubado e, se roubasse, seria facilmente pego. Assim, a falta de um sentido influenciaria na moral do homem (Cf. DIDEROT, 1985a, p. 8). Talvez o objetivo com esta concluso sobre a moral do cego seja criticar o ponto de vista de uma moral inata, que faria parte de uma substncia espiritual vinda de Deus. Com isso, nos baseando no que Diderot diz nesta obra, no haveria princpios ticos universais e absolutos, mas relativos, produzidos biologicamente e alterados conforme a constituio fsica de cada homem. Por fim, como passamos pelas ideias gerais do materialismo de Diderot e por seus desdobramentos, no s nas questes sexuais como tambm na suposta influncia dos sentidos nas concepes morais, veremos agora um texto onde o filsofo usa a dificuldade de se conceber a manuteno dos sentidos aps a morte para problematizar a sobrevivncia de uma substncia espiritual que o homem teria. A obra Dilogo de um filsofo com a marechala de... parece ter como seu objetivo mais relevante a tentativa de se provar que o ateu no precisa de f para ser virtuoso. 159
No dilogo do filsofo com a marechala sobre a sobrevivncia da alma aps a morte, a marechala questiona o filsofo sobre a razo dele querer tirar esta esperana das pessoas que assim acreditam e ele responde da seguinte forma:
No alimento esta esperana, porque o desejo no me ocultou a sua vaidade; mas no a tiro de ningum. Se algum pode crer que ver, quando no tiver mais olhos; que ouvir, quando no tiver mais ouvidos; que pensar, quando no tiver mais cabea; que amar, quando no tiver mais corao; que sentir, quando no tiver mais sentidos; que a gente existir, quando no estiver mais em parte alguma; que h de ser alguma coisa, sem extenso e sem lugar, consinto nisso. (DIDEROT, 1985e, p. 206).
Diderot reconhece que desejaria no se extinguir quando morresse, mas afirma que o seu desejo no ocultou a vaidade desta ideia. Sua fala irnica, j que ele no deseja tirar esta esperana das pessoas, mas, ao mesmo tempo, zomba de quem entende que os sentidos se mantero aps a morte. O seu consentimento parece querer dizer que, j que algum quer crer em algo que no comporta a menor evidncia, que seja assim. Luiz Roberto Salinas Fortes corrobora, comentando a passagem: Ou seja, se possvel acreditar em tamanhos absurdos, ento consinto em que h algo alm da matria. Tudo matria, pensa Diderot, e a matria a essncia do real. (FORTES, 1981, p. 56). Como veremos neste captulo, Voltaire tambm utiliza este argumento para problematizar a ideia do dualismo da substncia. Em suma, pudemos contemplar um dos exemplos da viso materialista do sculo XVIII, expressa em Diderot, um dos filsofos mais importantes do perodo. Dessa forma, ao informarmos ao leitor acerca do materialismo do sculo XVIII, sobre o que se pensava sobre a alma na poca, poderemos situar Voltaire melhor em seu contexto histrico, vendo como muitos de seus argumentos eram apenas aqueles bem conhecidos e usados pelos materialistas de ento.
Nas sees a seguir apresentaremos os argumentos de Voltaire contra a espiritualidade e contra a imortalidade da alma, onde o filsofo problematiza a concepo 160
dualista, criando dificuldades racionais para os defensores da ideia de que o homem possui uma substncia espiritual. O filsofo trata, a seguir, da dificuldade em se conceber como o ser humano poderia continuar a ter sentidos aps a morte, aps a destruio do corpo que possui os sentidos, e tambm como a identidade humana seria mantida aps o falecimento. E tambm apresentamos textos do autor do Cndido que indicam que faltariam evidncias fsicas para demonstrar a existncia de uma suposta substncia espiritual que comporia a natureza humana.
Uma das armas de Voltaire contra o conceito da existncia de uma alma espiritual e imortal, que existiria dentro do corpo e lhe daria vida, a dificuldade que ele prope aos seus leitores acerca da manuteno dos sentidos humanos aps a morte biolgica. Em outras palavras, percebemos que Voltaire utiliza o problema em concebermos como a alma falaria, por exemplo, aps ter sado do seu corpo fsico que possui a lngua e a boca, a fim de que se torne absurda a ideia de que uma substncia imaterial tenha sentidos sem o corpo. Para o nosso filsofo, a alma no poderia pensar sem o crebro, enxergar sem os olhos, ouvir sem os ouvidos, falar sem a lngua ou tocar sem o tato. Para ele, estas funes biolgicas no poderiam ser exercidas de modo independente por uma suposta alma imaterial e autnoma em relao ao corpo. Vejamos Voltaire expressando o seu ponto de vista em seu Dicionrio filosfico:
No se ergueram menos sistemas a discutir o modo como a alma sentir quando abandonar o corpo atravs do qual sentia, como poder ouvir sem orelhas, cheirar sem nariz e apalpar sem mos; e se o corpo que reocupar depois ser aquele que tinha aos dois anos ou aos oitenta; como o eu , a identidade da prpria pessoa subsistir (...) Nunca mais acabaramos, se quisssemos enumerar todos os extravagantes dislates que a coitada da pobre alma humana imaginou sobre si prpria. (VOLTAIRE, 1978c, p. 91).
O nmero considervel de sistemas que se ergueram para discutir a questo, segundo Voltaire, nos sugere que este problema bastante relevante no debate acerca da natureza da alma e de sua possvel sobrevivncia aps a morte biolgica, e que tambm
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havia dificuldades, do ponto de vista da razo, em super-lo. O filsofo questiona at mesmo como se daria a ressurreio dos corpos, perguntando, retoricamente, qual corpo esta alma reocupar, ou seja, para qual corpo ela voltar? Para o corpo que habitava quando tinha dois anos, oitenta, quinze? O objetivo, sem dvida, encontrar dificuldades para a sobrevivncia da alma e para uma possvel ressurreio. Alm disto, Voltaire tambm cita as inmeras discusses que tentaram resolver a questo, isto com o objetivo de persuadir o seu leitor de que no vale a pena criar mais uma ou talvez prolongar uma das discusses j existentes, j que, segundo ele nunca mais acabaramos. Alm de ser uma discusso infindvel, para ele todas estas ideias que explicam a manuteno dos sentidos aps a morte so dislates, tolices, respostas inteis, romances da alma. Para Voltaire, era irracional imaginar que os sentidos humanos viriam de uma substncia espiritual, invisvel e imortal. Se, para ele, as ideias humanas, bem como as dos animais, vm pelos sentidos, obviamente no sobra lugar para uma alma espiritual, j que os sentidos s existem atravs do contato com o mundo. Voltaire assim se expressa, zombeteiramente, em seu Tratado de metafsica:
Esta [a razo] ensinou-me que todas as idias dos homens e dos animais lhes vm pelos sentidos e confesso no poder segurar o riso quando me dizem que os homens ainda tero idias quando no tiverem mais sentidos. (VOLTAIRE, 1978b, p. 74).
Misturando uma interpretao pretensamente racional (as ideias vm pelos sentidos) com seu tom zombador, Voltaire evoca a cena de uma pessoa que ouve algo digno de zombaria e, pelo teor srio da conversa, no deve manifestar seu sarcasmo, mas est se esforando muito para no rir, j no conseguindo mais se segurar diante de algo to irracional. Voltaire tambm questiona a identidade que tal alma teria aps a morte, j que, alm de no conceber como a alma continuaria sentindo sem os cinco sentidos, ele tambm se pergunta quem ser esta alma aps a morte, aps a perda de lembranas, caso o defunto tenha perdido a memria antes de morrer. Eis como Voltaire coloca o problema, no mesmo Tratado de metafsica:
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O que constitui a pessoa de Tiago, fazendo com que Tiago seja ele mesmo e o mesmo que era ontem a seus prprios olhos, a lembrana das idias que tinha ontem, e que no seu entendimento une sua existncia de ontem sua existncia de hoje, pois se tivesse perdido inteiramente a memria, sua existncia passada lhe seria to estranha quanto a de um outro homem. No seria mais o Tiago de ontem, a mesma pessoa, como no seria Scrates ou Csar. Ora, suponho que Tiago, em sua ltima doena, tenha perdido totalmente a memria, morrendo consequentemente sem ser o mesmo Tiago que viveu. Deus devolver sua alma essa memria que perdeu? Criar novamente essas idias que no mais existem? Neste caso no ser um homem completamente novo, to diferente do primeiro quanto o hindu de um europeu? (VOLTAIRE, 1978b, pp. 74-75).
Esta questo, que prope dificultar a concepo da imortalidade da alma, problematiza a suposta identidade que a alma do indivduo teria aps a morte. Percebemos que o objetivo de Voltaire criar mais um impedimento racional para se crer na sobrevivncia da alma aps a morte, j que, partindo deste ponto de vista, uma alma que perde a memria em vida e depois alcana a outra vida no seria mais a mesma pessoa. Dessa forma, no seria o mesmo Tiago quem continuaria sua vida na eternidade, mas um novo ser, com uma nova identidade, sem lembranas do seu passado. E assim Voltaire cita um exemplo que, obviamente, uma exceo (a pessoa perder a memria antes de morrer), a fim de que tenhamos dificuldades para crer na identidade da alma aps deixar o corpo. Isso, claro, hipoteticamente, pois Voltaire demonstra no crer numa alma espiritual que sobrevive. Maria das Graas de Souza faz o seguinte comentrio sobre o pensamento de Voltaire acerca do assunto:
Ora, ns devemos o sentimento de nossa subsistncia ou de nossa identidade pessoal memria, que conserva as sensaes corporais. Em outras palavras, eu sei que sou hoje o mesmo que era ontem porque guardo a lembrana de meu corpo e de minhas sensaes, que hoje so as mesmas de ontem. Uma vez destrudo o corpo e as sensaes, de que forma esse eu poder subsistir? (SOUZA, 1993, p. 30).
Em outras palavras, para a autora Voltaire problematiza a questo da alma ao entender que o ser humano constitudo por sua memria, por seus sentidos, e que esta constituio se explica do ponto de vista materialista. Afinal, a pergunta de que forma esse eu poder subsistir? um claro indicativo de que, com a morte, tudo seria destrudo, a 163
identidade, a memria, os sentidos. Dessa forma, o que sobraria? Como o indivduo manteria sua identidade aps perecer? Voltaire, aps problematizar a questo da identidade, caminha com mais cautela ao pensar na seguinte possibilidade, ainda no mesmo exemplo:
Mas pode-se dizer tambm que, Tiago tendo perdido inteiramente a memria antes de morrer, sua alma poder recobr-la assim como recobrada aps um desmaio ou aps uma congesto cerebral, pois um homem que perdeu inteiramente a memria numa grande doena no deixa de ser o mesmo homem quando a recupera. Portanto, a alma de Tiago, se tiver uma, e se for imortal pela vontade do Criador, como se supe, poder recuperar a memria aps sua morte, exatamente como a recupera aps um desmaio durante a vida. E assim, Tiago ser o mesmo homem. (VOLTAIRE, 1978b, p. 75).
No querendo impor limites ao Criador, ou apenas dando espao para um provvel argumento oposto ao seu, Voltaire pensa no simples exemplo de algum que esteve doente, desmaiou, perdeu a memria e voltou a si. Ora, talvez o que parea estar nas entrelinhas seja que, se Deus permite que isto acontea entre ns, diante dos nossos olhos, por que no poderia acontecer aps a morte, no campo do desconhecido? Ou seja, se um homem pode perder a memria, recuper-la e ter a sua identidade de volta, por que ele no poderia perder a sua memria temporariamente com a morte e recuper-la em seguida, pelo poder de Deus? Assim, o problema da identidade estaria resolvido. Mas no podemos deixar de reforar que Voltaire no est dizendo que isto acontecer, mas est trabalhando hipoteticamente, pensando em algo que Deus pode fazer, no que de fato o far. Em suma, a posio de Voltaire sobre a alma esta: A razo humana to incapaz de demonstrar por si mesma a imortalidade da alma, que a religio viu-se forada a revel-la para ns. (VOLTAIRE, 1978a, p. 22). Portanto, entendemos que encontramos, at ento, duas questes no problema da identidade levantado por Voltaire. A primeira questo sobre a memria. Podemos pensar no exemplo de uma pessoa que perde a sua memria, como o mesmo Voltaire exemplifica, mas que no a recupera aps perd-la. Esta pessoa perdeu sua memria aos trinta anos, viveu at os sessenta, e se esqueceu do que viveu dos trinta anos para trs. Podemos dizer que tal pessoa no mais a mesma por ter perdido sua memria e no a tendo recuperado pelos anos seguintes? At que ponto podemos fazer esta afirmao? At que ponto a pessoa 164
a mesma e at que ponto no mais? Ou, j que a memria define a identidade, Voltaire com um ano de idade no era Voltaire porque, aos sessenta anos, no se lembrava mais do que fazia quando comeava a balbuciar as primeiras palavras? A segunda questo sobre a mutabilidade da nossa identidade. Temos uma identidade fixa, inata? Podemos afirmar que na vida ns temos vrias identidades, que pouco temos em comum aos trinta anos em comparao aos nossos trs primeiros anos, que uma pessoa ao final da vida tem uma identidade quase totalmente diferente em relao sua infncia. Assim, questionar a identidade da alma para provar a incoerncia de sua sobrevivncia , no mnimo, problemtico, j que nem mesmo nesta breve vida biolgica temos uma identidade fixa. Talvez a inteno de Voltaire fosse mostrar que incoerente uma alma sobreviver, pois ela deveria possuir a mesma identidade do indivduo no qual habitou durante sua vida. Mas qual a nossa identidade?
Voltaire no consegue conceber uma alma que seja independente do corpo, que sobreviva a ele, que seja espiritual, pois nas suas observaes sobre o funcionamento do corpo no havia espao para uma substncia desconhecida que estaria por trs dos fenmenos biolgicos. Maria das Graas afirma que, para Voltaire, o homem um ser corporal que capaz de pensar. As afirmaes dos filsofos em relao natureza da alma so quimeras sem fundamento, ou, nas palavras de Voltaire, so romances. (SOUZA, 1993, p. 32). Enfim, sendo bastante sucintos, Voltaire quer dizer que se falou muito sobre a alma, mas no se provou nada. Tudo seria fruto da imaginao e do desejo dos filsofos e dos religiosos. Um dos argumentos de Voltaire para negar que o homem seja composto por duas substncias, uma material e outra espiritual, , em seu ponto de vista, a falta de evidncia de uma suposta dependncia que o elemento material teria do espiritual. Estando o corpo doente, um suposto esprito nada poderia fazer em favor dele. E Voltaire tambm no via sentido em termos um esprito que comandaria as nossas ideias e o corpo administrando as funes fsicas. Assim ele se expressa acerca do assunto no Dicionrio filosfico:
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Chegados aqui, dizei-me de boa f: essa fora, essa capacidade de sentir e de pensar, a mesma que vos faz digerir e andar? Confessais que no, porque a vossa inteligncia pode cansar-se e ordenar ao estmago: Digere!, que ele nada far se estiver doente; em vo que o vosso ser imaterial mandaria aos ps que caminhassem, porque no daro um passo se sofrerem de gota. (VOLTAIRE, 1978c, p. 90).
Essa capacidade, citada no texto acima, seria uma alma responsvel pelo pensamento, e que tambm controlaria toda a vida humana, todas as funes biolgicas. Voltaire acha tal ideia frgil, partindo do princpio de que, se um membro do corpo estiver doente e no funcionar enquanto no estiver so, onde apareceria tal alma supostamente autnoma que coordena o corpo fsico? Como o corpo teria uma alma independente se no consegue andar com uma perna quebrada? Como haveria uma substncia imaterial e superior ao corpo se ela no consegue fazer com que uma pessoa tenha vida se o seu corao no estiver batendo? Vejamos outro exemplo no mesmo Dicionrio filosfico :
Se essa substncia simples e eterna conta para suas aes com os mesmos instrumentos que as almas dos crebros mais sbios, deve raciocinar como eles. Quem pode impedi-la? Concebo, reunindo todas as minhas foras, que, se um louco v vermelho e os sbios azul, se quando os sbios escutam msica o louco escuta o relinchar de um asno, se quando esto no sermo o louco acredita estar na comdia, se quando escutam sim ele escuta no, ento sua alma deve pensar s avessas com relao s outras. Porm, o louco tem as mesmas percepes que eles. No h nenhuma razo aparente que explique por que sua alma, tendo recebido pelos sentidos todos os instrumentos, no possa us-los. pura, diz-se, no est sujeita por si mesma a nenhuma enfermidade. Est provida de todos os recursos necessrios e, no importa o que se passe em seu corpo, nada pode mudar sua essncia. Entretanto, levamo-la no seu estojo para o hospcio. (VOLTAIRE, 1978c, p. 243).
Novamente percebemos a mesma linha de raciocnio em Voltaire, pois ele pergunta o que poderia impedir a alma do louco de raciocinar com coerncia se ela possui os mesmos instrumentos (entenda o corpo, os sentidos) que a alma do homem saudvel. Como o louco notoriamente tem atitudes diferentes do homem mentalmente saudvel, Voltaire ento sugere, ironicamente, que a alma do louco seria oposta em sua natureza alma do saudvel. Uma das questes principais deste exemplo , se o louco tem uma alma to capaz e to pura quanto a alma do homem saudvel, por que ele no pode us-la? E, se ele a est usando, sua alma quem louca? Ou, se ela autnoma e o homem continua louco, por 166
que a sua alma pura (no afetada pelas mazelas fsicas) no se sobressai sua loucura, ficando ele so? Desta forma, Voltaire no consegue contemplar uma alma espiritual dentro do homem porque, se uma enfermidade o limita, sua suposta alma nada poderia fazer a respeito desta limitao. Seria uma alma espiritual e autnoma, porm intil. Assim, para o nosso filsofo, se houvesse uma alma espiritual dentro do homem ele deveria enxergar mesmo se lhe arrancassem os olhos, deveria ouvir mesmo se ficasse surdo, deveria falar mesmo se lhe cortassem a lngua. Afinal, se para ele um problema fsico que impede o homem de realizar alguma funo uma evidncia de que no h uma alma espiritual que comande o corpo, ento podemos entender que, para existir uma alma espiritual responsvel pela vida humana, ela deveria levar o corpo a realizar todas as suas funes mesmo que houvesse um problema fsico. Este argumento problemtico porque, raciocinando assim, o crebro tambm no poderia comandar o corpo, j que ele, se o comandasse como Voltaire espera, ordenaria ao estmago doente: digere, e assim aconteceria; diria ao corpo com um p quebrado: corre, e assim ocorreria; diria aos olhos cegos pela velhice: enxerga, e assim sucederia. Pensando assim, qualquer substncia, de qualquer natureza, que comandasse o corpo, fosse fsica ou espiritual, no deveria estar limitado s fragilidades e enfermidades de seus membros. Outro argumento de Voltaire contra a dualidade substancial da natureza humana aquele que busca provar a unidade do corpo, mesmo nas funes materiais mais comuns, como comer, e a capacidade aparentemente menos material, a de pensar. Assim ele se expressa em O filsofo ignorante :
Vi uma diferena to grande entre os pensamentos e a alimentao (sendo que sem esta eu nunca pensaria) que acreditei haver em mim uma substncia que raciocinava e uma outra que digeria. Entretanto, buscando sempre provar a mim mesmo que no sou dois, senti grosseiramente que sou um s. (VOLTAIRE, 1978d, p. 300).
Podemos entender que, partindo do princpio de que sem alimento eu no penso, pois sem comer eu morrerei e o meu corpo no conseguir funcionar direito com fome, e assim no poderei pensar, como ento haveria uma alma espiritual por trs de tudo isso? Se a alma responsvel pelo pensamento, ento por que seria necessrio o alimento, algo material, para algo espiritual, a alma, produzir os seus efeitos, no caso, o pensamento? No 167
raciocnio de Voltaire, se o homem tivesse uma alma espiritual, o crebro deveria produzir pensamentos mesmo se o homem estivesse doente, sem comer, sem beber ou at se lhe cortassem a cabea. Voltaire tambm utiliza, como o faz com frequncia, a zombaria para ganhar o debate por meio da sua eloquncia, como vemos:
Com muita engenhosidade, perguntei a alguns de meus semelhantes, cultivadores da terra, nossa me comum, se sentiam ser dois, se graas filosofia haviam descoberto possuir dentro de si uma substncia imortal e, no entanto, formada de nada, existente sem extenso, agindo sobre os nervos sem tocar neles, enviada expressamente ao ventre de suas mes seis semanas aps a concepo. Acreditavam que eu estava brincando e continuaram a cultivar seus campos sem responder-me. (VOLTAIRE, 1978d, p. 300).
A pessoa bem-humorada no pode deixar de rir com este texto de Voltaire, j que, concordando ou no com seu argumento, no podemos negar o seu talento para nos fazer refletir com bom-humor. Provavelmente estas ideias sobre a alma, que aparecem na citao acima, so algumas daquelas que Voltaire julgava absurdas, aquelas inmeras opinies que j se tinham criado sobre a alma e deveriam ser desconsideradas. Desta forma, percebemos que Voltaire busca persuadir o seu leitor usando os supostos absurdos que se tinham dito a favor da espiritualidade da alma e, com isso, fazer parecer quimrica esta ideia. A figura dos cultivadores de terra parece sugerir que, se um assunto to importante como este fosse verdade, que a alma tem natureza espiritual, at os homens mais incultos deveriam conhec-lo. O fato dos homens continuarem a cultivar os seus campos sem se importar com esta questo mostra que ela no seria relevante para a maioria das pessoas, que ela no interferiria no nosso cotidiano. Outro argumento de Voltaire contra a concepo da natureza espiritual da alma o paralelo homem/animal que os materialistas do sculo XVIII utilizavam. Para eles, se os animais sentem, comem, bebem, andam, adoecem e tm funes to semelhantes s do homem, por que ento o homem precisa de uma substncia imaterial para realizar tudo isto, enquanto os animais no? Vejamos Voltaire expressando esta ideia no Tratado de metafsica:
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Vejo que em toda a natureza os mesmos efeitos supem uma mesma causa. Assim, julgo que a mesma causa age nas bestas e nos homens proporcionalmente aos seus rgos, e creio que este princpio comum aos homens e s bestas um atributo dado por Deus matria. (VOLTAIRE, 1978b, p. 73).
Assim, a diferena entre homens e animais no seria uma substncia espiritual, mas a complexidade biolgica, pois seria a natureza dos rgos que distinguiria humanos de animais. Se para o cristianismo a alma seria uma substncia espiritual dada por Deus aos seres humanos, para Voltaire o princpio que gera a vida, que opera em todos os seres vivos, no seria uma alma espiritual. Portanto, se os efeitos so os mesmos (as aes em comum que os homens tm com os animais), as causas so as mesmas (o princpio da vida material para homens e animais). Maria das Graas de Souza demonstra como a viso de Voltaire sobre este assunto est claramente inserida dentro do seu contexto histrico:
Tanto para Voltaire como para os materialistas, a discusso do paralelo entre o homem e os animais passa pela crtica ao conceito de animalmquina de Descartes. A observao purificada de preconceitos metafsicos demonstra que os animais, como o homem, possuem percepes, sentimentos e mesmo um determinado nvel de organizao de idias. A partir desta observao, existem duas possibilidades coerentes: ou atribumos tambm aos animais uma alma ou a recusamos ao homem. (SOUZA, 1983, p. 22).
Algumas criaturas brbaras agarram nesse co, que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no numa mesa, dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as veias mesentricas. Encontras nele todos os rgos das sensaes que tambm existem em ti. Atreve-te agora a argumentar, se s capaz, que a natureza colocou todos estes instrumentos do sentimento no animal, para que ele no possa sentir? Dispe de nervos para manter-se impassvel? Que nem te ocorra to impertinente contradio da natureza. (VOLTAIRE, 1978c, p. 97).
O animal, assim como o homem, possuidor de sentimentos. A anlise anatmica do co, por exemplo, demonstraria que sua constituio o levaria a possuir sentimentos, tal como o homem. S a anlise emprica transmitiria um conhecimento seguro, verdadeiro,
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baseado nos fatos, no na imaginao humana. J que podemos, pensaria Voltaire, contemplar os animais por dentro e por fora e compar-los ao homem, qual seria a diferena entre ambos? Onde apareceria uma alma imaterial? No encontrando tais evidncias, Voltaire preferiu no crer que o ser humano tenha uma substncia espiritual e que sobreviva morte biolgica. Assim, entre negar uma alma espiritual ao homem ou atribu-la aos animais, Voltaire escolheu a primeira opo. Por fim, Voltaire traz tona a ignorncia humana sobre a alma para combater sua espiritualidade. No conto Os ouvidos do conde de Chesterfield e o capelo Goudman, ns temos um personagem que representa a sensatez na anlise de questes metafsicas, que o anatomista Sidrac, e outro que a figura de um cristo que est, pouco a pouco, chegando a uma viso mais equilibrada de algumas questes teolgicas, por influncia da filosofia, que o padre Goudman. Voltaire coloca estas palavras na boca do padre dos seus sonhos:
Com efeito, toda gente percebe que tem uma inteligncia, que recebe idias, que as associa, que as decompe; mas ningum percebe que tem em si um outro ser que lhe d movimento, sensaes e idias. , no fundo, ridculo pronunciar palavras que no se entendem, e admitir seres de que no se pode ter o mnimo conhecimento. (VOLTAIRE, 2005, p. 684).
Ou seja, a falta de evidncias biolgicas, a ausncia de percepo humana e a ignorncia so, para Voltaire, uma forte evidncia de que no existe uma substncia espiritual que seria responsvel pela vida humana. As palavras que no se entendem so, nos textos voltaireanos, aquelas que tentam definir a alma, explic-la, falar do que ela seria composta. Sidrac, o sbio, conclui:
Mas sinto-me vontade quando considero: Deus o senhor. Aquele que faz gravitarem astros inumerveis, aquele que fez a luz, bastante poderoso para nos dar sentimentos e idias, sem que tenhamos necessidade de um pequeno tomo estranho, invisvel, chamado alma . (VOLTAIRE, 2005, p. 685).
Voltaire sempre cuidadoso em defender a existncia de Deus, em apresent-lo como a causa da natureza, talvez para no associar os seus argumentos materialistas ao atesmo. Todavia, ele no hesita em enfatizar que no h evidncias da existncia de uma alma espiritual, que biologicamente isto no verificvel, evidente, tampouco necessrio.
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Observamos que Voltaire, ao longo de sua vida e em obras escritas em momentos diferentes, tratou abundantemente da questo da alma e procurou claramente combater a noo de uma substncia espiritual e imortal que habita dentro do corpo humano. A persistncia do nosso filsofo na questo parece derivar-se da relao que ele via entre a crena na imortalidade da alma e moral, como se a ideia de punio e recompensa aps a vida fosse um freio para a maldade dos homens, e tambm de seu interesse pessoal, de suas inquietaes diante de um assunto de tamanha relevncia. Seus textos so claros quanto ao seu ponto de vista contrrio ideia platnica sobre a alma, bem como ntida a sua crtica ao conceito cristo da dualidade da substncia, da permanncia dos sentidos aps a decomposio do corpo, da sobrevivncia do ser aps a morte. Todavia, mesmo sendo contundente em alguns momentos, Voltaire mostra-se cauteloso em chegar a uma concluso sobre o assunto. E tal postura assumida pelo nosso filsofo algumas vezes, em obras diferentes, escritas com um bom intervalo de tempo entre elas. Embora tenha tentado provar pela razo que a alma no espiritual e no sobrevive aps a morte, o nosso filsofo no ousou dizer o que este princpio que nos d vida, como pensa, de que composto, como funciona. Vejamos como o jovem Voltaire se expressa em suas Cartas inglesas, datadas de 1733, quando ele tinha entre 38 e 39 anos:
O bem comum de todos os homens pede que se creia a alma imortal; a f o ordena. No preciso mais. A coisa est decidida. O mesmo no ocorre com sua natureza, pouco importando religio qual seja a substncia da alma; o importante que seja virtuosa. um relgio que nos foi dado para que o governemos, mas o obreiro no nos disse do que era composta sua corda. (VOLTAIRE, 1978a, p. 22).
Embora a questo da alma, em Voltaire, esteja intimamente ligada a um elemento social, onde os homens precisariam crer na imortalidade da alma e nos castigos e recompensas ps-morte para ser justos, a posio mais comum do nosso filsofo silenciar diante da natureza desta desconhecida substncia. O importante para ele que as pessoas continuem a crer que a alma imortal, que ser recompensada por suas aes e que isto ajude a manter a ordem, a frear aqueles crimes que a justia no teria condies de punir se acontecessem. Todavia, pela filosofia, segundo Voltaire, nenhum homem poderia afirmar 171
qualquer coisa sobre a alma, visto no haver instrumentos para conhec-la, examin-la, decifr-la. O filsofo tem uma postura parecida em seu Tratado de metafsica, que data de 1736:
Eu, que nem sei qual a natureza dessa coisa [alma], afirmarei que eterna?! Eu, que sei que o homem no existia ontem, afirmarei que h nele uma parte eterna por sua natureza?! E, enquanto recusarei a imortalidade quilo que anima este co, este papagaio, esta gralha, irei conced-la ao homem s porque o homem deseja? (VOLTAIRE, 1978b, p. 74).
Notamos que Voltaire, embora questionando a imortalidade da alma, suspende seu juzo acerca da sua substncia, da sua natureza. Desta forma, a questo de negar-lhe a espiritualidade e a imortalidade, alm da influncia dos materialistas de sua poca, passa tambm pela impossibilidade de conhec-la. O ponto forte do argumento de Voltaire a ignorncia humana sobre a alma, pois sabemos que o nosso filsofo, ao examinar o que muitos tinham dito sobre a alma, chegou concluso de que tudo no passaria de quimeras, de invenes, de palavras vazias que no levavam a lugar algum. Afinal, se impossvel conhecer qualquer coisa sobre a alma, como afirmar que ela imortal e espiritual? Voltaire confirma a atual e perptua ignorncia humana sobre esta questo:
Chamamos alma quilo que anima. No sabemos muito mais do que isso, por culpa dos limites da nossa inteligncia. Trs quartas partes do gnero humano no vo mais longe e em nada as preocupa o ser pensante; a outra parte indaga, interroga-se; at agora ningum descobriu nada, nem descobrir. (VOLTAIRE, 1978c, p. 89).
O patriarca de Ferney condena a humanidade a permanecer envolta nas trevas da sua ignorncia acerca da sua prpria natureza pelos sculos dos sculos, enquanto ela existir sobre a face da Terra. O que se sabe, segundo esta citao, que h em ns um princpio que nos anima, que nos d vida, e a partir da h um abismo intransponvel ao entendimento humano. A sua concluso de que ningum descobriu nada sobre a alma uma clara confirmao de que para ele tudo o que os filsofos e as religies disseram sobre o assunto no tem qualquer valor. Maria das Graas corrobora esta interpretao sobre o pensamento de Voltaire, como vemos:
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Qualquer discusso sobre o princpio do agir, do sentir e do pensar est condenada, segundo Voltaire, a mergulhar em trevas. Tais questes so como aquelas que um cego de nascena se colocaria a respeito da luz, ou, em outras palavras, so questes que, por mais sofisticadas que possam ser, esto destinadas a ficar sem respostas. (SOUZA, 1983, p. 28).
O agir, o sentir e o pensar so funes comumente atribudas alma e, em Voltaire, elas devem ser explicadas do ponto de vista biolgico, no havendo a necessidade de buscar uma causa no fsica para entend-las. Partir do desconhecido para explicar os fenmenos biolgicos no seria a melhor maneira de se chegar verdade para o nosso filsofo. O homem no possuiria instrumentos suficientes para investigar estas questes, o que justificaria ele ficar sem respostas para suas dvidas. Ao menos Voltaire reconhece que no obteve a resposta. Em seus quase 84 anos de vida, sua dvida permaneceu at o fim. Sua fala, em O filsofo ignorante, datado de 1766, quando ele j contava com 71 ou 72 anos, confirma que a questo permaneceu sem soluo:
... mesmo que, por um prodgio que no devemos supor, tivssemos uma leve idia da substncia desse esprito, no teramos progredido; nunca poderamos adivinhar como essa substncia recebe sentimentos e pensamentos. o segredo da natureza e ela no o revela a nenhum mortal. (VOLTAIRE, 1978d, p. 302).
muito difcil conceber que uma pessoa trate de uma questo em quase toda a sua vida se esta questo no tiver uma relevncia muito grande para ela. Ao passar pelas obras de Voltaire e vermos que, por dcadas, a questo da alma aparece em seus trabalhos abundantemente, podemos sentir a sua busca intensa por uma resposta, a qual ele parece no ter chegado. A razo foi incapaz de dar calma ao corao do nosso filsofo, de responder aos seus anseios mais profundos. Embora Voltaire tenha dado um diagnstico sua jornada falando ser possuidor de quatro ou cinco verdades, libertado de centenas de erros, ele permaneceu carregado de uma quantidade imensa de dvidas (VOLTAIRE, 1978d, p. 317), entre as quais cremos estar a questo da alma. At aqui ns mostramos, neste captulo sobre a alma, o quanto Voltaire combateu a espiritualidade e a imortalidade da alma, e como ele sempre buscou se abster de afirmar qualquer coisa sobre o que a alma poderia ser. Todavia, Voltaire, ao final de sua vida, 173
chegou ao ponto de questionar os seus prprios argumentos contra a espiritualidade e imortalidade da alma, culminando, assim, em um nvel mais alto de suspenso de juzo do que tinha chegado at ento. Se em suas obras ele afirma nada saber sobre a alma, mas nega-lhe a espiritualidade e a imortalidade, neste momento veremos o nosso filsofo questionar at mesmo os seus argumentos usados em outros trabalhos, que so tambm os argumentos dos materialistas da sua poca. No conto A histria de Jenni, que data de 1775, cerca de trs anos antes da morte de Voltaire, o autor busca combater o atesmo e faz caricatura do ateu como algum perigoso para a sociedade, como um indivduo que vive sem princpios ticos por no acreditar em um Deus que pune e recompensa. Voltaire apresenta um dilogo entre um homem sbio, chamado Freind, e um ateu, a quem ele denomina Birton. H pontos importantes no debate, referentes filosofia de Voltaire, mas o que nos interessa aqui o rpido dilogo que aparece sobre a imortalidade da alma. Birton, o ateu, questiona a imortalidade da alma a Freind e este, a princpio, no o contradiz sobre isto (cf. Voltaire, 2005, p. 672). Mas, aps Birton pedir perdo por ter escarnecido da virtude (neste ponto Freind j tinha convencido Birton acerca de algumas questes, como a existncia de Deus), Freind, o sbio, responde: "Pedi perdo ao Ser eterno, que pode recompens-lo eternamente, e punir os transgressores." (VOLTAIRE, 2005, p. 673). Birton questiona tal punio ou recompensa e Freind responde:
Eu no disse que ele vos punir para sempre, nem como vos punir, pois ningum pode saber nada a respeito; digo-vos que ele o pode (...) tudo o que vos posso dizer que, se cometestes crimes abusando da vossa liberdade, ser-vos- impossvel provar que Deus seja incapaz de vos punir; desafio-vos a isso. (VOLTAIRE, 2005, p. 673).
Vemos que, se em outras obras Voltaire afirma que impossvel conhecer a alma e por isso ele nega-lhe a imortalidade, aqui ele usa a ignorncia humana para afirmar que impossvel dizermos que a alma no pode sobreviver e que Deus no poder puni-la. Algum pode objetar que Voltaire est dizendo isto por se preocupar com a questo social, por ter medo que a descrena na imortalidade da alma aumente o nmero de crimes. uma questo a se pensar, mas a evidncia contra esta interpretao o fato de Voltaire sempre ter se preocupado com a questo social e, mesmo assim, sua postura foi sempre a de 174
combater a imortalidade da alma. Assim, se, mesmo demonstrando ao longo de sua vida, por meio de suas obras, que seria necessrio que as multides cressem na imortalidade da alma para no cometerem crimes, e mesmo assim o nosso filsofo sempre zombou desta mesma imortalidade, por que agora creramos que ele apenas est preocupado com questes sociais se notoriamente ele mudou a sua postura sobre o assunto? Ou seja, em outras obras Voltaire se preocupa com a consequncia social da crena na imortalidade da alma, mas, ao mesmo tempo, ele a combate. Aqui, alm de se preocupar com a questo social, ele tem uma postura muito mais cautelosa do que em outros trabalhos. Portanto, o materialista desafiado a provar que no ser julgado aps a sua morte. No nos parece que Voltaire est usando um recurso filosfico, a suspenso de juzo, para convencer o vulgo acerca da imortalidade da alma, o que a religio poderia fazer muito bem e de maneira contundente. Eis Birton, representando um ex-ateu, mas ainda materialista, falando:
Concebo perfeitamente que o grande Ser, o senhor da natureza, seja eterno; mas ns, que no existamos ontem, poderemos ter a louca ousadia de aspirar a uma eternidade futura? Tudo parece sem remisso em torno de ns, desde o inseto devorado pela andorinha at o elefante devorado pelos vermes. (VOLTAIRE, 2005, p. 674).
Podemos notar que Voltaire coloca na boca do materialista palavras e argumentos semelhantes aos que ele mesmo usou para combater a imortalidade da alma, como j citamos neste captulo: Eu, que sei que o homem no existia ontem, afirmarei que h nele uma parte eterna por sua natureza?! (VOLTAIRE, 1978b, p. 74). A semelhana entre as frases e no tom das perguntas retricas clara. Voltaire, por meio de Freind, responde:
No, nada perece: tudo se transforma: os germes impalpveis dos animais e dos vegetais subsistem, desenvolvem-se, e perpetuam as espcies. Por que haveis de querer que Deus conservasse o princpio que vos faz agir e pensar, de qualquer natureza que ele possa ser? Deus me livre de construir um sistema; mas certamente h em ns qualquer coisa que pensa e que quer: essa qualquer coisa, a que chamavam outrora uma mnada, essa qualquer coisa imperceptvel. Deus no-la deu, ou talvez, para falar mais justo, Deus nos deu a ela. Estais bem certo de que ele no a pode conservar? Pensai, examinai, podeis fornecer-me alguma demonstrao disso? (VOLTAIRE, 2005, p. 674).
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O sbio cauteloso, no quer construir um sistema, no quer estabelecer fronteiras para a verdade, no quer cair no engano daqueles que tentaram estabelecer um esquema absoluto de verdades indubitveis e fechadas em si mesmas. Ele no quer fazer afirmaes categricas, no quer ser dogmtico. Talvez por isso mesmo se recuse a afirmar que a alma no sobreviva, que Deus no possa recompens-la em alguma esfera ignorada por ns. Essa alma, no importa o nome que lhe d, desconhecida pelo homem, ele no a percebe. O sbio chega mesmo a pensar numa alma num conceito mais elevado. Se por um lado podese pensar que Deus nos deu uma alma (neste caso ns pensamos a partir do corpo que recebe uma alma, pois ns nos vemos como corpo), o sbio cogita a possibilidade de sermos uma alma que recebeu um corpo. A frase para falar mais justo, Deus nos deu a ela parece trabalhar com a ideia de que o Ser supremo pode ter feito a alma como a essncia mais importante do ser e t-la colocado dentro do corpo. Ou seja, pensar assim pensar a partir da alma, nos vendo como alma, pensar na alma como mais importante do que o corpo, j que, se Deus nos deu a ela, se Deus, em vez de dar uma alma ao nosso corpo, deu um corpo nossa alma, ento o sbio pensa que pode haver uma alma que tem supremacia sobre o corpo. Alm disso, o sbio continua a desafiar o materialista a provar, a demonstrar que Deus no pode conserv-la, que ela no pode sobreviver morte biolgica. Diante disto, h alguma dvida de que Voltaire tem uma postura diferente em relao ao tema em comparao aos outros textos que citamos? Maria das Graas comenta:
Atravs do discurso de Birton, Voltaire enumera cuidadosamente as razes que poderiam fundamentar o atesmo. Sucessivamente, Birton critica o argumento desta da ordem do universo, assinala nossa ignorncia absoluta em relao a um suposto ser supremo, e, por ltimo, utiliza contra o desmo de Freind o argumento dos defeitos do mundo e da existncia do mal. Para Freind, a natureza inteira arte, supondo pois um arteso. Para explicar o mal fsico, Freind recorre s leis gerais impressas por Deus na natureza e exatamente por t-las criado que Deus no interfere mais diretamente na criao. Por outro lado, o mal moral se explica pelo conceito de liberdade do homem. Finalmente, Freind recorre idia da possibilidade da sobrevivncia do homem depois da morte, num lugar de recompensa para os justos, argumento tantas vezes criticado por Voltaire em outros contos. (SOUZA, 1983, p. 128).
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Lendo a explicao da autora, onde ela menciona os argumentos de Birton e as respostas de Freind, temos bons indcios para crer que, para Voltaire, ao menos nesta obra, o materialismo se tornou sinnimo de atesmo. Pensamos assim porque Birton era ateu e materialista. Um personagem s representa as duas coisas. Primeiro Freind precisou convenc-lo da existncia de Deus, depois da bondade divina mesmo com a existncia do mal e, por fim, da possibilidade da imortalidade da alma. Acerca das duas primeiras afirmaes Freind foi claro, defendendo categoricamente que Deus existe e que bom. Acerca da terceira ele apenas suspendeu o seu juzo, se recusando, todavia, a negar a imortalidade da alma. E esta postura, sem dvida, uma mudana ntida de Voltaire em relao a outras de suas obras. Desta forma, no tendo meios para conhecer os motivos pelos quais Voltaire mudou a sua postura, s podemos, examinando seus escritos, afirmar que ele combateu os seus argumentos contra a sobrevivncia da alma. No o fez defendendo-a, o que seria uma mudana bastante radical, mas suspendendo o seu juzo, pondo em dvida at mesmo os seus prprios argumentos, desafiando quem afirma que a alma no sobrevive a provar a sua afirmao, desafiando a si mesmo. Assim, se Voltaire j tinha sido cauteloso em afirmar qualquer coisa sobre a natureza da alma, nesta obra ele foi alm, chegando a trabalhar com a probabilidade que ele tantas vezes rejeitou e at zombou. Portanto, Maria das Graas tem razo ao dizer que: ... Voltaire recusa duas espcies de certeza, uma oferecida pelo dogma da metafsica crist, outra apresentada pela filosofia materialista (SOUZA, 1983, p. 29).
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CAPTULO 4
Neste captulo, apresentaremos a viso de Voltaire acerca do livre-arbtrio, a opinio do filsofo sobre a capacidade humana de tomar decises autnomas. Ao falar do livrearbtrio na discusso dentro dos textos voltairianos, nos referimos ao conceito de que o ser humano tem uma vontade livre, no causada; que ele, ao tomar uma deciso, o faz sem ter qualquer agente, externo ou interno, impulsionando-lhe de maneira irresistvel. O livrearbtrio no significa ausncia de conflitos internos ou a inexistncia de uma natureza que inclina a deciso humana para um ou outro lado. Diferente disso, o livre-arbtrio a autonomia do homem em tomar decises mesmo tendo inclinaes, a faculdade de escolher que pode superar fatores externos e internos, a possibilidade do ser racional no estar aprisionado a um destino, a uma condio fatalista. E, ao falarmos do livre-arbtrio em Voltaire, no podemos deixar de lado a viso crist sobre o assunto, pois em questes teolgicas o nosso filsofo est sempre em dilogo com a metafsica judaico-crist, comumente combatendo-a em quase todos os seus segmentos. No que se refere ao livre-arbtrio, alm da influncia da fsica de Isaac Newton (1642-1727) sobre o universo, fica claro que a teologia do pecado original aparece nos dilogos voltairianos acerca da natureza humana e, consequentemente, do livre-arbtrio. Sendo assim, para que o assunto seja exposto mais claramente em Voltaire, relevante falarmos sobre o pecado original. Do ponto de vista da teologia crist, o primeiro homem, Ado, pecou, e, a partir de ento, todos os homens teriam herdado o pecado em sua natureza. Assim sendo, a liberdade humana seria limitada ou talvez inexistente, j que o pecado conduziria o homem a fazer o mal, pois sua natureza em si j seria maligna. Alguns versculos bblicos que podem ser utilizados para a defesa do pecado original so: Eis que eu nasci na iniqidade, minha me concebeu-me no pecado (Sl 51:7); ...todos pecaram e todos esto privados da glria de Deus... (Rm 3:23); Eis por que, como por meio de um s homem o pecado entrou no 178
mundo e, pelo pecado, a morte, assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5:12). De modo que, como pela desobedincia de um s homem, todos se tornaram pecadores, assim, pela obedincia de um s, todos se tornaro justos (Rm 5:19). Eu sei que o bem no mora em mim, isto , na minha carne. Pois o querer o bem est ao meu alcance, no porm o pratic-lo (Rm 7:18). Com efeito, visto que a morte veio por um homem, tambm por um homem vem a ressurreio dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Ado, em Cristo todos recebero a vida (I Co 15:21-22). Assim, a teologia do pecado original afirma que Ado pecou e, como os homens teriam descendido dele, herdaram, em sua natureza, o pecado, uma essncia pecaminosa. Desta maneira, seria impossvel a um ser humano viver sem pecar e se chegar a Deus por si prprio. Com isso, a liberdade do homem se restringe consideravelmente. Champlin comenta sobre Rm 5:19:
O apstolo asseverava, uma vez mais, tal como j fizera no dcimo segundo versculo deste mesmo captulo, qual o princpio do pecado original. A natureza humana ficou corrompida, tornando-se o homem um pecador por natureza. A verdade que a perverso humana resulta no da influncia do meio ambiente, mas antes, faz parte da prpria natureza do ser humano. (CHAMPLIN, 1995, v. 3, p. 661).
Um dos pensadores mais importantes do cristianismo, Agostinho (354-430), fala acerca do assunto em suas Confisses:
Quem me poder lembrar o pecado da infncia, j que ningum est diante de ti [Agostinho est falando com Deus] limpo de pecado, nem mesmo a criana cuja vida conta um s dia sobre a terra? (...) Acaso, mesmo para aquela idade, era bom pedir chorando o que no se me podia dar sem dano, indignar-me acremente com as pessoas livres que no se submetiam, assim como com pessoas respeitveis, e at com meus prprios pais, e com muitos outros que, mais sensatos, no davam ateno aos sinais de meus caprichos, enquanto eu me esforava por agredi-los com meus golpes, quanto podia, por no obedecerem s minhas ordens, que me teriam sido danosas? Daqui se segue que o que inocente nas crianas a debilidade dos membros infantis, e no a alma. (AGOSTINHO, 2005, p. 36).
Se nem mesmo um beb que acabou de chegar ao mundo est limpo diante de Deus, segundo Agostinho, entendemos que o nosso telogo est defendendo a teologia do pecado 179
original, influenciado pelos textos bblicos citados nesta dissertao ou mesmo por outros. Assim, o pecado no seria uma opo, uma escolha, mas algo presente na natureza humana, uma fora que dominaria o homem desde a concepo. Agostinho v sinais do pecado at mesmo nas birras infantis, no choro da criana que serve como meio de comunicar suas necessidades. Tal choro no seria um recurso natural para um ser que ainda no pode se comunicar, mas o sinal da natureza perversa do ser humano, mesmo do infante. O exegeta Voltaire fala, em seu Dicionrio filosfico, sobre a relao entre a teologia do pecado original e Agostinho:
Confessemos que Santo Agostinho foi o primeiro a conferir crdito a esta estranha idia [do pecado original], digna da cabea esquentada e romanesca de um africano, debochado e arrependido, maniqueu e cristo, indulgente e intolerante, que passou a vida a contradizer-se. (VOLTAIRE, 1978c, p. 263).
Voltaire busca desqualificar o seu opositor para, em consequncia disso, dar a entender que ele no merece crdito pelo que est falando. Com isso, como ele teria sido o criador da teologia do pecado original (embora, como pudemos conferir, ela pode facilmente ser baseada em Paulo), tal teologia no mereceria crdito. Champlin refora a influncia de Agostinho na formao da teologia do pecado original:
... Agostinho lanou mo da doutrina estica do traducionismo, que ensina que o homem e a mulher, sendo seres tanto fsicos quanto nomateriais, naturalmente procriam seres de sua prpria natureza. E assim, o pecado espiritualmente transmitido, no ato da procriao. (CHAMPLIN, 2001, v. 7, p. 4980).
E o bispo de Hipona corrobora: Assim, se fui concebido em iniqidade, e se em pecado me alimentou minha me, onde, suplico-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde e quando fui inocente? (AGOSTINHO, 2005, p. 37). Notamos aqui que Agostinho est parafraseando o salmista bblico para reforar que nunca, mesmo no ventre de sua me, foi inocente, puro. No nosso objetivo aqui tratar do assunto do ponto de vista da teologia, mas sim apenas exp-lo brevemente, j que o mesmo ter forte relao com o que Voltaire fala sobre a natureza humana, sobre o livre-arbtrio. Afinal, se o homem estiver
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mesmo dominado pelo poder do pecado original, seu livre-arbtrio para fazer o bem ser bastante limitado. Como estudioso da histria da filosofia, Voltaire tambm dialogou, sobre o assunto do pecado original, com outro pensador de grande relevncia, que viveu no sculo XVII, o ilustre Blaise Pascal (1623-1662). Combatendo o citado filsofo sobre a ideia do pecado original, nas Cartas inglesas, o autor do Cndido afirma o seguinte:
Como tudo o que vemos, [o homem] est mesclado de bem e de mal, de prazer e de dor. Est provido de paixes para agir e de razo para o governo das aes. Se fosse perfeito, seria Deus. E as pretensas contrariedades a que chamais contradies so os ingredientes necessrios que entram na composio do homem. (VOLTAIRE, 1978a, p. 47).
Uma citao de Pascal que pode estar sendo combatida por Voltaire esta, extrada da obra Pensamentos: O homem no passa de um sujeito cheio de erro (...) As paixes da alma perturbam os sentidos e provocam-lhes falsas impresses. (PASCAL, 1984, pp. 6162). Para Pascal, as paixes da alma perturbam os sentidos, enquanto para Voltaire as mesmas so, na verdade, providas ao homem, ou seja, o ser humano recebe paixes e razo para agir, e uma equilibraria a outra. O homem seria apenas mais um ser imperfeito na natureza, suas contradies seriam necessrias, suas imperfeies no seriam fruto de um suposto pecado original. Se tudo o que h no homem , para Voltaire, componente necessrio, ento o que a teologia crist encara como pecado para ele apenas um elemento que d equilbrio natureza humana. Para Pascal, ao contrrio, a natureza do homem est recheada de erro e suas paixes so perturbadoras para seus sentidos. Voltaire fala mais sobre o pecado original, continuando a combater Pascal em suas Cartas inglesas:
De um modo geral, parece-me que, ao escrever os Pensamentos, a inteno do Sr. Pascal era mostrar o homem sob uma luz odiosa. Encarnia-se para pintar-nos malvados e infelizes. Escreve contra a natureza humana quase como escrevia contra os jesutas. Imputa essncia de nossa natureza aquilo que s pertence a alguns homens. Eloqentemente profere injrias contra o gnero humano. Ouso tomar o partido da humanidade contra esse misantropo sublime. Ouso assegurar que no somos nem to maldosos nem to infelizes como diz. (VOLTAIRE, 1978a, p. 46).
