James Scott - Forma de Resistência Camponesa

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Vol. 21, N 01, jan.jun.

/2002
Razes
FORMAS COTIDIANAS DA RESISTNCIA CAMPONESA
James C. Scott
*
Cientista poltico, Universidade de Yale, USA. Caixa postal 3532
Yale Station, New Haven, CT 06520-3532, USA.
Traduo: Marilda A. de Menezes
**
e Lemuel Guerra
***
RESUMO
O artigo tem como objetivo revisar algumas teorias clssicas sobre o campesinato que privilegiam as greves, rebelies, aes contra o estado, organizaes
institucionais como espaos de expresso poltica dos camponeses. Reconhece-se a importncia destas aes no cenrio poltico, no entanto, elas nos dizem
pouco sobre a luta mais vital e cotidiana levada na fbrica pela jornada de trabalho, pelo salrio, pela autonomia, por direitos e por respeito. Para muitos
trabalhadores tais formas de luta cotidiana podem ser a nica opo disponvel. O artigo prope um referencial terico-metodolgico para compreender este
amplo leque de formas cotidianas, fragmentadas e difusas de resistncia.
Palavras chave: poltica dos camponeses, resistncia, cotidiano.
ABSTRACT
This article aims to review some classic theories about the peasantry which privilege strikes, rebellions, actions, events against the State and institutional
organizations as spaces of peasant political expressions. These actions are acknowledged as very important in the political arena, however, they help very little
to understand the everyday struggle in the factories shop-floor for reducing the labor journey, for wages, for autonomy, for rights and respect. These everyday
forms of struggle can be the only option available for many workers. The article pursues to construct a theoretical and methodological reference to understand
the large range of everyday, fragmented and diffused forms of resistance.
Key words: peasant politics, resistance, everyday life.
1. A HISTRIA NO ESCRITA DA RESISTNCIA
A discusso que apresentamos a seguir originou-se de
uma crescente insatisfao com grande parte da produo
recente incluindo a minha sobre o tema das rebelies
e revolues camponesas. por demais evidente que a in-
comum ateno para com as insurreies camponesas de
larga escala foi, pelo menos nos Estados Unidos, estimu-
lada pela guerra do Vietn e por algo como um namorico
da esquerda universitria com as guerras de libertao na-
cionais. Nesse caso, os interesses e as fontes materiais re-
foravam-se, visto que os registros histricos e os arqui-
vos eram os mais ricos precisamente naqueles momentos
em que os camponeses chegaram a representar uma ame-
*
James C. Scott, cientista poltico do Departamento de Cincias Polticas, Universidade de Yale. USA (Caixa Postal 3532 Yale Stati-
on, New Haven, CT 06520-3532, USA), autor dos seguintes livros: Political Ideology in Malaysia: Reality and the Beliefs of an
elite. (Ideologia Poltica na Malsia: realidade e crenas de uma elite.) New Haven, Yale University Press, 1968; Comparative Politi-
cal Corruption. (Corrupo Poltica Comparada.) Englewood Cliffs, NJ, Prentice Hall, 1972; The moral economy of the peasant:
rebellion and subsistence in southeast sia. (A economia moral dos camponeses: rebelio e subsistncia no Sudeste asitico.) New
Haven, Yale University Press, 1976; Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistence. (Armas dos fracos: formas cotidianas
de resistncia camponesa...) New Haven, Yale University, 1985; Domination and the arts of resistence: hidden transcripts (Domina-
o e artes da resistncia: transcrio oculta.) New Haven, Yale University Press, 1990; Seeing like state: how certains schemes to
improve the human condition have failed. (Parecendo com o Estado: como certos esquemas para melhorar a condio humana
falharam.) New Haven. Yale University Press, 1998. Para mais informao sobre a vida e obra de Scott, ver o artigo de Monsma, K.,
James C. Scott e resistncia cotidiana no campo: uma avaliao crtica. In: BIB, N 49, Rio de Janeiro, 1 semestre de 2000, pp.
95-121 e o de Menezes, M. A., O cotidiano campons e sua importncia enquanto resistncia dominao: a contribuio de
James C. Scott, publicado neste nmero de Razes.
**
Professora do Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal de Campina Grande (PPGS/UFCG). E -mail:
[email protected]; [email protected].
***
Professor do Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal de Campina Grande (PPGS/UFCG). E-mail:
[email protected].
A r t i g o
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11
aa ao Estado e ordem internacional existente
1
. Em ou-
tros tempos, quer dizer, na maior parte do tempo, os cam-
poneses apareceram nos registros da Histria no tanto
como atores histricos, mas como contribuidores mais ou
menos annimos para as estatsticas sobre densidade po-
pulacional, impostos, migrao da mo-de-obra, propri-
edade de terras e a produo agrcola.
O fato que, apesar de toda sua importncia para os
lugares onde ocorreram, as rebelies camponesas, deixan-
do de lado as revolues camponesas, so poucas e di-
versas. No somente so comparativamente raras as cir-
cunstncias que favorecem levantes camponeses de larga
escala, mas tambm as revoltas por elas provocadas so
quase sempre totalmente esmagadas. Na verdade, mesmo
as revoltas que fracassaram podem representar algum gan-
ho: algumas poucas concesses por parte do Estado ou
dos proprietrios de terras, uma breve pausa em relao a
novas e dolorosas relaes de produo
2
, e, pelo menos,
uma memria da resistncia e da coragem que pode ser-
vir para o futuro. Tais ganhos, porm, so incertos, en-
quanto o massacre, a represso e a desmoralizao da der-
rota so to certos quanto reais.
Em grande medida, pode-se dizer que a historiografia
da luta de classes tem sido sistematicamente distorcida em
favor de uma posio centrada no Estado. Os eventos que
chamam a ateno so aqueles que o Estado e as classes
dominantes concordam em destacar em seus arquivos.
Assim, por exemplo, uma pequena e ftil rebelio desta-
ca-se tanto mais, quanto maior for o seu impacto sobre
as relaes de classe, enquanto os atos no anunciados de
fuga, roubos, que podem ter um impacto muito maior so
raramente noticiados. As pequenas rebelies podem ter
uma importncia simblica por sua violncia e pelos seus
objetivos revolucionrios, mas, para a maioria das classes
historicamente subordinadas, tais episdios raros foram
mais momentneos do que as silenciosas guerrilhas que
tm lugar no cotidiano de vrias populaes. Possivelmen-
te, talvez, no estudo da escravatura que tais formas de re-
sistncia tm recebido ateno e isto porque tem havido
relativamente menos rebelies escravas do que desejari-
am os historiadores. Tambm digno de registro que, mes-
mo naqueles momentos histricos em que uma revolta
apoiada nos camponeses realmente teve sucesso na toma-
da do poder, os resultados foram, na melhor das hipte-
ses, uma vitria relativa para os camponeses. O que quer
que seja que a revoluo tenha alcanado, sempre criava
um aparato estatal hegemnico mais coercitivo, sempre
mais hbil em aumentar seus privilgios sobre a popula-
o rural do que nenhum outro que o precedeu. Freqen-
temente, os camponeses se encontram na irnica situao
de terem cooperado para a chegada de grupos dominan-
tes ao poder, cujos planos de industrializao, taxao e
coletivizao se revelam diametralmente opostos aos ob-
jetivos pelos quais os camponeses pensavam que estavam
lutando
3
.
Uma histria dos camponeses que focalizasse apenas
as insurreies seria mais como uma histria de trabalha-
dores fabris dedicados inteiramente a greves gerais e a pro-
testos. Embora possam ser importantes e sintomticos, es-
ses eventos nos dizem pouco sobre a arena mais durvel
dos conflitos de classes e da resistncia: a luta mais vital/
cotidiana levada na fbrica pela jornada de trabalho, pelo
direito ao lazer, pelo salrio, pela autonomia, por direitos
e por respeito. Para trabalhadores que operam, por defi-
nio, numa desvantagem estrutural e sujeitos represso,
tais formas de luta cotidianas podem ser a nica opo dis-
ponvel. A resistncia desse tipo no descarta os manifes-
tos, os protestos e as batalhas mais rpidas que chamam
a ateno, mas um territrio vital tem sido ganho e perdi-
do tambm nela. Para os camponeses, pulverizados ao lon-
go da zona rural e enfrentando ainda mais obstculos para
a ao coletiva e organizada, as formas cotidianas de re-
sistncia parecem particularmente importantes.
Por todas essas razes, ocorreu-me que a nfase nas
rebelies camponesas estava mal colocada. Pelo contrrio,
pareceu mais importante considerar o que podemos cha-
mar formas cotidianas de resistncia camponesa a luta
prosaica, mas constante, entre os camponeses e aqueles
que querem extrair deles o trabalho, o alimento, os im-
postos, os aluguis e os lucros. A maioria das formas que
1
Ver, por exemplo, Moore Jr., B. The Social Basis of Dictatorship and Democracy. Boston: Boston Press,
1966; Page, J.M. Agrarian Revolution: Social Movements and Export Agriculture in the Underveloped World.
New York: Free Press, 1975; Wolf, E. R. Peasant Wars of the Twentieth Century. New Haven: Yale Univer-
sity Press, 1976; Popkin, S. L. The Rational Peasant (Berkeley: University of California Press, 1969).
2
Para um exemplo desses ganhos temporrios, ver o timo estudo de Hobsbawm, E. J. e Rud, G. Cap-
tain Swing. New York: Pantheon Books, 1968: 281-99.
3
Alguns desses tpicos so focalizados em Scott, J.C. Revolution in the Revolution: Peasant and Commi-
sars, Theory and Society, Vol. 7, Nos. 1, 2 (1979), pp. 97-134.
Formas cotidianas da resistncia camponesa
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essa luta toma cessa ao ser coletivamente desafiada. Aqui
tenho em mente as armas comuns dos grupos relativamen-
te sem poder: fazer corpo mole, a dissimulao, a sub-
misso falsa, os saques, os incndios premeditados, a ig-
norncia fingida, a fofoca, a sabotagem e outras armas
dessa natureza. Essas formas brechtianas de luta de clas-
se tm certas caractersticas em comum: requerem pouca
ou nenhuma coordenao ou planejamento; sempre repre-
sentam uma forma de auto-ajuda individual; evitam, ge-
ralmente, qualquer confrontao simblica com a autori-
dade ou com as normas de uma elite. Entender essas
formas comuns de luta entender o que muitos dos cam-
poneses fazem nos perodos entre as revoltas para melhor
defender seus interesses.
Seria um grave erro, como acontece em relao s re-
belies camponesas, idealizar demasiadamente essas ar-
mas dos fracos. Elas provavelmente no podero fazer
mais do que afetar lateralmente as vrias formas de explo-
rao que os camponeses enfrentam. Alm disso, os cam-
poneses no tm o monoplio dessas armas, como podem
atestar todos que tenham observado as maneiras pelas
quais funcionrios e latifundirios tm resistindo e obsta-
culizado as polticas estatais que lhes so desfavorveis.
Por outro lado, tais modos brechtianos (ou Schwaikia-
nos) de resistncia no so insignificantes. A desero e a
evaso do recrutamento militar e da corvia tm, indubi-
tavelmente, limitado as aspiraes imperiais de muitas
monarquias do sudeste da sia
4
e da Europa. O processo
e seus impactos potenciais so capturados, como em ne-
nhum outro trabalho, na abordagem de R. C. Cobb a res-
peito do projeto de resistncia e de desero na Frana ps-
revolucionria e sob o Primeiro Imprio.
Do ano V ao VII, h um crescente nmero de relatrios, originados
de vrios departamentos..., a respeito de todo recruta vindo de dados
lugares que retornaram para casa e que vivem nelas tranqilos. Ain-
da melhor, muitos deles nunca retornaram para suas casas, porque, em
primeiro lugar, nunca saram delas... No ano VII, tambm, muitos dos
dedos feridos das mos direitas a mais comum das auto-mutilaes
comearam a testemunhar estatisticamente a fora do que pode ser
descrito como um amplo movimento de cumplicidade coletiva, envol-
vendo a famlia, as parquias, as autoridade locais e todas as comuni-
dades.
Mesmo no Imprio, com uma polcia amplamente mais
numerosa, abrangente e confivel, o mximo que o Esta-
do conseguiu foi
diminuir temporariamente a velocidade da deseres, que, a partir de
1812, mais uma vez atingira propores catastrficas. No poderia ter
havido um maior referendum concernente impopularidade univer-
sal de um regime opressor e no houve um espetculo mais encoraja-
dor para um historiador do que um povo que decide no mais lutar e
que, sem pestanejar, volta para casa ... o povo comum, pelo menos
nesse aspecto, teve sua parcela justa na derrubada de um dos mais te-
mveis regimes da Frana.
5
Assim como a desero tm sido uma estratgia de re-
sistncia popular, conforme o comentado acima, a eva-
so e sonegao de impostos tm sido usadas nos pases
do Terceiro Mundo e naqueles em desenvolvimento
quer sejam pr-coloniais, coloniais ou independentes.
Pouco se admira que uma to grande parcela de impos-
tos seja recolhida em pases do Terceiro Mundo em for-
ma de arrecadao sobre importaes e exportaes. O
padro que, no em pequena medida, se elogie a ca-
pacidade de resistncia dos sujeitos aos impostos. Mes-
mo uma leitura rpida da literatura sobre o desenvolvi-
mento rural revela como uma rica safra e os esquemas
de programas impopulares de governos tm sido levados
extino pela resistncia passiva dos camponeses
6
. Em
algumas ocasies, essa resistncia tem se tornado ativa e
at mesmo violenta. A regra geral, porm, a forma de
resistncia passiva, expressa atravs de sabotagens sutis,
de no participao, de evaso e de engano. O perma-
nente esforo do governo colonial da Malaya para desen-
corajar os camponeses de aumentar a produo de bor-
racha, que poderia competir com o setor de plantation,
4
Veja a narrativa e anlise de Adas, M. From Avoidance to Confrontation: Peasant Protest in Precolonial
and Colonial Southeast Asia, Comparative Studies in Society and History, Vol. 23, No.2 (April 1981),
pp. 217-47.
