Neuroses Eclesiasticas PDF

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NEUROSES ECLESISTICAS

e o Evangelho para Crentes


uma anlise preliminar
Karl Kepler

capa: Wilson Tonioli

Agradeo s vrias pessoas que contriburam para este esforo de auto-exame, em especial Vera, e tambm ao casal Leandro e Vanessa pelo incentivo, Thais pela diagramao, e Solange e ao Rev. Ricardo pelas dedicadas revises.

NDICE
I As Ms Notcias Uma Anlise Preliminar
O Mal-Estar da Igreja Loucura? Frustrao? Desconfiana? Pasteurizao? Investigao 1. O Clima dentro das Igrejas 2. O Clima das Pregaes 3. O Clima do Louvor e Adorao 4. O Clima no Corao dos Cristos 5. A qualidade de nossa membresia - a roda viva Diagnstico Tentativo Outras Possibilidades Medo Afastamento Involuntrio da Verdade

II As Notcias Boas o Evangelho para Crentes


Este livro tem a esperana de ajudar-nos a lidar com nossas insatisfaes com nossas igrejas. Trata-se de um primeiro exame, uma anlise preliminar: no pretende ser um estudo completo, nem abranger a situao de toda a rica variedade de denominaes existentes no Cristianismo. O que esperamos examinar alguns pontos que podem ser causa de sofrimento para muitos irmos e irms de f. Uma vez identificados os potenciais problemas as tais neuroses , procuraremos nas Escrituras, luz do evangelho de Jesus Cristo, padres que nos ajudem a encontrar caminhos mais saudveis, seja como igreja, seja como indivduos. Como ensinou nosso Senhor, o mdico vem para os doentes, no para os sos; por isso, comeamos primeiro com as ms notcias: a difcil tarefa de olharmos para nossos problemas (nossas doenas), para depois olharmos para a visita e o tratamento a receber do mdico dos mdicos.


1. O Cumpridor de Promessas 1.1 Vinde a Mim 1.2 A Paz nas Aflies 2. Auto-Imagem 3. Pecado e Santificao 4. F e No-Vista 5. Nossa Imagem de Deus 6. O Lugar dos Sofrimentos 7. A Mudana de Aliana 8. A Liberdade 9. A Ceia

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I - As Ms Notcias Uma Anlise Preliminar


A hora agora de recebermos notcias ms, e nunca agradvel falar de coisas ruins. Mas vamos acreditar no que o Senhor Jesus disse: a verdade vos libertar - mesmo se essa verdade no for to bonita quanto gostaramos que fosse. Como compensao, na hora das boas notcias, novamente ser a verdade quem vai nos ajudar. Antes, porm, de falar dos nossos problemas, quero aqui reconhecer e testemunhar que a Igreja faz muito bem para muita gente. Ao longo de 2.000 anos de Cristianismo, so muitas as pessoas que encontraram na igreja o caminho do evangelho de Jesus Cristo, endireitaram suas vidas, recuperaram-se socialmente, emocionalmente, e passaram a viver muito melhor o restante de suas vidas nesta terra, sem falar na vida eterna nos cus. Isso no pode e nem pretende ser negado aqui. O convite deste livro para observarmos a verdade de que, alm de ter feito bem a muita gente, essa mesma igreja tambm tem feito muitas pessoas sofrerem - inclusive ns mesmos, s vezes. No dizer do apstolo Paulo, se ns julgssemos a ns mesmos, no seramos julgados (I Co 11.31). Esta a inteno deste livro: um auto-julgamento, na esperana de, com a ajuda de Deus nesse auto-exame, virmos a ser mais aperfeioados, cristos melhores e mais saudveis.

- ou neuroses eclesiognicas - adoecimentos, especialmente emocionais, que so tpicos de quem participa da vida de uma igreja, e ali aprendeu a se relacionar com Deus. Neuroses so definidas como um adoecimento de origem psicolgica, em que os sintomas (o comportamento que se v) so a expresso simblica de um conflito psquico. No tenho a pretenso de fazer uma anlise completa e abrangente de todos os quadros e tipos - nossas igrejas diferem muito entre si e minha capacidade bastante limitada. Mas h sinais de doena emocional mais evidentes e que trazem sofrimento a muitos - vamos tentar nos focar nestes. No se pode considerar uma igreja boa quando seus membros no se sentem bem. Muitas vezes os membros das igrejas parecem presos a uma estrutura circular, repetitiva, em que s podem receber a graa de Deus os que esto muito mal, muito necessitados ou infantilizados (como, por exemplo, os que fazem fila para receber a uno ao final dos cultos dos irmos neopentecostais, ou os que pedem orao publicamente nos cultos dos irmo tradicionais). Enquanto isso, a igreja incentiva testemunhos de vitria, exemplos de seriedade e compromisso, grandes conquistas, coisa que crentes infantes se sentem incapazes de oferecer. As igrejas podem at estar cheias, mas o que aconteceria se, apenas como exemplo, desligssemos os microfones e os instrumentos musicais? Os crentes provavelmente acordariam para sua realidade, se perceberiam mais distantes uns dos outros, sem muita coisa para assistir, mais abandonados e carentes do que realmente lhes faria bem - contato real, humano, amoroso e edificante - e provavelmente muitos se afastariam das reunies. Mas essas constataes de um mal-estar na igreja precisam de mais fundamento. Que sinais enxergamos do mal-estar entre os crentes? Loucura? Um sinal bastante intrigante encontrado nos sanatrios, hospitais psiquitricos para doentes mentais em estado grave. Embora atualmente muito combatidos (por boas razes, diga-se), os sanatrios tambm esto cheios, e com muitos irmos evanglicos entre os pacientes. Isso poderia apontar duas coisas: ou a igreja estaria enlouquecendo as pessoas que a procuram, ou talvez a igreja seria procurada por pessoas que esto enlouquecendo e no consegue
 conforme Laplache/Pontalis, Vocabulrio da Psicanlise, So Paulo, Martins Fontes Editora, 1983.

A m notcia que no estamos to bem assim. Embora muitos lderes de grandes congregaes e ministrios pensem de modo diferente, as constataes de muitos gabinetes pastorais e de tambm de consultrios psicolgicos se juntam s daqueles que sentem que a igreja no est bem. E no est bem porque os crentes no esto bem. No meio de uma sociedade que vai adoecendo seus relacionamentos, a Igreja no tem se sado muito melhor. Buscamos aqui as neuroses de igreja

O MAL-ESTAR DA IGREJA

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recuperar sua sade mental. claro que isso no to simples assim - em muitos casos a igreja alivia o sofrimento psicolgico dos que a procuram. Para nosso propsito, por enquanto, tomemos os sanatrios cheios de evanglicos apenas como um sinal de que algum problema deve haver; mas ainda no suficiente para concluirmos nada. Frustrao? Um segundo sinal: o mundo est cheio de ex-crentes. J nos anos 80, segundo o Jornal Batista, o nmero de ex-batistas no Brasil era praticamente igual ao nmero de batistas na ativa. Muito provavelmente isso tambm se aplica s demais denominaes evanglicas tradicionais. Com o fenmeno das igrejas neopentecostais, uma nova safra de crentes evanglicos inundou o Brasil e, medida que os anos passam e as promessas de prosperidade no se cumprem, uma nova safra de ex-crentes decepcionados deve estar voltando para as ruas, enquanto outros crentes comeam uma peregrinao de igreja em igreja, intuindo que h alguma verdade salvadora nesse meio, mas no se sentindo seguros de a ter localizado. Essa massa de irmos freqenta as igrejas da moda, que so duramente criticadas pelas igrejas mais estabelecidas, que no admitem sua parte de culpa nessa decepo coletiva. Esse j um sinal mais direto. No esperamos que a igreja satisfaa a todos que a procuram. Mas decepcionar a tantas pessoas, dentre a pequena parcela da populao que se decide a entrar nela, sem dvida mais um indicador de que h problemas srios que no esto sendo tratados, uns nas igrejas tradicionais, outros nas pentecostais. Desconfiana? Um terceiro sinal: o receio em relao cincia, especialmente as cincias humanas, tais como a Psicologia e a Sociologia. O grande desenvolvimento da cincia moderna teve em seu princpio muita participao de cristos. Eram pessoas que se dedicavam maravilhosa descoberta das coisas, dos seres, do universo, em suma, a contemplar as fantsticas obras de Deus. Com o tempo, o espao dado a Deus foi encolhendo, e hoje a cincia tem fama de ser quase uma inimiga de Deus. As cincias humanas investigam nossas motivaes mais profundas, os de

sejos diversos da alma humana, denunciando muitas incoerncias que encontram, e a f em Deus parece ser desafiada em todas as universidades (pelo menos o que sentem muitos lderes cristos). Felizmente, essa resistncia tem diminudo, mas ainda persiste em grande parte do meio evanglico. E por que o crente tem medo de consultar um psiclogo? Primeiramente, talvez, porque difcil para todo mundo admitir que temos problemas, e mais ainda quando aprendemos (e ensinamos) a cantar que Jesus a soluo de todos os nossos problemas. Alm disso, temos medo de que o psiclogo v nos encorajar a abandonar nossa f, a abandonar nosso casamento, ou a prpria igreja, etc. Provavelmente, mesmo sem isso estar claro para ns, temos receio da psicologia - e da universidade em geral - porque talvez ela poderia desmascarar nossos cnticos, questionar nossas certezas, e denunciar nossa moral que to custosamente pregamos aos jovens e adolescentes. Se estivssemos mais seguros de que aquilo que cremos e pregamos sem sombra de dvida a verdade, no deveramos ter tanta desconfiana, no mesmo? Na verdade, nossa dificuldade no apenas com a psicologia, ou com as cincias humanas, ou mesmo com a cincia em geral. Temos grande dificuldade em lidar com crticas. E isso s revela nossa absoluta falta de hbito de nos criticar, de praticar a auto-crtica. I Corntios 11:31 diz: se nos julgssemos a ns mesmos, no seramos julgados. Quantas vezes voc j ouviu um sermo ou aula sobre esse texto? A crtica envolve a difcil tarefa de reconhecer erros, ouvir reclamaes, parar nosso ritmo frentico de atividades e falas e se dispor a escutar, a refletir, a examinar, a criticar. A prtica da crtica implica em aceitar, sempre, um certo montante de fracasso. E isso parece que no condiz com a postura de quem tem o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores a seu lado. Pasteurizao? Mas ainda h um quarto sinal de que as coisas no vo to bem assim conosco: a qualidade de vida que levamos. Qualidade, no em termos econmicos ou de conforto material, mas de qualidade viva mesmo. Nossa vida evanglica, no dia-a-dia, poderia ser chamada de pasteurizada (dos leites em saquinho), ou ento UHT: como aqueles leites de caixinha, nossa vida sofreu um choque trmico altssimo, e ficou estril, infecunda, sem muito brilho nem

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muita cor. As pessoas de fora da igreja consideram o crente como aquele que no faz isso, no participa daquilo, no prova aquiloutro, ou seja, uma identidade negativa. O crente visto como um timo funcionrio, bom trabalhador, mas pssimo para se conviver, sem disposio de se sociabilizar. Na poltica, no queremos envolvimento (e muitos que o fazem so um pssimo exemplo, buscando apenas vantagens para si prprio). Das questes sociais, movimentos e reivindicaes, queremos distncia. Parece que temos medo do engajamento. A bem da verdade, esses fenmenos no so privilgio da igreja, mas acontecem em escala ainda maior e igualmente doentia na cultura secular, em nossa sociedade ps-moderna, que, como ensina o Dr. James Houston, descobriu que estvamos sendo enganados por nossos heris e nos jogou num caldeiro indiferenciado, onde tudo e nada tm praticamente o mesmo valor. Aqui, porm, tal qual no Apocalipse, vamos comear o julgamento pelo povo de Deus. Uma rea que pode exemplificar isso: a msica. No meu trabalho tenho contatos com estdios de gravao profissionais, msicos e tcnicos de som; no so muitos, mas so muito bons no que fazem. Perguntei a esses amigos msicos seculares o que eles achavam das nossas bandas Gospel. Eles, com muito jeito para no me constranger (sabiam que eu era evanglico), responderam que os msicos tocam muito bem, tm boa tcnica, mas que a msica parece sem alma. Certinha, tecnicamente perfeita, mas sem alma. Acho que um bom retrato das nossas vidas: procuramos fazer tudo certo, da melhor maneira possvel; mas, por alguma razo, no tem muito sabor, no tem muita vida. (E ns pregamos e cantamos que Jesus veio para que tenhamos vida, e vida em abundncia...). Talvez por isso sejamos acusados de hipcritas, de no-autnticos. Mas isso tambm no verdadeiro: olhamos para dentro de ns mesmos e sabemos que no estamos querendo enganar ningum. No nossa inteno fazer de conta que somos espirituais. Corremos para Deus em orao, pedimos-lhe para sondar nosso corao, e sabemos que oramos com sinceridade. Mas nossa vida continua da mesma forma. Estamos preocupados, queremos acertar em tudo, pedimos a direo e ajuda de Deus, prestamos ateno nos sermes ou profecias, freqentamos a igreja, mas nossa vida segue pasteurizada, meio viva, meio morta. A igreja no muda isso,

e parece que ela at refora essa pasteurizao. H algo errado, e isso merece uma investigao. INVESTIGAO Quando h algo errado em nossa casa, vamos procurar encontrar o problema, at resolv-lo. O convite, agora, para aprofundarmos as ms notcias. Vamos entrar na igreja para tentar descobrir o que est havendo, tentar identificar por qu uma comunidade que deveria estar gerando vida abundante est produzindo semizumbis, pouco vivos. Por que uma instituio que poderia ser teraputica est ajudando a adoecer, e por que tantas pessoas que dela se aproximam saem frustradas aps algum tempo? 1. O clima dentro das igrejas O que uma ida aos templos e cultos das igrejas nos faz sentir? O que a Igreja, por si s - independentemente das pregaes e canes - nos leva a lembrar, a pensar, a fazer? Arrisco algumas impresses: o ambiente da igreja (incluindo as pessoas que l esto, durante algumas horas na semana) nos lembra da existncia de Deus, como Algum maior que ns, acima de ns, supremo, inquestionvel. Estar na igreja nos lembra, ainda, da existncia da eternidade, especialmente do Cu, mas tambm (principalmente para crianas) do inferno. Essas duas impresses, experimentadas dominicalmente, contribuem para um certo sentimento de pequenez a nosso respeito, como diz o Pregador de Eclesiastes: Deus est l em cima e tu aqui em baixo. Isso tem sua verdade: Deus de fato o Altssimo, Todo-Poderoso; mas desde Jesus revela-se como Emanuel, Deus conosco. Como contraponto ao distanciamento, l dentro do prdio que convencionamos chamar de igreja desfrutamos de alguma convivncia humana; temos amigos, s vezes temos rivais, h espao para jovens conhecerem pessoas do sexo oposto. A participao em grupos menores fortalece as amizades, e mesmo os ensaios de corais ou bandas incrementam esses relacionamentos. Isso tudo muito bom, e acontece aqui embaixo, c entre ns, dentro da casa de Deus. Essa vida mais social nos torna afetivamente supridos, o que refora a separao que muitas vezes pregada, entre os crentes e o mundo. Imaginamos que Deus l do alto nos abenoa e protege, e ao mesmo tempo condena o mundo l fora.


