A Lagoa Azul - H. de Vere Stacpoole

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O mito do Paraso Perdido exerce, atravs dos tempos, um fascnio constante sobre a im aginao humana.

Talvez por traduzirem um desejo primordial de segurana e felicidade, as narrativas que desenvolvem essa temtica esto sempre fadadas ao sucesso, mesmo quando se detm a desmistificar o aspecto ilusrio do refgio aspirado. Assim ocorreu com a trajetria deste romance, que, desde sua primeira edio em 19 12, na Inglaterra, encontrou acolhida entusistica junto ao grande pblico, o que se repetiu em outros pases e tambm no Brasil, na dcada de 40, quando apareceu sob o s elo da coleo Nobel, desta Editora. A primorosa traduo de Mario Quintana sem dvida con tribuiu decisivamente para o xito da obra em terras brasileiras, uma vez que acen tuava a situao eminentemente lrica proposta pelo autor: um idlio inocente entre um c asal de crianas numa ilha isolada dos Mares do Sul, transfigurando-a pela limpide z da linguagem, impregnada de ternura e fora potica, que realava o ideal de pureza que a histria perseguia. Disponibilizao: Marisa Helena, Digitalizao: Marina, Reviso: Lais

a luz do lampio/1 Estava Mestre Button a tocar rabeca, sentado sobre um ba de marinheiro, com o instrumento firmado sob a orelha esquerda. Ele executava o Shah Van Vaught, mar cando o compasso a golpes de taco contra o assoalho do castelo de proa. Os franceses esto no porto Diz o Shan Van Vaught. Vestia uma cala de aniagem, uma camisa listada e um casaco de baeta, esverdea do nalguns pontos sob a ao do sol e da gua salgada. Verdadeiro tipo do velho lobo-d o-mar, seus dedos aduncos e seu dorso arqueado o aparentavam aos caranguejos. Su a face avermelhada lembrava a da lua, vista atravs de um nevoeiro dos trpicos; enq uanto tocava, seu rosto tomava uma expresso atenta, como se a rabeca estivesse a contar-lhe coisas muito mais maravilhosas do que aquela estopada dos franceses n o poro de Bantry. Chamavam-no de "Pat o Canhoto", no porque fosse mais hbil da mo esquerda do que da direita, mas-to-somente por causa de sua notvel inpcia. Qualquer descuido ou en gano em que se pudesse cair, ele logo o cometia. De origem irlandesa, fazia uns quarenta anos j que todos os mares tinham passado entre ele e a sua terra de Conn aught, sem conseguir lavar-lhe o elemento cltico, nem a crena nos gnios e nas fadas . E era to forte essa herana teimosa, que resistira s tundas ministradas por Larny Marr durante uma estada em Frisco, s orgias nas tavernas de todos os pases, s bruta lidades dos imediatos americanos e s descomposturas dos capites ianques. Em compan hia de suas fadas, Pat carregava sob todas as latitudes uma forte dose de ingenu idade. Uma rede, de onde pendia uma perna, balanava sobre a cabea do msico, outras red es, agitando-se na penumbra, davam a impresso de fantasmas e de grandes morcegos. O claro do lampio de sebo suspenso tambm oscilava, fazendo ressaltar, aqui o p nu d e um adormecido, ali um cachimbo plantado no meio de umas barbas, acol um brao tat uado. Era na poca remota em que as duplas vergas das gveas ainda no tinham reduzido a s equipagens, e assim a do "Northumberland" estava completa. Seu pessoal compunh a-se de um amontoado de ratos de bordo tal como a gente s pode encontrar num navi o do cabo Horn. Holandeses, americanos, campnios que trs meses antes ainda criavam porcos no Ohio, velhos marinheiros como Paddy Button. Num castelo de proa, mais do que em qualquer outra parte, se acotovelam o que h de melhor e de pior no mun do. O "Northumberland" dobrava penosamente o cabo Horn. Partindo de Nova Orlees p ara S. Francisco, tinha lutado um ms inteiro contra os ventos contrrios, nesses ma

res imensos onde as vagas so to amplas, que trs delas bastam para cobrir uma milha; jogara durante trinta dias inteiros ao largo do cabo Duro (como lhe chamam os m arinheiros), e o princpio desta histria no-lo mostra prisioneiro de uma calmaria a o sul da Linha. Paddy Button acabou sua msica e saudou com o arco, depois enxugou a testa com a manga e, tirando um cachimbo do bolso, encheu-o e ps-se a fumar. Uma voz arrastada desceu da rede de onde pendia uma perna: Patrick! Que diabo de histria essa de lebrecho que tu nos contavas h pouco? Lebre o qu? perguntou Mestre Button, levantando um olho para a protuberncia da rede, enquanto aproximava de novo o isqueiro de seu cachimbo. Era uma coisa verde respondeu uma voz estremunhada, com sotaque holands. Oh! Um Leprechaun, queres dizer, sem dvida? A irm de minha me tinha um, antigam ente. Mas com que se parecia? perguntou a voz sonhadora do holands, uma voz cheia d a calmaria que h trs dias transformava o mar em espelho e fazia do ofcio de marinhe iro uma sinecura. Com que se parecia? Certamente que se parecia com um Leprechaun! Com que out ra coisa poderia parecer? Mas como era? continuou a voz indolente. Era um homem assinzinho, do tamanho de uma beterraba e verde como uma couve. Minha tia tinha um, na sua casa de Connaught, isto nos bons tempos, nos velhos bons tempos. Ah! Onde que esto agora os velhos bons tempos?! Que me acredites ou no, mas eu digo que tu poderias p-lo no bolso, sem que a sua cabea verde ficasse de fora. Minha tia guardava-o num armrio, mas ele saa pelas frestas, pulava nas pane las de leite ou se metia embaixo das camas; depois, puxando as cadeiras, inventa va nova distrao. Perseguia o porco at que, de susto, o pobre animal virasse pura co stela como um guarda-chuva velho ou um lebru que tivesse corrido toda a manh; ele punha feitio nos ovos, tanto assim que os galos e as galinhas no sabiam por que os pintos nasciam com duas cabeas e uma poro de patas. Se procuravam peg-lo, ele corri a diante da gente como se fosse iar a vela grande. E a gente ainda acabava nalgum buraco, enquanto ele j estava de novo dentro do armrio. Era um Troll murmurou o holands. Eu te digo que era um Leprechaun, e impossvel saber todas as diabruras que el e fazia. Tirava a couve da marmita e a esfregava no nariz de quem caa na asneira de amea-lo com o punho, outras vezes ele punha um lus na marmita. Que bom que ele estivesse aqui resmungou algum, de um canto. Patrick articulou pausadamente o holands que farias se descobrisses um lus no teu bolso? Pra que perguntar? De que serve um lus no mar? D-me um na terra e tu vers o que fao dele. Aposto que o primeiro bodegueiro no te ver entrar para lhe entregares os teus cobres! disse uma voz nativa do Ohio. E no me ver mesmo replicou Mestre Button nem tu tampouco. Ao diabo o vinho e q uem o vende! Isto fcil de dizer retrucou o do Ohio tu amaldioas a aguardente quando te imp ssvel consegui-la, mas logo que desembarques te enchers como um barril. Eu me sinto bem bbedo mesmo. Sou o diabo quando sinto a bebida na barriga, e assim que acabarei, ou ento a minha velha me era uma mentirosa. "Pat", me dizia el a, da primeira vez que voltei minha terra, "das tempestades tu escapars, das mulh eres tu escapars, mas o lcool h de acabar contigo". Faz isto j uns quarenta anos, qu arenta anos! Mas o fato observou o do Ohio que ele ainda no acabou contigo. No, mas acabar. sob as estrelas/2 Sobre o convs, fazia uma noite esplndida, cheia da beleza sideral e da calma d os trpicos. O Pacfico dormia, uma gigantesca vaga, vinda de muito longe, do Sul, erguia s uavemente o "Northumberland" sobre as suas ondulaes, fazia ranger os rizes e estal

ar o leme; ao alto, perto do arco de prata da Via-Lctea, o Cruzeiro do Sul pendia como uma pandorga quebrada. Estrelas no cu, estrelas no mar, milhes e milhes de es trelas; tantas lmpadas acesas, que o firmamento dava a impresso de uma imensa e po pulosa cidade, sem que no entanto o mnimo som proviesse daquele palpitante e vivo esplendor. Embaixo, na cabina, chamada salo por polidez, estavam sentados os trs passagei ros do navio; um deles lia, os outros dois brincavam. O homem sentado mesa, Artu r Lestrange, fixava sobre um livro seus grandes olhos fundos; sofria evidentemen te do peito e aproximava-se do instante em que colheria o resultado do ltimo e do mais desesperado dos remdios: uma longa viagem por mar. Emelina Lestrange, sua sobrinha, de oito anos, era uma misteriosa criaturinh a, muito pequena para a sua idade, sempre metida com os seus pensamentos e dona de imensas pupilas que pareciam portas abertas sobre vises; parecia lanar apenas u m olhar de passagem pelo mundo, para logo retirar-se. Sentada a um canto, ela ni nava qualquer coisa em seus braos, embalando-se ao ritmo de seus pensamentos. O f ilho de Lestrange, oito anos feitos, ocultava-se debaixo da mesa. Eram de Boston e iam a caminho de S. Francisco, ou antes a caminho do sol e do esplendor de Los Angeles, onde Lestrange tinha comprado uma pequena proprieda de, esperando gozar l da sobra de vida que lhe proporcionaria sem dvida aquela int erminvel travessia. Estando ele a ler, abriu-se a porta da cabina e apareceu a si lhueta angulosa de Madame Stannard, a governanta, anunciando que eram horas de d eitar. Dicky disse Lestrange, fechando o livro e erguendo de algumas polegadas a to alha da mesa, j est na hora de ir para a cama. Oh! Ainda no, papai! choramingou sob o mvel uma vozinha pesada de sono. Eu ain da no estou pronto. Eu no quero ir deitar. Conhecendo o seu ofcio, Madame Stannard mergulhou sob a mesa e puxou o menino por uma perna. Ele debatia-se e dava pontaps, sem deixar de chorar como um bezer ro. Quanto a Emelina, tendo levantado os olhos e rendendo-se ao inevitvel, ergueu -se, segurando pelas pernas a horrvel boneca de trapos que acalentava, e esperou que Dick, depois de uns ltimos gritos, secasse as lgrimas e beijasse o seu pai. En to, solenemente, ela apresentou a fronte ao seu tio, recebeu um beijo e, levada p ela mo, desapareceu numa cabina contgua. Lestrange retomou o livro, mas no leu por muito tempo; Emelina voltava em cam isa de dormir, apertando nos braos um pacote do tamanho de um livro, embrulhado e m papel pardo. Minha caixa, eu achei a minha caixa disse ela, erguendo-a no ar, como para a ssegurar a si prpria que o pacote no estava perdido. E o seu rosto um pouco insignificante tornou-se um rosto de anjo, porque ela sorrira. Quando Emelina Lestrange sorria, era literalmente como se a luz do par aso a iluminasse; a mais linda forma de beleza infantil irradiava, esplendente, e em seguida se apagava. Ela se foi embora com a sua caixa e Lestrange retomou o livro. preciso dizer , entre parnteses, que aquela caixa, a bordo, dava mais trabalho, ela s, que todas as outras bagagens dos passageiros. Era um presente que lhe dera uma dama de Bo ston antes da sua partida. O contedo era um mistrio, salvo para a menina e para o seu tio. Emelina era mulher, ou antes, um comeo de mulher; tinha, entretanto, gua rdado o segredo, fato que vale a pena registrar. Infelizmente, a toda hora ela e xtraviava a caixa. Desconfiando de si mesma e do constante perigo que ameaava aqu ele tesouro, ela o levava por toda parte consigo, mas, uma vez sentada num rolo de cordas e perdida nalgum sonho, se o rudo da manobra a despertava, a pequena co rria, esquecendo o seu tesouro, para olhar os marinheiros trabalharem. Depois, d e sbito, notava que a caixa no estava mais l. Ento, de olhos muito abertos, a fision omia angustiada, ela percorria o navio, indo e vindo, procurando pela cozinha, l anando um olhar pela escotilha, mas sem dizer palavra, semelhante a um fantasma m udo e desesperado. Parecia ter vergonha de contar a quem quer que fosse a sua de sgraa, mas, ao verem-na, todos adivinhavam o que tinha acontecido e a equipagem p unha-se em campo, em busca do tesouro. Normalmente, era Paddy Button quem o encontrava. Ele que, com as pessoas gra

ndes, fazia sempre o que no devia, agia geralmente de modo a atrair a aprovao das c rianas. Quando estas podiam pegar o velho marinheiro, no o largavam mais, achandoo to interessante como Polichinelo ou como um msico ambulante. Pouco depois, Lestrange fechou o livro que lia, olhou em derredor, e suspiro u. A cabina do "Northumberland" era bastante bonita: atravessada pela base polid a do mastro de mezena, forrada com um tapete de Axminster e ornamentada de espel hos de moldura branca. Lestrange olhava a prpria imagem, que um dos espelhos reproduzia. Sua magreza era assustadora, e aquele instante lhe revelou, talvez, no somente que ele morre ria um dia, mas que esse dia estava muito prximo. Desviando o olhar do espelho, c ontinuou sentado, com o queixo apoiado mo, as pupilas fixas numa ndoa de tinta que havia sobre a toalha; depois, levantando-se, atravessou a cabina e subiu penosa mente a escada. Enquanto se apoiava ao balastre para tornar flego, a revelao da beleza da noite lhe deu como um choque no corao. Sentou-se a uma cadeira no convs e ps-se a contempl ar a Via-Lctea, arco de triunfo construdo com sis e que a aurora apagaria como um s onho. Na Via-Lctea, perto do Cruzeiro do Sul, cava-se um abismo perfeitamente desig nado com o nome de Saco de Carvo. Esta apelao d bem a idia de uma caverna vazia e sem fundo, cujo aspecto provoca vertigens imaginao. A olho nu, aquele abismo parece to negro e fnebre como a morte, mas o menor telescpio o revela esplndido e constelado de mundos. O olhar de Lestrange ia daquele mistrio para a Cruz ardente e se perdia no en xame de estrelas dispersas at a linha de mar onde elas empalideciam e se apagavam na claridade da lua que subia. Viu que algum passeava sobre a popa. Era o "Velho ". Um capito de longo curso, qualquer que seja a sua idade, sempre o "Velho". O C apito Le Farge devia ter quarenta e cinco anos. Era um marinheiro tipo Jean-Bart, francs de origem, naturalizado americano. Eu no sei onde se ter metido o vento disse ele, aproximando-se do homem sentad o. Acho que furou o firmamento e se escapou para alm do cu. Ns fizemos uma longa viagem disse Lestrange e eu penso, Capito, que a minha se r ainda mais longa. Meu destino no Frisco, eu bem o sei. No pense nessas coisas tornou o outro, tomando uma cadeira. impossvel prever o tempo com um ms de antecedncia. Agora que ns estamos em latitudes quentes, o seu t ermmetro subir, e o senhor estar mais bem disposto e forte que qualquer de ns, ao ch egarmos s Portas de Ouro. Eu penso nas crianas continuou Lestrange, que parecia no ter ouvido as palavra s do capito. Se o pior acontecer antes de chegarmos ao porto, eu lhe peo um grande servio, disponha de meu corpo sem que as crianas o saibam; h dias que eu queria fa lar-lhe nisso, Capito; aquelas crianas ignoram a morte. Le Farge agitou-se na sua cadeira. A me da pequena Emelina morreu quando a menina tinha dois anos; seu pai, meu irmo, morreu antes do nascimento dela. Dicky no conheceu a me, ela deu o ltimo suspi ro quando teve o menino. A mo da Morte pesou sobre a minha famlia, no se admire que eu tenha ocultado mesmo o seu nome s duas criaturas que mais quero. Sim disse Le Farge triste, muito triste. Quando eu era pequeno continuou Lestrange no maior que Dicky, minha ama me at errorizava com histrias sobre os defuntos. Asseguravam-me que eu iria para o infe rno se no me portasse bem, no lhe sei dizer o quanto isto me envenenou a vida, por que as nossas idias infantis, Capito, so as mes das que nos vm mais tarde. Ser que um pai doente pode ter filhos sadios? No o creio. Como eu lhe dizia, quando essas duas crianas se acharam sob a minha proteo, eu me comprometi a tudo fazer no mundo, para lhes poupar os terrores da vida, ou an tes, da morte. No sei se tenho razo, mas fao pelo melhor. Eles tinham uma gata, um dia Dicky veio dizer-me: "Papai, Pussy est dormindo no jardim e eu no consigo acor d-la!". Eu ento convidei-o para irmos ver um circo que estava na cidade. Ele ficou to contente com o convite, que esqueceu a gata, mas no dia seguinte perguntou po r ela. Eu no respondi que estava enterrada no jardim, mas disse-lhe que ela havia fugido. Ao fim de uma semana, ele a esquecera completamente, as crianas esquecem

to depressa! Sim respondeu o capito mas um dia ou outro, eles sabero que devem morrer. Se eu morrer antes de tocar em terra e lanarem o meu corpo ao mar, desejaria que os sonhos das crianas no fossem agitados pela lembrana disto. Diga-lhes simples mente que eu fui para um outro navio. O senhor os levar de volta para Boston; ten ho l dentro uma carta com o endereo de uma senhora que se ocupar deles. Dicky ser be m aquinhoado quanto s riquezas deste mundo. Emelina tambm. Diga-lhes simplesmente que eu parti num outro navio. As crianas esquecem depressa. Eu farei o que me pede prometeu o capito. A lua achava-se j acima do horizonte e o "Northumberland" flutuava sobre um m ar de prata. Distinguiam-se todas as mincias dos mastarus e todas as cordas das ve las. Enquanto os dois homens permaneciam mudos, mergulhados nos seus pensamentos , uma pequena forma branca emergiu da escotilha do salo. Era Emelina. Ela tornara -se mestra na arte do sonambulismo. Apenas chegada ao pas dos sonhos, l perdia a p obre a sua preciosa caixa, ento saa a procur-la pelos conveses do "Northumberland". Lestrange levou o dedo aos lbios, descalou os sapatos e seguiu-a silenciosamente. Ela remexeu num monte de cordas, tentou abrir a porta da cozinha, errou de um l ado para outro, de olhos abertos, a fisionomia assustada, at o momento em que enc ontrou a viso do seu tesouro. Deu volta, erguendo a ponta da camisa para no tropear e, ansiosa por se ir dei tar, desapareceu na escotilha. Seu tio, atrs dela, mantinha os braos estendidos, p ara ampar-la, caso ela casse.

a sombra e o fogo/3 Era o quarto dia de calmaria. Os passageiros se abrigavam sob uma tenda arma da no tombadilho. Lestrange tratava de ler e as crianas procuravam brincar. O calor era to pesado que o prprio Dicky se achava reduzido ao estado de massa inerte e avaro de movimentos como uma larva. Quanto a Emelina, parecia ofuscada pela luz demasiado viva. A boneca de pano aborrecia-se a um metro dela e a mise rvel caixa parecia esquecida. Papai! gritou de repente Dicky, que, sacudindo a sua apatia, se inclinava so bre o parapeito do tombadilho. Que h? Peixes! Lestrange aproximou-se. No verde vago das guas, qualquer coisa se movia, qual quer coisa esbranquiada e longa, uma forma horrvel. Desapareceu, veio uma outra fo rma que, remontando superfcie, pde distinguir-se melhor. Lestrange percebeu os olh os, a barbatana escura e o medonho comprimento do animal. Ele estremeceu e apert ou Dicky contra o peito. No bonito, papai? Eu bem que podia traz-lo para cima, se tivesse um anzol. Por que que eu no tenho um anzol? Ai, no me aperte assim! Lestrange sentiu puxarem-no pela aba do casaco. Era Emelina, que tambm queria ver. Ele ergueu-a nos braos, mas no havia mais nada. Os horrendos vultos se havia m dissipado, deixando as profundezas de esmeralda sem agitao, sem mancha alguma. Como se chamam, papai? insistiu Dicky, enquanto seu pai o fazia soltar as gr ades do parapeito e o levava para a sua cadeira. Tubares disse Lestrange, cujo rosto transpirava. Tomou o volume de Tennyson que estava a ler, sentou-se, conservando-o sobre os joelhos e contemplou o primeiro convs, branco, fulgurante de sol, manchado pel a sombra leve das manobras preguiosas. O abismo tinha-lhe entremostrado uma das suas vises. A poesia, a filosofia, a beleza, a arte, o amor e a alegria de viver, poderiam essas coisas existir no m esmo mundo em que viviam aqueles horrores que acabava de entrever? Olhou para o livro sobre os seus joelhos e comparou os versos maravilhosos que continha as te rrveis bestas que, no rastro do navio, aguardavam a sua presa. Eram trs horas e meia. A governanta veio procurar as crianas e enquanto os trs

desapareciam na escada do salo, o Capito Le Farge subia ao tombadilho, examinou a extenso do mar, a bombordo, onde uma faixa de bruma aparecia como o espectro de u m continente. O sol est escurecendo disse ele. Eu quase posso encar-lo. O barmetro est fixo. bruma acumula-se. J viu um nevoeiro do Pacfico? No, nunca. Bem, ento no desejo ver um outro tornou o capito, abrigando os olhos com a mo e fixando-os sobre a linha onde o cu e as guas se esposavam. O horizonte perdia a sua limpidez, ia-se estendendo uma sombra, imperceptive lmente, sobre o esplendor do dia. O capito voltou-se de sbito, ergueu a cabea e fungou repetidamente. Alguma coisa est queimando, no sente? Parece um colcho ou coisa que o valha. Ap osto que esse diabo do despenseiro que faz das suas. Quando no quebra os copos, o u derruba as lanternas ou estraga as toalhas. Deus me acuda! Eu preferia ver em torno de mim uma dzia de Marias, com suas vassouras, a fazerem poeira, a ter um d espenseiro to estpido como Jenkins. Dirigiu-se para a escada do salo: de baixo! Pronto, Capito. Que que voc est queimando? Nada, Capito. Mas eu sinto! Nada est queimando aqui, Capito. Aqui em cima tambm no. Deve ser no convs ou talvez na cozinha, provavelmente tr apos que jogaram ao logo. Capito chamou Lestrange. Que h? Pode vir aqui um instante? Le Farge aproximou-se. No sei se a fraqueza me afeta a vista, mas parece-me que h qualquer coisa de a normal no grande mastro. O grande mastro, perto do lugar em que penetrava no convs, parecia animado de um movimento de saca-rolha, curioso de observar da tenda. A iluso era devida a uma espiral de fumaa to tnue, que apenas se podia adivinhar por aquele tremor de miragem com que envolvia a madeira em torno da qual subia. Meu Deus! gritou Le Farge, a correr. Lestrange seguiu-o, arquejante, segurando-se a cada passo ao balastre. Ele ou viu as notas agudas do apito do mestre da equipagem. Viu os marinheiros emergire m do castelo de proa, como abelhas fora da colmia e reunirem-se em torno da escot ilha do poro. Viu retirarem os encerados e as trancas. Viu a escotilha abrir-se, e um jato de fumaa, de fumaa negra e espessa, subiu para o cu, slida como um penacho de plumas no ar tranqilo. Lestrange era de natureza muito nervosa, mas so os homens de seu temperamento que guardam o sangue-frio em circunstncias como aquela, ao passo que os fleugmtic os geralmente perdem a cabea. Seu primeiro pensamento foi para as crianas, o segun do para os barcos. Durante a tempestade nas costas do cabo Horn, o "Northumberland" perdera vria s embarcaes. Restavam a grande canoa, a chalupa e um pequeno bote. Ele ouviu Le Fa rge ordenar o fechamento da gateira e a manobra das bombas para inundar o poro. E , sabendo que no podia prestar nenhum servio no convs, desceu precipitadamente para o salo. Madame Stannard saa da cabina das crianas. Madame Stannard, as crianas esto deitadas? perguntou Lestrange, com a respirao e ntrecortada pela excitao e comoo dos ltimos minutos. A mulher olhou-o, assustada, ele parecia o arauto do desastre. Se os ps na cama, vista-os depressa. O navio est prendendo fogo, Madame Stanna rd! Meu Deus! possvel, senhor? Escute disse Lestrange. Enfraquecido pela distncia, montono como o grito das gaivotas sobre uma praia

desolada, chegava at eles o rumor das bombas em funcionamento. e como um sonho se dissipa/4 Antes que a governanta tivesse tempo de abrir a boca, um passo forte retumbo u na escada. Le Farge precipitou-se no salo, com a face congestionada, as veias d as tmporas intumescidas, os olhos perdidos e vtreos como os de um bbedo. Preparem as crianas! gritou ele. Preparem-se todos. Os barcos salva-vidas esto sendo lanados ao mar, com as provises. Diabo! Onde esto os papis? Ouviram-no procurar freneticamente e reunir, esbravejando, os papis do navio, apontamentos de bordo, coisas s quais um capito tem tanto apego como vida, enquan to procurava, achava e empacotava, no cessava tambm de ordenar que fizessem subir as crianas para o convs. Ele estava meio louco e parecia que o ia ficar inteiramen te, ao pensar na terrvel carga que o navio conduzia. Sob a direo do imediato, a equipagem trabalhava fria e metodicamente, sem susp eitar que tivesse debaixo dos ps outra coisa que no um ordinrio incndio de carga. Os barcos, despojados de suas cobertas, foram carregados de barris d gua e de sacos d e bolachas, ficando o menor deles, o que era manobrado mais facilmente, ainda su spenso dos cabos altura do parapeito. Paddy Button nele colocava um pequeno barril quando chegou Le Farge seguido da governanta, que carregava Emelina, e de Lestrange, que conduzia Dick. A peque na embarcao possua um mastro e uma vela alta. Dois marinheiros estavam prestes a la rg-lo e Paddy se afastava quando o capito o chamou: Para o barco! ordenou ele. Leve as crianas e o passageiro a uma..., duas..., trs milhas do navio. Meu Capito, mas eu deixei a minha rabeca no... Le Farge deixou cair o pacote que sobraava e sacudiu o velho marinheiro, empu rrando-o contra o parapeito como se fosse lan-lo ao mar. Um instante depois Mestre Button estava no barco. Alcanaram-lhe Emelina, plida e de olhos fixos, ela apertava contra o peito um pacote enrolado num pequeno xa le. Ento ajudaram Dicky e Lestrange a embarcar. No h mais lugar disse Le Farge. Se formos obrigados a deixar o navio, a senhor a ir no barco grande, Madame Stannard; arriem a embarcao; arriem! O barco mergulhou o casco no mar tranqilo e azul, e flutuou. Antes de embarcar em Boston, no tendo dinheiro para freqentar as tabernas, viv era Mestre Button muito tempo pelo cais; tinha assistido ao carregamento do "Nor thumberland" e soubera mais ainda pelas conversas com o chefe da estiva. Depois que desprendeu os cabos e soltou os remos, o seu entendimento esclareceu-se, ele deu um grito e os dois marinheiros debruaram-se sobre o parapeito. Camaradas! Pronto! Pronto! Tratem de escafeder-se se tm apego vida. Eu me lembrei agora que h um carregam ento de plvora no poro! E curvou-se sobre os remos com um ardor nunca visto. Perto da proa, Lestrange enlaava as crianas; aps as palavras de Paddy, ele sent iu palpitaes durante um momento. Dick e Emelina, que no conheciam a plvora nem os se us efeitos, embora assustados com toda aquela barafunda, estavam encantados por se acharem naquele pequeno barco, to prximo do lindo mar azul. Dick mergulhou um dedo n gua para encresp-la, o que sempre foi um dos maiores pr azeres de todas as crianas. Emelina, com uma das mos na do seu tio, olhava Mestre Button com um ar ao mesmo tempo grave e divertido. De fato, ele era curioso de v er naquele instante; a alma cheia de terror e comoo, ele ouvia j, na sua imaginao de celta, o navio saltar pelos ares, e se sentia feito pedaos com o bote, ou, o que era ainda pior, figurava-se no inferno, queimado pelos demnios; mas a tragdia e o medo no encontravam lugar para expressar-se na sua fisionomia; ele resfolegava fo rtemente, inchando as bochechas e remava fazendo mil caretas que refletiam a ago nia de sua alma sem no entretanto pint-la. Atrs, estava o navio. A chalupa e a grande canoa flutuavam merc de Deus, perto do "Northumberland". Dos flancos do navio saltavam homens como ratos, nadavam como gansos e iavam-

se como melhor podiam para os barcos. Atravs da escotilha entreaberta, um fumo negro, j semeado de fascas, elevava-se em jatos rpidos, como vomitado por um drago de mandbulas cerradas. A uma milha do "Northumberland", erguia-se a muralha do nevoeiro. Parecia compacto como uma gra nde ilha que de sbito se tivesse formado magicamente sobre o mar, uma ilha onde n enhuma rvore crescesse e nenhum pssaro cantasse, uma ilha guarnecida de rochedos b rancos to slidos como os de Douvres. No posso mais! gemeu Paddy, prendendo os cabos dos remos sob os joelhos e cur vando-se como para dar uma cabeada dos passageiros. Que eu salte ou que no salte, estou perdido, no me peam mais nada, estou perdido! Lestrange, plido ainda como um fantasma, mas que pouco a pouco voltava a si d a primeira comoo, concedeu ao infeliz um momento de folga e voltou-se para o navio . Este ltimo aparecia a uma boa distncia e os botes, j afastados dele, corriam furi osamente na direo do pequeno barco. Dick continuava a brincar com a gua; mas a ateno de Emelina estava toda tomada por Mestre Button. As novidades interessavam sempre a seu esprito contemplativo e as evolues de seu velho amigo eram absolutamente inditas. Ela j o tinha visto bbedo sobre o convs, ou andando de quatro ps, com Dick s costas; mas nunca o tinha visto assim daquele jeito. Compreendeu que ele estava cansado e acabrunhado; ento, proc urando no bolso, ela retirou um caramelo e bateu com ele na cabea de Paddy. Mestre Button olhou vagamente durante um segundo, viu a guloseima oferecida, e, a sua vista, a lembrana das crianas, da sua inocncia, de si prprio e da plvora es clareceu-lhe o crebro cansado e o fez retomar os remos. Papai gritou Dick, que se voltava para trs h nuvens perto do navio! Num espao de tempo incrivelmente curto, os slidos rochedos se haviam partido e o vento leve que os acumulara tinha-os agora dispersado, formando com eles fants ticas imagens. Cavaleiros de bruma cavalgavam as ondas e dissolviam-se. Vagas qu e no eram d gua rolavam sobre o mar. Cortinas e espirais de vapor subiam e tudo aqui lo avanava com um preguioso movimento. Imenso, vagaroso e sinistro, impiedoso como a fatalidade ou a morte, o nevoeiro estendia-se, absorvendo o mundo. Contra aquele sombrio fundo cinzento, desenhava-se o perfil do navio, suas v elas j tremiam brisa, e o fumo, escapando-se pela abertura do poro, parecia fazer sinais aos barcos que fugiam. Por que que est saindo fumaa do navio? perguntou Dick. L vm vindo os barcos, ndo que ns vamos voltar, papai? Titio disse Emelina, colocando a sua mo na de Lestrange e fixando o "Northumb erland" titio, eu tenho medo. De que tens medo, Emy? perguntou ele, aconchegando-a. Dos fantasmas! disse ela, encolhendo-se contra Lestrange. Oh! Meu Deus! suspirou o velho marinheiro olha o nevoeiro que vem vindo! Seria melhor esperarmos pelos barcos aconselhou Lestrange. Ns estamos bastant e afastados para ficar a salvo de qualquer coisa que acontea. Sim replicou Paddy que ele salte ou afunde, agora no nos atingir. Papai choramingou Dicky, quando que ns vamos voltar? No vamos voltar, meu filho, o navio est queimando, ns esperaremos um outro. Mas onde est o outro navio? indagou o menino, sondando a parte do horizonte q ue ainda permanecia clara. No podemos ainda perceb-lo suspirou o infeliz Lestrange mas ele vir. A chalupa e a grande canoa aproximavam-se lentamente. Assemelhavam-se a esca ravelhos arrastando-se sobre a gua, por detrs deles qualquer coisa pesada e morosa se ia abatendo sobre a superfcie brilhante, apagando a cintilao do mar, enquanto i a obscurecendo o sol. No momento em que o leve zfiro atingia o pequeno barco, l longe, distncia, o ne voeiro engolia o navio. Foi um maravilhoso espetculo: menos de trinta minutos bastaram para que o nav io de madeira se tornasse um navio de musselina, depois um vestgio, ele vacilou e desapareceu para sempre do olhar dos homens. vozes atravs do nevoeiro/5

O sol, cada vez mais fraco, se dissipou; a atmosfera que cercava o pequeno b arco era no entanto clara, mas as embarcaes prximas apareciam brumosas e sujas. Por fim o trecho de horizonte ainda lmpido foi alcanado pela nvoa. Quando a chalupa chegou a suficiente distncia, fez-se ouvir a voz do capito: Ol! Do barco!... Ol! Aproximem-se! E a chalupa fez alto, para esperar tambm a canoa grande. Movia-se habitualmen te com dificuldade, e agora estava sobrecarregada. A maneira como Paddy Button t inha revolucionado a equipagem causara violenta clera ao Capito Le Farge, mas este no teve tempo de desabaf-la. Venha para c, Senhor Lestrange disse ele, quando o pequeno barco renteou a ch alupa. Temos um lugar, Madame Stannard est na canoa grande, onde h muita gente, el a ficar melhor a no barco, onde poder cuidar das crianas. Venham, despachem-se, que o nevoeiro aumenta. Oh! Da canoa! Depressa! Depressa! J a canoa grande estava invisvel. Lestrange entrou na chalupa; Paddy, com a po nta dos remos, afastou o pequeno barco alguns metros e parou. Al, al! gritou Le Farge. O nevoeiro respondeu: Al! No minuto seguinte, a chalupa e o pequeno barco no se podiam mais avistar. Um grande sudrio os envolvia... A chalupa estava to prxima, que em duas remadas Mestre Button a teria alcanado, mas ele no pensava seno na canoa grande e remou vigorosamente para o lugar onde p resumia que ela estivesse. Ol! Do barco! Ol! Ol! No gritem juntos, assim eu no sei para onde me dirigir. Al! Da canoa! Onde esto? A bombordo o leme! Sim, sim! E, governando a estibordo. Num instante eu alcano vocs. Ele remou vigorosamente durante dois ou trs minutos. Al!... gritou uma voz j abafada. Por que se afastam? Uma dezena de golpes de remo. O apelo seguinte foi mais adivinhado do que ou vido. Mestre Button suspendeu os remos. Que o diabo me carregue! Eu pensava que era a chalupa que nos chamava. E vigorosamente recomeou a remar. Paddy, onde que estamos agora? A fraca vozinha de Dick no parecia vir de parte alguma, Por certo que estamos num nevoeiro! Onde mais poderamos estar? No tenhas medo. Eu no tenho medo, mas Emelina est tremendo. D-lhe o meu casaco disse o marinheiro, tirando-o. Quando ela estiver com ele, ns trs gritaremos juntos. H um xale velho no barco, mas eu agora no posso procurar. Ele estendeu seu casaco, uma mo quase invisvel o tomou. No mesmo instante, uma terrvel exploso abalou o mar e o cu. J te rebentaste murmurou Mestre Button minha rabeca tambm! No tenham medo, meni nos, apenas um canho que esto disparando para se distrarem. Agora vamos todos grita r juntos. Esto prontos? Sim, sim! respondeu Dick. Al! berrou Pat. Al! Al! acompanharam duas vozes de falsete. Uma longnqua rplica mal se percebeu atravs das profundezas algodoadas... Mas de que lado? Era impossvel sab-lo. O marinheiro avanou alguns metros e descansou sobr e os remos. To calma estava a superfcie do mar, que se ouvia perfeitamente o bisbi lho d gua produzido pela marcha do barco. E esse leve rumor cessou. O silncio envolv eu os nufragos como um anel.

A luz do alto, quase extinta, parecia filtrar-se por uma vigia de vidro espe sso, que fosse acompanhando o barco medida que este se deslocava atravs da bruma. Um grande nevoeiro marinho no homogneo; assemelha-se a um favo de mel: possui rua s, cavernas de ar fresco, muralhas de denso vapor. Ele se movimenta e se transfo rma com a rapidez de um passe de mgica, de resto, a hora do poente e a aproximao da s trevas o aumentavam ainda. Se o cu estivesse sem nuvens, Paddy e as crianas teri am percebido o sol abandonar o horizonte. Eles chamaram ainda. Esperaram. Nenhum eco respondeu. No vale a pena estar zurrando como burros para gente surda como portas disse o velho marinheiro. Ele lanou um ltimo grito, que no teve melhor resultado que os outros. Senhor Button! pronunciou a voz de Emelina. Que h, querida? Eu tenho... medo! Espera um momento, que eu vou procurar o xale. Est aqui! Ele arrastou-se cautelosamente para trs e tomou Emelina nos seus braos. Eu no quero o xale agradeceu a menina. Eu no sinto tanto medo estando com o se u casaco. Aquele velho casaco, grosseiro e cheirando a fumo, lhe inspirava coragem. Bem, fica com ele, ento. Dick, ests com frio? Eu estou com o sobretudo de papai, ele o deixou aqui. Bem, eu porei o xale sobre os ombros porque estou gelado. Esto com fome, meus filhos? No respondeu Dick, choramingando mas no me sinto bem. Ests com sono? Deita-te ao fundo do barco e toma l o xale para travesseiro. Eu vou remar ainda um pouco para aquecer-me. Ele abotoou o primeiro boto do casaco. Eu estou muito bem! murmurou Emelina, j meio adormecida. Fecha bem os teus olhos ordenou Mestre Button seno vem o homem da areia e pe t erra neles. E ps-se a cantarolar uma cantiga que se lhe fixara na memria, de envolta com a lembrana do vento, da chuva, do cheiro da turfa quente, do grunhir de um porco e do ranger de um bero. Pronto! murmurou Mestre Button a si prprio, o corpo em seus braos amolecia, el e deps suavemente a menina ao lado de Dick. Com seus movimentos de caranguejo, pr ocurou nos bolsos das calas o cachimbo, o fumo, o isqueiro, mas estes objetos est avam com Emelina, no seu casaco. Para no acordar a criana, ele desistiu de fumar. sombra do nevoeiro ajuntava-se a escurido da noite. O remador no podia disting uir nem mesmo o cabo dos remos, ele errava ao lu, atormentado pelo medo dos esprit os. em tais ocasies que se ouve as sereias divertirem-se na baa de Dunberg ou sobr e a costa de Aquiles. Elas brincam e riem, gritando para extraviar os infortunad os pescadores. As sereias no so ms de todo, mas tm os dentes e os cabelos verdes, cauda de peix e e barbatanas em vez de braos. Pensar que elas nadam em torno da gente, como sal mes, quando se est num pequeno barco, a temer que uma delas se aproxime! Isto para embranquecer os cabelos de um homem! Por um momento, ele teve vontade de acordar as crianas para sentir-se acompan hado, mas este pensamento lhe causou vergonha. Ento remou para sentir o barulho d a gua; as batidas dos remos eram uma voz amiga, e o exerccio acalmou os seus terro res. De quando em quando, esquecendo as crianas, ele gritava, mas nenhuma voz lhe respondia. Continuou assim a afastar-se das embarcaes, que estava destinado a nunca mais rever. a aurora sobre o vasto mar /6 Ser que eu dormi? indagou Mestre Button, acordando-se em sobressalto. Tinha r ecolhido os remos para repousar no mais que um minuto e provavelmente dormira dur ante algumas horas, pois agora soprava um vento leve e morno; a lua brilhava, de

snudada de qualquer nevoeiro. Eu tive um pesadelo... continuou ele. Onde estou e u? Oh! Certamente que estou aqui! Sonhei que estava deitado sobre o poro e que o navio tinha explodido. Senhor Button? Uma vozinha, a de Emelina, fez-se ouvir, perto da proa. Que tens, querida? Onde estamos agora? Por certo que estamos no mar, onde queres tu que a gente esteja? Onde est meu tio? Anda por a na chalupa, daqui a pouco vir ter conosco. Eu estou com sede. Paddy encheu uma caarola de estanho e lha estendeu. Em seguida tirou do bolso do casaco o seu cachimbo e o seu fumo. Emelina adormeceu de novo ao lado de Dic k, que ainda no se movera. O velho marinheiro ergueu-se e firmou a vista, examina ndo as cercanias. Nem um nico barco, ou a mais pequena vela. Da pequena elevao de u m barco, a vista tem pouco alcance. No muito longe dali, bem podia ser que as out ras embarcaes estivessem ocultas na vaga claridade lunar; neste caso, seriam visvei s ao romper da aurora. Mas embarcaes bastante prximas umas das outras podem afastar-se em pouco tempo. Nada mais misterioso que as correntes martimas. O oceano cheio de rios, uns rpido s, outros lentos. A uma hora de um lugar onde se corre na velocidade de uma milh a por hora, uma outra embarcao pode ser arrastada por velocidade dupla. Uma brisa morna frisava as guas, mareando o luar e o reflexo das estrelas. O oceano parecia um lago, embora o continente mais prximo estivesse a centenas de milhas. Os pensamentos das crianas podem ser indefinidamente longos, mas no o so mais d o que os desse velho marinheiro, a fumar seu cachimbo sob as estrelas; pensament os to longos como a terra redonda. As docas de Londres, as luzes de Macau, as bas es iluminadas de Callao, sampanas deslizando sobre a superfcie oleosa dos portos.