5
Cobb, R. C. The Police and the People: French Popular Protest, 1789-1820. Oxford: Clarendon Press, 1970:
96-7. Para uma abordagem consistente da auto-mutilao como estratgia para evitar a convocao, ver
Zola, . La Terre, traduzido por Douglas Parnce, Harmondsworth: Penguin, 1980.
6
Para uma fascinante abordagem de uma resistncia dessa natureza na Tanznia, ver Hyden, G. Beyond
Ujamar in Tanzania. Londres: Heinneman, 1980. Sobre as conseqncias de um viso limitada de pol-
ticas agrrias impostas de cima para baixo, ver, Bates, R. Markets and States in Tropical Africa: The Poli-
tical Basis of Agricultural Policies Berkeley: University of California Press, 1981.
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principalmente pela terra e pelos mercados, um caso
exemplar
7
. Vrios esquemas de restries e de legislaes
sobre o uso da terra foram testados no perodo de 1922
a 1928 e, mais uma vez, na dcada de 30, todos com re-
sultados modestos, devido massiva resistncia dos cam-
poneses. Os esforos dos camponeses, em estados com
estilos prprios de socialismo, para impedir e enfraque-
cer, ou mesmo destruir formas anti-populares de agricul-
tura coletiva, representam um exemplo marcante das tc-
nicas defensivas disponveis para um campesinato muitas
vezes encurralado. Outra vez, a luta menos marcada
por confrontaes massivas e desafiadoras do que por
uma evaso que igualmente massiva e freqentemente
muito mais eficaz.
O estilo de resistncia aqui focalizado pode ser, possi-
velmente, melhor entendido em contraste com outras for-
mas de resistncia, possuidoras dos mesmos objetivos. A
primeira forma a resistncia cotidiana no sentido j aci-
ma demonstrado. A segunda, a confrontao direta, que
tem dominado o estudo da resistncia camponesa. Naque-
la, encontramos um processo sorrateiro, atravs do qual os
camponeses intrusos tm freqentemente invadido plan-
taes e florestas estatais; nesta, temos invases pblicas
de terras que desafiam abertamente as relaes de propri-
edade. Associadas primeira forma, temos a gradual de-
sero militar e os furtos silenciosos de celeiros pblicos
ou privados; associadas segunda forma de resistncia,
temos a realizao de motins, objetivando eliminar ou
substituir oficiais militares, e a invaso de feiras e de ce-
leiros, visando redistribuir o suprimento de alimentos.
Tais tcnicas de resistncia so adequadas s caracte-
rsticas particulares do campesinato. Sendo uma classe di-
ferente dos outros setores classificados como de classes bai-
xas, distribudos geograficamente, freqentemente sem
uma liderana e sem disciplina que pudessem encorajar
uma oposio de carter mais organizado, o campesinato
est mais propenso s lutas do tipo guerrilha, que re-
querem pouca ou nenhuma coordenao. Assim, seus atos
individuais de pequenos furtos e de desero do exrcito,
freqentemente reforados por uma venerada cultura da
resistncia, podem tornar completamente incuas as po-
lticas inventadas pelos seus supostos superiores no siste-
ma capitalista. O proponente dessas polticas, o estado
pode responder a essa resistncia de vrias maneiras:
(1)novas polticas podem ser elaboradas a partir de novas
expectativas mais realistas; (2) algumas dessas polticas
podem ser mantidas e reforadas com incentivos positivos,
objetivando o encorajamento de um comprometimento vo-
luntrio; e, claro, pode simplesmente escolher empregar
mais coero. Qualquer que seja a resposta adotada, de-
vemos lembrar o fato de que a ao do campesinato tem
se transformado ou limitado as opes de polticas dispo-
nveis. Assim, dessa maneira e no atravs de revoltas ou
da presso poltica legal que o campesinato tem classica-
mente marcado presena poltica. Por conseguinte, toda
histria ou teoria da ao poltica dos camponeses que
queira fazer justia ao campesinato como ator histrico
deve, necessariamente, ajustar suas contas com o que es-
tamos chamando de formas cotidianas de resistncia. Por
essa razo, importante tanto documentar quanto trazer
alguma ordem conceitual a esse aparente caos da ativida-
de humana.
As formas cotidianas de resistncia camponesa no pro-
duzem manchetes de jornais. Assim como milhes de p-
lipos de antozorios criam um arrecife de corais, milhes
e milhes de atos individuais de insubordinao e de eva-
so criam barreiras econmicas e polticas por si prprios.
H raramente alguma confrontao dramtica, eventual-
mente digna de ser noticiada. E, sempre que o barco do
estado esbarra numa dessas barreiras, a ateno centra-
da no acidente e no na vasta agregao de micro-atos que
resultaram na barreira. muito raro que os produtores
desses micro-atos busquem chamar a ateno sobre eles
mesmos. Sua segurana est no seu anonimato. Tambm
extremamente raro que os oficiais do estado desejem dar
publicidade a essa insubordinao
8
. Faz-lo seria admitir
que sua poltica impopular e, acima de tudo, expor a
dureza de sua autoridade no campo duas possibilida-
7
A melhor e mais completa anlise desse tema pode ser encontrada em Ghee, L. T. Peasants and their
Agricultural Economy in Colonial Malaya, 1874-1941. Kuala Lampur: Oxford University Press, 1977.
Ver tambm o persuasivo argumento de Donald M. Nonini, Paul Diener, e Eugene E. Robkin, Ecolo-
gy and Evolution: Population, Primitive Acumulation and the Maly Peasantry, manuscrito, 1979.
8
Um exemplo clssico disso a campanha de coletivizao sovitica, na qual a ampla oposio adeso
ao Kolkhoz nunca tinha sido tornada pblica, at que foi dada a autorizao oficial de Stalin, no seu
discurso de maio de 1930, intitulado Veloz e bem sucedido. Antes disso, ningum poderia imaginar
que tinha sido utilizada coero (o eufemismo para coero era ordenao burocrtica), que uma enor-
me exausto dos rebanhos de gado aconteceu como resposta campanha, ou, finalmente, que a oposi-
o coletivizao tivesse sido to forte entre os camponeses quanto entre os kulaks. Ver Davies, R.V.
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des que no interessam de maneira nenhuma ao estado
9
.
A natureza dos fatos e a mudez auto-interessada dos an-
tagonistas contribuem para criar um tipo de silncio cm-
plice, que exclui totalmente as formas cotidianas de resis-
tncia dos registros histricos.
A Histria e as Cincias Sociais, escritas por uma inte-
lectualidade com base em registros escritos, ao quais, por
sua vez, so tambm, em grande medida, originados por
autores oficiais, simplesmente no esto bem equipadas
para desvelar as formas silenciosas e annimas das lutas
de classes que caracterizam o campesinato
10
. Nesse caso,
os estudiosos, implicitamente, juntam-se conspirao dos
participantes, que so, eles mesmos, como foram no pas-
sado, silenciados. Coletivamente, essa conspirao impro-
vvel contribui para a estereotipao dos camponeses, que
tm sido idealizados, tanto na literatura quanto na His-
tria, como uma classe que alterna longos perodos de
abjeta passividade com breves, violentas e fteis exploses
de ira. Um exemplo clssico de discurso literrio sobre o
campons mdio o que vemos a seguir:
Ele tinha sculos de medo e de submisso atrs dele, suas costas tor-
naram-se resistentes a exploses, sua alma to destruda que ficou in-
capaz de reconhecer usa degradao. Pode-se bat-lo e deix-lo faminto
e roubar-lhe tudo, ano aps ano, antes que ele pudesse abandonar sua
precauo e estupidez, sua mente cheia de todos os tipos de idias con-
fusas que ele no poderia compreender bem; e isso continuou at que
a culminao da injustia e do sofrimento lanou-o garganta de seu
patro como um animal domstico enfurecido que tinha sido subme-
tido a espancamentos demasiados [Zola, 1980: 91].
Na viso de Zola, h apenas um pouco de verdade. certo
que o comportamento pblico dos camponeses, durante os
tempos da quietude, produz um retrato de submisso, medo
e precauo. Em contraste, as insurreies camponesas pa-
recem reaes viscerais de fria cega. O que falta aborda-
gem da passividade normal a lenta, subterrnea e calma
luta contra os aluguis, as colheitas, o trabalho e os impos-
tos, nas quais a submisso no passou de uma cena de uma
ttica necessria. Assim, convm esclarecer que est ausente
da descrio do perodo das exploses a viso subjacente
de justia que as informa e seus alvos e objetivos especficos,
que so freqentemente muito racionais. As exploses ne-
las mesmas so freqentemente sinais de que as formas nor-
mais de lutas de classes esto decrescendo ou entraram em
crise. Tais declaraes abertas de guerra, com seus riscos mor-
tais, normalmente acontecem depois de um demorado enfren-
tamento num terreno diferente.
2. DOIS EXEMPLOS EMBLEMTICOS
No interesse de dar conta das questes analticas levanta-
das pelas formas cotidianas de resistncia, ofereo uma breve
descrio de dois exemplos, dentre os muitos encontrados no
curso do trabalho de campo, realizado no perodo entre 1978
e 1980, em uma vila da Malsia, destacada produtora de ar-
roz. O primeiro exemplo envolve uma tentativa de boicote
de proprietrios que contrataram colhedeiras automticas para
substituir o trabalho manual, levada a cabo por parte de gru-
pos de mulheres que transplantavam mudas de arroz. O se-
gundo diz respeito a um padro de furtos annimos de esto-
ques de gros de arroz que parece ter crescido em freqncia.
Cada uma dessas duas atividades tem a marca caracterstica
da resistncia cotidiana. Nem o boicote, como veremos, nem
os furtos apresentam qualquer desafio pblico ou simblico
da legitimidade da propriedade e da organizao da produ-
o. Nenhum dos dois requereram qualquer organizao for-
mal e, no caso dos furtos de estoques de gros de arroz, a
maior parte das atividades foi realizada individualmente na
calada da noite. Talvez a caracterstica mais importante des-
sas e de muitas outras atividades semelhantes ocorridas no
campo que, em strictu senso, elas no tm autores que as-
sumiriam a responsabilidade pblica por sua realizao.
O PANO DE FUNDO
Antes de examinar mais profundamente os dois exem-
plos de resistncia acima mencionados, um breve perfil da
The Socialist Offensive: The Collectivisation of Soviet Agriculture, 1928-1930. London: Macmillan, 1980:
caps. 6 e 7.
9
Cabe destacar que que essa rejeio a tais possibilidades no se d de forma total. Registros no nvel
dos distritos so capazes de se provar dbios esse respeito, j que os oficiais tentam explicar o insucesso
mencionando o recebimento de impostos ou as estatsticas do recrutamento militar aos seus oficiais su-
periores da capital. Imagina-se tambm que os registros orais informais so abundantes. Exemplos dis-
so seriam as reunies informais do gabinete ou do ministrio, programadas para lidar com o fracasso de
polticas causadas pela insubordinao rural.
10
A exceo parcial a ser feita , claro, a Antropologia.
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zona rural em questo e de sua histria econmica recen-
te dever ajudar no entendimento de nossa abordagem. A
aldeia que chamaremos de Sedaka uma comunidade de
aproximadamente 74 propriedades (352 pessoas), locali-
zada sobre a plancie de Muda, no estado de Kedah, na
Malsia. A regio de Muda tem sido, desde o sculo XIV,
a principal rea produtora de arroz da pennsula, sendo
seu cultivo a sua principal atividade econmica. A estrati-
ficao de Sedaka pode ser lida, para qualquer das finali-
dades prticas, atravs dos dados referentes s terras de cul-
tivo de arroz e ao tamanho das fazendas. A parte pobre
da comunidade, em 1979, possua apenas 3% das terras de-
dicadas ao cultivo de arroz da regio e plantava o equiva-
lente a 18% do total da rea ocupada com esse tipo de pro-
duo. A mdia de extenso das fazendas da metade pobre
da comunidade era pouco mais de 1 acre, menos da me-
tade do que julgado necessria para prover um padro
mnimo de vida para uma famlia de 4 membros, em uma
rea de cultivo de arroz. Dez famlias esto literalmente
sem terra e mais da metade dos proprietrios de Sedaka
tem renda abaixo da linha da misria estabelecida pelo
governo. No outro plo da estratificao esto dez propri-
etrios, que possuem mais da metade da terra da regio
dedicada ao plantio de arroz e cultivam uma mdia de
mais de oito acres. Esses proprietrios constituem a elite
econmica da comunidade, sendo que, sete deles perten-
cem ao partido dominante malasiano, o UMNO, o que
lhes permite controlar tambm a pacata vida poltica da
regio.