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E enquanto Deus sentido l no alto, aqui em baixo existe uma categoria de servos especiais dEle, que de certa forma O representam: so os pastores e pastoras e, no caso dos irmos pentecostais, tambm os profetas e profetisas. a eles que buscamos quando precisamos ouvir alguma orientao da parte de Deus, quando queremos ouvir a palavra de Deus. E, mesmo quando no procuramos, so eles que trazem a mensagem de Deus para ns, nas pregaes dominicais (e nas eventuais profecias a ns dirigidas). No d para negar: mesmo que ns protestantes afirmemos a correta doutrina do sacerdcio universal dos crentes, no ambiente da Igreja praticamos uma separao entre ministros (pastores, ancios, presbteros, qualquer que seja o nome) e os irmos e irms em geral, muito parecida com a diferenciao entre clero e leigos na igreja catlica. Essa hierarquia amplia, no cristo comum, aquele sentimento de pequenez, de incapacidade prpria. Conseqentemente, o mapa de atividade na igreja se parece muito com um estdio de futebol: muitos sentados assistindo e alguns poucos heris correndo feito loucos, providenciando a ao. Como a igreja no um clube de futebol, e como so esses poucos ativos os que fazem uso da palavra, muito freqente que eles confundam viver para Deus com assumir alguma responsabilidade nesta igreja (afinal, eles esto sentindo o desgaste na prpria pele). Isso nos leva prxima rea de investigao: 2. O Clima das Pregaes Tradicionalmente, temos dois tipos de pregao em nossas igrejas: os sermes para os de fora, chamados de sermes evangelsticos, e o sermes para os de dentro, para os crentes, os sermes doutrinrios. As diferenas entre esses dois tipos so grandes, e bastante reveladoras. Nas mensagens evangelsticas a tnica : Deus te ama, e te aceita; venha para Jesus assim como est, e Ele perdoar os teus pecados; saia dessa vida e junte-se a ns. Antigamente quase todas as igrejas tinham cultos no domingo pela manh (dirigido aos crentes) e novamente noite (dirigido aos visitantes, evangelstico). Hoje apenas alguns grupos mantm essa prtica. Mas o que pregado aos crentes, para os que j aceitaram a mensagem evangelstica, decidiram crer em Jesus e se integraram igreja? Nas ltimas duas dcadas tenho visitado muitas igrejas diferentes no Brasil,


tanto tradicionais quanto pentecostais, alm de algumas catlicas. impressionante a semelhana do tom das mensagens. Quando falam aos crentes (que a grande maioria dos casos), os pregadores sempre esto cobrando alguma coisa, sempre mostrando a necessidade de algum aperfeioamento. verdade que entre os irmos neopentecostais as pregaes tm algumas caractersticas prprias, criando um clima parecido com o do xodo, em que Israel saiu do Egito e est a caminho de tomar posse da Terra Prometida. Mas o efeito sobre a audincia, apesar das grandes diferenas externas, internamente semelhante: os irmos neopentecostais so compelidos a virem frente receber uma uno do pastor/pregador para que sua vida melhore (at o domingo seguinte, quando o procedimento ser repetido); j os pentecostais e tradicionais saem do culto compenetrados com alguma virtude que ainda lhes falta. Voltando figura do estdio de futebol: os pastores sabem que esse jogo no apenas para os 22 em campo e no se conformam com a falta de participao da audincia. Essa frustrao com a igreja transparece em muitas pregaes. As frases mais ouvidas so de necessidade de compromisso, de seriedade, de obedincia (s vezes em troca de proteo ou bno). O sentimento transmitido que Deus l do alto est insatisfeito com voc; voc precisa se dedicar mais, ou ler mais a Bblia, ou orar mais; ou evangelizar mais; ou jejuar, ou combater mais o pecado; etc., etc. At coisas prazerosas foram transformadas em dever. Amar aos irmos, ter comunho com Deus, ajudar a diminuir sofrimentos dos outros, tudo lido e ouvido sob a tica do dever, do mandamento a ser obedecido. Recentemente examinei a revista de Escola Dominical de uma grande denominao evanglica. Fiquei impressionado como tudo o que estava escrito no trecho bblico estudado (alm de muita coisa que nem estava no texto) era transmitido como se fosse o 11o. e o 12o.mandamentos. Provavelmente aqui estamos em contato com uma importante fonte de nossos problemas. Quem atendeu ao apelo que dizia Vinde a mim, vs que estais cansados e sobrecarregados, e achareis descanso para vossas almas, agora s ouve mensagens (pregadas em nome do mesmo Deus) que exigem mais empenho, mais engajamento, mais esforo... Cad o descanso prometido? No meio de tantas cobranas, ainda somos levados a cantar Satisfao ter

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a Cristo, no h maior prazer j visto (ou verses mais modernas da mesma mensagem). E ainda insistem para cantarmos com entusiasmo! Isso no pode ser saudvel... Aproveitemos e examinemos um pouco tambm dessa rea das nossas igrejas: 3. O Clima do Louvor e Adorao Tambm aqui encontraremos, dito de forma simplificada, pelo menos dois formatos diferenciados (vejam novamente nossa capacidade de nos dividirmos): o formato tradicional e o avivado ou pentecostal. E tentando ficar no meio do caminho, algumas igrejas modernas, mais tradicionais na teologia, porm informais no culto. No formato tradicional, o louvor em nossos cultos utilizado para a transmisso de mensagens. a forma musicada de expressarmos as mesmas coisas que so pregadas, uma espcie de continuao (ou complemento) da pregao falada. Os que tocam e cantam sentem que esto fazendo a obra do Senhor, e se dedicam - s vezes dramaticamente - a faz-lo. O canto congregacional tambm um complemento da mensagem pregada, com os hinos escolhidos do hinrio daquela denominao, de forma a trazer mensagem coerente com o que estiver sendo dito no culto. E todas partes musicadas so previamente programadas, com raras excees. Para os mais jovens, cnticos mais recentes com letra projetada em tela e instrumentos eletrnicos; para a gerao dos pais e avs, hinos acompanhados ao piano ou rgo. Com o passar dos anos, o entusiasmo pelos cnticos diminui, possivelmente pela mesmice. No formato avivado, mais comum no meio pentecostal, existe um momento de louvor de longa durao (geralmente uma hora inteira). Ele tem uma finalidade diferente: servir de desafogo das tenses; a palavra de ordem celebrao. O canto e o acompanhamento musical so geralmente ensaiados e performados por um grupo grande, que, escorado na amplificao do som, faz com que a msica e as canes encham o ambiente, enlevando o pblico presente (ao mesmo tempo em que afasta e irrita os vizinhos...). Assim o povo, sempre em p, levado a sentir emoes atravs da msica, praticamente da mesma forma que as grandes bandas de rock secular procedem em seus shows. Na igreja, porm, so inspirados sentimentos de pertencer a Deus e a Sua famlia, sentimentos de alegria e participao na glria vitoriosa de

Deus. O altssimo volume da msica, aliado aos comentrios incentivadores dos ministrantes, dirige esse sentimento coletivo. E a insensibilidade para com os vizinhos fica escancarada, no mximo disfarada de querer encher a cidade com nossas verdades, mas na prtica est claro que no nos interessamos por eles como pessoas. Nesses cultos, o louvor (freqentemente confundido com adorao) tem um sentido prprio, uma unidade fechada em si mesma, independente tambm da pregao que o suceder. como se Deus fosse transmitir duas mensagens por culto (e ainda uma terceira, em caso de haver testemunhos pessoais), sem falar da hora da contribuio financeira. Mas um trao comum em todos os lugares que praticam esse estilo de louvor: h pouco ou nenhum lugar para contrio e tristeza. A impresso, praticamente se contrapondo s mensagens pregadas, que Deus sempre espera que estejamos alegres, domingo aps domingo. Essa injeo de nimo ajuda e abenoa a muitos crentes que por ela esperam. Mas com o tempo, como com qualquer remdio ou droga de uso muito repetido, muitas pessoas vo percebendo que seus estados de esprito reais no so bem-vindos. E a decepo piora as coisas porque, ao perceber essa menor mobilizao da platia, o dirigente do louvor lanar mo de recursos tais como: levante-se, abrace seu irmo ao lado e diga: Deus te ama. Naturalmente o dirigente tem a melhor das intenes, mas ele est manipulando a congregao, e se deixando guiar pelos seus prprios sentimentos e limitaes (no caso deste exemplo, provavelmente ser a sua necessidade pessoal de ver seu trabalho fazendo todo mundo feliz e se abraando). Como conseqncia, encorajada uma artificialidade dos relacionamentos, e o aspecto exterior (comportamento) substitui o interior (corao). Por mais que cantemos e repitamos a frase bblica, no estaremos adorando em esprito e em verdade. Freqentando um ambiente assim enquanto vivem sua vida cotidiana, como estar o ntimo dos cristos? 4. O Clima no Corao do Cristos Convido voc, leitor e leitora, a olhar para dentro de si mesmo, at para ver se minha observao coincide com a sua:


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Imagine Deus olhando para voc agora (experimente fechar os olhos por um instante) Qual seria a expresso do rosto dEle? Ao olhar para voc, Deus parece feliz, srio ou triste? Como na verdade no vemos a face de Deus, podemos dizer que nossa imaginao uma boa medida de projeo da nossa imagem de Deus. Ou do nosso Deus, por assim dizer, que fomos criando e internalizando conforme vivemos no ambiente da igreja e da famlia. Outra pergunta que pode nos ajudar: qual a sua principal preocupao perante Deus? Ao estar consciente da presena de Deus, do que voc lembra? Que tipo de orao voc faz mais freqentemente? Todas essas perguntas geralmente mostram que estamos preocupados em no errar. E que, tal qual nas pregaes dominicais, Deus parece sempre insatisfeito, esperando alguma melhoria de nossa parte. Em algumas denominaes, esse cuidado em no errar adquire tons mais dramticos porque, atrs da esquina, ainda nos espreita o terror da perda da salvao. Os cristos temos medo de errar, de tomar decises erradas. Nos dedicamos a combater o pecado. Por isso, naturalmente, temos receio de nos envolver com iniciativas de outros grupos, especialmente se forem de fora da igreja. Nossa maior preocupao, nossa maior busca, por saber a vontade de Deus. A supremacia em nosso corao do DEVER: o que que eu devo fazer? O que certo? Perguntas como crente pode isso? ou pecado tal coisa? revelam o mesmo sentimento, e a nossa preocupao mais ntima: temos medo de errar. Por isso, a no ser que tenhamos certeza de que aquilo a vontade de Deus, melhor no fazer. Certo? 5. A qualidade de nossa membresia - a roda viva Ao mesmo tempo em que estamos preocupados com no errar, essa pergunta de o que que eu devo fazer encontra resposta rpida na igreja. Parece que, na falta de bons relacionamentos, que dem prazer simplesmente por estarmos juntos, nos dedicamos a criar vrias atividades na igreja, que nos


mantenham sempre ocupados e produtivos. Assumir cargos na estrutura da igreja uma velha forma das igrejas tradicionais engajarem algum. J as igreja pentecostais multiplicaram o nmero de cultos, seja no templo, seja nos lares, tambm como forma de manter participantes um maior nmero de pessoas. Na igreja tradicional precisamos de pessoas para cantar nos corais, para distribuir folhetos de casa em casa, para dirigir ou auxiliar em diversos departamentos, com atividades no sbado e em todo o domingo. Nas comunidades pentecostais, as pessoas precisam comparecer aos cultos quase todos os dias da semana, com destaque para a participao na equipe de louvor. Ambas as igrejas formaram uma espcie de grade de programao que precisa ser preenchida (e acompanhada) pelos membros. uma espcie de roda-viva, como aqueles moinhos dos tempos antigos, empurrados por animais ou por escravos, em que a pessoa era acorrentada a seu tronco para empurrar sem cessar, e sem poder sair. Geralmente a gente s percebe a loucura desse ativismo quando o v de fora. Para quem est nos papis centrais, como os pastores, s d para pensar na prxima necessidade a ser preenchida (precisa algum para trazer a palavra, algum para dirigir os cnticos, algum para dirigir a orao, algum para dar os avisos, etc, etc, etc,) Para pessoas que vivem solitrias ou no tm bom relacionamento familiar, a igreja com tantas reunies acaba at ajudando a suprir a carncia de relacionamentos. Mas para aqueles que tm vida em famlia, a igreja acaba prejudicando a qualidade de relacionamentos, por praticamente no permitir que faam programas entre si (nos sbados, jovens e adolescentes tm atividades; nos domingos, a obrigao todos estarem na igreja - e novamente divididos por faixa etria). Quando que pais e filhos podem passear, ter lazer em conjunto? Durante a semana, quando todos tm escola e trabalho? Toda essa participao em cultos e atividades ensinada como sendo para Deus. Dedicar seu tempo para Deus (na verdade, para a igreja), ento, acaba sendo entendido como retirar tempo de convvio com seus familiares, e utilizlo para as atividades da grade de programao da igreja. claro que alguma dedicao positiva, e faz bem para ns prprios tambm; mas com esse nvel de ativismo de nossas igrejas no de admirar que pouco ouvimos falar de versos

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da Bblia tais como I Timteo 5.8: Se algum no cuida dos seus, e especialmente dos da sua famlia, tem negado a f, e pior que um incrdulo. Muitas vezes, na nsia por obedecer e por fazer a vontade de Deus, temos praticado o mesmo pecado que Jesus condenou nos fariseus: em vez de cuidar dos nossos familiares, dedicamos a Deus nosso tempo e dinheiro (na verdade, dedicamos igreja), e descuidamos da famlia. A comear por ns pastores...

trado em relao a Deus o medo. Isso precisa ser trazido tona e tratado, seno acabar anulando e desqualificando qualquer obedincia, a exemplo da igreja de feso nas cartas do Apocalipse: ela tinha muitas obras, muita perseverana e firmeza, mas perdeu o elemento vital, que o amor a Jesus. A descrio do clima em nosso corao , na melhor das hipteses, muito semelhante ao corao de filhos de pais muito severos. Mais provavelmente, como os escravos se sentiam diante de seus senhores: com muito medo de desagrad-los, porque corriam risco de vida. Na verdade, nosso medo de pecar. s vezes ele aumentado por frases do tipo e se o Senhor Jesus voltar bem nessa hora?. Mesmo quando no h esse componente de castigo eterno, temos medo de estar fora da vontade de Deus: a mo dele vai pesar, vamos perder a bno, etc. Nosso Deus nos inspira medo. Temor. A imagem que temos de Deus muito sria, atemorizante. Portanto, nosso medo que causa nossas neuroses de Deus. Quando eu tinha cerca de 14 anos, numa reunio da unio de adolescentes atendi a um apelo para dedicar minha vida ao servio do Senhor (isso queria dizer ser pastor ou missionrio, os nicos ideais imaginveis de dedicao de tempo integral a Deus naquela poca). Trs anos depois, com a concluso do ensino mdio, chegou a hora de decidir que curso fazer. Eu, por conta desse chamado, j pensava em cursar o seminrio. Mas outras pessoas, especialmente professores do colgio, me encorajavam a tentar uma profisso secular. Fui me aconselhar com um pastor amigo, que sabiamente falou que, se fosse de Deus, esse chamado iria permanecer. Mas na igreja ouvi vrias vozes no to sbias, inclusive de outro pastor, que diziam algo como: se Deus te chamou para o ministrio, voc no ser feliz em nenhum outro lugar; nada mais vai dar certo at que voc esteja no ministrio. Que Deus exigente, no? Voc provavelmente conhece esse medo de tomar decises erradas. Essa busca por saber a vontade de Deus, o que eu devo fazer, um processo de muita orao, talvez pedindo sinais, talvez pedindo conselhos de pastores ou buscando palavra com profetas, tudo movido pelo medo de errar, que nosso