Raramente uma viso simples e pura do mar; que interesse pode ter o mar para u m marinheiro que sempre viveu num castelo de proa, cuja memria confunde uma viage m com outra, que, aps ter passado quarenta e cinco anos carregando as velas, no se pode lembrar de onde foi que Jack Rafferty caiu ao mar, ou a propsito de que oco rreu certa luta de morte, embora perceba ainda, to nitidamente como num espelho, o rosto ensangentado sobre o qual algum se debruava com um lampio? Duvido que Paddy Button se lembrasse do nome de seu primeiro navio; se lhe perguntassem, ele teri a sem dvida respondido: "No me lembro mais. Era no Bltico. Fazia um frio de rachar. Eu enjoava at virar pelo avesso. Passava o tempo a queixar-me e o capito batia-me nas costas com cordas para me dar coragem, mas o nome do barco me saiu da cabea; em todo caso, desejo-lhe m sorte". Ficou sentado a fumar, enquanto as luzes celestes brilhavam acima dele. Reme morava cenas de bebedeiras, portos sombreados de palmeiras, Homens e mulheres a quem havia conhecido. Que homens! E que mulheres! Os rebotalhos da terra e do oc eano! Depois cerrou os olhos e, quando os abriu, a lua tinha partido. Havia agora no Oriente um leque de luz, to plido e difano como uma asa de liblul a extinguia-se, e uma raia de fogo se desenhou no horizonte, que resplandeceu. A linha de fogo se contraiu sobre um ponto que ia aumentando: era a borda do sol nascente. Enquanto a luz aumentava, o cu se tornava de um azul impossvel de imaginar par a quem no o tenha visto, um azul lvido, embora vivo, que cintilava e parecia produ zido por uma impalpvel poeira de safiras. E o mar vibrou como a harpa de Apoio, q uando o deus a tange com o dedo. A luz a msica da alma. O dia tinha vindo. Papai! exclamou de sbito Dick, sentando-se ao sol e esfregando os olhos onde estamos? Tudo vai bem, Dick, meu filho! replicou o marinheiro, que, de p, procurava em vo as embarcaes. Teu pai est to seguro como no paraso; daqui a pouco ele estar aqui om um outro navio. Ento, Emelina, j te acordaste? Emelina, mergulhada no casaco do piloto, sacudiu a cabea, guisa de resposta. Uma outra criana teria feito perguntas suplementares s de Dick; ela, porm, permanec eu muda. Teria ela pressentido algum subterfgio nas palavras de Mestre Button? Ad

ivinharia que as coisas eram muito diversas do que lhes contavam? Quem o poder sa ber? Ela estava com um bon de Dick, que Madame Stannard, na sua precipitao, lhe puse ra sobre os cabelos. E o seu aspecto era bem pitoresco, assim vestida como estav a com o velho casaco manchado do marinheiro e o bon de banda sobre a orelha, senta da perto de seu primo, na luz matinal. O chapu de palha do menino tombara ao fund o do barco e os seus cabelos castanhos anelados flutuavam brisa. Hurra! gritou Dick, olhando a gua azul em torno de si e dando um forte pontap no fundo do barco. Eu vou ser marinheiro, Paddy; tu me deixars iar a vela e me ens inars como se rema. Cada coisa a seu tempo disse Paddy, apoderando-se do menino. Eu no tenho espo nja nem toalha, mas vou lavar-te o rosto na gua salgada e te deixarei secando ao sol. Ele encheu uma caarola com gua do mar. Eu no quero ser lavado! gritou Dick. Mete teu rosto na caarola ordenou Mestre Button tu no hs de ficar com uma cara de lata de lixo! Mete tu a tua cara dentro! Paddy obedeceu, houve um pequeno gorgolejo n gua, ele ergueu uma face gotejante e lanou ao mar o contedo do recipiente. Ests vendo? Perdeste a ocasio disse aquela "governante" estratgica. Toda a gua e foi embora. H mais gua no mar. No, no h mais at amanh de manh para lavar o rosto, os peixes no deixam. Eu quero lavar-me, eu quero meter o nariz na caarola, o mesmo que tu. E, depo is, Emelina ainda no se lavou. Para mim, igual murmurou Emelina. Bem, ento insinuou Mestre Button, como se tomasse uma resoluo sbita eu vou pedi licena aos tubares. Ele pendeu a cabea contra a superfcie da gua. de baixo! Fingiu escutar. As crianas, vivamente interessadas, olhavam por cima da borda . de baixo! Esto dormindo? Ah! Apareceram. Escutem: est aqui um guri de cara suj a que quer lav-la. Ser que se pode tirar uma caarola d gua? Bem, muito obrigado, senho r, e queira aceitar os meus respeitos. Senhor Button, que foi que disse o tubaro? perguntou Emelina. Ele disse: "Tire um barril cheio e seja bem-vindo, Mestre Button, uma sorte que eu tenha uma gota a oferecer-lhe esta manh". Depois ele meteu a cabea debaixo da barbatana e adormeceu. Ouam como est roncando. Emelina dizia quase sempre "Senhor Button" e algumas vezes "Mestre Paddy". Q uanto a Dick, tratava-o de "Paddy", simplesmente. As crianas tm cada uma o seu pro tocolo. O que deve sobretudo constranger os que esto perdidos num barco a promiscuida de. Acumular assim criaturas humanas parece um ultraje decncia, masquem tiver pas sado por essa prova h de saber que, em tais momentos, o esprito humano se eleva, e as coisas que chocam ordinariamente no contam mais diante da eternidade. Se assim com as pessoas grandes, muito mais o era com aquela casca de noz e os seus passageiros. Mestre Button era dos que chamam as coisas pelo seu nome, e le no tinha mais contemplao para com as convenes do que a teria uma foca cuidando de seus filhos, e tratava os seus dois petizes como uma ama. O barco estava provido de um grande saco de bolachas e de algumas conservas, principalmente sardinhas. Eu vi um marinheiro abrir uma lata de sardinhas com u m prego. Ele estava em priso e as sardinhas lhe haviam sido entregues ocultamente . Privado de chave, ele no possua seno a sua habilidade e um prego. Paddy tinha uma faca, ele abriu uma conserva e a colocou perto da proa, ao lado de algumas bola chas, o que, com um pouco d gua e a laranja que Emelina acrescentou ao cardpio, cons tituiu um verdadeiro festim. Os restos da refeio foram cuidadosamente guardados e procedeu-se elevao do pequeno mastro. Quando ficou de p, Paddy permaneceu um moment o apoiado contra ele, a contemplar o infinito.

O Pacfico tem trs azuis: o azul da manh, o do meio-dia, e o da tarde. Mas o azu l da manh o mais feliz, o que tem a mais alegre tonalidade, resplandecente, recm-a berto, o azul do cu e da juventude. Que ests procurando no cu, Paddy? perguntou Dick. As gaivotas replicou o mentiroso. Ele dizia interiormente: "Eu no vejo sinal de nenhuma. Para que lado devo dirigir-me? Norte? Sul? Leste? Oeste? igual. Se e u vou para Leste, elas estaro talvez a Oeste, se eu vou para Oeste, elas ho de est ar a Leste; e, depois, eu no posso ir para Leste, porque iria contra o vento. Fie mo-nos na sorte". Ele arranjou a vela e passou para trs com a escota, depois deslocou o leme, a cendeu o cachimbo, acomodou-se confortavelmente e abandonou o barco merc da brisa . Dirigia-se assim para o desconhecido, talvez para a morte, com o mesmo despr endimento de quem estivesse a passear com as crianas. Isto provinha em parte do s eu carter, em parte da sua profisso. Sua imaginao, pouco preocupada com o futuro e q uase inteiramente influenciada pela sua convivncia imediata, no fazia maus prognsti cos, com as crianas, acontecia o mesmo. Assim, nunca uma partida foi to alegre com o aquela. Durante a refeio, Paddy explicava aos seus pupilos que, se dali a um mom ento no encontrassem o Senhor Lestrange, era porque ele tinha partido num grande navio e voltaria em breve. O Pacfico dormia numa dessas calmarias prodigiosas que s podem existir nos pero dos de tempo estvel, reinando sobre uma vasta extenso, pois um furaco perto do cabo Horn pode levar seu mpeto at alm das Marquesas. Du Bois demonstrou que o mar mais vezes agitado pela repercusso de uma tempestade longnqua do que pelo vento. Mas o Pacfico no dormia seno em aparncia. Aquele lago plcido sobre o qual o barco deslizava era animado por um imperceptvel movimento que se ia quebrar contra as ilhas poli nsicas. A boneca de pano de Emelina era horrvel sob o ponto de vista esttico; a cara c oberta de tinta, no tinha ela feies nem braos e, malgrado isso, a menina no a teria t rocado pelas mais belas bonecas do mundo. Ela embalava-a direita do piloto, enqu anto Dick, sua esquerda, curvava o nariz sobre a gua, procurando distinguir os pe ixes. Por que que o senhor fuma, Senhor Button? perguntou Emelina que, havia um mo mento, observava silenciosamente o seu velho amigo. Para distrair as nossas mgoas replicou Paddy. Ele estava inclinado para trs, c om um olho fechado e o outro fixo sobre a vela. Achava-se no seu elemento, sem n ada mais a fazer do que dirigir o barco e encher o cachimbo, aquecido pelo sol e refrescado pela brisa. Um homem de terra firme ficaria louco em tais condies e muitos marinheiros se impressionariam e, praguejando e rezando, alternativamente, tudo dariam para per ceber um navio. Paddy, esse, fumava. Oh! gritou Dick. Viste, Paddy? A alguns metros do barco, um peixe saltou fora do mar cintilante, descreveu uma curva no ar e desapareceu. um peixe voador que acaba de dar um salto. Eu j vi centenas antes deste. que o esto perseguindo. Quem que o est perseguindo, Paddy? Quem que o est perseguindo? Quem queres tu que seja seno um duende? Antes que Dick tivesse pedido informaes sobre a aparncia e os hbitos deste ltimo, uma multido de pontas de flechas argente as passou sobre o barco e penetrou no m ar com um zunido. Pois so peixes voadores. Que que tu dizes? Que os peixes no podem voar? Olha, ento! Ser que os duendes tambm os esto perseguindo? perguntou Emelina assustada. No, so as sereias que andam atrs deles. No me faam mais perguntas seno eu comeo entir. Cumpre lembrar que Emelina tinha trazido consigo um pequeno pacote enrolado num xale; estava sob o banco do barco e, de tempos a tempos, ela se abaixava par a certificar-se de que ele estava em segurana.

histria do porco e do bode/7 Todas as horas Mestre Button sacudia o seu letargo, para procurar gaivotas, indcios de aproximao da terra. Mas o panorama, sem vozes e sem asas, era to desprovi do de voadores como um mar pr-histrico. Quando Dick choramingava, o velho marinheiro sempre achava um meio de o dist rair. Fez-lhe um anzol com um alfinete retorcido e um barbante, dizendo-lhe que pescasse estrelas-do-mar, e Dick, com a boa f das crianas, ps-se a pescar. Depois, contou-lhes histrias. Outrora, passara ele um ms em Deal, em casa de uma prima cas ada com um barqueiro. Tendo ficado um ano em Deal como carteiro. Mestre Button s abia uma poro de coisas sobre a sua parenta, sobre o seu marido e sobretudo sobre Hamah; Hamah era o beb de sua prima; um menino prodgio, nascido com os dentes da f rente completamente desenvolvidos, e cujo primeiro gesto ao entrar neste mundo f oi morder o doutor. Dependurou-se-lhe ao punho como um buldogue e o doutor grita va por socorro. A Senhora James disse Emelina, falando de uma das suas relaes de Boston tinha um bebezinho, mas ele era todo cor-de-rosa. Sim, sim afirmou Paddy eles so geralmente cor-de-rosa no princpio, mas desbota m quando os lavam. Ele no tinha dentes continuou Emelina eu meti o dedo na sua boca para ver. O mdico o trouxe num saco interrompeu Dick, continuando a pescar. Ele o desen terrou de uma horta de couves, eu tomei uma enxada e cavei todo o nosso canteiro de couves, mas no tinha beb nenhum, somente uma poro de minhocas. Eu queria ter um beb murmurou Emelina mas no o mandaria de novo para o canteir o de couves. O doutor confirmou Dick levou-o de volta e tornou a plant-lo, e a Senhora Jam es comeou a chorar quando eu perguntei pelo beb. Papai disse que o tinham plantado para que ele crescesse e se tornasse um anjo. Os anjos tm asas disse Emelina, pensativa. E eu continuou Dick contei tudo cozinheira, e ela disse a Jane que papai rec heava a cabea das crianas com besteiras, ento eu pedi a papai que recheasse cabeas d e crianas diante de mim, e papai disse que a cozinheira devia ser despedida por t er dito aquilo e ela se foi embora no outro dia. A cozinheira tinha trs malas grandes e uma caixa de chapu contou Emelina, reco rdando o incidente. E o cocheiro perguntou se ela no tinha mais malas para pr no carro e se no se e squecera da gaiola do papagaio. Eu queria ter um papagaio numa gaiola suspirou Emelina, acomodando-se para c onseguir um lugar melhor sombra da vela. E que que tu farias de um papagaio numa gaiola? perguntou Mestre Button. Eu abriria a porta. Tu falas em soltar os animais, isto me lembra que o meu av tinha um velho por co Paddy e Emelina conversavam com toda a seriedade, como entre iguais. Eu era u m pirralho do tamanho da minha bota e ia porta do chiqueiro, ento ele vinha, grun hia e fungava com o focinho por baixo da porta e eu comeava a dar socos na porta para arreli-lo, e gritava: " Vamos! Vamos! Vamos! e ele me respondia na lngua dos porcos: " Vai gritar contigo mesmo. Faze-me sair ele me dizia e eu te darei um escudo de prata. " Passa-o por baixo da porta eu lhe respondia. "Ento ele passava o focinho por baixo da porta e eu lhe batia com um pau, e e le pedia socorro em irlands, e minha me vinha e me esbofeteava e eu bem que mereci a. Pois bem: um dia eu abri a porta do chiqueiro e ele saltou fora e se foi anda ndo, andando, at um rochedo que tomba a pique sobre o mar. E l ele encontrou um bo de, e o bode e ele tiveram opinies diversas: " Vai-te embora disse o bode. " Vai tu disse ele. " Com quem ests falando? disse o outro. " Contigo disse ele. " Quem roubou os ovos? disse o bode.

" Pergunta tua av disse o porco. " Pergunta a quem? disse o bode. " Ora! Pergunta a... "E antes que ele pudesse acabar, o velho bode deu-lhe uma marretada nos peit os e os dois se despenharam dentro d gua. "E ento o meu velho av me agarrou pela pele do pescoo. " Vai para o chiqueiro disse ele. "E no chiqueiro me encerraram e prenderam durante quinze dias e me tratavam a farelo e soro de leite. E bem que eu merecia!" Almoaram pelas onze horas. Ao meio-dia Paddy arriou o mastro e armou na frent e do barco uma espcie de pequena barraca. Em seguida, deitou-se ao fundo do barco , protegendo o rosto com o chapu de palha de Dick, estirou-se para achar uma boa posio e adormeceu. "shenandoah" / 8 Ele dormia havia mais de uma hora, quando um grito agudo e prolongado o fez acordar em sobressalto. Em pleno dia, Emelina tivera um pesadelo, provocado pela refeio de sardinhas e pelos duendes. Quando ela se acordou e voltou calma (o que sempre demandava um tempo considervel), Paddy ergueu o mastro e ps-se a olhar para todos os lados. A mais de trs milhas, seu olhar encontrou qualquer coisa: era o mastro de um pequeno navio que, pouco a pouco, saa das guas. No havia o mnimo vestgio de vela sobre o madeirame nu. Um leigo teria tomado aquilo por rvores despojadas . Uns vinte ou trinta minutos ele ficou olhando, sem falar, a cabea para a frente , como uma tartaruga; depois soltou um hurra selvagem. Que que h, Paddy? perguntou Dick. o navio de papai? No sei, veremos quando l chegarmos. Hurra! repetiu Mestre Button. do navio! Se vocs esto encrencados, fiquem a at que eu chegue. Decerto esto encrencados, ou ento d ormem ou sonham, pois no h um pedao de vela ao vento. Dick, deixa-me passar para trs com a escota, o vento nos levar mais depressa do que se remssemos. Ele tomou o leme, a brisa enfunou a vela e o barco avanou. Ser que o barco de papai? perguntou Dick, quase to emocionado como o seu amigo . No sei, veremos. E ns subiremos no navio? indagou a menina. Sem dvida, minha querida. Emelina abaixou-se, procurou seu pacote sob o banco e o deps sobre os joelhos . Aumentando, as linhas da embarcao tornavam-se mais distintas; era um pequeno b rigue, com mastros e vergas onde flutuavam alguns farrapos. O velho marinheiro l ogo compreendeu a situao: Est abandonado, o infeliz! murmurou ele. Abandonado e imprestvel. Que azar! Eu no vejo ningum no barco! exclamou Dick. Papai no est! O velho marinheiro desviou um pouco o barco do seu caminho, para ver o navio mais de perto. Desmontou os mastros e tomou os remos. O pequeno brigue tinha um aspecto lgubre. Sua linha de flutuao estava bastante baixa: Tudo nele estava roto, pendido e nenhum barco se suspendia a seus flancos . Era fcil verificar que se tratava de um transporte de madeira cuja equipagem o abandonara, por ter feito gua em conseqncia de um choque. Paddy passou rente ao navio, que flutuava to tranqilamente como se estivesse n o porto de S. Francisco. sua sombra, a gua parecia verde e viam-se ondular as algas que cresciam sobre o casco do navio. Sua pintura estava rachada e queimada como se o fogo a tivess e lambido. Algumas remadas os conduziram para debaixo da popa, ali estavam escritos, em caracteres apagados, o nome do navio e o porto ao qual pertencia: SHENANDOAH MARTHA'S VINEYARD Ali h letras disse Mestre Button mas eu no posso ler por falta de instruo. Eu posso ler ofereceu-se Dick.

Eu tambm murmurou Emelina. Dick soletrou: S-h-e-n-a-n-d-o-a-h. Que quer dizer isso? indagou Paddy. No sei respondeu Dick, um tanto vexado. Sim senhor! exclamou o marinheiro, sacudindo a cabea, enquanto conduzia o bar co a estibordo. Nas escolas, dizem que ensinam o alfabeto s crianas, queimam-lhes as pestanas com as lies dos livros, e eis ali letras do tamanho da minha cabea que eles no podem adivinhar o que querem dizer. E falam-me ainda no aprendizado dos l ivros! O brigue tinha porta-enxrcias antigos, largos como verdadeiras plataformas; e a sua linha de flutuao era to baixa que aqueles no ficavam mais que um p acima do ba rco. Mestre Button ali o amarrou, subiu os porta-enxrcias e escalou a amurada; em seguida voltou para levar Dick, e os meninos esperavam, enquanto o velho marinh eiro fazia subir o barril, os biscoitos e as conservas para o convs do "Shenandoa h". Era um lugar prprio para encantar um garoto: todo o convs, a partir da boca do poro, estava carregado de madeiras. Por toda parte, sobre o tombadilho, jaziam r olos de cordas e um alojamento ocupava quase toda a proa. Um delicioso cheiro de maresia, de madeira velha, de alcatro, de mistrio; briis e outras cordoalhas tomba vam dos mastros, prontos para servirem de balanos. Havia um sino suspenso diante do mastro da mezena, e Dick apressou-se em bat er nele com uma barra de ferro que encontrara no convs. Mestre Button gritou-lhe que parasse, o som do sino o incomodava, aquele rudo parecia um chamado; e um cha mado, sobre um navio deserto, quem sabe l o que poderia trazer? Dick largou o fer ro. Ele tomou a mo livre de Paddy e os trs franquearam a porta do alojamento. A pea possua trs janelas a estibordo, e o sol as atravessava com uma luz lutuos a; uma cadeira parecia que tinha sido afastada precipitadamente para longe da me sa. Sobre esta, viam-se ainda os restos de uma refeio: um bule, duas taas, dois pra tos; num dos pratos, um garfo, com um pedao de carne putrefata, que certamente al gum levava boca quando ocorreu o acidente. Ao lado do bule, uma lata de leite con densado. Algum velho oficial misturava o leite a seu ch na hora do sinistro. Jama is coisas mortas foram to eloqentes. A cena reconstitua-se facilmente: o comandante havia provavelmente acabado o seu lanche e o imediato atacava o seu, quando foi descoberto que o navio estava fazendo gua, ou quando se produziu o abalroamento. Era evidente que, depois daque le abandono, nenhuma tempestade atingira o navio, pois isso teria perturbado a o rdem do mobilirio. Mestre Button e Dick procediam explorao, mas Emelina ficou fora. O encanto do velho navio a atraa tanto como a Dick, mas dominava-a uma impresso desconhecida ao menino. Um navio desabitado sugere idias estranhas. Emelina tinha medo de entrar naquele lgubre alojamento e temia tambm ficar sozinha no convs; ela transigiu; sen tando-se, colocou o pequeno pacote ao lado, tirou s pressas a boneca de pano, mer gulhada em seu bolso de cabea para baixo, baixou-lhe a saia que subira at a cabea, apoiou-a contra o umbral da porta e recomendou-lhe que no tivesse medo. No havia grandes tesouros no alojamento: duas cabinas pequenas abriam-se ao f undo, constituam sem dvida o alojamento do capito e do imediato. L dentro, uma poro de velharias, roupas antigas, sapatos cambaios, um chapu alto desse modelo que se e ncontrava nas ruas de Pernambuco, imensamente alto e largo, e estreitando-se na parte inferior, um telescpio sem lente, um volume de Hoyt, um almanaque nutico, um grande pedao de flanela listada, uma caixa de anzis e, a um canto maravilhoso ach ado! um rolo de uma espcie de corda negra, que parecia medir uma dezena de metros . Fumo! Fumo! gritou Pat, apoderando-se da sua conquista. Era o que chamam "rabicho". Vem-se enormes rolos nos entrepostos das cidades martimas. Um cachimbo cheio dessa droga faria vomitar um hipoptamo; entretanto, os velhos marinheiros o fumam, mascam e acham excelente. Ns carregaremos tudo isso para o convs e veremos o que se deve levar e o que s e deve deixar, disse Mestre Button, apoderando-se em primeiro lugar do enorme ro lo de fumo. Dick arrastava o chapu.

Olha! gritou ele, assomando porta olha o que eu achei! Ele plantou sobre a sua cabea o terrvel monumento, que lhe entrou at os olhos. Emelina deu um grito. Tem um cheiro engraado! continuou Dick, aplicando-o contra o nariz da menina. Cheira a escova de cabelo. Toma. Experimenta. Emelina recuou e refugiou-se a um canto, onde ficou parada, sem dizer palavr a. O medo sempre a emudecia (exceto quando provinha de um pesadelo ou de um choq ue sbito). Aquele chapu, cobrindo o rosto de Dick pela metade, f-la perder a cabea, por cmulo, ele era negro, e ela detestava tudo o que fosse preto: os gatos negros , os cavalos negros, sobretudo os cachorros negros. Um dia, nas ruas de Boston, ela encontrou um carro fnebre; e, embora ignorasse o seu uso, teve uma crise de n ervos. Nesse meio tempo, Mestre Button ia trazendo todos os objetos para o convs. De pois sentou-se perto do monte, em pleno sol, e acendeu o cachimbo. Ele no tinha p rocurado gua ou provises. Estava satisfeito, de momento, com os tesouros que Deus lhe concedia; as necessidades materiais estavam esquecidas. Mas, se tivesse proc urado, no teria encontrado seno meio saco de batatas na cozinha, pois a despensa e stava submersa e a gua das cisternas cheirava mal. Como Dick prometesse que no poria o chapu na cabea de Emelina, ela deixou o seu refgio e sentaram-se os trs em torno da pilha. Eis um par de sapatos disse o velho marinheiro, levantando os sapatos velhos , para examin-los com um ar entendido. Eles valem meio dlar, todos os dias da sema na, em qualquer porto do mundo. Passa-os para a, Dick, toma tambm essas calas pela ponta e pe-nas ao sol. As calas foram estendidas, examinadas, aprovadas e postas ao lado dos sapatos . Eis um telescpio cego disse Mestre Button, tomando o instrumento quebrado e m anobrando-o como um acordeo. Coloca-o perto das calas, pode servir para alguma coisa. Eis um livro. Atirando ao menino o almanaque nutico: Conta-me o que isso diz. Dick estudou desesperadamente as pginas. No posso ler, so nmeros. Lana-o dentro d gua. Dick obedeceu de boa vontade e eles retomaram o trabalho. Paddy experimentou o grande chapu, o que fez rir as crianas. Sobre a cabea de s eu velho amigo, ele cessou de amedrontar Emelina. Tinha ela dois modos de rir: o sorriso anglico, acima citado, uma coisa rara; e quase to raro era o riso que ent remostrava os pequenos dentes brancos, enquanto cerrava as mos, a esquerda comple tamente fechada e a outra acima da primeira. Paddy ps o chapu de lado a continuou suas pesquisas, revirando os bolsos das r oupas sem nada encontrar dentro. Depois de Mestre Button haver feito a escolha, eles lanaram o resto ao mar e guardaram os objetos preciosos na cabina do capito. Foi ento que a idia de que o navio pudesse ter comestveis a bordo ocorreu ao es prito imaginativo de Mestre Button. E ele comeou a procurar. A despensa no era seno um tanque cheio de gua do mar, como no era mergulhador, Paddy no pde dizer se havia outra coisa l dentro. No caldeiro da cozinha apodrecia um pedao de porco ou doutra carne. O depsito de provises salgadas continha apenas cristais de sal. Toda a carn e tinha sido retirada. Entretanto, as provises e a gua trazidas no barco bastavam para uma dezena de dias e, at ento, muitas coisas poderiam acontecer. Mestre Button debruou-se sobre o mar; o barco roava no brigue como um patinho contra a me-pata, cujo porta-enxrcias podia representar a asa. Verificou se a amar ra estava bem atada. Persuadido de que tudo ia bem, subiu lentamente at a grande verga e observou o mar. ao luar /9

Papai est demorando observou Dick, de repente. Eles estavam sentados sobre as pilhas de madeira que, de cada lado da cozinh a, atulhavam o convs do brigue. Era um poleiro ideal. O sol deitava-se na direo da Austrlia, sobre um mar que se assemelhava a um oce ano de ouro em fuso. Uma estranha miragem fazia borbulhar a gua como animada por u m calor intenso. verdade disse Mestre Button mas antes tarde do que nunca; no penses nele, ist o no servir para traz-lo c, olha ali o sol que vai mergulhar dentro d gua, no digas uma palavra e vers como ele chia. Silenciosos, mas abrindo os olhos e os ouvidos, eles viram o grande escudo a rdente tocar as ondas que pareceram estremecer. Com suficiente imaginao, podia-se ouvir o ferver da gua. Tendo tocado o mar, o astro abaixou-se to rapidamente como um homem apressado que desce uma escada. Desaparecido o sol, esparziu-se um creps culo dourado e leve, uma luz lindssima, mas excessivamente triste. Em seguida o P acfico se tornou de um violeta sombrio, o ocidente escureceu como se tivessem bai xado uma cortina, e as estrelas iluminaram-se. Senhor Button perguntou Emelina, voltada para o poente que h do outro lado? O Oeste, a China, as ndias e o resto. Para onde foi o sol agora, Paddy? Ele saiu em perseguio da lua, que trota o mais depressa que pode, ele corre se mpre atrs dela e no pode nunca alcan-la. Que faria ele se a pegasse? perguntou Emelina. Certamente que lhe havia de dar uma boa sova. Por qu? indagou Dick, que estava disposto a fazer perguntas. Porque ela prega peas s pessoas e as deita a perder, como aconteceu com aquele pobre Buck Mac Cann. Quem ? Era o idiota da aldeia em que eu vivia. Ele sempre queria a lua, embora j tiv esse vinte anos e seis ps e quatro polegadas. Sua boca estava sempre aberta como uma ratoeira quebrada. Quando fazia lua cheia, no havia meio de segur-lo. Ele saa a trs dela e iam encontr-lo, ao fim de um dia ou dois, perdido na montanha, verde de fome e de frio, pois l ele s se alimentava de ervas. De modo que era preciso pr-lh e maneias... Eu j vi um burro maneado! exclamou Dick. Bem, tu viste o irmo gmeo de Buck Mac Cann. Uma noite estava o meu irmo Tim sen tado junto ao fogo, pronto para fumar o seu cachimbo e pensar em seus pecados, q uando chega Buck, aos saltos, com as suas maneias. " Tim disse ele afinal peguei! " Que foi que tu pegaste? " A lua. " E onde est? " Num balde perto do banhado disse o outro e direitinha! No se estragou! "Tim o seguiu e, naturalmente, perto do banhado, havia um balde cheio d gua, on de se refletia a lua. " Eu a retirei do banhado explica Buck. Psiu... No faas barulho... Eu vou escor rer a gua devagarinho e ns a pegaremos no fundo, viva como uma truta. "E ento ele comea a esvaziar o balde com todo o cuidado. Depois olha para o fu ndo. " Ela escapou-se, a desgraada! disse ele. " Experimenta ainda uma vez aconselha o meu irmo. "Buck mergulhou de novo o balde e, naturalmente, quando a gua sossegou, a lua l estava outra vez. " Muito bem disse meu irmo faz escorrer de novo a gua, mas com cuidado, se no el a te prega outra partida. " Um momento diz Buck eu tenho uma idia. Ela no me escapar desta vez. Espera-me aqui. "Ento ele vai saltando at a casa de sua velha me, a um grito dali, e volta com uma peneira. " Olha diz ele eu vou filtrar a gua por aqui. Se ela se escapa do balde, fica presa na peneira. "Ele pe-se a esvaziar o balde com tantas precaues como se fosse uma forma de cr eme. Uma vez vazio, ele espia, vira-o, revira-o, sacode-o. " O diabo me carreguei diz ele ela fugiu outra vez.

"E vai ele e lana o balde no banhado, e a peneira tambm, no momento em que a v elha me chegava apoiada no seu basto. " Onde est o meu balde? pergunta ela. " No banhado diz Buck. " E a minha peneira? " Junto com o balde. " Tu vais ganhar uma boa sova disse ela. E o saiu correndo a bastonadas, aos gritos, e o encerrou no quarto a po e gua durante sete dias para tirar-lhe a lua d a cabea. Trabalho perdido! Pois no ms seguinte ele recomeava a mesma lida..." Olhem! L est ela! A lua, esplndida, argentada, enorme, subia do oceano e a sua luz iluminava qu ase tanto como a do dia. As sombras das crianas e a sombra estranha de Mestre But ton, negras e duras como silhuetas, se projetaram sobre a parede da cabina. Olha as nossas sombras! gritou Dick, agitando o seu chapu de palha de abas la rgas. Emelina, por sua vez, estendeu sua boneca, e Mestre Button levantou o seu ca chimbo. Agora venham! E, pondo o cachimbo na boca, ele ergueu-se. Depressa para a cama, j tempo de estarem dormindo. Dick gemia: Eu no quero ir para a cama, eu no estou cansado. Paddy, deixa-me ficar ainda u m pouco. Nem um minuto mais replicou Mestre Button, com toda a deciso de uma ama nenhu m minuto mais, depois que o meu cachimbo tiver terminado! Enche outra vez implorou Dick. Um gluglu do cachimbo anunciou a sua ltima tragada. Emelina fungava, com o narizinho no ar. Sentada ao vento, fora do ar envenen ado pelo fumo, o seu olfato muito sensvel percebia um odor inexistente para os ou tros. Que que h, minha querida? Eu estou sentindo um cheiro. Que cheiro? Um cheiro bom. Com que se parece? perguntou Dick, aspirando fortemente. Eu no sinto nada. Emelina refletiu um momento. So flores disse ela. A brisa, que tinha variado diversas vezes depois do meio-dia, trazia um leve cheiro, um aroma de baunilha e de cravo, to vago, que s podia ser percebido por u m olfato extremamente sensvel. Flores! exclamou o velho marinheiro. E batendo com o cachimbo no cano da bota para despejar a cinza: boa! Foste agora descobrir flores no meio do mar?! Ests sonhando! Vamos agora para a cama! Enche de novo gemeu Dick, pensando no cachimbo. Uma sova que eu vou te dar, se dentro de dois segundos no te portares bem res pondeu o marinheiro, arrancando-o das vigas, depois estendeu a mo para a menina: Vem depressa, Emelina. E ele dirigiu-se para dentro, com uma pequena mozinha em cada uma das suas. Quando passaram pelo sino de bordo, Dick pegou o ferro que ficara ali por pe rto e vibrou-lhe um grande golpe. Era o ltimo divertimento antes do sono. No alojamento, Paddy havia limpado a mesa e escancarado as janelas para expu lsar o ar impuro, e preparara leitos para si e para as crianas, estendendo os col ches e cobertas do capito e do imediato. Logo que os pequenos adormeceram, ele foi debruar-se no parapeito a estibordo, pensando nos navios e muito pouco na mensag em perfumada que a brisa lhe trazia: a mensagem recebida e transmitida por Emeli na. Ps-se ento de costas para o mar, com os cotovelos fincados no parapeito e as mo s no bolso. Ele no pensava mais: ruminava. O fundo do carter de Paddy era uma grande preguia, mesclada a uma grande melan colia; no entanto, embora desajeitado, trabalhava a bordo to rijamente como qualq

uer outro; e, no que concerne melancolia, era o animador do castelo de proa. No o bstante, nele coexistiam preguia e melancolia, no esperando seno ocasio de manifesta r-se. Como estivesse ali parado, com as mos profundamente mergulhadas no bolso, mod a dos carregadores, a contar as tbuas do cho, que os raios da lua iluminavam, puse ra-se a rememorar os velhos tempos que lhe evocara a histria de Mac Cann e, alm do s mares salgados, ele podia ver o astro da noite a alumiar as montanhas de Conne mara, ele ouvia as gaivotas gritarem nas costas rumorosas onde cada vaga tem atrs de si mil quilmetros d gua. De sbito, Mestre Button regressou das colinas de Connemara para se encontrar sobre o convs do "Shenandoah", e novamente os seus terrores o assaltaram. Ao fund o do convs branco e deserto, atravessado pelas sombras dos mastarus ainda de p, ele distinguia a porta da cozinha. Imaginou que de repente saa de l uma cabea, ou pior ainda, um fantasma! Regressou para o alojamento e, ao cabo de alguns minutos, r oncava perto das crianas. Toda a noite o brigue foi embalado pelo Pacfico e a bris a trouxe o perfume das flores. a tragdia dos barcos /10 Quando o nevoeiro se dissipou depois da meia-noite, os nufragos da chalupa pe rceberam a grande canoa a meia milha a estibordo. O senhor avista o pequeno barco? perguntou Lestrange ao capito que, de p, expl orava com o olhar a superfcie das guas. Absolutamente! respondeu Le Farge. Maldito irlands! Se no fosse ele, os barcos teriam tempo de receber provises, e eu ignoro o que pudemos embarcar. Jenkins, q ue tem voc a? Dois sacos de po e um barril d gua. Um barril? replicou outra voz. Meio barril, queres tu dizer. O despenseiro respondeu: verdade, ele no contm mais do que dois gales. Meu Deus! gemeu Le Farge. Maldito irlands! Isto representa duas taas pequenas para cada um. A canoa grande talvez esteja melhor apercebida. Abordem-na. Ela vem vindo em nossa direo disse o mestre remeiro. Capito! indagou Lestrange. Tem certeza de que o barco no est em nenhuma parte ista? Sim. Comeava uma tragdia, que melhor seria calar do que narr-la. Quando as embarcaes ficaram ao alcance das vozes: Al, da canoa! Al! Que quantidade d gua tem a? Nenhuma. Estas palavras correram sobre o mar plcido e leitoso. Ao ouvi-las, os marinhe iros da chalupa deixaram de remar e podia-se distinguir, ao luar, as gotas d gua to mbarem dos remos como diamantes. Ol, da canoa, parem de remar! ordenou o indivduo que se achava frente da chalu pa. Cala-te, marinheiro d gua doce! repreendeu Le Farge. Quem s tu para dar ordens? Marinheiro d gua doce voc! retrucou o outro. Rapazes, virem de bordo! Os remadores de estibordo cessaram a marcha para frente e o barco girou sobr e si mesmo. Pusera o destino sobre a chalupa as mais duras cabeas do "Northumberl and". Eram a verdadeira ral dos portos e, para saber at que ponto essa gente se ap ega vida, preciso ter estado em sua companhia sobre um barco perdido em alto-mar . Le Farge no tinha mais autoridade sobre eles do que tu que ests lendo agora esta s pginas. Rapazes! Descansem os remos! ordenou o homem da proa. De p, ele parecia um ma u gnio que tivesse tomado momentaneamente a direo dos acontecimentos. Esperem os companheiros, melhor que eles tentem a sorte agora! A canoa por sua vez cessou de remar, parando a pequena distncia.

