Mario Grynszpan, Uma Sociologia Histórica Da Teoria Das Elites

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REFERNCIA BIBLIOGRFICA :

GRYNSZPAN, Mrio. Cincia poltica e trajetrias sociais: uma sociologia histrica da teoria das elites. Rio de Janeiro: Ed. Fundao Getulio Vargas, 1999. 255p.

Disponibilizado em: http://www.cpdoc.fgv.br

memria de meu pai, Chil, a meu filho, Ilan, a minha esposa, Danielle, e a minha me, Augusta.

Sumrio

Esclarecimentos iniciais e agradecimentos Introduo Captulo 1 Concorrncia e reconhecimento Concorrncia e trabalho de reconhecimento O terico da classe dirigente Comentadores, editores e percepes impostas

9 11 37 42 49 54

Parte I. Gaetano Mosca: a inovao conservadora


Captulo 2 Origens e opes de carreira Captulo 3 Inovao e fracasso universitrio Captulo 4 Capital social e carreira universitria Captulo 5 Prestgio intelectual e capital poltico Captulo 6 Duplo referencial e fracasso duplo

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69 79 99 113 121

Parte II. Vilfredo Pareto: a sada aristocrtica


Captulo 7 De diletante a especialista Captulo 8 Economista e socilogo Captulo 9 Cincia e profecia Concluso Notas Bibliografia

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141 157 187 201 211 245

Esclarecimentos iniciais e agradecimentos

Este livro uma verso modificada de minha tese de doutorado, defendida junto ao programa de ps-graduao em antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tratase de um olhar sobre uma das teorias constituidoras da cincia poltica e da sociologia a das elites , a partir, porm, da antropologia, uma disciplina que no foi por ela informada de modo significativo. No centro da anlise esto as trajetrias e os textos produzidos por dois autores italianos da virada do sculo XIX para o XX, Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto. Estud-los a partir do Rio de Janeiro, sem me deslocar para a Itlia, imps alguns limites ao trabalho no que tange s fontes de pesquisa. Ele foi desenvolvido, em grande parte, com base em fontes secundrias. No tive acesso, por exemplo, a dados estatsticos diretos ou a informaes em quantidade sobre as trajetrias de outros pensadores, que permitiriam caracterizar, de maneira mais detalhada, o espao social de posies italiano no perodo tratado. De todo modo, o material utilizado foi bastante extenso e massivo, conferindo um bom grau de consistncia s formulaes e hipteses apresentadas. Sempre que for referido, ao longo do trabalho, o ttulo de algum livro ou artigo, ele o ser na forma das edies efetivamente consultadas. As suas citaes, no entanto, quando em lngua estrangeira, foram traduzidas por mim no caso daquelas em ingls, francs e espanhol , e por Srgio Lamaro para as italianas. Srgio tambm me ajudou com sugestes para a melhoria de algumas passagens do texto. De fato, so tantas as pessoas e instituies que tornam um trabalho como este vivel que, se alm de enumer-las, me dispuser a especificar suas contribuies, precisarei de um outro volume, pelo menos do mesmo tamanho deste. Como isso no possvel, e como tambm no posso deixar de expressar minha gratido a elas, procurarei ser breve e objetivo, desculpando-me antecipadamente por eventuais esquecimentos.

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Em primeiro lugar, gostaria de expressar o meu reconhecimento para com a banca que examinou minha tese, formada pelos professores Mariza Peirano, Lygia Sigaud, Jos Murilo de Carvalho e Moacir Palmeira. Suas observaes foram sem dvida fundamentais para a reelaborao que resultou neste livro. Destaco ainda o papel central desempenhado pelo meu orientador, professor Afrnio Raul Garcia Jr., que, apesar da amizade demonstrada em todos estes anos que nos conhecemos, foi tambm um crtico impiedoso. Se este livro tem pontos positivos, eles com certeza devem-se em boa parte aos comentrios precisos e pertinentes do professor Afrnio. Alm destes, expresso tambm a minha gratido para com Federico Neiburg e Jos Srgio Leite Lopes, que se prontificaram a ler e comigo discutir a primeira verso de algumas das partes deste livro. Com relao s instituies, agradeo inicialmente ao Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC) da Fundao Getulio Vargas, onde sou pesquisador, sem cujo apoio este trabalho teria sido impossvel. O meu obrigado, ainda, ao Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, que me liberou das atividades docentes durante o ano de 1993 a fim de que pudesse finalizar a investigao. Os recursos financeiros para a realizao desta pesquisa vieram da Finep, atravs de seus convnios com o CPDOC, e do CNPq e da Capes, que me concederam bolsas de doutorado. Ao CNPq agradeo ainda por dois bolsistas de iniciao cientfica, concedidos atravs da Fundao Getulio Vargas, Gustavo Carvalho de Lemos e Jonas Wagman, que puderam me auxiliar em parte do levantamento bibliogrfico. Fazer um livro como este, no Rio de Janeiro, s foi possvel graas ajuda dos amigos, parentes, ou simplesmente conhecidos, que se encontravam fora, permitindo-me ter acesso a fontes que de outro modo no teria. Assim, lembro: de So Paulo, Lcia Rotemberg; dos Estados Unidos, Lcia Lippi, Gustavo Lipsztein, Maria Celina DAraujo e Marina e Federico Neiburg; da Inglaterra, Letcia Pinheiro; da Itlia, Donatella Berlendis, Donatella Saviola, professor Ettore Albertoni e Guilherme de Andrade; e da Frana, Srgio Lifschitz. No h como no me referir ainda aos que, no prprio Rio de Janeiro, me possibilitaram o acesso a trabalhos importantes, como Marcos Chor e os professores Luiz Felipe B. Neves e Jos Murilo de Carvalho. Cabe destacar que, para alm da ajuda dos amigos e conhecidos, este livro tambm s se tornou possvel graas, em grande parte, ao suporte de biblioteca que pude ter no CPDOC e na Fundao Getulio Vargas.

Introduo*

Foi a partir do sculo XIX que as cincias sociais se constituram em disciplinas autnomas e se institucionalizaram por meio de cadeiras universitrias. Isso se deu, em boa medida, como resultado do trabalho de afirmao de alguns indivduos, que se impuseram como fundadores de disciplinas e autores de teorias que passaram a orientar reflexes, a determinar temas legtimos de pesquisa e a tornar-se objeto de discusso e disputa. Uma dessas teorias foi a que ficou conhecida como elitismo, que se afirmou como uma crtica s idias democrticas e socialistas que se difundiam naquele mesmo momento. Em que pese s especificidades dos autores reconhecidos como seus principais formuladores os italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto , seu argumento central, apresentado como descoberta cientfica, era o de que em qualquer sociedade, em qualquer grupo, em qualquer poca ou lugar, havia sempre uma minoria, uma elite que, por seus dons, e sua competncia e seus recursos, se destacava e detinha o poder, dirigindo a maioria. Esta era uma lei sociolgica inexorvel, que nem mesmo o mecanismo do sufrgio universal era capaz de romper. Pelo contrrio, o que a adoo do sufrgio universal e a crena nos princpios sobre os quais se apoiava os da igualdade entre os homens e da soberania popular produziam era a legiti-

* Uma primeira verso deste captulo introdutrio, modificada e com um escopo bastante distinto, foi publicada em Boletim Informativo Bibliogrfico (BIB), sob o ttulo A teoria das elites e sua genealogia consagrada (Grynszpan, 1996).

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mao do mando da minoria, cujos desgnios passavam a ser aceitos como expresso da vontade autnoma das amplas maiorias. