A Face Oculta Do Racismo No Brasil
A Face Oculta Do Racismo No Brasil
A Face Oculta Do Racismo No Brasil
Resumo No Brasil, atos explcitos de discriminao racial so proibidos por lei. O que estaria levando as pessoas inibirem expresses do preconceito conservando disposies negativas internas. Mas no se trata exclusivamente de um problema psicolgico. O discurso moderno sobre as relaes raciais essencialmente contraditrio. Num estudo realizado na Paraba, observou-se que praticamente todos os 120 universitrios entrevistados, afirmam que no Brasil existe preconceito, mas curiosamente a grande maioria no se considera preconceituosa. Os estudantes parecem ter clara conscincia da discriminao racial que se vive no Brasil mas no aceitam a responsabilidade por esta situao. Assim, observou-se que os estudantes utilizavam mais adjetivos de pessoas simpticas e menos de pessoas antipticas para descrever pessoas de cor negra que pessoas brancas, mas pensavam que os brasileiros fariam o contrrio: atribuiriam mais adjetivos de pessoas antipticas e menos de pessoas simpticas s pessoas de cor negra. Observou-se tambm que utilizavam mais adjetivos do terceiro mundo e menos do primeiro mundo para descrever pessoas de cor negra. Quando convidados a responder pelos brasileiros davam o mesmo padro de respostas. Analisam-se estas contradies na perspectiva psicossociolgica, usando-se como analogia o conceito de formao reativa para indicar que tanto os mecanismos psicolgicos de inibio das atitudes negativas como as mudanas nas formas de se representar as diferenas de cor destinam-se a justificar prticas sociais que continuam a manter a discriminao racial. Palavras-chave Novo racismo, preconceito, esteretipos, funes ideolgicas.
* Departamento de Psicologia Universidade Federal da Paraba Caixa Postal 5069 Cidade Universitria 58051-970 Joo Pessoa PB. * * Universidade Catlica de Gois.
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Abstract Because racial discrimination in Brazil is legally forbidden, the ways it is expressed now seem to be taking new forms: people inhibit explicit expressions of racism preserving some internal dispositions. Therefore, they experience some psychological conflicts when expressing their actual attitudes. But these conflicts are not purely psychological. In fact, social thinking of modern societies on racial relationships is contradictory by itself. Thus, the new forms of racism are more consequences of ideological contradictions than of psychological conflicts. To tackle these ideas, we conducted a study using university students (n = 120) from Joo Pessoa (Brazil). We observed that the majority of participants think simultaneously both that, in general, Brazilian people is strongly prejudiced but that they (the participants) are non-prejudiced. These results suggest that the participants knew about racial discrimination but they also felt that they are not responsible for this situation. And indeed, when giving their own opinions, the participants attributed more positive traits to black people that they gave to white people. But, when asked to use as base line Brazilian current opinions, the results were reversed. However, when the traits were specifically related to first and third world citizens, participants opinions and what they think about Brazilians opinions were the same: black people received more third world traits than white people. Thus, in Brazil, new forms of racial categorization are developing in substitution of classical ones. These new forms of categorization serve both, to take the responsibility from the people and to maintain the racial discrimination.
Key words
New racism, Prejudice, Stereotypes, Ideological functions.
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Nas sociedades modernas, os atos explcitos de discriminao racial e tnica so publicamente condenados e proibidos por lei. Portanto, poder-se-ia supor que o preconceito racial estaria acabando? No. Na verdade, o que parece estar ocorrendo uma mudana nas formas de expresso e no contedo do preconceito. Assim, as explicaes psicolgicas da existncia de um racismo aberto, militante e agressivo, prprias dos trabalhos que surgiram a partir dos anos 40 (Dollard et ali, 1939; Adorno et ali., 1950; Hovland e Sears, 1940), esto sendo gradualmente substitudas pela preocupao em revelar as formas menos evidentes e mais difundidas de racismo, formas estas que reproduzem atitudes discriminatrias sem desafiar a norma social de indesejabilidade do racismo. Esta preocupao tem dado lugar a diversas abordagens que tm em comum a idia da persistncia de sentimentos e atitudes preconceituosas que no desafiam abertamente as atuais normas sociais anti-racistas (Katz, Wackenhut e Hass, 1986; MMcConahay, 1986; Pettigrew e Meertens, 1995; Meertens e Pettigrew, 1999; Vala, 1999). Estas conceitualizaes pressupem que nos ltimos 30 ou 40 anos as sociedades modernas vm desenvolvendo um conjunto de restries institucionais s prticas discriminatrias baseadas nas diferenas de raa. Pressupem tambm que em conseqncia destas prticas institucionais as pessoas vm se adaptando a essas presses.
uma poltica de quotas de ingresso na universidade para minorias raciais atacada em nome da igualdade de direitos para todas as pessoas, independente da sua origem. Estas novas abordagens, embora representem um certo avano em relao s primeiras teorias, manifestam, no seu conjunto, problemas tanto de ordem metodolgica quanto conceitual. No que se refere metodologia, os prprios autores citados afirmam que as novas formas de preconceito se expressariam em crenas e prticas diferentes das tpicas do racismo clssico; consequentemente, a expresso atual do preconceito no poderia ser medida atravs das escalas tradicionais, que se apoiam na distncia social: uma maior distncia expressa maior rejeio social e, portanto, maior preconceito. Mas, apesar desta crtica pertinente, os promotores destas abordagens tratam as novas formas de preconceito como se fossem um processo universal que pudesse - ele tambm - ser medido atravs de uma escala clssica, em lugar de analisar em cada contexto social as novas justificativas que o preconceito vai adquirindo, ou suas novas causas. Para ns, o foco destas abordagens no deve ser a construo, a priori, de uma medida vlida a ser utilizada em diferentes situaes, mas a compreenso das caractersticas prprias de cada contexto social para poder construir, em cada um destes contextos, medidas adequadas. No nvel conceitual, pensamos que o problema fundamental das abordagens mencionadas est na relao proposta entre o psicolgico e o social. Para os autores da abordagem do novo preconceito, as pessoas experimentariam, consciente ou inconscientemente, um conflito psicolgico devido ao confronto entre suas atitudes ntimas preconceituosas e as normas sociais contra o preconceito. Este conflito levaria a formas mais sutis ou camufladas de expresso do preconceito. Mas o fato de que os sujeitos experimentem algum conflito em certas situaes e terminem expressando-se de maneira ambivalente no quer dizer que este conflito tenha sua origem em processos psicolgicos do sujeito, e sim que o sujeito reproduz os argumentos ou repertrios conflitantes que circulam na prpria sociedade (Wetherell, 1996). Esta ltima reflexo mostra que as teorias sobre as novas formas de preconceito colocam srios problemas no s na tendncia psicomtrica que elas apresentam na avaliao das novas formas do preconceito, mas, principalmente, na sua conceitualizao. As concepes psicolgicas atuais sobre o novo racismo (como puro processo de acomodao s novas normas de indesejabilidade), alm de no considerarem uma srie de caractersticas do racismo atual, utilizam uma abordagem individualista e processual, no adaptada para o estudo de fenmenos sociais ligados aos processos de excluso. Para entender o racismo atual devemos, portanto, analisar o contexto contemporneo onde desenvolvem-se as novas formas dos processos de excluso social. E este contexto dominado pela globalizao, que deve ser entendida como um con16
junto de processos que se estrutura em nveis diferentes (cultural, econmico, social, etc.) e independentes entre si, embora fortemente interrelacionados. Neste processo de globalizao cultural intensificam-se as relaes entre as diferentes culturas e etnias, fato que produz uma certa ambigidade. Se, por um lado, cresce o respeito diversidade de valores culturais, por outro lado, emergem fortes presses para a manuteno das identidades e valores culturais regionais. O crescimento de movimentos nacionalistas na Europa e em outras regies (Giddens, 1996), e o surgimento de fanatismos religiosos de carter fundamentalista (Brown, 1995) seriam expresso tpica da ambigidade que carateriza a globalizao, a qual traz, como efeitos colaterais, fenmenos de fanatismo e de discriminao contra etnias e grupos minoritrios (Wetherell, 1996). Por sua vez, a formao de novos blocos econmicos e o processo de globalizao financeira, ao mesmo tempo em que traduz o desenvolvimento econmico e tecnolgico do capitalismo, aumenta as diferenas j existentes entre pases desenvolvidos e em desenvolvimento, e entre ricos e pobres no interior dos diversos pases, como constatado pelas prprias anlises e estatsticas governamentais (Beeman e Frank, 1998) e por estudos acadmicos (Bauman, 1998; Dupas, 2000). Certamente este conjunto de mudanas culturais e econmicas afeta o modo como so vividas hoje as relaes raciais e introduz nelas as ambigidades e contradies prprias do psmodernismo (Bowser, 1995a). Assim, constata-se que nas sociedades modernas, embora os atos explcitos de discriminao estejam publicamente proibidos por lei, a discriminao em funo da cor da pele continua a se desenvolver. Observa-se, por exemplo, que na maioria dos pases onde se deu a escravido, continuam a aumentar as diferenas scioeconmicas entre as pessoas de cor branca e as pessoas de cor negra (Mtb, Assessoria Internacional, 1998); j nos pases desenvolvidos que foram colonizadores, criam-se dificuldades para a entrada de trabalhadores estrangeiros no brancos. Em ambas as situaes so constatadas violncias e at assassinatos contra pessoas de cor negra. Embora no se acredite hoje em hierarquias sociais baseadas nas raas, a cor da pele serve ainda como um smbolo da discriminao existente (Guimares, 1999). neste sentido que se pode afirmar que o racismo uma ideologia, ou um discurso que justifica processos de discriminao social (Bowser, 1995b; van Dijk, 1997). E a ideologia enquanto construo mental justificadora, embora surja nas condies concretas das relaes de poder, segue, por se tratar de idias e emoes, o conjunto de leis psicolgicas que regem os processos cognitivos e afetivos (van Dijk, 1998). Entre os processos cognitivos merecem um grande destaque os processos de categorizao e de construo de esteretipos. Estudos recentes mostram o papel justificador e portanto ideolgico que os esteretipos desempenham nas relaes intergrupais (Yzerbyt, Rocher e Schadron 1997).
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portugueses escolheram significativamente mais traos positivos para descrever a si mesmos do que para descrever os imigrantes negros; no que concerne aos traos negativos, os autores no encontraram diferenas significativas. Ou seja, os sujeitos manifestaram abertamente uma diferenciao entre os dois grupos quanto a traos positivos, mas no quanto a traos negativos. Curiosamente, o nmero de traos negativos at maior no prprio grupo do que no grupo externo. A partir desses estudos pode-se supor que nos pases ocidentais o preconceito no se expressa hoje em dia pela atribuio de traos negativos, mas pela negao de atributos positivos a um grupo-alvo. Estes estudos mostram que a discriminao pode assumir formas sutis. Pode-se portanto afirmar que em certos pases ocidentais as prticas discriminatrias esto adquirindo expresses mais sutis e se revestindo de novas formas que visam a preservar o respeito por uma normatividade social idealizada de no discriminao de grupos sociais a partir de critrios de raa. Alis, este tipo de explicao sustenta-se em boa parte nos processos de acomodao das pessoas, sem entrar no debate da natureza da norma social. Aceitamse as normas anti-racismo naturalmente, como se de fato fossem normas cujo objetivo fosse a incluso, na sociedade, das pessoas de cor. Segundo Billig (1985), se a ideologia reflete de alguma maneira a organizao econmica, pode-se esperar que a mentalidade ps-moderna inclua tanto aspiraes universalistas e globalizantes, como aspiraes setoriais (nacionalistas) inculcadas pelo esprito de concorrncia e a meritocracia capitalista. Por isso, na mentalidade ps-moderna coabitam aspiraes moralistas, de fraternidade e de igualdade, e preocupaes realistas de justia concreta. Desse modo, a frase eu no sou preconceituoso mas devemos reconhecer que os estrangeiros esto tirando o nosso emprego afirma, concomitantemente, valores ticos e valores materiais muito especficos. Para Billig (1991), o triunfo de uma ideologia o triunfo, no discurso cotidiano, das justificativas empricas de seu sucesso. Isto implicaria um paradoxo: quanto mais se critica o preconceito, mais os preconceitos do liberalismo so justificados; a nfase na norma anti-racista poderia levar, em certas condies, justificativa do prprio preconceito.
Embora na Psicologia se estude o racismo como uma atitude, claro que este tipo de atitude teria poucas conseqncias se agisse de forma isolada, sem que existissem condies histricas, culturais e econmicas que a ligassem a comportamentos especficos. Por isso, para estudar o preconceito e as atitudes racistas torna-se necessrio contextualizar o racismo no Brasil. (1) Os negros chegaram ao Brasil no sculo XVI - como vtimas do comrcio de escravos que se desenvolveu na Amrica at o sculo XVIII -, chegando a constituir uma parcela importante da populao, a que exercia as tarefas mais pesadas e ocupava o status social mais baixo. Grande parte da populao negra foi obrigada a trabalhar nas propriedades rurais, inserindo-se num sistema patriarcal de produo rural (Freire, 1933). Em muitas outras regies onde houve escravagismo (como Estados Unidos, frica do Sul, Amrica Central, etc.), o trabalho escravo tambm se desenvolveu preferencialmente no sistema de plantation (van den Berghe, 1967). Apesar desta semelhana, inmeros fatores histricos, polticos, econmicos e culturais incidiram de modo a suscitar caractersticas peculiares no escravismo de cada pas (Jones, 1972; van den Berghe, 1967). Uma caracterstica que difere entre os pases citados o grau de miscigenao entre as raas negra e branca. Os pases onde foram realizados os estudos sobre preconceito, cujos dados temos citado, ou foram colonizadores que no desenvolveram uma populao de escravos negros no interior de suas fronteiras (como Espanha e Portugal) ou foram colnias que mantiveram uma poltica severa de separao (apartheid) com a populao negra (como os Estados Unidos e a frica do Sul). No Brasil, a mestiagem foi bastante alta; j nesses pases ela foi praticamente inexistente. Como foi percebido pelos prprios brasileiros este processo de miscigena(2) o? Nos primeiros estudos sobre o tema, Nina Rodrigues (1933/1945) e Oliveira Viana (1932/1959) consideraram que a influncia dos negros na civilizao brasileira, verificada atravs dos altos ndices de mestiagem, seria negativa por eles serem membros de uma raa biologicamente inferior. Ramos (1934) considera a presena dos negros um problema na formao da cultura brasileira, no por razes biolgicas, mas por razes culturais. Gilberto Freire, em Casa Grande e Senzala (1933), valoriza o processo de mestiamento a partir da idia de que este age como uma forma de enriquecimento cultural. Fala de democracia racial, sustentando-a nos mitos do Luso1 2 No se sabe ao certo, quando chegaram os primeiros negros ao Brasil, mas h grandes probabilidades de terem vindo j em 1531 (Caio Prado Junior, 1994: 30). Abdias Nascimento (1968) chama ateno para o fato de que psiquiatras como Nina Rodriguez e Arthur Ramos esto entre os primeiros que se preocupam com os negros.