DIAGNSTICO TENTATIVO
Depois de termos investigado essas cinco reas, e especialmente o nosso corao, acredito que podemos tentar um diagnstico da principal causa de nossos problemas, possivelmente tambm a causa da crise da igreja. Dito pura e simplesmente, o mal de que ns cristos sofremos o medo. Ou ento, para utilizarmos as palavras de Joo: o sentimento de que sobre ns permanece a ira de Deus. H vrias outras opinies sobre qual seria a necessidade ou a situao da igreja brasileira, e muitas delas so pertinentes. Uma corrente crescente em nosso meio cr que o problema da igreja a excessiva facilidade oferecida no cristianismo atual, o foco em bnos materiais e outras vantagens e conquistas para esta vida, no havendo mais nenhum resqucio do necessrio temor de Deus. Eu no discordo desses irmos, e tambm penso que muito do que se prega por a no o evangelho, mas apenas marketing de coisas agradveis, para servir ao prprio ventre e no cruz de Cristo. Neste trabalho aqui, porm, estamos procurando outra perspectiva para nossa anlise: buscamos o caminho do corao, buscamos entender as motivaes que nos levam a fazer, falar, ou a no fazer nem falar. Mais importante do que a obedincia discernir a razo da obedincia, ou melhor ainda, o sentimento que nos leva a viver e agir dessa ou daquela forma. Assim, textos como: Deus ama ao que d com alegria, graas a Deus que obedecestes de corao forma de doutrina a que fostes entregues e outros semelhantes so nosso norte neste diagnstico tentativo. E nesse diagnstico o sentimento que mais temos encon-

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medo da ira de Deus. Veja o paradoxo: nessa situao, quanto mais Bblia e orao e pregaes buscarmos, provavelmente ficaremos piores, mais neurotizados do que antes; o medo s crescer, pois no estamos em paz. Na prtica, no conseguimos assumir ns mesmos a responsabilidade de tomar decises - queremos empurrar para Deus essa responsabilidade (mas desconfio que, como qualquer pai interessado no crescimento de seus filhos, Ele gostaria que aprendssemos a tomar decises por ns mesmos, utilizando a formao que Dele j recebemos at esse momento). Muitas vezes, na Sua misericrdia e percebendo que ns empacamos horrorizados, Ele at manda um sinal, uma resposta mais objetiva, e assume o que seria a nossa parte. Mas outras vezes nossa ansiedade nos impede de ouvir Sua voz suave, e seguimos ao primeiro servo que falar mais autoritariamente (e via de regra nos damos mal...). Esse medo de errar explica nosso no-engajamento em questes mais complicadas, como as lutas sociais, polticas ou econmicas, e tambm explica o no nos darmos maior liberdade artstica, humorstica e criativa. impossvel no cometer erros ao lidar com essas coisas. J a preservao do meio-ambiente, por exemplo, um pouco menos arriscada, por isso aos poucos a igreja vai conseguindo se envolver um pouquinho mais com ecologia. Na dcada de 80, quando a Nicargua era governada pelos sandinistas e os Estados Unidos apoiavam ataques de mercenrios (os Contras) para tentar desestabilizar aquele governo esquerdista, um pastor batista nicaragense me contou que a grande dvida dos jovens crentes era se eles deveriam ou no pegar em armas para combater os Contras, e assim defender o seu pas e as suas conquistas polticas. Ele queria vir ao Brasil estudar tica em nossos seminrios, para poder auxiliar o seu povo. Infelizmente tive de lhe dizer que nas classes de tica por aqui, ao menos naquela poca, no seria tratado nenhum assunto parecido com o que ele procurava. No mximo tratariam de questes individuais, como aborto ou sexualidade, dentro da tica do porque certo isso e errado aquilo. Comportamo-nos como crianas com medo de se arriscar: melhor no se envolver com essas coisas... O paralelo com crianas temerosas pode nos ser til aqui. A figura de Pai
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para Deus uma das mais utilizadas, especialmente pela Sua revelao mais perfeita, Jesus Cristo. Quem visita orfanatos sabe como se comportam crianas que sentem falta de me e pai. Os pequeninos se agarram aos adultos que chegam, procurando ser o mais amveis possvel e obter o mximo de carinho (ou coisas) que puderem. Esto realmente carentes. Quando alguma dessas crianas vai para adoo, o juizado costuma pedir um acompanhamento, com relatrios peridicos. interessante que um dos sinais que podemos observar para saber se o filho/a adotado est se sentindo amado e aceito na nova famlia (falo aqui de crianas, no de adolescentes, cuja dinmica diferente) quando ele comea a reclamar, a brigar e, caso haja filhos naturais convivendo, quando ele se permite se defender e brigar com eles por espao! Enquanto a criana no se sentir amada e segura, vai ficar quietinha e procurar ser agradvel (temendo ser devolvida). S medida que ela for se convencendo de que est aceita e amada naquela famlia que poder expor sua alma e lutar por seus desejos, como toda criana faz. Pois nossa vida de crente se parece com a dessas crianas adotadas inseguras. Onde j se viu reclamar de Deus?! (e a igreja faz coro de ajudante de ordens: em tudo dai graas!). Quem se permite ficar de mal com Deus? Ou questionar alguma coisa que leu na Bblia? No estou falando que Deus erra, ou que injusto ou coisa parecida: estou falando da liberdade dentro da nossa limitao, de podermos nos sentir seguros como filhos e filhas amados, que no sero aoitados se reclamarem ou discordarem de alguma coisa. Qual a me ou pai que nunca ouviu reclamao de seus filhos? Por isso h essa diferena entre as geraes: os adultos podem perfeitamente agentar ofensas dos pequeninos, sem deixar de am-los nem um pouquinho. Ento, por que damos tanta seriedade a nossos sentimentos e palavras em relao a Deus? porque temos medo; no estamos seguros de Seu amor em qualquer situao. Achamos (sentimos) que Ele nos ama quando somos bonzinhos. Mas se erramos... Vale aqui uma explicao, pois h uma distino complicada a fazer: Em todo o perodo anterior ao sacrifcio de Cristo (e at hoje para os que no acreditam nele), a ira de Deus contra o pecado se revela de forma real, e inspira medo com

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muita propriedade - em ltima instncia, o medo do fogo do inferno - exatamente o castigo do qual Jesus veio nos salvar. Mas agora no estamos falando exatamente disso. H tambm um outro sentido de temor de Deus que permanece, e que poderia ser entendido como um respeito bsico, e positivo. Como explica o rev. Ricardo Barbosa, trata-se de reconhecer o outro como algum diferente e independente de mim, e configura a base necessria para haver um relacionamento. Tal como com outras pessoas, nossos pais, filhos, cnjuges, amigos: se no os respeitarmos como pessoa, no lhes daremos palavra nem direito a ser diferente, e no poder haver intimidade de relacionamento. Richard Rohr define o sentido bblico do temor do Senhor como sendo simplesmente ouvir com ateno, prestar ateno no que Deus diz. Isso positivo, e no causa neurose em ningum. Mas em nosso meio, entre os filhos e filhas de Deus que crem em Jesus, o temor continua sendo entendido no seu significado pr-cristo: medo que leva a obedecer cegamente. E isso faz bastante diferena - negativa - para a sade emocional do cristo. Pretendo explicar isso melhor na segunda parte do livro; por enquanto, vamos considerar como positivo o respeito para com Deus - que me leva a ouvi-lo com ateno, e negativo o que me leva a ter medo dele, e a guardar distncia ou me esconder dele (como Ado e Eva logo aps comerem o fruto proibido). Uma conseqncia desse medo que, tal como as crianas, perdemos boa parte da nossa capacidade de brincar. Quem no se sente seguro para brigar tambm ter dificuldades para brincar. E pelo mesmo motivo: pode ser que nosso senhor no goste da brincadeira. Se envolver temas mais delicados, ento, erro na certa. Como resultado, nosso repertrio de piadas reduzido a menos de 10% e mesmo assim, quando arriscamos algum comentrio bemhumorado, logo corremos a emendar: brincadeirinha... Isso quer dizer que nossos relacionamentos fraternos tambm no so muito slidos, e no suportariam muita autenticidade (da aquela vida pasteurizadaque falamos). Alm disso, a brincadeira tambm est relacionada com a criatividade. O Dr. Erik Erikson, em sua obra As 8 Idades do Ser Humano, demonstra que l
 Reao a esta palestra, no Encontro Regional do CPPC Centro-Oeste, Braslia, set/2007.  Letting Go (Aprendendo a Soltar), Munique, Claudius Verlag, 1995.

pelos 3 e 4 anos de idade a criana deve atravessar um conflito entre a iniciativa e a culpa. Isso quer dizer que o menino e a menina tomam vrias iniciativas, e seu desenvolvimento vai depender de como as pessoas importantes para elas reagiro na maioria das vezes: se recebendo bem, apoiando, ou se recebendo mal e provocando culpa. Se a reao de fazer a criana se sentir incapaz, desastrada ou m for predominante, o sentimento de culpa aos poucos ir sufocando a disposio de ter iniciativas, de ser criativo. Talvez isso explique aquela caracterizao geral da msica evanglica como sendo sem alma. Com nossa imagem de Deus perfeito e absoluto, que no poupa nossos erros, nossa criatividade tende a se inibir e ficar subdesenvolvida. Mais alma ficaria arriscadamente prximo do erro, seja da sensualidade, ou do ridculo, e ouviramos a reprovao de algum irmo ou irm mais conservador. Nas outras artes acho que isso acontece ainda mais que na msica. O medo de fazer travessuras nos faz ficar sempre mais na defensiva, num triste paralelo com o terceiro servo da parbola dos talentos... Uma segunda neurose eclesistica, conseqncia desse medo de errar, um afastamento involuntrio da verdade - justamente aquela que poderia nos libertar! Com isso quero dizer que, em nossos relacionamentos, por causa do medo de errar, em vez de ser como sou, vou procurar ser o que Deus espera que eu seja, e tambm sentir aquilo que Deus ou os irmos esperam que eu sinta. Isso com a melhor das intenes: vimos que Deus espera que amemos nossos irmos, que sejamos mansos e humildes, e vamos reprimir nosso desgosto ou raiva, e procurar expressar amor e mansido. Pergunto: qual o problema com essa atitude? No estamos corretamente querendo seguir o exemplo de Cristo? O problema que essa atitude no exatamente verdadeira, no de corao. Sabemos toda a doutrina do amor de Deus, somos at capazes de preg-la a outros. Conhecemos sobre as riquezas da glria de Deus, mas, tal qual o irmo mais velho do filho prdigo, no conseguimos participar da festa da graa divina. Na verdade, ns l no ntimo a achamos errada, fcil demais, descabida (a est nosso sentimento autntico). Acontece uma espcie de miopia espiritual, em que, como escre ERIKSON, Erik H. Oito idades do homem. In: Infncia e sociedade. Rio de Janeiro : Zahar, 1976. p. 227-253.

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ve Pedro, nos esquecemos da purificao de nossos prprios pecados. Uma outra face desse afastamento da verdade revela um quadro triste: em So Paulo uma ONG dedicada a ajudar mulheres vtimas de violncia domstica denuncia: 90% de suas clientes so evanglicas, portanto geralmente so tambm esposas de evanglicos. Isso revela que nossos cultos e prticas no reduzem o distanciamento da realidade (provavelmente at o aumentem). O enlevo da msica e do louvor, as proclamaes de vitria e as oraes fervorosas, os clamores, as unes do Esprito e as campanhas feitas nos templos no tm conseguido produzir o fruto do Esprito na vida diria dos membros. O homem que sai do culto se sentindo aliviado ou feliz com a experincia com Deus, mas depois bate na sua esposa em casa ou a fora sexualmente, evidentemente no est cheio do Esprito Santo e no tem sido santificado pelos cultos. O afastamento da verdade tem alterado nossa realidade, geralmente para pior, tanto no meio tradicional (pelo mascaramento das emoes) quanto no pentecostal (por no melhorar o comportamento no cotidiano). Moreno, o pai da tcnica do Psicodrama, ensinou uma verdade que descobriu nos relacionamentos entre filhos e pais: quando a educao muito severa, ela no consegue eliminar os erros. O que ela consegue fazer com que os erros sejam praticados s escondidas, sem o pai ou me saberem. A severidade do pai, alm de no evitar o pecado da filha, a faz tentar levar uma vida dupla, para evitar o confronto e o castigo. Portanto o diagnstico que encontramos duplo: (1) um medo de errar generalizado, que se revela como sombra da ira de Deus e nos paralisa a criatividade, a contestao e at a brincadeira, e (2) um afastamento da verdade, mesmo que involuntrio, especialmente em nossos relacionamentos. E a igreja, na imensa maioria dos casos, tem contribudo para aumentar esses dois males em nossos coraes. Qual seria a sada? Permita-me sugerir que, talvez pela primeira vez, voc se coloque no outro lado, no lugar de Deus. A pergunta que Deus Pai estaria
 MORENO, J.L. Psicodrama, SP, Editora Cultrix, 1978.

tentando responder : como que eu fao para convencer meu filho de que eu o amo de verdade, e no s quando ele obedece? Como eu fao para que minha filha no tenha medo de mim? Como fazer para eles acreditarem que est tudo bem entre ns, sempre? Que eles no precisam vir chorando e repetindo sem parar desculpe, desculpe, desculpe? Tente responder. Deus tem todo o interesse do mundo em que esse sentimento de medo seja removido, assim como nenhuma me ou pai gostaria que seus filhos o temessem. Acho que um pouco parecido com quando queremos conquistar a simpatia de um animalzinho arredio. Como fazer para ele no ficar distncia, sem querer se aproximar? Essa deve ser a situao que Deus enfrenta com o nosso medo dEle, por conta de nossas muitas imperfeies. Nosso julgar a ns mesmos est trazendo frutos. Pelo menos agora podemos fazer uma pausa nas ms notcias e comear a ouvir as boas (haver ainda algumas notcias ruins, mas o importante que as notcias boas j comearam!)...