Para nossos propsitos aqui, consideramos como a
maior mudana na vida scio-econmica de Sedaka, du-
rante o perodo entre 1970 e 1980, o incio da dupla safra
e a mecanizao das colheitas de gros de arroz que veio
em sua decorrncia. A dupla safra foi, nela mesma, algo
como que um boom para todos os estratos da comunida-
de: arrendadores ganharam o dobro; trabalhadores aluga-
dos e arrendatrios aumentaram sua renda anual; e at as
miserveis 28 famlias, que dependiam do trabalho no
campo para obter uma parte substancial de sua renda,
prosperaram como nunca, deslocando-se de acordo com
a necessidade de mo de obra, participando, ento, de duas
colheitas anuais. Durante um curto perodo de euforia, as
casas foram reconstrudas e consertadas, chefes de famli-
as que tinham partido cedo para encontrar trabalho na
entre-safra puderam voltar para casa e todos tiveram ar-
roz suficiente para alimentar suas famlias ao longo de
todo o ano. No entanto, outro efeito da dupla-safra, mais
precisamente da introduo de mquinas coletoras, foi a
diminuio da renda dos habitantes mais pobres da regio.
Em 1975, virtualmente todos os arrozais em Muda
eram cortados e debulhados manualmente. No final dos
anos 70, grandes mquinas de estilo ocidental, custando
em torno de M$200,000, possudas por grandes sindica-
tos de homens de negcios, j eram responsveis por 80%
da colheita de arroz. Se difcil imaginar o impacto vi-
sual desse estonteante salto tecnolgico das foices e ca-
nos das debulhadoras para barulhentos gigantes com 32
barras cortadoras sobre o campesinato, no to dif-
cil calcular seu impacto sobre a distribuio da renda no
campo. As receitas dos trabalhadores dos arrozais foram
reduzidas quase metade, j que restou a atividade de
transplantar como a nica maior operao que ainda re-
queria trabalho manual. Certamente as perdas em termos
de renda foram maiores entre aqueles mais pobres: pe-
quenos proprietrios, arrendatrios marginais e, sobretu-
do, todos os sem terra com salrio mnimo. Se o impac-
to da mecanizao for somado estagnao dos preos
para os produtores, alm do aumento dos custos de ma-
tria-prima e dos preos ao consumidor, os mais pobres
chefes de famlia de Sedaka perderam quase todos os
ganhos originais da dupla safra. Assim, enquanto a dis-
tribuio de renda tem piorado significativamente, os
ganhos das duplas-safras tm ido largamente para os
grandes fazendeiros, detentores da maior parte da terra
e do capital local.
Como acontece com muitas mudanas tecnolgicas, os
efeitos secundrios da mecanizao da colheita tm sido
pelo menos to importantes quanto seus efeitos primri-
os. Resumindo ao essencial, as maiores conseqncias da
mecanizao da colheita podem ser assim enunciadas
11
:
1) Virtual eliminao da prtica de apanhar gros deixa-
dos no campo
12
quando do trabalho da colheita e do
moer dos talos que ficavam anteriormente dos lados dos
tubos das debulhadoras, atividades que forneciam um
alimento subsidirio para muitas famlias pobres da co-
munidade;
11
Para uma abordagem mais profunda desse ponto, ver Scott, C. J. Formas cotidianas de resistncia cam-
ponesa. New Haven: Yale University Press, 1985, Caps. 3 e 4.
12
Traduo de gleaning, verbo de difcil equivalncia em portugus, que significa apanhar gros deixados
no campo quando do trabalho da colheita.
Formas cotidianas da resistncia camponesa
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
16
2) Favorecimento da substituio do transplante pela se-
meadura manual, j que a mquina poderia colher mais
facilmente arrozais de tamanho e grau de maturidade
irregulares. Em torno de 1980 quase a metade das re-
as dos arrozais eram semeados dessa maneira, eliminan-
do assim muito do emprego do transplante manual;
3) Reduo acentuada da demanda por trabalhadores para
a colheita, permitindo a reduo nas taxas de salrio-
mnimo dos trabalhadores ainda disponveis;
4) Criao de melhores condies, para os maiores pro-
prietrios de dentro e de fora da comunidade, para a
demisso de arrendatrios a quem tinham alugado lo-
tes de terras e a diminuio da participao destes no
cultivo, pela possibilidade de alugar os servios das m-
quinas;
5) Surgimento de uma nova classe de ricos empresrios:
a dos arrendatrios de terras, capazes de alugar gran-
des reas ao mesmo tempo por muitas temporadas, pa-
gando adiantado a quantia total.
As transformaes no cultivo de gros de arroz, desde
1971, no resultaram somente num relativo empobreci-
mento dos camponeses mais pobres, mas tambm influ-
enciaram na produo da sua marginalizao, pelo me-
nos no que se refere s relaes de produo. At 1975,
ricos arrendatrios e fazendeiros tinham mais arrozais do
que eles prprios podiam cultivar. Assim, precisavam de
arrendatrios, de servios de aragem, transplantadores, cei-
fadores e debulhadores. Para assegurar uma oferta confi-
vel de mo-de-obra, era comum, entre os mais ricos pro-
prietrios, a benevolncia com a fora de trabalho bem
como seu acesso terra. Essa benevolncia se manifesta-
va na promoo de festas ocasionais, pela estenso do b-
nus do zakat (o dzimo islmico) aos trabalhadores das
colheitas, atravs de pequenos emprstimos ou presentes
e, sobretudo, pelo cultivo de um comportamento social di-
plomtico. Com a introduo das novas tecnologias men-
cionadas, o bem estar dos grandes proprietrios pouco se
relaciona com os pobres arrendatrios ou trabalhadores, di-
minuindo sua motivao para continuar a cultivar a be-
nevolncia acima citada. Assim, a marginalizao dos tra-
balhadores refletida num marcante declnio na promoo
de festas, na diminuio do zakat e da caridade, e no re-
fluxo do respeito pblico aos pobres, por parte dos ricos.
OBSTCULOS RESISTNCIA COLETIVA E ABERTA
A despeito dos reveses econmicos experienciados pe-
los pobres de Sedaka e da deteriorao da qualidade das
relaes entre classes, evidentes nos bastidores, nessa re-
gio no se tm constitudo instncias explcitas de con-
flitos de classes. As razes pelas quais esse silncio pbli-
co tem prevalecido so dignas de uma meno breve, pre-
cisamente pelo fato de que elas so, ao meu ver, comuns
a muitos contextos de relaes de classes no campo, o que
sugere que o tipo de resistncia que encontraremos aqui
uma regra e no a exceo. A situao que os pobres en-
frentam em Sedaka e na plancie de Muda , finalmente,
parte de uma luta ubqua e inusitada contra os efeitos do
desenvolvimento capitalista no campo: a perda de acesso
aos meios de produo (a proletarizao), a perda do tra-
balho (a marginalizao) e da renda, e a perda do peque-
no respeito e das reivindicaes sociais reconhecidas, que
se foram com o seu status prvio. A maioria dos textos de
histria sobre o desenvolvimento capitalista, ou uma sim-
ples olhada sobre os conflitos neste contexto, indicariam
que essa luta uma causa perdida. E bem que isto pode
ser quase assim. Se for, os pobres camponeses de Sedaka
se encontram em uma numerosa e distinta companhia his-
trica. A resistncia silenciosa das vtimas neste caso pode
ser entendida atravs de dois conjuntos de razes: o pri-
meiro refere-se natureza das mudanas enfrentadas pe-
los pobres, e as que aconteceram pela natureza de sua
comunidade, enquanto que o segundo se refere aos efei-
tos da represso.
As formas de resistncia em Sedaka refletem as condi-
es e limitaes sob as quais elas se geraram. Assim, se a
resistncia aberta, raramente coletiva. Se so coletivas,
raramente so abertas. Aqui a analogia com a guerrilha de
pequena escala e defensiva dos skirmishes , mais uma vez,
apropriada. Os encontros raramente so mais que inci-
dentes. Os resultados so inconclusivos e os agentes se
movem sob a proteo da escurido e do anonimato, mis-
turando-se no meio da populao civil tambm para evi-
tar retaliaes.
Talvez o dado mais importante que estrutura as opes
abertas aos pobres de Sedaka seja simplesmente a nature-
za das mudanas que eles tm experimentado. Alguns ti-
pos de mudanas, quando algumas variveis permanecem
iguais, so mais explosivos que outros so mais suscep-
tveis de provocar enfrentamentos abertos e coletivos. Nes-
sa categoria, podemos colocar aquelas mudanas massi-
vas e repentinas que destrem, decisivamente, quase todas
as rotinas da vida cotidiana e, simultaneamente, ameaam
a sobrevivncia da maioria da populao. Em Sedaka, con-
tudo, a maioria das mudanas que constituem a revolu-
o verde tem sido experimentada como uma srie de gra-
dativas mudanas no direito de posse e na tecnologia. As
James C. Scott
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
17
dolorosas mudanas tenderam a se instalar gradualmente
e a atingir, inicialmente, apenas uma pequena minoria dos
camponeses. Quando os proprietrios decidiram diminuir
o cultivo deles mesmos ou arrendar suas terras para ricos
operadores comerciais, somente poucos arrendatrios fo-
ram ameaados e suas dificuldades, primeira vista, pa-
reciam mais infortnios individuais do que propriamente
uma tendncia geral. Isso tambm pode ser dito do au-
mento dos aluguis e da substituio da semeadura ma-
nual pelo replante. Os parafusos eram apertados pouco a
pouco e com velocidade variada, de forma que as vtimas
no eram mais do que um pequeno grupo de cada vez.
Neste e em outros casos, cada proprietrio/fazendeiro, ao
fazer mudanas, representava uma situao particular que
confrontava um ou, no mximo, poucos indivduos.
A nica exceo a esse modelo foi a introduo de m-
quinas de ceifar e colher, o que, como veremos, provocou
a ao mais prxima de produzir um enfrentamento aberto
e coletivo. Mesmo neste caso, contudo, o impacto no foi
instantneo, nem completamente despido de uma certa
ambigidade para muitos na aldeia. Para as duas primei-
ras temporadas, o impacto econmico sobre os pobres foi
notado, mas no devastador. Camponeses mdios ficaram
genuinamente divididos entre a provvel vantagem de fa-
zer suas colheitas mais rapidamente e a possibilidade de
perdas salariais para alguns de seus filhos. Em nenhum
nico momento a mecanizao da colheita representou
uma ameaa coletiva sobrevivncia de uma slida mai-
oria de camponeses.
Outra caracterstica significativa das transformaes
agrcolas em Kedah, que serve muito poderosamente para
diluir conflitos de classes, o fato de que elas simplesmen-
te removem os pobres do processo produtivo, ao invs de
significar uma explorao direta deles. Um aps o outro,
os grandes fazendeiros e proprietrios do Esquema Mude
tm eliminado terrenos de lutas potenciais referentes dis-
tribuio das colheitas e dos lucros do cultivo de gros de
arroz. Por sua vez, substituindo as negociaes a respeito
do preo do corte e debulhe, h agora somente um paga-
mento nico ao operador da mquina. No lugar das ne-
gociaes a respeito dos custos de replante, h a opo de
semear os gros manualmente e evitar, desse modo, intei-
ramente o conflito. Finalmente, em vez de disputas ten-
sas pelos prazos e preos dos aluguis, h uma crescente
alternativa de alugar as mquinas e trabalhar isoladamente
ou de arrend-las para um outro por uma quantia maior.
Certamente, as mudanas e si mesmas, como demitir um
trabalhador, passar a utilizar mquinas no so simples
de realizar. Mas, uma vez realizadas, o ex-arrendatrio ou
ex-trabalhador simplesmente deixa de ser relevante; no
existem lutas posteriores, temporada a temporada, porque
os pobres tornam-se redundantes. Uma vez que a cone-
xo entre as lutas e o reino da produo se quebra, tam-
bm um problema simples quebrar a conexo e as lutas
no reino do ritual, da caridade e mesmo da sociabilida-
de. Esse aspecto central da revoluo verde, por ele mes-
mo, capaz de contribuir para explicar a relativa ausn-
cia da violncia de massa, em Kedahr e em outros lugares.
Se os ganhos da revoluo verde tivessem dependido de
uma maior extrao dos arrendatrios, ao invs de impli-
cado em sua demisso, ou da extrao de mais trabalho
com menores remuneraes dos trabalhadores, as conse-
qncias para os conflitos de classe certamente seriam bem
mais dramticas. Assim, os lucros da dupla colheita de-
pendem bem menos da explorao dos trabalhadores do
que de ignor-los ou substitu-los. Os conflitos de classe,
como qualquer outro conflito, acontecem em um lugar
a sala destinada operao de debulhar, na linha de mon-
tagem, o lugar onde o preo da empreitada e/ou do alu-
guel so acordados onde interesses vitais esto em jogo.
O que a dupla colheita tem produzido a neutralizao
mais massiva dos lugares onde os conflitos de classe tm
ocorrido historicamente.
Um obstculo relacionado aos protestos abertos est
j implcito no gradual impacto da dupla colheita. As-
sim como no caso desta, o impacto de cada uma das mu-
danas que temos discutido mediado pela altamente
complexa e justaposta estrutura de classes de Sedaka. H
arrendatrios pobres e outros bem sucedidos; h propri-
etrios (ou seus descendentes) que so tambm arrenda-
trios e trabalhadores; h pequenos proprietrios que
necessitam do trabalho assalariado para sobreviver, mas
que tambm alugam as mquinas de ceifar e colher. Des-
sa forma, cada uma das importantes mudanas que acon-
tecem no arrendamento e na produo cria no somen-
te vtimas e beneficirios, mas tambm um estrato
substancial, cujos interesses no so to facilmente dis-
cernidos. Sedaka no Morelos, onde um campesinato
pobre e indiferenciado enfrenta um inimigo comum nas
plantaes de acar. Isto acontece apenas em raras cir-
cunstncias, nas quais a estrutura de classes no campo
tal que ou produz uma nica clivagem ou uma quase
uniforme resposta presso exterior. A situao em Se-
daka , acredito, a mais comum. A alta complexidade da
estrutura de classe local milita, na maioria das questes,
contra a opinio e a ao coletiva.