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tropicalismo e do Senhor Amvel. A atitude pouco preconceituosa do portugus, somada ao fato de virem poucas mulheres europias colnia, criou as condies propcias para um processo de mestiagem entre os senhores da Casa Grande e as escravas da Senzala. esta miscigenao que sustentaria a crena na democracia racial no Brasil. Mas Gilberto Freire, no podendo evitar a evidncia dos negros ocuparem na Repblica uma situao marginal, afirma que o negro no teria vez na sociedade brasileira no por ser negro, mas por ser pobre. Estudos melhor documentados em trabalhos de campo que se desenvolveram na segunda metade do Sculo XX, no s no sustentaram esta viso otimista das relaes raciais no Brasil (Fernandes, 1972; Nascimento, 1968; Skidmore, 1976) como demostraram que o mito da Democracia Racial serve como racionalizao no desenvolvimento de idias e prticas discriminatrias (Azevedo, 1975). Recentemente, Andrews (1998) mostrou, analisando 100 anos de relaes laborais em duas empresas de So Paulo, que os trabalhadores negros recebiam menores salrios e mais punies do que os trabalhadores brancos imigrantes ou brasileiros de mesmo grau de instruo e condies scioeconmicas. Alis, hoje a observao de fatos do cotidiano e as prprias estatsticas governamentais no deixam dvidas quanto ao fato da populao negra do Brasil continuar a ser objeto de discriminao (Assessoria Internacional do Ministrio de Trabalho, 1998). Mas a existncia de prticas discriminatrias implica necessariamente a existncia de preconceito racial no Brasil? Numa pesquisa que atingiu todo o territrio nacional, Venturi e Paulino (1995) constataram que 89% dos brasileiros reconhecia a existncia de preconceito racial no Brasil. Mas apesar da conscincia da existncia de um preconceito generalizado, s 10% admitia ser pessoalmente preconceituosos. Noutra pesquisa, Martinez e Camino (2000) observaram a mesma contradio em estudantes universitrios de Joo Pessoa: numa escala de 1 a 10 (os maiores escores indicavam maior atribuio de preconceito) os estudantes atribuam a si, em mdia, 3,3 pontos enquanto que atribuam 7,8 pontos aos brasileiros. Venturi e Paulino (op. cit.) constataram tambm que 87% dos brasileiros, apesar de no se reconhecerem como preconceituosos, revelavam, de forma indireta, algum tipo de preconceito. Estes autores afirmam que os brasileiros sabem haver, negam ter, mas demostram, em sua imensa maioria, preconceito contra os negros. Rodriguez (1995) denomina este fenmeno de Racismo Cordial, afirmando que esta atitude seria uma maneira de no ofender mais aquele que se discrimina. Este racismo cordial representaria um momento necessrio de transio entre o preconceito clssico e uma nova era de igualdade racial? As presses anti-racismo so mesmo para valer? Ou o pensamento moderno, tal como se expressa
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atualmente na ideologia neo-liberal, possuiria no seu interior o prprio princpio da discriminao, sejam quais forem a forma e as justificativas que tome? Concordamos com Martiniano Silva (1995: 19) que este racismo brasileira zelosamente guardado, porque sutil, engenhoso; a bem dizer, mascarado. Acrescentaramos que este racismo brasileira no tem nada de cordial; muito pelo contrrio, por ser mascarado, ele no apenas terrivelmente eficiente em sua funo de discriminar as pessoas de cor negra, mas tambm, lamentavelmente, muito difcil de erradicar. Faz-se, pois, necessrio conhecer as novas cabeas desta velha e horrorosa Hidra; faz-se necessrio analisar as formas especficas que o racismo assume no Brasil. E para estudar as caractersticas peculiares das relaes raciais no Brasil, dado o forte processo de miscigenao existente, faz-se necessrio colocar o problema da definio dos sujeitos principais desta situao: os negros, brancos e morenos brasileiros. O IBGE, utilizando como critrio de classificao racial a auto-atribuio de uma cor entre cinco propostas (branco, pardo, negro, amarelo e indgena), constatou, na ltima Pesquisa Nacional por Amostras de Domiclio (PNDA) realizada em 1991, que 55,3% da populao brasileira se classifica como branco; 39,3% como pardo; 4,9% como negro e 0,5% como amarelo. Os critrios do IBGE vm sendo criticados tanto por pesquisadores como por (4) militantes de movimentos negros . Turra e Venturi (1995), num estudo desenvolvido pelo instituto de pesquisa Datafolha, compararam diversos critrios de classificao. Inicialmente os entrevistadores anotaram a cor observada dos entrevistados utilizando os critrios do IBGE; a seguir solicitaram-lhes que se classificassem, primeiro espontaneamente e depois de acordo com as categorias do IBGE. Os autores observaram que apenas 6% dos entrevistados atriburam a si espontaneamente a cor parda, 8% a cor preta e 43% se classificaram como morenos, percentual que supera o daqueles que se consideraram brancos (39%). Por outro lado, quando os entrevistados utilizaram os critrios do IBGE, 50% se consideraram brancos, 29% pardos e 12% pretos. Estes resultados demonstram que a classificao pela cor apresenta srios problemas no Brasil devido tanto ao elevado grau de miscigenao da populao como dificuldade das pessoas em saber o que de fato est sendo perguntado: cor de pele, raa ou etnia. Mas acreditamos que as contradies nestes nmeros no decorrem s das limitaes do mtodo e das confuses que o processo de miscigenao produz quanto cor da pele dos indivduos; elas decorrem principalmente das ambivalncias das pessoas no que concerne raa e, por conseguinte, no que
4 Para Ivani dos Santos, por exemplo, ativista do movimento negro (Jornal do Brasil, 1998), os critrios do IBGE confundem a cor da pele de uma pessoa com sua ascendncia tnica.
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concerne s relaes entre as duas raas, branca e negra. A classificao em termos de raa, de si e dos outros, j faz parte, no Brasil, das prprias relaes interraciais.
Com este objetivo, contatamos, nas salas de aula, 120 estudantes da Universidade Federal da Paraba da rea de Cincias Humanas. A amostra, embora pequena, era estruturada de forma a reproduzir as propores de distribuio dos estudantes na instituio, o que nos permitiria com maior facilidade estabelecer algumas relaes iniciais. A idade mdia dos estudantes era de 26 anos (s = 7,9); 63,6% deles eram do gnero feminino e 36,4% do masculino. Como raa e/ou cor da pele constituem variveis essenciais no estudo das relaes raciais, solicitamos aos estudantes que informassem a cor da sua pele e a sua raa, oferecendo-lhe as seguintes opes: negra, branca, morena e outra. No que se refere cor da pele, 54% da amostra indicaram a cor branca, 39% a cor morena e 7% a cor negra. No que se refere raa, 61% dos estudantes se declararam branco, 27% moreno e 12% negro.
