2a Edição Ilegal Prazer

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Konstantinos Kavfis

ANTES QUE O TEMPO


OS MUDASSE...
45 poemas de (i)legal prazer

Konstantinos Kavfis

Konstantinos Kavfis

ANTES QUE O TEMPO


OS MUDASSE...
45 poemas de (i)legal prazer
2. edio

Traduo de
Fernanda Lima e Luciana Pvoa

Horus Consultoria Educacional


2011

Antes que o tempo os mudasse...


45 poemas de ( i) legal prazer
_________________________________________________________
_____
Kavfis, Konstantinos. Antes que o tempo os mudasse... 45
poemas de
(i)legal prazer. 2a. Edio.

Traduo e estudo crtico:

Fernanda
Lima e Luciana Pvoa. Rio

de Janeiro: Horus Consultoria

Educacional, 2011.
ISBN 978-85-6025018-9
122p.
I. Poesia. II.Literatura Grega Moderna. III. Literatura
Homoertica
_________________________________________________________
_____
Capa: Criao a partir de gravura de Jackson Pollock

Konstantinos Kavfis

SUMRIO
Apresentao
9
De desejos e silncios: 45 poemas de (i)legal prazer
Fernanda
11

Lima

Luciana

Pvoa

Poemas Cannicos
entrada do caf
25
A mesa ao lado
27
A vitrine de tabacaria
29
Antes que o tempo os mudasse
31
Ao prazer
33
Assim muito observei
35
Belas e brancas flores quo bem convinham
37
Candelabro
41
Compreenso
43

Desde as nove
45
Desejos
47
Dias de 1903
49
Dias de 1909, 1910, 1911
51
Distante
53
Dois jovens entre 23 e 24 anos
55
Em desespero
59
Em um livro antigo
61
Incios
63
Jura
65
Lembra, corpo
67
Na rua
69
No vilarejo simplrio
71
O espelho da entrada
73

Konstantinos Kavfis

O sol da tarde
75
O 25. ano de sua vida
77
Passagem
79
Quando surgirem
81
Raramente
83
Retorna
85
Retrato de um jovem aos vinte e trs anos feito
por seu amigo da mesma idade, artista amador
87
Um de seus deuses
89
Um jovem da arte da palavra aos seus 24 anos
91
Poemas Escondidos
Ao ouvir o amor
95
Assim
97
Dezembro de 1903
99

E me recostei e deitei em suas camas


101
Escondidos
103
Janeiro de 1904
105
Meia hora
107
Nas escadas
109
O ombro enfaixado
111
Setembro de 1903
113
Poemas Inacabados
Cores
117
Fotografia
119
Gnese do poema
121

Konstantinos Kavfis

10

Konstantinos Kavfis

APRESENTAO
O honroso convite das autoras Fernanda de
Lemos Lima e Luciana Pvoa para apresentar este livro
propiciou-nos
o
prazer
de,
uma
vez
mais,
mergulharmos no mar do chamado "Bero da
civilizao".
No se pode negar que a lngua e a literatura
gregas constituem uma inesgotvel fonte de riquezas
culturais, pois o que seria da cultura ocidental sem a
poesia de Homero, o teatro de Sfocles, a filosofia de
Scrates, dentre tantas outras formas de pensar e de
amar - como o amor grego - com as quais os gregos nos
aquinhoaram, e cujos ecos ressoam at os dias atuais.
A leitura atenta de "Antes que o tempo os
mudasse...45 poemas de (i)legal prazer", fielmente
traduzidos do grego, permite-nos conhecer a "poesis"
de Konstantinos Kavfis em sua forma autntica, sem
as freqentes distores das tradues que, muitas
vezes, se afastam do texto original.
Alm disso, a linguagem, embora simples, porm
pontual, empregada pelas tradutoras, nos envolve
numa atmosfera de amor, saudade, erotismo e,
sobretudo, sensualidade, caractersticas marcantes da
obra do poeta alexandrino.
Conclumos, pois, augurando, guisa dos
clssicos, que este livro no s encontre a merecida
acolhida junto aos amantes de lngua e de literatura,
mas tambm desperte em todos, especialistas ou no,
o desejo de sentir o aroma de seduo e erotismo que
exala de toda a obra, seduzindo-os a desfrutar de um
"(i)legal prazer".

11

SOBRE AS TRADUTORAS
Fernanda de Lemos Lima doutora em Cincia
da Literatura pela UFRJ, tendo estagiado na University
of Minnesota. Atua como professora de Lngua e
literatura gregas na UERJ. Sua produo acadmica
centra-se no estudo da Grcia moderna e da Alexandria
do Egito, mais especificamente, no estudo da poesia de
Konstantinos Kavfis. Publicou Entre quartos, ruas e
cafs: imagem da poesia homoertica de K. Kavfis;
participou da organizao e traduo da coletnea
Ertica Graeca, alm de ter traduzido com Luciana
Povoa Arte Potica, de Kavfis.
Luciana Pvoa mestranda da Ps-Graduao
em Cincia da Literatura da UFRJ. escritora de contos
e crnicas, que se encontram em seu blog e em seu
livro
Cutculas
em
Contrafluxo.
Dentre
seus
textos,merecem destaque Tributo s baratas,
Devaneios sobre um outrem acadmico, Vai ser
gauche na vida e a vermelhido dos cravos que
coibiu a plvora. Alm disso, traduziu com Fernanda
Lima, Arte Potica, de Kavfis.

Tania Martins Santos

12

Konstantinos Kavfis

De desejos e silncios: 45 poemas de (i)legal


prazer

Esttico, sensvel, sensorial, sensual: so esses


quatro adjetivos que Konstantinos Kavfis, poeta de
lngua grega radicado em Alexandria, no Egito, carrega
na tinta expressa das linhas engavetadas. um
voltado para um homoerotismo particular
que abriga pinceladas de e , de belo e
prazer amalgamados por uma potica do desejo.
As cenas, os encontros e o entrelaamento de
corpos so preenchidos por pura plasticidade, ponto em
que a compaixo pelo ego torna-se uma compaixo
pelo ser homoertico-universal. Este, por sua vez, vive
sob a satisfao adiada e o desejo reprimido. E a
tenso entre a vida consciente do ego e a represso da
busca pelo prazer preliminar o poder da forma
artstica que transpira nas linhas e silncios kavafianos
modelando e plasmando a essncia de um amor entre
iguais fugitivo das garras repressoras-centrfugas que
molda a clave dos constituintes da criao kavafiana,
como perceptvel no poema Muros: No ouvi voz de
pedreiro, um rudo que fora. Isolaram-me do mundo
sem que eu percebesse.
O ambiente retratado pelo poeta o oposto de
um mundo de plenitude, sem faltas ou excluses de
qualquer tipo: existe um hiato, um abismo hiante entre
significante e significado, entre o eu e o tu. A
aposiopese, muitas vezes utilizada por Kavfis, carrega
uma distncia estruturada ad infinitum de um
significante para outro. a partir da que se estabelece
a ponte com o desejo, e, para que isso acontea, se faz

13

necessrio um processo de omisso


e
deslize
constantes da significao. Sem isso,
a
preservao
saudvel
do
eu-potico
seria
consideravelmente dificultada.
Quando surgirem
Poeta, empenha-te para que as retenha
enquanto so poucas as que se estancam
as quimeras do erotismo teu.
Incute-as, levemente encobertas, nos versos teu.
Poeta, avigora-te para que as retenha,
quando surgirem em tua mente,
noite ou ao resplandecer do meio-dia.