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Tornando-nos a natureza sempre infelizes em todos os estados, nossos desejos fantasiam um estado feliz, porque juntam ao estado em que estamos os prazeres do estado em que no estamos; mas, se alcanssemos esses prazeres, ainda assim no seramos felizes, porquanto teramos outros desejos de acordo com o nosso novo estado. (PASCAL, 1984, p. 68).
O Filsofo das Luzes no poderia aceitar tal viso pessimista sobre o ser humano. Ver o homem como um ser infeliz e mau era, essencialmente, contra a busca por uma sociedade pautada pela razo, j que, se o homem fosse perverso, no seria possvel pensar em uma evoluo atravs do conhecimento, em um crescimento gerado pela educao, pela filosofia. O homem jamais poderia melhorar por si mesmo, j que sua natureza seria m. Percebemos, como Voltaire afirma, que Pascal v o homem como um ser infeliz, fadado a estar neste estado, tenha o que tiver, alcance o que alcanar. Pascal provavelmente observou como o ser humano est sempre buscando ter mais, como sempre quer o que no tem e, para ele, isto significava que seria impossvel fazer uma pessoa feliz. Afinal, para Pascal, ... o homem to infeliz que se aborreceria mesmo sem nenhum motivo de aborrecimento. (PASCAL, 1984, p. 73). Enfim, estariam na natureza humana a insatisfao, a infelicidade, o aborrecimento. Para Birchal, comentando sobre a viso de Pascal sobre o assunto, a busca dos homens incessante, pois tentam preencher com as coisas do mundo o vazio deixado pela ausncia de Deus e que s pode ser preenchido pelo prprio Deus... (BIRCHAL, 2007, p. 105). Voltaire continua a defender a natureza humana, negando ser ela pervertida pelo pecado:
O amor por ns prprios preside o amor pelos outros. Nossas mtuas carncias nos tornam teis ao gnero humano, e so o fundamento de todo comrcio, o vnculo eterno dos homens. Sem amor-prprio no haveria inveno da arte, nem formao de uma sociedade de dez pessoas. o amor-prprio, dom da natureza para cada animal, que nos adverte para respeitarmos o dos outros. A lei o dirige e a religio o aperfeioa. bem verdade que Deus poderia ter feito criaturas atentas unicamente ao bem de outrem. Neste caso os comerciantes teriam ido s ndias por caridade e o pedreiro teria quebrado pedras para dar prazer ao seu prximo. Mas Deus estabeleceu as coisas de outra maneira. No acusemos, pois, o instinto que nos deu e usemo-lo como nos manda. (VOLTAIRE, 1978a, p. 49).
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Novamente vejamos a citao de Pascal, a fim de entendermos melhor o que Voltaire refuta:
A natureza do amor-prprio e desse eu humano no amar seno a si e no considerar seno a si. A que pode levar? No poder impedir que esse objeto que ama esteja cheio de defeitos e misrias: quer ser grande e achase pequeno; quer ser feliz e acha-se miservel; quer ser perfeito e acha-se cheio de imperfeies. (PASCAL, 1984, p. 64).
O amor-prprio seria, do ponto de vista de Voltaire, algo comum e benfico. Sem ele, no seria possvel pensar a sociedade, pelo menos no no modelo que a conhecemos. No haveria relaes comerciais, artes, conquistas, trabalho. Para se pensar numa sociedade sem o egosmo, sem o amor-prprio, seria necessrio pensar na natureza humana bem diferente da natureza que temos. J Pascal, novamente, v o ser humano cheio de defeitos, um ser miservel, que quer ser o que nunca ser. O homem amaria apenas a si mesmo, mas esse sentimento no anularia sua real condio: a misria. Ao contrrio, para Voltaire a nossa natureza como deve ser, como Deus quis que fosse. Desta maneira, indiretamente Voltaire est dizendo que o nosso modelo de sociedade, de relaes humanas, consequncia do modelo que Deus planejou criar. Deixemos, ento, o homem ser feliz, sem importun-lo com a pregao de que ele mau, que pervertido, que precisa de regenerao. Se o homem possui esta natureza, ento porque o Ser supremo assim o quis, segundo o nosso filsofo. A citao adiante ratifica o nosso comentrio:
... em vez de nos espantarmos e de nos lamentarmos pela infelicidade e pela brevidade da vida, devemos surpreender-nos e congratular-nos com nossa felicidade e com sua durao. Raciocinando apenas como filsofo, ouso dizer que h muito orgulho e temeridade em pretender que por nossa natureza deveramos ser melhores do que somos. (VOLTAIRE, 1978a, p. 52).
Este raciocinando apenas como filsofo parece ser algo como pensando s com a razo, no crendo em revelao ou no pensando como telogo. Assim, contando apenas com a razo, Voltaire no aceita a ideia de que o homem deveria ter uma natureza superior que tem. Embora no negando que haja infelicidade e brevidade na vida humana,
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o filsofo entende que no devemos focar apenas nesses aspectos negativos da existncia, mas sim na felicidade, no que bom. O leitor pode questionar que, embora seja claro que Pascal esteja pintando o homem como um ser miservel, infeliz e egosta, no fica claro, pelas referncias citadas at ento, que ele assim pensava por influncia da teologia do pecado original. Por isso, citamos o filsofo mais uma vez:
No conhecemos nem o estado de Ado, nem a natureza do seu pecado, nem a transmisso que dele se fez em ns. So coisas que se passaram no estado de uma natureza toda diferente da nossa e que vo alm da nossa capacidade presente. Tudo isso nos intil saber para sair disso; e tudo o que nos importa conhecer que somos miserveis, corruptos, separados de Deus, mas resgatados por Jesus Cristo... (PASCAL, 1984, p. 176).
Enfim, a citao de Pascal mostra que ele contemplava o homem como miservel e corrupto por causa do pecado original, por causa da natureza pecaminosa que teria herdado de Ado. O filsofo entende que a natureza humana foi realmente mudada, que muito diferente do que teria sido antes da transgresso do primeiro homem. A mudana teria sido to grande que nem mesmo somos capazes de saber como ramos antes deste fato. O homem, por causa do pecado, indigno de se chegar a Deus, e, para se chegar a Ele, o homem deve reconhecer a sua misria (Cf. Pascal, 1984, pp. 173-174). Enfim, se os textos anteriores de Pascal citados aqui, que Voltaire combate, nos fazem suspeitar de que ele via o homem como infeliz e miservel por causa do pecado original, esta citao nos faz ter certeza. Voltaire continua a falar sobre a questo:
Por que abominar nosso ser? Nossa existncia no to infeliz como querem que acreditemos. idia de um fantico encarar o universo como uma priso e todos os homens como criminosos a serem executados. divagao de um sibarita acreditar que o mundo seja um lugar de delcias onde s experimentaremos prazeres. ser um homem sensato pensar que a terra, os homens e os animais so o que devem ser na ordem da Providncia. (VOLTAIRE, 1978a, p. 48).
A figura dos seres humanos como criminosos a serem executados a viso mais pessimista que se pode ter do homem, vendo a raa humana como culpada, plenamente 184
merecedora de uma punio. A argumentao do apstolo Paulo aos romanos sobre a questo uma das fortes bases para a viso crist sobre o pecado original, como vemos:
E da? Levamos vantagem? De modo algum. Pois acabamos de provar que todos, tanto os judeus como os gregos, esto debaixo do pecado, conforme est escrito: No h homem justo, no h um sequer; no h quem entenda, no h quem busque a Deus. Todos se transviaram, todos juntos se corromperam; no h quem faa o bem, no h um sequer. Sua garganta um sepulcro aberto, sua lngua profere enganos; h veneno de serpente debaixo de seus lbios, sua boca est cheia de maldio e azedume. Seus ps so velozes para derramar sangue; h destruio e desgraa em seus caminhos. Desconhecem o caminho da paz, no h temor de Deus diante de seus olhos. (Rm 3:9-18).
Embora Voltaire no esteja diretamente dialogando com Paulo, este texto do apstolo uma das bases para se ver o homem como um ser maldoso, digno de condenao, pervertido. A expresso como est escrito, bastante comum nas epstolas paulinas, nos remete a textos das Escrituras do Antigo Testamento, e nesta passagem esto citados textos como J 9:2; Sl 5:9; 10:7; 14:1-3; 36:1; 140:3; Pv 1:16; Ec 7:10; Is 59:7,8. Nesta passagem, embora a carta seja dirigida aos cristos de Roma, Paulo est se dirigindo audincia judaica presente na capital do Imprio, com o intuito de provar que os judeus eram pecadores como os demais homens e tambm precisavam de salvao. Desta maneira, ele busca nas Escrituras Hebraicas passagens que comprovem a sua argumentao. E aquilo que Paulo atribuiu natureza humana, Voltaire, de modo contundente, afirma pertencer s a alguns poucos homens. A referncia de Voltaire de que os homens e os animais so o que devem ser na ordem da Providncia pode ser vista como um combate a outro aspecto da teologia do pecado original, que afirma que a transgresso do homem mudou a ordem do cosmo. A seguinte referncia bblica apoia este ponto de vista:
Ao homem, ele [Deus] disse: Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da rvore que eu te proibira comer, maldito o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirs todos os dias de tua vida. Ele produzir para ti espinhos e cardos, e comers a erva dos campos. Com o suor de teu rosto comers teu po at que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu s p e ao p tornars. (Gn 3:17-19).
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Esta famosa passagem bblica fundamenta a teologia de que o pecado de Ado lanou maldio sobre a Terra, explicando o porqu de tantos males e da hostilidade do planeta para conosco. A dureza em se conseguir a sobrevivncia por meio do trabalho e o lugar perigoso em que teria se tornado o nosso planeta seriam consequncia da transgresso do primeiro homem. Como a citao demonstra, Voltaire no pensa assim. O planeta est como deve estar. No houve um paraso perdido devido ao pecado. A vida como o Ser supremo quis que fosse, seja a vida do homem, dos animais e a natureza em geral. O Deus de Voltaire criou o mundo com suas leis e um ser insignificante como o homem no teria poder de fazer uma mudana to radical no planeta. Ele expe mais claramente, em seu Dicionrio filosfico, este ponto de vista:
No Gnesis, nem sequer se refere que Deus tenha condenado morte Ado por haver engolido uma ma. Deus diz-lhe: No dia em que a comeres certamente morrers; todavia, neste mesmo Gnesis faz-se viver Ado mais novecentos e trinta anos depois desse almoo criminoso. Os animais, as plantas que no tinham comido daquele fruto, morreram no tempo prescrito pela natureza. O homem nasce para morrer, como todo o resto. (VOLTAIRE, 1978c, p. 263).
Em primeiro lugar, Voltaire nega que haja base bblica para o pecado original. Mesmo no crendo na Bblia, ele busca negar que a base desta teologia seja a Escritura, ou, pelo menos, o Antigo Testamento. Talvez esteja se dirigindo a quem cr. E, em segundo lugar, como comentamos brevemente, Voltaire contemplava na natureza algo que Deus criou para ser como ela . Ou seja, se h terremotos, deve haver terremotos. Se os seres vivos morrem, porque Deus assim o quis. A natureza age segundo suas leis e assim ser sempre. Desta maneira, no h lugar na teologia voltairiana para o pecado original, para uma suposta transgresso do homem que teria trazido morte aos seres vivos do planeta. Em O filsofo ignorante Voltaire faz uma breve meno sobre o assunto, em uma passagem onde ele fala do problema do sofrimento:
Nesse momento, um pequeno telogo puxou-me pelo brao. Confidencialmente, contou-me que essa gente era sonhadora, que no era necessrio haver mal sobre a terra, porque fora feita expressamente para que nela s houvesse bem. E para prov-lo, disse-me: - Sabeis que outrora as coisas se passaram assim durante dez ou doze dias Ai de
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ns! respondi-lhe. uma pena, meu reverendo padre, que isso no tivesse continuado. (VOLTAIRE, 1978d, p. 314).
Essa gente, de que o tal telogo teria falado, eram aqueles que buscavam explicaes para o problema do sofrimento humano. Este telogo representa a viso crist sobre o mal do mundo, onde toda a desordem que vemos no planeta, nas relaes humanas, na dor, no sofrimento, nas doenas, teria sido causada pela transgresso de Ado. claro que Voltaire v uma ingenuidade muito grande na teologia crist em tentar explicar o problema do mal porque um homem comeu um fruto h alguns milhares de anos atrs em um jardim. A fala do padre, demonstrando que por dez ou doze dias tudo estava bem, provvel referncia a um perodo anterior transgresso de Ado, citada de maneira zombeteira pelo filsofo. irnico, sem dvida, Voltaire fazer o seu telogo chamar de sonhadores aqueles que buscavam frmulas para explicar o problema do mal, quando, na realidade, tal adjetivo caberia melhor queles que atribuem ao almoo criminoso de Ado todos os males no nosso planeta.
Como vimos brevemente, Voltaire no acreditava que o homem nasce contaminado por um suposto pecado original, o que o faria, se ele assim tivesse nascido, um ser fatalmente inclinado para o mal e possuidor de um livre-arbtrio limitado na escolha de suas aes morais. Assim, o livre-arbtrio humano no estaria restrito por uma natureza corrompida, pecaminosa, inclinada para o mal. Desta forma, o filsofo rejeita a viso crist sobre a natureza humana, buscando ver o homem de maneira mais positiva. Mas a questo mais relevante deste captulo a seguinte: h livre-arbtrio para Voltaire? O filsofo acreditava que o homem livre para escolher o caminho que quer seguir? Embora rejeitando a perverso da natureza humana, Voltaire no necessariamente foi um defensor do livre-arbtrio humano durante toda a sua vida. O objetivo das sees a seguir trabalhar com duas concepes contrrias acerca do livre-arbtrio humano em diferentes momentos da vida de Voltaire. Mostraremos que, em certo perodo de sua vida, nas obras iniciais, o filsofo buscou os seus melhores argumentos para defender que o
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homem livre, e, com o passar do tempo, nas obras mais tardias, ele foi mudando o seu ponto de vista, se tornando cada vez mais defensor do determinismo.
4.2.1. Duas etapas da obra de Voltaire: defesa do livre-arbtrio e determinismo Vejamos qual a definio voltairiana de liberdade em seu Tratado de metafsica , datado de 1736:
Querer e agir precisamente o mesmo que ser livre. O prprio Deus s pode ser livre nesse sentido. Quis e agiu segundo sua vontade. Se supusssemos sua vontade determinada necessariamente, dizendo que teve necessidade de querer o que fez, cairamos num absurdo to grande quanto se dissssemos h um Deus e no h um Deus, pois se Deus fosse determinado necessariamente no seria mais agente, seria paciente e no seria mais Deus. (VOLTAIRE, 1978b, p. 76).
A concepo de liberdade do filsofo, nesse momento de sua vida, se limita ao indivduo agir conforme sua vontade, que seria o mesmo tipo de liberdade que Deus possuiria. Voltaire no est questionando a origem da vontade, o que a causaria, mas apenas se limita a dizer que em Deus a vontade causada, determinada, seria um absurdo e, j que o homem possui o mesmo tipo de liberdade que Deus possui, ento, obviamente, uma vontade causada tambm seria absurda no homem. Neste caso, se o homem tivesse uma vontade causada, ele tambm no seria mais agente, mas paciente, um ser que recebe suas aes de alguma outra causa. Vejamos, por outro lado, o que o filsofo afirma sobre a liberdade em sua obra O filsofo ignorante, datada de 1766, portanto escrita trinta anos depois do Tratado de metafsica:
Ser verdadeiramente livre poder. Quando posso fazer o que quero, eis minha liberdade; mas quero necessariamente aquilo que quero, pois de outro modo eu quereria sem razo, sem causa, o que impossvel. Minha liberdade consiste em andar quando quero andar, desde que no sofra de gota. (VOLTAIRE, 1978d, p. 304).