TABELA 1: PORCENTAGENS DEMONSTRATIVAS DA MANEIRA QUE OS ESTUDANTES SE ATRIBUEM COR DA PELE E RAA
88 6 6 54
34 54 12 39
33 67 7
61 27 12 100
Como se pode constatar na Tabela 1, a relao entre cor da pele e raa bas2 tante forte (Coeficiente de contingncia = 0,587 ; X = 47.409 ; gl. = 4 ; p. < .000), embora a correspondncia no seja perfeita. Entre os que declararam possuir cor da pele branca, apenas 6% se definiram como sendo da raa morena e 6% como sendo da raa negra. Do pequeno grupo que declarou possuir cor da pele negra, 1/3 (n = 2) definiu-se como moreno e 2/3 como sendo da raa negra. Onde se constatou um maior grau de indefinio foi entre os que atriburam a si a cor morena: deste grupo, s 54% se declararam moreno; 34% atriburam a si a raa branca e 12% a raa negra. Para analisar o grau de conscincia quanto existncia do preconceito no Brasil, solicitamos aos alunos que escolhessem uma entre as trs alternativas constatadas nos estudos de Rodrigues (1995). Observa-se na Tabela 2 que a grande maioria dos estudantes (82%) escolheu a alternativa do meio: admite a existncia do preconceito no Brasil, mas no se admite como preconceituoso. Estes resultados sugerem a possvel existncia de um duplo padro de avaliao: um padro mais concreto, destinado a avaliar a si mesmo, e provavelmente tambm a seus famili24
ares e amigos, e um padro mais abstrato e poltico, que visa avaliao da sociedade brasileira. Como veremos adiante, estes dois padres interligados permitem aos brasileiros sustentar os princpios modernos da igualdade racial, mesmo reconhecendo que no Brasil se est muito longe de viver esta igualdade. A anlise das maneiras como os brasileiros representam as diversas raas nos permitir compreender melhor a ambivalncia existente nesses repertrios representacionais.
TABELA 2: FREQNCIA, EM PORCENTAGEM, DAS OPINIES DOS ESTUDANTES DA UFPB SOBRE AS ATITUDES PRECONCEITUOSAS NO BRASIL
OPINIES SOBRE O PRECONCEITO Existe preconceito no Brasil e Voc se considera preconceituoso? Existe preconceito no Brasil e Voc no se considera preconceituoso? No existe preconceito no Brasil e Voc no se considera preconceituoso?
N 19 95 2
% 16 82 2
116
100
Para avaliar as formas como os estudantes constroem suas representaes de pessoas de cor negra e de pessoas de cor branca utilizamos duas estratgias. A primeira, que criamos para esta pesquisa, consistia em obter descries das atividades prprias de cada raa; a segunda, consistia numa lista de adjetivos (checklist) dos quais os sujeitos deveriam selecionar os que melhor caracterizavam o grupo social estudado. Trata-se de uma tcnica clssica no estudo dos esteretipos (Katz e Braly, 1933/1958) mas tambm utilizada nos estudos recentes, o que nos permitiria comparar nosos dados com os dos outros pases. Na primeira estratgia, solicitvamos aos estudantes, na primeira pgina do questionrio, que opinassem livremente sobre quais as atividades em que as pessoas de cor branca (correspondendo metade dos questionrios) e de cor negra (a outra metade) se engajam espontaneamente e com maior freqncia. Na segunda pgina, para a qual s podiam passar depois de responder primeira, se lhes pedia que opinassem sobre as atividades que as pessoas de cor branca (metade dos questionrios) e as pessoas de cor negra (a outra metade) desempenham melhor. A primeira parte da pergunta - a descrio livre das atividades que as pessoas realizam com maior freqncia -, por no conter nenhuma referncia explcita, poderia nos permitir a anlise dos elementos que constituem as representaes espontneas dos estudantes sobre as aptides das duas raas. A segunda parte, por introduzir uma comparao avaliativa entre grupos raciais, permitiria detectar o efeito das normas anti-racistas nas respostas dos estudantes. Apesar de no se considerarem preconceituosos, 69% dos estudantes, quando
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perguntados diretamente em que atividades as pessoas de cor negra se engajam mais freqentemente, descreveram atividades que, embora exijam habilidades naturais (fora, dana, esportes), no implicam qualificao especial nem relacionam-se diretamente com o poder ou a luta pelo poder (Tabela 3). Por sua vez, 69,5% dos estudantes que descreveram as atividades nas quais as pessoas de cor branca se engajam mais freqentemente referiram-se seja a atividades que exigem qualificao profissional, seja a atividades ligadas ao poder. Apenas cerca de 16% dos estudantes no indicaram nenhuma atividade, afirmando que a atividade no dependia da cor da pessoa.