Formas cotidianas da resistncia camponesa
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Os obstculos ao coletiva apresentados pela estru-
tura de classes local so compostos por outras clivagens e
alianas que atravessam as classes. Essas clivagens e ali-
anas so constitudas, por um lado, pelos laos familia-
res, de parentesco, de faces ou de patronagem e, por ou-
tro lado, pelos laos rituais que turvam as guas das classes
em virtualmente qualquer pequena comunidade. Quase
sem exceo, pela criao de relaes de dependncia que
restringem a ao dos homens e mulheres prudentes, es-
ses laos operam, em termos de classes, a favor dos fazen-
deiros ricos.
Para no deixar a impresso, pelo que j foi mencio-
nado, de que os obstculos aos conflitos de classe em Se-
daka so inteiramente problemas oriundos da complexa
estratificao local e do carter gradual das mudanas nas
relaes de produo, apresso-me em adicionar que a re-
presso real e potencial esto tambm muito envolvidas.
fcil notar que os esforos populares para parar ou im-
pedir o crescimento da mecanizao da colheita ocorre-
ram num clima de medo, gerado pelas elites locais, pela
polcia, por ramificaes especiais das foras internas de
segurana e, finalmente, por um determinado padro de
prises e intimidaes polticas. A atividade poltica aber-
ta foi tanto rara quanto firmemente reprimida. Uma ma-
nifestao popular em Alor Star, a capital do estado, no
comeo dos anos 80, reivindicando uma poltica de pre-
os mais favorveis para os gros de arroz, foi recebido com
a priso de vrios lderes oposicionistas, ameaas de de-
teno e promessas de aes ainda mais draconianas, caso
os protestos continuassem. O medo de represlia ou da pri-
so foi explicitamente mencionado por muitos como a ra-
zo de manter uma baixa mobilizao.
Um obstculo final ao conflito aberto pode ser deno-
minado de a dureza do cotidiano. A perspectiva que te-
nho em mente pode ser melhor expressa nas palavras de
Hassan, um homem pobre que recebia aqum do salrio
mnimo para organizar pilhas de gros de arroz. Ao ser
perguntado porque ele no dizia no ao seu rico patro,
ele respondeu: Os pobres no podem reclamar; quando
estou doente ou precisando de trabalho, posso precisar dele
outra vez. Fico com raiva no meu corao. O que est
operando, nesse caso, algo que Marx, apropriadamente,
chamou de entorpecimento das relaes econmicas
uma compulso que ocorre unicamente contra um passa-
do de represses esperadas (Marx, 1970:737). Na falta de
qualquer possibilidade real, no presente, de transformar
diretamente e coletivamente sua situao, os camponeses
pobres no tm quase nenhuma escolha, a no ser ajus-
tar-se s circunstncias que eles enfrentam diariamente. Os
arrendatrios podem se ressentir amargamente do aluguel
que tm que pagar por seu lote, mas precisam pag-lo ou
perdem a terra; o iminente sem terra pode deplorar a per-
da do salrio-mnimo, mas precisam lutar pelas poucas
oportunidades disponveis; eles podem abrigar profundas
animosidades contra as panelinhas que dominam a po-
ltica da comunidade, mas devem agir com circunspeco,
caso queiram receber benefcios de qualquer das peque-
nas vantagens que aquelas podem oferecer.
Pelo menos dois aspectos dessa adaptao pragmtica
e forada s realidades merecem nfase. O primeiro, o fato
de que essa adaptao no exclui certas formas de resis-
tncia, embora coloque limites que somente os precipita-
dos transgrediriam. O segundo, o fato de que, ela , so-
bretudo, pragmtica; ela no implica um consentimento
normativo daquelas realidades. Entender isso simples-
mente compreender o que , historicamente e em todas as
suas possibilidades, a situao para a maioria das classes.
Elas lutam sob condies que so amplamente indepen-
dentes de sua determinao e, assim, suas necessidades
materiais prementes precisam de algo como a acomoda-
o diria a essas condies. Se muito do comportamento
pblico de acomodao diria dos pobres de Sedaka re-
flete as realidades de relaes de poder imediatas, no h
necessidade, certamente, de assumir que isto resultado
de algumas hegemonias simblicas e, por que no dizer,
do consenso. A obrigatoriedade do cotidiano , em si mes-
ma, suficiente
13
.
O ESFORO PARA PARAR AS MQUINAS
A introduo das mquinas coletoras, a mais repenti-
na e devastadora das mudanas associadas dupla colhei-
ta, tambm atiou a resistncia mais ativa. Essa resistn-
cia foi bem alm dos debates a respeito de sua eficincia,
das reclamaes referentes s perdas salariais e da difama-
o contra aqueles que alugaram as mquinas. Em toda
a rea da produo de arroz em Kedar, houve esforos f-
13
importante notar que nem a represso total nem a dureza do cotidiano seria to eficaz, na restrio
das opes, se os camponeses da Plancie de Muda tivessem realmente acuados. Graas ao florescimen-
to do setor urbano na Malsia, um certo nmero daqueles mais prejudicados pela dupla colheita pode
exercitar a resposta histrica dos camponeses opresso: a fuga. Se essas alternativas no existissem, o
mesmo nvel de represso seria, indubitavelmente, menos eficaz.
James C. Scott
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sicos para obstruir sua entrada dessas mquinas nos cam-
pos, por exemplo, os incidentes de sabotagem, os incn-
dios premeditados e os amplos esforos de organizao de
greves de transplantadores contra aqueles que primeiro
alugaram as mquinas. Todas essas aes finalmente fa-
lharam na tentativa de impedir a mecanizao da colhei-
ta de gros de arroz, embora as tenham, indubitavelmen-
te, limitado e adiado de alguma maneira.
A sabotagem e a obstruo das comearam a ocorrer no
incio dos anos 70, quando umas poucas e pequenas m-
quinas experimentais foram usadas em testes no campo.
Contudo, somente em 1976, contudo, que as mquinas de
colher de larga escala comercial entraram em operao, ge-
rando contra si atos de violncia. Os oficiais do Departa-
mento de Desenvolvimento Agrcola de Muda optaram por
classificar simplesmente de vandalismo atos como, por
exemplo, o de remover baterias das mquinas e jog-las
dentro das valas de irrigao; o de destruir carburadores e
outras partes vitais das mquinas, tais como distribuidores
e filtros de ar; o de jogar areia e lama nos tanques de gaso-
lina, e vrios objetos (pedras, arame, pregos) dentro das bro-
cas, dentre outros
14
. Em um bom nmero de comunidades,
rumores velados de possveis violncias persuadiram mui-
tos dos grandes fazendeiros a hesitar antes de alugar uma
mquina. Tais tticas, em uma determinada comunidade,
realmente impediram o uso de qualquer mquina coletora
por trs safras. Dois aspectos dessa sabotagem e ameaas as-
sociadas merecem uma nfase particular. Primeiro, era cla-
ro que o objetivo dos sabotadores no era simplesmente o
furto, porque nada foi realmente roubado. Segundo, todas
as sabotagens foram realizadas noite, por indivduos ou
pequenos grupos atuando anonimamente. Eles eram, alm
do mais, protegidos por seus vizinhos, que, se soubessem
quem estava envolvido, afirmavam total ignorncia quan-
do a polcia realizava investigaes. Como resultado, ne-
nhum processo foi jamais instaurado. A prtica de colocar
vigilantes noturnos para vigiar as mquinas datam desses
primeiros testes pelos quais passou a introduo da nova tec-
nologia de colheita.
Ao mesmo tempo, iniciou-se um silencioso, mas cole-
tivo, esforo de mulheres para fazer presso sobre os fa-
zendeiros que alugassem mquinas. Os homens e mulhe-
res, freqentemente da mesma famlia, tinham perdido seu
trabalho para as mquinas coletoras, mas somente as mu-
lheres ainda possuam um real poder de barganha. Am-
bos estavam, ainda naquele momento, no controle do
transplante. Antes da introduo das mquinas coletoras,
o grupo de mulheres (ao kumpulan) colhia nos campos
que tinham tambm transplantado. Com a introduo da
nova tecnologia, elas estavam perdendo quase a metade
de seus salrios sazonais e, compreensivelmente, se ressen-
tiram de transplantar a produo de um fazendeiro que
usaria a mquina coletora no perodo da colheita. Dessa
forma, em Sedaka e, aparentemente, em toda a regio de
Muda, tais mulheres resolveram organizar um boicote que
impediria o servio de transplantar para os empregadores
que alugassem as mquinas.
Dentre cinco grupos de partilha em Sedaka, trs fi-
zeram algumas tentativas para forar o boicote. Cada gru-
po dentre esses trs grupos era composto por seis a nove
mulheres de quaisquer das comunidades. Os dois grupos
que no participaram diretamente do boicote, recusaram-
se a quebr-lo, no aceitando participar em plantios de
fazendeiros que estivessem sendo boicotados por um dos
outros trs grupos. O porqu dos grupos das senhoras
Rosni, Rokiah e Mariam terem tomado a iniciativa no est
inteiramente claro. Eles so compostos por mulheres de
famlias que so, em mdia, um pouco mais pobres do que
aquelas das mulheres dos grupos restantes. Se nos base-
armos em explicaes locais dos padres de resistncia, o
consenso o de que Rosni, Rokiah e Mariam dependem
fortemente do salrio mnimo para sustentar suas famli-
as e so, ao mesmo tempo, corajosas (berani)
15
.
O boicote realmente representou uma forma muito cau-
telosa de resistncia, no tendo havido, em nenhum mo-
mento, uma confrontao aberta entre fazendeiros que
usavam as mquinas e seus transplantadores. Pelo contr-
rio, eram empregadas abordagens annimas e indiretas de
rumores e insinuaes (cara sembunyi tau), com as quais
somos familiarizados. As mulheres faziam os outros sabe-
rem, atravs de intermedirios, que o grupo no estava sa-
tisfeito com a perda de trabalho na colheita e seria relu-
14
Conta-se que um grupo de trabalhadores depois de acordar o vigia que dormia na cabine, mandou-o
descer e, usando querosene, atearam fogo em uma mquina.
15
Rosni, uma viva, reconhecida pelo seu trabalho duro e independncia enquanto o marido de Roki-
ah considerado um fraco, sendo Rokiah considerada a chefe da famlia, tomando todas as decises
bsicas. Tais mulheres, especialmente quando seus filhos j cresceram, so tratadas como homens, sen-
do dispensadas de grande parte dos requisitos de modstia e deferncia exigidos das mulheres na socie-
dade malasiana.
Formas cotidianas da resistncia camponesa
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tante em transplantar os campos daqueles que tivessem
alugado as mquinas na temporada anterior. Elas tambm
faziam saber que, se uma mquina quebrasse no curso
da colheita, um fazendeiro que ento quisesse concluir sua
colheita manualmente no contaria com seus velhos tra-
balhadores para socorr-lo.
Quando chegou o tempo, no comeo da estao irri-
gada de 1977, para fazer valer essa ameaa, a discrio
mais uma vez prevaleceu. Nenhum dos trs grupos se re-
cusou prontamente a transplantar gros de arroz para
aqueles que tinham usado mquinas na estao anteri-
or. Contudo, as mulheres atrasaram o processo de trans-
plante: a lder do grupo dizia ao fazendeiro prejudicado
que elas estavam ocupadas e no poderiam trabalhar em
suas terras ainda. Somente uma dzia de fazendeiros ti-
nha usado mquinas na temporada anterior, o que ga-
rantia aos grupos de mulheres um grande mercado de
trabalho antes de fazer o transplante das colheitas daque-
les que no tinham se mecanizado. As mulheres trans-
plantadoras, ento, mantiveram suas opes em aberto,
evitando uma recusa direta de replante, que teria provo-
cado um rompimento explcito. Sabedores dos rumores
do boicote, os fazendeiros que tinham sido preteridos
tornaram-se crescentemente ansiosos, j que seus arro-
zais estavam passando de maduros e eles temiam que sua
colheita no se completasse antes da data marcada para
que acabasse o suprimento de gua. Os nimos dos fa-
zendeiros que estavam sendo boicotados no melhora-
ram ao ver os campos dos vizinhos recm-transplanta-
dos, prximos aos seus prprios lotes vazios.
Depois de mais de duas semanas dessa guerra de ner-
vos esse aparente boicote que nunca se anunciou clara-
mente seis fazendeiros
16
fizeram saber, indiretamen-
te, aos participantes do boicote, que estavam fazendo
acertos para conseguir trabalhadores de fora para vir e
transplantar suas colheitas. Neste ponto, o boicote entrou
em colapso. Cada um dos trs grupos teve que enfrentar
defeces, j que as mulheres temeram perder permanen-
temente seus trabalhos de transplante para forasteiros. Elas
enviaram rapidamente uma carta dizendo que comeari-
am a transplantar a terra dentro dos prximos dias. Trs
dos seis fazendeiros cancelaram seus acertos com grupos
forasteiros, enquanto os outros trs foram em frente, acre-
ditando, por um lado, ser muito tarde para suspender os
acertos e, por outro lado, querendo ensinar a lio s mu-
lheres. Transplantadores vieram da cidade de Yan (prxi-
ma sede do sistema de irrigao) e de outras localidades
mais longnquas, como Singkir e Merbuk. Um fazendei-
ro, Haji Salim, usando sua considervel influncia polti-
ca, combinou com autoridade locais para trazer um gru-
po de transplantadores de Thai uma prtica que ele tem
continuado e pela qual tem sido duramente criticado.