Portanto, ser livre para o filsofo o homem fazer o que quiser, concordando com a definio apresentada no Tratado de metafsica . Se fao o que quero, sou livre. Contudo, 188
ele apresenta dois problemas nesta afirmao, que no estavam presentes no Tratado de metafsica: 1. Embora ser livre consista em se fazer o que se quer, o querer tem uma causa, o que faria o querer no ser livre; 2. A vontade restrita por fatores fsicos. Ele ratifica estas ideias no Dicionrio filosfico, escrito a partir de 1752 e publicado em 1764: A vossa vontade no livre, so-no as vossas aes. Sois livre de fazer quando tiverdes o poder de fazer. (Voltaire, 1978c, p. 238). O filsofo sabia que, quando no houvesse empecilhos maiores do que sua vontade, como o cego querer enxergar, por exemplo, o homem poderia fazer o que quisesse. Quero comer e como. Quero andar e ando. Quero sentar e sento. Quero me casar e me caso. Todavia, Voltaire no aceita que esta vontade seja a origem de si mesma, que no tenha uma causa anterior a si. Para o filsofo h algo anterior vontade que a causa, pois impossvel, para ele, que no seja assim. Por isso na citao acima, extrada do Dicionrio filosfico , Voltaire conclui que a vontade humana no livre. Mas, como j sabemos, o filsofo nem sempre pensou assim, embora j conhecesse, na poca em que ainda via o homem como um ser livre, os argumentos contrrios liberdade, ao livre-arbtrio. Um dos argumentos de Voltaire para defender a liberdade humana o sentimento. curioso que o filsofo, defensor da razo como meio de se chegar ao conhecimento, tenha apelado para o sentimento humano quando trata da liberdade. A seguinte citao, do Tratado de metafsica, demonstra o que falamos:
Agora no h mais lugar para fingir um ser dotado de razo sem ser humano e que examina com indiferena o que o homem. Ao contrrio, agora preciso que cada homem entre em si mesmo e d testemunho de seu prprio sentimento. (VOLTAIRE, 1978b, p. 75).
Voltaire diz isso porque, no incio da obra citada, a fim de estudar o homem com imparcialidade, ele se coloca como um ser que vem de outro planeta, sente e pensa, mas no humano (Cf VOLTAIRE, 1978b, p. 61). Assim, se por um lado seria necessrio se despir do sentimento para se conhecer o ser humano sem preconceitos, por outro lado no seria possvel agir assim no que concerne liberdade. Como o prprio filsofo afirma, ... [Deus] deu-nos esta liberdade que sentimos em ns, assim como nos deu a vida que sentimos em ns. (VOLTAIRE, 1978b, p. 76). Portanto, para entender a liberdade, o homem precisa buscar a verdade dentro de si, precisa senti-la. 189
A seguir, Voltaire continua a defender o livre-arbtrio, ainda usando o argumento do sentimento que temos de liberdade, tornando Deus o responsvel por tal sentimento. E, se ns temos o sentimento de liberdade e Deus nos deu esse sentimento, esse sentimento no pode nos enganar, pois assim o prprio Deus estaria nos enganando:
... se no houvesse Deus, quem me teria lanado no erro? Quem me teria dado o sentimento de liberdade, colocando-me na escravido? Seria uma matria que alcana a inteligncia de si mesma? No posso ser ensinado nem enganado pela matria, nem receber dela a faculdade de querer; no posso ter recebido de Deus o sentimento da minha vontade sem ter uma; tenho realmente uma vontade, portanto sou um agente. (VOLTAIRE, 1978b, p. 76).
O filsofo comea com uma pergunta retrica, questionando aos que rejeitam a liberdade, quem teria dado ao ser humano tal sentimento de liberdade. A expresso quem me teria lanado no erro questiona, ao mesmo tempo, o ateu e o sujeito que nega a liberdade. Ou seja, com tal pergunta Voltaire quer dizer: Se no foi Deus quem me deu o sentimento de liberdade, quem foi? A prpria matria? E, se foi Deus quem meu deu este sentimento, ele me deu um sentimento que no correspondente verdade? Para o filsofo a matria seria incapaz de fazer o homem ter qualquer conhecimento. Este argumento, sem dvida, se dirige ao ateu materialista, que v na matria a explicao para tudo. Voltaire rejeita tal ponto de vista, vendo Deus como a causa de tudo, inclusive do nosso sentimento de liberdade que o homem possui. E, para aqueles que admitem a existncia de Deus, o filsofo afirma que, sendo Deus quem me faz sentir que tenho vontade, isso necessariamente tem que ser verdade. Voltaire refora o seu argumento:
... estando provado esse Deus, est demonstrado que a causa de minha liberdade, caso eu seja livre, e que o autor absurdo de meu erro, se, tendo-me feito um ser puramente paciente sem vontade, me fizesse acreditar que sou agente e que sou livre. (VOLTAIRE, 1978b, p. 76).
Partindo do princpio de que a existncia de Deus j foi provada, o que no objeto de estudo deste captulo, mas do captulo 2, s haveria duas possibilidades: ou Deus me deu o sentimento de liberdade e este sentimento corresponde verdade ou Deus me deu o sentimento de liberdade e est me enganando. Rodrigo Brando confirma a posio de 190
Voltaire a este respeito: ... o engano sobre nossa liberdade incompatvel com essa inteligncia suprema. Um Deus que se dedicasse a nos enganar quanto nossa liberdade e existncia do mundo exterior seria inaceitvel. (BRANDO, 2008, p. 69). Vemos que nessa fase da vida de Voltaire a existncia de Deus como causa de tudo uma evidncia de que h liberdade, concepo essa que mudar radicalmente em outras obras. Embora Voltaire tivesse mantido sua ideia sobre a existncia de Deus at o final de sua vida, assim no se deu com a questo da liberdade. O patriarca de Ferney continua reforando os seus argumentos a favor da liberdade metafsica, mostrando agora que o fato de uma pessoa resistir a uma paixo demonstra que ela livre. O filsofo comenta, ainda no Tratado de metafsica:
O mesmo motivo que faz com que no sejamos todos igualmente esclarecidos, igualmente robustos, faz com que haja homens mais livres do que outros. A liberdade a sade da alma e em poucas pessoas completa e inaltervel. Nossa liberdade fraca e limitada como todas as nossas outras faculdades. Ns a fortificamos acostumando-nos a refletir, e este exerccio torna a alma um pouco mais vigorosa. Mas quaisquer que sejam os esforos que faamos, nunca podemos chegar a tornar nossa razo soberana de todos os nossos desejos; haver sempre movimentos involuntrios em nossa alma como em nosso corpo. Somos livres, sbios, fortes, sos e espirituais num grau muito reduzido. Se fssemos sempre livres, seramos o que Deus . Contentemo-nos com uma partilha conveniente ao lugar que ocupamos na natureza. Mas no imaginemos que nos faltam as coisas que frumos, nem renunciemos s faculdades de um homem por no termos os atributos de um Deus. (VOLTAIRE, 1978b, p. 77).
Se por um lado Voltaire diz que possumos o mesmo tipo de liberdade que Deus possui, ou seja, querer e agir segundo a nossa vontade (Cf. VOLTAIRE, 1978b, p. 76), por outro lado ele limita o nosso livre-arbtrio s nossas paixes, o que no acontece com o Ser Supremo, cuja liberdade plena. O que est em pauta nesta citao a luta do homem contra si mesmo, das paixes contra a razo. O filsofo reconhece que, apesar do homem ter liberdade para fazer o que quiser, as paixes restringem o seu livre-arbtrio. Neste caso, se a liberdade a sade da alma, a no-liberdade seria o oposto, uma enfermidade para a alma. O homem oscilaria, assim, entre o estado de liberdade e de no-liberdade durante toda a sua vida, j que ningum so ou doente o tempo todo. A liberdade do homem para vencer suas paixes seria fraca, limitada, assim como todas as demais capacidades do ser 191
humano. Desta forma, ser limitado em sua liberdade seria uma condio da natureza humana e o homem jamais venceria plenamente suas paixes, no sendo, portanto, plenamente livre em hiptese alguma. Todavia, o fato do homem ter sua liberdade limitada no significa que ele no a possua, pois, se a possusse plenamente, seria Deus. Portanto, a liberdade restrita mostraria apenas que o homem no Deus e, desta forma, necessrio que assim seja, pois o homem no pode se igualar a Deus. Rodrigo Brando comenta sobre este paralelo que Voltaire faz entre a liberdade e a sade:
Segundo o autor [Voltaire], a fora de nossas paixes, que nos arrastam ora para um lado ora para outro, no impe obstculos liberdade. A liberdade como a sade. Nesse sentido, sermos algumas vezes arrastados pelas paixes prova de que tambm somos algumas vezes livres, do mesmo modo que a doena mostra que j gozamos de sade. (BRANDO, 2008, p. 70).
Brando est falando da liberdade em Voltaire no Tratado de metafsica, pois, como foi dito, a concepo do filsofo mudar radicalmente em suas obras mais tardias. Ainda assim, aqui ainda vemos Voltaire enxergando a liberdade como a capacidade de se fazer o que se quer, no enfrentando a questo de uma vontade causada. Para o filsofo, a paixo, longe de provar que o homem no livre por no conseguir resistir a ela, demonstra, ao contrrio, que ele livre, pois nem sempre ele estar tomado por algum desejo invencvel. Alm disso, o homem no somente no estar sempre dominado por alguma paixo, como tambm ter o poder de resistir a ela. O filsofo expressa este ponto de vista em sua obra Elementos da filosofia de Newton, datada de 1738:
Tenho uma paixo violenta, mas meu entendimento conclui que devo resistir a ela. Ele me representa um maior bem na vitria do que na subordinao ao meu gosto. Este ltimo motivo supera o outro e combato meu desejo por minha vontade. Obedeo necessariamente, mas de bom grado, ordem da razo. Fao no o que desejo, mas o que quero, e neste caso sou livre, com toda a liberdade da qual uma tal circunstncia pode me deixar suscetvel. (VOLTAIRE, 1996, p. 39).
Voltaire contempla a luta do homem contra si mesmo como evidncia de que h livre-arbtrio, pois estaria em poder do ser humano tomar a deciso final. O entendimento mostra que resistir paixo melhor, e o homem se submete livremente ao seu 192
entendimento. Reforamos que nessa poca o nosso filsofo ainda no tinha sido convencido pelo argumento da vontade causada por um agente externo ao homem, a qual lhe tiraria o livre-arbtrio. Vejamos agora, com o intuito de estabelecer um paralelo entre as opinies opostas do filsofo para que o leitor possa comparar, o que ele fala sobre o homem lutando contra os seus desejos, em sua obra O filsofo ignorante:
Minha liberdade consiste em no fazer uma ao m quando representada por meu esprito como necessariamente m; em subjugar uma paixo quando meu esprito faz-me senti-la como perigosa, e quando o horror dessa ao combate poderosamente meu desejo. Podemos reprimir nossas paixes, como j anunciei no captulo XI, mas nesse caso no somos livres nem ao reprimir nossos desejos nem ao nos deixarmos arrastar por nossas inclinaes, visto que em ambos os casos seguimos irresistivelmente nossa ltima idia, e esta necessria; portanto, fao necessariamente o que ela me dita. estranho que os homens no estejam contentes com essa poro de liberdade, isto , com o poder que receberam da Natureza para fazer o que quiserem em muitos casos. (VOLTAIRE, 1978d, pp. 304-305).
O filsofo comea afirmando que a liberdade consiste em no fazer uma m ao quando o nosso esprito julga tal ao m. Em outras palavras, eu sou livre para no matar uma pessoa porque a minha conscincia diz que matar uma pessoa uma ao m. Ou, na continuao da citao, a liberdade consiste em vencermos uma paixo, um desejo que nosso esprito julga perigoso ou horroroso. Por exemplo, desejo a bela esposa do meu amigo, mas meu esprito diz que no devo cobi-la porque isso perigoso, j que pode trazer consequncias durssimas, e no bom desejar a mulher de um amigo, pois seria uma traio. Portanto, fico muito feliz com a minha liberdade em resistir ao mal, s minhas paixes, aos meus desejos censurveis. Mas a minha felicidade por ser livre acaba quando Voltaire afirma que no sou livre se reprimir minha paixo nem se me deixar levar por ela. Ou seja, se eu no mato uma pessoa, no sou livre, e se mato, tambm no sou. Se me relaciono com a esposa do meu amigo, no sou livre, e se no me relaciono, tambm no sou. Se furto um objeto valioso de um museu porque meu desejo mais forte do que a minha tica, eu no sou livre, e se no furto porque a minha tica mais forte do que o meu desejo, eu tambm no sou livre. Ou seja, para Voltaire, eu no sou livre em ocasio alguma! Se sou tico e fao o que bom, eu 193
fui predestinado pela natureza a ser tico, e se sou antitico e fao o que ruim, eu tambm fui predestinado pela mesma natureza a ser antitico. Isto porque, para o filsofo, ns seguimos, antes de cometer um ato, a nossa ltima ideia. Que ideia seria esta? A ltima impresso, parece, seria a ideia que vem ao nosso crebro antes de agirmos. Penso em fazer, em no fazer, em fazer, em no fazer, estas vrias impresses se revezam na minha mente, at que, enfim, eu fao. Ou seja, se fao algo, a ideia de fazer este algo ser a ltima impresso na minha mente antes de eu agir e, para Voltaire, ela necessria. Antes de agir, ns seguimos o nosso ltimo pensamento antes da ao. Assim, se em suas primeiras obras Voltaire entende que a luta do homem consigo mesmo indcio de que ele possui livrearbtrio, nas obras mais tardias esta luta, na verdade, ter o resultado final que tem que ter, que j foi predeterminado pela natureza, e o livre-arbtrio seria apenas ilusrio. Voltemos agora ao Voltaire dos anos 30 do sculo XVIII, ainda defensor do livrearbtrio, citando uma passagem dos Elementos da filosofia de Newton:
Parece que, se pudermos encontrar um nico caso no qual o homem seja verdadeiramente livre, de uma liberdade de indiferena, s isto bastaria para decidir a questo. Ora, que caso tomaramos, a no ser aquele no qual quisssemos por prova nossa liberdade? Por exemplo: propem-me que me vire direita ou esquerda, ou que faa tal outra ao, para a qual nenhum prazer me convida, e da qual nenhum desgosto me afasta. Escolho ento e no sigo o dictamen de meu entendimento, que me representa o melhor: pois aqui no h melhor nem pior. Que fao pois? Exero o direito que o Criador me deu de querer e agir em certos casos sem nenhuma razo a no ser minha prpria vontade. Tenho o direito e o poder de comear o movimento, e de come-lo do lado que quiser. Se neste caso no se pode assinalar outra causa seno minha vontade, por que procur-la em outro lugar que no seja ela? Parece, portanto, provvel que possumos a liberdade de indiferena nas coisas indiferentes. Pois quem poder dizer que Deus no nos deu ou no pde nos dar este presente? E se ele pde e sentimos em ns este poder, como afirmar que no o possumos? (VOLTAIRE, 1996, p. 38).
Pelo contexto da passagem citada, entendemos que a liberdade de indiferena citada pelo filsofo se refere ao na qual o homem no tem nada a ganhar ou a perder caso a execute. Por exemplo, se um homem tem a opo de comer um prato de comida ou um prato de cheio de vidro, no teria sentido discutir livre-arbtrio neste caso, pois evidentemente o homem comer o prato de comida e este no seria um exemplo vlido para afirmar que o homem escolheu comer o prato de comida, pois, a no ser que ele quisesse se 194
suicidar, ele no poderia escolher comer o prato cheio de vidro. J na liberdade de indiferena temos que pensar em um caso onde o homem escolher algo que no lhe trar consequncias boas ou ruins, em uma escolha que no lhe trar prazer ou desprazer, como o exemplo dado na citao, onde eu posso escolher me virar para a esquerda ou para a direita, j que, tanto num caso como no outro, eu no ganharei ou perderei coisa alguma. Ou seja, a liberdade de indiferena o caso onde a escolha no me far diferena alguma, mas provaria que o homem livre. Ainda que tais escolhas no tenham muita (ou nenhuma) utilidade para a vida prtica, o filsofo quer usar este exemplo para provar que o homem possuidor de livre-arbtrio, que ele tem uma vontade autnoma que nem sempre direcionada para um lado ou para o outro. E, novamente Voltaire utiliza o sentimento, como vemos no final da citao, para demonstrar que temos livre-arbtrio. Agora, teria o filsofo tambm abandonado o seu conceito de liberdade de indiferena com o passar dos anos? Ele mesmo responde, agora no verbete liberdade do seu Dicionrio filosfico: No h nenhuma liberdade de indiferena. uma expresso to destituda de sentido como as pessoas que a inventaram. (VOLTAIRE 1978c, p. 238). Voltaire deixa bem claro, usando a mesma expresso que usou nos Elementos da filosofia de Newton , que a liberdade de indiferena uma quimera, sem sentido, algo sem valor algum. Embora o nosso filsofo tenha adotado este conceito em seu passado, ele no hesita em atacar tambm as pessoas que teriam criado o conceito, em seu mpeto j conhecido por seus leitores. Parece que na prpria obra Elementos da filosofia de Newton o nosso filsofo j dava sinais de que no estava plenamente convencido de seus argumentos e que o ponto de vista daqueles que negavam uma vontade livre o incomodavam bastante. Na obra citada, Voltaire expe a dificuldade em se conceber uma vontade livre, ou seja, no causada, o problema em se questionar uma ideia que se impe de modo irresistvel a ns e tambm a ideia do destino ao qual no poderamos escapar, e aps isso fala:
Com efeito, preciso convir que s se pode responder s objees contra a liberdade por meio de uma vaga eloqncia: triste assunto, no qual o mais sbio teme ousar at mesmo pensar. Uma nica reflexo consola: que, qualquer que seja o sistema que se adote, qualquer que seja a fatalidade qual se acredite que nossas aes estejam ligadas, sempre agimos como se fssemos livres. (VOLTAIRE, 1996, p. 41).