Que quantidade d gua tem a? perguntou o imediato. No d nem para uma pequena distribuio entre ns. Le Farge quis levantar-se. Um golpe de remo o prostrou sem sentidos ao fundo da chalupa. Dem-nos um pouco d gua, por amor de Deus! insistiu o imediato. No podemos mais. Como se tivesse recebido uma ofensa, o marinheiro da frente vomitou uma torr ente de injrias. Dem-nos um pouco suplicou ainda o imediato ou eu juro que abordaremos a chalu pa. Mal as palavras foram ditas e os homens da canoa puseram a ameaa em execuo. O c onflito foi brevssimo. A canoa estava muito sobrecarregada para lutar. Os homens, a estibordo da chalupa, combatiam com seus remos, ao passo que os de bombordo m antinham a embarcao. A grande canoa afastou-se, metade da sua equipagem estava fer ida, e dois homens jaziam inanimados. No dia seguinte, ao pr-do-sol, a chalupa seguia merc das guas: a ltima gota d gua inha sido distribuda oito horas antes. Tal um barco fantasma, a grande canoa a ob sedava, perseguia-a, para obter a gua que ela no tinha. Devem-se ouvir, no inferno , splicas daquele gnero. Os homens da chalupa, tristes, e sem palavras, acabrunhad os por uma espcie de remorso, eles prprios torturados pela sede, repousavam sobre os remos quando o outro barco se aproximava. De tempos a tempos, os homens gritavam juntos: "No temos gua!". Mas os da cano a no acreditavam. Em vo se lhes mostrava o barril aberto e emborcado, para provarlhes que estava vazio. Os infelizes, tomados de delrio, tinham a idia fixa de que seus camaradas lhes ocultavam uma gua imaginria. Quando o sol tocou o mar, Lestrange sacudiu o torpor que o amodorrava. Soerg uendo-se, ele olhou por cima da borda. Viu a grande canoa vogando perto. Avermel hados pelos ltimos raios, os demnios que a guarneciam lhe dirigiram uma silenciosa splica, mostrando-lhe as suas lnguas negras. Impossvel descrever a noite seguinte. A sede no era nada em comparao com a tortu ra imposta equipagem pelas vociferaes que lhe chegavam a intervalos. Quando enfim o "Arago", um baleeiro francs, os recolheu, os ocupantes da chal upa viviam ainda, mas trs dentre eles estavam loucos. Quanto aos da grande canoa, nenhum se salvou. livro 1/segunda parte a ilha /11 Meninos! chamou Paddy, enforquilhado sobre as barras em plena aurora. Dick e Emelina, de p sobre o convs, levantaram a cabea para ele. H uma ilha l defronte! Hurra! aplaudiu Dick. O menino no sabia seno teoricamente em que consistia uma ilha, mas sempre era algo de novo, e a voz de Paddy rejubilava. Terra! Terra! exclamou ele, descendo para o convs. Venham comigo para a frent e. Ele trepou sobre as pilhas de madeiras, erguendo Emelina nos braos. De l, pde e la perceber, muito ao longe, uma vaga silhueta de cor indecisa, mas tirante para o verde. Aquele ponto no estava absolutamente defronte mas a estibordo avante, o u, como teria ela dito mais simplesmente, direita. Depois de Dick ter olhado e manifestado o seu desapontamento por ver to pouca coisa, Paddy comeou seus preparativos de partida. No foi seno nesse momento, vista da terra, que ele reconheceu at certo ponto o horror da sua posio atual. Enquanto mordiscava uma bolacha, tendo-as distribudo tambm s crianas, com um pouco de carne e m conserva, para uma refeio s pressas, ele andava rapidamente pelo convs, juntando o s objetos e colocando-os no pequeno barco. Este, sob tal carga, mergulhou alguns centmetros. Paddy naturalmente, no esqueceu o barril, nem os restos de bolacha e de conserva. Carregado o barco, ele foi para a proa do "Shenandoah", certificar-se da exa ta posio da ilha. Ela se aproximara durante a ltima hora, estava tambm mais para a d

ireita, o que provava que uma corrente bastante rpida arrastava o brigue. O navio passaria alm da ilha, deixando-a a duas ou trs milhas a estibordo. Era uma felicidade que Mestre Button tivesse o pequeno barco sua disposio. O mar a cerca disse Emelina que, a cavalo sobre os ombros de Paddy, segurava -se a ele, contemplando a ilha, cuja verdura era agora reconhecvel. Um osis de som bra fresca no azul serfico. E ns vamos para l, Paddy? interrogou Dick. Sim, vamos. Chegaremos pelo meio-dia, talvez antes. A brisa aumentava, soprando diretamente da ilha, como se esta quisesse afuge nt-los. Mas que brisa fresca e perfumada! Todas as plantas do trpico confundiam seus aromas. Olhem murmurou Emelina, dilatando as suas pequenas narinas. Era isto que eu estava sentindo ontem, mas mais forte agora. A ltima longitude, levantada a bordo do "Northumberland", indicava que o navi o jazia a sudeste das Marquesas. Aquela, evidentemente, era das mais belas e sol itrias dentre as pequenas ilhas que dormem nas paragens desse arquiplago. medida que eles olhavam, a ilha se projetava, cada vez maior, para a direita . Via-se que era montanhosa e de um verde nuanado, se bem que as rvores no fossem a inda distintas. Parecia pousada sobre um pedestal de mrmore branco formado pela e spuma que se quebrava contra a barreira dos recifes. Dentro de uma hora as palma s dos coqueiros seriam visveis e o velho marinheiro julgou azado o momento para s e transferirem para o pequeno barco. Ele ergueu Emelina e seu pacote por cima do parapeito, colocando-a no portaenxrcias. Em seguida foi a vez de Dick. Um momento depois, de mastro erguido, o barco vogava suavemente, abandonando o "Shenandoah" sua misteriosa viagem, ao capricho das correntes marinhas. Mas tu no vais para a ilha, Paddy! gritou Dick, vendo que Mestre Button manob rava a bombordo. Queres dar lies tua av? Como diabo queres tu que eu alcance a ilha, se fico mor to "no olho do vento"? Mas o vento tem olhos? Paddy no respondeu. Seu esprito estava preocupado. E se a ilha fosse habitada? Tendo passado vrios anos nos mares do sul, ele freqentara os habitantes das Marqu esas e das Samoas, e deles gostava; aqui, porm, estava em terra desconhecida. Mas que adiantavam contrariedades? Devia escolher entre a ilha e o alto-mar. Fazend o virar o barco, acendeu o cachimbo, enquanto, inclinado para trs, mantinha a can a do leme com o brao dobrado. Do alto do "Shenandoah", descobrira ele uma abertur a nos recifes e para l dirigia o barco, para franque-los a remo. medida que se aproximavam, a brisa trazia um rudo flbil e sonoro, que parecia um rumor de sonho. Eram as ondas batendo nos recifes. Naquele local, o mar se er guia com um mpeto mais vivo. Emelina, com o pacote sobre os joelhos, olhava, sem falar, o panorama que se desdobrava a seus olhos. Apesar do sol radioso, apesar da verdura, era um espetculo desolador. Uma praia branca, aonde iam quebrar as vagas, enquanto as gaivotas revolutea vam, lanando gritos agudos, dominados pelo fragor da ressaca. Sbito, desenhou-se o recorte dos recifes, deixando entrever alm deles um lenol de gua azul e tranqila. Mestre Button suspendeu o leme, desmontou o mastro e tomou os remos. medida que eles se aproximavam, a ressaca se tornava mais furiosa, o mar mais ativo, vi vo e selvagem. A abertura se alargava. Podia-se ver a gua espumejar em torno das pontas de coral, porque a mar subia, inundando a laguna; ela carregou o barco e o impeliu mais rapidamente do que o poderiam fazer os remos. As gaivotas gritavam em torno do barco. Dick gritava de admirao e Emelina fechava os olhos. Ento, como se uma porta se tivesse subitamente fechado, abrandou o rudo nos re cifes, e o barco flutuou sobre guas serenas. Nesse momento, a menina abriu os olhos e viu que se encontrava no pas das fad as.

o lago azul/12 direita e esquerda desdobrava-se uma vasta extenso de gua azul, quase to calma como um lago; aqui, tinta de safira; alm, de alga marinha; uma gua to lmpida que, a vrias braas de profundidade, se distinguiam os galhos de coral, as evolues dos peixe s, as sombras desses peixes sobre os bancos de areia. Diante deles, as guas claras lavavam uma praia de alabastros. Tendo o barquei ro repousado os remos, pssaros azuis se levantaram em bandos do cimo das rvores e passaram silenciosos como uma nuvem de fumo, em demanda das frondes que ornavam uma paragem afastada. Olhem! gritou Dick, achatando o nariz contra a borda do barco. Olhem os peix es! Senhor Button perguntou Emelina onde estamos agora? Palavra que no sei, mas poderamos estar num lugar muito pior, parece-me respon deu o velho, passeando o olhar pela laguna azul e tranqila e a margem encantada. Nos dois sentidos da vasta praia que se desenrolava diante deles, os coqueir os desfilavam como dois regimentos, inclinando-se sobre o espelho das guas. Alm, o ndulavam espessos bosques, onde as vinhas selvagens uniam os coqueiros s rvores de fruta-po e de canela. Sobre um banco de coral, como sentinela avanada, uma palmeira se curvava para as guas. Mas a alma de tudo aquilo, o indescritvel do quadro, era a luz. L, sobre o mar, era o ofuscante pramo cruel, sem pouso, sem nada que fixasse o olhar, salvo infinitos espaos azulados. Ali, porm, o ar era um cristal atravs do q ual o espectador via o esplendor da ilha e dos recifes, o verde das palmeiras, o branco do coral, as contnuas evolues das gaivotas, a laguna de cobalto, tudo nitid amente delineado, aceso, colorido, arrogante e no entanto delicado, de uma belez a comovedora, pois ali residia o esprito da eterna manh, da eterna felicidade, da juventude eterna. O barqueiro ps-se a remar para a praia, nem Paddy nem as crianas perceberam, a certa distncia atrs da cauda, uma coisa que durante um segundo insultou o dia e d esapareceu, uma coisa que se assemelhava a um pequeno tringulo de pano escuro, qu e turvou a gua e se esvaiu, como um mau pensamento. No levaram muito tempo para atingir a margem. Mestre Button mergulhou na gua at os joelhos, ao passo que Dick se deixava esc orregar por cima da proa. Pega-o como eu gritou ele, segurando a platiborda da direita, enquanto Dick, imitador como um macaco, segurava a da esquerda. Vamos, em compasso! E l vai uma! E j se foi! L se foi uma! E l vai outra! E l vo duas... Basta. Est bastante alto. Paddy carregou Emelina para a areia. De l se podia admirar toda a beleza da l aguna, aquele lago de gua do mar, protegido para sempre das tempestades pela sua muralha de coral. Mestre Button correu os olhos desde as leves ondas que vinham morrer mansame nte a seus ps, at a abertura nos rochedos, dominada pela palmeira solitria. Alm da a bertura, percebia-se o mar palpitante. A laguna poderia ter trs quartos de milha de largura. Colocando-se algum perto da palmeira, erguendo um brao e chamando a ou tra pessoa sobre a margem oposta, levava o som um tempo quase perceptvel para atr avessar a gua. O sinal e o apelo coincidiam quase, mas no inteiramente. Dick, entusiasmado com a sua nova residncia, galopava como um co ao sair da gua . Mestre Button desembarcou a carga sobre a areia seca e branca. Sentada contra o precioso pacote, Emelina observava as operaes de seu amigo. Ela experimentava um a estranha sensao. Pelo que sabia, tudo aquilo devia constituir os acidentes ordinr ios de uma viagem por mar. A inteno de Paddy era no assustar as crianas, e o bom tempo o ajudava, mas no fu ndo do corao, a menina pressentia que as coisas no iam assim to bem: a partida preci pitada do navio, o nevoeiro no qual seu tio desaparecera, isto e outras coincidnc ias lhe revelavam um desastre, mas Emelina no dizia nada.

Ela no teve tempo de pensar muito sobre o caso. Dick corria para ela com um c aranguejo vivo que tinha pegado e gritava-lhe que o ia fazer pic-la. Leva-o suplicou Emelina, escondendo o rosto entre as mos. Senhor Button! Senh or Button! Deixa-a tranqila, maroto, ou eu te vou s costelas! Que isso, um maroto, Paddy? perguntou Dick, com a respirao entrecortada pelo e xerccio. Tu me matas com as tuas perguntas, eu estou que no posso mais e quero descans ar os ossos. Deitou-se sombra, picou o fumo, encheu o cachimbo acendeu-o. Emelina veio sentar-se junto dele, e Dick se estirou sobre a areia, ao lado de sua prima. Mestre Button tirou o casaco e fez dele um travesseiro, que apoiou a um tron co. Tinha descoberto o paraso dos fatigados. Com a sua prtica dos mares do sul, ba stou-lhe um rpido olhar lanado vegetao, para ver que havia ali com que alimentar a u m esquadro inteiro. Uma depresso que se notava no meio do terreno era, sem dvida, na estao chuvosa, o leito de um alegre arroio. Agora, o pequenino rio no era bastante forte para al canar a laguna, mas alm, no bosque, devia estar escondida a fonte, ele a descobrir ia oportunamente, o contedo do barril bastava para uma semana; e, depois, era s da r-se ao trabalho de trepar para conseguir o sumo fresco dos cocos. Emelina admirava Paddy, enquanto ele fumava e descansava, depois lhe ocorreu uma grande idia, retirou o pequeno xale que embrulhava o pacote, descobrindo ass im a caixa misteriosa. Oh! A caixa! exclamou Mestre Button, interessado, apoiando-se sobre os cotov elos. Eu bem devia saber que tu no ias esquec-la. A Senhora James disse Emelina me fez prometer que no a abriria at chegar em te rra, porque as coisas de dentro podiam perder-se. Bem, tu ests em terra insinuou Dick. Abre, ento. o que eu vou fazer. Ela desatou cuidadosamente o barbante, recusando a faca de Paddy e, retirand o o papel pardo, deixou a descoberto uma simples caixa de carto; ergueu um pouco a tampa com o polegar, lanou um olhar para dentro e tornou a fech-la. Abre! gritou Dick, impaciente de curiosidade. Que h a dentro, querida? perguntou o velho marinheiro, to interessado como o me nino. Coisas respondeu Emelina. Ento, tomando uma grande resoluo, ela retirou a tampa, expondo luz um minsculo s ervio de ch, havia um bule com tampa, uma leiteira, pires, taas e seis pratos micro scpicos, ornados cada um com um malmequer. um servio de ch disse Paddy. Olha s os pratinhos, com flores! Bah! exclamou o menino, desapontado eu pensava que fossem soldados. Pois eu no quero saber de soldados retrucou Emelina, com um ar satisfeito. Ela desenrolou um pedao de papel de seda, tirando uma pina para acar e seis colh eres, e arranjou tudo sobre a areia. Muito bem continuou Paddy a verdade que estou com fome. Quando que me vais c onvidar para tomar ch contigo? Um dia disse Emelina. E, tomando os objetos, colocou-os cuidadosamente na caixa. O cachimbo de Mestre Button se apagara, ele o guardou no bolso. Eu vou arranjar uma espcie de barraca disse ele, levantando-se para nos abrig ar do sereno esta noite, mas preciso primeiro explorar o mato, para ver se descu bro gua. Deixa a caixa com as outras coisas a, Emelina, no h ningum que possa vir tirla. Emelina deps o seu tesouro sobre o monte de objetos que Paddy colocara sombra dos coqueiros, tomou a mo do marinheiro, e os trs nufragos entraram no bosque. Julgar-se-ia penetrar num bosque de pinheiros. As grandes colunas simtricas p areciam matematicamente dispostas a igual distncia umas das outras, qualquer cami nho que se tomasse, avistava-se uma alameda crepuscular, guarnecida de pilares.

Erguendo a cabea, percebia-se, a uma imensa altura, uma abbada de um verde plido, c onstelada de pontos luminosos que ofuscavam, nos interstcios dos ramos que a bris a agitava. Senhor Button murmurou Emelina a gente no vai se perder? Perder-nos? Por certo que no. Ns vamos subir a colina, e tudo o que temos a fa zer descer quando quisermos dar volta. Cuidado com os cocos! Um coco verde destacou-se do alto com estrpito, saltando sobre o solo. Paddy agarrou-o. um coco fresco disse ele. Servir para o lanche. E guardou-o no bolso. No era aior que uma laranja de Jaffa. No um coco retificou Dick. Os cocos so marrons. Um dia, eu tinha cinco cntimos eu comprei um, quebrei e comi. Quando o Dr. Sims fez o Dick ficar doente, ele disse que no compreendia como era que Dick podia suportar tudo o que engolia. Venham depressa interrompeu Mestre Button e bico calado! Seno os Cluricaunos vm a atrs da gente. Mas quem so os Cluricaunos? Uns homens assinzinhos e que fazem sapatos para a gente boa. Mas como que eles fazem? Psiu... No falem mais. Cuidado com a cabea, Emelina, os galhos vo te arranhar o rosto. Eles avanavam para o corao da mata. A penumbra ali era mais profunda. Toda a so rte de rvores emprestava suas folhagens para fazer sombra. O artu, com o seu tron co delicado, a grande rvore do po, alta como uma faia e sombria como uma caverna, o paletvio e o eterno coqueiro, todos ali fraternizavam. Cordes de vinha selvagem torcicolavam de uma rvore a outra como a serpente de Laocoonte, e coloriam a penu mbra inmeras espcies de flores, desde as orqudeas abrindo as suas asas de borboleta , at os hibiscos vermelhos. Sbito, Mestre Button estacou. Psiu! fez ele. No silncio cheio de zumbidos e murmrios, misturados flbil cano dos recifes, ouvia -se um bisbilho d gua. Ele ps-se escuta, para saber donde vinha o rudo e procur-lo. Ao cabo de um instante, encontraram uma pequena clareira coberta de grama. Uma cas cata, no mais larga do que a mo aberta, tombava de um rochedo negro e polido como b ano. Este era cercado de fetos, e, de uma rvore em cima, pendiam campnulas em guir landas, abrindo suas corolas no crepsculo encantado. As crianas extasiavam-se ante aquela beleza e Emelina correu para mergulhar as mos na corrente. Uma bananeira, carregada de frutos maduros e dourados, erguia-se borda da pe quena queda-d'gua, suas imensas folhas mediam mais de seis ps. Num pice, Mestre Button, desembaraando-se das botinas, escalou a rocha a pique com a agilidade de um gato. Hurra! gritou Dick. Emelina, olha o Paddy! Emelina ergueu a cabea, mas apenas viu o balancear das folhas. Cuidado a embaixo! gritou Mestre Button. Quase em seguida, um enorme cacho de bananas caiu ao p das crianas. Dick pulou de alegria. Mas Emelina no manifestou nenhuma emoo. Ela acabava de fazer uma desco berta. a morte oculta sob o lquen /13 Senhor Button disse ela, quando este desceu olhe um barrilzinho ali. Ela designou entre duas rvores um objeto coberto de limo, olhos menos agudos que pupilas de criana o teriam tomado por uma pedra redonda. Oh! mesmo um velho barril! exclamou Mestre Button, enxugando o suor que empe riava sua fronte. Um navio com certeza andou por aqui e o esqueceu, servir de ass ento durante a refeio. Ele sentou-se em cima, distribuindo bananas s crianas, que se estenderam sobre a relva. O barril tinha um ar to miservel, que Mestre Button o julgou vazio. Vazio ou c heio, no importava, dava ele um banco excelente, enterrado um quarto na terra mol

e e verde, era irremovvel. Se aqui vieram navios, aqui ho de voltar considerou Paddy. E o navio de papai no vem? Sim, decerto que vem. Agora corram por a, divirtam-se e deixem-me fumar em pa z o meu cachimbo. Depois, iremos para o alto da colina, para lanar um olhar em re dor. As crianas puseram-se a correr entre as rvores, Dick desenrolava os fios das t repadeiras, Emelina colhia as flores ao seu alcance. Quando Mestre Button terminou a sua cachimbada, chamou, e as pequenas vozes lhe fizeram eco. As crianas voltaram perseguindo-se. Emelina ria e entremostrava os seus dentinhos brancos, com um grande ramalhete na mo. Dick no tinha flores, ma s trazia qualquer coisa que se assemelhava a uma grande pedra limosa. Olha como engraado: tem buracos. Joga fora isso! exclamou Paddy, erguendo-se do barril como se lhe tivessem f incado um espinho. Onde o achaste? Por que o trazes? D-mo aqui. Ele tomou o objeto entre as mos. Era um crnio revestido de lquen, com um grande entalhe atrs, como se um machado ou qualquer outro instrumento cortante o tivess e fendido. Paddy arremessou-o o mais longe possvel para debaixo das rvores. Que aquilo? perguntou Dick, entre atnito e assustado da atitude de seu amigo. No nada de bom. H mais outros dois que eu queria ir buscar. Deixa-os em paz. Oh! Meu Deus! Cometeram horrores aqui h tempos. Que h, Emelin a? Emelina estendia-lhe o seu ramalhete para ele admirar, Paddy tomou uma grand e flor vistosa e a ps na botoeira. Depois subiu para a colina, resmungando ao lon go do caminho. As rvores se tornavam mais esparsas e os coqueiros mais raros. O coqueiro ama o mar, e os que na ilha havia se inclinavam para ele. Atravessaram um bosque de cana-de-acar, onde canios de vinte ps de altura murmur avam ao vento, depois um aclive relvoso, privado de rvores e de moitas, os elevou rapidamente uma centena de ps at o ponto culminante da ilha, era um grande roched o, alto de uns vinte ps e fcil de escalar de seu cimo achatado, espaoso como uma me sa ordinria de sala de jantar, a vista se estendia sobre toda a ilha e sobre o ma r. Por sobre os trmulos cimos das rvores, o olhar mergulhava at a laguna, e mais a lm, at os recifes, e at o infinito do Pacfico. Os corais circundavam a ilha, aqui ma is prximos, alm mais afastados. Subia at eles a cano do mar, semelhante ao rudo que se ouve numa concha; mas, coisa estranha, embora a balada da praia fosse contnua, d ali ela parecia intermitente, dir-se-ia que os escolhos uns aps outros se suicida vam, precipitando-se no mar. J vistes um campo de trigo agitado pelo vento; assim, do alto da colina, podi a-se ver a passagem do zfiro sobre a folhagem que o sol radioso iluminava. A bris a vinha de sudoeste, embalando as bananeiras e os coqueiros, os artus e as rvores de fruta-po. To lindo era o espetculo do mar varrido pelo vento alegre, da laguna cristalina, dos recifes escumosos, das rvores ondulantes, que se imaginava haver surpreendido a natureza num dia de gala, nalgum festival mais alegre que de ordi nrio. Para aumentar essa impresso, passava de tempos a tempos, acima das rvores, ume sfuziarde estrelas multicores; eram revoadas de pssaros; pssaros azuis, vermelhos, cor de rola, brilhantes, mas sem voz. s vezes, as gaivotas se elevavam dos recifes, semelhantes baforadas brancas d e fumo. A superfcie da lagoa apresentava tonalidades de azul-celeste e de azul-marinh o. As partes mais largas eram as mais plidas, por menos profundas, e num que outr o lugar podiam-se distinguir os leves vestgios dos bancos de coral, que quase toc avam a tona d gua. A ilha media trs milhas na sua maior diagonal. Nenhum sinal de ca sa ou de habitao, nenhuma vela visvel sobre a imensidade do Pacfico. Era estranho es tar ali a fumar cachimbo, cercado pelas ervas, pelas folhas, pelas rvores, por to da a beleza da natureza, e sentir a brisa soprar, e lembrar que se estava num de serto, num lugar aonde nenhuma mensagem chegava, salvo as que traziam o vento ou as gaivotas.

No meio daquela solido, o escaravelho era to caprichosamente pintado, e a flor to bem recortada, como se todos os prncipes da civilizao ali estivessem para admira r ou para fazer crtica. Em parte alguma se poderia apreciar to bem como ali a espln dida indiferena da natureza no tocante s grandes ocupaes do homem. O velho marinheiro no pensava em nada semelhante, suas pupilas se contraam sob re um ponto quase imperceptvel a su-sudoeste. Sem dvida era uma outra ilha, quase arqueada pela convexidade do oceano. Tirante aquela pequena mancha, o mar era va zio e sereno. Emelina no subira para o rochedo, andava por entre as urzes onde se ostentava m grandes cachos de bagas de arita, como para mostrar ao sol o que produzia ater ra em matria de veneno. Ela colheu uma grande braada. Joga isso fora! exclamou Mestre Button. No ponhas isso na boca. So frutos "de que a gente no acorda". Ele desceu e arrancou-lhe os cachos negros, arremessando-os longe, depois ex aminou a pequena boca de Emelina, que alis no continha seno uma linda lngua, recurva da como uma ptala de rosa e virgem de qualquer veneno. Ele ralhou um pouco com a menina, como teria feito uma governanta em tais circunstncias, depois, subindo so bre o rochedo, foi buscar a Dick e os conduziu a ambos para a praia. ecos do pas das fadas /14 Como sabe, Senhor Button, os gatos dormem observou Emelina, naquela tarde. S entados sobre a areia, perto da tenda improvisada, as crianas tinham interrogado o velho marinheiro, a propsito dos frutos "de que a gente no acorda". E quem que diz o contrrio? retrucou Paddy. Eu quero dizer tornou Emelina que eles vo dormir e no se acordam nunca mais. F oi o que fez o nosso. Tinha um peito branco, raias sobre as patas e anis em torno da cauda. Ele adormeceu no jardim, ficou l estirado e mostrava os dentes; eu dis se a Jane, e Dick saiu correndo para contar a meu tio. Eu fui tomar ch em casa da Senhora Sims, a mulher do doutor, quando voltei, perguntei a Jane onde estava P ussy, ela me respondeu que ele estava morto e enterrado, mas que eu no devia repe tir isso a meu tio. Eu me lembro interrompeu Dick era no dia em que eu fui ao circo e tu me fize ste prometer que eu no contaria a papai que o gato estava morto e enterrado, mas eu vi o homem da Senhora James quando ele veio trabalhar no jardim e perguntei a ele para onde iam os gatos quando estavam mortos e enterrados e ele me responde u que iam para o inferno, pelo menos assim esperava, pois eles arrancavam sempre as suas flores. Ento ele me proibiu de repetir que tinha dito aquilo. Ento eu per guntei o que ele me dava, se eu no repetisse, e ele me deu cinco cntimos. Foi ness e dia que eu comprei um coco. A barraca consistia em dois remos e um galho cortado por Mestre Button a um paletrio ano, estava coberta com a vela trazida do brigue e erguia-se no centro da praia, fora do alcance dos cocos que poderiam cair se o vento aumentasse durant e a noite. O sol tinha desaparecido e a lua ainda no subira. Apenas a luz sideral alumia va os nufragos. Quais so as coisas que tu disseste que faziam sapatos, Paddy? inquiriu Dick. Que coisas? Tu disseste no mato que eu no devia falar, seno... Oh! Sim! Os Cluricaunos, os homenzinhos que consertam os sapatos da gente bo a. isso que queres dizer? Sim respondeu Dick, sem saber exatamente se era deles ou doutra coisa que se tratava, mas desejando mais amplas informaes, que adivinhava curiosas. E quem essa gente boa? Mas onde foste tu educado, menino, para no saberes que "gente boa" o outro no me das fadas, salvo na sua presena? No h fadas, a Senhora Sims disse que no existem. A Senhora James disse que h interrompeu Emelina. Ela disse que gosta de ver a s crianas acreditarem nas fadas. Ela falava com uma outra senhora que tinha uma p

luma vermelha no chapu e um regalo de peles. Elas tomavam ch e eu estava sentada n o tapete. Ela dizia que o mundo se tornava muito... no sei o que, e a senhora res pondeu que era verdade... e perguntou Senhora James se ela no tinha visto a Senho ra Machini com o horrvel chapu que ela usava para o Dia de Ao de Graas. Elas no disser am mais nada sobre as fadas, mas a Senhora James... Que me acreditem ou no interrompeu por sua vez Paddy o fato que existem mesmo , e talvez elas tenham sado do bosque atrs de ns e estejam a escutar-nos, embora eu duvide que venham at a estas paragens. Mas no Connaught havia tanta fada como ce rejas no mato. Agora, vocs podem me acreditar ou no, mas o meu velho pai, que Deus haja!, voltava para casa uma noite antes do Natal, com uma garrafa de usque numa das mos e um ganso depenado e destripado na outra, e que ele tinha tirado numa r ifa, quando, ouvindo umas vozes a cantar, no mais forte que o trilar de uma abelh a, imaginem o que ele viu? Em torno de uma grande pedra, l estava a "boa gente" a danar de roda, de mos dadas e batendo com os tacos. Os olhos deles brilhavam como vaga-lumes, e um indivduo do tamanho do meu dedo estava sentado sobre uma pedra e tocava berimbau. Ento meu pai d um grito, solta o ganso e dispara pra casa, salt ando cercas e valos, pulando como um canguru e com a cara branca que nem farinha . Quando ele entrou esbarrando na porta, ns estvamos todos em roda do fogo, queima ndo castanhas para ver quem se casava primeiro. " Santa Me de Deus! Que foi que te aconteceu? disse a minha me. " Eu vi a 'boa gente' disse ele l no campo, e eles ficaram com o ganso: mas, l ouvado seja Deus! eu salvei a garrafa. Tira a rolha, mulher, e d-me um pouco, poi s eu estou com o corao atravessado na garganta, e a lngua seca, pior que forno! " E quando ns fomos desarrolhar a garrafa, no havia nada dentro, e quando, no o utro dia de manh, fomos procurar o ganso, ele tinha se sumido. Mas l estava a pedr a e tinha em cima a marca dos sapatos do sujeitinho que tocava berimbau. E quem pode duvidar das fadas e dos gnios, depois disso?" As crianas ficaram um momento silenciosas, depois Dick pediu: Fala-nos dos Cluricaunos e conta-nos como que eles fazem os sapatos. Quando eu te falo dos Cluricaunos, a pura verdade que te digo, e de acordo c om a minha prpria experincia, pois eu falei com um homem que teve um na mo. Era o i rmo da minha me e se chamava Kan-Coyan que Deus haja! Kan tinha seis ps e duas pole gadas, e uma cara comprida e plida. Sua cabea tinha sido quebrada numa briga qualq uer, antes de eu nascer, e os doutores a tinham remendado com uma moeda de cinco xelins. Dick arriscou uma pergunta a propsito do processo de remendar cabeas com cinco xelins; mas Mestre Button no lhe deu resposta. Ele j era muito ruim para ver fadas antes de lhe remendarem a cabea, mas depoi s ficou pior ainda. Eu era um pedao de gente naquela poca, mas os meus cabelos fic aram quase brancos com as histrias que ele me contava a propsito da "boa gente" e das suas aes. Uma noite, eles o transformaram em cavalo e o fizeram percorrer a galope a m etade da regio, com um homem sobre o lombo e outro correndo atrs, a fincar-lhe esp inhos debaixo do rabo para faz-lo escoicear. Uma outra noite, ele se virou em bur ro, atrelado a uma pequena carroa, e davam-lhe lacaos na barriga e o faziam carreg ar pedras. Pouco depois, ele foi mudado em ganso, e gingava, e gritava, de pescoo estendido, enquanto uma velha fada o perseguia, com uma faca na mo. E tanto o at ormentaram, que ele comeou a beber para esquecer. Mas, c entre ns, eu acho que ele no precisava que o atormentassem para isso. E quando o dinheiro acabou, sabem o q ue ele fez? Arrancou a moeda de cinco xelins com que lhe tinham tapado o cocurut o da cabea e trocou-a por uma garrafa de usque. Foi o seu fim. Mestre Button parou para acender o cachimbo, e o silncio retombou. A lua se levantara, a melodia da ressaca enchia a noite. A vasta laguna palp itava, acolhendo a mar montante. Assim entrevista claridade da lua ou das estrela s, parecia duas vezes maior que em pleno dia. De tempos a tempos, o mergulho de um grande peixe turbava por um segundo o silncio e produzia um leve borbulhar na g ua plcida. Na gua se passavam dramas noturnos, invisveis para os espectadores da ma rgem. O bosque estava, no entanto, cheio de luz. Uma floresta dos trpicos, sob um a lua dos trpicos, to verde como uma caverna do oceano. Poder-se-iam contar os ram os e as flores, as orqudeas e os troncos de rvores, iluminados como em pleno dia.

Mestre Button tirou uma longa corda do bolso. Est na hora de deitar disse ele e eu vou amarrar Emelina, para impedi-la de p assear durante o sono e sair vagabundeando pelo mato. Eu no quero ser amarrada suplicou Emelina. para teu bem que eu fao isso retrucou Mestre Button, amarrando a corda em tor no da cintura da menina. Agora, vem disse ele. Ele a conduziu, como a um cozinho acorrentado, at a tenda e fixou a outra extr emidade da corda no remo que sustentava o seu abrigo. Agora, se tu te levantares e sares a caminhar de noite, a tenda cair sobre ns. O que no deixou de suceder as primeiras horas da madrugada. as lindas imagens do azul/15 Eu no quero as minhas calas velhas! Eu no quero as minhas calas velhas! Dick saiu a correr quase nu sobre a areia. E Mestre Button atrs, com umas peq uenas calas na mo. Assim um caranguejo teria tentado perseguir um antlope. J fazia q uinze dias que estavam na ilha, e Dick tinha descoberto a maior alegria da vida: andar nu! Andar nu e debater-se na gua da laguna! Andar nu e secar ao sol! No ter nenhuma vestimenta para incomodar! Despojar-se da civilizao sob a forma de calas, sapatos, casaco e chapu. Andar nu pela praia, exposto ao vento, ao sol, ao mar! No dia seguinte ao da sua chegada, a primeira ao de Mestre Button foi banhar a s crianas. Dick resistira a princpio, e Emelina, que raramente chorava, pusera-se a soluar sob a sua pequena camisa. Mas a teimosia era uma das qualidades de Mestr e Button. Se a grande dificuldade foi a princpio obrig-los a entrar na gua, agora era fazlos sair. Desnuda como a estrela da manh, Emelina, sentada luz do sol nascente, o bservava a ginstica de Dick na praia. A laguna oferecia mais atraes s crianas do que a terra firme. Os matos cheios de bananas maduras, prontas para serem colhidas e devoradas, as areias onde passea vam os lagartos que, com um pouco de precauo, se podiam agarrar pela cauda, uma co lina donde se podia, para usar da expresso de Paddy "avistar o lombo do outro lad o"! Tudo isso era decerto muito lindo, mas nada valia em comparao com a laguna. Todo um mundo se agitava nos fundos de areia e entre os galhos de coral; hav ia esses estranhos crustceos, a que chamam "soldados", que, depois de terem despo jado certos moluscos de suas conchas, com elas se paramentavam cinicamente; anmon as-do-mar, grandes como rosas, flores que se fechavam dolorosamente ao serem toc adas, extraordinrios moluscos que marchavam a tatear, acotovelando os caranguejos , aterrorizando os bzios, senhores do fundo do mar, e que, no entanto, se se lhes tocava com uma pedra atada a um fio, tombavam achatados, ficavam sem movimento algum e pareciam mortos. Havia nas profundezas da laguna toda a gama dos sentime ntos humanos, desde a comdia at a tragdia. Certas bacias de rocha, na Inglaterra, encerram maravilhas, mas imaginem as daquele vasto aqurio, medindo nove milhas de permetro e variando de um tero a meia milha de largura, formigante da vida dos trpicos, onde passavam cardumes de peixe s coloridos, onde o radioso albcora deslizava como um fogo-ftuo, onde a sombra do barco se projetava to nitidamente como se a gua fosse ar, onde o mar, protegido pe los recifes, contava seus sonhos como uma criana. Paddy Button, como incorrigvel preguioso que era, no seguia nunca a margem da l aguna alm de meia milha de cada lado da praia. Ele trazia a sua pesca para a praia e, munido do isqueiro e de um pouco de l enha seca, acendia o fogo. As crianas ajudavam-no a cozinhar os peixes, os frutos da rvore do po e as razes de taro. Eles ergueram a tenda entre as rvores, orla da mata, acimentaram-na e tornara m-na mais confortvel, graas vela do barco. Entre essas ocupaes, essas surpresas e esses prazeres, os pequenos perderam to da a noo da fuga do tempo; raramente falavam de Lestrange. Depois, no pronunciavam mais seu nome... As crianas esquecem... livro 1 /terceira parte

a poesia das lies/16 Para esquecer a fuga dos dias, preciso viver-se ao ar livre, num clima quent e, vestido o mais sumariamente possvel e obrigado a procurar e preparar o prprio a limento. Depois de certo lapso de tempo, se no se est especialmente ligado civiliz ao, a natureza se nos mostra to clemente como para os selvagens. Reconhecer-se- a po ssibilidade de ser feliz sem livros, jornais, cartas ou faturas, compreender-se- a parte que o sono tem na existncia. Ao fim de um ms, Dick, cheio de seiva e de atividade, ajudava Mestre Button a arrancar razes de taro, ou em qualquer outro mister. Um minuto depois, deitado e m arco, ele dormia como um co. O mesmo acontecia a Emelina; a intervalos de sono prolongados, sucedia-se um sbito despertar num mundo de ar puro e de luz ofuscant e que a cercava da alegria das cores. A natureza abriu os braos quelas crianas. Era como se ela quisesse tentar uma e xperincia, dizendo: "Deixai no meu regao esses rebentos da civilizao e vereis como e les se expandem e o que suceder". Tal como Emelina tinha trazido a sua caixa, Dic k conservava preciosamente um saquinho que tilintava quando o sacudiam e que con tinha bolinhas de gude: umas pequenas, de mrmore verde-oliva; outras mdias, irisad as; outras de cristal, com coraes esplendidamente coloridos; e uma velha, enorme, muito grande para servir de brinquedo, mas digna de respeito, uma deusa-bola. Naturalmente, no se pode jogar bolita a bordo de um navio, mas pode-se brinca r com elas, e elas foram uma grande consolao para Dick durante a viagem. Ele as co nhecia pessoalmente, fazia-as rolarem sobre a coberta de seu leito, e passava-as em revista quase todos os dias, enquanto Emelina as olhava. Um dia, Mestre Button viu as crianas ajoelhadas uma defronte outra, num trech o de areia dura. Aproximou-se para ver o que faziam: jogavam bolita. Ele ficou c om as mos no bolso e o cachimbo boca, a observar os golpes, contente com a alegri a das crianas. Ps-se logo de quatro ps, para tomar parte no jogo; Emelina, desajeit ada, sem entusiasmo, desistiu em seu favor. Depois disso, no era raro encontr-los divertindo-se juntos; o velho marinheiro de ccoras, visando, com um olho fechado, uma bolinha e com outra sobre a unha de seu polegar. Dick e Emelina, de olho alerta, verificavam se ele no fazia alguma trapaa. Suas vozes agudas despertavam ecos entre os coqueiros, assim como os grit os repetidos de: "Joga com os polegares, Paddy, joga com os polegares!". Ele se imiscua em todos os seus brinquedos, como se fosse tambm uma criana. Em grandes e raras ocasies, Emelina abria a sua preciosa caixa, dispunha o se u contedo sobre o cho e oferecia ch s visitas. Mestre Button, segundo o caso, era co nvidado ou fazia as honras. Vosso ch est do vosso gosto, Medme? informava-se ele. Emelina, fazendo trejeitos com os lbios, respondia invariavelmente: "Eu me se rvirei de um outro tablete de acar. Senhor Button". Paddy retrucava: "Tomai uma dzia, a vosso gosto, Medme, e uma taa vossa vontade ". Em seguida, Emelina lavava os pequenos objetos, tornava-os a colocar na caix a. E eles perdiam as maneiras mundanas, tornando-se perfeitamente naturais. Paddy, tu nunca viste o teu nome? perguntou Dick uma manh. Vi o qu? O teu nome. Ah! L vem ele com as perguntas! Como diabo poderia eu ver o meu nome? Espera, que te mostrarei. Dick foi procurar uma vara e, sobre a areia, de um branco brilhante como sal , desafiando o sol e a ortografia, apareceram estas letras desiguais: Sim senhor! Podes dizer que s um rapazinho aproveitvel! disse Mestre Button, a poiando-se contra um coqueiro e admirando a obra-prima de Dick. o meu nome, no ? Q uais so as letras que tem dentro? Dick enumerou-as. Eu te ensinarei a escrever, Paddy. No tens vontade de escrever teu nome? Eu? No replicou Mestre Button, no aspirando a outra coisa seno fumar em paz o s eu cachimbo. O meu nome no me serve para nada. Mas Dick, com a infatigvel tenacidade da infncia, no se desencorajava assim to f

acilmente, e o infeliz Paddy, malgrado seu, teve de ir para a aula. Em breve pde ele desenhar sobre a areia caracteres que se assemelhavam vagame nte aos impressos mais acima mas no sem relutncia. Dick e Emelina, imveis de cada lado, retinham a respirao, temendo um erro. E que mais? perguntou o escriba, extenuado, transpirando por todos os poros que mais? Despacha-te, porque vou me derreter. Oh! Mas tu fazes o "N" ao contrrio. Isto! Agora est bem. Hurra! Hurra! gritava o aluno, sacudindo o velho chapu acima do seu nome. E o eco das palmeiras repetia "hurra!", enquanto os hi! hi! longnquos das gai votas ressoavam sobre a laguna azul, como se elas tivessem tomado conhecimento d o fato e o aplaudissem. O gosto das lies vem com a continuao. O exerccio mental mais agradvel para as crianas consiste em ensinar as pessoas mais velhas. A prpria Emelina o experimentava. Um dia, ela inaugurou timidamente o curso de geografia, pondo a sua mozinha na mo rugosa de seu amigo: Senhor Button! Que h, querida? Eu sei geografia. E que vem a ser isso? Emelina ficou um momento atrapalhada. onde esto os lugares disse ela. Que lugares? Todas as espcies de lugares. Senhor Button... E ento? Ser que o senhor no quer aprender geografia? Eu no desejo aprender disse ele precipitadamente a cabea me anda roda quando o uo as coisas que vm nos livros. Paddy! chamou Dick, que, naquele dia, estava disposto a desenhar. Olha aqui! Ele traou sobre a areia o objeto seguinte: um elefante disse ele, com a voz um tanto insegura. Mestre Button emitiu um vago grunhido e a sua falta de entusiasmo desapontou a Dick, que, lentamente e com pesar, apagou o elefante, enquanto Emelina olhava abatida. Depois, de sbito, a fisionomia da menina se transfigurou, o sorriso serf ico iluminou-a, ocorrera-lhe uma idia luminosa: " Dick disse ela mostra o Henrique VIII". Dick tambm rejubilou. Alisou a areia e eis o que saiu: Isto ainda no Henrique VIII, mas vai ser daqui a pouco. Papai me ensinou como que se faz. Isto no nada at a gente botar um chapu em cima. Pe-lhe o chapu disse Emelina, olhando alternativamente para a imagem sobre a a reia e para o rosto de Mestre Button, espiando o sorriso alegre com o qual o vel ho marinheiro acolheria decerto o grande rei, quando este surgisse em toda sua g lria. Ento Dick, com um s trao, ps o chapu no soberano. E nenhum retrato poderia parecer-se mais com essa Majestade que tiranizou os monges, mas Mestre Button ficou insensvel. Eu o fiz para a Senhora Sims exclamou Dick, ressentido e ela disse que era e xatamente ele! Talvez o chapu no esteja bastante grande insinuou Emelina, inclinando a cabea d e um lado e de outro, para examinar o desenho, que ela achava bom, mas ao qual, todavia, devia faltar alguma coisa, visto que Mestre Button no o tinha aprovado. Mas qual o verdadeiro artista que no passa por transes anlogos ante o silncio d e um crtico? Paddy sacudiu a cinza do cachimbo, levantou-se e a classe seguiu toda para a beira da laguna, abandonando Henrique VIII e seu chapu merc do vento. Mestre Button continuou suas lies por hbito e as crianas supriam sua cincia com p equenas invenes que eram talvez mais teis que o saber, naquela esplndida poesia das palmeiras e do cu. Os dias tornaram-se semanas e as semanas meses sem que a silhueta de um navi o apontasse no horizonte, o que pouco preocupava a Mestre Button, e muito menos s crianas, muito ocupadas e divertidas para se atormentarem.