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II - AS NOTCIAS BOAS: O Evangelho para Crentes


Por mais inacreditvel que parea, nossa situao como a de algum padecendo de sede no meio de um imenso, ou morrendo de fome dentro de um restaurante. A soluo do nosso dilema est ao nosso redor, bem perto de ns, mas no conseguimos tirar proveito disso e continuamos padecendo. Isso quer dizer tambm que, por mais fcil que a soluo desse mal-estar da igreja parea ser, devemos respeitar a fora adversria, que mantm cativos ao medo de Deus dezenas de milhes de crentes no Brasil, e tantos outros pelo mundo. Portanto, caro leitor, querida leitora, peo que voc mesmo se junte a mim nesta orao, e peamos a Deus para que nossos coraes sejam abertos, e possamos compreender a altura, largura e profundidade do amor de nosso Cristo, de que tanto j ouvimos falar, mas que talvez at agora ainda no tenha conseguido lanar fora o medo de nossos coraes. Quando Joo em seu evangelho termina seu primeiro texto, que apresenta Jesus como o Verbo que se fez carne, ele utiliza as seguintes palavras: A lei foi dada por meio de Moiss. A graa e a verdade vieram por Jesus (Joo 1.17). Isso foi por ele chamado de graa sobre graa (bno sobre bno) no verso anterior. Por parte dos enviados de Deus, a passagem da velha aliana da lei de Moiss (a vida pelas obras, por nosso comportamento segundo os mandamentos) para a nova aliana do evangelho de Jesus Cristo (a vida pela f, pela graa de Deus) no foi de briga, de ruptura, mas de preparao para a novidade, assim como o melhor amigo do noivo ajuda a preparar a festa do casamento essa figura utilizada por Joo. Joo Batista, o representante supremo da Velha Aliana, no foi um inimigo de Jesus: foi o amigo do noivo Jesus, que se alegra com o casamento de seu amigo, e sabe que agora sua tarefa acabou, foi completada (Joo 3.22-30). Como podemos entender as conseqncias disso para nossa vida com Deus? A Lei o modo de vida comandado pelo dever (mandamentos) e pela obe-

dincia; , no dizer de Paulo, o modo de vida de servo, que teme desagradar a seu senhor. um modelo adequado para escravos, mas no para filhos (especialmente os amadurecidos).Sabemos que atualmente Deus prepara o seu povo para as Bodas Do Cordeiro. Assim foi preparado o cenrio para Deus finalmente poder se unir (casar) com seu povo, para essa unio santa finalmente poder acontecer de verdade (um casamento no pode ser regido pelo temor e pela relao de servido). Por isso, Jesus veio como graa e verdade, no para condenar o mundo, mas para salv-lo. E todos os que o recebem com f deixam de ser servos, e passam a ser filhos e amigos de Deus, so salvos do castigo da ira de Deus sobre seus pecados. Porque foi para isso que Deus amou o mundo e deu seu Filho: no para condenar pessoas morte, mas sim para lhes dar vida eterna. Basicamente, esse o evangelho de Jesus Cristo, a Nova Aliana, sacramentada com seu sangue, pela sua morte. E no assim mesmo que deveria ser? Pois vejamos: 1. O CUMPRIDOR DE PROMESSAS Desde nossa negao no Jardim do den, Deus no tinha obrigao nenhuma conosco. Mas j l Ele prometeu que um descendente de Eva esmagaria a cabea da serpente e mudaria o estado de coisas. E ao longo da histria humana as promessas de Deus continuam: o crente Abrao, atravs de um descendente seu, seria canal de bnos para o mundo todo. Moiss antes de morrer certificou a todos que Deus levantaria dentre o povo outro profeta, como ele fora levantado, e a este as pessoas seguiriam. Jeremias, enquanto a anunciada destruio de Jerusalm chegava s portas, avisava da promessa de Deus de que um dia essa histria seria diferente e haveria uma nova aliana entre Deus e seu povo. E no tempo certo, no tempo escolhido de Deus, nasce Jesus em Belm da Judia, e comea a cumprir estas e muitas outras promessas, mostrando que a Palavra de Deus merece nossa confiana. Jesus no s cumpre as promessas a seu respeito, como tambm faz promessas novas, todas igualmente merecedoras de crdito, explicando o evangelho, a boa notcia da salvao para pecadores. Vejamos algumas:
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1.1 Vinde a Mim. O convite mais famoso, pblico e aberto que Jesus fez sobre si mesmo est registrado em Mateus 11:28: Vinde a mim, todos vs que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei O que ele promete? Alvio, e descanso para nossas almas. Descanso paz, despreocupao na vida, o contrrio do medo. Mas quantos de ns vieram a Cristo, e hoje esto descansados e aliviados? No parece que a maioria de ns continua cansada e sobrecarregada? Como Jesus no estava mentindo, aquele diagnstico a que chegamos deve ter interferido tambm aqui. O evangelho em que cremos teve retirada ou abafada a parte que proporcionava descanso, exatamente as notcias boas. Logo aps fazer esse convite para o descanso, Jesus sofreu dura crtica, porque seus discpulos estariam quebrando a lei do descanso sabtico ao colherem espigas para matar a fome o que ilustra muito bem que o descanso do dever no verdadeiro como o de Jesus. Felizmente, a promessa de Jesus continua vlida, e para todos os cansados que vm a Ele. O descanso e o alvio que Ele proporciona no perderam seu prazo de validade e esto includos no evangelho anunciado por Jesus. 1.2. A Paz nas Aflies. Aos seus discpulos, nas ltimas horas antes da cruz, Jesus promete: deixo com vocs a minha paz; a minha paz vos dou, no como o mundo a d. E, bem no final de sua fala, Ele repete: digo-vos essas coisas para que em mim tenhais paz. A segue a frase com o conhecido no mundo tereis aflies, mas tende bom nimo, eu venci o mundo (Jo 16.33), mas estranhamente no aprendemos a decorar a parte que garantia a paz... E para piorar, s vezes ainda acrescentamos mais um dever, porque geralmente completamos o verso com um e vocs tambm podem vencer. Na verdade, felizmente, Jesus no disse isso; ele s disse que o mundo j foi vencido por ele (e isso basta para todos ns). Portanto no desista: h paz disponvel para voc. Paulo faz eco dessa mesma verdade: Justificados, pois, pela f, temos paz com Deus (Rm 5.1), e confirma esse sentimento pouco depois em Romanos: No h nenhuma condenao para os que esto em Cristo Jesus (Rm 8.1). Portanto, esse sentimento de paz, que traduzido para nossa alma seria est tudo bem, sim desejado por Deus para nossa vida nesta terra, no meio das aflies deste mundo.
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2. AUTO-IMAGEM Alm da graa de Deus, Jesus tambm trouxe a verdade quando se fez carne. Ele revelou a verdadeira e completa imagem de Deus. Essa verdade tambm se aplica aos que nele crem. O que a verdade? Primeiramente, a prpria pessoa de Jesus, Deus encarnado; e em relao a ns? Jesus abre as portas, pela primeira vez na histria humana, para a nossa verdade encarnada poder aparecer. Ela no muito bonita (como j vimos na parte das ms notcias), mas bem real. Voc nunca estranhou Paulo falar de si prprio coisas como: eu sei que em mim (isto , na minha carne) no habita bem nenhum(Rm 7.18)? Isso tem sido to difcil para a igreja aceitar, que muitos pregadores e comentaristas preferem ensinar que isso se referiria a um certo crente carnal, mas o crente espiritual no seria assim. Lamento, mas Paulo no faz essa distino. Quando ele escreve miservel homem que sou e 3 frases depois diz agora nenhuma condenao h para os que esto em Cristo Jesus ele est falando de duas verdades, ambas plenamente verdadeiras. Desclassificar uma delas (nossa verdadeira condio) e tentar ficar s com a outra (nossa perfeio em Cristo) parte importante do problema com nossas igrejas. Lutero j tinha percebido essa realidade, que vale para o perodo de tempo entre nosso primeiro encontro de f com Cristo e o encontro final nos ares: existem duas naturezas na mesma pessoa, a velha e a nova. Por isso, como disse Lutero, o ser humano simultaneamente justo e pecador. Se abrirmos mo de qualquer uma dessas verdades, como a igreja involuntariamente tem feito, estaremos nos desviando do evangelho, das boas novas de salvao. Pois para que serve um Salvador se no for para pecadores? Voltando a Paulo: noutra carta, mais pessoal, para o seu discpulo Timteo, ele diz: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, sendo eu o pior deles (o principal) (I Tm 1.15). E como essa verdade talvez parecesse difcil para o jovem Timteo aceitar, Paulo frisa: Fiel esta palavra e digna de toda a aceitao. Isso no exerccio de retrica. Paulo sabe muito bem que est dizendo a pura verdade: ns somos santos e justos em Cristo, e ao mesmo tempo, em ns mesmos, ns somos pecadores. Por isso ele pode dizer, em ainda outra carta, pela graa de Deus sou o que sou (I Co 15.10).

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Diga-me, quantas vezes voc j ouviu um sermo sobre algum desses textos? Provavelmente pouqussimos, talvez nenhum, o que ilustra como temos dificuldade em admitir nosso pecado (nossa verdade, nossa auto-imagem), especialmente depois de anos e anos de crente. E por termos essa dificuldade em aceitar a verdade, temos tambm dificuldade em aceitar a graa. Atualmente na igreja temos uma situao mista, bastante estranha: na hora de pregarmos o evangelho para quem no cr em Jesus, conseguimos pregar corretamente a graa de Deus, e como Ele aceita e salva a ns pecadores. Mas depois de aceita essa mensagem, comeamos a nos preocupar com pecados, ensinar regras e disciplinas, e acabamos recriando o sistema da Lei e do dever, da premiao da obedincia e castigo da desobedincia. Procuramos acreditar numa falsa imagem de que somos apenas nova criatura e, ao nos afastarmos da verdade sobre nossa pecaminosidade, acabamos tambm por nos afastar da graa que nos tinha acolhido e salvado. Como resultado, nossas igrejas parecem imensos berrios, em que novos cristos sempre nascem, mas depois no conseguem crescer, sucumbindo s pesadas cargas que lhes impomos. Mas fiquemos nas boas novas. Onde o pecado abunda (nosso corao mau) a graa superabunda. A bondade de Deus maior que a nossa ruindade. E digo isso com 40 anos de experincia de crente em Cristo. Aquela paz se aplica exatamente aqui: eu no vou conseguir ser perfeito em mim mesmo; a perfeio eu s tenho em Cristo. Por isso, por causa do precioso sacrifcio de Cristo, tudo bem ser imperfeito (alis, foi exatamente por causa disso que Jesus morreu). A objeo levantada , desde aqueles tempos, sempre a mesma: e o pecado? E a santificao? Como podemos crer que est tudo bem se vemos tanta coisa errada? O pastor responsvel pelos jovens e adolescentes talvez seja o primeiro a protestar: precisamos pregar a santificao, no podemos deixar o pecado correr solto. Agora comeamos a entender porque Paulo, ao pregar e ensinar o evangelho de Jesus Cristo, foi caluniado como se ele dissesse faamos o mal para que venha o bem (Rm 3.8). Ser que algum de nossos pregadores

poderia ser alvo dessa mesma calnia? Duvido muito. Temos tanto medo do pecado que ficamos bem longe dessa linha divisria. Pois ento vamos buscar entender como funciona a santificao na Nova Aliana: 3. PECADO E SANTIFICAO Sintomaticamente, uma disputa sobre a purificao (outro nome para santificao) que leva o grande Joo Batista a explicar a seus discpulos a diferena essencial entre a aliana dele e a aliana trazida por Jesus: O homem no pode receber coisa alguma se no lhe for dada do cu.... Aquele que vem da terra da terra e fala da terra. Aquele que vem do cu sobre todos. O Pai ama ao Filho e todas as coisas entregou nas suas mos. Quem cr no Filho tem a vida eterna; o que, porm, desobedece ao Filho no ver a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus (Jo 3.27,31,35,36) Essa ltima frase, falada em linguagem de velha aliana para no deixar dvidas, iguala o no crer no Filho de Deus a desobedecer a Ele, e o resultado foi o mesmo anunciado a Nicodemos: se algum no nascer de novo (e do alto), no pode ver o reino de Deus. O problema do pecado humano foi resolvido pela morte de Jesus na cruz. O pecado agora a falta de f em Jesus, o no acreditar que o Filho de Deus crucificado nos purifica por sua morte, tal qual o simples olhar para a serpente de bronze no deserto trazia cura e salvao para os israelitas. Quando Jesus apareceu a Paulo, fez-lhe uma descrio resumida e bastante reveladora do evangelho: ...para lhes abrir os olhos a fim de que se convertam das trevas luz, e do poder de Satans a Deus, para que recebam remisso de pecados e herana entre aqueles que so santificados pela f em mim. (Atos 26.18) Existe uma coisa, ainda no compreendida em nossas igrejas, que se chama santificao pela f em Jesus. Em nossa cultura popular evanglica, geralmente dividimos a obra de Deus em nossas vidas em duas partes: salvao e santificao. Ningum duvidar que a salvao seja pela f em Jesus. Mas quando o assunto santificao, a palavra f nem sequer lembrada (a no ser, talvez, no sentido de conjunto de doutrinas). Pois isso novamente explica aquele crculo vicioso, de s produzirmos bebs espirituais; e de que
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muitos, na busca por um crescimento e amadurecimento (que equivale a dizer na busca de mais verdade), tiveram de sair da igreja, pois no podiam ser verdadeiros e maduros l dentro. Triste situao, mas infelizmente cada vez mais comum... Comecemos por um trecho da carta de Hebreus, a mesma que afirma categoricamente que sem santificao ningum ver ao Senhor (Hb 12.14). Dois captulos antes, o autor j explicava o que entendia por santificao, relatando a fala do Messias no Salmo 40: Depois de dizer, como acima: Sacrifcios e ofertas no quiseste, nem holocaustos e oblaes pelo pecado, nem com isto te deleitaste (coisas que se oferecem segundo a lei), ento acrescentou: Eis aqui estou para fazer, Deus, a tua vontade.... Nessa vontade que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas. Ora, todo sacerdote se apresenta dia aps dia a exercer o servio sagrado e a oferecer muitas vezes os mesmos sacrifcios, que nunca jamais podem remover pecados; Jesus, porm, tendo oferecido, para sempre, um nico sacrifcio pelos pecados, assentou-se destra de Deus, aguardando, da em diante, at que os seus inimigos sejam postos por estrado dos seus ps. Porque com uma nica oferta aperfeioou para sempre quantos esto sendo santificados (Hebreus 10.8-14) . O autor explica que a obra de Cristo na cruz foi completa, no apenas salvando, mas tambm santificando o seu povo; e essa obra foi feita de uma s vez. Mas repare que h uma diviso de tempos: Jesus ofereceu o sacrifcio de uma vez, e depois assentou-se destra de Deus, aguardando at tudo ser-lhe submetido na prtica. Houve a morte (e ressurreio), e depois o aguardar tranqilamente o tempo passar, at tudo estar debaixo dos ps de Jesus. Assim tambm conosco: fomos aperfeioados para sempre de uma vez, e agora estamos sendo santificados. Chegar o dia em que todos os nossos desejos pecaminosos estaro anulados, sob os ps de Jesus. Este um processo de queda s avessas: Deus avisou Ado e Eva que, no dia em que eles comessem do fruto proibido, morreriam. Eles comeram, e imediatamente se tornaram mortais, mas no caram mortos naquele instante. A foi s uma questo de esperar um tempo para que essa morte acabasse por dominar tambm os seus corpos, que voltariam ao p. Assim tambm, mas no
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sentido reverso, Jesus ofereceu seu sacrifcio e nos deu vida eterna, ressuscitou, e enviou seu Esprito aos nossos coraes. Mas essa bela vida de Jesus ainda no domina tudo em ns. Agora Jesus espera passar o tempo at que seu Esprito nos vivifique totalmente, inclusive os nossos corpos mortais (cfe. Rom 8.11). O Dr. Carlos Hernndez chama isso de biologia da ressurreio. Nossa santificao aparecer externamente e em todas as reas do nosso ser s uma questo de tempo, de espera, de descanso enquanto se espera. Lembrese que Ado levou 930 anos para cair morto... Vamos agora examinar a questo do pecado e santificao na explicao que Joo d em sua primeira carta: Depois da importante introduo, e num ambiente de insistente busca pela verdade, pela luz de Deus, Joo comea a argumentar (I Jo 1.7): ..se andarmos na luz, como ele na luz est, temos comunho uns com os outros, e o sangue de Jesus seu Filho nos purifica de todo pecado. Isso santificao: a purificao de cada pecado, mostrado luz da comunho entre irmos. algo feito pelo sangue do Filho de Deus, pela morte de Jesus na cruz. Ou seja, Joo est explicando aquela mesma situao da auto-imagem sincera de Paulo: quanto mais verdadeiros ns formos (com Deus e com os irmos), mais vai aparecer o nosso pecado a nossa verdade. Joo continua: se dissermos que no temos pecado nenhum, enganamo-nos a ns mesmos, e a verdade no est em ns (1.8). Por que Joo fala disso aqui? porque esse um erro muito comum, especialmente entre irms e irmos que comeam a se destacar na igreja, a assumir lideranas, palavras e reunies. Poderamos chamar isso de maldio do microfone, e funciona mais ou menos assim: quando ns pastores, profetas ou dirigentes de louvor assumimos a palavra em nossas reunies, comeamos a ser vistos com destaque, como grandes servos de Deus. Os irmos e irms comuns comeam a nos procurar pedindo orao ou conselhos, e ouvem nossos sermes ou profecias como se estivessem ouvindo a Palavra de Deus. E qual o problema disso? O problema so dois: primeiro, que isso no bem verdade; e segundo, que ns mesmos comeamos a acreditar na nossa maior santidade, comeamos a enganar a ns mesmos.
 Psiquiatra argentino cristo, autor de O Lugar do Sagrado na Terapia.