TABELA 3: PORCENTAGENS DAS ATIVIDADES ATRIBUDAS ESPONTANEAMENTE A PESSOAS DE COR NEGRA E DE COR BRANCA
Tipos de Atividade:
Ativ. no qualificadas Esportes, artes, lazer % por cor Ativ. qualificadas Ativ. ligadas ao poder % por cor Independe da cor % por cor
Entretanto, quando se introduziu uma possvel comparao entre as raas perguntando aos estudantes quais seriam as atividades que as pessoas de cor negra ou de cor branca desempenhariam melhor, quase 2/3 dos alunos consideraram que o sucesso nas diversas atividades independe da cor (Tabela 4). No tero restante, nota-se uma tendncia oposta observada quando as atividades eram descritas sem comparao: alguns estudantes afirmam que as pessoa de cor negra desempenham atividades qualificadas melhor que as brancas, enquanto que estas se sairiam melhor nas atividades no qualificadas. Apesar desta reverso, os estudantes, mesmo na situao que explicita a comparao entre raas, continuam a considerar que as pessoas de cor negra saem-se melhor nas atividades ligadas a espetculos, enquanto que as pessoas de cor branca so melhores nas atividades ligadas ao poder. Estes dois aspectos parecem fazer parte de traos relativamente consensuais: elogia-se nos negros sua fora, seu ritmo, sua sensualidade, sua habilidade nos esportes, etc., enquanto se tem como natural a maior presena dos brancos nas estruturas do poder.
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Tipos de Atividade: Ativ. no qualificadas Esportes, artes, lazer % por cor Ativ. qualificadas Ativ. ligadas ao poder % por cor Independe da cor % por cor
Na segunda estratgia, empregada neste estudo para avaliar as vises estereotipadas dos estudantes sobre as raas, utilizou-se a tcnica clssica da lista de adjetivos (checklist). Esta tcnica consiste na apresentao, a um grupo, de um conjunto ou lista de adjetivos positivos e/ou negativos que se referem a caractersticas, aptides ou traos de pessoas. Para escolher os adjetivos que constituiriam nossa lista, realizamos uma pesquisa anterior (Camino, Da Silva, Machado e Martinez, 2000) com 100 estudantes de Cincias Humanas das duas universidades que existem em Joo Pessoa, a Universidade Federal da Paraba (pblica) e o Centro Universitrio de Joo Pessoa (privada). Foi oferecida aos estudantes uma lista de 50 adjetivos, em relao qual eles deveriam realizar duas tarefas. Primeiro, deveriam escolher os 10 adjetivos que melhor caracterizavam as pessoas que moram em pases do primeiro mundo e os 10 que melhor caracterizavam as pessoas que moram em pases do terceiro mundo. Segundo, deveriam escolher os 10 adjetivos que melhor caracterizavam o tipo de pessoa com que a maioria gosta de se relacionar e os 10 que melhor caracterizavam as pessoas com as quais a maioria no gosta de se relacionar. Para cada critrio de escolha foram selecionados os quatro adjetivos utilizados com a maior freqncia. Em todos os casos os adjetivos foram citados por mais de dois teros da amostra, o que permite considerar esses adjetivos como sendo parte dos esteretipos das quatro situaes abaixo: - Pessoas mais gostveis; adjetivos: alegre, simptico, inteligente, honesto - Pessoas menos gostveis; adjetivos: agressivo, antiptico, egosta, desonesto o - Pessoas do 1 Mundo; adjetivos: ambicioso, civilizado, independente, rico. o - Pessoas do 3 Mundo; adjetivos: sonhador, solidrio, trabalhador, pobre. Estes 16 adjetivos constituram a lista de adjetivos que nesse estudo apresentamos aos estudantes, pedindo metade deles que escolhessem, dentre os adjetivos
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da lista, os que melhor identificavam pessoas de cor branca, e outra metade que escolhessem os que melhor identificavam pessoas de cor negra. Os estudantes deveriam primeiro fazer esta escolha de acordo com suas prprias percepes, ou seja, em relao a si, e, logo aps, de acordo com o que eles achavam que os brasileiros pensam, ou seja, em relao aos brasileiros em geral. Procuramos com esta tcnica, verificar as diferenas de percepo que se estabeleceriam entre a maneira consciente e cuidadosa com que o estudante avalia pessoalmente as pessoas de cor negra e a maneira como, segundo o estudante, os brasileiros as avaliam. No que concerne escolha dos adjetivos que classificam pessoas simpticas e antipticas, espervamos constatar, como o fizeram Dovidio, Mann e Gaertner (1989), Perez (1996) e Vala, Brito e Lopes (1999), uma forte conteno dos estudantes no uso de adjetivos negativos em relao a pessoas de cor negra. Mas, diferentemente destes estudos, nos quais estudantes brancos atribuam mais adjetivos positivos a brancos que a negros, espervamos encontrar uma inexistncia de diferenas no que se refere ao uso de adjetivos positivos. Como j foi enfatizado, no Brasil, pela forte miscigenao racial existente, no existem sentimentos de xenofobia em relao s pessoas de cor negra; elas no so sequer percebidas como estrangeiras. Pelo contrrio, muitas das caractersticas que lhes so atribudas, como o ritmo, a sensualidade, a ginga, etc., so consideradas patrimnio da nao. Por causa desta situao e pela fora das normas anti-racistas, poderamos esperar que os estudantes atribussem o mesmo nmero de adjetivos positivos aos dois grupos raciais. J no que concerne escolha de adjetivos feita em funo do que os estudantes acreditavam que os brasileiros pensam, espervamos constatar a diferenciao preconceituosa clssica proposta por Tajfel (1981): os negros seriam avaliados negativamente enquanto os brancos o seriam positivamente. De fato, nossos resultados (colunas 2 e 3 da Tabela 5) mostram que a porcentagem de estudantes que utilizaram caractersticas negativas para descrever pessoas de cor negra bastante baixa, variando dos 12% que usaram os termos egosta e antiptico aos 21% que recorreram ao adjetivo agressivo. O uso de atributos negativos para os brancos foi algo maior, variando de 33% a 40%. Quanto ao uso de atributos positivos, os resultados no foram os esperados. As pessoas de cor negra receberam porcentagens maiores dos outros atributos positivos, - com exceo da inteligncia, que os estudantes atriburam mais aos brancos que aos negros -, chegando a ser majoritria a idia de que os negros so simpticos e alegres. Os resultados relativos s caractersticas que os estudantes pensavam que os brasileiros atribuem s pessoas de cor negra e de cor branca demonstraram uma clara inverso (colunas 4 e 5 da Tabela 5). Os estudantes indicaram pensar que os brasileiros atribuem mais caractersticas positivas aos brancos que aos negros, parti28
cularmente no que concerne inteligncia, que majoritariamente atribuda aos brancos. Por outro lado, os brasileiros, sempre segundo os estudantes, atribuem maior nmero de caractersticas negativas aos negros que aos brancos. Especificamente, os negros seriam percebidos pelos brasileiros como desonestos e agressivos.