Pode-se dizer que a omisso e o deslize do


significante, a revelao e o ocultamento so uma
espcie de parapraxis forada, lapsos lingsticos
propositalmente incitados. O trabalho sobre o gnero
do ser desejado um exemplo: o ocultamento de
gneros e nomes fundamental para que o deslize das
epifanias seja concretizado.
Com isso, o processo da tessitura ato textual
deve ser despido de sua prpria composio para que
haja estmulo de reflexo crtica sobre as maneiras
particulares pelas quais elas construram a realidade
cotidiana de Kavfis e de seus amantes desejos
poticos de forma a reconhecer que tudo aquilo
poderia ter acontecido de modo distinto. Assim, h uma
demanda de atos e suposies de muitos olhares
atentos para que o processo esttico possa ser
recepcionado de maneira adequada. E produtiva:
Mas para ns da Arte,
por um instante, habita a alma, e de fato
por curto tempo, engendramos o prazer
14

Konstantinos Kavfis

que fantasio como se fosse real

So esses olhares atentos os responsveis pela


particularidade do poeta em questo: as atividades
dos olhos kavafianos, assim como a das cmeras de
Hollywood, devem ser destacadas de modo que o
espectador, tanto das imagens quanto das entrelinhas,
no possa somente efetuar uma observao dos
objetos atravs da interferncia dessa operao, mas
sim deitar as suas sinapses refletivas e refletoras sobre
as lies de poesia e desejo que esses olhos
criptografados querem dizer:
Vitrine de Tabacaria
Perto da vitrine iluminada
de uma tabacaria pararam em meio a muitos outros.
Por acaso, seus olhares se encontraram
e o ilegal desejo das suas carnes
se revelou timidamente, hesitante.
Depois, alguns passos ansiosos pela calada
at que sorriram e trocaram acenos discretos.
E depois, na carruagem fechada...
O sensual aproximar de corpos;
as mos que se penetram, os lbios que se penetram.

Esses olhares refletem em linhas pontilhadas o


desejo na esfera (in)consciente do ser direcionado ao
Outro de uma forma nunca plenamente satisfatria, em
funo da impossibilidade de perceb-la: um ato
ou um fato, como preferirem momentneo. E
Kavfis tem plena conscincia desse carter to
intrnseco aos trinta e dois cromossomos, sejam eles
gregos ou no. Humanos, pois.

15

A partir das atividades dos olhares atentos na


poesia kavafiana, o indivduo em seu carter masculinohomoertico levado a fermentar sua exegese em
mbito amplo e restrito, geral e particular, tendo como
ncora a esttica epifnica e propositalmente omissa
de fugazes e (i)legais prazeres.
Talvez se possa conjecturar uma singela
semelhana estrutural de transpiraes poticas entre
Luis de Cames, poeta portugus do sculo XVI e
Konstantinos Kavfis, o polidor de versos alexandrino
de lngua grega moderna do sculo XIX: ambos
recorrem ao empirismo pessoal voltado ao prazer como
dnamo para a busca de conhecimento interior que
fomenta a chamada experincia hipottica. tempo de
pluralidade de verdades e de amores em sua esfera
carnal, epidrmica e sensria para que sejam
efetivados questionamentos, tentativas de resoluo de
dvidas que emergiram na mente humana.
A suspenso dos signos lingsticos, aquilo que a
obra no diz, pode ser to importante quanto o que ela
venha a expressar, e o que est margem, escondido
ou maquiado, ambivalente ou dicotmico pode
constituir o porto de entrada para a Tria do poeta. A
obra pode observar no s o que o texto realmente diz
ou o que pretende dizer -, mas tambm o seu
funcionamento, o seu modus operandi, as palavras que
no so ditas, que so retiradas com excepcional
freqncia, duplicaes e lapsos de linguagem a
criao do subtexto, do subliminar potico. Assim, em
cada simbologia do no-dito, Kavfis expressa a sua
trade epidrmica desejo, prazer e represso.
Por completo o ilegal prazer se deu e Rudo ou
som de pedreiros no ouvi outrora, de mundos
imperceptivelmente me excluram: a partir de trechos
como esses, percebe-se que existe algo fora do lugar,
16

Konstantinos Kavfis

fora de um centro voltado para uma espcie de


senso comum , e a expresso do desejo. Este s no
pode ser verificado porque somos colhidos por relaes
lingsticas, sexuais ou sociais, ou seja, em todos os
campos do Outro que geram esse desejo. H uma
censura
da
agressividade
burocrtico-comedida
impulsiva ou libidinosa, todavia aceitvel em funo da
forma, do jogo verbal e do textual
aquele que atua no processo de inspirao de linhas e
expirao de entrelinhas pelos poros da caneta: As
miserveis leis da sociedade (...) impediram-me de dar
luz e emoo aos que so como eu.
Uma mesa, uma cadeira, um quarto em um
apartamento: tentativas de recriar o ambiente em que
o poeta vivia na sua antiga residncia, que hoje abriga
o museu Kavfis, na Alexandria do Egito. Antes, o poeta
dividia o espao do sobrado com um prostbulo no
trreo, onde, algumas vezes, podia vislumbrar jovens
que a ele mais pareciam anjos em busca dos prazeres
da carne. Muito escreveu Kavfis sobre os prazeres do
amor proibido, sobre o desejo entre iguais, de modo
velado, na maioria das vezes, pois o tempo em que
viveu no permitia a visibilidade. Todavia, sua poesia
se construiu a partir de uma esttica da subverso, que
falava do proibido, reconhecia-o como tal e, ao mesmo
tempo, exaltava-o.
O pensamento sonha, disse o poeta. Sonho
simbologia camalenica, realizao dos desejos
inconscientes. E atravs da roupagem da iconografia
potica que o material expresso caso contrrio, a
objetividade impulsiva poderia ser chocante e
perturbadora a ponto de desligar o receptor da rea da
, transportando-o para o campo ativo da .
A
simbologia
precisa
ser
decifrada,
todavia
paulatinamente, em processos de metfora a
17