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A Palavra de Deus inspirada pelo Esprito Santo e infalvel nica e exclusivamente o texto das Sagradas Escrituras. Os meus sermes, por mais estudo, preparao, orao, uno e inspirao que tenham, nunca chegaro aos ps do texto bblico. E minhas profecias, por mais clara que a mensagem a ser dita esteja em meus ouvidos e no corao, tambm sempre estaro muito longe e muito abaixo do texto sagrado. Por qu? Porque os ltimos versos do ltimo livro da Bblia (Apocalipse) deixam bem claro que no cabe mais nenhum acrscimo revelao de Deus, e porque a minha verdade que sou um pecador, um instrumento que sempre ser falho. Posso ser usado e abenoado por Deus em muitas ocasies, sim, mas sempre serei pecador, falho e imperfeito essa a verdade. Pregadores, profetas e ministros de louvor demais esto enganando a si mesmos quando comeam a acreditar na admirao dos sem-microfone. Se dezenas ou milhares de pessoas esperam atentamente ouvir o que voc vai dizer, fica mesmo difcil acreditar que voc continua to pecador quanto o pior dos que lhe ouvem. Mas essa a verdade. Jesus j tinha deixado isso claro na parbola do fariseu e do publicano que foram orar no templo. Sempre que eu comear a achar, mesmo em segredo, que no sou to ruim quanto esses publicanos estou me enganando a mim mesmo, e a verdade j se afastou. O prximo passo pode ser achar que sou indispensvel para essa igreja, e a j estarei me sentindo na posio de Jesus, de Salvador da Ptria. Eu tenho esse desejo secreto repetidas vezes, de ser o salvador da ptria para essa ou aquela igreja. Mas a verdade que no sou, e nunca serei salvador de coisa nenhuma. Sou apenas mais um pecador. Por isso Joo continua sua argumentao com o famoso verso 9: Se confessarmos os nossos pecados, ele fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustia. Confessar aqui quer dizer o contrrio do verso anterior (se dissermos que no temos pecado) e tambm do verso posterior (se dissermos que no temos cometido pecado). dizer que eu tenho pecado sim (e ainda estamos naquele mesmo ambiente, entre Deus e nossos irmos). reconhecer essa triste verdade a meu respeito: eu sou pecador. Esse o veredito de Deus a meu respeito, que aqui eu reconheo como verdadeiro, eu homologo (esse o termo grego usado por Joo). uma atitude interior, antes de ser uma manifestao exterior.

Qual o resultado desse reconhecimento de pecados? O resultado duplo, e recebe dois adjetivos: perdo dos pecados e purificao de toda injustia (santificao), e Deus chamado de fiel e de justo ao faz-lo. Por que Deus fiel ao perdoar nossos pecados? Porque Ele est cumprindo o que prometeu vrias vezes (por exemplo, em Jeremias 31.31-34), de que um dia ele iria fazer uma aliana nova com o seu povo onde perdoaria os pecados dele e se esqueceria desses pecados para sempre. Pois bem, Deus sempre cumpre suas promessas; essa nova aliana est em vigor, e portanto Ele fielmente perdoa nossos pecados, porque Deus fiel. Mas, onde est a justia? Lembre-se, tudo o que fizemos foi reconhecer nossa pecaminosidade, e j estamos perdoados e purificados. Como que pode isso ser justo? Deus no deixou de ser santo. Ele no pode simplesmente ignorar nossos pecados, fazer vista grossa e deixar-nos gozar de plena comunho como se nada tivesse acontecido. Deus no pode deixar passar nossos pecados: isso no seria justo. Mas Joo aqui afirma que Ele perfeitamente justo quando perdoa nossos pecados, e ainda por cima nos santifica, nos limpa de todas as injustias (todas inclui as que ns mesmos cometemos). Como aceitar isso sem nenhum castigo, nenhuma disciplina, nenhum perodo de experincia, nenhum sofrimento?!! O que foi feito da nossa natureza pecadora, e dos pecados que ela cometeu e continua cometendo? Cad a justia? Diz Joo continuando o mesmo trecho: Meus filhinhos, escrevo estas coisas para que no pequeis; mas, se algum pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E ele a propiciao pelos nossos pecados. (I Jo 2.1,2) O fato de demorarmos a nos lembrar do que Jesus Cristo, o justo, fez, bastante revelador: Ele nosso caminho perfeito para o Pai. Nossos pecados so perdoados sem exigir mais nada em troca porque j foram pagos, e por um preo muito alto (mas que continua subestimado em nossa memria). Algum morreu por causa dos meus pecados. Eu sou um assassino. Meus pecados trouxeram a morte (e isso desde Ado e Eva). Esse o justo castigo: a morte, para sempre, de todos os pecadores. Mas no era essa a vontade de Deus: O Pai ama esses pecadores, e quer t-los consigo, vivos e em comunho, mas de um modo justo e verdadeiro. Foi esse amor que levou seu Filho, o justo Jesus Cristo, a nos amar at o fim, a vir para morrer em nosso lugar, como um sacrifcio que satisfaz a
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justa ira de Deus contra os nossos pecados (esse o significado de propiciao) e resolver de uma vez o problema do nosso pecado. Essa a essncia da boa nova do evangelho: para pecadores agora h salvao. O nico problema, por mais paradoxal que possa parecer, se acharmos que no somos pecadores. Se pensarmos que, com 30 anos de crente j nos santificamos um bom tanto, l vamos ns para a posio do fariseu, que provavelmente no diria que era perfeito, mas certamente se achava melhor que um publicano, um fiscal de impostos do governo. Lembre-se: sempre que dissermos que no temos pecado estamos fora da verdade. Sempre. Joo disse isso j bem velho, talvez com 80 anos de idade, e observe que ele se incluiu: se ns dissermos que no temos pecado... Joo teve mais intimidade com Jesus do que todos os outros discpulos; ele era muito provavelmente o nico dos 12 ainda vivo nessa poca; sua espiritualidade - para utilizar um termo da moda - era intensa e real. Mas ele sabia muito bem que seu lugar continua sendo na posio de publicano: se eu disser que no tenho cometido pecado, a sua palavra no est em mim. Portanto, se voc imagina que com mais alguns anos de vida crist, com mais esforo, mais compromisso, mais leitura da Bblia, orao e jejum, vai ficar mais santificado, mais sem pecado, Joo traz uma m notcia: no vai dar certo. Esse caminho de auto-engano (e so muitos os que andam por ele). No um caminho de verdade, nem de vida, e no leva ao Pai. Mas h uma notcia boa: houve um justo que morreu, que morreu por amor, e morreu por amor a pecadores. Se voc pecador (se voc se qualifica), ento esse sacrifcio de amor para voc, para os seus pecados. E no pra a: e no somente pelos nossos pecados, mas tambm pelos de todo o mundo (I Jo 2.2). Ser que no o bastante? Apenas no esquea que esse sacrifcio de Jesus, ao reconhecermos nosso pecado, no traz apenas o perdo, mas tambm a purificao, que a eliminao das impurezas, a limpeza interior, enfim, a to falada santificao. Por isso que Paulo podia falar dos cristos como aqueles que esto sendo santificados pela f (At 26.18). bem diferente daquele modelo de escada para santificao, em que temos que batalhar para nos fazer subir um degrau a cada dia, e somente quando chegarmos l no alto, na estatura do varo perfeito, que seremos santos.
 Esta figura comentada por Enio Mueller no artigo Espelho, espelho meu: reflexes sobre os fundamentos de uma espiritualidade evanglica. So Leopoldo: Estudos Teolgicos, vol 37, n 1, 1997, pgs. 5 a 27.

Na linguagem paulina, esses dois modelos de santificao foram bem descritos em Colossenses. Ali Paulo ope a observncia de regras unio com Cristo na morte e ressurreio (Colossenses 2.6-23). Graas a Deus por textos como Col 2.20: Se morrestes com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos sujeitais ainda a ordenanas, como se vivsseis no mundo, tais como: no toques, no proves, no manuseies...? A cruz de Cristo, portanto, o nico mtodo de santificao eficaz. A unio de vida pela f em Jesus a nica que retira toda a condenao, porque a lei do Esprito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte(Rm 8.2). No h nenhuma mudana de processo da salvao para a santificao: o mesmo Deus que te amou e enviou Jesus para morrer por teus pecados j sabia muito bem como voc se comportaria depois do encontro com Jesus - e foi exatamente por isso que Jesus morreu. Essa situao, muito semelhante de nossas igrejas, aconteceu com as comunidades na regio da Galcia, e motivou o que provavelmente foi a primeira carta escrita por Paulo: a carta aos Glatas. Nela, o apstolo combate radicalmente as influncias que os Glatas sofreram por parte de outros irmos, que os levaram a novamente tentar depender do bom comportamento, da obedincia, para se relacionar com Deus. Paulo denuncia esse abandono do chamado na graa de Cristo para outro evangelho; entre vrios outros argumentos, ele diz: Sois vs to insensatos? tendo comeado pelo Esprito, pela carne que acabareis? (Gl 3.3) O Esprito Santo a diferena fundamental entre o modelo escada, baseado no compromisso de levar a srio princpios e leis, e o modelo morte e ressurreio, baseado unicamente na f em Jesus. De modo bem resumido, Paulo relaciona a atitude de dever, de obedincia Lei, com a carne, e relaciona o modelo de f na morte e ressurreio com o Esprito. E o que faremos com o pecado? Uma frase fantstica de Paulo nos resume a atitude a tomar: Andai pelo Esprito, e no haveis de cumprir a cobia da carne (Gl 5.16). Em outras palavras: em vez de ficar tentando no errar, tente acertar; pode parecer a mesma coisa, mas muito diferente. Em vez de ficar se preocupando com o pecado, ocupe-se com
 Veja especialmente Fritz Rienecker em seu comentrio Kolosserbrief, (Carta aos Colossenses) Wuppertaler Studienbibel,1975.

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o amor, a alegria, a paz, e no sobrar energia para o pecado. Consideraivos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6.11) Como nos garantiu Joo, certamente voc tambm cometer pecados. Mas para isso que temos o Advogado justo, Jesus Cristo, que j fez a propiciao por eles. Em vez de lutar contra mortos, ocupe-se com coisas mais bonitas, como o amor. Paremos de procurar entre os mortos Jesus ressuscitado, a nossa verdadeira vida. Eu trabalho na redao de uma revista, e sou responsvel por ela. Depois de 18 anos sendo publicada mensalmente, pela primeira vez minha revista foi contatada por uma advogada e fomos processados, porque uma pessoa aparentemente no gostou de ver sua foto publicada, e exigia uma indenizao. Bastante preocupado, fui levar a notcia ao advogado da editora, explicando as circunstncias da reportagem e das fotos que tiramos. Era a cobertura de uma edio de um grande encontro poltico e social, e eu pensava que talvez tivesse sido mesmo imprudente ao no pedir autorizao para fotografar pessoas; por outro lado, era um evento com 80.000 pessoas presentes, enfim, eu no tinha muita certeza se a reclamao seria ou no julgada procedente. Qual no foi minha surpresa quando o advogado da editora me disse, feliz da vida e agradecendo muito: finalmente vocs me deram algum trabalho para fazer. Ta uma perspectiva que eu no tinha pensado: a do advogado que escolheu essa profisso porque gosta das lutas jurdicas, da defesa do cliente, da busca da justia, dos embates nos tribunais. No sei se a situao se aplica em todos os detalhes, mas pelo menos ilustra bem que, para nosso Advogado, nossos pecados no so uma tragdia inesperada que pode pr tudo a perder. Pelo contrrio, so parte do trabalho dEle, e foi para isso que Ele se preparou. Confesso que fiquei aliviado. Quer saber se, por causa do alvio, sa em debandada fotografando todo mundo para publicar? Claro que no! Aprendi que os tempos mudaram, e que preciso me precaver melhor, mas tambm aprendi como bom ter um bom Advogado para consertar minhas trapalhadas... Em suma, o pecado continua sendo pecado, promove morte e no vida, ruim e no bom. Mas ele deixou de ser o problema, deixou de ser o foco da nossa vida. um problema considerado resolvido por Deus, por causa da morte de Jesus. Vale a pena acreditar...