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Ou seja, o nosso filsofo reconhece que os argumentos dos deterministas so fortes e esta citao parece indicar que ele mesmo percebeu que a sua argumentao no dava conta das objees que o livre-arbtrio sofria. curioso que algum defenda um ponto de vista com os recursos que pode, mas na concluso do assunto expresse um sentimento de tristeza por no ter conseguido atingir os seus objetivos. Perceba o leitor que as palavras triste assunto demonstram que este o sentimento que existe no corao do homem que est tentando provar a si mesmo e aos outros que livre, mas percebe que no consegue. Se mesmo o homem mais sbio teme at pensar na questo, porque, para Voltaire, os argumentos dos deterministas so como um labirinto, do qual no possvel sair, e certamente quem pensar na questo concluir que no livre e tal concluso deixar o homem num estado de tristeza por perceber que sua liberdade uma iluso. A nica consolao para o filsofo, ainda quando era um esforado defensor da liberdade (BRANDO, 2008, p. 108), que sempre agimos como se fssemos livres, ou seja, mesmo que eu no tenha livre-arbtrio, ainda assim posso me consolar com esta iluso.
Tendo estabelecido, na seo anterior, um paralelo entre o momento em que Voltaire defendia o livre-arbtrio e o momento em que j era determinista, buscando sempre confrontar os pontos da questo onde o autor do Cndido mudou o seu ponto de vista, continuamos, agora, a demonstrar ao leitor mais alguns argumentos do filsofo contrrios ao livre-arbtrio. A partir da concluso que tiramos, de que para Voltaire a vontade no livre, nos perguntamos o seguinte: se a vontade causada por algo anterior a ela, o que a causaria, para o filsofo? Deixemos o nosso pensador se expressar em O filsofo ignorante:
Com efeito, seria muito singular que toda a Natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas, e que houvesse um animalzinho de cinco ps de altura que, menosprezando tais leis, pudesse agir sempre como lhe agradasse, ao sabor de seu capricho. (VOLTAIRE, 1978d, p. 304).
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Portanto, o que causaria a vontade do homem seriam as leis eternas da natureza. Afinal, quem o homem para ser melhor do que o restante dos outros seres? O ser humano seria apenas mais um ser na natureza do ponto de vista de certas concepes materialistas, pois, no tendo uma substncia espiritual que o distingue dos demais seres, o que sobra apenas matria, e a matria est sujeita s leis do universo, e as leis levariam o homem a agir de uma ou de outra forma, irresistivelmente. Temos um argumento semelhante do filsofo no Dicionrio filosfico:
Havia de ser coisa engraada essa de uma parte do mundo ser regulada por leis e outra no; que uma parte daquilo que acontece tenha de acontecer e uma outra parte daquilo que acontece no deva acontecer. Mas quando se analisa mais de perto repara-se que a doutrina contrria doutrina que admite o destino absurda; mas h muitas pessoas condenadas a raciocinar mal, outras a no raciocinarem nada e outras, ainda, a perseguirem como feras aqueles que raciocinam. (VOLTAIRE, 1978c, p. 149).
O homem, como parte do todo, e em nada mais especial do que todo o mais que existe, segue as leis inflexveis do universo, da natureza, e o seu livre-arbtrio seria apenas iluso, uma quimera de quem raciocina mal. As descobertas astronmicas que j existiam poca de Voltaire tiraram do planeta Terra a sua condio de centro de todas as coisas, deixando o homem, assim, desamparado e destitudo da sua posio de coroa da criao divina. E o materialismo do sculo XVIII, que exerceu grande influncia sobre Voltaire, no via no homem nada de especial em relao aos animais, a no ser a diferena na estrutura de ambos, e a ideia de que o homem possuidor de uma substncia espiritual foi rejeitada. Portanto, a concluso bvia: o homem segue as leis universais como todos os demais seres. Assim, como o homem no pode escapar s leis da natureza e agir livremente, perguntamos: quem causa as leis da natureza para Voltaire? Vejamos sua resposta:
Nascido de um germe, vindo de outro germe, houve uma sucesso contnua, um desenvolvimento sem fim desses germes e toda a Natureza sempre existiu como uma decorrncia necessria desse Ser Supremo, que existia por si mesmo? Se acreditasse apenas em meu fraco entendimento, diria: parece-me que a Natureza sempre foi animada. No posso conceber que a causa que age contnua e visivelmente sobre ela, podendo agir desde todos os tempos, no tenha agido sempre. Uma eternidade de cio pareceme incompatvel com o ser agente e necessrio (...) Teria havida o nada
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no espao onde hoje h alguma coisa? Isso me parece incompreensvel. (VOLTAIRE, 1978d, p. 308).
Voltaire est discutindo, no contexto desta citao, se a natureza e suas leis existem desde sempre ou se em algum momento no existiram e foram criadas. Em seu raciocnio, a natureza sempre foi animada, ou seja, sempre teve vida, pois o Ser supremo que age sobre ela no pode, para Voltaire, ter ficado tanto tempo, na verdade uma eternidade, sem fazer nada. O relevante para ns nesta citao, neste momento, demonstrar, mais uma vez, que a natureza e suas leis so causadas por um Ser soberano, por Deus. Sendo assim, se Deus a causa das leis da natureza e as leis da natureza so a causa da nossa vontade, Deus acaba se tornando, mesmo que indiretamente, o causador da nossa vontade. Maria das Graas de Souza fala sobre esta posio de Voltaire:
Ao nvel propriamente conceitual Voltaire recusa a proposio de que a matria possa organizar-se por si mesma. Segundo ele, preciso, para explicar o mundo, recorrer idia de um ser supremo como causa primeira do universo (...) Para Voltaire, a superstio e o atesmo so os dois extremos da loucura humana. (SOUZA, 1983, p. 7).
Portanto, se a matria no apenas no a sua prpria causa como tambm no pode ter se organizado por si s, chegando autonomamente ao estado de organizao e complexidade que conhecemos, ento h um Deus que fez tudo o que h e deu ordem e leis ao universo. E, no tendo o homem uma substncia espiritual e autnoma, no pensamento de Voltaire, ento ele apenas mais um ser que simplesmente obedece s leis universais, cumprindo, assim, o propsito do supremo arteso. Assim, entendemos que Voltaire aniquila o livre-arbtrio do homem. O filsofo continua a falar em O filsofo ignorante:
Esse ser Eterno, essa causa universal d-me idias, pois no so os objetos que me podem d-las. Uma matria bruta no pode enviar pensamentos minha cabea, meus pensamentos no vm de mim, pois acontecem a despeito de mim mesmo, e freqentemente fogem sem minha interveno. (VOLTAIRE, 1978d, p. 309).
O argumento de causa e efeito a base para o conceito de Voltaire sobre o livrearbtrio. A ideia no autnoma, ela no aparece como a causa, mas como o efeito de outra 198
causa. Aqui, nesta citao, Voltaire no fala das leis eternas como causa da nossa vontade, fala diretamente de Deus, do Ser Eterno. O fato de uma ideia vir mente humana sem o homem querer ou ter planejado pensar em tal ideia ou ainda o fato dele se esquecer do que estava pensando era uma evidncia, para o nosso filsofo, de que o homem no tem autonomia sobre os seus pensamentos. De repente, vem ao crebro humano a ideia de viajar, ele vai e viaja. O homem, apesar de ter sido livre para viajar, no foi livre ao ter a ideia de viajar. Assim, de certo modo, ele no foi livre para viajar, j que foi iludido com o pensamento de que sua ideia foi livre. Pensando assim como Voltaire, o homem est mergulhado no mais absoluto fatalismo. O que tiver que acontecer, acontecer, certamente. A viso de um universo como uma mquina onde h uma grande cadeia de acontecimentos, tem relao com a viso determinista das suas ltimas obras. Vejamos o filsofo falando em seu Dicionrio filosfico , no verbete cadeia dos acontecimentos:
Examinai as situaes de todos os povos do universo: estabelecem-se deste modo numa sucesso de fatos que parecem no depender de nada e em verdade so conseqncia de tudo. Tudo rodagem, roldana, corda, mola, nesta engrenagem colossal. (VOLTAIRE, 1978c, p. 114).
Voltaire v os acontecimentos em geral como uma grande cadeia de causas e efeitos, onde nenhum acontecimento escapa desta grande mquina gigante e completa, que seria o nosso universo. Aquilo que acontece e parece ter ocorrido por acaso teve uma causa, ainda que a desconheamos. O acaso, o nada no pode produzir coisa alguma. Rodrigo Brando comenta a respeito da relao do mundo concebido por Voltaire com a liberdade:
... Voltaire menciona rapidamente o problema que a questo da liberdade enfrentaria quando consideramos a ordenao e encadeamento do universo. Se tudo est ordenado e encadeado, a cada momento em que o homem fizesse uma escolha livre todo o universo seria alterado. (BRANDO, 2008, p. 81).
Assim, o homem no poderia exercer uma ao livremente porque, sendo tudo uma grande cadeia preordenada por Deus, se o homem age livremente, ele alteraria a ordem universal. Portanto, as aes humanas j estariam predeterminadas para que a ordem natural fosse mantida. 199
Pensando em exemplos prticos para ilustrar melhor este ponto de vista, seria como se um candidato perdesse as eleies do seu municpio por ter se declarado ateu. A maioria de ns faria apenas a associao entre uma coisa e outra: ele perdeu as eleies porque se declarou ateu. Tal explicao nos seria suficiente para entendermos a situao. Para Voltaire no, pois o candidato no se declarou ateu por acaso. Algo aconteceu que o levou a fazer tal declarao. Ele pode ter assistido a um filme qualquer que o convenceu de que Deus no existe e o influenciou a fazer tal declarao. Mas por que ele assistiu a tal filme? Porque passou na locadora e alugou. Mas por que passou na locadora? Porque perto de sua casa. E por que perto de sua casa? Porque era necessrio, e no poderia ser diferente, que a tal locadora fosse estabelecida onde foi. Assim tambm como o tal candidato foi atrado a tal locadora, ao tal filme e teve que assisti-lo naquele momento. Dessa forma, era inevitvel que ele se declarasse ateu e perdesse as eleies, pois, certamente a ideia de se declarar ateu publicamente lhe foi irresistvel. E, no final das contas, quem causou as leis da natureza que levaram o ateu a se declarar ateu e perder as eleies foi Deus. Este o mundo de causa e efeito de Voltaire. O filsofo, todavia, pondera, no mesmo verbete cadeia dos acontecimentos, sobre a inflexibilidade dessa imensa mquina que seria o universo:
Entendamo-nos: todo o efeito tem, evidentemente, a sua causa, a remontar de causa em causa no abismo da eternidade; mas nem toda causa tem seu efeito a influir at o fim dos sculos. Todos os acontecimentos so produzidos uns pelos outros, reconheo, se o passado partureja o presente, o presente partureja o futuro; todos tm pais, mas nem todos tm filhos. Sucede aqui precisamente o mesmo que numa rvore genealgica: cada linhagem ascende, como se sabe, at Ado, mas na famlia h muitas pessoas que morreram sem descendncia. (VOLTAIRE, 1978c, p. 115).
Sumariamente, Voltaire quer dizer que todo efeito tem sua causa, que teve outra causa, at chegarmos a uma primeira causa, talvez, mas nem toda causa tem seu efeito, que gerar outro feito eternamente. Se analisarmos um acontecimento, ele ter uma causa. Esta causa que causou este acontecimento, tambm ter outra causa, assim at a primeira ao, e da, como diz o filsofo, para o abismo da eternidade, onde o homem no poderia penetrar. Desta forma, nada acontece por acaso, tudo tem uma causa natural, ainda que o homem a ignore. Por outro lado, isso no significa que todas as aes tero consequncias, 200
e estas geraro outras consequncias, infinitamente. A ilustrao da ao humana com a genealogia humana tem o intuito de mostrar que, se todas as pessoas foram geradas por algum, isso no significa que geraro outras pessoas, ou seja, tudo o que acontece tem uma causa, mas no necessariamente o que acontece gerar efeitos para sempre. O filsofo refora o seu determinismo, vendo tudo como predeterminado pela natureza, como vemos:
Eu c tenho forosamente a vaidade de escrever isto; e tu tens a paixo de me condenar: ambos somos igualmente idiotas, ambos somos de igual modo joguetes do destino. A tua natureza leva-te a praticar o mal, a minha de amar a verdade e public-la, apesar da tua oposio e perseguio. (VOLTAIRE, 1978c, p. 150).
Voltaire, desta forma, atribui ao destino todas as guerras, injustias e intolerncia que existem na histria. Assim, os cristos a quem Voltaire julga intolerantes no seriam culpados de sua intolerncia, pois toda a situao j estava programada pelo destino, do qual nem os deuses, na mitologia grega, escapavam. Ainda pensando em tudo o que Voltaire criticou da religio, aquilo que ele classifica como coisas indignas que os homens atribuem divindade tambm teriam sido programadas pela prpria divindade. Ou seja, a divindade racional de Voltaire predeterminou os homens a serem irracionais. Assim, querendo ou no, o quadro geral da vida como Voltaire contempla seria assim: h homens intolerantes que j foram predeterminados por Deus a serem assim e h homens tolerantes, que lutam contra a intolerncia, que tambm foram programados por Deus para assim agirem. Voltaire e outros homens racionais so predestinados a defender a razo e os padres so predestinados a defender o absurdo (segundo Voltaire, claro). Ao menos Voltaire teve a sensatez de dizer que ambos somos igualmente idiotas. Afinal, se desta forma que as coisas funcionam, realmente no passamos de homens nscios. John Gray corrobora a viso determinista de Voltaire:
medida que envelhecia, Voltaire se inclinava cada vez mais para o determinismo, talvez por achar que este decorria da cosmoviso cientfica de Newton. No parece ter percebido nenhuma tenso entre seu determinismo perante os seres humanos e seu compromisso poltico com a emancipao da humanidade. No entanto, a viso cientfico-determinista da natureza, a que era cada vez mais simptico, no oferecia apoio algum aos ideais humanitrios de Voltaire. Como bem notou o marqus de Sade,
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uma viso amoral e determinista da natureza pode sancionar tanto a tortura, a escravido e o crime quanto a liberdade, o afeto e a solidariedade humana. (GRAY, 1999, p. 45).
Contemplando o mundo como uma grande mquina, onde tudo feito de causa e efeito, no houve outra alternativa para Voltaire seno enxergar a mente humana da mesma maneira, como um mero efeito das leis universais. Como bem observa Gray, o nosso filsofo no demonstra ver conflitos entre sua militncia em prol da liberdade humana e o seu determinismo. O grande perigo desta viso no justificar apenas a tortura, a escravido ou o crime, mas justificar qualquer coisa. Se a natureza que manda em tudo, ento tudo pode ser justificado sob este pretexto, mesmo as coisas mais terrveis e abominveis. Ser que Voltaire pensou no caso Jean Calas ao escrever sobre o destino? Teria o nosso filsofo pensado que os juzes foram programados por Deus para condenar Jean Calas morte injustamente, enquanto ele, Voltaire, foi programado pelo mesmo Deus para anular o processo e lutar por tolerncia? Talvez Voltaire no tenha percebido que esta incoerncia seja muito maior do que as outras que ele procurou combater. Como vimos, John Gray conjectura que a viso determinista de Voltaire pode ter sido originada pela cincia de Newton. Seja como for, o determinismo de Voltaire teve relao com sua viso empirista, de que as ideias humanas so causadas pelos sentidos. O filsofo comenta sobre o assunto em seu conto Os ouvidos do conde de Chesterfield e o capelo Goudman , ao atribuir esta fala a Goudman, um padre influenciado pela filosofia e possuidor de uma viso sensata da vida:
Aquele que nos chama tteres da Providncia, parece-me que nos definiu bem. Pois enfim, para que existamos, necessrio uma infinidade de movimentos. Ora, ns no fizemos o movimento; no fomos ns que lhe estabelecemos as leis. H algum que, tendo feito a luz, a faz mover do sol a nossos olhos, ferindo-os em sete minutos. to s pelo movimento que os meus cinco sentidos so impressionados; e s por esses cinco sentidos que eu tenho idias; pois o autor do movimento quem me d as minhas idias. (VOLTAIRE, 2005, p. 686).