A estao das chuvas chegou rapidamente para eles. Depois das tempestades, o velho marinheiro anunciou que construiria uma casa de bambus antes que chegassem as prximas chuvas, mas que talvez nessa poca eles j tivessem abandonado a ilha. Entretanto acrescentou ele eu vou desenhar o modelo para vocs verem. E esta obra artstica saiu do seu crebro: Tendo assim traado o plano de sua futura residncia, apoiou-se contra uma rvore e acendeu o seu sempiterno cachimbo. Entretanto, ele no contara com Dick. O garot o no sentia o mnimo desejo de habitar uma casa, mas tinha uma impaciente vontade d e ver construir uma e ajudar nesse trabalho. A habilidade uma das bases do carter americano. Mas como que tu vais impedir de escorregarem? perguntou ele, depois de Paddy haver explicado o seu mtodo. Que que escorrega? Os bambus. Os bambus? Mas depois de arranj-los em cruz, atravessa-se a cruz com um prego , e ata-se. Pronto! E tu tens pregos, Paddy? No, no tenho. Ento, como vai ser? No me faas mais perguntas, agora eu quero fumar o meu cachimbo. Mas ele prprio tinha arranjado umas botas difceis de descalar. De manh, de tarde , noite, era aquilo: Paddy, quando que vais comear a casa? Ou ento: Paddy, parece que arranjei um meio para prender os bambus. At que enfim, um dia, de desespero, Mestre Button comeou a sua cabana, como um castor. Houve um grande massacre de canios no mato, depois de terem cortado em q uantidade suficiente, Mestre Button fez greve durante trs dias. E assim ficaria i ndefinidamente, se no tivesse encontrado um enrgico contramestre. O infatigvel Dick, jovem e ativo, sem preguia original, sem velhos ossos a rep ousar, sem cachimbo a fumar, o apuava como um marimbondo, era em vo que ele procu rava distra-lo com histrias de fadas e de Cluricaunos. Dick queria a todo custo co nstruir uma casa. Mestre Button pouco se importava com isso, ele queria era desc ansar. Era-lhe igual pescar ou trepar num coqueiro, operaes que executava com igua l maestria, passando uma corda de ns em torno de si e da rvore e servindo-se desta como dum suporte durante a ascenso. Mas construir uma cabana era uma obra montona . Ele objetou que no tinha pregos. Dick lhe mostrou que bastava fazer um entalhe nas canas para sust-las. De fato, tu s um rapaz habilidoso! disse Paddy. Depois Mestre Button observou que no tinham cordas e disse que no dia seguint e ou no outro pensaria na maneira de dispens-las. Mas Dick provou que a fibra par da com que a natureza cobre o tronco dos coqueiros substituiria a corda se a cor tassem em filamentos. Ento Paddy renunciou luta e puseram-se a trabalhar juntos d urante uns quinze dias. Ao fim desse tempo, uma espcie de cabana primitiva se elevava na orla da mata . Alm, sobre os recifes at os quais eles iam muitas vezes em canoa, a mar baixa dei xava grandes charcos palpitantes de peixes. Paddy lamentou no ter um arpo para caar alguns, como ele tinha visto fazerem os naturais do Taiti. Dick indagou da forma do referido arpo, e no dia seguinte trazia uma vara de dez ps de comprimento, aguada na ponta maneira de uma pena de pato. Que queres fazer com isso? disse Mestre Button. Poders finc-lo num peixe, mas ele escapar em dois tempos; a barba que o prende. No dia seguinte, o engenhoso menino afilou a vara a mais ou menos trs ps da po nta e afiou-a de um lado o suficiente para arpoar um pequeno peixe que se encont rava naquela tarde ao fundo de uma vasa que o sol poente iluminava. Certa manh, depois das contnuas chuvas, Dick notou que no havia mais batatas. Ns as comemos todas, h meses disse Paddy.

Como nascem as batatas? indagou Dick. Como nascem as batatas? Mas nascem na terra. Como queres tu que elas nasam? C ortam-se em pedacinhos, de modo que haja um olho por pedao, depois pem-se os pedaos na terra; os olhos grelam, surgem brotos verdes, e ento seis meses depois a gent e arranca e pode encontrar um alqueire de batatas debaixo da terra, umas do tama nho de cabeas, outras pequenas; tal qual uma famlia de irmos, umas maiores, outras menores. Mas esto na terra e s o que tens a fazer tomar a enxada e tirar que d para uma marmita, como eu tantas vezes fiz, antigamente. E por que no fizemos isso? Fizemos o qu? Por que no plantamos algumas batatas? E onde poderamos encontrar uma p para plant-las? Acho que podamos fabricar uma. Uma vez eu fiz uma, em casa, com uma tbua velha , papai me ajudou. Bem. Ento, some-te, e vai fazer uma p, agora tornou Mestre Button, que desejav a ficar em paz. Voc dois podero cavar na areia. Emelina, sentada perto, confeccionava, com uma liana, uma guirlanda de flore s magnficas. Meses de sol e de oznio tinham-na mudado consideravelmente: ela estav a morena como uma cigana, toda constelada de sardas; no muito maior, mas duas vez es mais gorda. Seus olhos perdiam a expresso longnqua com que pareciam contemplar o futuro e a imensidade, no como abstraes, mas com imagens concretas; e ela no era m ais sonmbula. O choque da tenda, caindo-lhe em cima na primeira noite a haviam cu rado, bem como suas novas condies de existncia, os banhos de mar e a vida ao ar liv re so os melhores calmantes. Dick tambm se havia transformado durante aqueles meses de meia selvageria, ti nha crescido duas polegadas desde o dia em que ali desembarcaram. Bronzeado e sa rdento, parecia ter doze anos e prometia tornar-se, seno um homem belo, pelo meno s um belo homem, so e alegre, vigoroso e ousado. A questo das roupas comeava a preocupar o velho marinheiro. O clima por si mes mo servia de indumentria. Ficava-se muito mais vontade sem nada por cima. Natural mente, havia mudanas de tempo, mas eram passageiras. Um vero sem fim, interrompido por chuvas torrenciais e, excepcionalmente, uma tempestade. Apesar disso, pensa va ele, as crianas no deviam andar nuas. Tomou um pedao de flanela listada e ps-se a fazer uma saia para a menina. Era divertido v-lo assentado na areia, Emelina de p diante dele, experimentand o a veste que lhe cingia os rins, e ele com a boca cheia de alfinetes e o mais q ue era necessrio ao lado. Vira um pouco a bombordo. Isto! Fica quieta. Onde est a tesoura? Dick, segura esta guita, enquanto eu dou um ponto atrs. Cai bem? Ests vontade? Levanta o p. Vam os ver se tapa os joelhos. Agora, despe-a, e deixa-me costurar as amarras. Aquela saia era inspirada numa vela, pois tinha duas ordens de garcetas, dis posio engenhosa que permitia p-la nos rizes quando a menina quisesse patinhar n gua ou correr contra o vento. o tonel do diabo / 17 Mais ou menos uma semana aps o dia em que o velho marinheiro, para empregar s eus prprios termos, tinha "envergado" uma saia em Emelina, Dick, descendo do morr o, atravessou correndo o mato e as areias. Paddy! gritou ele para o marinheiro, que prendia um anzol a uma linha a vem u m navio! Mestre Button no tardou em alcanar o alto do morro; de fato, um navio dirigiase diretamente para a ilha. A nau tinha sua aparelhagem, suas canoas, seu saco de calafetagem, estava pe rfeitamente apetrechada e tudo nela revelava um baleeiro. Era um navio, sem dvida , mas Paddy teria de melhor vontade trepado num barco dirigido por Lcifer, do que num baleeiro dos mares do sul. Ele ocultou as crianas debaixo de uma bananeira, proibindo-lhes que se movessem at a sua volta, porque era, lhes disse, o navio do Diabo em pessoa e, se os homens de bordo os pegassem, certamente os esfolariam vivos.

Em seguida foi at a praia, juntou tudo o que havia na cabana, bem como as pro vises de sapatos velhos e roupas, e colocou tudo no barco. Teria destrudo a casa, se pudesse, mas no havia tempo para isso. Fez a canoa d escer uma centena de metros, no brao esquerdo da laguna, amarrando-a a um paletvio , cujos galhos roavam a gua. Em seguida voltou, atravessou o bosque e ps-se a olhar para a laguna, para ver o que sucederia. O vento soprava na direo do canal e o velho baleeiro chegou, lutando contra a mar com a sua grossa proa. No havia piloto, e ele entrou como se conhecesse perfei tamente o caminho; possivelmente sim, pois todos esses baleeiros sabem de cor os menores recantos do Pacfico. A ncora tombou, fazendo saltar leques de gotas e o n avio, virando, ficou a flutuar sobre o espelho azul. A nica palmeira do recife fa zia um gracioso fundo ao quadro. Sem esperar que as canoas fossem baixadas, Mest re Button voltou para junto das crianas e, aquela noite, os trs acamparam no mato. Ao despontar da aurora, o baleeiro j tinha partido, deixando, como lembranas d a sua passagem, pegadas na areia, uma garrafa vazia, a metade de um jornal velho e a destruio da cabana! O velho marinheiro amaldioou-o, a ele e sua equipagem, pois o incidente troux era um novo exerccio para a sua preguiosa vida. Agora, diariamente, ao meio-dia, e le escalava a colina para ver se avistava baleeiros. Esses navios enchiam as sua s noites de pesadelos, embora eu duvide que ele avistasse com mais alegria um va por da Mala Real inglesa. Ele estava perfeitamente satisfeito com a sua sorte. D epois de longos anos sobre as guas, a ilha era um paraso. Tinha fumo por tempo inf inito, as crianas por companheiros e vveres ao alcance da mo. E seria completamente feliz se a natureza tivesse provido a ilha de uma taverna. Todavia, os espritos que presidem alegria e boa vida, descobrindo esse erro d a natureza, no deveriam tardar em retific-lo, como em seguida se ver. A demolio da casa pouco importava; o pior foi o desaparecimento da caixa de Em elina. Procurou-se o objeto por toda parte, mas em vo. Na sua precipitao em tudo me ter no barco, Mestre Button devia t-la esquecido; em todo caso, no foi mais vista. Era provvel que um dos marinheiros a tivesse encontrado e levado. Durante uma semana Emelina ficou muito aborrecida. Ela amava apaixonadamente as coisas coloridas, as flores sobretudo; costumava tran-las em lindas coroas que punha sobre a sua cabea, ou na de seus companheiros. Desenvolvia-se nela o insti nto da modista e da florista; era, sem dvida, um instinto bem feminino, pois Dick no fazia nada semelhante. Certa manh, estando ela sentada perto do velho marinhei ro, entretida a enfiar conchinhas, chegou Dick a correr. Ele saa do mato e pareci a procurar qualquer coisa; descobrindo o que desejava, uma grande concha, partiu em seguida. Seu vesturio compunha-se de um pedao de fibra de coqueiro, amarrada em torno d os rins. Por que o trazia ele? Ningum o sabia, pois andava a correr nu a maior pa rte do tempo. Encontrei uma coisa, Paddy! gritou ele, desaparecendo entre as rvores. Que foi que tu encontraste? indagou Emelina, num tom agudo, que trata o seu interesse. Uma coisa engraada respondeu sua voz no mato. Pouco depois voltou, mas desta vez caminhava lentamente, carregando a concha como se ela contivesse um lquido precioso que temia derramar. Paddy, eu virei o barril velho, tinha uma rolha, eu destapei, e o barril est cheio de uma droga que cheira muito mal. Eu trouxe um pouco para provares. Ele deps o recipiente entre as mos do velho marinheiro, havia dentro um pouco mais de um meio decilitro de um lquido amarelo. Paddy cheirou, provou-o e exclamo u: Rum, meu Deus do Cu! O que ? perguntou Emelina. De onde tiraste? Do velho barril? E Mestre Button parecia ofuscado e tonto, como se tivesse recebido uma panca da. Sim, eu tirei a rolha. E puseste-a de novo?

Sim. Ah! Graas a Deus! E dizer que eu ficava sentado sobre um velho tonel que supu nha vazio, com a lngua cada at os calcanhares, de sede, quando o tonel estava cheio de rum! Ele tomou um gole na concha, depois emborcou-a de um trago, apertou os lbios para guardar-lhe o perfume e fechou um olho. Emelina ps-se a rir. Mestre Button ergueu-se; eles o seguiram atravs do mato a t a fonte onde jazia o pequeno tonel. Seu batoque olhava as folhas acima dele. Po dia-se ver o buraco que ele fizera no solo, no transcorrer dos anos. Estava to ve rde e se assemelhava de tal modo a um objeto natural, tronco de rvore ou pedra ch eia de limo, que os marinheiros do baleeiro no tinham adivinhado a sua verdadeira natureza. Mestre Button bateu-lhe em cima com o lado espesso da concha: dava um som ch eio. Por que fora ele deixado ali? Por quem? Como, quando? Apenas os velhos crnio s cobertos de limo que poderiam responder. Vamos lev-lo para a praia props Paddy, depois de ter bebido mais um pouco do s eu contedo. Ele deu um gole a Dick, mas o menino cuspiu, careteando. Ento ele e Dick comearam a rolar o barril colina abaixo ate a praia. Emelina, coroada de flores, corria na frente. a caa dos ratos /18 O almoo efetuou-se ao meio-dia. Paddy sabia preparar o peixe moda das ilhas, envolvia-o de folhas e fazia-o cozer num buraco previamente aberto e aquecido. C om mais as razes de taro cozinhadas da mesma forma, e cocos frescos, fizeram um e xcelente almoo, aps o qual Mestre Button encheu uma grande concha de rum e acendeu o seu cachimbo. O rum, j bom na sua adolescncia, tornara-se maravilhoso ao envelhecer. Para Pa ddy, habituado aos "venenos" vendidos nas bodegas das costas de Barbaria e de S. Francisco, ou nas tavernas das docas, aquela bebida era um nctar. Sua alegria comunicativa irradiou sobre as crianas, contentes de o verem de to bom humor. Habitualmente, o seu amigo cochilava e no queria seno uma tranqilidade completa . Mas agora ele lhes contava histrias do mar e cantava velhas canes ritmadas pela m anobra: Vim de Hong Kong E de Peiping E do Canto. Ai de vocs, Sou um chins, No sou eu no! Vim de Lisboa, Andei toa Por toda parte, Sou tubaro, Peixe que voa. Boto, esp adarte, E s no tapa, Na bofetada, No cachao, Que no escapa Nem o cachimbo Do capito! L do alto das rvores os pssaros espiavam com seus olhos brilhantes aqueles aleg res convivas, que pareciam gente em piquenique. Os coqueiros devolviam a cano e os ventos carregavam-na para alm da laguna, at onde as gaivotas danavam a farndola sob re as vagas marulhosas. Naquela tarde, Mestre Button, inclinado jovialidade, e no desejando que as cr ianas o vissem sob a influncia do lcool, rolou o tonel atravs do bosque at uma pequen a clareira beira d gua. Depois que Emelina e Dick adormeceram, ele l voltou com alguns cocos e uma co ncha. Geralmente a embriaguez o tornava msico. Emelina, acordada durante a noite, ouviu sua voz, que o vento espalhava no bosque enluarado: Seis ou sete marinheiros Beberam dias inteiros Em todos os taverneiros E and am armando salseiros Pelas ruas aos berreiros. Seis ou sete marinheiros. Canta, canta, rapaziada, Canta, canta, horas a fio, Que Babilnia caiu E ficou livre a negrada! A aurora encontrou o cantor deitado ao lado do barril. No sentia peso nem ind isposio alguma, mas deixou os cuidados da cozinha a Dick. Estendido sombra das pal meiras, a cabea sobre um travesseiro feito com um velho casaco enrolado, a virar

seus polegares e a fumar seu cachimbo, ele declamava, metade para seus companhei ros, metade para si mesmo, discursos sobre os bons tempos de outrora.

Durante uma semana, ele deu assim saraus musicais a seu bel-prazer, depois c omeou a perder o apetite e o sono, e, uma manh Dick encontrou-o sentado na areia, com um ar muito esquisito. E no era para menos, porque, desde a aurora, que ele v inha tendo vises. Que h, Paddy perguntou o menino, que chegava a correr, seguido de Emelina. Mestre Button fixava um ponto na areia a seu lado, e sua mo direita erguia-se como a de uma pessoa que tenta apanhar uma mosca. De sbito, ele fez como se tive sse pegado qualquer coisa e abriu a mo para ver sua presa. Que , Paddy? O Cluricauno! disse Mestre Button. Ele estava todo vestido de verde. Ora, me ninos! Mas eu estava brincando, apenas. O mal de que ele sofria oferece a estranha particularidade de mostrar ratos, serpentes e outras alucinaes, fazendo ao mesmo tempo o enfermo compreender quase imediatamente que vtima de uma iluso. As crianas romperam s gargalhadas e Mestre Button fez o mesmo, com uma expresso atoleimada. Sem dvida que era mesmo um brinquedo que eu estava fazendo para vocs. No havia Cluricauno algum. quando eu bebo que me d na veneta fazer desses brinquedos. Meu Deus! Olhem ali aqueles ratos vermelhos que saem da areia! Ele arrastou-se de joelhos at os coqueiros, sacudindo a cabea com um ar de pav or. Ter-se-ia levantado para fugir, mas no se animava a pr-se de p. As crianas faziam roda em torno dele, batendo palmas enquanto ele se arrastav a por terra. Os ratos, Paddy, os ratos! gritava Dick. Eles esto agora diante de mim! exclamou o visionrio, tentando agarrar pela cau da um daqueles fantsticos roedores. Anda, espanta os animais! Ah! J se foram... Ma s que imbecil eu sou! Continua, Paddy pediu Dick no pares, h outros ratos que correm atrs de ti. Oh! Cala-te, por favor suspirou Mestre Button, sentando-se na areia e enxuga ndo a fronte. Eles agora me deixaram em paz. As crianas ficaram a seu lado, muito desapontadas com o fim do espetculo, a co mdia bem representada agrada s crianas como gente grande. Dick e Emelina ficaram, pois, esperando que o ator fosse dominado por um out ro acesso, e sua espera no foi longa. Desta vez, aos olhos de Mestre Button, foi uma espcie de cavalo escorchado qu e saiu da laguna e subiu para a praia, mas Paddy no se arrastou mais, ele ergueuse e saiu correndo. um cavalo que est atrs de mim, um cavalo que est atrs de mim! Dick, Dick, batehe no focinho! Dick! Dick! Espanta-o! Hurra! Hurra! gritou Dick, perseguindo o alucinado, que galopava em crculo, c om a face vermelha voltada sobre o ombro esquerdo. Continua, Paddy, continua, Paddy! Salva-me do animal! suplicava Mestre Button. Santa Maria, Me de Deus, ele vai me dar um coice! Ele est bem atrs de mim! Emelina! Emelina! Separa-nos! Ele deu um passo em falso e caiu sobre a areia. O infatigvel Dick batia-o com uma varinha para faz-lo continuar. Eu me sinto melhor agora, mas estou quase morto disse Mestre Button, sentand o-se. Palavra! Se eu for ainda perseguido por coisas como essas, posso garantir que ser o meu fim. Dick, d-me o brao. Ele se apoiou ao brao de Dick e dirigiu-se para o bosque. L, lanou-se por terra , dizendo s crianas que o deixassem tranqilo. Eles compreenderam que o brinquedo ti nha terminado e abandonaram o velho marinheiro. Ento Paddy dormiu durante seis ho ras consecutivas. Era o primeiro sono verdadeiro que, desde h muito, ele consegui a dormir. Quando despertou, estava curado, mas ainda trmulo das pernas. a espuma dos recifes sob a claridade das estrelas/19

Com grande desapontamento de Dick, Mestre Button no tornou a avistar ratos no dia seguinte. Curado da sua embriaguez e fortalecido por um segundo sono, ele l evantou-se para ir passear beira da laguna. A abertura dos recifes era orientada para Leste, e a luz da aurora veio danar na mar montante. Tu no passas de uma besta dizia ele de si para consigo, arrependido tu no pass as de uma reverenda besta! Ele se julgava muito desfavoravelmente, no sendo seno um homem obsedado e trado durante um instante pelo lcool e pelos que o vendem; tomou a resoluo de acabar de uma vez por todas com a tentao. Tirar o fundo do barril e deixar escapar o rum! Semelhante idia no lhe veio pr ovavelmente, ou, se veio, ele logo a rejeitou como um sacrilgio. Se um velho mari nheiro pode algumas vezes amaldioar a bebida, ela, ainda assim, sagrada para ele, e o infanticdio lhe pareceria um crime apenas um pouco mais grave que o de lanar metade de um barril de bebida ao mar. Ele colocou o barril no barco levando-o at o recife. L o deps cuidadosamente ao abrigo de um grande pedao de coral, e voltou. Toda a sua vida, Paddy estivera sujeito a uma embriaguez intermitente. Quatr o ou seis meses, conforme a extenso da viagem, espaavam habitualmente as suas cris es. Seis meses se passaram antes que ele experimentasse o desejo de ir dar uma v ista de olhos no barril, que punha uma mancha carregada no recife. Ainda bem, po rque, durante aqueles seis meses, um outro baleeiro chegou, ancorou e foi evitad o. Que o diabo o carregue disse Paddy o mar aqui engendra baleeiros, nada mais que baleeiros, como percevejo na cama, a gente mata um, vem outro. Em todo caso, estamos agora livres por um momento. Ele foi at a laguna, olhou o ponto sombrio e ps-se a assobiar. Ento voltou para preparar o almoo, mas o pequeno barril tomou conta de seus pensamentos durante a lgum tempo. Os dias que, antes, eram to curtos e agradveis, tornaram-se-lhe compri dos e montonos. Para as crianas, o tempo no existia. Dotados de perfeita sade, eles gozavam da felicidade, tanto quanto o podem experimentar os mortais. O sistema n ervoso de Emelina produzia, em verdade, uma dorzinha de cabea de tempos a tempos, quando ela se demorava muito ao sol, mas tais acidentes eram raros. Havia muitas semanas j, que o esprito, no tonel, vinha murmurando, e Mestre Bu tton percebia o seu apelo. Por fim, o esprito ps-se a gritar, e, para me servir de uma metfora, Paddy tapou as orelhas. Ocupou-se o mais possvel das crianas, fez out ra saia para Emelina e cortou os cabelos de Dick, cerimnia que se realizava geral mente de dois em dois meses. Uma noite, para tratar de esquecer a histria do barril e seu contedo, ele lhes contou a histria de Jack Dogerty e da sereia, to conhecida na costa ocidental da Irlanda. A sereia convida Jack para cear no fundo do mar, ento eles comem, e a se reia destampa um garrafo de rum. Esta histria lhe devia ser fatal. Logo que seus ouvintes deitaram e adormecer am, a imagem da sereia e de Jack cambaleante levantou-se ante seus olhos, excita ndo nele uma irresistvel sede de alegria. Ele tinha amontoado sob uma rvore uma meia dzia de cocos. Tomou alguns, bem co mo uma concha, desamarrou o barco e ps-se a remar. A laguna e o cu estavam cheios de estrelas, nas profundezas tenebrosas da gua poder-se-ia ver o rastro fosforescente dos peixes. E o acalanto das ondas enchia a noite com a sua cano. Fixou solidamente a corda da canoa em torno de um pilar de coral, desceu, e, com uma concha cheia de rum e de leite de coco, acocorou-se sobre um grande reb ordo, donde ele dominava o mar e os bancos de coral. Era bom estar sentado ali, ao luar, e ver as ondas avanarem, como nuvens, est riadas com as irisaes das cristas e das bolhas de espuma. Sua neve e sua cano, sob a luz difusa das estrelas, produziam um estranho efeito, de indescritvel beleza. Agora a mar baixava e Mestre Button, fumando o seu cachimbo e bebendo o seu g rogue, percebia, de um lado e de outro, uns espelhos brilhantes, nos lugares ond e a gua ficava nas bacias formadas pelos rochedos. Depois de considerar esse espe tculo por um pedao, ele voltou para o recife e sentou-se perto do barril. Da marge m oposta, poder-se-ia ouvir, ao fim de certo lapso de tempo, parcelas de canes que pairavam sobre a gua fremente.

Navegando, navegando Na costa da Barbaria... Que a costa de Barbaria em questo fosse a de S. Francisco, ou a prpria, isto p ouco importa, mas quando sobre uma costa de coral, ou sobre um cais de granito, ouve-se essa velha cano, pode-se ficar certo de que quem a est cantando um marinhei ro do tempo antigo, e que este marinheiro est meio bbado. Dentro em pouco o barco deixou o recife, os remos fenderam as guas que as est relas iluminavam, e grandes crculos de luz deram respostas ritmadas aos golpes le ntos e seguros dos remos. Paddy amarrou o barco ao paletvio, verificou se os remo s estavam bem colocados no barco, respirou fortemente e tirou os sapatos para no acordar as crianas que dormiam a duzentos metros, precauo esta tanto mais intil quan to era areia mole que os separava. Uma mistura de leite de coco e de rum bastante agradvel de beber-se, no entre tanto, estes dois ingredientes so melhores em separado. Misturados, nem mesmo o cr ebro de um velho marinheiro pode retirar de tal mescla seno um nevoeiro e confuso mental em matria de ao fsica, por outro lado, leite de coco e rum incitam o bebedor a grandes empreitadas. Tanto assim que levaram Paddy a nadar na laguna. Enquanto ele avanava para a cabana, veio-lhe de repente a idia de que tinha de ixado o bote amarrado aos recifes. Em verdade, o barco se achava, so e salvo, ata do ao paletvio, mas a memria difusa de Mestre Button assegurava-lhe que o barco es tava perto do recife. Como seria ento que ele, Button, tinha atravessado a laguna ? Isto no tinha importncia alguma. O fato de t-la atravessado sem barco e sem molha r-se no o espantou nada. Ele no tinha tempo de ocupar-se com tais ninharias, era p reciso ir procurar o barco. Ento voltou para a praia, tirou o casaco e jogou-se n gu a. A laguna era bastante larga, mas, no estado de esprito em que se achava, teria atravessado o Helesponto a nado. A laguna estava de tal maneira iluminada pelas estrelas que se poderia ver a cabea do nadador movendo-se em meio de anis de claridade. medida que ele se aprox imava do recife, poder-se-ia ver igualmente um tringulo escuro a nadar sob a palm eira da barra. Era a patrulha da noite, misteriosamente avisada de que um velho marinheiro brio perturbava as guas. O espectador, com o corao a bater, teria esperado o grito do infeliz, mas esse grito no se fez ouvir. O nadador escalou os recifes; exausto, tendo certamente e squecido o motivo por que voltara, encontrou o barril de rum e tombou a seu lado , como se fosse o sono, e no a morte, que acabara de roar por ele. o homem adormecido no recife/20 Eu queria saber por onde andar o Paddy! exclamou Dick, no dia seguinte de man h, ele saa do mato e arrastava um galho seco. Ele deixou o casaco com o cachimbo n a areia. Eu vou fazer fogo. No vale a pena esper-lo, que diabo! Fez estalar o galho seco sob o seu p nu, e quebrou-o em pedaos. Emelina, sentada, contemplava-o. Ela possua duas divindades: Paddy Button e D ick. Paddy era quase um deus esotrico, envolvido pelas nuvens do fumo e do mistrio , o deus dos navios oscilantes e das cordoalhas rangedoras (os mastros e as gran des velas do "Northumberland" tinham ficado impressos na sua memria), o deus que a tinha raptado num pequeno barco para traz-la para aquele lugar maravilhoso, ond e os pssaros eram coloridos e os peixes pintados, onde, sob um cu raramente empana do, a vida no era jamais montona. Dick, a outra divindade, era um personagem mais compreensvel, mas no menos adm irvel como companheiro e protetor. Em dois anos e cinco meses de vida na ilha, el e tinha crescido perto de trs polegadas, forte como um menino de doze anos, podia fazer fogo e remar no barco to bem como Paddy. Com efeito, durante aqueles ltimos meses, Mestre Button, ocupado em descansar seus ossos e em contemplar o rum como uma idia abstrata, tinha deixado a Dick, o mais possvel, o cuidado de cozinhar, pescar e procurar vveres. Afinal, isso diverte o menino: imaginar que est trabalhando pensava ele, obse rvando Dick, que cavava a terra para fazer um pequeno forno segundo o mtodo das i lhas, e que ali cozinhava peixe ou outras coisas. Vamos, Emelina disse Dick, empilhando a lenha partida sobre um monte de hibi

scos apodrecidos. Passa-me o isqueiro. Obteve uma pequena fasca e soprou sobre a mecha, semelhante a olo tal como o r epresentam as velhas cartas holandesas que cheiram a "schiedam" e a rap. Logo o f ogo ardeu, e ele amontoou uma profuso de pedaos de madeira, porque combustvel no fal tava e ele queria cozinhar frutos da rvore do po. Os frutos da rvore do po variam de tamanho segundo a sua idade e de cor segund o a estao. Os que Dick preparava eram do tamanho de pequenos meles. Dois bastavam p ara a refeio de trs pessoas. Eram verdes e cheios de bossas no exterior e faziam pe nsar mais em cidras no maduras do que em po. O menino os ps sobre as cinzas, exatamente como se faz com batatas, em breve, eles incharam, expelindo pequenos jatos de vapor, em seguida se abriram, e a su bstncia branca do interior fez-se visvel. Ele os cortou, tirou o miolo, que no se p ode comer, e a fornada ficou pronta. Durante esse tempo, Emelina trabalhava sob a sua direo. Havia na laguna, da me sma forma que em vrias lagunas dos trpicos que me so conhecidas, um peixe que eu no poderia chamar de outra forma seno de arenque dourado. Quando est em terra, parece um arenque de bronze, mas quando nada entre os galhos de coral ou sobre os leit os de areia, tem reflexos de ouro brunido. to bom de comer como bonito de olhar, e Emelina cozinhava vrios deles, atravessados por um bambu. A gordura dos peixes impedia que o bambu se carbonizasse. Produziam-se s vezes incidentes, quando, por exemplo, um peixe caa no fogo. Dick, ento, saudava essa desgraa com interjeies zombe teiras. A menina fazia um lindo quadro, assim ajoelhada como estava, a saia que lhe cingia os rins dava idia de uma pequena toalha de banho; com a fisionomia atenta, ela apertava os lbios sob as radiaes da fogueira. Est to quente! gemeu ela, depois da primeira catstrofe. Por certo que h de estar quente replicou Dick se tu te paras contra o vento d a chama. Quantas vezes Paddy j te disse que preciso ficar a favor do vento? Eu nunca sei qual o lado confessou Emelina, cujo temperamento era absolutame nte refratrio s questes prticas e que no podia nem nadar, nem remar, nem pescar, nem mesmo lanar uma pedra, embora estivessem na ilha h mais de vinte e oito meses. Queres dizer que no sabes donde vem o vento? Sim, eu sei. Pois bem, esse que o lado a favor do vento. Eu no sabia. Pois de agora em diante ficas sabendo. Sim, agora eu sei. Ento vem para o lado do vento. Por que no pediste explicao antes? Eu perguntei um dia ao Senhor Button e ele me respondeu uma poro de coisas, qu e se um navio ficasse no vento ia dar contra os rochedos e por isso era preciso saber retirar-se a tempo do vento e que, mesmo assim, muita gente vivia de brisa e que as mulheres eram cata-ventos, uma poro de coisas que no entendi direito. Paddy! chamou Dick, parando de abrir a sua fruta. Responderam-lhe os ecos do seio dos coqueiros, mas nada mais se ouviu. Ora! murmurou Dick eu no vou esper-lo. Com certeza ele foi ver as redes que ar mou para a noite! Deve ter ficado a dormir por l. Se Emelina honrava Mestre Button como um semi-deus, Dick no tinha iluses a seu respeito. Admirava a Paddy porque este sabia faz-los trepar nos coqueiros e util izava sua habilidade de marinheiro em diversos sentidos no menos admirveis, mas el e sentia os limites intelectuais do seu velho amigo. Assim, bem que eles podiam ter batatas, se, em lugar de com-las todas, tivessem semeado algumas. Jovem como era, Dick reconhecera a gafe. Emelina no o notara, pouco se importava ela com bat atas, mas poderia dizer a cor de todos os pssaros da ilha. E, depois, tendo a casa necessidade urgente de reparaes, Mestre Button prometi a cada dia comear no dia seguinte e, no outro dia, ficava ainda para o dia seguin te. As necessidades da vida eram estimulantes para o esprito ativo e empreendedor do menino, mas, contrariado pelo "quem importsmo" de Paddy, ele se impacientava. Descendia ele de homens que tinham criado as mquinas de coser e de escrever, Mestre Button provinha de um povo conhecido por suas baladas, seu corao terno e se u usque. Era toda a diferena que entre eles havia.

Paddy! chamou ainda o menino, quando acabou de comer. Al! Paddy! Onde ests? Eles puseram-se escuta, mas tudo continuou silencioso. Um pssaro de plumagem vistosa voou acima deles; um lagarto correu sobre a terra sonora, o vento murmur ou no cimo das rvores, mas Mestre Button no respondeu. Dick atravessou a mata a correr, foi at o paletvio onde costumavam amarrar o b arco, em seguida voltou. O barco est no lugar disse ele onde diabo se ter metido o Paddy? No sei respondeu Emelina, que experimentava uma sensao de desamparo. Vamos para o morro. Talvez o encontremos l. Eles subiram a colina, atravs do mato, e passaram pela fonte. De tempos a tem pos, Dick chamava e os ecos devolviam a sua voz. Eram ecos do bosque espesso, es tranhos e como que unidos. Ou ento um bando de pssaros fugia, numa revoada. A pequ ena cascata murmurava, e as grandes folhas de bananeira estendiam a sua sombra. Vem, Emelina continuou Dick, desacorooado. Eles rodearam o cimo da colina, onde o grande rochedo projetava a sua sombra . Soprava a brisa matinal, o mar reverberava, os recifes ofuscavam a vista, as p almas da ilha ondulavam como flamas verdes. Como que uma profunda respirao se elev ava do seio do Pacfico. Qualquer furaco para alm das ilhas dos Navegadores ou do ar quiplago Gilbert vinha repercutir ali no pra-choque dos recifes. Em nenhuma parte do mundo se poderia encontrar tal combinao de esplendor estival e de frescura, de fora e de beleza. A pequenez da ilha constitua talvez o seu encanto e perfeio. Dir-se-ia uma corb elha de folhagem e de flores, a brilhar, multicolorida, no meio do verde e do az ul. De sbito, Dick, que estava de p sobre o rochedo, ao lado de Emelina, apontou p ara o recife, perto da abertura do canal: L est ele! guirlanda de flores/ 21

Distinguia-se, sobre o recife, um vulto estendido perto do barril. Ele est dormindo observou Dick. Da praia, no pensara ele em olhar para os recifes, seno j o teria avistado. Dick! Que h? Como foi que ele pde ir at l, se o barco est amarrado rvore? No sei. S o que sei que ele l est, agora. Vamos at l, de barco, para acord-lo. ou dar um grito na orelha dele e tu hs de ver o salto que ele d. Desceram do rochedo e voltaram pelo mato. Ao longo do caminho, Emelina, colh endo flores, comeava a tecer guirlandas. Alguns hibiscos vermelhos, algumas campnu las, um par de papoulas desmaiadas, com hastis felpudos e um perfume amargo. Por que fazes essas coisas? perguntou Dick, que considerava aquela mania de Emelina com uma mistura de piedade e desgosto. Eu vou coloc-la na cabea do Senhor Button; e quando tu lhe gritares no ouvido, ele pular com a sua guirlanda. A idia desta farsa fez Dick danar de prazer, e seu esprito admitiu por um momen to a utilidade de coisas to simples como coroas de flores. O barco repousava sombra do paletvio, com a amarra ligada a um dos galhos que pendiam sobre a gua. Esses rizforos anes projetavam para o solo ramos lisos como c orrimos de escada. A rvore formava um bom abrigo para a pequena embarcao, protegendo -a a um tempo dos possveis pilhadores e do sol. Para maior segurana, Paddy mergulh ava de vez em quando o barco na gua pouco profunda. Sendo o barco bastante novo a o principiar esta histria, poder-se-ia esperar que durasse muito ainda. Entra ordenou Dick a Emelina, puxando a amarra, de maneira que a proa do bar co viesse a tocar na terra. A menina entrou com precauo e foi sentar-se atrs; Dick seguiu-a, impulsionou o barco e tomou os remos. Um instante depois o barco flutuava em plena gua. Dick remava sem rudo, com medo de despertar o homem que dormia. Ele lanou a am arra sobre o pilar de coral que a natureza ali parecia haver colocado de propsito ; trepou para o recife e, deitado por terra, conseguiu trazer o barco para a are

ia, de modo que Emelina pudesse descer. Ele no tinha sapatos, a planta de seus ps tornara-se como um couro. Tambm Emelina no tinha sapatos, mas a sola de seus ps continuara sensvel; , de re sto, o caso das pessoas nervosas; e ela caminhava delicadamente, escolhendo os l ugares melhores e levando a coroa na mo direita. A mar era alta, e o impetuoso marulhar das vagas sacudia o recife era mais ou menos como numa igreja, quando o organista toca o trecho mais grave e profundo o solo e o ar abalam-se, muros e abbadas fremem. O vento trazia os borrifos do mar, e o clamor melanclico das gaivotas evocava o grito de marinheiros fantasmas manobrando as drias do sonho. Estendido sobre o lado direito, Paddy parecia mergulhado num profundo sono, o rosto escondia-se no brao direito curvado, sua mo esquerda, morena e tatuada, ja zia sobre a coxa esquerda, com a palma para o ar. No trazia chapu, e a brisa agita va os seus cabelos grisalhos. Dick e Emelina aproximaram-se na ponta dos ps. Ento Emelina, a rir, lanou a sua guirlanda de flores sobre a cabea do velho, e o menino, ajoelhando-se, gritou-lh e no ouvido. Mas o homem adormecido no se moveu, no agitou nem mesmo um dedo. Paddy repetia Dick acorda, acorda! Ele puxou-lhe o ombro at que o corpo tombasse sobre o dorso. Os olhos estavam vidrados, a boca pendia, aberta. E, de dentro da sua boca, escapou-se um carang uejo, que deslizou pelo queixo e desapareceu no meio do coral. Emelina deu um grito e teria cado se seu primo no a amparasse em seus braos. Um lado da face de Paddy estava destrudo pelas larvas dos rochedos. Dick fixou aquela terrvel coisa que estava ali estendida, com os braos em cruz . Ento, louco de terror, ele arrastou a menina at o barco. Esta se debatia, arquej ava e sufocava, como uma pessoa que se est afogando na gua gelada. Dick no tinha seno um pensamento, fugir, fugir... no importava para onde... Ento, desamarrou a canoa. Se o recife se houvesse subitamente inflamado, ele no teria feito mais esforos para escapar e para salvar a sua companheira. Um instante depois, vagavam ambos sobre a laguna, ele remava com todas as su as foras. Ele no sabia o que tinha acontecido, mas no parava para refletir. Fugia daquel e horror, um horror sem nome, enquanto Emelina, a seus ps, com a nuca apoiada con tra a platiborda, muda, os grandes olhos abertos, olhava o cu azul, como se qualq uer coisa medonha l estivesse desenhada. O barco rangeu sobre a areia branca, e o movimento da mar montante lanou-o de lado. Emelina, perdendo os sentidos, tombou para a frente. sozinhos!/22 O pensamento da vida futura deve ser inato no esprito humano. Durante aquela noite terrvel, as crianas ficaram aconchegadas uma contra a outra na sua pequena h abitao. Seu grande terror era de que lhes aparecesse de um momento para outro o se u velho amigo. Eles nada falaram a respeito. Acontecera-lhes um acidente espantoso. Uma cats trofe terrvel tombara sobre o mundo. Mas eles no ousavam comunicar um ao outro as suas impresses. Deixando a canoa, Dick tinha levado a menina at a sua casa. L ficou escondido com ela. Passou-se o dia e veio o crepsculo, logo seguido das trevas. Sem tocar e m nenhum alimento, Dick cercou sua prima de cuidados, suplicando-lhe que no tives se medo e prometendo que velaria por ela. Mas nenhuma palavra sobre aquilo que, para eles, no tinha nome nem precedentes. Eles tinham tocado a morte real e nua, a morte que nenhuma religio velava e que no vinha enfeitada pelas teorias dos sbios e dos poetas. Eles no conheciam a filosofia que no-la mostra como a sorte comum dos vivos e a conseqncia natural do nascimento, eles ignoravam a religio que no-la representa como o umbral de uma outra vida. O cadver de um velho marinheiro, estendido sobre um rebordo de coral, como um a carcaa apodrecida, as pupilas vazias e vtreas, uma boca aberta, que, outrora, di

zia palavras alegres e consoladoras, e de onde, agora, s saam caranguejos! Eis a obsesso que os perseguia. Eles no discutiam sobre isso, e, embora aterro rizados, eu creio que o seu silncio vinha no do medo, mas antes de um vago sentime nto de que o que tinham visto era obsceno e impossvel de contar. O catecismo de Lestrange resumia-se assim: um Deus bom, que se ocupava do mu ndo. Resolvido, tanto quanto possvel, a excluir do seu esprito o demnio, o pecado e a morte, ele apenas lhes ensinara que um Deus perfeito velava sobre o universo, mas sem explicar como esse Deus os castigaria durante a eternidade, se eles no a creditassem nele ou no obedecessem a seus mandamentos. Esta noo do Criador no era seno um meio-conhecimento e a mais vaga das abstraes. M esmo que tivessem sido educados numa severa escola calvinista, esta teologia no o s teria consolado naquele momento. A crena em Deus no um apoio para uma criana assu stada; ensinai-lhe, como a um papagaio, quantas oraes quiserdes, mas, no desamparo ou nas trevas, o seu apelo ser para a sua ama ou para a sua me. Durante aquelas horas terrveis, as pobres crianas no podiam achar em todo o inf inito da criao outro consolo a no ser em si mesmas. Emelina sentia-se sob a guarda de Dick, o qual bem sabia que era, desde ento, o seu protetor. A varonilidade do menino, maior e mais bela que a fora fsica, desenvolveu-se naqueles cruis instantes como uma planta que, sob circunstncias extraordinrias, se apressa em florescer. Pela aurora, Emelina descansou; quando, pela sua respirao regular, Dick se cer tificou de que ela dormia, saiu da habitao e dirigiu-se para a praia. A aurora comeava a dealbar e a brisa soprava do oceano. Na vspera, Dick tinha levado o barco para a terra com mar alta; a gua, retirand o-se, deixara-o sobre a areia. Agora, o mar tornava a subir, e o pequeno barco e stava em breve a flutuar. Emelina, durante a noite, suplicara a Dick que a levasse, que a levasse para qualquer parte, desde que fosse longe dali; ele jurou que o faria, mas sem sabe r como havia de cumprir tal promessa. Ele olhava a praia desolada, estranhamente diferente da vspera, e procurava o meio de cumprir sua palavra. Foi at o local onde o pequeno barco repousava sobre a areia, com o casco lamb ido pelas guas. Todos os seus tesouros, constitudos de velhas roupas, velhos sapatos, mil peq uenos nadas, amontoavam-se ao abrigo de uma palmeira. O precioso fumo cosido num pedao de tela, a caixa com agulhas e linha, tudo aquilo estava oculto num buraco aberto na areia e protegido do sereno pela vela trazida do "Northumberland". Agora, o sol surgira por detrs das ondas e os grandes coqueiros murmuravam so b a brisa cada vez mais forte. mudana /23 Dick transportou todas as suas posses para a canoa. Tomou a vela de estai e o mais que podia ser til. Depois de haver tudo arrumado ao fundo do barco, encheu o barril com gua da fonte; em seguida, encontrando os restos do almoo da vspera, q ue ele havia posto entre duas folhas de areca, colocou-os tambm no barco. A gua estava bastante alta para que, ajudado de um esforo, o barco pudesse flu tuar. Dick voltou para levar Emelina, ela dormia um sono to profundo, que no se ac ordou quando ele a agarrou e a deps delicadamente popa do barco, com a cabea sobre a vela enrolada; depois, de p na proa, impeliu o barco com um remo. Virando a proa do barco para a esquerda da laguna, ele remou costeando a ter ra, mas, ainda mesmo que a sua vida disso dependesse, no pde evitar de erguer os o lhos para o recife. Havia um grande ajuntamento de pssaros em torno de uma mancha sobre o coral branco. Alguns pareciam enormes, e a brisa trazia os seus gritos agudos; disputavam, agitando as asas no ar. Dick virou a cabea, at que uma curva d a margem lhe ocultou vista aquela cena. Mais abrigados desse lado que diante da passagem do canal, os artus ali cres ciam at a beira d gua, e as rvores de fruta-po estendiam sobre as ondas a sombra de su as grandes folhas denticuladas. As moitas das clareiras, as rvores de canela, os cacaueiros, tudo aquilo fugia, tomado de vertigem, enquanto, margeando a praia, o barco avanava na laguna.

Sem o longnquo atro do Pacfico, poderia supor-se estar sobre um lago tranqilo, e mesmo o rumor do oceano, em vez de destruir essa impresso, lhe dava um encanto e stranho. Um lago, em meio do oceano, eis a imagem da laguna. Coqueiros miravam seus t roncos esguios refletidos na seda azul e desenhavam suas silhuetas sobre a areia , que se estendia a uma braa de fundo. Dick costeou a margem o tanto quanto possvel, a fim de aproveitar da sombra. Desejava um bom local para ali erguer definitivamente a sua tenda. Mas as clarei ras, embora muito lindas, no ofereciam conforto, tinham muitas rvores, ou ento as m oitas eram demasiado altas. Ele desejava ar e espao e, de repente, encontrou o se u sonho. Dobrando um pequeno cabo abrasado pela prpura dos cacaueiros selvagens, o bar co penetrou num novo mundo. Diante dele estendia-se um grande lenol do azul mais plido, frisado pelo vento e um fargo tabuleiro de relva descia at as guas, bordado de cada lado por bosques profundos. Acima do verde imvel das rvores de fruta-po, as palmeiras agitavam os seus leques. O desmaiado da gua era devido aos baixios; el a era, com efeito, to pouco profunda, que se podiam perceber as manchas escuras d os corais apodrecidos. O recife estava a mais de meia lgua distante, o suficiente , parecia, para que sua influncia ficasse para sempre anulada. Ali, a laguna dava a impresso de um mar largo e contnuo. Dick apoiou-se sobre os remos, deixando flutuar o barco e examinando a paisa gem. Tinha remado quatro milhas e meia e achava-se agora atrs da ilha. E, tendo o barco tocado a terra, Emelina acordou, sentou-se e olhou em derredor. livro 2/primeira parte sob o artu/1 Sobre o relvado, via-se uma pequena casa encravada entre um artu de tronco q uadriculado e uma frondosa rvore de fruta-po. Ela no era maior que um galinheiro, m as, naquele clima de eterno vero, era suficiente para duas pessoas. Construda de b ambus, com um duplo teto de folhas de areca entranada, era to bem feita que podiam tom-la por uma obra-prima de hbeis operrios. A rvore de po era estril, s vezes esses vegetais cessam de produzir, por uma mis teriosa razo conhecida apenas da natureza. Agora estava verde, mas quando sofria sua mudana anual, as grandes folhas festo nadas tomavam incrveis coloraes de ouro, d e mbar e de bronze. Alm do artu havia uma pequena clareira, que tinham cuidadosamente capinado pa ra plantarem taros. Diante da porta estendia-se o relvado e, sem a natureza tropical da vegetao, j ulgar-se-ia a gente nalgum parque ingls. direita, a vista se perdia na mata, onde se ostentava toda a gama dos verdes e onde as moitas de cacaueiros selvagens fulgiam como bagas de azevinho. A habitao tinha uma entrada sem porta, e a folhagem da rvore do po fornecia-lhe um segundo teto, precioso na estao das chuvas. Interiormente, era assaz desnuda. E rvas secas e odorantes tapizavam o cho. Dois pinos de vela enrolavam-se de cada l ado de entrada e, subir um grosseiro aparador fixo parede, enfileiravam-se meias feitas de cascas de coco. Evidentemente, os proprietrios s a habitavam de noite, para se protegerem do sereno. Perto da entrada, estava uma moa sentada sobre a relva, e os raios do sol do meio-dia banhavam-lhe os ps nus. Parecia ter quinze ou dezesseis anos, uma pequen a saia de pano listado descia-lhe at os joelhos, cobrindo parte da sua nudez; um fio de liana elstica lhe prendia os cabelos negros e uma flor vermelha, colocada como uma caneta de guarda-livros, ornava a sua orelha direita. Pequenas sardas s alpicavam seu rosto encantador, sobretudo em torno dos olhos, que eram de um gri s azulado, profundo e tranqilo. Ela se apoiava sobre o cotovelo direito, enquanto por perto dela passeava um pssaro de plumagem azul, de bico vermelho e olhos bri lhantes e curiosos. Era Emelina Lestrange. Ela dava de comer ao passar o contedo de uma casca de coco. Dick recolhera aquele lindo voltil no bosque, pequeno ainda, abandonado de sua me e quase morto de fome. H dois anos que eles o criavam e o bicho fazia parte

da famlia. De noite, ele se empoleirava sobre o teto, nunca se afastava muito e aparecia regularmente hora das refeies. Emelina estendeu-lhe a mo e o delicioso animal trepou para o seu dedo, mergul hando a cabea em seus ombros e lanando o grito que formava todo o seu vocabulrio e ao qual devia o seu nome. Koko! indagou ela onde est Dick? O pssaro virou o pescoo para todos os lados, como para procurar o seu dono. De pois Emelina, conservando-o sempre sobre o seu dedo, como uma jia de esmalte que quisesse admirar um pouco mais de longe, tornou a deitar-se caprichosamente sobr e a relva, rindo e conversando com o pssaro. Formavam assim um belo quadro, sombr a cavernosa da rvore do po. Era difcil compreender que evoluo havia transformado a simples e pequena Emelin a naquela mulher de to harmoniosas formas, e to maravilhosamente bela. A transform ao esttica era sobretudo notvel depois dos ltimos seis meses... metade criana, metade selvagem/2 Cinco vezes passara a estao das chuvas aps a tragdia do recife. H cinco longos an os que as ondas murmuravam e as gaivotas gritavam em torno do esqueleto cujo mis trio tinha traado uma intransponvel barreira atravs da laguna. As crianas no tinham mais voltado a seu antigo acampamento; sua vida se desenr olava no lado oposto da ilha; a mata, uma parte da laguna e do recife constituam para eles um mundo suficientemente vasto e belo, mas onde no tinham nenhum socorr o a esperar da civilizao, porque dos poucos navios que poderiam tocar a ilha duran te o curso dos sculos, nenhum talvez exploraria a laguna e a mata. Dick, no entretanto, de tempos a tempos, fazia uma excurso de barco at sua ant iga terra de adoo, mas Emelina sempre se recusava a acompanh-lo; ele l ia principalm ente para colher bananas, pois a ilha possua um nico bosque de bananeiras, situado perto da fonte, no local onde tinham descoberto os velhos crnios e o pequeno bar ril. A menina jamais se refizera completamente do drama, cujo significado apenas vagamente compreendia. No experimentava seno horror pelos lugares que foram teatro da catstrofe; quanto a Dick, ao contrrio, o grande medo que ele sentira a princpio se dissipara com o tempo. Durante aqueles cinco anos, tinha ele construdo sucessivamente trs casas e pla ntara um canteiro de taro. Conhecia todas as bacias dos recifes, a duas milhas e m cada sentido, bem como os seus habitantes, e, embora no soubesse os nomes deste s ltimos, tinha estudado a fundo os seus hbitos. Viu coisas espantosas nesse lapso de tempo, desde uma batalha entre uma baleia e dois tubares, que se travou fora dos recifes e que durou uma hora, tingindo as vagas de sangue, at o envenenamento dos peixes da laguna, produzido pelo excesso de gua doce, trazida numa estao exces sivamente chuvosa. Sabia os bosques de cor, como os diferentes aspectos das vidas que neles se agitavam: borboletas, falenas, pssaros, lagartos, insetos estranhos e orqudeas ext raordinrias, algumas das quais, repugnantes, pareciam carne putrefata, ao passo q ue outras eram magnficas e fantsticas. Encontrou meles e goiabas, frutos de rvores do po, mas vermelhas de Taiti, grande s ameixas do Brasil, grande quantidade de taro, e uma dzia de outros legumes ou f rutos, mas do lado em que moravam ultimamente no havia bananas, e isso o tornava infeliz. Emelina interrogara Koko a propsito de Dick, apenas para dar-se ao prazer de ver o pssaro responder sua maneira, mas sabia muito bem que ele estava ali perto, pois o ouvia agitar-se derrubando canios. Ao cabo de alguns minutos, Dick aparec eu, arrastando dois deles, recentemente cortados, e enxugando, com o brao nu, o s uor de sua fronte. Estava apenas vestido de um velho par de calas encontrado no " Shenandoah". Mas sob o ponto de vista esttico, ele valia a pena ser observado. Al to e bronzeado, parecia antes ter dezessete anos do que dezesseis, com uma expre sso viva e ousada, metade criana, metade homem, um ser meio civilizado, meio selva

gem, tendo progredido e retrogradado durante aqueles cinco anos de vida rstica. D eps os canios perto de si, e sentou-se ao lado de Emelina examinando o gume da vel ha faca de aougueiro de que se servia; depois, tomando um dos canios, comeou a enta lh-lo. Que que tu ests fazendo? perguntou Emelina, dando liberdade ao pssaro, que a a proveitou para ir empoleirar-se num dos galhos do artu e ali ficar, como uma tur quesa encravada em esmalte verde. Um arpo replicou Dick. Sem ser taciturno, ele raramente desperdiava as suas palavras. A existncia era -lhe uma ocupao contnua. Falava sempre laconicamente com a sua prima e adquirira o hbito de interpelar as coisas inanimadas: o arpo que talhava ou o vaso que esculpi a numa casca de coco. Mesmo na sua infncia, Emelina nunca fora muito expansiva, um qu de reserva e d e mistrio pairava sobre a sua personalidade. Seu esprito parecia perpetuamente mer gulhado no crepsculo, perdido pelos campos da abstrao ou a errar no pas das quimeras . O que por l encontrava, ningum o sabia, e ela talvez menos que os outros. As con versas de ambos referiam-se quase que exclusivamente a seus atos quotidianos. Muitas vezes Dick resmungava entre dentes como quem sonha mas, se a gente pu desse surpreender suas palavras, veria que elas apenas se relacionavam a bagatel as do momento. Unicamente ocupado com a hora presente, ele parecia ter esquecido o passado, to completamente como se este nunca houvera existido. No entretanto, punha-se a devanear s vezes. Durante uma hora, ficava ele de bruos sobre um roched o, a contemplar os seres esquisitos que se agitavam na laguna, ou ento, sentado n o bosque imvel como um deus de pedra, ele observava os pssaros e os lagartos rpidos . Os pssaros se lhe aproximavam de tal modo, que poderia facilmente peg-los, mas e le nunca lhes fazia mal e no intervinha de nenhum modo na vida selvagem da mata. Para ele, como para Emelina, mas sob um ponto de vista diferente, a ilha, a laguna, e os recifes constituam os trs volumes de um grande livro de imagens. Na a lma da moa, a cor e a beleza ambientes respondiam a uma necessidade misteriosa. S ua existncia era um longo devaneio, uma esplndida viso, turbada s vezes por sombras. Atravs dos espaos azuis e coloridos que eram os meses e os anos, ela podia ver, c omo por um vidro opaco, o "Northumberland" fumando contra o fundo de bruma, a fi sionomia de seu tio, Boston, uma imagem vaga e sombria sob uma tempestade e, mai s perto, o trgico cadver estendido sobre o recife. Ela, no entanto, nunca falava de tais coisas a Dick. Tinha outrora ocultado o contedo da caixa, bem como o seu desespero quando a perdera, agora ela guardava para si os seus pensamentos. De tudo aquilo nascia um vago terror, que a perseguia incessantemente: o med o de perder Dick, de v-lo esvair-se como um sonho, assim como tinham passado Mada me Stannard, seu tio, as pessoas conhecidas de Boston e aquele outro, o ltimo que desaparecera, e de modo to terrvel. Que aconteceria, se lhe tomassem Dick? Esse medo, um pouco pessoal, vinha-a atormentando ultimamente: em realidade, ela temia a solido numa ilha deserta. Mas , naqueles ltimos tempos, o seu pavor tornara-se mais lancinante. Dick transforma va-se para ela, e ela temia por ele, sua prpria personalidade fundira-se com a de seu primo. A idia de viver sem ele era-lhe inconcebvel e o medo continuava como u ma nuvem no azul. s vezes sua angstia tornava-se cruciante. Naquele dia, por exemplo, em que Dick fabricava os arpes, a angstia aumentara, como se um perigo, desde a noite, os estivesse a espiar, de perto. Entretanto, nenhuma sombra obscurecia o cu nem o mar, o sol brilhava sobre as rvores e as flor es, o vento do oeste trazia, como um acalanto, a longnqua melodia dos recifes. Ne nhum sinal suspeito justificava aquela inquietude. Terminado o arpo, Dick levanto u-se. Aonde vais? perguntou Emelina. Ao recife. A mar est baixando. Eu irei contigo. Ele guardou a faca em casa e saiu, trazendo o arpo numa das mos e na outra uma liana de cerca de meia toesa, destinada a atar os peixes, se a pesca fosse abun dante. Desceram pelo relvado at a laguna, onde se encontrava o barco, preso a um pau fincado no cho. Emelina entrou, e Dick, tomando os remos, impeliu o barco. A

mar baixava. J se disse acima que naquele ponto os recifes ficavam muito afastados da marg em, a laguna, pouco profunda, poderia dar vau com a mar baixa, se no houvesse poos d gua, verdadeiras armadilhas de dez ps de profundidade, disseminados no coral apodr ecido, sem falar nas actnias, que picavam como urtigas. Encontravam-se ali outros perigos: as bacias tropicais esto cheias de selvagens surpresas em matria de vida e de morte. H muito tempo que Dick conhecia as sondagens da laguna, ele possua felizmente esse sentido especial da direo, que o guia mais seguro do caador e do selvagem, poi s, com a disposio dos corais, a gua formava avenidas, das quais apenas duas conduzi am da margem ao recife, seguindo as outras, mesmo com um barco de pouco calado, corria-se o risco de ficar preso a meio caminho. Pouco a pouco o rudo dos escolhos se acentuou e a brisa lhes trouxe o eterno e montono grito das gaivotas. J a praia parecia muito afastada, e a angstia da solido os invadiu. Mas o recif e estava ainda mais desolado. Dick amarrou o barco a uma projeo de coral e ajudou Emelina a descer. O sol ba ixava para o poente, a mar estava j na metade de seu descenso, e grandes bacias de gua quieta reverberavam ao sol como escudos de estanho polido. Dick, com o preci oso arpo ao lado, sentou-se tranqilamente borda do coral e comeou a despir a sua nic a vestimenta. Emelina voltou a cabea, contemplando a praia, que parecia trs vezes mais afast ada do que na realidade. Quando ela olhou para Dick, este corria, beirando a ressaca e seu vulto se d estacava, com o arpo, contra a espuma fulgurante. Emelina o viu agachar-se, agarrando-se a uma ponta de coral, enquanto as ond as saltavam em torno dele, depois ergueu-se, fungou como um co, e tornou a agacha r-se, arpo em punho, com o corpo luzente d gua. s vezes o seu grito se confundia com a melopia das vagas e os gemidos dos goel anos. Emelina via-o ento mergulhar o arpo e ergu-lo, com qualquer coisa que brilhav a e se debatia na ponta. Ali, sobre os recifes, o seu carter diferia completamente do que era em terra , o ambiente despertava em sua alma a crueldade do homem primitivo. Ele matava p elo simples prazer de matar, destruindo mais peixes do que o necessrio. o demnio do recife/3 O romance do coral ainda est por escrever. Subsiste ainda essa opinio to difundida de que os recifes e ilhas de coral ser iam obra de um industrioso bichinho. Este fabuloso entezinho, dotado do gnio de B runel e da pacincia de J, tem sido irrisoriamente apresentado a vrias geraes de criana s como um admirvel exemplo a seguir. Mas, em verdade, nada mais preguioso, mais lento, mais dado a uma vida fcil e degenerada do que plipo construtor para dar-lhe o seu nome cientfico. Ele o mendig o do reino animal, um mendigo que nem se d ao trabalho de pedir o seu po. Ele vege ta sob a forma dum verme gelatinoso, adquirindo na gua os elementos calcrios indis pensveis para a construo de sua casa. Mas note bem, quem a constri o mar. E o plipo m orre deixando a sua habitao e uma slida reputao do trabalho, diante da qual empalidec em as da formiga e da abelha. Sobre um recife de coral, pisa-se uma necrpole abandonada h sculos pelas larvas , como prova de sua indolncia e de sua existncia aparentemente intil. Poder-se-ia a creditar, da, que o recife construdo de matria morta. Nada disso, e aqui que o caso se torna curioso: uma ilha madrpra meio viva no interior. Se no o fosse, ela no res istiria dez anos ao do oceano. A parte viva do recife limitada ao lugar aonde vm ba ter as vagas e sua superfcie submarina. Expostos ao sol ou descobertos, os gelati nosos construtores de rochedos morrem quase imediatamente. Avanando o mais longe possvel, pode-se perceber, na mar baixa, as madrporas viva s massas semelhantes ao granito formam a colmia de coral e seus escaninhos, cujas clulas os plipos habitam. As regies superiores, geralmente vazias, so os cemitrios,

as mais baixas so as cidades vivas. Incessantemente mortos e substitudos, devorado s pelos peixes, atacados pelas vagas eis a existncia dos recifes de coral. Eles so to vivos como uma couve ou uma rvore. Cada tempestade quebra-lhes pedaos, que o co ral vivo regenera, feridas abrem-se e cicatrizam como num corpo humano. No existe talvez nada mais misterioso na natureza do que esse dique vivo, que repara as suas brechas por si prprio e resiste por sua prpria fora ao eterno embat e do mar. Ficamos estupefatos ao considerar a extenso de um desses atis em luta pe rptua com as vagas. Diversamente da ilha onde se passa essa narrativa (e que uma terra central c ercada de uma barreira de coral ou recife circular, tendo, entre ambas, certa ex tenso de mar calmo e pouco profundo, a laguna), o prprio recife que forma a ilha: o recife pode ser coberto de rvores ou quase estril, ou ainda dividido em ilhotas, algumas das quais podem surgir no lagoo, mas este, geralmente, um lago vazio, co m fundo de areia e de coral, habitado por uma fauna especial, ao abrigo das vaga s. Se refletirmos em que o atol palpita, que ele constitui uma unidade orgnica, um todo to vivo como uma tartaruga, embora menos superiormente organizado, no pode mos deixar de ficar impressionados ante a imensidade de semelhante estrutura. O atol de Vliegen, no arquiplago polinsico, mede, de uma borda interior outra do lagoo, sessenta milhas de comprimento sobre vinte milhas de largura mxima. Nas ilhas Marshall, Rimsky Korsakoff tem cinqenta e quatro milhas de comprimento sobr e vinte de largura. E Rimsky Korsakoff uma coisa viva, com suas secrees, suas excr ees, seu contnuo crescimento, uma coisa cuja organizao muito mais complicada que a do s coqueiros que crescem sobre o seu dorso ou a das flores de seus bosques. A histria do coral a de cem mundos, e o captulo mais longo da sua histria aquel e que trata das variedades e das formas infinitas do coral. beira do recife, no lugar de onde Dick arpoava os peixes, podia-se ver sob a s guas uma rocha coberta de uma espcie de limo rosa-plido. Era uma variedade de cor al. E nas bacias ao longo do mar havia outros espcimes daquele mesmo tom de flor de pessegueiro. A menos de cem metros de Emelina, as bacias continham-nos de out ras cores, desde o vermelho de laa at o branco de alabastro, mas as formas mais ex travagantes achavam-se atrs dela, na laguna. Dick, depois de ter arpoado vrios peixes, deixou-os sobre o recife, para carr eg-los mais tarde. Fatigado de matar, ele passeava, examinando as diversas criatu ras que ia encontrando, enormes lesmas da forma e da grossura de pepinos ali hab itavam, havia medusas globulares, semelhantes a laranjas, do tamanho de laranjas , estranhos ossos de peixes, chatos, brilhantes e brancos, dentes de tubaro, espi nhas dorsais de ourios marinhos, s vezes um escaro morto, com o estmago dilatado pe los pedaos de coral de que se alimentara. Caranguejos, ourios marinhos, algas de c olorido e desenho espantosos, estrelas-do-mar, umas pequenas, coloridas como pim entas de Caiena, outras gigantescas e plidas. Todas essas coisas e centenas de ou tras, esplndidas e fantasistas, se encontravam sobre os recifes. Abandonando o arpo, Dick explorava uma bacia profunda, em forma de banheira, entrou at os joelhos e ia mergulhar mais, quando se sentiu preso por um p. Era com o se tivesse pisado numa armadilha cuja mola fortemente se fechara. Deu um grito de dor e de medo e eis que de repente a corda de um ltego enlaou-lhe o joelho esq uerdo, distendeu-se e manteve-o firme. o que a vasa ocultava / 4 Emelina tinha quase esquecido a Dick naqueles ltimos momentos, o sol tocava o horizonte e a sua luz palhetava de ouro as bacias rochosas. hora do poente e da mar baixa, o recife tomava um aspecto particular, tinha o cheiro das algas expos tas ao ar. O mpeto das vagas serenava, o coral era acariciado pela gua constelada de gemas, e o grande Pacfico tornava-se um resplandecente cristal, que avanava sua vemente para a praia, sobre a qual espumava cantando. Ali, como sobre o cimo da colina, do outro lado da ilha, auscultava-se o rit mo das vagas. Elas pareciam fazer: sempre e sempre!... sempre e sempre!... A brisa trazia de mistura os borrifos da gua e os gritos das gaivotas. Esses

pssaros assombravam o recife como almas penadas, sem repousar nunca em parte algu ma, nem jamais interromper a sua queixa, mas, ao crepsculo, o seu gemido parecia mais longnquo e menos triste, talvez porque a essa hora a ilha inteira parecia in undada de paz. Emelina desviou a vista do oceano para olhar a terra atrs da laguna, ela podi a reconhecer a clareira verde, onde se encontrava a pequenina casa aconchegada c ontra o artu e meio escondida pela sombra da rvore de fruta-po. Na mata, as palmas dos grandes coqueiros ultrapassando as outras rvores, recortavam o seu rendilhad o sobre o cobalto sombrio do oriente. Aquele quadro parecia irreal, e mais marav ilhoso do que um sonho. aurora (e Dick partia sempre antes da aurora, se a mar era propcia), a vista e ra talvez ainda mais bela, porque, acima da ilha mergulhada na sombra, e contra um fundo estrelado, os cimos das palmeiras se embebiam da luz matinal. Esta, com o um esprito, atravessava o cu azul, as rvores verdes e a laguna de turquesa, expan dindo-se e como que se encorpando para aflorar a espuma branca e deslizar sobre o mar; ela estendia-se ento, semelhante a uma cauda de pavo que se abre, at que, de repente, a noite se tornasse dia. As gaivotas gritavam, e as vagas coroadas de ouro fremiam, o vento da aurora soprava, e as palmeiras ondulavam como s sabem on dular as palmeiras. Emelina imaginava sempre estar sozinha na ilha com Dick, mas a beleza ali ig ualmente se encontrava, e a beleza uma grande amiga. A moa sentia-lhe o encanto, quando ouviu chamarem-na. Voltou-se vivamente. L longe, Dick, mergulhado at os joe lhos, imvel, com os braos erguidos, pedia socorro. Ela ergueu-se de um salto e ps-s e a correr. Outrora, sobre aquela parte da ilha, tinha havido uma ilhota, um tomo de ilho ta, que consistia nalgumas palmeiras e num punhado de vegetao, talvez fora destruda por alguma violenta tempestade. Fao-lhe aqui referncia, porque sua existncia contr ibuiu indiretamente para a salvao de Dick, visto que nos lugares onde existiram se melhantes ilhotas, subsistem plataformas, feitas de corais aglomerados. Sobre esse fundo rugoso, Emelina, com seus ps nus, no se teria jamais aproxima do a tempo de Dick, se entre ambos no se encontrasse felizmente uma superfcie plan a e comparativamente lisa. Meu arpo! gritou Dick, logo que avistou Emelina. A princpio, pareceu moa que seu primo estava enredado nas saras, depois de supo r ver cordas que se enrolavam em torno do corpo dele. Qualquer que fosse a natur eza da coisa que o retinha ao fundo, a situao era terrvel, horrorosa como um pesade lo. Ela chegou, com a rapidez de Atalanta, extremidade do rochedo onde se encont rava o arpo, avermelhado pelo sangue dos peixes mortos. Quando chegou perto de Dick, empunhando a arma, ela notou, opressa de terror , que as cordas que o enlaavam eram vivas, que elas deslizavam e se enrugavam sob re o corpo do rapaz, uma delas ligava seu brao esquerdo ao flanco, o brao direito continuava livre. Depressa, depressa! gritou ele. Em um segundo Emelina estendeu-lhe o arpo, depois, ajoelhada, fixou, com os o lhos dilatados de horror, o charco de onde emergiam as cordas. Malgrado o seu pa vor, ela estava disposta a lanar-se ali dentro e bater-se com o horrendo ser, qua lquer que ele fosse. A tragdia no durou mais que um instante. Do seio da gua profunda, surgiu uma fa ce lgubre, que procurava magnetizar Dick. Os olhos eram grandes, redondos, imveis e fixos, uma tromba pesada e larga, semelhante a um bico de papagaio, pendia ent re eles, e essa tromba trabalhava, gesticulava, parecia fazer sinais, mas o que petrificava o corao era a expresso dos olhos, de tal modo frios e sinistros, to desp rovidos de paixo e de especulao, e no entanto to carregados de vontade e de fatalida de. De muito longe, das profundezas insondveis, o polvo tinha-se elevado com as gu as, ele se alimentava de caranguejos, quando a vazante o esqueceu no charco. Tal vez adormecido, tinha sido despertado por um ser nu e sem defesa que invadia o s eu leito. Era jovem, e pequeno, como o so os octpodes, mas bastante forte para afo gar um touro. Os polvos no foram reproduzidos seno uma vez em escultura, por um artista nipni

co, essa imagem uma das mais terrveis obras-primas da estaturia, representa um ban hista que acaba de ser atacado. O homem, em delrio, num grito, ameaa com o brao liv re o espectro que o oprime. Os olhos do polvo esto fixos nele, olhos mortos, mas horrveis pela fria intensidade do seu desejo. Uma outra corda saiu do meio de um jato d gua para prender Dick pela coxa direi ta. No mesmo instante, este ltimo mergulhou a ponta do arpo atravs do olho do monst ro, e a enterrou profundamente, varando a carcaa gelatinosa, at que a extremidade do arpo veio, resvalando, quebrar-se contra o rochedo. Ao mesmo tempo o charco se tingiu de tinta e as cordas relaxaram. Dick estava livre. Emelina, precipitando-se, enlaou-o, soluando e apertando-se contra ele, ela o abraava febrilmente. Maquinalmente, ele passou seu brao esquerdo em volta dela, como para proteg-la , mas no pensava em sua companheira. Louco de raiva, lanando gritos roucos, ele me rgulhou o arpo quebrado, vrias vezes, nas profundezas tenebrosas da bacia, procura ndo aniquilar o inimigo que, apenas h um instante, o tinha em seu poder. Ento, lentamente, tornou a si, enxugou a fronte, e olhou o arpo quebrado. Bruto! exclamou. Viste os seus olhos? Viste os seus olhos?! Eu queria que el e tivesse uma centena deles e eu cem arpes para fur-los! Ela apertava-se sempre contra ele, chorando e sorrindo, dir-se-ia que era el e o salvador. O sol desaparecia quase completamente. Dick levou a sua companheira at o luga r onde o barco repousava, em caminho ele enfiou as calas. Ajuntou o produto de su a pesca, e, enquanto atravessava a laguna a remo, falava e ria, rememorando os i ncidentes do combate, tomando toda a glria para si e parecendo completamente esqu ecido do papel desempenhado por Emelina. No era cime ou ingratido, mas simplesmente porque, durante aqueles ltimos cinco anos, tudo, na sua pequena comunidade, se reportava a ele. Ele era o senhor impe rial. Ele no teria pensado em agradecer-lhe por lhe haver alcanado o arpo, da mesma forma que no teria pensado em agradecer sua mo direita por haver mergulhado a arm a no monstro. Quanto a Emelina, inteiramente satisfeita, no desejava nem louvores nem aes de graas: ela era a sua escrava e a sua sombra, ele era o sol. No momento de deitar-se, Dick recordava os pormenores do combate, enumerava os seus feitos, anunciando o que faria num prximo encontro daquela espcie e contin uou falando por muito tempo antes de adormecer, o que teria acabado por tornar-s e fastidioso para qualquer outro ouvinte, mas, para Emelina, era mais interessan te que a Odissia. O esprito humano no progride no sentido intelectual quando se est isolado do mu ndo, mesmo quando se leva a existncia brbara e feliz dos selvagens. Dick, enfim, estendeu-se sobre as ervas secas, cobriu-se com o pedao de flane la listada que servia de coberta e, dentro em breve, estava a roncar como um jus to. Emelina, deitada perto dele, continuou acordada: ela pensava. Um novo terror entrara na sua vida. Ela encontrara a morte pela segunda vez, mas uma morte ati va e combatente. o som de um tambor /5 No dia seguinte, Dick, sombra do artu, com uma linha ao lado, abria uma caix a de anzis. A princpio, continha a caixa duas dzias de anzis de vrios tamanhos, mas a gora apenas restavam seis, quatro pequenos e dois grandes. Era um dos grandes qu e o adolescente fixava sua linha, pois tencionava voltar no dia seguinte ao anti go acampamento para colher bananas e, pelo caminho, pensava pescar na laguna. A tarde avanava e o calor comeava a diminuir. Sentada sobre a relva, perto del e, Emelina segurava a extremidade da linha, enquanto ele retificava os falsos ns. De sbito ela ergueu a cabea. No havia um frmito no ar; salvo o frufru de asas do pssaro pousado sobre o artu , o nico rudo perceptvel vinha dos recifes afastados. De repente, um outro som se j untou ao acalanto das vagas: um leve bater como o de um tambor ao longe. Escuta! disse Emelina.

Dick cessou de trabalhar. Todas as sonoridades da ilha eram familiares; aque la parecia estranha. Ora lento, ora rpido... de onde vinha aquele rufar? Ningum o podia dizer. s vez es parecia vir do mar, s vezes da mata, conforme a imaginao do observador. Dick e E melina escutavam, silenciosos. Nisto um suspiro atravessou os ares: era o vento da tarde que recm nascera. Ele fez tremer as folhas das rvores e, exatamente como se passa a esponja sobre uma imagem traada numa ardsia, o zfiro apagou os rufos do tambor. No dia seguinte, de manh, Dick embarcou na canoa, levando consigo o anzol, a linha e iscas de peixe cru. Emelina ajudou-o a impulsionar o barco e ficou sobre a margem, dando-lhe adeus com a mo, enquanto ele dobrava o pequeno cabo coberto de cacaueiros. As expedies do seu primo eram um dos incmodos de Emelina; ficar assi m sozinha era horrvel, entretanto ela nunca se queixava. Ela vivia num paraso, mas uma secreta intuio lhe dizia que, alm de todo aquele sol, alm daquele esplendor do mar azul e do cu, alm das flores e da folhagem, alm da aparncia amvel da natureza, es preitava, oculto e ameaador, o drago da adversidade. Dick remou durante quase uma milha, depois descansou os remos e deixou o bar co merc da correnteza. A profundidade da gua, ali, dissimulava o fundo. O sol ilum inava o recife, batendo-lhe em diagonal e semeando-o de fascas. O jovem pescador enfiou a isca no anzol e arremessou-o, em seguida amarrou a linha cavilha do remo e, sentado ao fundo do barco, inclinou a cabea por cima da borda, para olhar as guas. Algumas vezes no havia nada a ver, salvo o azul carreg ado da gua; e depois um enxame de cabeas em forma de flecha atravessava do crculo v isual de Dick e desaparecia, pois vinha em sua perseguio qualquer coisa que se ass emelhava a uma barra de ouro. Ento um grande peixe se materializava e flutuava na sombra do barco, imvel, salvo o movimento de suas guelras. Um instante depois pa rtia, com um golpe de cauda. De sbito, o barco se inclinou e teria virado se Dick no se achasse do lado opo sto quele de onde pendia a linha, depois o barco tomou o prumo, a linha se estend eu algumas braas alm, a superfcie da laguna se agitou como se a batessem por baixo com um basto de prata. Um albicora acabava de morder. Atando a extremidade da lin ha a um remo, Dick destacou-a da cavilha onde estava presa, e lanou o remo gua. El e fez tudo isso com maravilhosa rapidez, enquanto a linha estava ainda frouxa. U m instante depois, o remo corria sobre a superfcie da laguna, ora na direo dos reci fes, ora na da praia, flutuando no nvel ou mergulhando por uma extremidade; mergu lhava completamente, desaparecia um momento, depois reaparecia. Era uma divertida comdia, porque o remo parecia dotado de uma vida demonaca e animado de um desejo de destruio; a mais inteligente, a hbil das criaturas vivas no teria melhor combatido o grande peixe. O albicora debatia-se freneticamente, pro curando talvez atingir o mar alto, para desembaraar-se de seu inimigo; ele parava perplexo, ia de um lado para outro, depois investia energicamente rumo laguna p ara voltar da mesma maneira. Procurando as profundezas, ele arrastava os remos a algumas braas debaixo d gua; em seguida, em busca d gua, saltava ao sol como um cresce nte de platina e o rudo que fazia ao retombar repercutia por entre as rvores que b ordavam as encostas. Passou-se uma hora antes que o monstro manifestasse sinais de fraqueza. At ali a batalha tivera lugar perto da margem, mas em seguida o remo derivou sobre o lenol d gua e lentamente descreveu grandes crculos que, no azul sereno, se to rnaram pequenas vagas orladas de ncar. Dick, manejando o remo que restava, aproximou-se e puxou o outro, at que o vu lto luzidio do peixe aparecesse flor d gua, debatendo-se. A luta foi ouvida a vrias milhas pelos habitantes de laguna. O senhor do domni o teve conhecimento dela. Uma barbatana sombria fendeu a gua e, enquanto Dick, pu xando a linha, arrastava a sua presa, uma sombra monstruosa manchou as profundez as, e o sulco brilhante formado pelo albicora desapareceu como envolvido por uma nuvem. E quando Dick levantou novamente a linha, no restava mais que a cabea do p eixe, que fora seccionada do corpo como por gigantescas tesouras. O monstro gris-escuro deslizou perto do barco; Dick, furioso, esbravejou, mo strando-lhe o punho, depois tomando a cabea do vencido, separada do corpo, lanou-a

na gua, ao ladro. Com um rpido movimento, o tubaro fez turbilhonar a gua e oscilar a canoa; depois, virando-se sobre o dorso, engoliu a cabea e mergulhou lentamente. velas sobre o mar/6 Dick ajustou o anzol e tomou os remos. Devia remar trs milhas contra a mar, o que era difcil. Enquanto isto, ele falava e resmungava consigo mesmo. H algum temp o, vinha sentindo-se incomodado, principalmente por causa de Emelina. Naqueles lt imos meses, ela mudava de maneiras e mesmo de fisionomia. Tinha a impresso de que uma nova pessoa tomava o lugar de sua companheira de infncia, esta parecia difer ente. No notava que ela se ia tornando deveras encantadora sabia unicamente que e ra outra e que seus modos lhe desagradavam, por exemplo, ela ia banhar-se sozinh a. Antes daqueles seis ltimos meses, andava ele inteiramente satisfeito, a comer , a dormir, a procurar e a preparar o alimento, a construir e reconstruir a casa , a explorar a mata e os recifes, mas, agora, um enervamento o dominava, no compr eendia exatamente o que queria, tinha um vago desejo de deixar o local onde se e ncontravam, no a ilha, mas o lugar no qual tinham construdo a sua morada. Era talvez a civilizao atvica que o fazia pressentir as coisas que lhe faltavam : as cidades, as ruas, as casas, as preocupaes, a caa ao ouro, a conquista do poder ! Era talvez simplesmente o homem que desejava o amor, sem saber que o amor esta va ao seu alcance. A canoa costeou a margem, ultrapassando as clareiras revestidas de moitas e a obscuridade de catedral das rvores de fruta-po; ento, atingindo o promontrio, Dick chegou ao canal do recife. Via-se uma pequena faixa de areia branca, mas seus olhos procuravam no recif e um ponto sombrio, invisvel para quem no o conhecesse. Sempre que vinha quelas par agens, ele descansava sobre os remos, examinando lugar onde revoavam as gaivotas e murmurava a ressaca Outrora aquela mancha o enchia de medo, tanto quanto de c uriosidade, mas, com o hbito e essa penumbra com que o tempo envolve as coisas, o medo desaparecera, e apenas subsistia a curiosidade; a curiosidade que leva uma criana a ficar olhando enquanto matam um animal, apesar da revolta de sua alma. Ao cabo de um momento recomeou a remar e o barco se aproximou da praia. Ali a contecera alguma coisa, pois a areia se achava pisada e manchada de sangue, cent ro, os restos de uma grande fogueira fumavam ainda onde as vagas expiravam, havi a dois fundos sulcos produzidos por botes. Um prtico dos mares do sul, baseando n a forma desses sulcos e os sinais dos balancins, concluiria com justa razo, que d uas pirogas tinham ali abordado. No dia anterior, logo no incio da tarde, dois barco pertencentes talvez ilha longnqua que punha uma sombra no horizonte de su-sudoeste, tinham entrado na lagu na, um em perseguio do outro. Mas melhor velar os fatos que ali se desenrolara. Um tambor de pele de tubaro encheu a floresta com seu rufo. Toda a noite, os vencedores celebraram a vitria e, pela aurora, voltaram para a sua terra ou, antes, para seu inferno natal. Observando atentamente a praia, achar-se-ia um sinal desenhado, alm do qual no havia mais pegadas: isto queria dizer que, por uma razo qualquer, o resto da ilh a era tabu. Dick desembarcou. Recolheu uma lana quebrada, de madeira dura, com ponta de f erro. direita, alguma coisa jazia entre os coqueiros. Dick se aproximou. Era um montculo de entranhas, aparentemente de uma dezena de carneiros; entretanto, no ha via desses animais na ilha e, em geral, as pirogas de guerra no os transportam. A areia contava tudo: o p que perseguia e o p perseguido, os sinais do joelho, da fronte e dos braos abertos do vencido, o calcanhar do chefe que tinha matado a seu inimigo, cosendo-lhe o corpo terra, arrancando-lhe, depois, as entranhas e furando-o de lado a lado, para passar a cabea atravs do corpo e servir-se deste c omo de um manto; depois os sinais da volta do vencedor, carregando o inimigo. A areia evocava a histria da batalha, os gritos e os brados, o choque das maas e das lanas tinham-se esvado e no entanto o fantasma da guerra ainda subsistia al i: o ar, ou talvez o ter, ficara impregnado de violncia e de massacre. Dick, olhando em torno de si, estremeceu, sua intuio advertia-o de que ele aca

bava de escapar de um grande perigo. Algum tinha vindo e partira, compreendia-se facilmente, mas restava saber se os visitantes tinham tomado o mar alto ou o brao direito da laguna. Dick subiu ao cimo do monte e percorreu com o olhar a extenso das vagas. Long e, para o sudoeste, ele distinguiu as velas sombrias de duas pirogas, sua aparnci a tinha qualquer coisa de indescritivelmente desolado, assemelhavam-se a folhas fanadas pelo outono, a falenas escuras arrastadas pelas guas. As sombras longnquas confirmavam os indcios observados sobre a areia e o espectador se horrorizou dos prprios pensamentos. As embarcaes vogavam rapidamente, tendo cumprido a sua misso satnica. Elas bem p odiam parecer solitrias, velhas e tristes, semelhantes a folhas mortas derivando sobre as guas: seu aspecto no fazia mais que sublinhar o seu carter horrvel. Dick nunca tinha visto pirogas, mas sabia que aquelas embarcaes longnquas carre gavam homens e que esses homens tinham cometido crimes horrendos. At que ponto o sinistro da tragdia ter-se-ia revelado sua inteligncia semi-consciente? Tendo escalado o rochedo, ele estava agora sentado por terra, com as mos junt as em torno dos joelhos encolhidos; de cada vez que ele abordava aquela parte da ilha, sobrevinha qualquer acidente. Da ltima vez, quase chegara a perder o barco , insuficientemente avanado sobre a areia, de maneira que a mar o ia arrastando; q uando voltou, carregado de bananas, tivera de meter-se n gua at os joelhos, consegui ndo com grande dificuldade salvar a embarcao. De outra feita, cara de uma rvore e s p or um milagre tinha escapado morte. Depois, desencadeara-se um furaco, fustigando a laguna com uma espcie de nevada de espuma, e abatendo os cocos, que saltavam e voavam como bolas de tnis. Agora ele escapava a uma desgraa, embora sem saber exa tamente qual fosse; era como se a Providncia lhe proibisse ir at l. Ele viu diminurem as velas, que o vento alontanava no azul; em seguida desceu para colher bananas; cortou quatro grandes cachos, que o obrigaram a fazer duas viagens. Depois de colocadas as bananas no barco, partiu. H muito tempo j que uma grande curiosidade o vinha dominando, o que lhe causav a uma vaga vergonha. Fora o medo que produzira tal curiosidade. E foi talvez ess e medo, que ainda no o abandonara de todo, e o terrvel prazer de afrontar o descon hecido, que o levaram a deixar-se dominar pela sua necessidade de saber. Depois de ter remado uma centena de metros, dirigiu o barco para o recife. M ais de cinco anos haviam passado desde a manh em que ele atravessara a laguna, co m Emelina sentada proa, com sua guirlanda de flores na mo. Podia ter sido ontem, apenas, porque cada coisa parecia idntica: as ondas, as gaivotas, o sol ofuscante , o cheiro fresco e salgado do mar, a palmeira entrada da laguna continuava curv ada sobre as guas; tudo era igual, e, em torno da ponta de coral qual tinha ele a marrado o barco na ltima vez, encontrava-se ainda um fragmento da corda que corta ra na sua precipitao. Talvez tivessem entrado navios na laguna, mas nenhum devia ter notado o esqu eleto do recife, no se podia v-lo completamente seno do cimo da colina, e assim mes mo era preciso saber para onde olhar. Da praia, um pequeno ponto era apenas visve l e parecia um velho destroo ali abandonado por uma tempestade, um velho destroo s acudido durante anos e anos de um lado para outro e que por fim encontrara um lu gar de repouso. Dick amarrou o barco e escalou o recife. A mar subia como outrora, a brisa so prava fortemente, e uma fragata, de plumagem de bano e bico vermelho, chegou, num vo planado. Ela voava em crculo, gritando furiosamente, como que incomodada pela p resena do intruso, depois deixou-se levar pelo vento, revoluteou sobre a laguna e sumiu-se no mar. Dick se aproximou do local que tanto o impressionava. L se encontrava ainda o velho barril, rachado pelos ardores do sol, com as aduelas disjuntas, os arcos quebrados; todo o lcool se evaporara h muito. Perto do barril jazia um esqueleto e m torno do qual tombavam alguns trapos. O crnio estava virado de perfil e a mandbu la inferior tinha-se desprendido, os ossos das mos e dos ps se articulavam ainda e as costelas no estavam separadas. O sol iluminava com igual indiferena o coral faiscante e aquela carcaa branca e polida, aquela armao humana. Aquele espetculo inspirava a Dick menos horror que e spanto. Ele, que no estava iniciado no pensamento da morte, no o associava s idias d

e sepultura, de luto, de eternidade e de inferno. Aquele mistrio lhe falava de ou tro modo que no a ns. Em seu esprito formavam-se associaes: ele revia os esqueletos dos pssaros que en contrara no mato, os peixe que tinha matado, e mesmo as rvores tombadas, mortas e apodrecidas, mesmo os restos dos caranguejos. Se lhe perguntassem o que estava contemplando, ele teria respondido: a mudana . Toda a filosofia do mundo no teria podido, naquele momento, ensinar-lhe mais a respeito da morte, de que ele ignorava at o nome. Ele estava hipnotizado por aq uele milagre e por uma multido de pensamentos que se atropelavam no seu esprito, c omo uma turba de espectros a quem acabassem de abrir uma porta. Exatamente como uma criana que, por uma lgica sem rplica, compreende que o fogo que a queimou a que imar ainda e queimar a qualquer outra pessoa, ele adivinhou que o seu corpo e o de Emelina se tornariam semelhantes s ossamentas que via diante de si. Veio-lhe ento a vaga pergunta, que nasce, no no crebro, mas no corao, e que a base de todas as re ligies. Para onde irei? Sua inteligncia no era especulativa, e a interroga co no fez mais do que atraves sar a sua imaginao por um momento e desaparecer. O espanto, contudo, o paralisara, e pela primeira vez na vida ele comeou a devanear. Outrora aquele cadver semeara, no seu esprito confuso e aterrorizado, germes de idias que o esqueleto agora fazi a amadurecerem. E veio-lhe, de sbito, a noo da morte universal. Ficou por muito tempo imvel, depois, com um profundo suspiro, voltou-se para o barco e partiu, sem olhar para o recife uma nica vez. Ele atravessou a laguna e remou para a cabana, ficando, o tanto quanto possvel, ao abrigo das rvores. Olhando-o, mesmo da praia, ter-se-ia notado uma diferena nele. Um selvagem re ma com rapidez, lanando os olhos para todos os lados, entrando em contacto com a natureza por todos os poros, embora seja preguioso como um gato e durma a metade do dia, acordado, ele todo olhos e todo ouvidos, uma criatura sempre dominada pe la ltima impresso. Dick, remando, no olhava agora em torno, ele pensava e recordava: sua barbrie acabara de receber um golpe. Ao passar pelo pequeno cabo onde flamejavam os cacaueiros, ele olhou por cim a do ombro. Algum estava de p sobre a margem, beira d gua. Era Emelina. a escuna / 7 Eles levaram as bananas para casa, pendurando-as a um galho do artu. Dick, a joelhado, acendeu o fogo, para preparar a refeio da tarde. Depois de tudo terminad o, desceu at o lugar onde estava amarrado o barco, e trouxe qualquer coisa. Ele no tinha dito palavra a Emelina acerca do que vira. Sentada sobre a relva, ela trazia, guisa de mantilha, um pedao de flanela lis tada e embainhava outro. O pssaro saltitava, bicando uma banana que lhe haviam lanado. Uma leve brisa f azia danar por terra as moedinhas de luz dourada; as folhas denticuladas da rvore de fruta-po roavam-se docemente, com um rumor de garoa. Onde encontraste isso? perguntou Emelina, designando os pedaos de azagaia que Dick lanara ao cho, quase ao lado dela, enquanto ele entrava na casa para ir busc ar a faca. Na praia respondeu o jovem, sentando-se, e examinando os dois fragmentos par a ver como poderia emend-los. Emelina examinou tambm os pedaos de azagaia, reunindo-os mentalmente, ela no go stava daquele objeto to agudo, to selvagem, e com a extremidade manchada de sangue , na altura de mais de um palmo. Andou gente por l continuou Dick, juntando os dois pedaos e estudando a fratur a. Onde? L na praia. Achei isto na areia, e a areia estava pisada. De onde vieram? No sei. Eu subi ao monte e avistei os barcos, longe.

Dick, lembras-te do rudo de ontem? Sim. Eu o ouvi, de noite. Quando? Antes da lua sair. O barulho continuava no mato. Eu pensei que estivesse son hando, mas depois compreendi que estava acordada. Tu dormias, eu te sacudi para que ouvisses tambm, mas tu no conseguias acordar, ento a lua partiu, e o rudo desapa receu com ela. Como fazem eles aquele barulho? No sei, mas eram eles, e deixaram isto sobre a areia, e a areia estava revolv ida, e do alto do monte eu vi os seus barcos ao longe. Supus tambm ouvir vozes continuou Emelina mas no estou bem certa. E ela ps-se a pensar, observando o seu companheiro, que ligava os dois pedaos da arma com essa espcie de tecido pardo que envolve o tronco dos cacaueiros. Depois de ter emendado a arma, com uma habilidade maravilhosa, ele fincou a lana na terra mole, para limp-la; em seguida, com um pedao de flanela, comeou a poli -la, at que ela brilhasse. Ficou encantado. Era intil como arpo, porque no tinha far pa, era intil como arma, porque no havia inimigos com quem bater-se. Mas sempre er a uma arma! Quando acabou de esfregar, levantou-se, apertou a cinta de fibra de coqueiro que Emelina lhe fizera, entrou na casa, tomou o arpo e dirigiu-se para o barco, dizendo a Emelina que o seguisse. Foram at o recife, onde, segundo o seu hbito, el e despiu-se. Ali, coisa estranha, ele andava sempre nu, ao passo que, sobre a ilha, vesti a sempre alguma coisa. Contudo, no era tanto de se estranhar o caso. O mar um purificador do corpo e da alma; diante desse grande e suave gnio, a gente no pensa mais como no interior das terras. Qual a mulher capaz de exibir-se numa cidade ou numa estrada do campo, ou mesmo num rio, como se mostra numa pra ia de mar? Qualquer instinto levava Dick a vestir-se em terra e a ficar nu diante do ma r. Dentro de um minuto, abordava ele os recifes, com a azagaia numa das mos e o a rpo na outra. Emelina sentou-se ao lado de uma pequena bacia, cujo fundo era tapetado de g alhos de coral. Ela olhava-lhe as profundezas e se perdia num vago sonho semelha nte queles em que ns camos quando estamos a observar a dana das chamas na lareira. Um grito de Dick f-la estremecer; ela deu um salto, olhou para a direo que ele designava e ficou atnita. Uma coisa espantosa ali se via: a leste, seguindo a cur va dos recifes, e apenas afastada um quarto de milha, chegava uma grande escuna; era lindo v-la, inclinada sob a brisa, com todas as velas enfunadas e frisando s ob a sua quilha a espuma cor de neve. Dick, com a azagaia na mo, estava de p; deixou cair o arpo e permaneceu imvel. E melina alcanou-o a correr. Nenhum dos dois falava. O navio estava to perto agora, que se percebiam os menores detalhes, desde as grades do tombadilho at as garceta s dos rizes sobre a grande vela, toda batida de sol e branca como uma asa de gai vota. Uma multido de homens se acotovelava a bombordo, olhando a ilha e os vultos s obre o recife. Emelina estava tisnada e brunida pelo sol e o vento, seus cabelos flutuavam na brisa, a ponta da azagaia de Dick fulgurava. Vistos do convs da escuna, eles pareciam um parzinho ideal de selvagens. Eles vo embora disse Emelina, com um grande suspiro de alvio. Dick no respondeu nada, a contemplar silenciosamente a escuna durante um mome nto. Ento, certo de que ela ia embora mesmo, ps-se a correr ao longo do recife, ch amando violentamente, gesticulando, como para fazer voltar o navio. Um instante mais tarde, a brisa trazia um flbil grito de resposta; uma bandei ra foi hasteada e depois baixada, como por irriso, e o navio continuou o seu cami nho. Na verdade, ele estivera a ponto de voltar; seu capito hesitou por um momento , sem saber se se tratava de nufragos ou de insulares: mas a azagaia fez pender a balana da sua opinio em favor da teoria dos selvagens. o amor /8

Dois pssaros se achavam empoleirados sobre um galho do artu. Koko tinha tomad o uma companheira. Eles construram um ninho com fibras de coqueiro, raminhos e mu sgos, com um pouco de tudo, at com parcelas de folhas de areca arrancadas ao teto da casa. Esses furtos e essas construes do povo alado, que deliciosos incidentes do grande episdio primaveril! Os pilriteiros jamais floriam ali, naquele eterno vero, no entanto, ali vinha ter o esprito de maio, da mesma forma que vem para os campos ingleses ou para as florestas alems. O que se passava nos ramos da rvore interessava muito a Emelina. Os amores e a construo do ninho foram conduzidos segundo as regras habituais d a natureza que seguem os homens e os pssaros. Toda espcie de sons bizarros filtrav am-se atravs da folhagem, provenientes, ou do poleiro onde os amorosos, vestidos de safira, repousavam lado a lado, ou do galho em forquilha onde o ninho comeava a tomar forma. Murmrios e convites, espanejamentos de asas em leque, notas de que relas, seguidas de outros rudos que lhes indicavam o fim. s vezes, em conseqncia dis so, uma ou duas plumas sedosas e azuladas flutuavam no ar, ficavam presas no tel hado ou caam sobre a relva. Alguns dias depois do aparecimento da escuna, Dick se preparava para ir colh er goiabas no mato. Toda a manh estivera ocupado a confeccionar um cesto para car reg-las. A julgar por sua aptido para os trabalhos manuais, ele, na vida civilizad a, seria um engenheiro e construiria pontes e navios, em vez de fazer cestos de folhas de palmeira e casas de bambus. Mas quem sabe se seria mais feliz? O mais forte do calor j passara, quando Dick, carregando o cesto ao ombro, na extremidade de uma vara, partiu para o mato, em companhia de Emelina. O lugar aonde eles iam, e que Dick descobrira num dos seus passeios, enchia Emelina de um vago medo, ela no iria l sozinha nem por um imprio. Entraram na mata e passaram por diante de um pequeno poo, com um fundo de are ia fina e seca. Como se formara ali a areia? Impossvel adivinh-lo, a areia, no ent anto, ali estava, na borda cresciam moitas, que se refletiam na gua cristalina. D eixaram o poo direita e avanaram para o corao da floresta. L ainda reinava o calor do meio-dia. Distinguia-se entre as rvores uma espcie de rastro, como se, em tempos antiqssimos, ali houvesse um caminho, atravs desse caminho pendiam lianas, meio per didas na sombra, meio batidas de sol. O hotoo, carregado de flores delicadas, vi cejava em todo o seu esplendor, na penumbra, hibiscos vermelhos abriam suas coro las sangrentas; artus, coqueiros e rvores de po bordavam o caminho. medida que avanavam, as rvores se tornavam mais frondosas e a avenida entenebr ecia. De sbito, numa volta, o caminho terminava num vale tapizado de relva. Era o lugar que amedrontava a Emelina. Um lado era construdo em terraos com enormes blo cos de pedra, blocos de granito to monstruosos, que no se podia compreender como t inham sido ali colocados. A seus ps, levemente inclinada para diante, como sob o peso dos sculos, erguia-se uma enorme esttua de pedra grosseiramente esculpida, de trinta ps de altura, pelo menos, e que parecia o esprito misterioso daquele estra nho templo. A figura e a plataforma, o vale e mesmo as rvores inspiravam a Emelina uma pr ofunda curiosidade, misturada a uma vaga apreenso. Outrora, homens deviam ter ali habitado por momentos, ela imaginava ver sombras se moverem no meio das rvores e o murmrio das folhas parecia esconder vozes, como se as sombras dissimulassem fa ntasmas. Com efeito, era uma paisagem impressionante para uma pessoa que estives se sozinha, mesmo em plena luz do dia. Por toda parte, no Pacfico, numa extenso de vrias centenas de milhas, se encont ram, disseminadas nos bosques, relquias do passado, semelhantes quele antigo dolo. Essas espcies de templos so quase todas semelhantes: grandes paredes rochosas, deu ses macios, a desolao recoberta por uma flora exuberante. Elas sugerem uma religio q ue data de uma poca em que o Pacfico era um continente, que, afundando lentamente no curso das idades, deixou somente visveis, sob a forma de ilhas, os planaltos e os cimos de seus montes. Em torno dessas capelas, a mata, mais espessa, faz pensar em antigos bosques sagrados. Os dolos so enormes, as suas fisionomias apagadas; o sol, a chuva, as t empestades milenares lanaram um vu sobre elas. A esfinge um brinquedo compreensvel

comparada a esses dolos de um povo para sempre desaparecido, alguns dos quais ati ngem a cinqenta ps de altura e cuja ereo continua envolvida no mais completo mistrio. O homem de pedra tal era o nome que Emelina dera ao dolo do vale; e, muitas v ezes, de noite, quando os seus pensamentos erravam toa, ela se imaginava sozinha , de p sob os raios da lua ou das estrelas, com as pupilas fixas nele. Ele parecia escutar perpetuamente, e, sem querer, a gente comeava a escutar t ambm; ento o vale parecia mergulhado num silncio sobrenatural. Com um deus daqueles , um tte--tte no era nada tranqilizador. Enervada, Emelina sentou-se na sua base. Qua ndo se estava perto dele, ele perdia o seu ar de vida e no era mais do que uma gr ande pedra estendendo a sua sombra no esplendor do dia. Dick deitou-se por terra para repousar; um momento aps ergueu-se, mergulhou p or entre as goiabeiras e encheu o cesto com seus frutos. Desde que avistara a es cuna, com seus grandes mastros e suas velas, com os homens brancos sobre o seu c onvs, sua imaginao andava perturbada com desconhecidos pensamentos de liberdade e d e aventura; ele se tornava mais moroso e inquieto. Talvez na sua memria ligasse e le a escuna viso longnqua do "Northumberland"; o desejo de outras terras se infilt rava nele com uma necessidade de mudana. Ele voltou com o cesto cheio de frutos m aduros, ofereceu-os sua companheira e sentou-se perto dela. Quando acabou de comer, Emelina tomou a vara de que Dick se servira para car regar o cesto e, brincando, distraidamente, ela a curvava em forma de arco. Nist o a vara, escapando-se-lhe, foi bater violentamente contra a face direita de Dic k. Imediatamente, ele aplicou-lhe uma palmada nas costas. Ela olhou-o, atnita e p erturbada, depois um soluo subiu-lhe garganta. No mesmo instante, pareceu-lhes qu e um vu se rasgava, que um mgico lhes tocava com a sua varinha de condo, que um fra sco se quebrava, espalhando o seu filtro. Como Emelina ficasse a olhar para o jo vem, este sbita e furiosamente estreitou-a nos braos. Um momento ele a conservou assim, deslumbrado, estupefato, sem saber o que f izesse dela. E ento os lbios de Emelina encontraram os seu num interminvel beijo... o sono do paraso/ 9 A lua levantou-se aquela noite como de costume, dardejando as suas flechas d e prata contra a casa. A casa estava vazia. A lua atravessou o mar e o recife. I luminou a laguna at o mais profundo de seu corao entenebrecido. Aclarou os crebros d e coral, os leitos de areia e os peixes que nele projetavam a sua sombra. O guar dio da laguna fez a sua ronda para saud-la, as barbatanas do animal quebraram em m il pedaos a sua imagem refletida no espelho polido da gua. Ela viu as costelas bra ncas do esqueleto sobre o recife, e, espiando por cima das rvores, examinou o val e onde o grande dolo de pedra velava solitrio h milhares e milhares de anos. A seus ps, na sua sombra, dois seres humanos e nus se confundiam, dormindo pr ofundamente sob a sua proteo. No seriam de lamentar as suas viglias se, de tempos a tempos, no curso dos scul os, semelhantes cenas se desenrolassem diante de si. Tudo aconteceu exatamente c omo se passam os assuntos amorosos dos pssaros. Foi to natural, to casto, que no hou ve pecado. Era um casamento segundo a natureza, sem festa nem convidados, e consumado c om um maravilhoso cinismo, sombra de uma religio desaparecida. Eles eram to felizes na sua ignorncia, que no sabiam seno uma coisa, e era que d e repente a vida se transformara, que o cu e o mar estavam mais lmpidos e que, por um poder mgico, eles faziam parte um ao outro. Os pssaros na rvore acima deles eram igualmente felizes na sua simplicidade e no seu amor. livro 2/segunda parte uma lua-de-mel insular /10 Dick, certo dia, trepando sobre o artu, fez sair Dona Koko do ninho onde ela chocava e olhou para o interior deste, onde se encontravam vrios ovos de um verd

e plido. No lhes tocou, mas desceu, e o pssaro retomou o seu lugar como se nada tiv esse acontecido. Tal aventura teria aterrorizado um pssaro afeito aos hbitos human os, mas ali o povo alado no era medroso, e tinha tal confiana, que, muitas vezes, uma daquelas lindas criaturas seguia Emelina pelo mato, olhando-a por entre as f olhas, chegando-se bem para perto dela, uma vez mesmo um pssaro lhe pousou no omb ro. Os dias passaram. Dick tinha perdido seus modos taciturnos, e o seu desejo d e viajar desaparecera. No tinha mais nenhum motivo para querer partir. Em todo o vasto universo no encontrava nada mais desejvel do que o que ele possua. Em vez de encontrar um selvagem seminu, seguido por sua companheira como por uma galguinha, agora, ao crepsculo, tereis visto um par de amorosos a passear pel os recifes. Eles tinham ornamentado a sua casa com uma trepadeira trazida do mat o, ela dava uma florzinha azul e curvava-se em ogiva acima da entrada. At ento Emelina fazia quase toda a cozinha, agora Dick nunca deixava de ajud-la . Ele no lhe falava mal em frases curtas, lanadas como a uma serva, e ela ia perde ndo a estranha reserva em que se ocultava desde a infncia, e entremostrava agora a sua alma. Era uma mentalidade estranha a sua, a de um artista, quase a de um p oeta. No seu mundo interior habitavam os Cluricaunos evoluam formas vagas, oriund as de coisas com que ela sonhara ou de que tinha ouvido falar, tinha idias sobre mar e as estrelas, as flores e os pssaros. Dick ouvia-a falar, como se presta ouv idos ao bisbilho de um arroio. Sua inteligncia prtica no podia tomar parte nos sonh os de sua metade, mas a sua palestra lhe agradava. Absorto numa profunda meditao, ele olhava-a longamente. Ele a admirava! Os cab elos de Emelina, longos e lustrosos, o prendiam nos seus anis, ele os acariciava com os olhos e puxava-os a si, mergulhando o rosto nas suas ondas, o seu cheiro intoxicava-o e ele o aspirava como o perfume de uma rosa. As pequeninas orelhas dela eram semelhantes a conchinhas, o seu amante as tomava entre o polegar e o nd ice e brincava com elas, ele lhes puxava o lobinho ou tentava dobrar-lhes a conc ha. Perdida num vago sonho de que ele era o objeto, ela o deixava fazer, depois, de repente, seus braos o procuravam e enlaavam. Aquilo se passava em plena luz do dia, sob o olhar vivo dos pssaros. Contudo, todos os seus dias no se podiam perder assim. Dick continuava sempre um pescador entusiasta. Improvisou um arado com um dos bancos do barco e prepar ou, perto do canteiro de taro, uma extenso de terra, onde plantou sementes de melo . Refez o teto da casa. Eles andavam sempre o mais ocupados que era possvel naque le delicioso clima. Mas o amor lhes vinha por acessos e eles esqueciam tudo. Com o se visita um lugar para rememorar uma lembrana agradvel ou penosa, eles voltavam seguidamente ao vale do dolo e passavam a seus ps tardes inteiras. Gozavam a delci a de caminhar juntos pela mata, perdendo e achando o caminho, descobrindo novas flores. O prazer desses passeios ultrapassava a toda expresso. Dick descobrira uma vez de sbito o amor, mas agora ele prolongava as carcias. Um dia, ouvindo um novo rudo na rvore que abrigava a casa, Dick subiu a ela. O rudo provinha do ninho que a mame pssaro tinha temporariamente abandonado. Eram gr itinhos convulsivos e asmticos que saam de quatro bicos escancarados, to ansiosos p or serem alimentados, que se percebia at o fundo a garganta dos proprietrios. Aqui lo representava a famlia de Koko. Antes de um ano, cada um daqueles horrveis anima lzinhos felpudos, seria, com a ajuda de Deus, um esplndido pssaro azul, com alguma s plumas irisadas na cauda, um bico de coral e olhos brilhantes e inteligentes. Ainda h poucos dias aquelas coisas estavam aprisionadas num ovo verde plido. E, um ms antes, no existiam. Uma carcia roou a face de Dick: era a me que voltava com o almoo de seus filhote s, Dick inclinou a cabea para um lado e, sem mais se incomodar, ela encheu as gar gantas esfaimadas. o desaparecimento de emelina /12 Meses se passaram. J no havia mais que um pssaro nos galhos do artu. Koko ficar a sozinho. Sua companheira e seus filhos tinham levantado vo. A folhagem da rvore de fruta-po passou do verde sombrio para o ouro plido, depois para o amarelo carre

gado; agora as folhas novas saudavam a primavera. Dick tinha na cabea o mapa completo da laguna, conhecia todas as suas profund idades e as regies mais piscosas, a localizao das urtigas de mar e as passagens vad eveis na vazante. Certa manh, ele se preparou para uma pescaria; o local aonde ia achava-se a duas ou trs milhas da sua casa e, para l chegar, era preciso atravessa r a ilha; o trajeto era penoso, Emelina no o acompanharia. Ela acabava de mudar o fio do colar de prolas que s vezes usava. Este tesouro tinha uma histria. Nos baixios mais afastados, Dick percebera um dia um banco de conchas e colheu algumas na mar baixa para examin-las. Eram ostras. A primeira que abriu causou-lhe tal repugnncia, que seria sem dvida a ltima, se na pele de molusc o no tivesse encontrado uma prola quase duas vezes maior que uma ervilha; embora no suspeitando do seu valor, no pde deixar de admirar-lhe os reflexos. Ele lanou ao c ho as ostras no abertas e levou a jia para Emelina. No dia seguinte, l voltando casualmente, viu as ostras que esquecera, mortas e entreabertas ao sol. Examinou-as: uma gota de ncar achava-se encerrada em cada uma delas. Ento ele tomou uma poro daqueles moluscos, deixando-os abrirem-se e morr er. Veio-lhe a idia de fazer um colar para a sua amiga; ela j possua um de conchinh as, mas ele queria oferecer-lhe outro. Foi um longo trabalho. Ele furava as prolas com uma agulha grossa, ao fim de quatro meses a obra estava terminada. As prolas na sua maioria eram grossas, e ha via-as de um branco irisado, negras, rseas, algumas perfeitamente redondas, outra s em forma de lgrimas, outras irregulares. A jia valia talvez de quinze a vinte mi l libras, pois Dick s utilizava as mais belas, jogando fora as pequenas. Emelina acabava de tornar a enfiar as suas prolas; plida, ela parecia indispos ta. Toda a noite estivera inquieta. Como Dick partisse, armado de seu arpo e dema is petrechos de pesca, ela disse-lhe adeus com a mo, sem levantar-se. Habitualmen te o acompanhava um trecho pela mata, mas naquela manh continuou sentada diante d a porta da pequena habitao, com o colar sobre os joelhos, e olhando seu amigo at qu e este desaparecesse sob as rvores. No possua nenhuma bssola para orientar-se, o que alis no lhe fazia falta. Ele con hecia a mata de cor: a linha misteriosa alm da qual no havia quase mais artus; a g rande faixa de sapotizeiros de uma centena de metros e que ia do meio da ilha at a laguna; as clareiras, algumas quase circulares, onde os passos se enredavam na s altas moitas. Dick logo alcanou o mais embrenhado da floresta. Ali a flora esta va em revoluo. Toda espcie de caules cheios de seiva, pertencentes a plantas descon hecidas, barravam o caminho e prendiam os ps; havia lugares pantanosos, onde era fcil cair-se, como numa armadilha. Se se parava para enxugar a fronte, os ramos e lianas abatidos tornavam a levantar-se, encerrando o viandante na sua priso. Os ardores de todos os meios-dias que tinham pesado sobre a ilha pareciam ha ver deixado ali um pouco do seu torpor. Pairava no ar um calor de estufa, o monto no e perptuo zumbido dos insetos enchia o silncio, sem destru-lo. Uns vinte foiceir os teriam podido abrir um caminho, mas um ms ou dois mais tarde no se encontraria o mnimo sinal dele. A vegetao ter-se-ia fechado sobre a estrada como a gua sobre o s ulco de um navio. L, uma orqudea copiava s vezes um jarro, munido de sua tampa e contendo gua. Out ras vezes, na rede de lianas que ligava duas rvores, balanava-se uma outra dessas parasitas que se assemelhava a um pssaro morto. As orqudeas ali cresciam como numa estufa e as rvores grandes, bastante raras, tinham uma aparncia especial e miserve l. Estavam meio mortas de fome devido ao inslito crescimento das plantas gigantes cas. A imaginao amedrontava-se naquele lugar, pois no se tinha a impresso da completa solitude. A cada momento parecia que uma mo ia surgir do emaranhado dos vegetais ... Dick, bastante desprovido de medo e de imaginao, experimentou essa angstia. Lev ou mais de trs quartos de hora para atravessar o labirinto, por fim tornou a enco ntrar o ar bendito, a verdadeira luz, e avistou a laguna azul entre os troncos d as rvores. Se no fora at l de barco, era porque, na mar vazante, os acidentes do norte da i lha formavam uma barreira intransponvel; naturalmente, teria podido fazer a volta pela praia, mas isto representava um percurso de pelo menos seis milhas. Quando

chegou margem da laguna, eram quase onze horas e a mar atingia ao mximo. Ali o recife ficava apenas a um quarto de milha da margem. O fundo da laguna no descia em rampa, mas caa a pique, numa profundidade de umas cinqenta braas, e po dia-se pescar da margem como de uma ponte. Dick colocou suas provises sob uma rvor e, e atou um pedao de coral extremidade da linha, para servir de peso. Depois de pr a isca no anzol, lanou-o atravs dos ares at uma centena de ps da margem. Um pequen o coqueiro crescia beira d gua. Ele atou a linha quele frgil tronco, para maior segurana, depois sentou-se, seg urando tambm a linha. Prometera a Emelina voltar antes do pr-do-sol, mas ele era u m pescador, isto , tinha a longa pacincia do gato e da ostra, a inconscincia do tem po. Vinha ali por puro amor do desporte mais do que pelo peixe. Havia grandes peixes naquela parte da laguna, da ltima vez ele pescara um mon stro que tinha a forma de um gato-marinho do Mississipi, intragvel, embora divert ido de pescar. A mar descia, e era ento que se podia fazer melhor pesca. No ventava mais, e o espelho da laguna frisava-se apenas sob a corrente da jusante. Enquanto pescava, ele pensava em Emelina e na pequena casa sob as rvores. Mal se poderia chamar quilo um pensamento. As imagens passavam diante do seu esprito, imagens agradveis e felizes, o esplendor do sol, o luar, a luz das estrelas... Trs horas se passaram sem que um peixe mordesse, ou sem o menor indcio de que a laguna contivesse outra coisa seno gua do mar e desapontamento. Mas ele no se aga stou. Era um pescador! Deixou a linha atada rvore e fez a sua refeio. Mal acabara o repasto, quando o frgil coqueiro estremeceu e curvou-se. Dick no precisou tocar a linha tensa, para ver que seria intil tentar erguer o animal que se debatia sua ponta. Nada mais havia a fazer seno deixar a presa agitar-se e cansar. Ficou, pois, estirado no cho, a olhar. Aps alguns minutos, os movimentos da linha se tornaram m ais lentos e o coqueiro retomou sua atitude meditativa. Dick puxou a linha e tro uxe apenas o anzol. Nem resmungou, ps-lhe nova isca e tornou a lan-lo, certo de que o animal morderia ainda. Cheio dessa esperana e descuidoso da hora, ele ficou es pera. O sol se inclinava para o ocidente. Ele no lhe deu ateno. Tinha completamente e squecido a promessa que fizera a Emelina. Agora o astro estava no seu declnio. Sbi to, por trs dele, do seio da mata, uma voz gritou: Dick! Deixou cair a linha e voltou-se sobressaltado. Ningum se achava l. Correu pela mata, chamando Emelina, mas apenas os ecos respondiam. Voltou para a margem da laguna, persuadido de que fora vtima de uma alucinao, mas como o sol j se deitava, e le enrolou a linha, tomou o arpo e partiu. Quando chegou passagem difcil, teve medo, atormentado pela idia de que tivesse acontecido alguma desgraa a Emelina. Estava sombrio ali, e jamais a vegetao lhe pa receu to espessa, a obscuridade to triste, e as lianas to tenazes. Perdeu-se na mat a, ele que sempre estava certo do seu caminho! O instinto do caador o traiu e, du rante algum tempo, errou de um lado para outro, como um navio sem bssola. Enfim c onseguiu orientar-se e viu que se achava muito direita do lugar em que devia est ar. Sentia-se como um animal escapado de uma armadilha e estugou o passo, guiado pelo rudo do recife. Quando chegou clareira que conduzia laguna, o sol acabava de desaparecer por detrs da linha do horizonte. Dick percebeu vagamente a casa sob o artu e correu para ela, atravessando o relvado em diagonal. Quando voltava aps uma ausncia, era sempre o vulto de Emelina que ele primeiro avistava; ela ficava a esper-lo, ora perto da laguna, ora porta da casa. Naquela tarde ela no estava l. Depois de penetrar na casa, parou, tomado da mais atroz ansiedade, incapaz, durante um momento, de refletir ou de agir. Depois do choque provocado pelo incidente do recife, Emelina ficara sujeita a crises de enxaqueca; quando a dor se tornava insuportvel, ela ocultava-se. Ento Dick saa a procur-la pela mata, chamando-a em altos brados. Ouvindo-o, ela respond ia por um pequeno grito e ele a encontrava sob uma rvore ou uma moita, com a cabea entre as mos, verdadeira personificao do sofrimento. Lembrando-se disso, seguiu a orla do mato, chamando e parando para escutar. No lhe veio resposta alguma.

Foi at o pequeno poo, acordando em vo os ecos, depois voltou lentamente, olhand o em torno de si, no crepsculo profundo, que agora dava lugar claridade das estre las. Ento, desesperado, deixou-se cair porta da casa, aparentemente exausto. Os profundos sofrimentos e os grandes cansaos exprimem-se da mesma forma. Ele estava abatido, com o queixo sobre o peito e os braos pendentes. Podia ainda evo car o grito de Emelina tal como o ouvira. Sentindo-se em perigo, sua companheira chamara por ele, e, durante esse tempo, inconsciente, ele pescava com toda a tr anqilidade! Este pensamento o galvanizou. Ps-se de p de um salto e correu para o barco. Remou at o recife, era o ato de um louco, pois ali Emelina no podia absolutame nte estar. No havia lua, as estrelas iluminavam e ensombravam o mundo ao mesmo tempo, no se ouvia outro rumor seno o tom majestoso das vagas. De p, batido pelo vento notur no, borrifado pela espuma das vagas, ele ergueu os olhos para Canopo, que fulgia no znite silencioso; sentiu-se cercado por uma tremenda e profunda indiferena, e o desnimo pesou sobre o seu esprito ignorante. Voltou para a praia; a casa continuava deserta. Uma pequena tigela, feita de uma casca de coco, jazia sobre a relva, ao p da porta; era o ltimo objeto que ele vira nas mos de Emelina; tomou-o e, durante um momento, apertou-o com frenesi co ntra o peito. Depois estendeu-se diante da porta, com o rosto contra a terra, a cabea entre os braos, na atitude de uma pessoa que dorme profundamente. Durante a noite, sem dvida, andou a vagar como um sonmbulo, pois a madrugada o encontrou no vale, diante do dolo. Surgiu a aurora, enchendo o universo de clari dade e colorido. A essa hora, ele estava sentado porta da casa, meio morto de fa diga. Levantando de repente os olhos, avistou Emelina, que surgia da mata. o recm-chegado /13 Ficou um instante paralisado, depois, levantando-se, correu para ela. Plida e aturdida, ela trazia nos braos qualquer coisa envolta na sua manta, Como Dick a abraasse, o pacote se agitou contra o seu corpo e lanou um vagido. Ele recuou, ent reabrindo suavemente a manta, Emelina mostrou-lhe uma face minscula, enrugada e d e um vermelho de tijolo, com dois olhos brilhantes e um punhado de cabelos sombr ios. Ento os olhos se fecharam, a face se enrugou e o pequenino ente espirrou dua s vezes seguidas. De onde o tiraste? perguntou Dick, sem saber absolutamente o que pensar, enq uanto ela recobria o beb. Eu o encontrei no mato. Mudo de espanto, o jovem ajudou Emelina a entrar em casa, onde ela sentou-se apoiando a cabea contra os bambus da parede. Eu me senti muito doente explicou ela ento fui descansar no mato e no me lembr o de mais nada, quando me acordei, ele estava l. uma criana. Eu sei. O beb da Senhora James, conhecido nos velhos tempos, ressuscitou na memria del es, mensageiro do passado vindo para explicar-lhes o presente. Ento ela lhe conto u pormenores que destruam completamente a teoria dos "canteiros de couves", subst ituindo-a por uma verdade muito mais maravilhosa e mais potica para quem pode apr eciar o mistrio da vida. H qualquer coisa esquisita presa nele continuou Emelina, como se falasse de u m "colis" recm-recebido. Mostra-me pediu Dick. No, deixa-o tranqilo. Ela estava sentada, embalando ternamente o recm-nascido e parecia esquecer o resto do mundo. Dick ficara igualmente absorto na sua contemplao. Um mdico teria es tremecido, mas, talvez por felicidade, no havia nenhum na ilha, e a natureza cond uzia as coisas sua maneira. Depois de se haver embasbacado o suficiente, Dick ps-se na obrigao de acender o fogo. Ele nada comera desde o dia anterior e estava quase to fatigado como a sua companheira. Cozinhou alguns frutos da rvore do po, que serviu sobre duas largas

folhas, com bananas e um pouco de peixe frio que sobrara da refeio precedente, fez Emelina comer primeiro. Antes do fim da refeio, a criatura empacotada comeou a vagir, como se tivesse s entido o cheiro da comida. Emelina abriu a manta, o beb parecia esfomeado, sua bo ca ora estava apertada ora aberta e uns olhos se abriam e fechavam. Emelina rooulhe os lbios com o dedo e ele o abocanhou, pondo-se a chup-lo. Os olhos de Emelina encheram-se de lgrimas, ela recorreu a Dick, que estava ajoelhado ali perto, est e tomou uma banana, descascou-a, cortou-lhe um pedao e estendeu-lhe. Ela o aproxi mou da boca do beb, que tentou chupar sem sucesso e ps-se a chorar. Espera um momento prometeu Dick. Na vspera, ele tinha colhido alguns cocos verdes Tomou um, furou-lhe um dos o lhos e fez uma abertura do lado oposto da casca. A infeliz criana engoliu gulosam ente o suco leitoso, enchendo o estmago de um lquido que vomitou violentamente, nu m berreiro de cortar o corao. A me, desesperada, estreitou-a contra o seio nu. Um segundo depois a criana es tava aderida ao seio como uma sanguessuga. Pois ela era muito mais entendida que os seus pais em matria de bebs...

ana/14 Ao meio-dia, sob o sol abrasador, a gua ficava quente. Eles levavam ento o beb at a sombra do recife, e l Emelina o lavava com um pedao de flanela. Ao fim de algu ns dias, ele quase no gritava mais, nem mesmo quando o esfregavam. Ficava sobre o s joelhos de sua me durante a operao, esgrimindo o ar com os braos e as pernas e olh ando o cu. Em seguida, quando Emelina o virava, ele conservava-se deitado de cabea para baixo, rindo e babando sobre o recife, e parecendo examinar o traado do cor al com uma ateno filosfica. Dick, sentado, com os joelhos altura do queixo, observava a cena. Ele sentia -se, com justia, co-proprietrio... O mistrio daquele caso pairava sempre sobre eles . H uma semana atrs estavam ambos sozinhos, e eis que de sbito o novo indivduo tinha chegado de parte alguma. Que admirvel era ele, com os seus cabelos, as suas unhas, as suas mozinhas! Ti nha uma poro de maneiras s dele, e cada dia adquiria novas. Em uma semana, desapare cera a extrema fealdade do recm-nascido; sua fisionomia, que parecia o retrato de um macaco esculpido num pedao de terracota, tornou-se o rosto de um beb feliz e s audvel. Ele parecia ver coisas, s vezes ria e casquinava gostosamente como se lhe tiv essem contado alguma boa piada. Seus cabelos negros tombaram todos e foram subst itudos por uma espcie de penugem. Ele no tinha dentes. Ficava de costas, a dar pont aps e a coaxar; em seguida, fechando os punhos, procurava engoli-los alternadamen te; depois, cruzando as pernas, brincava com os dedos dos ps. Em realidade, era i gual aos mil e um bebs que nascem a cada tique-taque do relgio. Como o chamaremos? perguntou Dick um dia, olhando o seu filho e herdeiro, qu e engatinhava sobre a relva, sombra da rvore do po. Ana! respondeu prontamente Emelina. Viera-lhe ao esprito a lembrana de um outr o beb, cujo nome ela ouvira uma vez. Era um nome que, afinal de contas, valia tan to como qualquer outro, naquele lugar solitrio, embora Ana fosse rapaz. Koko se interessou muito pelo novo habitante. O pssaro virava a cabea de lado para examin-lo, e Ana arrastava-se atrs dele, tentando pegar-lhe a cauda. Em algun s meses, o menino se tornou to forte que perseguia seu pai, quando este marchava de quatro patas, e poder-se-ia ver o pai, a me e o filho brincarem juntos, como t rs crianas; o pssaro revoava algumas vezes acima, ou juntava-se a seus folguedos; o u ento Emelina, de repente, sentava-se, chocando Ana com os olhos, com uma expres so angustiada e um olhar vago. Voltara-lhe o antigo temor de um acidente, o medo daquele fantasma invisvel que a sua sensibilidade adivinhava por detrs do sorriso da natureza. Sua felicidade era to grande, que tinha medo de perd-la.

No h nada mais sublime que o nascimento de um homem e tudo o que o prepara. Al i, naquela ilha, no prprio corao do oceano, entre o sol e as rvores curvadas pelo ve nto, sob o grande arco do cu, e numa perfeita pureza de esprito, Dick e Emelina di scutiam esta questo do comeo ao fim. O assunto de suas palestras rolava-se diante deles, procurando arrancar as plumas da cauda de Koko. Era a solido daquele deserto, bem como a ignorncia em que eles estavam da vida , que tornava to estranho e to novo o velhssimo milagre, tanto mais belo para eles quanto mais horrvel lhes parecia o prodgio da morte. Em pensamentos vagos e inexpr imveis, eles ligavam aquele novo fato ao antigo acontecimento que se passara no r ecife h seis anos atrs: o desaparecimento e o advento de um homem. Apesar do seu nome infeliz, Ana era o beb mais varonil e mais encantador que se pudesse ver. Seus cabelos negros, que tinham aparecido e desaparecido uma ale gre faccia da natureza deram lugar a uma penugem amarela como o trigo desbotado p elo sol, ao fim de alguns meses tornaram-se castanhos. Certa manh naqueles ltimos tempos Ana andava inquieto e mordia os polegares Em elina, olhando para a sua boca, descobriu-lhe na gengiva um ponto branco, semelh ante a um gro de arroz. Era um dente. Agora ele podia comer bananas e frutos da rv ore do po, muitas vezes mesmo lhe davam peixe, o que produziria calafrios num ped iatra, no entanto ele vicejava e tornava-se mais forte dia a dia. Com uma sabedoria profunda e natural, Emelina deixava-o completamente nu, ve stido unicamente de oxignio e de sol. Levando-o para o recife, ela permitia-lhe c hapinhar nas bacias pouco profundas, segurava-o pelas axilas, enquanto ele fazia borrifar a espuma, s risadas e aos gritos. Agora se produzia um novo fenmeno, to e spantoso como o nascimento do corpo: a ecloso da inteligncia, o aparecimento da pe quena personalidade, com suas predilees, seus gostos, suas ojerizas. Ele distinguia Dick de Emelina, e, depois de Emelina hav-lo atendido nas suas necessidades materiais, se Dick se achava ali por perto, ele estendia-lhe os br aos para acompanh-lo. Ana considerava a Koko como um amigo, e quando um camarada d e Koko um pssaro com uma mentalidade curiosa e trs plumas vermelhas chegou um dia para observar o novo habitante da ilha, este se ressentiu da intruso e protestou. Amando apaixonadamente as flores e a tudo que brilhava, ele ficava encantado de passear pela laguna e queria saltar gua para colher os corais ricamente color idos que lhe pavimentavam o fundo. Ah! Ns rimos das jovens mames e de todas as proezas dos seus bebs que elas nos contam! Elas vem o que ns no podemos perceber, o desenvolvimento dessa flor misteri osa: a inteligncia. Um dia, na laguna, Dick, cessando de remar, deixou o barco flutuar um pouco merc das guas, Emelina fazia o menino danar sobre os seus joelhos, quando, de repen te, ele estendeu os braos para o barqueiro e articulou: Dick! A pequena palavra, tantas vezes ouvida e to facilmente repetida, foi a primei ra que ele pronunciou neste mundo. Uma voz que no tinha ainda falado acabava de articular a sua primeira palavra . Ouvir assim murmurar seu nome por um ser a quem criou a coisa mais doce e mais triste que um homem possa conhecer. Dick tomou o menino nos seus braos e, a partir daquele momento, o seu amor po r ele foi mais forte que o seu amor por Emelina, ou por qualquer outro ser sobre a Terra. a laguna de fogo/15 Depois da morte de Paddy, uma espcie de profunda desconfiana se desenvolvia no esprito de Emelina. Ela nunca fora inteligente, as lies a aborreciam e fatigavam, sem contudo torn-la mais sbia. Malgrado isto, seu esprito era daqueles nos quais as grandes verdades entram por choques. Uma verdadeira cincia pode insinuar-se na mentalidade de um ser humano sem qu e este o saiba. Age assim por intuio, ou antes como que levado pelo mais sbio racio cnio. Depois de termos aprendido a dar os nomes de tempestades s tempestades, de mo

rte morte e de nascimento ao nascimento, quando conhecemos o abecedrio dos marinh eiros e a lei dos ciclones de Peddington, a anatomia de Ellis e a arte das parte iras de Lewer, ns ficamos meio cegos. Hipnotizados por palavras e nomes, ns pensam os por meio de nomes e palavras, em vez de pensar por meio de imagens e a o chavo universal domina e a verdadeira inteligncia quase que se aniquila. Emelina j vira desabar tempestades sobre a ilha e o que lhe ficara no esprito podia-se exprimir assim: A manh fora alegre e feliz, nunca o sol havia mostra do tal esplendor, nunca estivera a brisa mais perfumada e a laguna mais tranqila. E eis que, de sbito, com o um louco impaciente por entrar em ao, um monstro obscurecia o sol e, urrando, es tendia a sua mo para devastar a ilha, enraivecendo as vagas, quebrando os coqueir os, matando os pssaros. Um pssaro se salvara, outro era arrastado, uma rvore cara, o utra continuava de p. A fria da tempestade amedrontava menos que o seu cego poder e a sua indiferena. Uma noite, enquanto o menino dormia, no momento em que a ltima estrela acabav a de abrir, Dick apareceu porta da casa; ele tinha descido at a margem e voltara; fez sinal a Emelina para que o seguisse; pousando o beb no cho, ela obedeceu. Vem e olha disse ele. Levou-a at a praia; aproximando-se, Emelina notou um fenmeno anormal. A certa distncia, a laguna parecia slida; dava a impresso de que era de mrmore cinzento com estrias negras. Chegando margem, a jovem percebeu que a aparncia suja e gris era apenas uma iluso tica. A gua flamejava, ao contrrio, abrasada por uma fosforescncia i nterna: cada galho de coral era uma tocha, cada peixe uma lanterna. A mar montant e, movendo as guas, fazia tremer o fundo esplendente, e as pequenas vagas que aca riciavam a areia deixavam atrs de si fulguraces de vaga-lume. Olha! repetiu Dick. Ele ajoelhou-se e mergulhou o brao na laguna. A parte submersa fumegava como uma tocha mal extinta. Emelina a distinguia to nitidamente como em dia claro. Ret irou o brao: a parte que tocara a gua estava coberta de uma espcie de verniz brilha nte. Eles j tinham visto a laguna fosforescente, todas as noites, quando a lua se deitava, seus habitantes se transformavam em peixes de prata, mas o espetculo atu al era novo e deslumbrante. Emelina ps-se a brincar com as ondas, soltando exclam aes de prazer. Era divertidssimo aquele fogo que no queimava. Dick molhou o rosto e sua face apareceu coberta com uma esplndida mscara luminosa. Espera ordenou ele. Correndo casa, trouxe Ana consigo e, dando a criana a Emelina, impulsionou o barco e deixou a margem. Os remos pareciam barras de platina e, sob eles, os pei xes circulavam como cometas, cada pedao de coral era uma lucola que dava a sua cla ridade para que a laguna se iluminasse como um palcio em festa. De p sobre os joelhos de sua me, Ana gritava diante da maravilha. Eles abordar am o recife e caminharam pela sua superfcie, o oceano estava branco e brilhante c omo uma geleira e as espumas pareciam feixes de fogos-de-bengala. Enquanto eles admiravam aquele encantamento, quase to rapidamente como se extingue uma lmpada elt rica, a fosforescncia do mar desapareceu. A lua se levantava, sua crista emergia das ondas e sua face se mostrou por detrs de uma cinta de vapores; deitada sobre o horizonte ela aparecia, vermelha, feroz, turbada de fumo, como a face de um de mnio. o ciclone/16 O dia seguinte amanheceu sombrio. Uma cpula gris-ferro pesava sobre o oceano, fechando hermeticamente o horizonte. Nem uma ruga, nenhum movimento. Os pssaros voejavam inquietos, como se um inimigo invisvel os tivesse expulsado da mata. Enquanto Dick acendia o fogo para preparar o almoo, Emelina caminhava de um l ado para outro, apertando o filho contra o peito; ela estava nervosa, opressa po r um mal-estar indefinvel. medida que a manh avanava, mais escuro ficava o dia, ergueu-se uma brisa e as folhas da rvore de fruta-po entrebateram-se como vidraas sob a ventania. Ameaava a t empestade, mas a sua aproximao no se assemelhava das tempestades ordinrias. Como a b

risa aumentasse, um rudo vindo de muito longe, de alm do horizonte, encheu o ar, a ssemelhava-se ao murmrio de uma grande multido; era, no entanto, to vago, que o bar ulho da brisa na folhagem acabou por abaf-lo. E no se ouviu mais nada alm do agitar dos galhos e do crepitar das folhas sob o vento do oeste, que aumentava e sopra va furiosamente, convulsionando a laguna e lanando verdadeiras nuvens de espuma s obre o recife. O cu, antes slido como um zimbrio de chumbo, estremeceu e depois se precipitou para leste como uma torrente impetuosa. De vez em quando, adivinhavam-se as pragas e resmungos dos capites da tempest ade, mas era ainda to longnquo, to indeterminado e to pouco terrestre, que parecia u m sonho. Sentada sobre as ervas secas, Emelina, abatida e silenciosa, aconchegava con tra si o menino adormecido, e Dick permanecia na abertura da porta, com a alma t ransida, mas no querendo deixar transparecer a sua comoo. A ilha encantada parecia agora coberta de uma capa de chumbo e de um vu de ci nza. Sua beleza esvara-se: no restava mais que tristeza e angstia. Sob o vento dese nfreado que soprava em rajadas, as palmas dos coqueiros retorciam-se em todos os sentidos, em atitudes de angstia; preciso ter assistido a um furaco tropical para compreender o desespero trgico que podem exprimir os coqueiros sacudidos pelo ve nto. A casa, felizmente, estava to bem localizada, que tanto a abrigava a espessa folhagem da rvore de fruta-po como a espessura do bosque que a separava da laguna. Sbito, rebentou um raio, como se Thor tivesse arremessado o seu martelo sobre o mundo. Partiram-se as nuvens e a chuva desceu em grandes lminas cristalinas e oblq uas; ela crepitou sobre as rvores, e as folhas, inclinando-se uma aps outra, forma ram um teto inclinado, por onde ela se despenhava sem cessar, como uma cascata. Dick entrou precipitadamente e sentou-se perto de Emelina, que entrebatia os dentes e segurava o menino, acordado pelos estrondos. Durante uma hora assim pe rmaneceram. s vezes a chuva cessava um momento, e os trovoes faziam vibrar a terr a e o oceano. O vento passava sobre a cabea deles, com um assobio montono. De repente, o vento acalmou-se, a chuva parou e uma luz espectral, plida como a luz da alba, filtrou pela porta. Acabou-se! exclamou Dick, levantando-se. Oh! Escuta arquejou Emelina, agarrando-se a ele e estendendo-lhe o beb, como se o contacto do jovem fosse uma proteo. Ela havia pressentido que se aproximava u ma fora mais violenta que a do furaco. Eles ouviram no silncio um rumor vertiginoso como o de um pio colossal que vie sse girando do outro lado da ilha. Era um ciclone. Um ciclone uma tempestade circular, um furaco em forma de anel. Este anel viaja atravs do oceano com uma rapidez e fria inconcebveis; entretant o, o seu centro um osis de paz. O som aumentou, tornou-se mais agudo e ensurdecedor; era uma sonoridade imen sa, trmula, de mpeto e de velocidade, trazendo consigo o rumor das frondes revolvi das e dos galhos que se quebravam; finalmente rebentou sobre o teto da cabana co m um brua que aturdia o crebro como um golpe de maa. Em um segundo, a casa foi arra ncada; seus pobres moradores, surdos, cegos e semi-mortos, agarravam-se s razes da rvore do po. O terror e o choque prolongado os nivelaram aos animais em pnico, cujo nico in stinto o da conservao. Eles no poderiam dizer h quanto tempo durava aquele horror, quando, como um lo uco furioso que se imobiliza um instante em meio de seu acesso, o vento se acalm ou e voltou a tranqilidade. O centro do ciclone passava sobre a ilha. Nos ares, percebia-se uma viso feric a. Uma multido de pssaros, de borboletas, de insetos, pairava no corao da tempestade , viajando sob a sua guarda. Embora a atmosfera fosse tranqila como um dia de vero , do norte, do sul, de leste e do oeste, de todos os pontos cardeais chegavam os gemidos dos ventos. Era chocante a inverossimilhana. Sob o terrvel mpeto de um furaco, no se tem tempo de pensar. Mas, ao centro de u m ciclone, fica-se numa calma absoluta. O caos nos cerca por todos os lados e no s deixa em repouso, temos ento lazer para observar o ciclone como a um tigre enja

ulado, de escutar os seus urros e observar a sua ferocidade. Emelina, apertando o beb contra o seio, sentou-se arquejante. O menino no sofr era coisa alguma, tinha gritado ao cair o primeiro raio, mas agora parecia tranqi lo e quase de bom humor. Dick saiu debaixo da rvore e olhou o prodgio areo. No seu trajeto, o ciclone tinha arrastado os voadores da terra e do mar, hav ia gaivotas brancas e fragatas negras, e borboletas; pareciam todos aprisionados sob uma grande cpula de vidro em movimento. E assim seguiam eles, semelhantes a t omos sem vontade. Com espantoso estardalhao, a parte sudoeste do ciclone varreu a ilha, recomean do seu trabalho de devastao. Aquilo durou horas; depois, pela meia-noite, o vento parou; e, quando o sol se ergueu, seus raios atravessavam um cu imaculado. O astro, sem uma escusa pela destruio causada por seus filhos, os ventos, mostrou as rvores desenraizadas, os pss aros mortos; trs ou quatro bambus os restos da cabana a laguna cor de turquesa e o mar de um verde-garrafa, coroado de espuma, a murmurar contra o recife. a floresta devastada /l7 A princpio, Emelina e Dick supuseram-se arruinados, mas em seguida Dick encon trou o velho isqueiro sob uma rvore e, ao lado dele, a faca de aougue; dir-se-ia q ue os dois utenslios, procurando fugir juntos, haviam fracassado na sua tentativa . Pouco a pouco, foram recolhendo a sua propriedade esparsa. A flanela tinha sido to bem enrolada em volta de um esguio coqueiro, que o tr onco parecia uma perna vestida de uma fazenda de cor alegre. Encontraram a lata de anzis enterrada num fruto cozido da rvore do po, e os dois outros objetos incrus tados pelos dedos do vento na prpria rvore; a vela do "Shenandoah" jazia sobre o r ecife, com um pedao de coral cuidadosamente colocado em cima, como para ret-la; qu anto vela do barco, nunca mais foi vista. H por vezes humor num ciclone, nenhuma outra perturbao atmosfrica poder acaso pro duzir efeitos mais esquisitos. Ao lado do grande turbilho existem pequenos turbilhes secundrios, cada um anima do pelo seu gnio especial. Duas vezes Ana fora quase arrancado dos braos maternos por aquelas ferozes co rrentes de ar em espiral, e Emelina guardou, talvez, no fundo do corao, a crena de que o nico desgnio daquele ciclone era arrancar-lhe o filho para lev-lo para o mar. O barco teria sido destrudo, se o primeiro p-de-vento no o tivesse emborcado, d eixando-o preso entre as rochas do fundo. Dick pde reav-lo logo que a mar baixou e, como no tivesse avaria alguma, flutuou to bem como dantes. Mas fora enorme o estr ago causado entre as rvores. Olhando a massa dos matos, notavam-se aqui e ali alg umas brechas, mas s no meio da floresta que se podia fazer idia do desastre. Magnfi cos coqueiros agonizavam, derrubados por um p titnico. s vezes se encontrava uma me ia dzia de lianas tranadas, formando um grosso cabo. O solo estava juncado de coco s, no se podia dar um passo sem tropear contra um deles. Era fcil assim recolh-los, grandes, mdios e minsculos, pois, em um mesmo p, os h de todas as idades e em todas as condies. Nunca se v um tronco de coqueiro perfeitamente vertical, eles se inclin am todos mais ou menos, talvez por isso que o ciclone tem mais efeito sobre eles do que sobre as outras rvores. Os artus, to lindos outrora, com sua casca quadriculada em losangos, estavam fendidos. Atravs dos sapotizeiros, no mais embrenhado da floresta, abrira-se uma larga estrada, como se, indo de uma margem outra da laguna, por ali tivesse pass ado um exrcito de cavalaria, artilharia e infantaria. Era o caminho aberto pelo g rande p do furaco; mas, procurando de um lado e de outro na mata, viam-se os camin hos praticados pelas correntes de menor importncia, onde tinham estado a divertir -se os bebs-turbilhes. Do seio da mata elevava-se para o cu, como um incenso de oferenda, um perfume de folhas arrancadas e disseminadas, de lianas partidas; o cheiro das folhas mid as, dos artus, das bananeiras e dos coqueiros sacrificados. Tereis encontrado, na mata, borboletas e pssaros mortos, mas, sobre o grande c

aminho da tempestade, encontrareis asas de borboletas, plumas, grandes folhas cor tadas como por tesouras, galhos de paletvios, pedaos de hibiscos triturados. Bastante forte para partir um navio, desenraizar uma rvore, aniquilar uma cid ade, bastante delicado para desfolhar flores, ptala por ptala, eis o ciclone. Emelina errou pela mata, no dia seguinte, com Dick, olhando os cadveres da gr ande rvore como da pequena borboleta; ela se lembrou dos pssaros terrestres que pe rcebera na vspera, arrebatados pela tempestade at o mar, onde seriam afogados. E s entiu-se aliviada de um grande peso. A desgraa viera, mas os poupara a todos trs. O infinito falara, mas no os tinha chamado. Ela ficou certa da existncia de qualqu er coisa, essa qualquer coisa que a civilizao chama de "fatalidade". O ciclone os havia tratado quase que amavelmente. Tinha levado a casa, mas l hes deixara todas as suas pequenas provises. A perda do isqueiro teria sido muito mais sria que a de uma dzia de casas, porque sem ele no saberiam acender fogo. O f uraco no lhes fizera pagar suficientemente essa misteriosa dvida que ns devemos aos deuses. um dolo tombado/18 No dia seguinte, Dick comeou a reconstruir a cabana. Armou uma tenda provisria com a vela encontrada no recife. Era um rduo trabalho cortar bambus e arrast-los at a clareira. Emelina ajudavao, enquanto Ana, sentado por terra, brincava com o pssaro, que desaparecera duran te a tempestade para voltar na tarde seguinte. Ele e o menino tinham logo travad o boas relaes. Desde o princpio, haviam-se mutuamente simpatizado, mas agora Koko p ermitia s vezes que as pequenas mos o enlaassem, pelo menos o quanto estas o poderi am fazer. raro que um homem possa ter um pssaro prisioneiro nas mos sem que o pssaro se a medronte e se debata, a sensao ttil mais agradvel depois da que consiste em apertar uma mulher nos braos. Ele experimenta a necessidade de estreit-lo contra o corao, se possuir um. Ana apertava Koko sobre o seu pequeno estmago moreno, como para most rar onde se encontrava o seu corao. Era um menino extraordinariamente vivo e inteligente. No prometia ser muito t agarela, porque, depois de ter aprendido a palavra "Dick", deu-se por muito temp o satisfeito antes de avanar mais no labirinto da conversao, mas, embora no utilizas se a sua lngua, ele falava de diversas outras maneiras. Com seus olhos, que brilh avam tanto como os de Koko, e que eram cheios de toda espcie de malcias, com suas mos e seus ps e todos os movimentos do corpo. Tinha um mtodo especial de agitar as mos quando estava contente, era a sua maneira de formular quase todas as nuanas do prazer: quanto clera, ele a exprimia raramente, mas a exprimia bem. Ele atravessava agora a fronteira do pas dos brinquedos. Em plena civilizao, te ria possudo um cachorro de borracha ou uma ovelhinha de l, mas ali no havia dessas coisas. Emelina abandonara a sua velha boneca quando haviam fugido do outro lado da ilha e Dick, numa das suas excurses, a tinha encontrado meio enterrada na are ia da praia. Ele a trouxera como curiosidade, guardando-a em casa. O ciclone a tinha depe ndurado por irriso no galho de uma rvore vizinha e, quando a apresentaram a Ana, e ste a rejeitou, desgostado. Mas ele brincava com flores, conchinhas de cores viv as ou fragmentos de coral, fazendo com eles vagos desenhos sobre a relva. E nada mais lhe teria dado tanto prazer como aqueles simples objetos, brinquedos dos f ilhos dos trogloditas, das crianas da Idade da Pedra. Bater uma contra a outra du as valvas de ostra e fazer rudo, que que uma criana pode desejar de melhor? Uma tarde, quando a casa comeava a tomar forma, eles interromperam seu trabal ho e penetraram na mata, carregando Ana alternativamente. Dirigiram-se para o va le do dolo. Desde a chegada de Ana, e mesmo antes, que aquela figura de pedra, hirta na sua terrvel e misteriosa solido, cessara de ser um espantalho para Emelina; e pare cia at que se tornara vagamente benvola. O amor nascera sua sombra e, sua sombra, a alma da criana entrara na sua me. De onde vinha aquela alma? Quem o sabia? Certa mente, ela havia atravessado o cu! Decerto o monlito, que foi outrora o deus de um

povo desconhecido, inspirou a Emelina o instinto da religio; neste caso, fora el a a sua ltima adoradora, pois, penetrando no vale, o encontrou cado, com o rosto p or terra. Grandes blocos o cercavam; evidentemente, houvera um desabamento de te rra, uma catstrofe preparada durante sculos e determinada talvez pela chuva torren cial do ciclone. Em Ponape, Huahine, na ilha da Pscoa, podem-se ver grandes dolos tombados da m esma maneira; templos ruem, e terraos que pareciam slidos como montanhas se desagr egam em informes montculos de pedra. a expedio/19 No dia seguinte, a luz da manh, filtrando-se entre as rvores, despertou Emelin a na sua barraca improvisada. Naquele lado da ilha, a aurora era mais tardia do que no lado oriental: pelo menos o parecia, pois h uma enorme diferena entre a aurora atravs da mata e a que desliza pelo mar. No outro lado, se estivsseis sentados sobre a areia, defronte abertura dos re cifes que olha para o oriente, apenas vereis o cu mudar de cor antes que a linha d o mar se inflamasse. Ento o firmamento se aclara da gama ilimitada dos azuis, os raios do sol inundam a laguna e palhetas de luz perseguem os frisos d gua. Mas no lado de c diferente. O cu sombrio est cheio de estrelas, e as rvores form am grandes massas de sombra aveludada. Nesse instante as folhas do artu lanam um suspiro, as da rvore do po estremecem e o rudo do mar nos recifes torna-se mais fra co. A brisa do mar desperta e, como se algum as tivesse soprado, as estrelas se e xtinguem e o cu transforma-se num velum do azul mais plido. Essa indireta aproximao da aurora nos impregna de uma misteriosa doura. Pode-se enxergar, mas as coisas v istas so indecisas e vagas, exatamente como no crepsculo de um dia de vero na Ingla terra. Apenas Emelina se erguera, Dick tambm despertou; foram at a margem. Dick ps-se a nadar e ela, segurando a criana, ficou sobre a margem a olh-lo. Sempre, depois de uma grande tempestade, a temperatura da ilha se tornava ma is vivificante e mais leve; naquela manh, o ar parecia o de uma manh de primavera. Emelina o sentiu enquanto observava os gestos do nadador, ela ria e levantava o menino para que ele os visse. Estava encantadora; a brisa, impregnada de todos os perfumes da mata, fazia revoar os seus cabelos, na plena luz que os envolvia. A natureza parecia acariciar aquelas criaturas. Dick subiu para a margem, para secar o corpo ao vento; examinou o barco, tin ha decidido abandonar, at o meio-dia, a construo da casa, e ir at o antigo acampamen to, para ver como as bananeiras se haviam comportado durante a tempestade. Sua a nsiedade a seu respeito era bem compreensvel. Na despensa que era a ilha, forneci am as bananeiras um alimento aprecivel. Ele experimentava por elas os sentimentos de uma boa dona-de-casa, e no podia ficar tranqilo antes de verificar a extenso do s estragos, se que os havia. Examinou o barco e foi fazer a refeio matinal com Emelina. O gnero de vida que levavam tornava-os previdentes. Eles guardavam, por exemplo, as cascas de coco, as quais lhes serviam de combustvel. Na vspera, com sua prudncia habitual, Dick pus era a secar ao sol uma poro de galhos molhados pela chuva, e assim dispunham sempr e de combustvel em quantidade. Terminada a refeio, Dick muniu-se da faca para cortar as bananas que houvesse, bem como da azagaia e dirigiu-se para o barco, acompanhado pela mulher e pelo f ilho at a margem. Entrando no barco, j ia desamarrar, quando Emelina o interrompeu. Dick! Que h? Eu quero ir contigo. Tu! exclamou ele. Sim... Eu no tenho mais medo. Era verdade. Depois da vinda da criana, ela perdera o medo que lhe inspirava o outro lado da ilha.