4 - F e NO-VISTA por acreditar em Jesus que nossa vida comea, e essa mesma f em Jesus que a levar adiante. O justo viver da f, explica Paulo nos primeiros 8 captulos de Romanos. Os evangelhos deixam bem claro que no se trata de f sozinha, f no poder de Deus, ou f na f, mas de f em Jesus Cristo, no que Ele e no que Ele fez por ns. Hebreus leva essa nova realidade um passo adiante: Jesus o autor dessa f, e tambm quem a completa, o seu consumador. Mais, a f est relacionada com nossa espera pela volta de Jesus e por seu Reino, uma esperana por algo que ainda no se v, uma vida de peregrino neste planeta. E no captulo da f, Hebreus 11, somos ensinados que, para agradar a Deus - viver como justo - nossa f precisa acreditar em duas verdades: 1) que Ele existe. Parece bvio, mas para muita gente no . Deus existe de verdade; se por acaso voc estiver em dvida sobre a existncia de Deus, no desista, e busque Ele mesmo assim (afinal, Ele existe independentemente de ns acreditarmos). Porque a segunda verdade (2), na linguagem tradicional da Bblia, que Ele se torna galardoador dos que o buscam (Hb 11.6). Trocado em midos, que Ele vai presentear quem se aproxima, e no castigar. Ou seja, que Deus bom, e no severo e mau (como pensava o terceiro servo da parbola dos talentos). Deus existe, e bom, muito bom. No terreno da f h espao para crescer. Paulo em duas de suas cartas fala de irmos serem fortes na f ou fracos na f, e essa distino tem a ver com nosso tema. Dr. Russel Shedd explicava em suas aulas de Novo Testamento que os irmos fortes na f acreditavam que o sacrifcio de Jesus havia feito tudo que era necessrio para sermos aceitos por Deus, no faltando mais nada para completarmos de nossa parte. J os fracos na f tambm acreditavam em Jesus mas, talvez por terem vindo de uma histria de paganismo, tinham dificuldade em comer carne que havia sido dedicada aos deuses pagos em que antes acreditavam. Ou por virem de uma formao judaica e sempre guardarem o sbado, tinham dificuldade para considerar todos os dias da semana iguais para Deus. E assim por diante para qualquer outra regra, como o dzimo (to cobrado nas igrejas), a obedincia aos usos e costumes da sua igreja ou denominao, etc., etc. Em suma, so irmos, crem em Cristo, mas sentem que no sero aceitos ou abenoados por Deus se estiverem quebrando esse ou aquele
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preceito, coisas, como as do verso citado de Colossenses, visveis, que se desgastam com o uso. Sempre uma tendncia nossa essa de nos apegarmos a algum coisa visvel, alguma obra que em tese pudssemos apresentar para Deus, para provar nossa virtude e tentar merecer um presente. A boa notcia que no precisamos continuar fracos na f a vida toda. E o caminho para nos desapegarmos do visvel e acreditar ainda mais em Jesus passa por aquela auto-imagem, por reconhecermos que, mesmo quando no fazemos aquilo que para ns sentido como transgresso (seja beber, danar, no dar dzimo, faltar ao culto, etc.), continuamos totalmente pecadores, sem bem nenhum em nossa carne, totalmente necessitados de um Salvador. No ficamos menos pecadores ao no fumar ou ao dar o dzimo. Como j tinha ensinado Jesus, nosso corao continua adltero mesmo quando fisicamente no adulteramos (pois basta desejar); nosso corao continua assassino mesmo quando fisicamente no matamos (pois basta sentir raiva). Em outras palavras, desista de tentar no pecar: no h a menor chance de voc ter xito. Em vez disso, reconhea seu corao ruim, e seja purificado pelo sangue de Jesus, o Filho de Deus. Tenha f no Salvador que Deus enviou, o Messias, o nosso Advogado. Dito nas palavras de Paulo aos Glatas: Ns, judeus por natureza e no pecadores dentre os gentios, sabendo contudo que o homem no justificado por obras da lei, mas sim pela f em Cristo Jesus, temos tambm crido em Cristo Jesus para sermos justificados pela f em Cristo, e no por obras da lei; pois por obras da lei nenhuma carne ser justificada.(Gl 2.15,16) Tiago escreveu que a lei perfeita d liberdade s pessoas. Liberdade, paz, descanso, andar no Esprito (que liberdade): tudo isso est includo no convite para termos f, em Jesus Cristo e na grande e eterna reconciliao que Ele fez entre Deus e ns. Acredite, e isso se tornar numa fonte de gua viva jorrando do seu interior. Deus bom. 5 - NOSSA IMAGEM DE DEUS Jesus revelou Deus como sendo cheio de graa e de verdade. Mas temos aprendido, domingo aps domingo, que devemos ter muito cuidado em nossa vida diria; que devemos ter certeza da vontade de Deus antes de tomar alguma deciso em nossa vida; que devemos combater toda forma de pecado, e at
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a aparncia de pecado, etc. Uma das dvidas mais comuns entre alunos da Escola Dominical e seminaristas sobre o pecado sem perdo, a blasfmia contra o Esprito Santo, a perda da salvao e coisas do gnero. J para os pastores as perguntas mais frequentes so: crente pode tal coisa?, certo fazer isso?. Como j vimos na parte das ms notcias, esse tipo de preocupao revela que, embora cantemos que Deus nos ama, l em nosso corao est registrada uma outra verdade: preciso ter muito cuidado com Deus, no devemos desagrad-lo. No dizer de Paulo em Rm 8.15 (No recebestes o esprito de escravido, para outra vez estardes com temor, mas recebestes o esprito de adoo, pelo qual clamamos Aba, Pai), estamos tal qual escravos, com medo de nosso senhor. A boa notcia que Deus enviou seu Esprito para fazer um trabalho psicolgico extremamente profundo em nosso interior, acho que o mais profundo de todos: assim como um casal adota uma criana e se dedica com todo o amor a cri-la como filho/a, o que de fato a criana passa a ser, o Esprito vai mansa e suavemente nos convencendo de que somos filhas e filhos amados por Deus. mais ou menos como quando ns procuramos domesticar um esquilo que est morrendo de medo de ns, com amendoins na mo, pois s queremos lhe fazer carinho (como difcil para o esquilo crer que ns somos bons, no mesmo?). A qualquer suspiro nosso, ele volta correndo para trs da primeira rvore que encontra. Assim tambm ns, a qualquer mudana que pressentimos vir de Deus, samos desesperados procurando identificar e reparar algum erro que tenhamos feito. Na verdade, h dois processos de criao acontecendo. Em Glatas 4 isso ilustrado por Agar e por Sara. Voltemos ao tempo da escravido: ns somos a criana, e a igreja pode estar ensinando a velha aliana, nos criando como filhos de escravos, que devem tomar muito cuidado para saber o seu lugar e no desagradar o senhor da casa. Ou ento a igreja pode ensinar a nova aliana, em que, por causa do Messias, somos filhos do senhor, e somos criados com essa identidade e essa liberdade, e seremos herdeiros, juntamente com Cristo, do que o Pai guarda para nos dar. Como voc se sente no corao? Uma filha/filho de Deus, ou um servo/serva? Para servos e servas o mais importante obedecer, cumprir com seu dever, dedicar-se, temer, trabalhar. Para filhos e filhas o mais importante estar

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junto do Pai, viver com Ele, brincar, aprender, experimentar o amor, crescer. A boa notcia que, pela f em Jesus, voc filho/filha de Deus, mesmo que lhe tenham ensinado errado. No se esquea disso: Deus seu Pai, no seu dono ou empregador. Essa obra que o Esprito Santo faz em nossos coraes descrita tambm por Joo, no captulo 4 de sua primeira carta: fazer o amor crescer, e assim lanar fora o medo: Nisto aperfeioado em ns o amor, para que no dia do juzo tenhamos confiana;... No amor no h medo, antes o perfeito amor lana fora o medo; porque o medo envolve castigo; e quem tem medo no est aperfeioado no amor. Ns amamos, porque ele nos amou primeiro. (I Jo 4.17-19) A boa notcia que nosso Pai do Cu no quer que tenhamos medo dele (assim como ns pais e mes terrenos tambm no queremos o medo dos nosso filhos). Tal como na f, tambm no amor h terreno para progredirmos: podemos ser aperfeioados no amor. Joo logo diz como: ns amamos porque ele nos amou primeiro. Essa notcia tima: voc no tem como produzir amor. No h esforo no mundo que possa nos levar a amar. O nico jeito de podermos amar (e assim, por tabela, cumprirmos todos os mandamentos) recebendo amor de Deus. A quem Deus ama? Aos pecadores. Conforme Jesus ensinou ao fariseu Simo quando a prostituta veio chorar agradecida a seus ps, h uma relao direta entre a conscincia de ser perdoado e o amor demonstrado pelo perdoador (Lc 7.36-50). Em outras palavras, voltamos ao captulo primeiro da carta: quanto mais reconhecermos em ns um(a) grande pecador(a), tanto mais perceberemos o tamanho do amor de Deus por ns, e tanto mais o amaremos. Note bem: no h nenhuma necessidade de sairmos a praticar mais pecados: ns j somos muito pecadores; basta reconhecer isso. Esse amor de Pai para filho/a vai transformar nosso corao, tambm em relao a nossos irmos e irms. Na linguagem mais adulta, Jesus utilizou outra verdade semelhante, quando disse: J no vos chamo servos, porque o servo no sabe o que faz o seu senhor; mas chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos dei a conhecer. (Jo 15.15) Numa linguagem empregatcia (bastante superficial), seramos os amigos do chefe, aqueles que jamais so demitidos. Mas aqui Jesus fala num nvel bem mais profundo de relacionamento. Somos amigos

ntimos, para quem no h nenhum segredo. Confiamos totalmente em Jesus, Ele confia totalmente em ns. Alm do medo ser substitudo pelo amor, que outras diferenas h entre ser servo e ser filho ou amigo? Lembro de uma bastante fundamental: eu estive por algum tempo afastado da igreja, crendo em Deus distncia; um amigo meu tambm passou por este afastamento. No era meu amigo mais ntimo, mas era amigo. Chegou a hora em que, pela graa de Deus, Ele me contatou e me trouxe novamente para perto dEle. Mas meu amigo continuou distante, e se distanciava cada vez mais. Certa vez, preocupado, conversei com ele e insisti que ele devia se reconciliar com Deus. Ele me respondeu: eu estou tentando ser feliz; voc fala muito de viver com Deus, mas para mim voc no nenhum exemplo de felicidade; eu estou tentando ser feliz!. Somente um amigo que teria a liberdade de me fazer essa crtica. Embora tivesse receio de me magoar, ele teve muito cuidado, mas fez a crtica. Os filhos da mesma forma (e com menos cuidado), sentem-se mais vontade para criticar o pai e a me. E voc, teria coragem de reclamar com Deus? Pois o que aparece, por exemplo, em vrios Salmos, que so oraes feitas para Deus. Por exemplo, Salmo 10.1: Por que te conservas ao longe, Senhor? Por que te escondes em tempos de angstia?, ou Salmo 13.2: At quando, Senhor, te esquecers de mim? para sempre? At quando esconders de mim o teu rosto? Em plena vigncia da velha aliana, Davi conhecia suficientemente a Deus para crer em seu amor, e dar-se a liberdade de reclamar. S podemos brigar com algum prximo com certeza de no sermos expulsos de sua convivncia se sentirmos que o vnculo est garantido, que h de fato amor. claro que nossas reclamaes quase nunca procedem, tal qual as de uma criana pequena para com seus pais. Mas trata-se de saber que o amor agentar essa atitude, e exatamente por isso podermos ser mais sinceros e autnticos em nossa expresso possivelmente estaremos errados, mas o que estamos sentindo. Lembra da verdade que liberta? Pois , somos amados de verdade, pode crer.

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6 - O LUGAR DOS SOFRIMENTOS Na velha aliana, o que significava a chegada de um sofrimento? Na grande maioria das vezes, o sofrimento era entendido como uma conseqncia ou um castigo de pecado (e por isso, por exemplo, J ficou sozinho ao no entender assim). Com o estabelecimento da lei, Deus deixou taxativo: se o povo obedecer, vir a bno; se desobedecer, vir o castigo. Essa mentalidade est claramente aplicada vida pessoal, por exemplo quando os discpulos perguntaram a Jesus sobre o cego de nascena: quem foi que pecou para que ele nascesse cego? ele ou seus pais? (Jo 9.2) Era uma questo difcil, que remetia a perguntar quem deveria estar sofrendo mais: o prprio cego, ou os pais de um filho cego (os leitores que so pais ou mes entendero isso). A pergunta s conseguia enxergar essas duas possibilidades. A resposta de Jesus abre uma terceira, a sada de cima: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que nele se manifestem as obras de Deus. Enquanto aprendia a histria na Escola Dominical, sempre pensava em uma exceo pontual, ou seja, este homem ficou cego para que Jesus o encontrasse e o curasse milagrosamente. Mas agora posso ver nesse acontecido tambm um padro mais amplo, que talvez possa nos ensinar uma nova atitude perante o sofrimento. triste ver indivduos e tambm igrejas ficarem patinando na maturidade de f, porque toda vez que aparece alguma dificuldade, em vez de encarar a possibilidade de uma nova realidade (por exemplo, a diminuio das receitas ou do salrio), acabam tentando se apegar ao passado, tentando recuperar a bno de Deus perdida por causa de nosso pecado, e a nada se aproveita da situao. Por qu? Por causa da dificuldade em crer que o sofrimento poderia no ser uma conseqncia de pecado, mas sim algo enviado por Deus. Poderia tambm ser conseqncia de algo criado por ns mesmos, mas no exatamente um pecado que estivesse sendo castigado, onde Deus estivesse pesando a mo. O apstolo Paulo dedica dois trechos de sua carta aos Romanos ao sofrimento do cristo, e a ordem em que ele trata dessa questo muito reveladora. Os trechos esto em Romanos 5 e em Romanos 8. Comecemos com o captulo 5: Justificados, pois, pela f, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem obtivemos tambm nosso acesso pela f a esta graa, na qual estamos firmes, e gloriamo-nos na esperana da glria de Deus. E no somente isso, mas tambm gloriamo-nos nas tribulaes... (vs. 1-3). Foi s
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depois de muito bem assentada a justificao pela f, base da paz com Deus, que Paulo pde mencionar as tribulaes, nossos sofrimentos nesta vida. Para assentar a base da paz Paulo segue praticamente o mesmo caminho que Joo em sua carta: ele gasta 3 longos captulos, recheados de citaes bblicas do AT, para tentar convencer aos cristos vindos do judasmo que eles eram to pecadores quanto os pagos. Por exemplo: Rm 2.1 pois tu que julgas, praticas o mesmo; no h justo nem sequer um (3.10); todos pecaram e destitudos esto da glria de Deus (3.23). Assentado o fundamento da pecaminosidade universal, Paulo segue com o seu argumento principal, o fundamento de que a vida com Deus regida unicamente pela f no sacrifcio de Jesus (Rm 1.17: o justo viver da f; Rm 3. 28: Conclumos pois que o homem justificado pela f sem as obras da lei), e gasta nisso o captulo 4 inteiro. Este captulo concludo com a morte e a ressurreio de Jesus, como a base indestrutvel para nossa justificao. A vem a concluso lgica de 5.1: J que somos justificados por crer (e no pelo fazer), tenhamos paz com Deus, o que quer dizer tambm que Deus est em paz com ns. O problema do nosso pecado foi resolvido. Voc cr nisso? Pois tem mais: alegre-se, a participao na glria de Deus s uma questo de tempo: basta esperar. E tem mais ainda: alegre-se tambm quando lhe vem algum sofrimento (Paulo fala essa seqncia lgica com uma naturalidade impressionante...). O fato que, sem ter a paz com Deus bem firmada, qualquer sofrimento que viesse eu correria de volta velha aliana, ficaria desesperado, procurando descobrir onde foi que eu pequei, procurando o que que eu posso fazer para reverter essa situao, topando fazer qualquer coisa para me livrar do problema. s vezes fazemos isso e empacamos de tal forma que Deus acaba precisando nos socorrer e aliviar o sofrimento, porque no vamos aprender mais nada - voltamos a ter medo dEle como na velha aliana. uma pena, porque no experimentamos a continuao do processo (continuando o trecho de Romanos 5): ...gloriemo-nos nas tribulaes; sabendo que a tribulao produz a perseverana, e a perseverana a experincia, e a experincia a esperana; e a esperana no desaponta, porquanto o amor de Deus est derramado em nossos coraes pelo Esprito Santo que nos foi dado.(Rm 5.3-5)