A ideia da natureza como uma grande mquina, onde tudo o que existe causa e efeito, produziu em Voltaire uma representao do homem como uma mquina sofisticada. Se todas as nossas ideias vm pelos sentidos, como Voltaire cansou de afirmar contra o ponto de vista de Descartes, e os sentidos so excitados pelos objetos, ento so os 202
elementos externos que provocam as minhas ideias. Neste caso, o capelo apela para os movimentos, do homem e dos outros elementos naturais, para afirmar que o ser humano vive sob leis que no criou, as quais gerariam suas ideias. E so estas leis do movimento, por exemplo, que fariam a luz do sol chegar aos olhos humanos, o que estaria totalmente fora do controle humano. Portanto, se por meio destas leis do movimento que os sentidos so excitados, e so os sentidos que produzem as ideias, onde aparece o livre-arbtrio do homem? Novamente Voltaire conclui que o autor do movimento, o criador de suas leis, o Ser supremo, quem d as ideias ao ser humano por meio desse processo todo. Contemplando o homem apenas como matria sujeito s leis, entendemos a razo do filsofo tirar o livre-arbtrio do homem. por este ponto de vista que temos a seguinte citao:
H patetas que dizem: o mdico salvou a minha tia de uma doena mortal, e conseguiu que ela vivesse mais dez anos do que devia (...) Sim, sim, o mdico salvou a tua tia, mas por certo no contrariou as leis da Natureza: obedeceu-lhes. claro que a tua tia no podia evitar que, em determinada altura, certa doena a atacasse, que o mdico no podia estar algures seno na cidade onde ento se encontrava, que a tua tia havia de mandar cham-lo, que ele devia receitar-lhe os remdios que a curaram. (VOLTAIRE, 1978c, p. 149).
O homem no s no teria livre-arbtrio para formar suas ideias, que seriam causadas por Deus, mas tambm estaria preso ao destino nas demais coisas, como se locomover de um lugar para outro. Se o exemplo dado por Voltaire do mdico que salva a mulher serve para ele concluir que o bem que o mdico fez mulher foi obra do destino inflexvel, ento, se o mdico no tivesse chegado a tempo, tambm j teria sido predeterminado pelas leis eternas do universo a se atrasar. Ou ainda se o mdico tivesse chegado a tempo e, por ser mau, em vez de dar remdio mulher tivesse dado veneno, tudo estaria de acordo com a vontade da Providncia. Assim, a mulher viveria exatamente a quantidade de anos que j lhe estavam reservados desde sempre. No s a mulher, como seus sobrinhos patetas, o mdico, quem fez o remdio, quem ouviu a histria, quem escreveu... Portanto, parecem ser suficientes as passagens selecionadas neste captulo para entendermos a posio de Voltaire a respeito do livre-arbtrio, desde as suas primeiras obras 203
at s ltimas. Ainda que tenha rejeitado a viso do pecado original, que, para os mais extremistas defensores desta viso, tira do homem o livre-arbtrio para fazer o bem, o filsofo, embora por caminhos diferentes, chegou ao mesmo destino: a negao do livrearbtrio humano.
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CAPTULO 5
5. A RELIGIO DE VOLTAIRE
Enfim, aps termos tratado da relao do nosso filsofo com a viso judaico-crist, da sua crtica Bblia e intolerncia do cristianismo, da sua defesa da existncia de Deus e da sua rejeio ao atesmo, da questo da alma e do livre-arbtrio, chegamos, enfim, ao modelo de religio proposto por Voltaire. Na verdade, a religio de Voltaire um pouco de cada coisa que tratamos at ento em nosso trabalho e este captulo uma consequncia natural dos captulos anteriores, pois ele apresentar o modelo prtico da religio de Voltaire, como o patriarca de Ferney entende que deve ser uma religio na sociedade, e esse modelo tem forte relao com o que foi abordado aqui at ento. Como o leitor pde perceber, o filsofo rejeita fortemente o modelo judaico-cristo, em especial o cristianismo catlico. Sua crtica intolerncia do cristianismo e irracionalidade de certos dogmas cristos o conduziu a um modelo de religio oposto, para uma religio voltada para a moral, para a justia e tambm submissa ao Estado. Os abusos que teriam sido cometidos pela Igreja seriam suficientes para o filsofo entender que melhor limitar o poder da religio. Os inmeros dogmas seriam substitudos por uma moral, que seria natural, universal, que estaria no homem e seria dada pelo prprio Deus. Vimos tambm como o filsofo busca defender a existncia de Deus, mas no avana muito alm disso, ou seja, o autor do Cndido no busca explicar ou conhecer mais alm o Ser supremo. Podemos saber que ele existe, podemos conhecer alguns de seus atributos por meio da natureza e nada mais. Provavelmente essa viso que o filsofo tinha de Deus o levou a pensar numa religio com poucos dogmas, pois no possvel afirmar muitas verdades categricas sobre algo que conhecemos to pouco. Mesmo as constantes vezes em que Voltaire problematiza a sobrevivncia da alma aps a morte podem ter interferido neste modelo de religio mais simples, com poucos dogmas e voltado para a moral, j que a sua nfase, como veremos a seguir, em ser justo, em ser tolerante, no em buscar algo como uma vida eterna ou algo alm dessa vida, por exemplo. Embora o filsofo 205
mencione a seguir a adorao a Deus, ele no desenvolve o assunto, mas enfatiza a relao com o prximo, refora o fato de que termos que ser teis aos outros, ou seja, o foco na relao horizontal, com o prximo. Em suma, os conceitos que o filsofo tinha da intolerncia religiosa do seu tempo, de Deus e da alma o levaram a pensar num modelo de religio civil, numa religio submissa ao Estado, sem poderes polticos, sem privilgios, com poucos dogmas, que ajuda a produzir uma sociedade tolerante, que est focada nas relaes humanas, que tem pouca metafsica e voltada ao bem-estar dos homens.
Como o nosso trabalho demonstrou, o que Voltaire fala de religio diversas vezes tem relao com o cristianismo. E como o cristianismo para ele uma religio intolerante, nada mais natural do que o nosso filsofo entender que o modelo ideal de religio exija que as religies sejam submetidas ao Estado, visto que s assim uma sociedade poderia viver com justia, sem abusos, onde nenhum cidado seria impedido de expressar suas opinies, onde nenhuma pessoa seria perseguida por questes teolgicas e ningum seria impedido de buscar a verdade livremente, sem verdades preestabelecidas. O modelo de Estado laico seria o melhor, pois livraria as pessoas da tirania dos telogos. A liberdade no poderia ser pensada, em Voltaire, com o cristianismo dominando as pessoas, com a religio crist tendo autonomia sobre o poder secular. O Estado laico seria um requisito fundamental na construo de uma sociedade livre e tolerante, onde as opinies sobre teologia no serviriam de causa para oprimir o prximo. Portanto, o modelo de sociedade desejado por Voltaire exige que a religio seja submissa s autoridades, no o contrrio. O patriarca de Ferney diz isso claramente em seu Dicionrio filosfico: Que todos os eclesisticos sejam submetidos, em todas as circunstncias, ao governo, pois so sditos do Estado. (VOLTAIRE, 1978c, p. 235). Will Durant comenta sobre este desejo de Voltaire: O primeiro passo para a sade social era a destruio do poder eclesistico, no qual a intolerncia tinha a sua raiz. (DURANT, 1996, p. 231). Desta forma, o modelo ideal de religio de Voltaire teria por trs de si um modelo ideal de sociedade. A questo no 206
estaria meramente em idealizar uma religio, mas sim no conceito de uma sociedade desenvolvida, racional, tolerante. No haveria como a sociedade ter tais adjetivos com o domnio da igreja crist, na qual Voltaire no confiava. O filsofo tem a palavra: Que s o magistrado tenha poderes para permitir ou proibir o trabalho em dias festivos, pois aos padres no incumbe impedirem homens de cultivar os campos que lhes pertencem. (VOLTAIRE, 1978c, p. 235). Notamos aqui, concordando com Durant, que Voltaire, ao falar de um modelo de religio, est pensando principalmente na sociedade como um todo. Ou seja, o autor do Cndido no quer purificar a religio apenas porque tenha interesse nela, mas porque ela faz parte da sociedade. necessrio reforarmos este ponto de vista, pois, por exemplo, num movimento histrico como a Reforma Protestante, os reformadores esto interessados, em primeiro lugar, na religio em si, em purificar a igreja de abusos, em fazer do cristianismo, novamente, uma religio baseada na Bblia. J Voltaire no tem como foco a religio, mas a sociedade. Esta referncia citada nos mostra que a preocupao do filsofo que os padres no tenham poder de atrapalhar o desenvolvimento econmico, que no interfiram naquilo que no de sua alada, que no tenham autoridade para interferir no direito do cidado de tratar a sua propriedade como bem entender. John Gray comenta sobre a viso de Voltaire acerca do assunto:
Voltaire era um relativista poltico. E, ao mesmo tempo, um liberal. Tentava limitar a arbitrariedade do poder poltico sujeitando-o lei. Acima de tudo, queria que o poder do Estado no ficasse a servio de doutrinas ambiciosas como o Cristianismo. (GRAY, 1999, p. 47).
Para Gray, Voltaire no tinha um modelo poltico especfico como o melhor. Contudo, o poder secular deveria ser sujeito s leis e o cristianismo deveria se submeter ao Estado. Desta forma, nem o Estado nem a igreja abusariam do poder, pois teriam que se submeter s leis. No haveria progresso enquanto a religio crist, com seus abusos e intolerncia, continuasse a impor aos homens as suas regras. Para Gray, as ambies do cristianismo impediam que Voltaire visse outra posio para a religio que no a de sdito do Estado. Voltaire ratifica: Que os magistrados, os trabalhadores e os padres paguem igualmente os encargos do Estado, pois todos pertencem igualmente ao Estado. (VOLTAIRE, 1978c, p. 235). A religio deveria estar sob a autoridade do Estado e um dos 207
smbolos de tal submisso seria os lderes religiosos receberem igual tratamento aos demais cidados, pois so iguais a eles. O filsofo refora a necessidade de uma religio sujeita ao Estado e de como ela deve ser controlada:
No ser necessrio separar cuidadosamente a religio do Estado e a religio teolgica? A do Estado exige que os imas conservem o registro dos circuncidados e os curas ou pastores, o registro dos batizados; que haja mesquitas, igrejas, templos, dias consagrados adorao e ao repouso, ritos estabelecidos pela lei; que os ministros de tais ritos gozem de considerao mas no de poder; que ensinem os bons costumes ao povo e que os ministros da lei vigiem os costumes dos ministros dos templos. Esta religio do Estado em nenhuma circunstncia poder causar perturbao. (VOLTAIRE, 1978c, p. 278).
Voltaire quer uma religio constantemente vigiada pelo Estado. O Estado deve saber o que as religies fazem, quais so os seus ritos, quantos membros elas tm, etc. Para que ter este controle? Talvez para que as religies tenham que prestar contas s autoridades, para que o Estado tenha conhecimento de quais ritos so praticados, se eles implicam em algo contrrio s leis, se h intolerncia em alguma doutrina. O Estado deve saber quantos adeptos as religies tm, a fim de saber quais lderes tero mais poder e, assim, vigi-los de perto. As leis no devem permitir que os ritos ou doutrinas das religies infrinjam direitos humanos fundamentais, o bom senso, a ordem social. Deve haver pluralidade religiosa, pois Voltaire cita mesquitas (de muulmanos), circunciso (de judeus), igrejas (crists) e pastores (protestantes). O filsofo, influenciado por sua experincia na Inglaterra, entendia que a sociedade tolerante precisa de muitas religies convivendo pacificamente. Contudo, todas elas devem estar sob o controle do Estado, a fim de que no passem a dominar com tirania, impondo uma ou outra doutrina como verdade absoluta e, assim, passariam a perseguir as demais. Enfim, como o final da citao demonstra, o objetivo de Voltaire a ordem social, que cada religio esteja sob controle para no causar perturbao. Marilena Chau confirma a importncia da pluralidade religiosa para a manuteno da ordem social em Voltaire: Havendo inmeras crenas religiosas, o Estado no poder, sob pena de tornar-se causador da guerra civil, escolher uma delas como religio oficial para toda a sociedade. (CHAU, 1999, p. 115). 208
Por fim, Voltaire cita at a Bblia que ele tanto critica para ter mais argumentos contra a autoridade civil da igreja: De todas as religies, a que mais positivamente exclui os padres de toda a autoridade civil , sem contestao, a de Jesus: Dai a Csar o que de Csar No haver entre vs nem primeiro nem ltimo O meu reino no deste mundo. (VOLTAIRE, 1978c, p. 261). Vejamos mais de perto as referncias bblicas citadas pelo autor do Cndido , para vermos se elas tm o sentido que ele d a elas. Comecemos pela ordem utilizada pelo filsofo:
Ento os fariseus foram reunir-se para tramar como apanh-lo por alguma palavra. E lhe enviaram os seus discpulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: Mestre, sabemos que s verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. No ds preferncia a ningum, pois no consideras um homem pelas aparncias. Dize-nos, pois, que te parece: lcito pagar imposto a Csar, ou no? Jesus, porm, percebendo a sua malcia, disse: Hipcritas! Por que me pondes prova? Mostrai-me a moeda do imposto Apresentaram-lhe um denrio. Disse ele: De quem esta imagem e a inscrio? Responderam-lhe: De Csar. Ento lhes disse: Da, pois, o que de Csar a Csar, e o que de Deus, a Deus. Ao ouvirem isso, ficaram surpresos e, deixando-o, foram-se embora. (Mt 22:15-22).
A pergunta dos religiosos era maliciosa porque, se Jesus respondesse que no se deveria pagar os impostos para os romanos, poderia ser acusado de crime de rebelio. Se respondesse que sim, poderia ficar mal com muitos judeus que no aceitavam o domnio do Imprio Romano. Portanto, era uma pergunta que visava deixar Jesus sem resposta. Champlin fala sobre o assunto:
Pelo termo lcito se entende a pergunta se um judeu, que se considerava parte de uma teocracia e sujeito s a Deus, poderia dar legitimamente de seus bens para um rei ou governante pago. Segundo princpios teocrticos, somente Jeov poderia ser considerado o Rei de Israel. (CHAMPLIN, 1995, p. 531).
A explicao de Champlin nos faz entender melhor o motivo de muitos judeus no aceitarem pagar tributos a Csar, em especial os mais radicais, como os zelotes. Na mentalidade de muitos deles, pagar tributos a Csar era um ato de infidelidade a Deus. Contudo, aqueles que fizeram a pergunta a Jesus no o fizeram para obter uma resposta 209
sincera, mas sim com o intuito de coloc-lo numa situao desconfortvel. Jesus, ao bom estilo judaico, responde com uma pergunta: De quem esta imagem e inscrio? Vejamos novamente o comentrio esclarecedor de Champlin:
A resposta de Jesus reconheceu o princpio de que a aceitao de moedas dos imperadores era uma admisso de sua soberania de facto. Mas as palavras que se seguem ... e a Deus o que de Deus ensinam que tal admisso no significa admisso de qualquer lealdade menor a Deus. (CHAMPLIN, 1995, p. 532).
Por que a passagem bblica que citamos se encerra com a admirao e surpresa dos ouvintes? Porque o estilo dos rabinos, de responder com uma pergunta, faz com que a prpria pessoa que perguntou busque e encontre a resposta. Neste caso, Jesus transformou a pergunta dos homens sbios em uma tolice. Eles estavam perguntando se deveriam pagar impostos a Csar, ou seja, estavam perguntando se deveriam reconhecer a soberania de Roma. Ao pedir a moeda e perguntar de quem era a inscrio que constava no denrio 25, Jesus fez os prprios questionadores responder: Sim, a nossa moeda tem a face do imperador. Portanto, se eles usavam uma moeda com a face do imperador, por que estavam fazendo uma pergunta to tola? Assim, eles mesmos demonstraram, por usarem a moeda com o rosto do imperador, que estavam sob o domnio dele. Portanto, tendo explicado a referncia citada rapidamente por Voltaire, entendemos que ele interpreta o versculo bblico de maneira correta ao falar que a religio de Jesus exclui os padres de toda a autoridade civil. Por qu? Porque o versculo citado mostra que, para Jesus, a submisso ao poder secular bom e no implica em infidelidade a Deus. Desta maneira, nosso dever, para Jesus, nos submetermos s autoridades, a fim de que haja ordem social. Ou seja, no cabe aos lderes cristos tomarem o poder, e isso o que Voltaire quer dizer. Vejamos a segunda passagem citada pelo filsofo. Aps a me de Tiago e de Joo, dois discpulos de Jesus, pedirem a Jesus para que os dois se sentassem sua direita e sua esquerda no seu reino, temos o seguinte relato bblico:
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Ouvindo isso, os dez ficaram indignados com os dois irmos. Mas Jesus, chamando-os disse: Sabeis que os governadores das naes as dominam e os grandes as tiranizam. Entre vs no dever ser assim. Ao contrrio, aquele que quiser tornar-se grande entre vs seja aquele que serve, e o que quiser ser primeiro dentre vs, seja o vosso servo. Desse modo, o Filho do Homem no veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate por muitos. (Mt 20:24-28).
A ideia geral da passagem que dois dos discpulos de Jesus queriam posies elevadas quando se manifestasse o reino de Deus. Contudo, provavelmente a ideia de reino de Deus aqui se refere a algo poltico, no celestial ou espiritual, conforme a citao de Champlin corrobora em um comentrio a esta passagem:
No provvel que [os discpulos] tivessem ento qualquer idia sobre o reino celestial. quase certo que ainda estivessem aferrados antiga idia judaica de um Messias militante, que libertaria Israel de Roma; e de um Rei-Messias terreno, que teria auxiliares literais. Queriam ocupar o primeiro e o segundo lugares, quando Jesus fizesse a seleo de seus auxiliares da corte ou primeiros ministros. (CHAMPLIN, 1995, p. 752).