A tentativa breve e abortiva de parar a mecanizao
pela ao coletiva foi assunto de desmoralizao ou de
elogio post-mortem, variando de acordo com o posicio-
namento adotado pelos indivduos. Ao lado do prazer ou
do desapontamento expresso, o post-mortem convergiu
sobre a inevitabilidade do desenlace. Mesmo aqueles com
muito a perder com a mecanizao perceberam que, se
seu blefe funcionasse, seria quase impossvel ir alm de
conversas e de vagas ameaas. Eles concordaram triste-
mente que isto seria apenas conversa e que, de qualquer
maneira, eles tinham plantado. O que podiam fazer? Ter
continuado a recusar a transplantar, uma vez que traba-
lhadores de fora tinham sido trazidos, teria significado
arriscar uma j precria sobrevivncia. A futilidade de
uma tal recusa foi mais de uma vez caracterizada pelo
uso do ditado popular malaio que pode ser entendido
como cuidado para no cortar o galho em que se est
sentado
17
. Um dos camponeses, que se tornou o que-
brador de mquinas local, comentou o ocorrido assim:
os pobres tm que trabalhar de qualquer maneira; eles
no podem escapar. Um saudvel interesse em sobre-
viver requereu deles que engolissem seu orgulho e vol-
tassem ao trabalho. De fato, a possibilidade desse desen-
lace estava implcita na maneira indireta pela qual o
boicote foi conduzido; uma confrontao e um boicote
abertos teria significado queimar as pontes atrs deles.
Pelo contrrio, eles deixaram aberta uma avenida de re-
cuo. Em termos de discurso pblico, o boicote foi um
no-evento, uma vez que nunca foi abertamente decla-
rado ou derrotado, j que o uso dos atrasos e de descul-
pas pouco plausveis significava que a mesmo a inten-
o do boicote poderia ser negada.
16
Os seis eram grandes fazendeiros, segundo os padres da comunidade, cultivando um total de quase
70 acres. Eles afirmaram em sua defesa que tinham sido pressionados por um compromisso com uma
firma para cumprir uma data de transplante de seu grupo, e que s depois de terem sido preteridos ou-
tra vez, fizeram alguma coisa.
17
A traduo literal do ditado popular malasiano zangado com seu arroz, jogando-o pelas sua janela
dando-o s suas galinhas (marah sama nasi, tauk, bagi ayam makan).
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21
Desse modo, verifica-se que os objetivos da tentativa de
greve em Sedaka e em outras inumerveis comunidades na
plancie de Kedah eram ambiciosos
18
. As mulheres preten-
diam nada menos do que bloquear uma significativa mu-
dana nas relaes de produo. Seus meios, como vimos,
contudo, eram modestos e disfarados. Assim, embora te-
nham falhado em impedir a mecanizao da colheita, sua
tentativa no foi completamente ftil. H poucas dvidas
de que as mquinas coletoras teriam sido adotadas mais
rapidamente se no tivesse havido sua resistncia. Para po-
bres camponeses, vivendo margem, o tempo ganho foi vi-
tal. Cinco anos aps a introduo das mquinas, havia ainda
cinco ou seis fazendeiros que contratavam trabalhadores
manuais para alguma ou todas as suas colheitas de arroz
porque, dizem, seus vizinhos necessitavam de trabalho.
Acredita-se que tm sido influenciados pela campanha sub-
terrnea de difamao travadas contra aqueles que invaria-
velmente usam as mquinas.
O ROUBO DE GROS DE ARROZ: RESISTNCIA ROTINEIRA
A tentativa de deter a mecanizao da colheita, em-
bora esteja longe de ter se constitudo num alto drama,
foi, sem dvida, algo fora do comum. Ela se colocou con-
tra um passado de resistncia raramente notado, referente
a salrios, arrendamento, aluguis e distribuio dos ar-
rozais, uma das caractersticas permanentes da vida em
Sedaka e de toda rea rural estratificada. Um exame acu-
rado de reino de lutas, revela uma forma implcita de sin-
dicalismo que reforada tanto pela mutualidade entre
os pobres, quanto por uma considervel quantidade de
furtos e de violncia contra a propriedade. Nenhuma des-
sas atividades coloca uma ameaa fundamental base da
estrutura de desigualdades, quer seja material ou simbo-
licamente. O que elas representam, porm, um cons-
tante processo de teste e renegociao das relaes de
produo entre as classes. Em ambos os lados, no dos
proprietrios/arrendatrios; no dos fazendeiros/trabalha-
dores, h uma tentativa incessante de aproveitar e sali-
entar cada pequena vantagem, visando verificar os limi-
tes das relaes existentes, ver precisamente com o que
se pode sair margem e, finalmente, incluir essa mar-
gem como uma parte de um territrio aceito, ou pelo
menos tolerado. Depois da dcada passada, a corrente
dessa batalha de fronteira tem, certamente, favorecido de
modo consistente as fortunas dos grandes fazendeiros e
proprietrios. Eles tm no somente englobado grandes
pedaos do territrio defendido pelos trabalhadores as-
salariados e arrendatrios, mas, fazendo isso, tm redu-
zido (atravs da marginalizao) o permetro ao longo
do qual a batalha continua. Mesmo ao longo desse per-
metro reduzido, contudo, h uma constante presso exer-
cida por aqueles que esperam reconquistar pelos menos
uma pequena parte do que, relutantemente, perderam.
Os que resistem requerem pouca coordenao explcita
na conduo dessa luta, porque se recusam a mudar o
simples imperativo de garantir um sustento minimamen-
te tolervel.
As dimenses e a conduo dessas resistncias mais ro-
tineiras poderiam preencher volumosos trabalhos. Para
nossos objetivos aqui, porm, a maioria das questes b-
sicas levantadas por esse tipo de resistncia pode ser vista
numa forma particularmente popular que elas assumem:
os furtos de gros de arroz
19
. Nessa perspectiva, o furto no
campo , em si mesmo, irrelevante, sendo quase que uma
marca permanente das comunidades agrrias estratifica-
das em todos os momentos e lugares em que o estado e
seus agentes so insuficientes para control-lo, tomando
mesmo uma dimenso de luta na qual os direitos de pro-
priedade so contestados, embora possa se tornar um ele-
mento essencial de qualquer que seja o modelo de rela-
es de classes.
O montante de gros de arroz roubados em uma ni-
ca temporada, embora no to grande em relao ao total
da colheita, alarmante para os grandes fazendeiros que
acreditam num provvel crescimento desse montante. Ne-
nhuma estatstica segura est disponvel, certamente, mas
fiz um esforo para registrar as perdas de gros de arroz a
mim relatadas durante a principal temporada de 79 a 80.
De longe, a maior categoria de furtos era de sacos com-
pletos de arroz debulhado, deixados nos campos, noite,
18
Em termos da poltica dos camponeses, o localismo do boicote e a ausncia de instituies para refor-
-los no mercado regional de trabalho foram impedimentos devastadores. Assim, as mulheres de Se-
daka, ao boicotarem alguns fazendeiros locais, aceitavam trabalhar em outros lugares, servindo, assim,
sem ter conscincia disso, como fura-greves em outras aldeias de Muda. E, certamente, as mulheres dessas
aldeias, ou outras como elas, eram pagas para ajudar a quebrar o boicote em Sedaka. Esse foi um exem-
plo clssico da fragilidade dos efeitos da solidariedade quando ela apenas localizada.
19
Para o exame de outras formas de resistncia cotidianas, incluindo outros tipos de furtos, ver SCOTT,
J.C. Relaes cotidianas de classe, New Haven: Yale Press, captulo 7.
Formas cotidianas da resistncia camponesa
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
22
durante a colheita. Para um melhor entendimento desses
furtos, vejamos o quadro abaixo.
Inicialmente, deve ser ressaltado que a essa perda to-
tal deve-se adicionar outra quantidade de arroz que su-
miu de outras maneiras. Pelo menos quatro sacos de ar-
roz, secando ao sol em esteiras, desapareceram. Dois
muito bem-sucedidos fazendeiros perderam sacos que ti-
nham sido estocados sob suas casas. Foi tambm relata-
do que algo como essa mesma quantidade de arroz foi
roubada de celeiros ao longo da temporada
20
. Fomos in-
formados tambm que uma pequena quantidade de ar-
roz foi pega ainda nos arrozais. impossvel, nesse caso,
precisar a quantidade, mas pode-se afirmar que ela no
substancial
21
. Finalmente, uma avaliao completa dos
furtos de arroz deveria incluir uma estimativa de gros
que, segundo dizem, os debulhadores colocam em seus
bolsos e dentro das camisas no fim do dia de trabalho
22
.
Certos fatos sobre o padro de roubo merecem men-
o. Inicialmente, com exceo de dois fazendeiros que so
moderadamente ricos, todas as vtimas esto entre um ter-
o das famlias mais ricas de Sedaka. Isto indica, simples-
mente, o fato bvio de que tais famlias tero mais arroz
plantado nos campos no perodo da colheita e que os pe-
quenos proprietrios no tm condies de suportar a per-
da e sofrem para trazer, rapidamente, o arroz debulhado
para suas casas. Merece destaque tambm o fato de que
os grandes fazendeiros, com plantaes distantes de suas
casas, que no podem ser debulhadas (e at armazenadas)
em um nico dia, so os mais propensos a tais perdas. Mas
aqui significante notar que a forma como acontece o rou-
bo um produto do padro de relaes de propriedade
prevalecentes em Sedaka. O rico, de modo geral, possui o
que pode ser tomado, enquanto o pobre tem um grande
incentivo de tom-lo. Ningum duvida que os homens
pobres do local so responsveis pela grande maioria dos
roubos de arroz.
A quantidade total de arroz roubado, talvez entre 20 a
25 sacos de arroz, menos do que um centsimo do mon-
tante de arroz colhido numa safra por todos os fazendei-
ros da aldeia. Por esta medida, as perdas so at triviais e
so geradas por aqueles que produzem um excedente
substancial. Se, entretanto, medirmos a significncia des-
sa quantidade de arroz roubada pelo que poderia adicio-
nar ao suprimento de alimentos das poucas famlias mais
pobres na aldeia, ela poderia representar uma quantia re-
levante. interessante notar que 20 a 25 sacos de arroz
mais do que a metade da quantidade de gros doados vo-
luntariamente pelos fazendeiros como dzimo islmico
(zakat peribadi) aps a colheita. A comparao oportu-
na, precisamente porque eu ouvi por duas vezes homens
pobres se referindo, sorrindo, a roubos de arroz (curian
padi) como zakat peribadi que algum toma para si mes-
mo (zakat peribadi, angkat sindiri). Essa evidncia no
certamente conclusiva, mas inteiramente possvel que
alguns dos pobres, de algum modo, considerem tais atos
no tanto como roubo, mas como a apropriao do que
eles sentem que lhes pertence devido a costumes antigos
uma espcie de imposto dos pobres para substituir os
presentes e salrios que no mais recebem. Neste sentido,
dois outros itens de evidncia circunstancial so relevan-
tes. Primeiramente, convm citar um dos fazendeiros que
perderam a plantao de arroz. Samat estava entre os mais
20
Os nmeros so imprecisos. Os gros de arroz so furtados de duas maneiras: quebrando-se tbuas
dos celeiros ou fazendo-se furos pelos quais o arroz retirado. Embora muitos fazendeiros faam, peri-
odicamente, marcas dentro dos silos, difcil saber precisamente quanto retirado ao longo do tempo.
21
Camponeses destacam que o som do debulhamento e do armazenamento seria um problema para o
ladro, enquanto os ricos dizem que ladres so preguiosos demais para se submeterem atividade de
debulhar.
22
Tais prticas de surrupiamento so citadas pela maioria dos fazendeiros, mas no tentei calcular quan-
to arroz apropriado dessa maneira durante a colheita (Nota do autor).
Furtos de Sacos de Arroz,
Registrados na Temporada de 1979-80
o r i e d n e z a F ) s o c a s m e ( a d a t a l e r a d r e P
n o n h a h S 1 0
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g n o L k o T 2 0
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k e d n e P i a b e L 2 0
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L A T O T 4 1
James C. Scott
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
23
admirados pelos pobres, por sua relutncia em alugar a
mquina de colher e debulhar, enquanto todos os outros
fazendeiros utilizaram a mquina assim que foi possvel.
H tambm algumas indicaes de que os roubos de ar-
roz podem ser usados como uma sano pelos trabalha-
dores descontentes. Nesse sentido, Sukur, um dos meus
informantes, contou-me em certa ocasio que os fazendei-
ros receavam contratar debulhadores que, costumeiramen-
te, convidavam, pois algum que fosse esquecido poderia,
num momento de raiva, roubar arroz dos campos. Se, de
fato, o roubo da plantao de arroz tem um elemento de
justia popular, o escopo de tal resistncia tem sido con-
sistentemente reduzido pelo uso das mquinas de colher
e debulhar, as quais tornam possvel colher e armazenar
(ou vender) uma colheita inteira de um fazendeiro num
nico dia. As mquinas, ento, no apenas eliminam a
colheita manual, a debulha manual, o transporte dentro
da propriedade e o trabalho de colher os gros derruba-
dos no campo quando da colheita
23
, mas tambm tendem
a eliminar o roubo.
A atitude dos fazendeiros ricos em relao a tais rou-
bos uma combinao de raiva, como de se esperar, e
tambm de medo. Por exemplol, Haji Kadir, o fazendei-
ro mais rico na aldeia, ficou to furioso com sua perda que
chegou a pensar em passar a noite seguinte no campo,
guardando sua plantao de arroz com sua pistola. Ele no
o fez porque ponderou que o simples rumor de que fica-
ria espreita seria suficiente para deter qualquer roubo.