TABELA 5: FREQNCIAS, EM PORCENTAGEM, DOS ADJETIVOS CARACTERSTICOS DE PESSOAS SIMPTICAS E ANTIPTICAS ATRIBUDOS POR ESTUDANTES A PESSOAS DE COR NEGRA E DE COR BRANCA, SEGUNDO O QUE ELES PRPRIOS PENSAM E SEGUNDO O QUE ELES PENSAM SER A OPINIO DOS BRASILEIROS.
50 53 40 40
Negros
34 39 30 47
Brancos
22 13 05 09
Negros
31 46 34 65
Brancos
12 12 16 21
38 38 33 40
15 40 55 60
18 18 13 13
Estes resultados confirmam o cuidado constatado nas pesquisas atuais, quando pessoas de cor branca so convidadas a avaliar pessoas de cor negra. No caso do Brasil o cuidado parece ser ainda maior. Observa-se nos estudantes paraibanos que eles no s no diminuram a imagem das pessoas de cor negra atribuindo-lhes caractersticas negativas, mas mostraram possuir uma imagem muito positiva deles, atribuindo-lhes um nmero elevado de caractersticas positivas. Assim, para os estudantes os negros seriam alegres e simpticos e possuiriam ndices muito baixos de antipatia e de desonestidade. Esta viso superlativa que os estudantes possuem das pessoas de cor negra contrasta com a viso extremamente negativa que os estudantes supem que os brasileiros possuem. Segundo os estudantes, o povo brasileiro considera os negros como desonestos, agressivos e pouco inteligentes. Esta dicotomizao to radical parece-nos traduzir o conflito que vive o cidado brasileiro, o qual, por um lado, dado o que observa no meio que o rodeia, plenamente consciente da profunda discriminao em que vive o negro brasileiro, e, por outro lado, dados os laos criados pela miscigenao, bem como as presses do politicamente correto, no consegue ser plenamente consciente de seu papel neste processo de discriminao. Voltaremos mais adiante a analisar a natureza desta
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dicotomizao. No momento basta-nos constatar que este conflito cria-se quando o estudante convidado a avaliar negros e brancos usando adjetivos que se referem s relaes interpessoais. As crenas modernas negam a existncia de diferenas psicolgicas em termos de raa. Portanto, em situaes como esta, onde se pede avaliar pessoas negras em termos de traos e de aptides, fica muito bvio para o estudante a necessidade de manter uma postura politicamente correta. Mas igualmente bvio que a situao de discriminao social real que existe deve estar criando novas justificativas, estas sim, politicamente corretas. Supomos que a ideologia liberal justifica diferenas no mais em termos de hierarquias raciais, mas em termos de valores e disposies ligados ao progresso scioeconmico. Pressupnhamos portanto que a cor da pele estaria de alguma maneira associada seja a valores progressistas do primeiro mundo, seja a valores menos avanados. Assim, os estudantes representariam as pessoas negras como mais ligadas a valores terceiro-mundistas, enquanto que as pessoas de cor branca seriam percebidas como pertencendo naturalmente ao primeiro mundo. Especificamente, estvamos esperando que os estudantes, para caracterizar pessoas negras, empregassem com maior freqncia adjetivos utilizados para classificar pessoas de pases do 3 mundo, enquanto que para caracterizar brancos empregassem com maior freqncia adjetivos que classificam peso soas de pases do 1 Mundo (Tabela 6). De fato, os dados obtidos em nosso estudo (colunas 2 e 3 da Tabela 6) mostram
TABELA 6: FREQNCIAS, EM PORCENTAGEM, DO NMERO DE CARACTERSTICAS PRPRIAS DE PESSOAS DO 1 MUNDO E DO 3 MUNDO, ATRIBUDOS POR ESTUDANTES S PESSOAS DE COR NEGRA E DE COR BRANCA, SEGUNDO O QUE ELES PRPRIOS PENSAM E SEGUNDO O QUE ELES PENSAM SER A OPINIO DOS BRASILEIROS.