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Eu tenho dificuldade em entender a primeira etapa da produo, a tribulao que produz a perseverana. Quem me ajudou e ensinou foi um irm amiga de Porto Alegre, com quem conversei sobre esse trecho num feriado de Ano Novo que passvamos juntos com nossos familiares: ela lutava contra o cncer j fazia um ano, e os prognsticos no eram bons; por outro lado, a sombra da morte mudava radicalmente a percepo da vida, especialmente da famlia. A frase de Paulo (a tribulao produz perseverana) ensina que o sofrimento nos d vontade de continuar, desperta foras para resistir, para agentar firme, e eu no conseguia ver como isso acontecia claramente. Ela me contou que a princpio no queria saber de quimioterapia, radioterapia e desse sofrido tratamento. Mas o mal estar foi aumentando, de modo que ela no teve outro jeito, precisou voltar ao mdico, aceitou submeter-se ao tratamento, e... melhorou! Essa melhora lhe deu pelo menos mais um ano e meio cheio de vida intensamente aproveitada, e de experincias marcantes com Deus. Esse bom aproveitamento foi possvel porque a base da paz com Deus permaneceu: ela sabia que a dor no era castigo de Deus, mas antes um tratamento especial, que permitia a ela e famlia aprofundarem vrias coisas na vida, a comear pelos relacionamentos com Deus e entre eles prprios. E foi exatamente isso que aconteceu, gerando frutos de amor, que duram para alm da sua morte, ocorrida 1 ano e meio depois daquela conversa. Voltando a Romanos 5: da perseverana em diante, a seqncia me mais fcil de compreender: quem persevera, quem agenta, acaba tendo experincias com Deus (e quem de ns no quer ter experincias com Deus, no mesmo?). Essas experincias nos fazem ter mais esperana: j que constatamos novamente a mo de Deus nos ajudando, sabemos que no seremos abandonados, podemos esperar mais ajudas, mais presena e bnos dEle. A seqncia daqui novamente fica mais complexa, e ainda mais bonita: Paulo ensina que essa esperana no nos deixar frustrados (no desaponta), porque o Esprito Santo tem derramado amor em nossos coraes. A segue a explicar a fonte desse amor, do mesmo modo que Joo fez: um justo morreu por ns pecadores, e isso prova que Deus ama pecadores como eu e voc (Rm 5.8). Resumindo, uma vez que acreditamos que Deus est em paz com ns (por causa da morte e da ressurreio de Jesus Cristo), ento podemos aceitar melhor os sofrimentos que esse Deus amoroso nos manda (e tambm as conse-

qncias de nossas burradas que Deus permite nos acontecerem). Mais do que aceitar, Paulo ensina que esses sofrimentos so motivo de alegria, mais ou menos como uma ostra deveria se alegrar quando recebe um gro de areia a machucar suas membranas: ela sabe que disso sair uma prola muito bonita e preciosa. E qual a nossa prola? o amor de Deus dentro de nossos coraes, num processo de produo conduzido pelo Esprito Santo. Com esse amor enchendo a nossa vida, passamos de instrumentos banais, como um prego dentro de um saco de 1.000 pregos, para instrumentos preciosos como o prego que sustenta no poste notcias especiais (e isso sem deixarmos de ser pecadores!). Como por exemplo, a notcia de que a guerra terminou entre os homens e Deus; ns perdemos, Deus ganhou - apesar de termos matado o seu Filho e, diferentemente do que temamos, essa nossa derrota foi a melhor coisa que poderia nos ter acontecido. No uma notcia espetacular? Voc se lembra, conforme I Joo 4, que ns no temos amor em ns mesmos para dar? Pois quando Deus nos deixa passar por um sofrimento, ele est investindo em ns, nos fazendo pessoas mais amorosas, semelhana de seu Filho. No tem nada a ver com o castigo pelo pecado, com sua ira contra o pecado. Por isso Paulo continua: Logo muito mais, sendo agora justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se ns, quando ramos inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando j reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E no somente isso, mas tambm nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora temos recebido a reconciliao. (5.9-11) Em Romanos 8 a argumentao semelhante: a paz est estabelecida porque por Cristo Jesus, a lei do Esprito e da vida j nos livrou da lei que, por causa de nosso pecado, nos condenava morte (7.29 a 8.8) Esse Esprito, mansa e insistentemente convence nosso ntimo de que no somos mais servos que precisam temer, mas sim filhos amados de Deus (8.9-16). E Deus jamais abandona seus filhos: eles herdaro a glria juntamente com Cristo, e atualmente herdam os sofrimentos de Cristo. Nesse processo so acompanhados e auxiliados maravilhosamente pelo Esprito Santo (8.17-28). Esse processo to maravilhoso, to fantstico, que Paulo se pe a elogiar as maravilhas
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do amor de Deus que nos sustenta neste mundo cruel. E a vemos claramente do que Paulo est falando: esse amor de Deus nos faz mais que vencedores em relao a tribulao, angstia, perseguio, fome, falta de roupas, perigo, armas, morte, vida, anjos, principados, presente, futuro, altura, profundidade ou ainda qualquer outra criatura (8.29-39). Ainda temos muito a aprender sobre esse amor de Deus em sua nova aliana conosco, que nos carrega por situaes s vezes bem difceis, muitas delas dentro da prpria igreja. Um consolo que esse um aprendizado que vale muito a pena, e produz frutos eternos - o amor jamais acabar. 7 A MUDANA DE ALIANA Se as ms e as boas notcias foram convincentes para voc, a pergunta agora seria: o que podemos fazer? Como andar na nova aliana, em paz com Deus, e aprender a confiar somente no que Jesus fez e no no que eu fao, fiz ou farei? (isso tudo para quem j crente em Jesus h muito tempo...) Felizmente temos um modelo de como foi grande esse mesmo processo no apstolo Paulo, que ele descreve aos seus queridos irmos em Filipos: A circunciso somos ns, que servimos a Deus em esprito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e no confiamos na carne. Se bem que poderia at confiar na carne: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus... quanto justia que h na lei, fui irrepreensvel. Mas o que para mim era lucro passei a consider-lo como perda por amor de Cristo... pela excelncia do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como refugo, para que possa ganhar a Cristo, e seja achado nele, no tendo como minha justia a que vem da lei, mas que vem pela f em Cristo, a saber, a justia que vem de Deus pela f; para conhec-lo, e o poder da sua ressurreio e a participao dos seus sofrimentos, conformando-me a ele na sua morte, para ver se de algum modo posso chegar ressurreio dentre os mortos. No que j a tenha alcanado, ou que seja perfeito; mas vou prosseguindo... esquecendo-me das coisas que atrs ficam, e avanando para as que esto adiante (Fp 3.4-13)
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Nesse trecho h mais riqueza do que vamos explorar agora, mas exatamente dessa transio, da velha para a nova aliana, que estamos falando. O que seria considerado uma vantagem minha, como meu bom comportamento - o fato de, por exemplo, eu no ter roubado, no ter adulterado, no ter feito nenhum pecado escandaloso - agora passou a ser visto como uma perigosa armadilha, que poderia me prejudicar ao tentar conhecer a Cristo mais de perto. Por qu? Ter sido um erro evitar esses pecados, estvamos todos enganados? No. Os mandamentos de Deus so santos, justos e bons. Mas a minha obedincia, que na verdade era bastante limitada, pode me fazer pensar que eu no sou um pecador to grande assim, e isso me tiraria, em meu corao, da posio de publicano e me levaria para a posio de fariseu (ou do filho prdigo para a do irmo mais velho). Por isso Paulo precisou aprender que toda aquela vida exemplar era uma perda, porque o afastava de poder amar a Cristo. No me entenda errado, por favor, no h aqui nenhuma recomendao para viver vida torta. O que h uma percepo de que aquela vida reta tambm no leva ningum at a porta da f em Jesus, o Mdico que veio tratar de doentes. Para receber os cuidados amorosos desse mdico eu preciso saber que eu tambm sou um doente, um pecador de carteirinha, que precisa e sempre precisar de um Salvador. A nosso favor est o fato de que isso a mais pura verdade: basta olhar para nosso corao mais do que para nossos atos aparentes, e veremos que somos to pecadores quanto o maior dos corruptos e malfeitores. Ento, aceitando a paz com Deus via morte de Jesus, entramos na escola da participao dos seus sofrimentos, uma espcie de morte em vida, para avanarmos em algo absolutamente fantstico: a sua ressurreio. possvel que isso tudo esteja lhe parecendo bom demais para ser verdade, e que voc esteja sentindo dificuldades para crer em tanta boa nova. Ou talvez sua alma ainda esteja emaranhada em leis e princpios que sempre lhe deram segurana, e agora o convite para abandon-las e navegar por guas novas inspire muito medo. Em minha prpria vida percebo que levei vrios anos para revisar minhas convices acerca de Deus, e fui apreendendo a crer em Sua graa e verdade aos poucos. Existem vrios argumentos que podem ajudar a algum que estiver se debatendo nessa dvida cruel. Eu ainda pretendo

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apresent-los e combater esse bom combate, possivelmente em outro livro, e certamente no sou o nico a faz-lo: o evangelho de Cristo no propriedade exclusiva de ningum, apenas de Deus, que por sinal resolveu reparti-lo conosco. Mas quero deixar uma recomendao, que muito tem me ajudado nos ltimos anos: Lembre-se de que Deus nos apresentado por Jesus preferencialmente como o Pai. Por exemplo, quando Jesus ensina seus discpulos a orar (o Pai Nosso), e tambm quando Ele prprio ora, como em Joo 17. Esse sentimento de a gente ser filho/a de Deus a fora motriz da nova aliana celebrada em Jesus. Uma forma de nos aprofundarmos nisso, que com certeza foi assim planejada por Deus, atravs de nosso contato com nossos pequeninos. Por isso eu sugiro que voc trate de suas dvidas (se as houver) observando como a relao entre a me e/ou pai e seu filho ou filha pequenino. Se voc tiver filhos pequenos por agora, lembre-se de que voc est na posio de Deus em relao a eles, assim como Deus est na posio de seu pai/me do Cu. No tendo filhos, observe sobrinhos, netos, crianas em instituies, e lembre-se: o mesmo amor, ternura, cuidado, interesse, que voc sentir, Deus sente por voc tambm (e de forma mais perfeita). Foi esta forma de relacionamento que Deus escolheu. Como disse Jesus: No temas, pequeno rebanho; pois a vosso Pai agradou dar-vos o Reino (Lc 12.32). Ou na explicao de Paulo: vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo de lei, para resgatar os que estavam debaixo de lei, a fim de recebermos a adoo de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos coraes o Esprito de seu Filho, que clama: Aba, Pai [a forma de uma criana chamar seu pai]. Portanto, j no s mais servo, mas filho; e se s filho, s tambm herdeiro por Deus. (Gl. 4.4-7)

8. A LIBERDADE Aquele que atenta bem para a lei perfeita, a da liberdade, e nela persevera, no sendo ouvinte esquecido, mas executor da obra, este ser bem-aventurado no que fizer. Tiago 1.25. De Tiago esperaramos exortaes para a prtica de boas obras (e de certa forma ele as tem). Mas como que provando a inspirao divina das Escrituras, neste trecho, enquanto explica as vantagens do ouvir sobre o falar, e do fazer sobre o ouvir, Tiago nos revela uma linda verdade, por ele chamada de a lei perfeita. Essa perfeio nos ajuda a entender as diferenas entre os dois modos de vida que abordamos aqui, e que tanto complicam nossa vida nas igrejas. Lembra que no diagnstico da situao da igreja observamos a supremacia do dever? Com isso queremos dizer que a vida do cristo em nossa igreja est quase totalmente orientada por obrigaes. Dizemos que o crente deve ir igreja, que o crente deve dar o dzimo, deve evangelizar, deve ler a Bblia, tem que orar, tem que jejuar, tem que se comportar, tem que amar a Deus, etc., no muito diferente dos judeus no tempo dos fariseus. A vem Jesus, d sua vida pelos nossos no-fazeres, e inaugura uma nova aliana, que no mais se baseia no dever e nas obrigaes de lei. Ele traz uma forma de sermos felizes (bem-aventurados) no que fizermos, sem os pesos de lei e das obrigaes. Isso liberdade, algo esquisito com que no sabemos lidar muito bem. E Tiago nos convida a perseverar nessa lei da liberdade, a insistir em mant-la, a voltar para ela sempre que percebermos que estamos vivendo guiados pelo dever e nos afastando da bem-aventurana. Paulo tambm fala bastante de vivermos na liberdade que Cristo conquistou para ns, e ele levanta a questo que 9 entre 9 pastores tambm levantam: vamos usar essa liberdade para pecar mais, para dar ocasio carne? Para uma liberdade que se preze, essa uma possibilidade real. Por isso que Paulo diz: Graas a Deus que, embora tendo sido servos do pecado, obedecestes de corao forma de doutrina a que fostes entregues; e libertos do pecado, fostes feitos servos da justia. Falo como homem, por causa da fraqueza da vossa carne. Pois assim como apresentastes os vossos membros como servos da impureza e da iniqidade para iniqidade, assim apresentai agora os vossos membros como servos da justia para santificao. (Rm 6.17-19) Ou
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 Ver tambm e-book Aba, Pai (do autor), disponvel em www.cppc.org.br

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seja, em vez da obrigao, entra o de corao e a voluntariedade de apresentar-se. So movimentos que vm de dentro para fora, enquanto que a lei imposta de fora para dentro. O resultado externo bastante parecido: crentes do dever e crentes da liberdade provavelmente se comportaro de forma semelhante: nenhum vai se desintegrar em vcios e drogas, nenhum ser infiel em seus contratos e relacionamentos, etc. Mas o crente da liberdade ser muito mais feliz, porque viver em paz: ele sabe que nem sempre acerta, mas que Deus j proveu para seus erros e pecados. Quando ele estiver em dvida sobre o que fazer, ele saber que tem liberdade para decidir, e novamente caso erre, no ser o fim do mundo. Deus poder aproveitar os erros do crente livre para ensinar preciosa sabedoria. J quem se guia por leis, princpios e deveres pensa que no pode errar, e no conseguir aprender nada. Deve ser por isso que Paulo falou que, pela morte de Jesus foi possibilitado que a justa exigncia da lei se cumprisse em ns, que no andamos segundo a carne, mas segundo o Esprito. E logo depois acrescenta: e os que esto na carne no podem agradar a Deus. (Rm 8.4,8) no terreno do Esprito Santo que a liberdade acontece, enquanto que o dever de obedincia atua no terreno da carne. Em vez de tentar agradar a Deus pelo que fazemos, ns, pelo Esprito aguardamos a esperana da justia que provm da f (Gl. 5.5). revelador que nossa igreja geralmente no perceba a relao entre o dever de obedincia (a lei) e as obras da carne, to claramente colocadas lado a lado em Glatas 5, como tambm no percebe a sua contraparte: a liberdade conquistada por Cristo que nos leva a andar pelo Esprito, o que produzir naturalmente aquele famoso fruto do Esprito de Gal. 5.22,23. Em vez disso, tentamos transformar os elementos do fruto do Esprito em novas leis, e passamos a pregar que o crente precisa ter amor, o crente deve ter gozo, o crente deve ter paz, longanimidade, bondade, etc.. Perdoem-nos essa grave falha. Nossos mestres tambm no aprenderam - e portanto no nos ensinaram - o que de fato est to claramente escrito. Mandar filhos amar seu pai e sua me um contra-senso. Esse relacionamento de amor foi carinhosamente construdo com amamentao, limpeza de fraldas, ensinar a andar, levar ao parquinho para brincar, levar e buscar da escola, providenciar comida e proteo. No h lei que consiga colher o que no foi
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plantado, e no o dever que faz a planta produzir fruto. S quem livre consegue amar. por isso que Paulo pode ensinar que toda a lei se cumpre numa s palavra: amars ao teu prximo como a ti mesmo. S os livres conseguiro faz-lo, e isso porque tm o Esprito em seus coraes, que o nico que sabe derramar amor em ns (lembre-se do lugar dos sofrimentos). assim, trabalhando em nosso ntimo junto com nosso esprito, que o Esprito Santo faz com que todos ns que recebemos a Cristo, que cremos em seu nome, sejamos transformados em filhos do Deus que amor. E isso cumpre a promessa da nova aliana registrada por Jeremias: Na mente lhes imprimirei as minhas leis, tambm no corao lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles sero o meu povo. No ensinar jamais cada um ao seu prximo, nem cada um ao seu irmo, dizendo: Conhece ao Senhor, porque todos me conhecero, desde o menor at ao maior deles, diz o Senhor. Pois perdoarei as suas iniqidades, e dos seus pecados jamais me lembrarei. (Jr 31.33-35) O fato de, 2.000 anos depois da efetivao dessa nova aliana, nossas igrejas continuarem a ensinar o conhecimento de Deus sob forma de dever e de estarmos continuando a apelar para leis, princpios e regras exteriores um sinal claro de que o esprito da nova aliana em Jesus est muito contaminado pela velha aliana da lei, e o ministrio do perdo e purificao dos pecados est perigosamente esquecido, num processo de miopia espiritual como o descrito em II Pe.1.9. Parecemos joes batistas fora de poca, procurando aplainar morros e vales, mas depois que o Salvador j veio. Ele veio, e comeou seus milagres transformando a gua da purificao em vinho de festa, um sinal que talvez ainda no tenhamos compreendido bem. Por ltimo, a relao entre liberdade e alegria. Em Filipenses 4.4,5 est escrito: Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, alegrai-vos. Seja a vossa moderao conhecida de todos os homens. Perto est o Senhor. Lembro que um colega de mestrado estava estudando esse versculo, e ele me disse que o significado da palavra traduzida como moderao era, literalmente, estar aqum e alm da lei. Ou seja, ter a liberdade de, conforme a situao, ser mais rigoroso do que a lei exige e, em outra situao, ser mais flexvel do que a lei permite. Isso se parece muito com o que Paulo fazia, ao ser rigidamente judeu com