O elemento de medo poder ser identificado, em parte, pelo
fato de que, em Sedaka, nunca um roubo de plantao de
arroz foi denunciado na polcia. Fazendeiros ricos expli-
caram-me que caso fizessem tal denncia e indicassem um
suspeito, a notcia se espalharia e eles temiam que pudes-
sem ser alvo de mais roubos. Haji Kadir viu, em certa oca-
sio, algum roubando um saco de arroz noite em um
campo de um vizinho. Ele no apenas foi incapaz de im-
pedir o roubo, mas tambm no informou seu vizinho,
apesar de estar seguro sobre a identidade do ladro. Quan-
do lhe perguntei o porqu de tal atitude, ele respondeu
que o ladro, que tambm o viu, saberia quem seria o in-
formante e roubaria, em seguida, sua plantao. Numa
safra anterior, Mat Sarif, outro fazendeiro rico, perdeu dois
sacos de arroz, mas contou-me que no queria saber quem
o roubou. Velho e um pouco frgil, ele simplesmente acres-
centou: eu tenho medo de ser morto (takut mampus).
Para uma parcela dos pobres mais ousados da localidade,
parece que se estabeleceu, com base no terror, algo como
um pequeno equilbrio que viabiliza a continuidade de tais
furtos
24
.
Outras formas de resistncia dos pobres de Sedaka va-
riam na sua especificidade, mas no no contorno geral.
Uma marca distintiva de praticamente toda resistncia
em Sedaka a relativa ausncia de confrontao aberta
entre as classes. Onde a resistncia coletiva, ela cui-
dadosamente prudente; onde o indivduo ou pequeno
grupo atacam a propriedade, ela annima e geralmen-
te noturna
25
. pela prudncia calculada e pelo segredo
que se preserva, na maioria das ocasies, o teatro ence-
nado do poder que domina a vida pblica em Sedaka.
Qualquer inteno de atacar violentamente o palco pode
ser desaprovada e as opes so conscientemente manti-
das em aberto. Deferncia e conformidade, embora ra-
ramente signifiquem uma lisonja servil, continuam a ser
posturas pblicas dos pobres. Entretanto, a ao de bas-
23
Esta ltima atividade identificada por Scott como gleaning, palavra de difcil traduo, pois tem
nomes especficos em portugus, de acordo com o tipo de produto agrcola. Por isto, optamos por des-
crever a atividade e no traduzir por uma expresso nica.
24
H, entretanto, meios mais sutis de nomear o suspeito baseados na forma tradicional de deixar ser
conhecido (cara sembunyi tau). Um deles consiste em consultar um curandeiro (bomoh) no distrito
em que tenha conquistado fama por encontrar coisas perdidas ou identificar ladres. Aps conhecer as
particularidades, o bomoh usar encantamentos (jampi) e faz aparecer, por mgica, a forma do ladro
na gua preparada especialmente para a ocasio. No surpreendentemente, o rosto que se forma ge-
ralmente o do homem do qual o cliente sempre suspeitou. No caso de roubo de arroz, o propsito no
tanto recuperar o arroz, mas identificar o ladro. O fazendeiro, quando retorna para a aldeia, contar
para seus amigos as caractersticas fsicas vistas e descritas pelo bomoh. A notcia se espalhar e o ladro
suspeito saber que est sendo vigiado, sem que haja uma acusao direta, nem uma denncia policial.
Assim, Haji Kadir relatou que o bomoh disse ter visto Taib e outro homem no identificado na gua.
Se, de fato, Taib for o culpado, Haji Kadir espera que a difuso da acusao pela redondeza evite qual-
quer roubo subseqente na rea. Em pelo ao menos duas ocasies, entretanto, aldees lembram que
alguns ou todo o arroz roubado reapareceu misteriosamente depois de uma consulta ao bomoh. O tipo
de circunspeco empregado por estes poucos fazendeiros que recorrem ao bomoh outra indicao de
que uma confrontao aberta considerada perigosa.
25
Para um interessante paralelo, veja Thompson, E. P. O crime do anonimato, in Hay, D. et al. Albions
Fatal Tree, pp. 255-344.
Formas cotidianas da resistncia camponesa
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
24
tidores pode, claramente, apenas externar um teste con-
tnuo de limites.
A resistncia em Sedaka no tem nada do que algum
pode esperar encontrar na histria tpica do conflito ru-
ral. No h motins, demonstraes, incndios culposos,
banditismo social organizado ou violncia aberta. A re-
sistncia que descobrimos no est relacionada com mo-
vimentos polticos amplos, ideologias, ou nenhuma estru-
tura revolucionria, embora, sem dvida, lutas similares
tenham ocorrido em quase todas as aldeias da regio. Os
tipos de atividades encontrados aqui requerem pouca co-
ordenao, para no mencionar organizao poltica, em-
bora estas possam influenciar as aes dos camponeses.
Podemos dizer que tais atividades so, em resumo, formas
de luta quase que inteiramente voltadas para a esfera lo-
cal. Desde que sejamos cuidadosos quanto ao uso do ter-
mo, essas atividades devem apropriadamente ser chama-
das de resistncia primitiva. O uso de primitiva no
implica, como pretendia Hobsbawn, que elas so de al-
gum modo atrasadas e destinadas a serem substitudas por
ideologias e tticas mais sofisticadas
26
. Implica, apenas, que
essas formas de resistncia so estratgias cotidianas per-
manentes das classes rurais subordinadas que vivem em
difceis condies. Em tempos de crise ou momentos de
mudana poltica, podem ser complementadas por outras
formas de luta que so mais oportunas. Entretanto, elas
no desaparecero enquanto a estrutura rural social se
mantiver exploradora e desigual. Assim, essas estratgias
so o alicerce obstinado sob o qual outras formas de re-
sistncia devem crescer e tendem a persistir aps outras for-
mas de resistir terem falhado, ou aps produzir-se, por sua
vez, um novo padro de desigualdade.
3. O QUE CONSIDERAR COMO RESISTNCIA
Podem as atividades que descrevemos e outras simila-
res serem consideradas de formas de resistncia? Podemos
considerar um boicote, que nunca foi anunciado, como
uma forma de resistncia de classe? Por que devemos con-
siderar o roubo de alguns sacos de arroz como uma for-
ma de resistncia de classe, se nele no h ao coletiva,
tampouco um enfrentamento aberto ao sistema de propri-
edade e dominao? Muitas das mesmas questes podem
ser levantadas com relao fofoca e difamao de pes-
soas, que so alguns dos principais meios dos pobres de
Sedaka, consistentemente, tentarem influenciar o compor-
tamento dos ricos.
Como uma primeira aproximao, proponho abaixo
uma definio para a resistncia dos camponeses, a qual
poderia incluir muitas das atividades que temos discuti-
do. O propsito implcito desta definio no estabe-
lecer importantes questes com fora de lei, mas antes
ressaltar os problemas conceituais que enfrentamos em
compreender a resistncia e desenvolver, de modo plau-
svel, uma compreenso mais ampla do termo.
Micro-resistncia entre camponeses qualquer ato de membros da
classe que tem como inteno mitigar ou negar obrigaes (renda,
impostos, deferncia) cobradas essa classe por classes superiores (pro-
prietrios de terra, o estado, proprietrios de mquinas, agiotas ou
empresas de emprstimo de dinheiro) ou avanar suas prprias reivin-
dicaes (terra, assistncia, respeito) em relao s classes superiores.
Trs aspectos da definio apresentada merecem um
breve comentrio. O primeiro, o fato de que no h ne-
nhuma exigncia de que a resistncia assuma a forma de
ao coletiva. O segundo, que tem gerado muita polmi-
ca, a incorporao das intenes definio. Posterior-
mente, abordaremos este problema novamente, bastando
dizer agora que a formulao como encontrada na defi-
nio permite afirmar que muitos atos intencionais de re-
sistncia podem suscitar e produzir conseqncias intei-
ramente imprevisveis. Finalmente, o reconhecimento
expresso na definio do que que chamamos de resis-
tncia simblica ou ideolgica (fofoca, injrias, rejeio de
categorias impostas, questionamento e afastamento da de-
ferncia) como uma parte integral da resistncia baseada
na diferenciao de classe.
O problema das intenes bastante complexo, no
simplesmente porque os ainda no apreendidos roubos de
arroz de nosso exemplo anterior so difceis de serem iden-
tificados, mas tambm porque a discusso de suas inten-
es somente se torna possvel quando os prprio roubos
so localizados. A nossa dificuldade em entender o signi-
ficado de atos como os furtos de arroz relaciona-se com
26
Veja Hobsbawn, E. J., Primitive Rebels: studies in Archaic Forms of Social movement in the 19th and
20th Centuries New York: Norton, 1965. A narrativa iluminadora de Hobsbawn , ao meu ver, sobrecar-
regada excessivamente com uma teoria unilinear da histria das classes subordinadas, que afirma ser
toda forma de resistncia primitiva destinada superao, no devido tempo, por uma forma mais pro-
gressiva, at que at uma viso marxista leninista madura seja alcanada.
James C. Scott
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
25
nossa tendncia de pensar a resistncia como aes que
envolvem, ao menos, algum sacrifcio individual ou cole-
tivo de curta durao, propiciando, assim, algum ganho
coletivo de longo alcance. As perdas imediatas de uma gre-
ve, de um boicote, ou at a rejeio de competir com ou-
tros membros de uma classe por terra ou trabalho so ca-
sos em discusso. Quando acontecem atos como roubo,
entretanto, encontramo-nos diante de uma combinao
que pode ser entendida como de ganho individual imedi-
ato ou como de resistncia. Como podemos, ento, julgar
quais dos dois propsitos , em ltima instncia, decisi-
vo? O que est em debate aqui no uma questo menor
de definio, mas antes a interpretao de uma srie de
aes que, ao meu ver, reside, historicamente, no corao
das relaes cotidianas de classe. Ilustrando tais afirmati-
vas, convm lembrar que os ingleses que caavam ilegal-
mente em florestas no sculo XVIII, poderiam estar resis-
tindo aos impostos pelo uso de recursos selvagens da
propriedade ou estavam apenas interessados em um cozi-
do de coelho. Por outro lado, o campons do Sudeste asi-
tico que esconde seu arroz e posses dos coletores de im-
postos, pode estar protestando contra altos impostos, mas,
concomitantemente, adota uma forma de garantir arroz
suficiente at a prxima safra. Por sua vez, um campons
que deserta do exrcito, pode ser um opositor da guerra
ou, de modo equivalente, estar apenas salvando a sua pele
ao escapar da frente de batalha. Quais desses motivos fun-
didos e inextricveis podem ser considerados proeminen-
tes? Certamente, se fizermos essa pergunta aos atores en-
volvidos e se, candidamente, puder haver uma resposta,
no difcil que eles sejam incapazes de identificar uma
determinao clara de suas intenes.
Sendo assim, estudiosos de escravido, que tm enfren-
tado mais diretamente essa dubiedade, quando identificam
que alguns atos de protesto velado, como a acomodao
e os roubos, eram freqentemente a nica opo dispon-
vel, tendem a consider-los como formas de resistncia
real. Na anlise de Gerald Mullin sobre o carter pro-
testador do escravo, so apresentadas trs razes para in-
terpretar assim os atos mencionados:
Ao acessar essas diferenas observveis do comportamento escravo,
estudiosos normalmente perguntam se uma rebelio particular repre-
senta resistncia aos abusos da escravido ou resistncia real prpria
escravido. Quando o comportamento do escravo examinado luz
do contedo poltico, os trabalhadores inferiores, os escravos do cam-
po, do-se muito mal. De modo geral, sua acomodao e o roubo re-
presentavam um limitado e, talvez, auto-indulgente tipo de rebelio.
Suas reaes a abusos inesperados ou a mudanas bruscas na rotina
da plantao foram, no mximo, apenas pequenos atos contra a escra-
vido. Mas as aes sistemticas e organizadas dos escravos para obs-
truir o trabalho da plantation seus atos persistentes de atrito contra
colheitas e armazns, e os roubos cooperativos noturnos que sustenta-
vam o mercado negro eram muito mais polticos em suas conseq-
ncias e representavam resistncia prpria escravido (Mullin, 1972:
35, nfase adicionada).
Apesar da posio de Eugene Genovese (1974) sobre
estas formas de resistncia diferir da apresentada acima em
importantes pontos, ele insiste em distinguir entre formas
de resistncia pr-polticas e formas de resistncia mais
significantes contra o regime de escravido. A distino
para ele, como indica a seguinte citao, reside tanto no
reino das conseqncias quanto na realidade das inten-
es.
Estritamente falando, apenas a insurreio representou uma ao
poltica, que alguns decidiram definir como a nica resistncia genu-
na, considerando que apenas ela representou diretamente um desa-
fio ao poder do regime. Deste ponto de vista, aquelas atividades que
outros chamaram resistncia cotidiana escravido roubo, men-
tira, dissimulao, vagabundagem, assassinato, infanticdio, suicdio,
incndio culposo qualificam-se, no mximo, como pr-polticas e,
no mnimo, como apolticas... Mas a resistncia cotidiana escravi-
do geralmente implica acomodao e no faz sentido, com exceo
da situao em que normas de um status quo legitimado tenham, se-
gundo a percepo e definio dos escravos, sido violadas (Genovese,
1974: 598).