12 31 31 24
Negros
%
49 40 41 57
Brancos
%
07 10 12 29
Negros
%
65 59 62 30
Brancos
%
40 38 69 40
28 24 38 41
78 10 24 30
11 23 46 18
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que os estudantes atriburam com maior freqncia adjetivos do primeiro mundo a pessoas brancas e adjetivos do terceiro mundo a pessoas negras. Nosso estudo mostra tambm que, para os estudantes (colunas 4 e 5 da Tabela 6), os brasileiros atribuem ainda com maior nfase adjetivos do primeiro mundo aos brancos, os quais so considerados majoritariamente como ricos, civilizados e independentes. No que concerne aos adjetivos caractersticos de pessoas do terceiro mundo, as diferenas no so to claras, com a exceo do adjetivo pobre, que foi quase que unanimemente (78%) aplicado aos negros. O leitor atento lembrar que nossa amostra, apesar de relativamente homognea, diferencia-se bastante em funo da raa e da cor da pele (veja Tabela 1), e, em se tratando de um estudo das relaes interraciais, as caractersticas da raa e da cor de pele dos sujeitos poderiam ser decisivas. Mas, de fato, no que concerne a atribuio de adjetivos a brancos e negros, as anlises estatsticas no mostraram diferenas entre os estudantes em funo da cor ou da raa que eles prprios se atribuem.
Concluses:
Os dados obtidos neste estudo demonstram que existe, entre os estudantes, um sentimento praticamente unnime (98%) de que no Brasil existe preconceito; mas curiosamente a grande maioria (084%) no se considera preconceituosa. De fato, 82% dos estudantes, ao mesmo tempo em que acreditam na existncia do preconceito racial no Brasil, afirmam que eles mesmos no so preconceituosos. Esta situao contraditria sugere que, no Brasil, as pessoas tanto tm uma clara conscincia de que se vive numa situao de discriminao racial como no se sentem individualmente responsveis por esta situao. Deve ter-se em conta que, diferentemente das pesquisas j citadas sobre as atitudes preconceituosas dos brasileiros (Rodrigues, 1995; Martinez e Camino, 2000), neste estudo cada alternativa relacionava expressamente a existncia, ou no, de uma atitude preconceituosa na pessoa e a existncia, ou no, de uma atitude preconceituosa no brasileiro. Mesmo assim, a grande maioria dos estudantes (82%) escolhe a opo que relaciona a existncia de preconceito no brasileiro posio individual no-preconceituosa. A fora da norma social anti-racista leva as pessoas a evitar assumir atitudes pessoais preconceituosas, mas essa norma no lhes impede de ver que no Brasil continua-se a discriminar as pessoas de cor negra. Nesta situao contraditria, existe discriminao mas ningum responsvel por ela. Neste sentido, as formas de categorizar as diferenas raciais devem conter, de alguma maneira, esta ambivalncia. De fato, os estudantes, quando perguntados sobre as atividades em que as pessoas se engajam mais freqentemente, afirmam, quando no percebem nenhuma comparao, que os negros preferem tanto as atividades que pressupem fora ou
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habilidade fsica - mas no qualificao profissional - quanto as que pressupem aptides naturais para a arte e o espetculo; afirmam tambm que os brancos inserem-se com maior freqncia em atividades profissionais qualificadas e/ou ligadas ao exerccio do poder. Mas quando se trata de uma comparao, os estudantes recusam-se a responder ou, quando respondem, no estabelecem diferenas entre os grupos raciais. Ao escolher entre os adjetivos que descreveriam pessoas simpticas ou antipticas, quando respondem por si mesmos, os estudantes utilizam mais adjetivos de pessoas simpticas e menos de pessoas antipticas para descrever pessoas de cor negra que para descrever pessoas de cor branca. Por sua vez, quando respondem o que acham que os brasileiros pensam, os resultados se invertem; neste caso os estudantes atribuem mais adjetivos de pessoas antipticas e menos de pessoas simpticas para descrever pessoas de cor negra, e mais adjetivos positivos e menos negativos para julgar as pessoas de cor branca. Estes dados sugerem a existncia de um duplo padro de avaliao quanto ao preconceito racial. Esta duplicidade de norma tem sido observada, por exemplo, na vida sexual e amorosa de estudantes norte-americanos (MacDonald, Huggins, Young e Swanson, 1973) e nordestinos (Deschamps, Camino e Neto, 1997). Neste ltimo caso, os estudantes se declaram, por um lado, abertos a experincias sexuais pessoais, mas, por outro lado, eles possuem uma viso tradicional e normativa da vida sexual de suas parceiras. Deschamps, Camino e Neto (op. cit.) relacionam este duplo padro com a ideologia machista. Pensamos que, no caso deste estudo, o duplo padro serve claramente aos interesses da ideologia racista. Ao escolher entre os adjetivos que descreveriam pessoas do primeiro e terceiro mundo, quando respondem por si mesmos, os estudantes utilizam mais adjetivos do terceiro mundo e menos do primeiro mundo para descrever pessoas de cor negra, e mais adjetivos do primeiro mundo e menos do terceiro mundo para descrever as pessoas de cor branca. E quando convidados a responder pelos brasileiros, usam o mesmo padro de respostas. No Brasil, a intensa miscigenao racial e a extrema discriminao em que vivem as pessoas de cor negra produzem processos de acomodao muito fortes. Ao mesmo tempo, novas formas de categorizao esto se desenvolvendo, formas que se destinam a substituir o conceito de raa pelo de modernismo, a cor branca sendo associada aos valores do primeiro mundo e a cor negra aos valores do terceiro mundo. Estas novas formas de categorizao no se confrontam com as normas anti-racistas, o que facilita a conservao dos processos de excluso. Analisamos este processo numa perspectiva psicossociolgica, utilizando como analogia o conceito de Formao Reativa para indicar que tanto os mecanismos psicolgicos de inibio como as novas formas do discurso racial tm como objetivo preservar a discriminao racial vigente desde a escravatura, assim como retirar dos cidados o sentimento de responsabilidade por essa situao.
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REFERNCIAS
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