condensao de significados em conjunto e


metonmia deslocamento de um para o Outro,
transposies de realidades de um , de um eu, para
um , para um vs.
Um
possvel
enfraquecimento
da
ordem
simblica dado atravs da prpria linguagem do
semitico em Kavfis: no se trata de uma alternativa
estrutura de simbologias, lngua que poderia ser
utilizada no lugar de um , de um discurso prprio
um processo que ocorre dentro dos sistemas
convencionais de signos do autor, cujos limites so
possivelmente questionados e ultrapassados. Desse
modo, as dicotomias pr-estabelecidas no sistema
podem vir a ser desconstrudas: lcito e ilcito,
adequado e inadequado, meu e teu, sadio e insano,
obedincia e autoridade nas quais uma sociedade
baseia os seus princpios e seta, define os seus
parmetros.
Kavfis se auto-recria por meio de uma veleidade
expressiva de um polidor de versos mais forte: para
corpos covardes no foi feito prazer de tamanha
intensidade.
,
para
si
mesmo,
heroica
e
demasiadamente humano: por ter a humanidade
dionisaca, paradoxal em sua essncia, que se permite
auto-recriar em busca do verbo (soltar, desatar)
presente nos libambos do Externo. uma salvao por
meio de letras ordenadas com alto poder de persuaso
de si mesmo e do Outro apaixonante atravs do tom,
do ritmo e do material valorizados. Desse modo, passa
a haver a criao de um impulso no texto que ameaa
romper
com
os
significados
scio-metrificados
existentes na esfera homossocial.
assim que o poeta modela a chamada
Influncia Tranqilizadora de sua escrita, em que h um
combate ansiedade e glorificao da ordem, do
18

Konstantinos Kavfis

cotidiano vital e do prazer: Kavfis ,


amante e amado, mesmo em sua fantasia,
em seu simbolismo do inconsciente, no imaginrio (no
impresso) expresso por seus silncios.
Lembra, Corpo...
Corpo, lembra no s o quanto foste amado,
no s os leitos em que deitaste,
mas tambm os desejos que por ti
brilhavam nos olhos, claros,
e tremiam na voz e alguma
barreira do acaso os frustrou.
Agora que tudo j passado,
parece que queles desejos
tambm te entregaste - como brilhavam,
lembra, nos olhos que te fitavam;
como tremiam na voz, por ti, lembra, corpo.
Assim, a vida pessoal se torna matria potica,
elaborada, como faziam os Antigos, aqueles dos quais o
poeta moderno nos falar em vrios de seus poemas,
velados ou nem tanto, mas com muita sensualidade,
uma sensualidade misturada lembrana das
experincias erticas evocadas, sentidas por uma
memria que teima em se apagar:
Janeiro de 1904
Noites outonais de janeiro,
ao assentar-me e recriar com a mente
aqueles momentos e te encontrar,
e ouo as minhas derradeiras palavras e ouo as primeiras.
Desesperadas noites outonais de janeiro,

19

como escapa a viso e me deixa s.


Como foge e se desfaz clere
todas as rvores, ruas, casas, luzes.
Apaga-se e se dissipa a tua ertica beleza.

Interessa-nos perceber como o poeta arquiteta a


sua arte, trazendo um homoerotismo velado em muitos
de seus poemas, denunciado simbolicamente apenas
por uma gravata que comentada, por um termo
utilizado, pelo local em que se d a troca de olhares.
No obstante, outras peas nos do quadros completos,
evidentes e vivos de momentos de xtase, de tenso
ertica, de respeito entre amantes.
No processo de amante-amado kavafiano,
Mnemosne fundamental: o presente constitudo a
partir de lembranas de um passado sem o qual a sua
poesia perderia a essncia. O , o presente, est
intimamente ligado ao , ao passado, em busca
de reminiscncias vitais a serem transportadas ao
papel com ares, como o prprio autor menciona, de
ilcito: so os apegos inquietos, o , que so
servos do impulso da suspenso de vida momentnea
durante o processo do ilegal prazer:
Incios
Por completo o ilegal prazer
se deu. Do leito se levantam,
e com pressa vestem-se sem nada dizer.
Saem desunidos, escondidos, da casa; e seguem
assim inquietos pela rua, como se
temessem que algo neles denunciasse
em que tipo de cama h pouco deitaram-se.
Mas a vida do artista se enriquece
Amanh, no outro dia, anos mais tarde, sero escritos
20

Konstantinos Kavfis

os versos fortes que tiveram aqui seus incios.

As linhas e os silncios kavafianos so fonte de


hedonismo, tanto para quem emite a obra em gestos
de liberao por poros quanto para quem as
recepciona: uma esttica da recepo prazerosa
para as duas extremidades: quem escreve tambm se
auto-recepciona em doses homeopticas de desejo
poetizado todo temperado de arte. O , o
lmpido impera.
Essa dinmica do prazer e do desprazer
politicamente forado investigada devido represso
e ao adiamento do ato de satisfazer-se que um
(verbo + sufixo ), um poeta engajado em
desconstrues de atravs de uma relao entre
e pode tolerar, j que a sociedade na qual
ele inserido desvia o desejo de finalidades
consideradas moralmente aceitas para outras que o
menosprezam e degradam. O desejo entre iguais um
exemplo: o homoerotismo transviado para uma esfera
falsamente exposta como promscua e degradante, fora
do normal, um prazer ilcito, estril, perigoso, doente.
1

Passagem
As tmidas coisas que o estudante imaginou
esto abertamente reveladas diante
dele. E busca e vela
e deixa-se levar. E como
(para minha arte) verdade,
seu sangue, novo e quente,
o prazer que enleva. O seu corpo vence
a ilegal embriaguez ertica; e a juventude
1

LIMA, Fernanda Lemos de. Entre quartos, ruas e cafs: imagens da poesia
homoertica de K.P.Kavfis. Rio de Janeiro: Nonoar, 2007.

21

se rende sua brandura.


E, assim, um rapaz simples
torna-se digno de ser visto, de sua superioridade
o Mundo da Poesia um instante toma, este
o sensual menino, com seu sangue novo e quente.