Combinando estas perspectivas sobrepostas, o resulta-
do algo como uma dicotomia entre a resistncia real e
as atividades incidentais ou at epifenomnicas. A resis-
tncia real definida como (a) organizada, sistemtica
e cooperativa; (b) baseada em princpios ou egostas; (c)
eficazes em termos de conseqncias revolucionrias e/ou
(d) englobadora de idias ou intenes que negam as ba-
ses da dominao. As micro-atividades, incidentais ou epi-
fenomnicas, em contraste, so (a) no organizadas, no
sistemticas e individuais; (b) oportunsticas e auto-in-
dulgentes, (c) incuas em termos de conseqncias re-
volucionrias, e/ou (d) implicam, em sua inteno ou l-
gica, uma acomodao ao sistema de dominao. Convm
esclarecer que estas distines so importantes para qual-
quer anlise que tenha como objetivos a tentativa de deli-
near as vrias formas de resistncia e de mostrar como elas
esto relacionadas a uma ou outra forma de dominao
Formas cotidianas da resistncia camponesa
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
26
na qual ocorrem. Minha maior discordncia com a ar-
gumentao de que as ltimas formas so, em ltima ins-
tncia, triviais ou inconseqentes, enquanto apenas as pri-
meiras podem constituir resistncia real. Esta posio, ao
meu ver, deforma, fundamentalmente, a prpria base da
luta econmica e poltica conduzida diariamente pelas
classes subordinadas. Ainda pode ser acrescentado que esta
posio baseia-se numa combinao irnica de pressupos-
tos leninistas e burgueses a respeito do que constitui a ao
poltica. Os trs primeiros termos de comparao da tipo-
logia acima sugerida sero tratados a seguir. O item final,
referente aos julgamento das intenes, e a tentativa de
classific-las como acomodativas ou revolucionrias, de-
mandaria uma longa e separada anlise.
Inicialmente, vejamos a questo das aes que so
auto-indulgentes, individuais e no organizadas. Imer-
sa na lgica de Genovese (1974) e, especialmente, na de
Mullins (1972), est a pressuposio de que tais atos, in-
trinsecamente, carecem de conseqncias revolucionrias.
Este pode ser o caso, mas tambm pertinente considerar
que raramente existe uma revoluo moderna que pode,
com sucesso, ser explicada sem referncia a tais atos, quan-
do eles acontecem em escala massiva. Tomaremos nova-
mente o assunto da desero militar e o papel que desem-
penha nas revolues, acreditando que a revoluo russa
um caso exemplar. A crescente desero do grande ba-
talho campons do exrcito czarista, no vero de 1917,
foi uma parte importante e indispensvel do processo re-
volucionrio, pelo menos em dois aspectos: os desertores
foram responsveis pelo colapso da principal instituio de
represso do estado czarista uma instituio que tinha
anteriormente, em 1905, derrubado outro levante revolu-
cionrio e, conseqentemente, contriburam diretamente
para o processo revolucionrio no campo ao participar nas
mensuraes de terra por todas as provncias da Rssia
Europia. extremamente ntido que a sangria nas for-
as czaristas foi grandemente auto-indulgente, desor-
ganizada, e individual embora milhares e milhares
de indivduos tenham abandonado suas armas e se dirigi-
do para casa
27
. O ataque ustria foi esmagado com enor-
me perda de tropas e oficiais; a rao de po foi reduzida
e dias de jejum foram inaugurados no fronte; os solda-
dos sabiam, alm do mais, que se ficassem, perderiam a
chance de ganhar com a partilha da terra no campo
28
. A
desero ofereceu aos camponeses alistados a possibilida-
de de salvar suas peles e retornar para casa enquanto po
e, agora terra, eram disponveis. Desde que a disciplina no
exrcito fora dissolvida, os riscos eram mnimos. Dificil-
mente pode-se imaginar um conjunto de objetivos mais
auto-indulgentes. Mas foram justamente os fins auto-
indulgentes, praticados por massas desorganizadas de sol-
dados camponeses auto-desmobilizados, que tornaram
a revoluo possvel (Carr, 1966).
A desintegrao do exrcito czarista uma das muitas
instncias em que a agregao de pequenos atos auto-in-
dulgentes de insubordinao ou desero, sem inteno re-
volucionria, criou uma situao de revoluo. A dissolu-
o dos exrcitos nacionalistas de Chaing Kai-Shek, em
1948, ou a do exrcito de Saigon, em 1975, poderiam sem
dvida ser analisadas a partir de parmetros similares. E
muito antes do desfecho final, deve ser adicionado que atos
de insubordinao em cada exrcito, assim como no exr-
cito americano servindo no Vietn, tiveram forte influn-
cia sobre o que as foras contra-revolucionrias poderiam
esperar e requerer de seu prprios soldados rasos
29
. Resis-
tncia desse tipo certamente no no um monoplio da
contra-revoluo, como George Washington e Emiliano
Zapata, entre outros, descobriram. Podemos imaginar que
a lgica eminentemente pessoal de Pedro Martinez, um
soldado das foras zapatistas, no foi marcadamente dife-
27
Veja Allan Wildman. The February Revolution in the Russian Army. Soviet Studies. Vol. 22. n 1,
July 1970, pp. 3-23; Marc Ferro. The Russian Soldier in 1917: undisciplined, Patriotic, and Revolutio-
nary, Slavic Review, Vol. 30, No.3 (Sept. 1971), pp. 483-512; Barrington Moore, Injustice. White Plains,
New York: M.E. Sharpe, 1978), p. 364, and Theda Skopol. States and Social Revolutions Cambridge:
Cambridge University Press, 1979, pp. 135-8. H um consenso de que a propaganda bolchevista na frente
de batalha no foi um instrumento para provocar tais deseres. There is a consensus that Bolshevik
propaganda at the front was not instrumental in provoking these desertions.
28
Pode-se considerar as mensuraes de terra e o saque de propriedades da aristocracia como um ato re-
volucionrio, e, foi certamente revolucionrio em suas conseqncias em 1917. Mas foi um evento lar-
gamente espontneo, fora do controle de qualquer partido e extremamente improvvel que aqueles
que se apossaram da terra percebiam a si mesmos como construindo um governo revolucionrio, me-
nos ainda um bolchevique. Veja Skocpol, op. Cit., pp. 135-138.
29
O sucesso inicial do Solidariedade, na Polnia, pode, de modo similar, ser atribudo amplamente ao fato
de que o regime impopular no poderia contar com seu prprio exrcito para, ativamente, reprimir a po-
pulao civil em rebelio, sendo, portanto, forado a se apoiar na odiosa polcia paramilitar, os Zomos.
James C. Scott
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
27
rente daquelas dos soldados czaristas que deixaram o fron-
te.
Foi onde (batalha de Tizapn) eu finalmente decidi. A batalha foi
horrvel. O tiroteio foi tremendo. Foi uma batalha muito sangrenta, de
trs dias e trs noites. Participei um dia e fui embora. Abandonei o exr-
cito... Eu disse para mim mesmo: tempo agora de voltar para mi-
nha esposa, minhas crianas pequenas. Eu estava saindo... Eu disse
para mim mesmo: No. Minha famlia em primeiro lugar e eles es-
to passando fome. Agora eu vou embora (Lewis, 1964: 102).
A sinceridade de Pedro Martinez serve para nos lem-
brar que no h um relacionamento necessrio entre a tri-
vialidade do ato de autopreservao e de cumprir as obri-
gaes familiares e a trivialidade das conseqncias de tais
atos. Aes que no poderiam de forma alguma ser con-
siderados polticas, quando multiplicadas, podem ter con-
seqncias as mais massivas tanto para estados quanto
para exrcitos.
A questo aqui no se resume, de nenhuma forma, ape-
nas desero de exrcitos, caso escolhido apenas como
uma ilustrao diagnstica. Implica quase toda fora si-
milar da tradio camponesa de driblar o roubo e as for-
mas de explorao do trabalho; as conseqncias de tais
atos de auto-ajuda podem estar muito alm da proporo
das intenes minsculas dos prprios atores.
Considerando que as conseqncias do comportamen-
to de autoproteo so essenciais a qualquer anlise mais
ampla de relaes de classe ou do estado, no quero defen-
der que a resistncia poderia ser definida com referncia
apenas s suas conseqncias. Tal viso incorre, em si mes-
ma, em dificuldades formidveis, devidas, seno por outra
razo, lei de conseqncias no intencionadas. Ento,
qualquer definio de resistncia requer alguma referncia
s intenes dos atores. O problema com os conceitos exis-
tentes de resistncia no , conseqentemente, que ele te-
nha inevitavelmente que lidar com intenes e significados,
como tambm com conseqncias. Diferentemente, o pro-
blema reside numa insistncia ingnua, estril e mal con-
duzida em distinguir atos individuais auto-indulgentes de
aes presumivelmente no egostas, coletivas, baseadas em
princpios, o que, freqentemente, resulta na excluso das
primeiras da categoria de resistncia real. Insistir em tais
distines como um meio de comparar formas de resistn-
cia e suas conseqncias uma coisa; mas usar essas dis-
tines como um critrio bsico para determinar o que cons-
titui resistncia perder o mais florescente da poltica cam-
ponesa.
No coincidncia que os gritos por po, terra e
contra impostos, que to freqentemente residem no
corao da rebelio camponesa, esto todos associados s
necessidades de sobrevivncia material bsica da unidade
familiar camponesa. Tampouco deve ser algo mais que um
lugar comum que a poltica, a resistncia e a submisso
camponesa cotidiana, fluem das mesmas necessidades
materiais fundamentais. Precisamos compreender o dese-
jo compreensvel da famlia camponesa de sobreviver, vi-
sando garantir a segurana fsica, suprimentos de alimen-
tos, e uma renda monetria suficiente, e identificar a fonte
de sua resistncia s demandas das gangues de presso, dos
coletores de impostos, dos fazendeiros e empregadores.
Ignorar o elemento de auto-interesse na resistncia
camponesa ignorar o contexto determinado no apenas
da poltica camponesa, mas da poltica da maioria das clas-
ses subalternas. precisamente a fuso entre auto-interes-
se e resistncia que se mostra como uma fora vital, ani-
mando a resistncia de camponeses e proletrios. Assim,
cabe esclarecer que quando o campons esconde parte de
sua colheita para evitar pagar impostos, ele est tanto en-
chendo sua barriga quanto destituindo o estado de gros
30
.
Por sua vez, quando um soldado campons deserta do
exrcito porque a comida ruim e sua colheita em casa
est madura, ele est tanto cuidando de si mesmo quanto
negando a artilharia ao estado. Em suma, quando tais atos
so raros e isolados, eles so de pouco interesse, mas no
momento em que eles se tornam um padro consistente,
embora no coordenado, estamos lidando com resistncia.
A natureza intrnseca e, em certo sentido, a beleza de
muitas expresses da resistncia camponesa o fato de, fre-
qentemente, conferir vantagens imediatas e concretas e,
ao mesmo tempo, negar recursos s classes apropriadoras,
sem requerer pouca ou nenhuma organizao explcita. A
obstinao e a fora de tal resistncia decorrem diretamente
do fato de que ela firmemente enraizada na luta mate-
rial vivenciada e partilhada por uma classe.
Exigir que a resistncia das classes inferiores seja, de
algum modo, orientada por princpios ou altrusta no
apenas uma difamao do status moral das necessida-
30
Tal resistncia no , certamente, o monoplio das classes subordinadas. A sonegao de impostos e a
chamada economia negra, em pases capitalistas avanados, tambm so formas de resistncia, em-
bora implementadas com mais vigor e sucesso por classes mdias e pela elite.
Formas cotidianas da resistncia camponesa
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28
des humanas essenciais. Fundamentalmente, mais uma
construo equivocada das bases da luta de classe que
constituem, primeiramente, uma luta pela apropriao de
trabalho, produo, propriedade e impostos. As questes
po e manteiga so a essncia da poltica das classes su-
bordinadas e da sua resistncia. O consumo, desta pers-
pectiva, tanto o objetivo quanto o resultado da resistn-
cia e contra-resistncia. Como Utsa Patnaikv (1979: 398-9)
notou, o consumo no nada mais do que o histrico
trabalho necessrio, a poro de produo lquida retida
pelos pequenos produtores como resultado de sua luta
com as classes apropriadoras de lucro. Este , ento, o
corao do auto-interesse da luta de classe cotidiana: a luta
defensiva permanente de mitigar ou vencer a apropriao.
Pequenos roubos de gro ou furtos no espao do debu-
lhador podem, do ponto de vista das vantagens, expressar
mecanismos de adaptao triviais, mas, de um ponto de
vista mais amplo das relaes de classe, o modo como a
colheita realmente dividida emerge como ponto central.
Uma vantagem do conceito de resistncia que comea
com necessidades materiais de auto-interesse que ele
avana em apreender que classe , primeiramente, uma
experincia dos prprios atores histricos. Aqui subscrevo
em gnero, numero e grau a proposio de E.P. Thomp-
son, baseada em sua anlise convincente da histria da
classe trabalhadora, assim formulada:
Em minha viso, tem-se dedicado uma ateno terica excessiva
(grande parte da mesma claramente a-histrica) classe e muito pou-
co luta de classes. Na realidade, luta de classes um conceito pr-
vio assim como muito mais universal. Para express-lo claramente: as
classes no existem como entidades separadas, que olham ao redor,
encontram uma classe inimiga e comeam logo a lutar. Pelo contr-
rio, as pessoas se encontram em uma sociedade estruturada de modos
determinados (crucialmente, mas no exclusivamente, em relaes de
produo), experienciam a explorao (ou a necessidade de manter o
poder sobre os explorados), identificam pontos de interesse antagni-
cos, comeam a lutar por estas questes e no processo de luta se des-
cobrem como classe, chegando a conhecer esse descobrimento como
conscincia de classe. A classe e a conscincia de classe so sempre as
ltimas, no as primeiras, fases do processo histrico real (Thompson,
1978: 149).