Desta forma, o que os discpulos queriam dominar, ter poder, ocupar as primeiras posies quando, segundo suas expectativas, o Imprio Romano fosse destrudo pelo Messias, concepo essa, claro, que no aparece nos discursos de Jesus. A resposta de Jesus que seus discpulos no deveriam buscar poder e tirania como as naes faziam com os homens, mas, se quisessem ser os primeiros, deveriam servir um ao outro. Desta forma, entendemos novamente que a interpretao que Voltaire faz da passagem reflete uma boa exegese, ainda que ele possa estar citando algum outro texto que tenha teor semelhante. Como a passagem mostra que os discpulos de Jesus no deveriam desejar ser como os poderosos dominadores, mas deveriam servir o prximo, o filsofo, embora comentando muito rapidamente, entendeu bem o sentido do texto. Por fim, vejamos a terceira passagem citada por Voltaire:
Ento Pilatos entrou novamente no pretrio, chamou Jesus e lhe disse: Tu s o rei dos judeus? Jesus lhe respondeu: Falas assim por ti mesmo ou outros te disseram isso de mim? Respondeu Pilatos: Sou, por acaso, judeu? Teu povo e os chefes dos sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste? Jesus respondeu: Meu reino no deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, meus sditos teriam combatido para que eu no fosse entregue aos judeus. Mas meu reino no daqui. (Jo 18:33-36).
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Mais uma vez Jesus responde com uma pergunta, questionando a Pilatos se sua pergunta era fruto de suas observaes ou se ela era meramente um fantoche nas mos dos sacerdotes. A pergunta de Jesus provocativa, pois os judeus daquela poca, que tinham feito muitas rebelies por no reconhecerem Csar como rei, levaram a Pilatos a acusao de que Jesus se considerava rei, portanto, sendo inimigo de Csar. Ou seja, como questes religiosas dos seus sditos no interessavam aos romanos, Jesus foi acusado de crime poltico, de ser um rebelde, de querer ser o rei dos judeus. Como os sditos do Imprio no poderiam exercer a pena capital, tiveram que levar Jesus a Pilatos com uma acusao poltica. A isso, Jesus responde que o seu reino no deste mundo, em outras palavras, que ele no tinha o menor interesse em fazer um motim, em reunir um grupo para se rebelar contra Roma. Seu reino era espiritual, tinha relao com a mudana de carter, com servir ao prximo, com amor, com justia. No tinha lugar para se manifestar, a no ser entre os discpulos dele. Desta forma, acusar Jesus de rebelde poltico no tinha o menor fundamento. Por isso, concordamos novamente com Voltaire em sua interpretao da passagem bblica, j que ela demonstra que Jesus, em quem o cristianismo diz se basear, no tinha a menor inteno de fundar um imprio, de fazer dos seus discpulos homens com poder poltico ou militar.
Entendo por religio natural os princpios de moral comuns ao gnero humano (VOLTAIRE, 1996, p. 43). A religio natural no outra seno esta lei conhecida em todo o universo: faz o que gostarias que te fosse feito. (VOLTAIRE, 1996, p. 44). Este o conceito de religio natural em Voltaire, simples, objetivo, sem estabelecer um sistema ou definies mais fechadas, bem ao seu estilo. Como vimos nesta dissertao, Voltaire cr em uma moral universal, em princpios e valores que todos os povos possuem, independentemente de suas religies ou culturas. E o seu conceito de moral universal tem uma forte relao com o seu modelo de religio natural, aquela religio que o homem deveria seguir por sua razo, sem a interferncia da revelao, dos livros sagrados, dos dogmas. Nas duas citaes selecionadas acima, Voltaire no fala de uma relao vertical, 212
do homem com Deus, mas horizontal, do homem com o homem. Na opinio de Vladimir Mota, a religio natural , em Voltaire, ...uma religio fundada nas leis naturais inscritas nos homens por Deus. (MOTA, 2010, p. 128). Realmente, se a moral dada por Deus e a religio natural baseada nos princpios de moral comuns ao gnero humano, ento a religio natural estaria, na opinio de Voltaire, na natureza do homem. Vejamos o patriarca de Ferney detalhando melhor o seu modelo de religio:
Depois da nossa santa religio, sem dvida a nica boa, qual seria a menos m? No seria a mais simples? No seria a que ensinasse muita moral e poucos dogmas? A que se empenhasse em tornar os homens justos sem os tornar absurdos? A que no ordenasse a crena em coisas impossveis, contraditrias, injuriosas para a Divindade e perniciosas para o gnero humano e no se atrevesse a ameaar com penas eternas quem tivesse um juzo normal? (...) A que unicamente ensinasse a adorao de um s Deus, a justia, a tolerncia e a humanidade? (VOLTAIRE, 1978c, p. 277).
A ironia de Voltaire nesta citao, sem dvida, uma crtica ao exclusivismo cristo, ao esprito sectrio do cristianismo por achar que sua religio a melhor, a nica que tem a verdade. A religio de Voltaire mais simples, o que significa ser despida de ensinamentos complexos relacionados a questes transcendentais. Penso assim ao ler os textos onde Voltaire ironiza as discusses dos conclios cristos sobre a dupla natureza de Cristo, divina e humana, ou sobre a teologia da trindade. Estes debates, para ele, ainda mais associados perseguio contra quem pensava diferente, eram absurdos. A prpria citao demonstra o desejo do filsofo de que a religio ensine poucos dogmas. Vladimir Mota confirma nossa opinio ao afirmar que ...no pensamento voltairiano, a crtica metafsica resulta numa significante reduo do seu contedo, mas no em sua eliminao completa. (MOTA, 2010, p. 30). Ou seja, o filsofo no quer extinguir a religio, mas quer simplificla. Talvez as coisas impossveis citadas no texto de Voltaire sejam aquelas contidas na tradio crist, que o filsofo menciona em alguns dos seus textos. So alguns relatos que tratam de milagres, como a tradio sobre a morte de Pedro e do bispo Policarpo. Voltaire, conhecedor dos textos, constantemente zomba deles. O filsofo tambm se incomoda bastante com as ameaas de condenao ps-morte que o cristianismo faz a quem no segue seus dogmas, como a citao o demonstra. Entendemos, assim, que o juzo normal ao qual ele se refere no crer em certos relatos 213
miraculosos, no aceitar nada que no tenha seus fundamentos na razo, rejeitar aquilo que ultrapasse as explicaes naturais. Temos um exemplo destas ameaas no Credo de Atansio (295-373), do qual selecionamos um pequeno trecho:
1. Todo aquele que quiser ser salvo, necessrio acima de tudo, que sustente a f universal. 2. A qual, a menos que cada um preserve perfeita e inviolvel, certamente perecer para sempre. 3. Mas a f universal esta, que adoremos um nico Deus em Trindade, e a Trindade em unidade.
O Credo de Atansio trata da teologia da trindade, a qual defende que h um Deus que existe em trs pessoas e estas trs pessoas, embora cada uma delas seja divina, no formam trs deuses. O debate sobre a natureza de Deus, sobre sua unidade com Cristo e com o Esprito Santo ocupou boa parte dos primeiros sculos do cristianismo e muitos apologistas cristos se pronunciaram sobre o assunto. O Credo de Atansio explica bem o que o cristianismo, na maioria dos seus segmentos, cr sobre o assunto. Todavia, o que nos chama a ateno, que tem relao com a crtica de Voltaire, a ameaa que Atansio faz a quem no cr na doutrina trinitria: certamente perecer para sempre. Para o filsofo, tais questes, como a natureza de Deus, eram inacessveis razo humana e chocava-o a atitude de ameaar com penas eternas quem no cresse de determinada forma em questes metafsicas complexas. Em suma, a rejeio de Voltaire aos milagres, revelao, a tudo o que contrariava ao seu conceito de razo. Desta forma, tudo isso deveria ser abolido da religio, que deveria se concentrar em adorar a Deus e a pregar princpios de justia, tica e tolerncia entre os homens. Maria das Graas de Souza comenta sobre este assunto no Cndido:
Mas, em Eldorado, o que impede que a religio nica se torne desptica que ela no tem nada em comum com as religies europias. L no existem dogmas, nem padres, nem rituais. A nica obrigao a de adorar a Deus. Por isso, os felizes habitantes do pas desconhecem a intolerncia, as disputas e as guerras religiosas. (SOUZA, 1993, p. 34).
Eldorado um lugar fictcio, sabemos. Talvez, com isso, Voltaire queira dizer que o seu projeto de religio um sonho impossvel de se realizar? Sua militncia mostra um forte desejo de que suas ideias sejam implantadas. Ou Voltaire pensa em sua religio como 214
um sonho muito distante? Seja como for, o desejo do filsofo de que haja uma religio totalmente diferente do cristianismo, deixando de lado os dogmas, as discusses teolgicas, a tradio, os milagres. No haveria lderes religiosos que detinham a verdade, pois em Eldorado todos os homens adoravam a Deus junto com o rei, de manh at a noite, e todos agradeciam a Deus sem parar (Cf. VOLTAIRE, 1998, pp. 69-70). Voltaire volta a tratar do assunto: Sim, ns queremos uma religio, mas uma religio simples, sbia, augusta, menos indigna de Deus e mais feita para ns; numa palavra, queremos servir a Deus e aos homens. (VOLTAIRE, 2000, p. 186). Podemos compreender, sem maiores problemas, que Voltaire quer uma religio horizontal, voltada para o relacionamento com o prximo, para a justia, para a tolerncia. Seu destaque palavra homens demonstra que os mandamentos da religio devem se dirigir para o bemestar da sociedade. Todavia, a relao com Deus fica em aberto nos textos de Voltaire. Afinal, como se relacionar com algum que no te responde e que no se importa com voc? Voltaire refora o lado objetivo da sua religio, sempre como um meio de produzir uma sociedade boa para se viver:
A religio natural mil vezes impediu os cidados de cometerem crimes. As almas bem nascidas no os desejam cometer; as almas ternas vem-nos com terror, tendo presente a imagem de um Deus justo e vingador. A religio artificial encoraja, porm, a todas as crueldades perpetradas em bando, conjuras, sedies, assaltos, emboscadas, ataques de surpresa, pilhagens, morticnios. Todos marcham alegremente para o crime, sob a bandeira do seu santo. (VOLTAIRE, 1978c, p. 202).
Falando tanto da religio natural como da religio artificial, Voltaire as associa a cometer ou deixar de cometer um crime, uma maldade contra outra pessoa. Ou seja, sua religio natural tem o objetivo de promover a paz e a justia entre os homens. Onde Deus entra neste sistema? Em lugar algum, a no ser como um Ser supremo que a causa de tudo, mas que se importa tanto com suas criaturas como um navegador se importa com os ratos em um navio (Cf. VOLTAIRE, 1998, pp. 134-135). Em suma, ainda que tenhamos demonstrado por meio de seus textos que Voltaire no era ateu, na prtica no havia muita diferena entre o seu desmo e o atesmo, visto que um grupo no cr em Deus e o outro cr em um Deus que no se importa com o homem. 215
O objetivo da filosofia de Voltaire no era promover a pesquisa e muito menos defender o ceticismo: era fundar um novo credo. Desejava substituir a religio crist pela crena humanista do Iluminismo. (GRAY, 1999, p. 7).
Sem entrar na discusso sobre o ceticismo em Voltaire citado por Gray, os textos do filsofo que estamos analisando concordam com este comentrio, pois o objetivo de Voltaire promover uma religio horizontal, que envolva o convvio pacfico entre os homens, que promova a razo. O filsofo confirma: O nosso [dever] ser inviolavelmente apegados a nossa feliz constituio, amar a Deus, a verdade e nossa ptria, e dirigir ao Deus pai de todos os homens nossas preces por todos os homens. (VOLTAIRE, 2000, p. 181). Destaco as palavras constituio e ptria. Mais uma vez Voltaire pensa na ordem social, nas leis, nos homens, religiosos ou no, se submetendo legislao para o bem de todos. Todavia, parece ser problemtica a afirmao do patriarca de Ferney ao falar em dirigir a Deus as nossas preces, pois no racional orar a um Deus que no responde, no interfere, no faz nada alm daquilo que j criou. Ainda que estas preces fossem de agradecimento incessante, como Voltaire pinta os homens de Eldorado no Cndido, ainda assim seria um relacionamento unilateral, que partiria apenas do homem. Talvez sejam textos como este que podem levar alguns dvida sobre a crena de Voltaire em Deus. Esta crena sincera? Parece, pelos seus textos, que sim. Contudo, algum que defende que se ore a Deus mesmo acreditando que ele no v responder d permisso aos seus leitores de duvidarem se ele est, de fato, escrevendo algo em que acredita. H mais um texto que nos permite termos esta dvida: A religio instituda para nos tornar felizes nesta e na outra vida. O que preciso para ser feliz na vida futura? Ser justo. (VOLTAIRE, 1993, p. 121). Esta citao foi extrada da obra Tratado sobre a tolerncia, que apela para que o cristianismo enxergue suas atrocidades e se torne uma religio justa e tolerante. Todavia, ainda que a obra tenha este apelo ao tratar do caso de Jean Calas, e seja perfeitamente compreensvel que Voltaire apele para que os homens sejam justos para serem felizes na vida futura, novamente algum pode duvidar de sua sinceridade ao falar assim, j que a vida futura algo em que ele no acreditava. Enfim, se o autor do Cndido associa a vida futura a ser justo, mesmo no crendo na vida futura, 216
quando ele fala da crena em Deus e a associa tambm a ser justo, os leitores de seus textos podem, realmente, pensar se, de fato, ele no defendia a existncia de Deus por associ-la a outras coisas de seu interesse, como uma sociedade que exerce a moral por ter medo de um Deus vingador.
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CONCLUSO
Buscamos, ao longo deste trabalho, descobrir qual o modelo de religio proposto por Voltaire. Analisamos algumas das principais obras do filsofo, destacando os textos que tm relao com assuntos religiosos, como Deus, alma, liberdade, cristianismo, bblia e outros. Trabalhamos, em alguns momentos, para entender como o autor do Cndido tratava estes temas em momentos diferentes de sua vida. A nossa concluso que os aspectos principais da religio de Voltaire so abordados em diversas obras, escritas em momentos variados de sua vida, e que alguns deles sofrem modificaes. Por isso, se o leitor quiser saber qual a religio de Voltaire, ter que se perguntar em qual momento da vida do filsofo quer abordar esta questo. A existncia de Deus, para Voltaire, era um fato possvel de ser demonstrado pela razo. O filsofo usa a analogia da obra de arte que aponta para o trabalho do artista para, observando a natureza, chegar ao conhecimento da existncia do Ser supremo. O Deus de Voltaire, todavia, distante, no interfere na vida humana, no um pai com quem voc se relaciona, de quem voc se aproxima, a quem voc recorre. Ele existe, criou suas leis, mas deixou o mundo totalmente nas mos do homem. Embora a questo de uma providncia tenha sofrido alguma alterao na viso do filsofo, a sua tendncia sempre foi para o desmo, o que se confirmou em suas obras posteriores ao terremoto de Lisboa. A busca por respostas acerca da natureza da alma humana no encontrou xito na obra do filsofo. Embora ele insista em afirmar que no podemos conhecer nada sobre a substncia que nos anima, que nos d vida, o filsofo sempre retorna ao tema, o que pode indicar que ele mesmo no estivesse satisfeito com essa situao, com a limitao humana em conhecer sua prpria natureza. Sua constante volta ao assunto demonstra inquietao, sua vontade de saber mais, seu desejo de descobrir se a alma sobrevive morte. A razo no pde dar calma ao corao do filsofo, pelo que ele permaneceu sem resposta at o final de sua vida. A questo da liberdade tambm ocupou bastante espao nas obras do patriarca de Ferney. Vemos o jovem Voltaire defendendo a ideia de que o homem possui livre-arbtrio e, ao mesmo tempo, percebemos um sentimento de tristeza no filsofo por no conseguir provar, com convico, que realmente livre. Os argumentos deterministas foram como um 218
labirinto do qual o nosso filsofo no conseguiu sair. Ele reconheceu isso e passou, cada vez mais, a ser um defensor do determinismo. Seus argumentos anteriores, quando ainda defendia o livre-arbtrio humano, so rebatidos em suas obras posteriores. Voltaire chega a um nvel de determinismo no qual qualquer acontecimento visto como necessrio, como algo que realmente tinha que acontecer, que no poderia ser evitado. Por fim, o filsofo defende um modelo de religio submetida ao Estado, s leis, baseada na razo, onde o reconhecimento da existncia de Deus e uma moral seriam os principais pilares. A religio deveria ser tolerante, natural, no fundamentada em livros sagrados ou na ideia de revelao, mas na razo. Seria uma religio oposta forma como o autor do Cndido via o cristianismo. A religio natural de Voltaire tinha a ambio de substituir a religio crist, pelo que, ao menos no que se refere aos seus principais pilares, ela contrria cosmoviso judaico-crist.
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