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os judeus rgidos, e tambm para poder ser liberal entre os liberais, para por todos os meios tentar salvar alguns (pois ambos, rgidos e liberais, esto perdidos sem o Salvador). S com essa liberdade podemos deixar de ser sisudos e permitir, por exemplo, que crianas sejam crianas e brinquem e faam barulho (e assim se aproximem de Jesus), mesmo enquanto ns adultos estamos compenetrados tentando prestar ateno numa pregao (provavelmente foi nesse tipo de situao que Jesus disse deixai vir a mim as criancinhas). Foi essa liberdade no Esprito que fez Jesus poder circular nas festas de publicanos e gentios pecadores, e tambm nas casas dos fariseus, e fazer vinho para animar a festa de casamento. Quem de nossas igrejas teria essa moderao, essa liberdade em relao lei? S quem viver pela f... Apesar de, pessoalmente, eu ser mais inibido e reservado que a maioria das pessoas, e portanto no ser nenhum exemplo expressivo de alegria no dia a dia, posso testemunhar que a alegria de me saber em paz com Deus fez destes ltimos anos tempos muito mais felizes que os primeiros. Esta minha orao tambm para voc. 9. A SANTA CEIA I Corntios 11 O Senhor Jesus instituiu a Ceia como um momento sagrado, uma preciosssima ferramenta, vital para a sade da comunidade dos seus discpulos, a sua Igreja. Nessa Ceia, tambm chamada de santa ceia ou de eucaristia, est retratado o cerne do evangelho, o fundamento de todas essas boas notcias que temos descrito aqui. A Ceia do Senhor , ento, um momento de contato com o que realmente importa, com o que no pode ser deixado em segundo plano nem esquecido, com a maior de todas as bnos que Deus nos deu. Mais uma vez, porm, vemos com tristeza que exatamente aquilo que era para ser canal de bno e expresso maior do amor de Deus se converteu em instrumento de medo, temor e controle nas mos da comunidade humana e, ainda pior, na mo de uma imagem de um Deus terrvel e castigador. Em vez da reunio da Ceia celebrar nossa salvao, para muitos irmos e irms, o dia da Ceia dia de dvidas, tormentos e resignao. Certamente no foi essa a inteno do nosso Senhor.

A culpa pelo medo tambm no pode ser simplesmente creditada aos pastores, embora eles tm sido o principal meio de transmisso do medo. O problema est na interpretao errada de uma passagem das escrituras, mais especificamente I Corntios 11.27-29: Por isso, aquele que comer o po ou beber o clice do Senhor indignamente, ser ru do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do po e beba do clice; pois quem come e bebe, sem discernir o corpo, come e bebe juzo para si. Primeiramente observe que nas narrativas dos evangelhos no aparece nenhuma advertncia desse tipo. Pelo contrrio, Judas ainda est presente e no excludo da celebrao. Por isso muito importante entendermos o que est acontecendo com os corntios, para eles receberem advertncias to fortes. O Modo Digno Na celebrao na igreja, geralmente comeamos a leitura no verso 23 (porque eu recebi do Senhor o que tambm vos entreguei:...). Para entendermos o que Paulo est dizendo ao falar em participar indignamente, deveramos comear a leitura um pouquinho antes, no verso 17: Nisto, porm, que vos prescrevo, no vos louvo, porquanto vos ajuntais no para melhor, e sim para pior. Porque antes de tudo estou informado haver divises entre vs quando vos reunis na igreja; e eu em parte o creio. Porque at mesmo importa que haja partidos entre vs, para que tambm os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio. Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, no a ceia do Senhor que comeis. Porque, ao comerdes, cada um toma antecipadamente a sua prpria ceia; e h quem tenha fome, ao passo que h tambm quem se embriague. No tendes porventura casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus, e envergonhais os que nada tm? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto certamente no vos louvo. Porque eu recebi do Senhor... disso que Paulo est falando quando, 5 versos adiante, condena quem comer a Ceia indignamente. Note que Paulo usa um advrbio, no um adjetivo: ele fala indignamente, no indigno. Advrbios se referem aos verbos, a uma ao. Adjetivos se referem aos sujeitos, s pessoas. Com isso quero dizer que Paulo no condena qualquer que comer estando indigno, como tem
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sido entendido nas igrejas. Ele se refere ao modo de celebrar, ao jeito como os corntios estavam fazendo, cada um por si e sem se importar com os outros. A Ceia na igreja primitiva era parte de um jantar, assim como a Ceia original, da Pscoa, que Jesus celebrou com seus discpulos. Talvez por medo de repetir os erros dos Corntios, as igrejas com o tempo acabaram eliminando o jantar, e fazendo somente a cerimnia do po e do vinho. O problema em Corinto era que, assim como em nossas igrejas hoje, havia diferenas sociais entre os membros (os que nada tm). Ento o jantar era marcado, por exemplo, para as 20 horas, e a maioria dos membros chegava na hora. Mas havia aqueles irmos que eram escravos, e que tinham primeiro de servir a seus senhores, servir-lhes o jantar, lavar a loua e arrumar a cozinha, e s ento os senhores permitiam que eles fossem Igreja. Quando estes chegavam (talvez l pelas 9 e meia ou 10 horas), j no havia mais comida nem bebida, e esses irmozinhos ento ficavam passando fome (e talvez ainda tivessem que ouvir um dirigente da igreja reclamar dos que no chegam na hora...). O clima era de fim de festa, com alguns mais exagerados tendo bebido vinho demais. Por isso Paulo, depois de ter dado a bronca e as advertncias, resume tudo nos versos 33 e 34: Assim, pois, irmos meus, quando vos reunis para comer, esperai uns pelos outros. Se algum tem fome, coma em casa, a fim de no vos reunirdes para juzo. Esse era o modo digno de celebrar a Ceia, e s isso. Em nenhuma parte h sugesto de algum decidir no participar da Ceia, ou de algum ser excludo da Ceia. A Bblia d as orientaes e sempre termina com o convite para participarmos, nunca para ficarmos de fora, como fazemos nas igrejas (examine-se a si mesmo, e assim coma).Esse o significado do Corpo de Cristo: todos os crentes juntos, ningum excludo da comunho. Refora esse sentido o fato de que, na Ceia original, Jesus acolheu at Judas, o traidor. O Significado Nessas instrues Paulo utiliza duas formas de descrever o problema: participar dos elementos da Ceia de modo indigno, e participar sem discernir o corpo. A soluo apontada a mesma: fazer um auto-exame antes de participar, julgar-se a si mesmo. So duas as coisas que Jesus quer que no esqueamos: o fato de que ele
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morreu em nosso lugar, para pagar os nossos pecados (este o meu corpo, que dado por vs), e o fato de que, com sua morte, Jesus fez comear a valer a nova aliana entre Deus e ns, um novo pacto, como se fosse um novo casamento (este clice a nova aliana no meu sangue). aquela aliana, profetizada em Jeremias 31.31, pela qual os pecados so finalmente perdoados e todos passamos a conhecer o Senhor. Por isso, algumas horas depois, no exato momento em que Jesus morre na cruz, o vu do templo se rasgou, deixando claro o fim da velha aliana, e que Deus no mais morava no templo em Jerusalm. Agora tudo e todos esto centralizados no corpo de Cristo, o mesmo que Ele deu por ns. Portanto temos, sim, o que celebrar: fomos salvos pelo amor de Jesus. Mas essa celebrao no uma festa de aniversrio, ou uma comemorao de Copa do Mundo. Como diz o verso 26 de I Corntios 11, todas as vezes que comemos do po e bebemos do clice estamos anunciando a morte de Jesus. E isso vai ser assim at que ele volte para nos buscar. At l muito importante que no nos esqueamos disso: houve uma morte, Jesus precisou morrer para que ns pudssemos viver. Ento uma festa junto de um enterro, talvez parecido com o que vemos nos filmes americanos, onde aparece esse estranho costume de aproveitar o funeral de um parente para comer e beber com os familiares e amigos. verdade que ns sabemos que Jesus ressuscitou. Mas a Santa Ceia foi instituda para no nos esquecermos de que Jesus morreu, e de por que Ele morreu. Esse era o problema em Corinto: interessados no jantar e cada um em satisfazer a sua fome, divididos em grupos (situao em que geralmente achamos que o problema so os outros), eles j no estavam mais distinguindo que naquele momento o po era diferente do da noite anterior, e que o vinho no era uma simples bebida: eram o corpo e o sangue de Jesus, que morreu para nos dar vida, porque ns estamos mortos em nossos pecados. Os corntios estavam, por assim dizer, fazendo uma festana no velrio, pensando cada um em si e no seu grupinho, praticamente ignorando a morte de Jesus. S que a morte de Jesus o centro dessa cerimnia: ela est l representada, est por assim dizer acontecendo na Ceia, recriando aquela

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noite da quinta para a sexta-feira santa. Ento, em vez de participar como discpulos da Pscoa da morte que nos liberta, aquela festana de cada um por si da igreja se parecia mais com os judeus de Jerusalm que diante de Pilatos gritavam Crucifica-o! Crucifica-o! Eles devem ter sado satisfeitos com o resultado daquele julgamento, porque quando Pilatos lavou as mos dizendo que estava livre do sangue desse justo, o povo respondeu: caia seu sangue sobre ns e sobre nossos filhos. isso que descreve o verso 27 de I Corntios 11: De modo que qualquer que comer do po, ou beber do clice do Senhor indignamente [=de maneira inconveniente], ser culpado do corpo e do sangue do Senhor. E tambm os versos seguintes: Porque quem come e bebe, come e bebe para sua prpria condenao, se no discernir o corpo do Senhor. Por causa disto h entre vs muitos fracos e enfermos, e muitos que dormem. Em nossas igrejas geralmente no estamos fazendo a festana no velrio como os corntios. Alis, muito pelo contrrio: por no darmos ateno para saber quais os erros deles, e apenas darmos ateno para as correes receitadas por Paulo, nosso desvio foi para o lado oposto: temos estado cheios de medo de errar, e esse desvio acaba nos conduzindo ao mesmo tipo de erro: ficamos cada um extremamente preocupado consigo prprio, e por isso o significado do corpo e do sangue de Jesus tambm acaba sub-utilizado, prejudicado por nossos temores. Acabamos com a deliciosa comunho em torno da mesa, e ficamos como que inventando problemas para merecer as correes dadas aos Corntios. J vi muitas igrejas anexarem ao contexto da Ceia uma recomendao de Jesus dada sobre ofertas: se trouxeres tua oferta e ali te lembrares de que teu irmo tem alguma coisa contra ti, deixa no altar tua oferta e vai e te reconcilia primeiro com teu irmo. Esse texto deveria ser utilizado no momento dos dzimos e ofertas, no no momento de celebrar a Ceia do Senhor. L no seu lugar ele iria talvez diminuir as receitas da igreja, mas faria o bem de promover reconciliaes e aumentar as riquezas eternas. J na hora da Ceia, embora usado com boas intenes, ele serve para desviar a ateno do sacrifcio de Cristo, para focar em nossos problemas pessoais de conscincia. Move o clima do amor para um clima de medo, de filhos para escravos.

Por isso a soluo cada um parar para se examinar, julgar-se a si mesmo, antes de participar. Veja bem: no para se examinar para ver se voc pode ou no participar. Em nenhum momento, nem aqui nem nos evangelhos, se fala de deixar de tomar a Ceia. O que o texto diz examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do po e beba do clice (vs 28). Como isso? Se eu me examinar, o que vou encontrar? As boas obras que fiz, a leitura diria da Bblia, o dzimo em dia, as ofensas devidamente desculpadas? No. Se eu me examinar, vou chegar na mesma situao de I Joo 1: se eu disser que no tenho pecado, estarei me enganando. Portanto a chamada para o exame, na nova aliana, serve exatamente ao propsito contrrio do que o regime do medo buscava: se ramos tentados a verificar se estamos zerados no campo do pecado, na nova aliana o oposto: o auto-exame vai me conscientizar de que sim, sou crente h 20 anos em Jesus, mas continuo pecador/a, continuo precisando de um Salvador que morreu por mim. Sim, sou lder na igreja, evanglico de destaque, mas eu mereo morrer, porque meu corao pecador; dependo de Jesus para ser salvo. Ento estaremos prontos para celebrar, com respeito, alegria e gratido, Aquele que deu sua vida por ns, e promoveu a reconciliao com Deus pelo seu sangue, pagando e removendo todos os nossos pecados. Realmente nunca devemos esquecer de Jesus, e para isso que a Ceia serve. E Deus to bom que, conforme os versos 31 e 32, at aqueles irmos que celebram de modo totalmente errado, indignamente, so disciplinados pelo Senhor para no sermos condenados com o mundo. Estamos na nova aliana, em que somos filhos e no mais escravos. Como todo filho, receberemos a correo que for necessria, mas no somos expulsos de volta para o mundo. E, provavelmente desejando tirar qualquer tom mais dramtico, Paulo finaliza pedindo que apenas esperem uns pelos outrosquando se reunirem para o jantar da Ceia (v. 33). Ento, meu irmo, minha irm, examine-se, para nunca se esquecer de que voc pecador, e participe da Ceia com gratido: foi por pecadores como voc que Jesus morreu. No h o que temer: h o que lembrar, at que Ele volte: Jesus morreu por mim, e tambm por meus irmos e irms (que so to pecadores quanto eu). Somos membros desse Corpo, filhos e filhas de Deus e membros uns dos outros, por causa de Jesus. No nos esqueamos dele.
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