A tendncia para desconsiderar atos individuais de
resistncia como insignificantes e reservar o termo de re-
sistncia para aes coletivas ou organizadas uma ori-
entao equivocada, assim como a nfase na ao orien-
tada por princpios. O status privilegiado atribudo a
movimentos organizados, eu suspeito, flui de duas orien-
taes polticas: uma, essencialmente leninista, que trata
a nica ao de classe plausvel como aquela que con-
duzida por um partido de vanguarda, servindo como um
comit central; a outra orientao trata das aes mais
diretamente derivadas da familiaridade e da preferncia
por poltica aberta e institucionalizada, como conduzida
em democracias capitalistas. Em cada caso, entretanto, h
uma compreenso errnea das circunstncias sociais e po-
lticas nas quais a resistncia camponesa geralmente ocor-
re.
O carter individual e freqentemente annimo de
muitas expresses da resistncia camponesa , certamen-
te, um objeto adequado para a sociologia da classe, cam-
po do qual essas expresses emergem. A disperso em pe-
quenas comunidades e, em geral, a falta de meios
institucionais para agir coletivamente favorecem o em-
prego daqueles meios de resistncia que so locais e re-
querem pouca coordenao. Sob circunstncias histri-
cas especiais de esmagadora pauperizao material, de
desorganizao das instituies de represso ou da pro-
teo da liberdade poltica (mais raramente todas as trs),
o campesinato pode e tem se tornado um movimento de
massa organizado e poltico. Tais circunstncias so, en-
tretanto, extremamente raras e, normalmente, de vida
curta. Em muitos lugares, na maioria das vezes, estas
opes polticas tm sido, simplesmente, obstrudas. Em-
bora a propenso por formas de resistncia que so in-
dividuais e oportunas no o que um marxista poderia
esperar de pequenos produtores de mercadorias e de tra-
balhadores rurais, preciso reconhecer que esses tipos de
resistncia tm tambm certas vantagens.
Diferentemente das organizaes formais hierrquicas,
no h centro, liderana, ou estrutura identificvel, pass-
veis de serem cooptados ou neutralizados. O que falta em
termos da coordenao central compensado pela flexi-
bilidade e persistncia. Essas formas de resistncia podem
no ganhar batalhas premeditadas, mas so admiravel-
mente eficientes em campanhas de confronto de longo
prazo.
Se limitarmos nossa procura por resistncia campone-
sa s atividades organizadas formalmente, procuraremos
largamente em vo, pois na Malsia, e em muitos outros
pases do terceiro mundo, alm de ser baixo o nvel de or-
ganizao no meio rural, as entidades que existem, so,
freqentemente, criadas pelas elites rurais e oficiais. Ado-
tando essa abordagem, simplesmente perderemos muito
do que est ocorrendo. A atividade poltica formal deve ser
James C. Scott
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
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a norma para as elites, a inteligentsia, e as classes mdias
do terceiro mundo, assim como do ocidente, que tm um
quase monoplio do acesso s ferramentas institucionais,
mas seria tambm ingnuo esperar que a resistncia cam-
ponesa possa normalmente ter a mesma forma.
Tambm no devemos esquecer que as formas da re-
sistncia camponesa no so apenas o produto da ecolo-
gia social do campesinato. Os parmetros da resistncia
tambm so estabelecidos, em parte, pelas instituies da
represso. Na medida em que tais instituies fazem, efe-
tivamente, seu trabalho, podem evitar qualquer forma de
resistncia que no seja individual, informal e clandesti-
na. Ento, perfeitamente legtimo at importante dis-
tinguir entre vrios nveis e formas de resistncia (formal/
informal; individual/coletiva; pblica/annima; que desa-
fiam o sistema de dominao/que objetivam ganhos mar-
ginais). Mas deve, simultaneamente, ficar claro que o ele-
mento a ser realmente medido o nvel de represso que
estrutura as opes que esto disponveis. Dependendo de
circunstncias que enfrentam, os camponeses devem os-
cilar de atividades eleitorais organizadas a confrontaes
violentas, a atos annimos e silenciosos de fazer corpo
mole e de roubar. Esta oscilao pode, em alguns casos,
ser explicada por mudanas na organizao social do cam-
pesinato. Mas isto no tudo! Tal oscilao pode ser mais
determinada pelas mudanas no nvel de represso. Algu-
mas vezes o campesinato tem reduzido brutalmente a ati-
vidade poltica aberta e radical em favor de atos de resis-
tncia micros e espordicos. Classificar somente os atos
abertos e radicais como resistncia, significa aceitar que a
estrutura de dominao defina para ns o que o que no
resistncia.
Muitas das formas de resistncia que temos examina-
do podem ser aes individuais, mas isto no significa
que elas no so coordenadas. Aqui, novamente, um con-
ceito de coordenao, derivado de cenrios formais e bu-
rocrticos, de pouca ajuda para compreender aes em
pequenas comunidades, as quais, historicamente, tm re-
des informais densas, profundas e sub-culturas ricas de
resistncia a demandas externas. Por exemplo, no exa-
gero afirmar que muito da cultura folk da pequena tra-
dio camponesa soma-se, precisamente, legitimao,
ou at celebrao, de formas sbias e evasivas de resis-
tncia que temos examinado. Nesta e em outras formas
(por exemplo, estrias de bandidos, heris camponeses e
mitos religiosos), a sub-cultura camponesa ajuda a subli-
nhar a dissimulao, a invaso de propriedade alheia, o
roubo, a sonegao de impostos, a fuga de recrutamento
e assim por diante. Enquanto a cultura folk no coorde-
nada no sentido formal, ela freqentemente alcana um
clima de opinio que, em sociedades mais instituciona-
lizadas, requereriam uma campanha de relaes pblicas.
O que merece destaque na sociedade camponesa a ex-
tenso em que uma longa srie de atividades complexas,
que abrange desde a troca de trabalho, a mudana de casa,
as preparaes de casamento e at as festas, coordenada
por redes de negociaes e prticas. O mesmo ocorre com
os boicotes, com as negociaes de salrios, com a recusa
de arrendatrios de competirem entre si e com a conspi-
rao do silncio que circunda os roubos. Nenhuma or-
ganizao formal criada porque nada se exige, e, assim
mesmo, uma forma de coordenao alcanada, alertan-
do-nos para o fato de o que est acontecendo no ape-
nas ao individual.
luz dessas consideraes, ento, retornaremos breve-
mente para a questo das intenes. Para muitas formas
de resistncia camponesa, temos toda razo de esperar que
os atores permanecero mudos sobre suas intenes. Sua
segurana deve depender do silncio e do anonimato; o
tipo de resistncia por si mesmo deve depender, para sua
efetividade, da aparncia da conformidade; suas intenes
devem estar, assim, incorporadas subcultura camponesa
e luta rotineira e normal para garantir a subsistncia e a
sobrevivncia da unidade familiar, de modo a mant-la
inarticulada
31
.
Em um certo sentido, obviamente, as intenes dos in-
divduos esto inscritas nos prprios atos. Um soldado
campons que, como outros, deserta do exrcito, est efe-
tivamente dizendo, atravs desse ato, que o propsito da
instituio, bem como seus riscos e o sofrimento que ela
impe, no prevalecem sobre as necessidades pessoais ou
familiares. Colocando em outros termos, o estado e seu
exrcito falharam seriamente em controlar este assunto es-
pecfico na prpria instituio, de modo a reter a subordi-
nao do soldado. Um trabalhador safrista que rouba ar-
roz de seu empregador est dizendo que sua necessidade
por arroz tem prioridade sobre os direitos de propriedade
formais de seu chefe.
Quando abordamos cenrios sociais nos quais os in-
teresses materiais das classes apropriadoras esto direta-
mente em conflito com os do campesinato (rendas, sa-
lrios, emprego, impostos, recrutamento e a diviso da
31
Os peixes no conversam sobre a gua!
Formas cotidianas da resistncia camponesa
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colheita) podemos, ao meu ver, inferir algo sobre as in-
tenes, a partir da natureza das prprias aes. Este
especificamente o caso, quando h um padro sistem-
tico de aes que mitigam ou negam uma reivindicao.
Evidncias sobre intenes so, sem dvida, sempre bem
vindas, mas no devemos esperar muito. Por esta razo,
a definio de resistncia dada anteriormente atribui n-
fase especial ao esforo de questionar as reivindicaes
materiais e simblicas das classes dominantes. O objeti-
vo, afinal, da grande expresso da resistncia campone-
sa no diretamente derrubar ou transformar o sistema
de dominao, mas, sobretudo, sobreviver hoje, esta se-
mana, esta estao dentro dele. O objetivo comum dos
camponeses, como Hobsbawn to habilmente definiu,
trabalhar o sistema no sentido das desvantagens mni-
mas (1973:12). Assim, so conseqncias possveis da
persistente tentativa dos camponeses de se apropriarem
de pequenas pores: o alvio, marginal, da explorao;
a ampliao dos limites da renegociao das taxas de
apropriao; a mudana do percurso do desenvolvimen-
to subseqente e, mais raramente, a contribuio para a
derrocada do sistema. H, inclusive a possibilidade de
que a ao dos camponeses resulte em efeitos contrrios
s suas intenes de sobrevivncia e de persistncia. A
luta por estas finalidades requer, dependendo das cir-
cunstncias, a micro-resistncia, como vimos, ou aes
mais dramticas de auto-defesa.
Em qualquer caso, muitos dos esforos dos campo-
neses sero vistos pelas classes apropriadoras como tru-
culncia, fraude, vagabundagem, furto ou arrogncia
em resumo, todas as etiquetas planejadas para denegrir
as muitas faces da resistncia. A definio das classes
apropriadoras pode, outras vezes, transformar algo que
diz respeito somente luta no reflexiva pela subsistn-
cia num ato de rebeldia.
Deve ficar claro que resistncia no simplesmente
qualquer coisa que os camponeses fazem para manter
a si prprios e as suas famlias. Muito do que eles fa-
zem compreendido como aquiescncia, embora com
averso. Sobreviver como trabalhadores ou produtores
de mercadorias em pequena escala pode impelir alguns
a salvarem sua prpria pele s custas das de seus cole-
gas. O trabalhador pobre e sem terra, que rouba arroz
de outro homem pobre ou que o sobretaxa pelo arren-
damento, est sobrevivendo, mas certamente no est
resistindo no sentido aqui definido. Uma das questes
chaves que devem ser colocadas sobre qualquer siste-
ma de dominao em que medida ele eficaz em re-
duzir a ao dos indivduos das classes subordinadas a
estratgias puramente auto-referentes, destinadas a ga-
rantir sua sobrevivncia. Certas combinaes de atomi-
zao, terror, represso e presso de necessidades ma-
teriais podem, de fato, alcanar o mais elevado sonho
de dominao: ter os dominados explorando-se uns aos
outros.
Ao entender como resistncia apenas essas estratgias
de sobrevivncia que negam ou mitigam reivindicaes
das classes de apropriao, deparamo-nos com uma vasta
srie de aes a considerar. Tal variedade oculta uma con-
tinuidade bsica, que reside na histria do esforo per-
sistente dos relativamente autnomos produtores de mer-
cadorias de pequena escala, no sentido de defender seus
interesses fsicos e materiais e de reproduzirem a si pr-
prios. Em diferentes tempos e lugares, eles tm se defen-
dido contra a corvia, as taxas, o recrutamento do esta-
do agrrio tradicional, o estado colonial, as agresses do
moderno estado capitalista (por exemplo, rendas, juros,
proletarizao, mecanizao) e, deve ser adicionado, con-
tra muitos estados pretensamente socialistas. A revolu-
o socialista, quando ocorre, pode eliminar muitos dos
piores males do regime antigo, mas, raramente, ou at
nunca, foi o fim da resistncia camponesa. As elites ra-
dicais que capturaram o Estado tero em mira objetivos
diferentes daqueles dos camponeses que os apoiaram an-
teriormente. Enquanto o campesinato apega-se a sua
pequena parcela, elas podem vislumbrar uma agricultu-
ra coletivizada. Enquanto o campesinato devotado
autonomia local, elas podem querer uma estrutura pol-
tica centralizada. Finalmente, eles podem querer taxar o
campo de modo a industrializ-lo e certamente deseja-
ro reforar o estado versus a sociedade civil. Conseqen-
temente, torna-se possvel para um observador astuto
como Goran Hyden (1980), encontrar paralelos notveis
entre a resistncia inicial do campesinato da Tanznia ao
colonialismo e ao capitalismo e sua resistncia corrente
s instituies e polticas do atual estado socialista da
Tanznia (Hyden, 1980). Esse autor fornece uma pun-
gente narrativa de como o modo de produo campo-
ns atravs de estratgias como fazer corpo mole,
privatizar o trabalho e a terra que foi apropriada pelo es-
tado, atravs da evaso, fuga e da captura de programas
governamentais para seus prprios propsitos tem obs-
trudo os planos do estado. De modo semelhante no Vi-
etn, aps a revoluo ter sido consumada no sul, assim
como no norte, formas cotidianas de resistncia campo-
nesa continuaram. A expanso clandestina de lotes pri-
James C. Scott
Razes, Campina Grande, vol. 21, n 01, p. 10-31, jan./jun. 2002
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vados, a retirada de trabalho das empresas estatais para
a produo familiar, a falncia da entrega da produo
de gros e dos rebanhos ao estado, a apropriao dos
crditos e recursos estatais pelas famlias e turmas de tra-
balho e o crescimento constante do mercado negro ates-
tam a tenacidade da produo de mercadorias de peque-
na escala sob as formas do estado socialista. As formas
de resistncia obstinadas, persistentes e irredutveis que
temos examinado devem, ento, representar as armas ver-
dadeiramente durveis dos fracos antes e depois da re-
voluo.
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