Os poemas kavafianos (de)mo(n)stram todo o


lirismo presente no carter humano desse ,
fazendo com que os sentimentos expostos borbulhem
em nossa epiderme, ao degustar cada lio de poesia e
desejo de um ser dionisaco, em que corpo e mente se
entrelaam entre quartos, ruas e cafs palavras de
Fernanda Lima - , em um espao homossocial, pblico,
onde a intensidade do encontro de linhas pontilhadas
oculares e corporais pode e deve ser efetivada.
A moral de Kavfis reconhece, mas rechaa, as
noes de dever, de conscincia, de mrito e de erro
em nome da imponncia do prazer, da libido, do desejo
em relao ao Outro dificultado pelas normas. puro
empirismo de Eros, de carnes mareadas pela cobia,
banquetes de regozijo servidos por Afrodite.
Ao passar a retina afiada pelas linhas do poeta,
visvel que ele entregaria o prprio corao para ser
mordido, quereria sair dos limites de sua prpria vida
como suprema crueldade, como disse Clarice Lispector.
Os apesar de so introjetados nos constituintes de
do seu sentir, as sombras com as quais
conviveu passam a se mostrar, dizer que ocupam, sim,
um lugar no ksmos e demonstram que ningum se
perder no sistema vetorial de dar e receber prazer.
Mesmo que em um ato glorificado de iluminao do eu.
Kavfis ultrapassa a simbologia de um Zeus
hesidico, aquele que exerce um controle do homem
nos seus transbordamentos e paixes a poesia
22

Konstantinos Kavfis

kavafiana apresenta uma fico paiditica s avessas.


A covardia do corpo no pode ser tolerada. A mente
que usa antolhos, rdeas e cabrestos, igualmente. um
constante ato de , de prazer imperecvel
da inseparabilidade entre moral e destino, de um futuro
no qual o poeta confiou.
Mas a vida do artista se enriquece. Amanh, no outro
dia, anos mais tarde, sero escritos os versos fortes
que tiveram aqui seus incios. Que as alegrias e mirras
kavafianas possam sempre transcender o gozo dos
amores da rotina.

23

24

Konstantinos Kavfis

POEMAS CANNICOS

K E

25


.






, , .

ENTRADA DO CAF
26

Konstantinos Kavfis

A minha ateno por algo que se dizia perto de mim


foi desviada para a entrada do caf.
E avistei um belo corpo que parecia
como se de sua extrema percia o fizera Eros
moldando seus membros simtricos com graa;
mantendo a elevao da imagem esculpida;
moldando com comoo o rosto
e partindo, de suas mos um toque,
uma sensao na fronte, nos olhos e nos lbios deixou.

27

.
,
, .
.

.
.
, .
A , ,

.

28

Konstantinos Kavfis

A MESA AO LADO

Teria uns vinte e dois anos, no mximo.


E contudo tenho a certeza de que, h quase esse
mesmo
tempo atrs, deste mesmo corpo gozei.
No , definitivamente, uma excitao ertica.
E h pouco cheguei ao cassino;
no houve sequer tempo para beber em demasia.
Deste mesmo corpo gozei.
E se no me lembro onde no soa como
esquecimento
meu.
Ah! Sim, agora que sentou mesa ao lado
conheo cada movimento que executa e por debaixo da
roupa
nus os amados membros mais uma vez vejo.

29


, .
,

, .
,
, .
....

, .

30

Konstantinos Kavfis

A VITRINE DA TABACARIA

Perto da vitrine iluminada


de uma tabacaria pararam em meio a muitos outros.
Por acaso, seus olhares se encontraram
e o ilegal desejo das suas carnes
se revelou timidamente, hesitante.
Depois, alguns passos ansiosos pela calada
at que sorriram e trocaram acenos discretos.
E depois, na carruagem fechada...
O sensual aproximar de corpos;
as mos que se penetram, os lbios que se penetram.

31

X
.
.

.

,
.
, .
.

,

.

32

Konstantinos Kavfis

ANTES QUE O TEMPO OS MUDASSE


Lamentavam imenso
a sua separao.
No a desejavam;
era a circunstncia.
As vicissitudes da vida
fizeram com que um deles
partisse para longe
Nova Iorque ou Canad.
O amor, certamente,
no era o mesmo de
outrora;
a atrao enfraquecera
pouco a pouco,
a atrao diminura
em excesso.
A separao
no a desejavam eles.
Era a circunstncia.
Ou, talvez, artfice
Surgira o Destino
separando-os agora
antes que perecesse o seu sentimento, antes que o
tempo os mudasse:
um para o outro ser e
continuar sendo sempre um belo rapaz
de vinte e
quatro anos.

33



.
,
.

34

Konstantinos Kavfis

AO PRAZER
xtase e mirra de minha vida a memria das horas
em que encontrei e agarrei o prazer como o desejava.
xtase e mirra de minha vida em que abominei
cada gozo dos amores da rotina.

35


,
.
. . .

, ,
, , .
,
.... ,
, , ....

36

Konstantinos Kavfis

ASSIM MUITO OBSERVEI


A beleza assim muito observei,
ela que toda a minha viso.
Linhas do corpo, lbios vermelhos, membros de prazer,
Cabelos aos de esttuas gregas semelhantes:
um todo beleza, como se em desalinho estivessem,
a cair um pouco por sobre a branca fronte.
Rosto do amor, como queria
a minha poesia...nas noites de minha juventude,
em meio s minhas noites, escondido, encontrado...

37


.
,
.
.
,
. , , .
,
.
, .

, , ,
, .
,
,
, .
,
,
, .
, .
: .

38

Konstantinos Kavfis

BELAS E BRANCAS FLORES QUO BEM


CONVINHAM

Foi ao caf
onde iam juntos.
O seu amigo ali
trs meses antes lhe disse,
No temos um centavo. Dois rapazes muito
pobres
o que somos arruinados em meio misria.
Digo-te claramente,
contigo no posso
mais
andar. Um outro,
saiba disto, me quer.
O outro oferecera
dois ternos, e alguns
lenos de seda.
Para traz-lo de volta
revirou o mundo,
e conseguiu vinte liras.
Voltou para junto dele
pelas vinte liras
mas tambm, alm delas,
pela antiga
amizade,
pelo antigo amor,
pelo profundo sentimento
deles.
O outro era um mentiroso, um verdadeiro
marginal.
Apenas um terno
tinha feito para ele, e
Isso, por insistncia,
com mil pedidos.
Porm agora nada mais quer
nem ternos,
nem de modo algum
os lenos de seda,
nem as vinte liras,
nem as vinte piastras.
39

No domingo o enterraram,
No domingo o enterraram,

40

s dez da manh.
faz uma semana.

Konstantinos Kavfis

,

.
,

:
.