A morte uma grande escurido, a nascena uma grande luz, ambas se haviam confund ido no seu esprito. E neste, se a escurido ainda persistia, j no era to terrvel, pois a claridade nela se infiltrava. O que resultava era um crepsculo triste mas esplnd ido, e ermo dos terrveis fantasmas. Outrora, ela vira uma porta misteriosa do mundo fechar-se sobre um ser human o. E isso a enchera de um inexprimvel terror, pois no conhecia nem palavras para e xpress-lo nem religio ou filosofia que o explicasse ou comentasse. Agora, recentem ente, uma outra porta, igualmente misteriosa, havia admitido um ser humano e, no fundo do seu esprito, no lugar onde se encontram os sonhos, cada uma destas gran des realidades tinha justificado a outra. A vida se esvara no vcuo, mas do vcuo a v ida voltara. O vcuo continha vida: j no era mais terrvel. Talvez tenham nascido as religies no dia em que uma mulher, sentada sobre um rochedo, ante um mar pr-histrico, olhara para o seu recm-nascido, lembrando-se do h omem que haviam matado, e encerrando assim entre dois milagres a idia de uma vida futura. Emelina, com o filho nos braos, sentou-se atrs, enquanto Dick empurrava o barc o. Mal tomara ele os remos, um novo passageiro veio para bordo. Era Koko; o pssar o os acompanhava muitas vezes at os recifes, embora, coisa singular, nunca l fosse por si mesmo. Traou um ou dois crculos acima deles e foi pousar na platiborda da proa, ali se empoleirando, encolhido, pendendo sobre a gua as longas penas de sua cauda. Emelina arrancou um ramo, mas, em lugar de um ramo de cacaueiro, colhera uma penca desses terrveis frutos "de que a gente no desperta", conforme a expresso do velho Paddy, e cuja absoro produz um sono e sonhos de quem ningum acorda, at a m orte. Lana-os fora! gritou Dick, que se lembrava. Daqui a um instante respondeu ela. Ela os suspendia adiante da criana, que ria e tentava agarr-los. Em seguida, e squecendo-os, deixou-os cair ao fundo do barco, pois alguma coisa se havia choca do contra a quilha e a gua espadanava em redor. Uma luta selvagem se desenrolava embaixo. Na estao dos amores, travam-se grandes batalhas na laguna; os peixes tm, como o s homens, seus cimes, suas questes de amores, suas inimizades. Percebiam-se vagamente dois grandes vultos, um em perseguio do outro; eles ate rrorizavam Emelina, que pediu a Dick para remar mais depressa. Deslizaram ao lon go das formosas ribas que Emelina jamais tinha visto, pois ela dormia no terrvel dia em que Dick a transportara no barco. Antes de afastar-se, ela voltara a cabea, para olhar o artu que abrigava a su a casa em construo, e agora que contemplava essas clareiras e esses bosques descon hecidos, a imagem da cabana se elevava no seu esprito. Era bem pouca coisa, mas e ra a casa deles, e Emelina tinha to pouco o hbito da mudana, que j comeava a invadi-l a uma espcie de saudade; mas aquilo passou depressa, ela no pensou mais seno nas pa isagens da redondeza, para as quais procurava despertar o interesse da criana. Chegando ao lugar onde tinha pescado o albicora, Dick descansou sobre os rem os e contou a histria. Era a primeira vez que fazia meno daquilo, o que bem denotav a o seu grau de mutismo e de selvageria. Tinha falado das pirogas para explicar a Emelina a procedncia da azagaia, mas quanto a contar-lhe os incidentes da pesca , ele nisso no pensava, da mesma forma que o pele-vermelha no pensa em detalhar su a squaw as anedotas de uma caa ao urso. O desprezo mulher a primeira regra dos se lvagens, e talvez a ltima lei de alguma velha e profunda filosofia. Ela escutou, e o captulo do tubaro f-la estremecer. Eu queria ter um anzol bem grande para peg-lo continuou Dick, olhando a gua co mo para lobrigar o seu inimigo. No penses mais nele retrucou Emelina, apertando mais estreitamente a criana co ntra o seu seio. Continua a remar. Ele retomou os remos, mas sua expresso dizia que estava a rememorar o inciden te. Depois de passarem o ltimo promontrio e terem avistado a praia e a abertura do canal, Emelina teve um pequeno sobressalto de espanto. O local tinha mudado, de maneira sutil; as coisas ali eram as mesmas, e, no entanto, tudo parecia diferente; a laguna parecia mais estreita, o recife mais p rximo, os coqueiros tinham diminudo de metade. Ela comparava a realidade com a rec

ordao. A mancha escura sobre o recife desaparecera, varrida pelo ciclone. Dick puxou o barco para a rampa da areia, deixando Emelina sentada popa, enq uanto ele partia em busca de bananas; ela, de bom grado, lhe teria feito companh ia, mas o menino estava adormecido. Quando Ana dormia era ainda mais lindo do qu e acordado. Parecia Cupido, moreno, privado de asas, sem seu arco e suas flechas . O sono o perseguia sempre e o atingia nas posies mais imprevistas, enquanto ele se divertia, ou em qualquer outro momento. Algumas vezes Emelina o encontrava as sim adormecido, tendo na mo a concha colorida ou o pedao de coral com que estava b rincando. Tendo apanhado uma enorme folha de rvore do po, Dick a deu a Emelina para abri gar-se do sol. Ela a erguia sobre a cabea, olhando as areias brancas e batidas de sol. O vo de um sonho no se efetua em linha reta. O de Emelina evocava toda sorte de pinturas sugeridas pelo quadro que tinha diante de si. A gua verde sob o casc o de um navio e a palavra "Shenandoah" vagamente a refletir-se nela. A chegada i lha. O pequeno servio de ch devidamente arrumado sobre a areia branca. Oh! Ela dis tinguia ainda as margaridas, pintadas no prato, e a sua memria contava as colhere s de estanho. Via as grandes estrelas que cintilavam noite sobre os recifes, os Cluricaunos e as fadas, o barril perto do poo, onde floriam as campnulas e as rvore s curvadas sob o vento, ao alto da colina. Todas essas vises desfilavam diante de la, trazendo-lhe uma tristeza mesclada de prazer. Sentia-se em paz com o mundo. Toda pena parecia abandonada l muito longe, atrs deles, como se o grande furaco que os deixara indenes fosse um embaixador das potncias superiores, mensageiro de pr oteo e de amizade. De repente ela percebeu, entre a proa do barco e a areia da margem, uma faix a de gua azul que se alargava. O barco estava flutuando. o guardio da laguna/20 Daquele lado da ilha, os estragos, embora grandes, tinham sido menores que o s do outro lado. Para chegar ao lugar desejado, teve Dick de fazer a escalada de rvores tombadas, lutando contra o emaranhamento das lianas, que outrora pendiam no ar. As bananeiras pareciam ter sido poupadas, por uma especial concesso da Pro vidncia, at mesmo os grandes cachos estavam quase intactos, e o jovem ps-se na obri gao de trepar para colh-los. Cortou dois e, carregando um s costas, voltou para a ca noa. Tinha atravessado j metade das areias, com a cabea inclinada sob o fardo quand o um apelo longnquo lhe chegou aos ouvidos; levantando os olhos, avistou o barco vogando na laguna com o vulto de Emelina, que lhe fazia sinais da proa. Entre o barco e a praia, um remo flutuava sobre as guas, sem dvida ela o havia perdido quando tentava reconduzir a embarcao. Lembrando-se que a mar ia baixar, el e lanou o carregamento por terra, e atirou-se gua. Emelina, de p, olhava-o. Dispond o de um nico remo, ela se encontrava sem recursos para ir ao seu encontro, pois no sabia remar com um remo s. A princpio no se assustara, pois sabia que Dick viria e m breve em seu auxlio, mas a distncia entre o barco e a margem continuava a aument ar. A praia parecia j muito afastada e, para o lado do recife, a vista era terrif icante: o canal se abria como uma goela hiante, pela qual o alto-mar atraa a barc a. Nesse momento, Dick sara do mato, com o carregamento s costas e Emelina chamouo. A princpio, ele no pareceu ouvir, em seguida olhou, deixou cair as bananas, cor reu pela areia at a margem, lanando-se gua e agarrou o remo flutuante. Rebocando o remo e nadando com um s brao, ele se aproximava rapidamente do bar co. Dez ps apenas o separavam da embarcao, quando Emelina viu atravs das ondas clara s um tringulo sombrio, semelhante a um pano envolvendo uma espada, que avanava rap idamente na direo de Dick. Quarenta anos antes, tendo a forma e a semelhana de um pequeno pinho, o monstr o flutuava ao acaso sobre o vasto oceano. Presa fcil para qualquer animal que pud esse abocanh-lo de passagem, tinha ele escapado s mandbulas do cao, tinha escapado do albicora e do calamar; sua vida era uma longa srie de milagres que o salvaram da morte; sobre um milhar de seus semelhantes, nascidos no mesmo ano, apenas ele e alguns outros tinham sobrevivido. H trinta anos dominava ele sozinho a laguna, c

omo um tigre feroz reina sobre a jngal. Conhecera a palmeira do recife quando est a apenas ia nascendo, e conhecia o recife mesmo antes do aparecimento da palmeir a. Se se pudesse juntar as vtimas que ele devorara, formariam uma montanha. Era o guardio da laguna. Apontando para o animal, Emelina lanou um grande grito. Dick voltou-se, viu o inimigo, largou o remo e nadou desesperadamente para o barco, enquanto Emelina, tomando o remo que restava, arremessava-o, com a p para a frente, sobre o animal , ento j bastante prximo de Dick. Ela seria incapaz de lanar uma pedra convenienteme nte; no entanto, semelhante a uma flecha, o remo atingiu seu alvo, fazendo o tub aro mergulhar e salvando a Dick. Um segundo depois, este trepava para o barco. Estava so e salvo, mas perdera o remo. o brao do mar/21 Nada, no barco, podia substituir os remos e as vagas o arrastavam para o alt o-mar; o remo estava afastado apenas uns cinco ou seis metros, mas Dick no podia tentar alcan-lo, porque, sem esforo, o tubaro nadava agora a bombordo com a mesma ve locidade do barco; percebia-se o animal meio velado pela gua. O pssaro, empoleirado na platiborda, pareceu adivinhar o perigo; ele se elevo u no ar, voou em crculo e retomou o seu lugar, com as penas todas arrepiadas. Dick, desesperado, apertava a cabea entre as mos: sem que nada pudesse fazer, ele via fugir a margem e ouvia o rumor dos caches. A ilha lhes era tirada assim pelo grande brao do mar. Sbito, a pequena embarcao foi tomada pela jusante combinada dos dois braos da laguna. O rudo do recife aumentou de sbito, como se uma porta se tivesse aberto brusca mente. De cada lado as vagas marulhavam, as gaivotas gritavam e o oceano pareceu hesitar um momento se devia lev-los para o largo ou arremess-los contra a barreir a de coral. Essa hesitao no durou mais que um instante. A fora da mar prevaleceu, e o pequeno barco vogou graciosamente para o mar. Dick deixou-se cair ao fundo do barco, perto de Emelina, que, sentada, embal ava a criana nos braos. O pssaro, levado pelo seu instinto, e vendo afastar-se a terra, ergueu o vo, d escreveu duas ou trs voltas em torno do barco e, como um encantador, mas infiel gn io, voltou para a margem. juntos/22 A ilha afundava lentamente no mar. Ao sol-pr, no era mais que um vestgio, um po nto sobre o horizonte do sudoeste. Aproximavam-se da lua nova. O barco passou da luz do poente para um crepsculo lils, depois vogou sob as estrelas. A jovem, apertando a criana contra o seio, apoiava-se s espduas de seu companhe iro, nenhum deles falava. Todos os espantos da sua breve existncia se resumiam naquela ltima surpresa, a tingiam o seu apogeu naquela viagem para o desconhecido. Agora que a primeira impresso desaparecera, j no experimentavam nem tristeza ne m temor. Estavam juntos: viesse o que viesse, nada os apartaria, mesmo se devess em adormecer e nunca mais despertar. Se um s fosse levado, ficando o outro em ter ra! Este pensamento lhes ocorreu ao mesmo tempo. Voltaram-se um para o outro e s eus lbios e suas almas se encontraram, confundindo-se num sonho nico, enquanto que l no alto, o infinito respondia com intermitentes cintilaes, e Canopo fulgurava co mo a espada aguda de Azrael. A mo de Emelina segurava o ltimo e mais misterioso presente daquele mundo de m istrios que eles tinham conhecido: o ramo de bagas escarlates. livro 3 Lestrange, o louco/1 Na costa do Pacfico, tinham-no apelidado de "Lestrange, o Louco". Ele no estav a louco, mas uma idia fixa o atormentava. Uma viso o perseguia, a das duas crianas

e um velho marinheiro arrastados num pequeno barco sobre um grande mar azul. Quando o "Arago", a caminho de Papeete, recolheu as embarcaes do "Northumberla nd", apenas os marinheiros da chalupa viviam ainda. Le Farge, o capito, tinha per dido o juzo, e nunca mais o recuperou. Lestrange estava completamente desequilibr ado, o horrvel pesadelo dos barcos e a perda das crianas reduziram-no ao estado de runa. Os marinheiros, como todos os da sua condio, tinham sido menos atingidos e e m breve puderam andar pelo navio e sentar-se ao sol, sobre o convs. Quatro dias depois do salvamento, o "Arago" encontrou-se com o "Newcastle", que rumava para S. Francisco, e os nufragos passaram para bordo deste. Se um mdico tivesse visto Lestrange no "Northumberland", durante a longa calmaria que prece dera o incndio, declararia que s um milagre poderia prolongar-lhe a vida. E o mila gre aconteceu. No hospital de S. Francisco, as nuvens, evaporando-se de seu esprito, puseram a descoberto a imagem das crianas no pequeno barco. Essa imagem no o abandonara, mas ele a via sem compreend-la; os horrores suportados na chalupa, o esgotamento fsico, tinham submergido todos os acidentes do grande desastre, misturando-os num fato brutal e s pela metade compreendido. Quando o seu crebro se esclareceu, todo s os outros incidentes desapareceram e a sua memria, nada mais percebendo alm das crianas, comeou o esboo de uma imagem que ele devia contemplar incessantemente. A memria no pode criar um quadro sem que a imaginao o retoque, e suas pinturas m enos arranjadas so uma obra artstica e no fotografias. O intil rejeitado, o principa l idealizado. Ela pintora, mas tambm poetisa. A imagem que Lestrange via sem cess ar estava impregnada dessa poesia diablica, pois ela representava o pequeno barco e o seu carregamento humano a vogar sobre um oceano azul e cheio de sol. Um oce ano esplndido, embora terrvel, pois que lhe evocava a lembrana da sede. Lestrange estava a morrer quando, levantando-se, por assim dizer, sobre os c otovelos, contemplou essa imagem mental. E isto o chamou vida. Sua vontade retes ou-se, ele recusou morrer. A vontade de um homem, sendo ele bastante forte ainda , capaz de afastar a morte. Inconsciente de tal faculdade, apenas compreendeu qu e um interesse absorvente se apoderara dele: encontrar as crianas. A doena que o matava cessou seus estragos, ou antes, foi aniquilada por sua v ez pela vitalidade crescente contra a qual entrou em luta. Ele deixou o hospital , instalou-se no Palace Hotel, de onde, como um general em chefe, comeou o seu pl ano de campanha contra a fatalidade. Quando a equipagem do "Northumberland", tomada de pnico, desobedecera s ordens superiores, baixando precipitadamente os barcos e abandonando-se ao destino, no mar alto, os papis do navio, os mapas, os dois livros de bordo, tudo, enfim, que poderia indicar a localizao exata do navio, se havia perdido. Dentre os sobrevive ntes da equipagem, nenhum, naturalmente, pde fornecer a mnima indicao til. Tudo o que se podia saber era que o sinistro se produzira em qualquer parte, ao sul da Lin ha. No crebro de Le Farge estava impressa a posio exata, mas quando Lestrange foi vlo na casa de sade onde se achava em tratamento, encontrou-o completamente restab elecido de sua loucura furiosa completamente restabelecido e brincando com uma b ola de pano colorida... Havia ainda o livro de bordo do "Arago", nele se encontraria o ponto onde fo i recolhida a chalupa. O "Arago" dirigia-se a Papeete, Lestrange esperou a sua volta; o navio estav a atrasado e Lestrange, dia a dia, consultou a lista dos retardatrios, mas sem re sultado, pois nunca mais se ouviu falar desse navio. No se pode afirmar que haja naufragado, era simplesmente um desses barcos que no voltam nunca. o segredo do oceano/2

Perder a um filho amado , sem dvida, o pior sofrimento que possa acontecer a u m pai. Eu no me refiro morte. Um menino passeia na rua, a criada se distrai um instante, ele desaparece. A princpio no se tem noo ntida da coisa, experimenta-se um choque no corao, as palpita iminuem ante o pensamento de que uma criana perdida numa cidade civilizada no pode

deixar de ser encontrada pelos vizinhos ou pela polcia. Entretanto a polcia ou os vizinhos ignoram o incidente, as horas passam. Cada minuto pode trazer o vagabu ndo, os minutos fogem, o dia escurece, a tarde muda-se em noite, a noite em auro ra, e os rudos de um dia ordinrio recomeam. No se pode permanecer em casa. Fica-se i nquieto, sai-se, para voltar imediatamente a pedir notcias, anda-se com o ouvido escuta, mas o que se ouve incomoda os sons habituais, o rolar dos carros, os pas sos dos transeuntes vm aumentar a nossa tristeza. A msica transforma a nossa misria em loucura, e a alegria dos outros to monstruosa como uma gargalhada ouvida no i nferno. Se algum traz o corpo do filho morto, pode-se chorar, mas fica-se aliviad o, a incerteza que mata. Os anos voam, fica-se velho. A gente diz: Ele teria vinte anos, hoje! O velho cdigo penal de nossos pais, to severo todavia, no traz uma punio proporci onada ao crime de raptar uma criana. Restava uma esperana a Lestrange: que Dick e Emelina tivessem sido recolhidos por algum navio. No se tratava de crianas perdidas numa cidade, mas no imenso Pacf ico, onde viajam navios de um porto a outro. Para tornar pblico o desaparecimento , era necessrio anunci-lo pelos quatro cantos do mundo. Ele era rico, e oferecia m il dlares para ter notcias dos desaparecidos, e vinte mil se lhos trouxessem. O anncio apareceu em todos os jornais suscetveis de cair sob os olhos de um ma rinheiro, desde o Liverpool Post at o Dead Bird. Os anos passaram, sem trazer nen huma resposta ntida. Certa vez, viera a notcia de duas crianas recolhidas nas proximidades das Gilb erts. Era verdade. Mas no se tratava das suas. Este incidente penalizou muito o p obre homem e tambm o estimulou, ele dizia: "Se se salvaram aqueles, por que no ter ia acontecido o mesmo com os meus?". No fundo de seu corao, tinha certeza de que e les viviam. Sua imaginao lhe sugeria a morte deles de vinte maneiras diversas, mas um murmrio saa da grande extenso azul, assegurando-lhe, por intervalos, que os que ele procurava, estavam sua espera. Seu temperamento assemelhava-se ao de Emelina. Era um sonhador que estava pr edisposto a receber as leves ondas misteriosas que povoam o ter, transmitindo-se de uma inteligncia a outra e que emanam mesmo das coisas a que ns chamamos de inan imadas. Uma natureza mais vulgar, embora experimentando igual sofrimento, teria sem dvida desesperado, mas ele continuou a procurar. No fim do quinto ano, alugou uma escuna, e fez um estril cruzeiro de dezoito meses, durante o qual parou em p equenas ilhas desconhecidas. Uma vez, sem o saber, chegara a uma terra afastada apenas trezentas milhas d o teatro de nossa histria. Se quiserdes saber o pouco de chance que havia naquela busca sem rumo, no olh eis um mapa do Pacfico, mas ide l. Centenas e centenas de milhares de lguas quadrad as de oceano, milhares de ilhas, de recifes e de atis. H poucos anos, muitas dessa s ilhotas eram completamente desconhecidas, e o so ainda, embora as cartas do Pacf ico sejam o triunfo mximo da hidrografia e a ilha desta narrativa estivesse j marc ada nos mapas do Almirantado, de que poderia isto servir a Lestrange? Enervado pela desolao do mar, ele regressou. Naqueles dezoito meses, o Pacfico lhe revelara sua grandeza, sua discrio e inviolabilidade. O navio no podia ir seno em linha reta, para esquadrinhar com esperana o desert o do mar, teria sido preciso possuir o dom da ubiqidade e navegar em todas as dir ees ao mesmo tempo. Muitas vezes ficava ele inclinado sobre o tombadilho, a olhar as vagas, como se quisesse interrog-las. Ento os crepsculos comearam a pesar-lhe sobre o corao, as estrelas lhe falaram um a nova linguagem, e ele sentiu que era chegada a hora do regresso, se quisesse v oltar so de esprito. Chegando a S. Francisco, foi ver seu agente Wannamaker, de Kearney Street, m as no havia novidade alguma. o capito fountain/3 Ele alugara vrios quartos no Palace Hotel e levava a vida de um homem rico qu e no se entregava aos prazeres. Nas suas relaes com algumas pessoas da melhor socie

dade local, conduzia-se em todas as circunstncias como um esprito so; um estranho q ue acaso o visse no teria jamais suspeitado da sua reputao de loucura; mas, conhece ndo-o melhor, perceberia que o seu esprito estava ausente, e, seguindo-o na rua, o ouviria falar sozinho. Uma vez, durante um almoo, ele se levantou, deixou a mes a, e no voltou mais; esses nadas bastavam, no entretanto, para suscitar murmuraes. Certa manh, a 2 de maio, oito anos e cinco meses exatamente aps o naufrgio do " Northumberland", lia Lestrange no seu gabinete, quando o telefone tilintou. Al! gritou uma voz ianque. Lestrange? Bem. Venha verme. Wannamaker. Tenho notc ias para o senhor. Lestrange conservou um momento o receptor suspenso, depois colocou-o no supo rte. Foi at uma cadeira, sentou-se, conservando a cabea entre as mos, em seguida se levantou, foi de novo ao telefone, mas no se animou a utiliz-lo. Tinha medo de ma tar a sua nova esperana. Notcias! Que mundo pode conter esta palavra? Em Kearney Street, parou defront e ao escritrio de Wannamaker, reunindo as suas idias e olhando a multido passar; en to decidiu-se a entrar, subiu uma escada e, empurrando o batente de uma porta, en controu-se numa grande sala. Atordoava-o o rudo metlico de uma dzia de mquinas de es crever, bem como o movimento do escritrio. Empregados passavam com pacotes de cor respondncia. E Wannamaker, que, inclinado sobre a mesa de uma mquina de escrever, corrigia uma carta, levantou-se. Viu o recm-chegado e levou-o para o seu gabinete . Que h? perguntou Lestrange. Isto, apenas respondeu o outro, tomando um pedao de papel no qual estavam esc ritos um nome e um endereo, Simon J. Fountain, 4, Rathray Street. perto do cais. Diz ele que viu seu anncio num jornal velho e acredita poder dar-lhe informaes. No e specificou coisa alguma, mas sem dvida vale a pena ir falar com ele. Vou, imediatamente. Conhece Rathray Street? No. Wannamaker, chamando um empregado, deu-lhe algumas instrues; ento Lestrange e o rapaz saram. Lestrange deixou o gabinete sem agradecer nem despedir-se, o que po uco impressionou a Wannamaker: ele conhecia o seu cliente. Rathray Street , ou melhor, era, antes do tremor de terra, bordada por pequen as casas de bom aspecto. Tinha um ar vagamente martimo, acentuado pelo cheiro do cais e o rumor das mquinas de vapor carregando e descarregando os navios, rudo que no cessava noite e dia. O nmero 45 era semelhante a seus vizinhos, nem melhor nem pior. A porta foi a berta por uma mulher baixa, bem tratada e de meia-idade. Era uma mulher banal, s em dvida, menos para Lestrange. O Senhor Fountain est? perguntou ele. Sou o anunciante. Oh! Muito bem, senhor replicou ela, fazendo-o entrar para um pequeno salo esq uerda do corredor. O capito est na cama; invlido. Tenha a bondade de esperar um min uto. H oito anos que ele no fazia seno isso, esperar; que lhe importavam alguns inst antes mais? Mas em nenhum momento, durante aqueles oito anos, tinha sofrido tant o; seu corao sabia que ali, naquela casa qualquer, de lbios que eram sem dvida os do marido daquela mulher comum, ouviria o que ele temia ou esperava. Ostentava-se, numa chamin, um barco aprisionado numa garrafa e havia conchas oriundas de praia s longnquas, todas as coisas que ornamentam em geral a casa de um velho marinheir o. Lestrange podia ouvir o que se passava no quarto ao lado, provavelmente o do enfermo. Aquela gente, sem dvida, estava com as melhores disposies a respeito do visitan te. O anncio deste, sua fisionomia e maneiras, deviam dar-lhes a entender que no e ra momento de se fazerem esperar. A mulher, no entanto, ps-se a arranjar o quarto e compor o leito, como se Lestrange estivesse em estado de notar tais detalhes. Por fim a porta se abriu e a mulher lhe disse: Venha por aqui, senhor. Ela o conduziu a um quarto de dormir que dava para o corredor. A pea em ordem apresentava o aspecto indefinvel de um quarto de doente. Um homem estava deitado no leito. Seu ventre enorme formava uma montanha sob a coberta, e, sobre esta,

pendiam suas barbas negras, suas mos grandes e inteis, mos desejosas de trabalhar, mas impotentes. Sem mover o corpo, ele voltou lentamente a cabea para o visitante ; a lentido do movimento no vinha da fraqueza, mas da sua natureza mole e sem emoo. Est aqui o senhor, Simon gritou a mulher, por trs dos ombros de Lestrange. Em seguida desapareceu, fechando a porta. Sente-se, senhor. No tenho o prazer de saber o seu nome mas a minha patroa di sse que o senhor veio por causa do anncio que eu vi ontem. Passou um jornal ao visitante. Era um Sydney Bulletin, que datava de trs anos . Sim respondeu Lestrange, examinando o jornal o meu anncio. esquisito, muito esquisito murmurou o Capito Fountain que eu s o tenha visto o ntem. H trs anos que eu tinha esse jornal no fundo do ba, entre uma poro de velharias . Ah! Se a patroa no tivesse feito uma limpeza na mala! "D-me esse jornal", disse eu, vendo-o nas suas mos, e me pus a l-lo, porque um homem l tudo quando est de cama h oito meses, como eu, com esta hidropisia. Eu viajei em baleeiros durante quare nta anos; meu ltimo barco foi o "Sea-Horse". H sete anos um homem achou qualquer c oisa na praia de uma das ilhas a leste das Marquesas; ns framos ali fazer proviso d gu a. Sim, sim, e que encontrou ele? interrogou Lestrange. Patroa! berrou o capito, com uma voz que sacudiu as paredes do quarto. A mulher apareceu. Procura as minhas chaves, no bolso da minha cala. A cala pendia atrs da porta, como se esperasse ser enfiada. A mulher deu as ch aves ao marido, ele escolheu uma que lhe estendeu, designando a gaveta de uma me sa perto do leito. Ela sabia evidentemente o que o capito queria, pois abriu a ga veta e retirou uma caixa, uma pequena caixa de cartolina, envolvida num pedao de fita. Fountain desfez a atadura e tirou de dentro da caixa um minsculo servio de c h, um bule, uma jarra para leite, seis pequenas taas, tudo ornamentado de margarid as. Lestrange escondeu o rosto nas mos. Ele conhecia aqueles objetos, pois Emelin a lhos havia mostrado, num acesso de confiana. Por toda a imensidade do oceano, tinha ele andado a procurar em vo, e eis que aqueles pequeninos nadas lhe voltavam como uma mensagem, cujo estranho e denso mistrio lhe curvava a cabea, esmagando-o. O capito dispunha os objetos sobre o jornal aberto a seu lado, desenrolando o papel de seda que protegia as colherinhas, ele as contou, como se estivesse a f azer o cmputo de alguma mercadoria, e colocou-as sobre o jornal. Quando encontraram isso? perguntou Lestrange, falando por entre os dedos. H sete anos. Ns tnhamos ido fazer proviso d gua num lugar ao sul da Linha; nossos arinheiros a chamam "a ilha da palmeira" por causa de uma rvore que h entrada da l aguna. Um dos meus homens trouxe a caixa para bordo. Ele a encontrou numa cabana de bambus, que eles demoliram para divertir-se. Meu Deus! exclamou Lestrange. E no havia ningum, ningum? Os homens afirmaram que nada viram nem ouviram; a cabana parecia abandonada; no tivemos tempo de desembarcar para procurar os nufragos; ns perseguamos baleias. Qual o tamanho da ilha? Oh! Uma ilha de tamanho mdio. No tem habitantes. Ouvi dizer que ela era tabu, por qu? S Deus sabe. Alguma idiotice dos canacos, sem dvida. De qualquer maneira, a est o que ns achamos. Reconhece os objetos? Sim. Parece esquisito tornou o capito que eu os tenha achado, que seu anncio tenha aparecido e que a sua resposta estivesse entre as minhas velhas bugigangas; mas assim o mundo. Sim, mais que esquisito... Naturalmente, os nufragos ainda podem l estar, sem que eu ou o senhor saibamos . L esto! afirmou Lestrange, que fixava os brinquedos como se lesse neles algum sentido oculto. Tem a posio da ilha? Tenho. Mulher, passa-me o meu livro de bordo. Ela trouxe um calhamao negro e seboso e o alcanou a Fountain, que o folheou e

leu alto a latitude e a longitude. Eu as anotei no mesmo dia do achado. Veja agora o que escrevi: "Adarris trouxe para bordo uma caixa de brinquedos por ele encontrada numa c abana que os homens demoliram, ele a trocou comigo por um copo de rum". O cruzeiro durou trs anos e oito meses depois disso. Ns tnhamos partido h trs, qu ando ocorreu o incidente. Esqueci-o, trs anos a correr em torno do mundo atrs de b aleias no desperta a memria de um homem. Continuamos e fomos a Nantucket. Ento, dep ois de uma quinzena de pesca, e um ms de reparaes, o velho "Sea-Horse" retomou o ma r, e eu com ele. Esta hidropisia me atacou em Honolulu, e eu voltei aqui para ca sa. Eis a histria. No tem grande importncia. Mas, lendo o seu anncio, eu pensei que poderia respond-lo. Lestrange tomou a mo de Fountain e apertou-a: Viu a recompensa que eu oferecia? No tenho o livro de cheques comigo, mas daq ui a uma hora estar o senhor com o seu cheque. No, senhor, se as minhas informaes o conduzirem a um resultado, eu no digo que r ecuse uma pequena lembrana, mas dez mil dlares por uma caixa de cinco cntimos no a m inha maneira de proceder. Eu no posso obrig-lo a aceitar dinheiro agora, sinto-me mesmo incapaz de agrad ecer-lhe devidamente desculpou-se Lestrange. Estou at com febre, mas, depois de t udo resolvido, acertaremos isto juntos. Ele tornou a mergulhar a cabea entre as mos. Eu no queria ser indiscreto disse o Capito Fountain, colocando lenta e cuidado samente os objetos na caixa mas posso informar-me como pretende o senhor levar a vante a empresa? Eu vou alugar um navio imediatamente e procurarei... Sim continuou o capito, refletindo, enquanto embrulhava as colherinhas talvez seja o melhor. Em seu foro ntimo, estava o marinheiro persuadido de que aquela busca ofereci a poucas probabilidades de sucesso, mas guardou sua convico para si. A questo tornou Lestrange saber o meio mais rpido de l chegar. Talvez eu possa ajud-lo ofereceu-se Fountain, amarrando a caixa. O senhor tem necessidade de uma escuna com "boas pernas" e, se no me engano, esto descarregand o uma neste momento na doca Sullivan. Mulher! A mulher acudiu ao chamado. Lestrange supunha sonhar, e aquela gente que se interessava por seus negcios lhe parecia dotada de uma natureza sobre-humana. Pensas que o Capito Stanistreet esteja em casa? No sei, mas posso ir ver. Vai. Ela partiu. Stanistreet mora a alguns passos daqui, o seu homem. O melhor capito de escun a que jamais houve em Frisco. O barco se chama "Raratonga", pois o melhor que eu conheo. Stanistreet o comandante. Os proprietrios so os MacVitu. Transportou missi onrios, depois porcos e, em ltimo lugar, copra, agora... est quase descarregado. Oh ! MacVitu o alugaria ao Diabo, se este lhe pagasse; o senhor, se est em condies de no olhar para os gastos, no deve temer uma recusa. Possui velame novo desde o comeo do ano. Oh! H de convir-lhe s maravilhas, pode fiar-se nas palavras de Fountain. Do meu leito eu conduzirei o negcio, se me permitir dar-lhe uma ajuda. Eu me enca rregarei das provises e lhe arranjarei uma equipagem um tero menos cara que as des ses malditos agentes. Tomarei uma comissozinha, mas j me sinto metade pago em pres tar-lhe o servio! Calou-se, passos martelavam o corredor, e o Capito Stanistreet foi introduzid o no quarto. Era um homem de apenas trinta anos, alerta, de olhar vivo e fisiono mia agradvel. Fountain apresentou-o a Lestrange, a quem ele agradou primeira vist a. Interessou-se imediatamente pela histria de Lestrange, e a proposta pareceu c onvir-lhe infinitamente muito mais que um negcio comercial, tal como copra ou por cos. Se quiser acompanhar-me at o cais, senhor, eu lhe mostrarei a escuna props ele , depois de terem discutido e assentado a viagem. Levantou-se, despediu-se de seu amigo Fountain, e Lestrange o seguiu, carreg

ando a caixa de papelo. A doca o Sullivan no era longe. Um grande navio, construdo para dobrar o cabo Horn, e que parecia o irmo gmeo d o "Northumberland", descarregava ferro, popa deste grande veleiro, encontrava-se o "Raratonga", gracioso como um sonho e que descarregava copra. Eis o barco disse Stanistreet o carregamento j est quase todo em terra, agrada -lhe? Eu o alugo, custe o que custar respondeu Lestrange. rumo ao sul/4 Sob a direo do capito invlido, fizeram-se to rapidamente os preparativos, que, j n o dia 10 de maio, o "Raratonga", com Lestrange a bordo, deixava as Portas de Our o e singrava para o Sul. Nenhum meio de locomoo comparvel a um navio a vela. Quem quer que tenha viajado num grande navio, no esquece jamais as vastas superfcies de tela, os madeirames a ltos, a fineza com que o vento captado. A escuna a rainha dos veleiros, tem uma agilidade saltitante, que desconheci da aos navios de vela quadrada, de que ela difere tanto como uma rapariga de uma matrona. A "Raratonga" no era somente uma escuna, mas a soberana proclamada de t odas as escunas do Pacfico. Durante os primeiros dias avanaram facilmente, depois o vento lhes foi contrrio. Alm da excitao febril que o agitava, Lestrange foi atormentado por uma profunda e irritante ansiedade, como se uma voz lhe repetisse que Dick e Emelina se acha vam em perigo. Aqueles ventos contrrios sopravam sobre a angstia do seu corao, parecendo avivar -lhe as brasas. Duraram alguns dias e, ento, como se a fatalidade se houvesse ent ernecido, uma viva brisa elevou-se a estibordo, assobiando uma cano alegre no vela me e nas cordoalhas e erguendo a espuma sob a quilha do "Raratonga" que, com ess e impulso, se inclinava para um lado e deslizava, rumorejando, deixando um rastr o em leque sobre as guas. O vento os arrastou durante quinhentas milhas, silenciosamente e com a rapid ez de um sonho; depois parou. O oceano e o ar estavam sem movimento. O cu era slido como uma grande cpula de cristal azulado; l onde ele se encontrava com a linha d gua do horizonte, uma gaze o velava. Dois dias se perderam naquela calmaria podre; pela manh do terceiro dia, vent ava do noroeste; o "Raratonga" retomou seu curso, como uma nuvem de tela. O Capito Stanistreet era um gnio na sua profisso; podia obter mais velocidade d e uma escuna do que qualquer outro martimo. Felizmente para Lestrange, aquele mar inheiro era refinado e polido e, o que valia mais ainda, compreendia as coisas. Uma tarde ele passeava pelo tombadilho, quando Lestrange, que caminhava com as mos atrs das costas, contando as tbuas do cho, rompeu o silncio: O senhor no acredita nas vises nem nos sonhos? Que sabe o senhor a respeito? Oh! uma simples pergunta, a maior parte se gaba de no acreditar nessas coisas . Sim, mas no ntimo acreditam. Eu sou desses. Lestrange ficou silencioso um momento. O senhor conhece a minha desgraa, no o importunarei contando-a mais uma vez, m as de algum tempo para c, tenho uma impresso que descreverei assim: eu sonho acord ado. Qual! No posso explicar-me satisfatoriamente; como se eu visse qualquer coisa que m inha inteligncia no pode compreender, nem descrever. Sei o que o senhor pretende dizer... No, no... Isto muito estranho. Tenho cinqenta anos e, em regra geral, aos cinqen ta anos j se experimentou toda a gama das sensaes extraordinrias. Pois bem, eu nunca senti isto, esta sensao no vem seno por momentos. Eu vejo como se pode imaginar que

veja um pequeno beb, e h diante de mim coisas que no posso compreender. No pelos ol hos corporais que se produz tal sensao, ela me chega atravs de qualquer janela do e sprito, diante do qual fosse erguida uma cortina. estranho disse Stanistreet, que no se agradava l muito desta palestra, pois el e no era mais que um simples capito de escuna e um homem comum, embora bastante in teligente e simptico. Esta qualquer coisa me certifica que um perigo os ameaa... Ele parou um minuto e, com grande alvio de Stanistreet, disse: Se falo assim, o senhor vai pensar que estou desequilibrado. Mudemos de assu nto, esqueamos os sonhos e voltemos realidade. O senhor sabe que eu espero encont rar o lugar onde o Capito Fountain encontrou o rastro deles, ele diz que a ilha d esabitada, mas no tem certeza. No, ele s falou da praia. Pois bem: suponha que do outro lado houvesse indgenas e que eles tenham agarr ado as crianas... Se assim for, elas se tero criado na companhia deles. E ter-se-o tornado selvagens. Sim, mas os polinsios no podem realmente ser considerados selvagens. Formam um a populao agradvel. Eu circulei por eles durante muito tempo. As suas ilhas, na sua maior parte, esto agora civilizadas. Naturalmente, algumas existem que ainda o no esto, mas suponha mesmo que esses selvagens, como o senhor os chama, tenham vind o e tenham levado as crianas... A respirao de Lestrange parou, era esse o temor que ele trazia no corao, embora nunca o tivesse confessado. E ento? E ento eles as teriam tratado perfeitamente bem. E criado como suas? Sem dvida. Lestrange suspirou. Escute disse o capito. Eu, sob minha palavra, acho que ns, os civilizados, som os uns pretensiosos afinal e nos apiedamos inutilmente dos selvagens. Como assim? Que mais um homem pode desejar seno a sua felicidade? E ento? Haver algum mais f eliz do que um selvagem nu num clima tropical? Ele anda bastante satisfeito para que tenha necessidade de ir a festas a toda hora. Goza de uma sade perfeita. Lev a a existncia de um homem feito para viver face a face com a natureza. No v o sol p ela janela de um escritrio ou a lua atravs do fundo de chamins de usinas. Um homem ao mesmo tempo civilizado e feliz? Mas, meu Deus, onde o encontrar o senhor? Os b rancos fizeram desaparecer os selvagens, apenas em uma ou duas pequenas ilhas se encontram ainda alguns vestgios destes. Suponha continuou Lestrange suponha que essas crianas tenham sido criadas em contacto perptuo com a natureza. Sim. Levando a vida em liberdade. Sim. Acordando sob as estrelas, dormindo quando o sol se deita, cercados de um ar puro e fresco como este que respiramos neste momento. Lestrange falava, com os olhos fixos, dir-se-ia, em alguma longnqua viso. No seria uma crueldade traz-los par a o que ns chamamos a civilizao? Penso que sim respondeu Stanistreet. Lestrange no replicou, continuando a caminhar, com a cabea baixa e as mos atrs d as costas. Uma tarde, ao cair o crepsculo, Stanistreet declarou: Segundo os clculos feitos ao meio-dia, ns estamos a duzentas e quarenta milhas da ilha, com a brisa que est soprando, chegaremos ao lugar indicado amanh, por es tas mesmas horas, mas se o tempo mudar para melhor, chegaremos antes. Sinto-me perturbado! suspirou Lestrange. Ele desceu. O capito, sacudindo a cabea, enrolou o brao em volta de uma corda, e abandonou-se ao agradvel embalo do navio, que deslizava contra um esplndido pr-de

-sol, sinal de bom tempo. No dia seguinte a brisa arrefecera, mas tinha soprado bem durante toda a noi te. Pelas onze horas, era um leve respirar, apenas suficiente para enfunar as ve las. De sbito, Stanistreet subiu alguns ps sobre a escada de mesena e levou a mo em pala sobre os olhos. Que h? perguntou Lestrange. Um barco. D-me o culo de alcance. Ele o graduou e olhou um bom momento, sem dizer palavra. um barco merc das guas, um barco sem nada dentro. Espere! Eu distingo qualquer coisa branca. Dirigindo-se ao homem da barra. Ol! Um ponto a estibordo. Ele desceu para o convs. Ns vamos direito sobre ele. H algum dentro? No distingo muito bem, mas vou mandar descer a baleeira e iremos ver de perto . Deu ordem de armarem a baleeira. medida que se aproximavam da embarcao, que pa recia ser o pequeno barco de um navio, distinguiam alguma coisa de imvel, sem pod er verificar ao certo o que fosse. Stanistreet deu um golpe de barra e parou o n avio. Colocou-se proa da baleeira e Lestrange popa. A baleeira foi baixada, os sup ortes recolhidos, os remos mergulharam. O pequeno barco tinha um aspecto lastimve l e no parecia maior do que uma casca de noz. Em trinta remadas, a proa da baleei ra tocou a popa do barco. Stanistreet debruou-se platiborda. Ao fundo encontravase uma jovem, vestida somente com uma tanga, um dos seus braos enlaava o corpo de um homem, que ela ocultava em parte, o outro apertava o corpo de uma criana. Eram decerto indgenas, nufragos, ou gente separada de seu navio por um acidente qualqu er. Seus peitos se erguiam e baixavam tranqilamente, a mulher segurava um galho n o qual restava um nico fruto escartate e ressequido. Esto mortos? perguntou Lestrange que, de p, na popa, procurava ver. No respondeu o capito esto dormindo apenas... Fim

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