41

Em seu pobre caixo


belas e brancas flores
convinham
sua beleza e
anos.

puseram flores,
quo bem
aos seus vinte e dois

Quando veio a noite


surgiu um trabalho,
um ganha po necessrio
no caf onde
iam juntos;
faca em seu corao,
o negro caf
onde iam juntos.

42

Konstantinos Kavfis

, ,
,


, .
,
,
.

.

43

CANDELABRO
Num vazio e pequeno quarto, quatro paredes
apenas,
cobertas por pano de todo verde,
um belo candelabro incandesce;
e em meio a sua chama arde
uma lasciva enfermidade, um lascivo ardor.

No pequeno quarto, em meio ao qual brilha


do candelabro a forte luz,
no comum o brilho que dele escapa.
Para corpos covardes no foi feito
prazer de tamanha intensidade.

44

Konstantinos Kavfis

,
.
, ....
A .

,
.
.
,
.

45

COMPREENSO
Os anos de minha juventude, de minha vida de
prazeres
como vejo agora claramente seu significado.
Que arrependimentos desnecessrios, inteis...
Mas no via o significado ento.
Em meio juventude dissoluta de minha vida,
Foram moldados de minha poesia os impulsos,
Foi traada, de minha arte, a fronteira .
Pois tambm os arrependimentos de modo algum
eram slidos.
E as minhas resolues, coragem de suportar, de
mudar duravam, se muito, duas semanas.

46

Konstantinos Kavfis

.
,
. ,
.
.
,
,

,
!
,
,
,
.


, ,
,
.
. .
. .
DESDE S NOVE

47

Meia-noite e meia. A hora escorre veloz


desde s nove, ao acender a luz
e aqui me acomodei. Sentado, nada leio,
nada falo. Falar com quem se
estou s em minha casa.
O vulto de meu corpo jovem,
desde as nove, quando ascendi a luz,
veio, encontrou-me e fez-me lembrar
de quartos perfumados e cerrados
e do prazer passado - que intrpido prazer!
E ainda traz faz passar diante de meus olhos
os lugares que agora tornaram-se desconhecidos,
recintos de movimentos plenos que no mais so
e teatros e cafs onde estive uma vez.
O vulto de meu corpo jovem
veio e me conduziu as tristezas:
a dor de minha famlia, afastamentos,
os sentimentos dos meus, sentimentos
dos mortos to pouco estimados.
Meia-noite e meia. Como escorreram as horas.
Meia-noite e meia. Como escorreram os anos.

48

Konstantinos Kavfis


, , ,



, .

DESEJOS
Como belos corpos de mortos que no
envelheceram
Com lgrimas fechados em suntuoso mausolu,

49

rosas em torno cabea e jasmins aos ps


assim parecem os desejos que passaram
irrealizados, sem gozar sequer
uma noite de prazer, ou uma manh iluminada.

50

Konstantinos Kavfis

1903

....
,
.... ....

,

.
, ,
.

51

DIAS DE 1903
Nunca mais os encontrei...to depressa perdidos...
os olhos poticos, o rosto plido,
plido...no escurecer da rua.
Nunca mais os encontrei to por acaso meus,
e quo facilmente deixei-os ir;
e com tanta agonia os desejei depois.
Os olhos poticos, o rosto plido,
aqueles lbios; nunca mais os encontrei.

52

Konstantinos Kavfis

1909, '10, '11


,
( A ) .
. .
.

.
, ,
,
,
,

,
.

A ,
:
, ,
,
,
, , .

53

DIAS DE 1909, 10 e 11
Um oprimido, de um pobre marinheiro
(de uma ilha do Mar Egeu) era filho.
Trabalhava em uma serralharia. Roupas surradas
trajava.
Seus sapatos de trabalho furados e miserveis.
Suas mo eram sujas de ferrugem e graxa.
tarde, ao fechar a loja,
como nada havia que desejasse muito,
alguma gravata um tanto cara,
alguma gravata para o domingo,
ou na vitrine houvesse e quisesse muito
alguma bela camisa azul.
seu corpo por uma moeda ou duas vendia.
Me pergunto se nos tempos antigos
a gloriosa Alexandria teve um jovem de tamanha
beleza,
um to perfeito menino como este que vive
esfarrapado
,
no foi feita, certamente, esttua ou pintura sua;
na velha loja, um ferreiro desgastado,
rapidamente pelo fatigante trabalho,
e pelo vulgar desregramento, miservel, estaria
arruinado.

54

Konstantinos Kavfis

...
...
, .
...
A A ; ...
, , ...
A , .

55

Distante
Queria dessa memria falar...
Mas assim se apagou sem nada trazer de volta
Porque distante, nos primeiros anos da minha
juventude est.....
Pele como feita de jasmim
Aquele agosto era agosto? o anoitecer...
Mal me lembro dos olhos. Eram, creio, azuis...
Sim, azuis, de um azul cor de safira.

56

Konstantinos Kavfis

, 23 24
A ,
.
.

.

. A ,
:
.
.
.
,

.


, , .
.
.
, ,
,
, ,
.
,

(, , ):

57

DOIS JOVENS ENTRE 23 e 24 ANOS


Estava no caf desde as s dez e meia;
esperando a qualquer momento que ele entrasse.
Mas meia-noite surgiu e ele continuou a esperar.
Uma e meia, o caf quase deserto.
Cansado de ler os jornais sem ateno.
Sobrou-lhe no mais que uma das trs miserveis
moedas que tinha.
As outras gastou em caf e conhaque;
fumou todos seus cigarros durante essa
interminvel espera.
Este grande atraso o esgotava, pois,
quando estava s, pensava
com amargor na sua vida desregrada.
Mas no momento em que viu seu amigo entrar,
o cansao e as negras idias partiram.
O amigo lhe trouxe uma notcia inesperada:
ganhou sessenta liras nas cartas.
Seus encantadores rostos, sua bela juventude,
o amor ardente que sentem um pelo outro,
revivem, vivificam, reanimados
pelas sessenta liras nas cartas.
Transbordantes de vigor e jbilo, foram
no para o seio de suas famlias honradas
(que tambm no desejavam v-los)

58

Konstantinos Kavfis

, ,

, , .
,
,
.

mas a um bordel por eles muito freqentado,


pediram um quarto, bebidas caras, e beberam.

59

E quando os licores se esgotaram


e ia dar as quatro da manh,
abandonaram-se ao prazer, felizes.

60

Konstantinos Kavfis


.



, .
, .

,
, .
.
, .
A ,

.

EM DESESPERO
Perdeu-o por inteiro.

E agora ainda procura


61

nos lbios de um outro


novo amante
os lbios seus;
no encontro com algum
novo amante
procura seduzir como
se fosse o mesmo jovem,
como se entregasse a
ele.
Perdeu-o por completo. Como se jamais tivesse
existido.
Porque queria ele disse queria salvar-se
do aviltante,
do doentio prazer
do aviltante,
do ignbil prazer
Havia tempo ainda como disse de se salvar.
Perdeu-o por completo. Como se jamais tivesse
existido.
Pela imaginao,
pelo cotejo
nos lbios de outros jovens
os seus lbios
procura;
buscando, mais uma vez,
sentir o seu
amor.

62

Konstantinos Kavfis



,
.
.
, .
, .

( )
,
,

,
,




.

63

EM UM LIVRO ANTIGO
Em um livro antigo com cerca de cem anos
Em meio s suas folhas esquecidas,
Encontrei uma aquarela sem assinatura.
Era de grande arte em fino trabalho.
Trazia como ttulo, Presena de Eros.
Mais adequado seria " do Eros dos extremados
estetas
Pois era evidente, para quem visse a obra
(facilmente se percebia a idia do artista),
que para aqueles que amam um pouco a sade
e dentro dos limites lcitos permanecem de alguma
forma
no era destinado o efebo
da pintura com escuros olhos castanhos;
com seu rosto de rara beleza,
a beleza das anmalas tendncias;
com seus lbios ideais que trazem
o prazer ao amado corpo;
com seus membros ideais esculpidos para camas
chamadas vergonhosas pela moral corrente.

64

Konstantinos Kavfis



. A ,
.
,
,

.
.
A, ,
.

INCIOS
Por completo o ilegal prazer
se deu. Do leito se levantam,

65

e com pressa vestem-se sem nada dizer.


Saem desunidos, escondidos, da casa; e seguem
assim inquietos pela rua, como se
temessem que algo neles denunciasse
em que tipo de cama h pouco deitaram-se.
Mas a vida do artista se enriquece
Amanh, no outro dia, anos mais tarde, sero
escritos
os versos fortes que tiveram aqui seus incios.

66

Konstantinos Kavfis


.
A
,
, K T


,
, , .

67

JURA
Jura a de tempo em tempo comear uma vida
melhor.
Mas quando vem a noite
com seus conselhos,
com seus acordos,
e com suas promessas;
mas quando vem a noite
com sua fora
o corpo que deseja e procura o mesmo
xtase fatal, perdido, retorna.

68

Konstantinos Kavfis

, ...
, ,
,

,

.
,

,
,
, , , .

69

LEMBRA, CORPO...
Corpo, lembra no s o quanto foste amado,
no s os leitos em que deitaste,
mas tambm os desejos que por ti
brilhavam nos olhos, claros,
e tremiam na voz e alguma
barreira do acaso os frustrou.
Agora que tudo j passado,
parece que queles desejos
tambm te entregaste, como brilhavam,
lembra, nos olhos que te fitavam;
como tremiam na voz, por ti, lembra, corpo.

70

Konstantinos Kavfis

o
,
,
,

,
,
,
.

71

NA RUA
O rosto agradvel, cabelos cinzentos
O castanho dos olhos, como exaustos:
Vinte e cinco anos, mais parece vinte;
algo na cor da gravata, o desenho do colarinho

sem rumo passeia pela rua


ainda como hipnotizado pelo prazer ilcito
pelo grande ilegal prazer de que gozou.

72

Konstantinos Kavfis





,
,



,
,
.

, ....

73

NO VILAREJO SIMPLRIO
No vilarejo simplrio onde trabalha
empregado em um estabelecimento
comercial; muito jovem e onde espera
ainda, dois ou trs meses passarem,
ainda, dois ou trs meses, at que se reduza o
trabalho,
e assim partir para a cidade e se lanar
ao movimento e ao recreio imediatamente;
no vilarejo simplrio em que aguarda,
em meio ao sono o prazer sobrevm; em meio
ao sono v e possui a forma, a carne que deseja...

74

Konstantinos Kavfis



,
.
,
( , ),
.
,
.
, .

.
. .
,
,

,

.

75

O ESPELHO NA ENTRADA
A rica casa mostrava na entrada
um enorme espelho, assaz antigo:
h pelo menos oitenta anos comprado .
Um belssimo rapaz, empregado de um alfaiate
(aos domingos, atleta amador)
estava de p com o pacote. Entregou-o
a algum da casa, e ele o leva para dentro,
para trazer o recibo. O empregado do alfaiate
sozinho aguardava.
Acercou-se do espelho e, mirando,
esticou a sua gravata. Aps cinco minutos
trouxeram-lhe o recibo. Pegou-o e saiu.
Mas o antigo espelho que tinha visto e avistado,
ao longo dos muitos anos de sua existncia,
milhares de objetos e rostos.
Mas o antigo espelho, agora pleno de alegria,
se orgulha de ter recebido diante de si
a perfeita beleza por alguns minutos.


76

Konstantinos Kavfis

, .

.
, , .
A , .
,

.
, , .

.

.
.

.
...A ,
... A,
.

77

O SOL DA TARDE
Este quarto quo bem o conheo.
Agora est alugado e o do lado tambm
para escritrios comerciais. Todo a casa converteuse em escritrios de agentes, comerciantes e
companhias.
Ah, este quarto, como familiar.
Perto da porta, aqui, era o sof
e sua frente, um tapete turco;
perto dali, a prateleira com dois vasos amarelos.
direita; no, do outro lado, um armrio com
espelho.
No meio, a mesa em que escrevia;
e as trs grandes cadeiras de palha.
Junto janela, ficava a cama
em que nos amamos tantas vezes.
Encontram-se ainda em algum lugar os pobres
objetos.
Junto janela, ficava a cama;
O sol da tarde projetava-se at a sua metade.
...uma tarde, s quatro horas, nos separamos
por uma semana apenas... Ah,
aquela semana jamais se findou.

78

Konstantinos Kavfis

25

.
P .
A ,


.
, ,

.
. A .
.
A .
.
.
.
.
, .
.
, ,
.
.

79

O 25O. ANO DE SUA VIDA


Vai taberna com freqncia
onde o havia conhecido no ms passado.
Indagava, mas nada sabiam lhe informar.
Pelas
suas
palavras,
compreendeu
haver
conhecido
um sujeito de todo incgnito;
uma beleza juvenil desses muitos desconhecidos
e suspeitos que por l passam.
Vai, assim, taberna com freqncia, noite,
e senta-se a olhar para a entrada;
at exausto olha para a entrada.
Pode ser que entre. Pode chegar mais tarde.
Quase trs semanas se passaram.
De lascvia seu pensamento adoecia.
Em sua boca quedaram os beijos.
A sua carne padece por um desejo incessante.
Daquele corpo, o toque est sobre o seu.
Quer enlaar-se a ele mais uma vez.
No se expe, o esforo se compreende.
Entretanto, a indiferena o acomete em algumas
vezes. Alm do mais, que se compromete o sabe,
a deciso tomou. Improvvel no que sua vida
conduza a um funesto escndalo.

80

Konstantinos Kavfis

, ,
. , ,
. ( )
,
, ,
.

.

,

.

81

PASSAGEM
As tmidas coisas que o estudante imaginou
esto abertamente reveladas diante
dele. E busca e vela
e deixa-se levar. E como
(para minha arte) verdade,
seu sangue, novo e quente,
o prazer que enleva. O seu corpo vence
a ilegal embriaguez ertica; e a juventude
se rende sua brandura.
E, assim, um rapaz simples
torna-se digno de ser visto, de sua superioridade
o Mundo da Poesia um instante toma, este
o sensual menino, com seu sangue novo e quente.

82

Konstantinos Kavfis


, ,
.
.
, , .
, ,
,
.

83

QUANDO SURGIREM
Poeta, empenha-te para que as retenha
enquanto so poucas as que se estancam
as quimeras do erotismo teu.
Incute-as, levemente encobertas, nos versos teu.
Poeta, avigora-te para que as retenha,
quando surgirem em tua mente,
noite ou ao resplandecer do meio-dia.

84

Konstantinos Kavfis


. ,
, ,
.

,
.
.
.
, ,
, ,
.

85

RARAMENTE
um velho. Decrpito, curvado,
vencido pelos anos e os excessos,
ele atravessa a passo lento o beco.
Enquanto volta casa, que lhe oculta
a runa e a velhice, medita
acerca do que est aos jovens destinado.
Agora seus versos adolescentes lem.
Seus olhos vivos suas vises recriam,
fremem suas mentes ss, voluptuosas,
e suas carnes firmes, bem talhadas
com a beleza por ele revelada.

86

Konstantinos Kavfis

,

,

,
.
,
...

87

RETORNA
Retorna sempre e toma-me,
amada sensao volta e toma-me
quando acorda do corpo a memria,
e desejos antigos o sangue retomam,
quando os lbios e a pele lembram
e sentem as mos como tocam mais uma vez
Retorna sempre e arrebata-me noite,
quando os lbios e a pele lembram.

88

Konstantinos Kavfis


,

.
.

,

.

,


, .


,

(
).



,
...
,

.

89

RETRATO DE UM JOVEM AOS VINTE E TRS ANOS


FEITO POR SEU AMIGO DA MESMA IDADE,
ARTISTA AMADOR
Terminou o retrato
ao meio-dia de ontem.
Agora
atentamente o contempla.
criou-o portando
um traje
cinza, desabotoado,
cinza escuro; sem
colete ou gravata.
Com uma camisa
rosa; aberta,
para revelar um pouco
da beleza
do peito, do pescoo.
O rosto para direita
quase inteiramente por
seus cabelos ocultos,
seus belos cabelos
(como o penteado
que prefere este ano)
Tem um ar absolutamente
hedonstico
que quis imprimir
no modo em que criou os
olhos,
como pintou os lbios...
A sua boca, os lbios
feitos para fruir
um erotismo outro.

90

Konstantinos Kavfis



, ,
,
,
,

,
, . A ,
,

,
,

, ,
,
A,


, .

UM DE SEUS DEUSES

91

Quando algum deles vai at a praa de


Selucia, ao cair da tarde,
como um nobre e perfeito belo efebo,
com a graa imortal nos olhos,
com os negros cabelos perfumados,
os passantes o admiram
e um ao outro perguntam se o conhece,
se grego da Sria ou estrangeiro. Mas alguns
que no conseguiam observar com ateno,
avanam e se pe ao largo;
enquanto desaparecia sob os portes
sob as sombras e as luzes do entardecer
buscava o bairro que noite,
somente, vive, de orgias e devassido,
e de todo tipo de embriaguez e lascvia,
imaginavam qual entre Eles seria aquele que
desceu s ruas de Selucia
das Venerveis e Augustas Manses.

, T 24
, .
.
92

Konstantinos Kavfis

.
,
.

.

.
(
.
).
, .
.

(
) .


.

,
.
, .

93

Um jovem da arte da palavra aos seus 24


anos
Como puderes, ao menos, trabalha, crebro
o consome um prazer imperfeito.
Est em uma situao enervante.
Beija o rosto, o amado rosto, cada dia,
suas mos pousam sobre os mais excelentes
membros.
Jamais amou com tamanha paixo. Mas falta a bela
concretude do amor; falta a realizao
que deve ser tambm pelo outro desejada com
intensidade.
(No se do os dois igualmente ao prazer anmalo
somente a ele dominou absolutamente.)
E se consome e se enerva
Alm disso, no afeito ao trabalho, isso tambm
em muito contribui.
Algumas poucas quantias de dinheiro, com
dificuldade,
toma emprestado (quase as mendigando s vezes)
e mal se mantm.
Beija os adorados lbios. Por sobre
o excelente corpo em que agora sente
como sozinho se importa encontra prazer.
E depois bebe e fuma. Bebe e fuma.
E rasteja nos cafs o dia inteiro.
Rasteja com tdio a angstia de sua beleza
Como puderes, ao menos, trabalha, crebro.
94

Konstantinos Kavfis

95

POEMAS ESCONDIDOS

96

Konstantinos Kavfis



. , ,


, .
A .

97

AO OUVIR O AMOR
Ao ouvir o enrgico amor, estremea e comova-te
como esteta. De modo que, afortunado que s,
lembre o quanto a tua fantasia criou: Estes
primeiros
e, depois, outros um pouco menores que na
tua vida
experimentaste, os mais verdadeiros e palpveis.

De tais amores no sejas desprovido.

98

Konstantinos Kavfis


( ) ,
,

.
,


.
, ,
,

.

99

ASSIM
Naquela licenciosa fotografia que, s escondidas,
na rua foi vendida (a polcia no poderia perceber).
Naquela obscena fotografia
como se encontrava um tal rosto
de sonhos. Aqui como tu te encontravas.
Quem sabe aviltada, vulgar vida viveria:
quo ignbil seria o ambiente
no momento em que posou para ser fotografado;
quo rasteira seria sua alma.
Entretanto, como tudo isso, e mais, para mim
continuas
o rosto dos sonhos, a beleza
para helnico prazer moldada e ofertada
Assim, para mim permaneces e te fala a poesia
minha.

100

Konstantinos Kavfis

1903

, ,
,
,
,

, .

101

DEZEMBRO de 1903
Se sobre o meu amor no posso falar
Se no falo sobre teus cabelos, teus lbios, teus
olhos,
Igualmente o rosto teu que guardo em minha
alma,
O eco de tua voz que guardo em meu pensamento,
Os dias de setembro que amanhecem em meus
sonhos
As palavras e frases minhas moldam e matizam
Para aquele tema se o tomasse, aquela idia se a
dissesse.

102

Konstantinos Kavfis


,

.

.

.

;
. ,

.

103

E ME RECOSTEI E DEITEI EM SUAS CAMAS


Quando dirigi-me casa do prazer
no permaneci na sala em que celebram
com alguma ordem os amores aceitos.
Aos quartos escondidos fui,
Recostei-me e deitei em suas camas
Aos quartos escondidos fui
tidos por vergonhosos at para serem nomeados
Mas no so vergonhosos para mim pois se
assim fosse
que poeta, que artista seria?
Melhor seria ser asceta. Estaria mais de acordo
muito mais de acordo com a minha poesia;
mais do que me deleitar em uma sala comum.

104

Konstantinos Kavfis

A
.

.

.


.
A
.


.

105

ESCONDIDOS
Por tudo o que fiz e disse
no pretendam descobrir quem fui.
Um obstculo se impunha e transviou
as aes minhas desde o primeiro momento da
vida.
Um obstculo se impunha e me deteve
incontveis vezes quando comeava a falar.
[quando iniciava o transbordar de verbos]
A mais imperceptvel atitude minha
e os meus escritos os mais velados
por aqueles apenas poderei ser compreendido.
Contudo, talvez no valha a pena empregar
tanto esmero e labor para me compreender.
Um dia numa sociedade mais perfeita
um outro feito eu,
certamente, aparecer e livre se far.

106

Konstantinos Kavfis

1904
A ,

,
.
A ,
.

, , ,
.

107

JANEIRO de 1904
Noites outonais de janeiro,
ao assentar-me e recriar com a mente
aqueles momentos e te encontrar,
e ouo as minhas derradeiras palavras e ouo as
primeiras.
Desesperadas noites outonais de janeiro,
como escapa a viso e me deixa s.
Como foge e se desfaz clere
todas as rvores, ruas, casas, luzes.
Apaga-se e se dissipa a tua ertica beleza.

108

Konstantinos Kavfis


,
, . ,
, .
, , . A
,
,
.


.
,
.
.
, ,
,
.

109

MEIA HORA
Nem te possu, nem te possuirei
jamais, eu presumo. Algumas conversas, uma
aproximao
como no bar anteontem, e nada mais.
Embora no diga, uma lstima. Mas para ns da
Arte,
por um instante, habita a alma, e de fato
por curto tempo, engendramos o prazer
que fantasio como se fosse real. Assim como no
bar anteontem socorrido ainda
muito pela piedosa bebida
possu meia hora inteiramente ertica.
E tu percebeste, parece-me,
e ficamos mais um pouco de propsito,
o desejo era intenso. Pois
com toda fantasia, com o mgico vinho,
precisava ver teus lbios,
precisava possuir teu corpo.

110

Konstantinos Kavfis


,
,
.
,
,

, .


.

.
A .

111

NAS ESCADAS
Quando descia as infames escadas
Da porta surgias e, por um momento,
Vi seu rosto desconhecido e tu me vistes.
De pronto me escondi para que no me visses
novamente
E tu passaste rpido com o rosto escondido
E te consumias na casa infame
Onde prazer no encontrars assim como no
encontrei.
E o amor que desejavas ter eu te daria:
O amor como queria eu os teus olhos cansados
e suspeitos me disseram terias dado a mim.
Os nossos corpos sentiriam e mendigariam.
Nosso sangue e pele compreenderiam.
Mas nos escondemos os dois amedrontados.

112

Konstantinos Kavfis


.

.
,

,
.
,
,
.
.
,
, ,

,

.

113

O OMBRO ENFAIXADO
Disse que bateu num muro ou que caiu.
Mas provavelmente a razo seria outra
para o ombro ferido e enfaixado.
Por conta de um movimento um tanto brusco
em direo estante, para descer algumas
fotos que queria ver de perto,
soltou-se a faixa e um pouco de sangue escorreu.
Novamente enfaixei o ombro, e demorei-me
um pouco nesta tarefa, pois no doa
e agrada-me ver o sangue. Coisa
do meu amor era aquele sangue.
Assim que saiu, encontrei sobre a cadeira em
frente
um pano das ataduras manchado de sangue,
pano que parecia dever ir direto para o lixo
e que sobre meus lbios mantive eu,
e que beijei por um longo tempo
o sangue do meu amor sobre meus lbios.

114

Konstantinos Kavfis

1903

.
.
,

,
.

, ,
, .
.

115

SETEMBRO de1903
Ao menos com os vagabundos me divirto agora.
moralidade de minha vida, no dou importncia.
E estive tantas vezes to perto
E como me paralisei e como temi
Porque permaneci com os lbios cerrados
Em meio a mim lamentava-se a moralidade de
minha vida
Tantas vezes to perto de mim estava
Dos lbios erticos, do sonhado e amado corpo
Tantas vezes to perto estive.

116

Konstantinos Kavfis

117

POEMAS INACABADOS

118

Konstantinos Kavfis

, ,
, .
,
,
,
,
,
.

119

CORES
Os vermelhos, amarelos e violetas
das flores so belos, eu admito.
Todavia, a cor como fantasio,
perene e pura cor,
meu pensamento no leva s flores, mas
ao vermelho do rubi ou do coral,
ao amarelo do topzio e ao ouro,
ao violeta das safiras e das turquesas.

120

Konstantinos Kavfis


,

( .
),
.

,
.
, ,
.

121

A FOTOGRAFIA
Contemplando a fotografia de um companheiro
seu,
A bela juventude do rosto
(agora j perdida data de noventa e dois a
fotografia),
Sobreveio a melancolia por sua efemeridade.
Mas, ao menos no desapareceu
sua estria nem de todo a ridcula vergonha,
dos dois o amor impedido e desfigurado fora.
Vcios, indecncias de tolos,
A sensao ertica dos dois plena jamais se
tornou.

122

Konstantinos Kavfis



... ,
:
,
,
...

123

GNESE DO POEMA
Uma noite em que a luz Selene bela
Em meu quarto se derramava, a fantasia, algo
furtado vida: nfimas coisas
Uma cena remota, uma prazer remoto
a sua imagem trouxe, viso da carne,
a sua imagem para uma cama ertica...

124

Konstantinos Kavfis

Livro impresso por Menon, para Horus Educacional


em maio de 2011

125

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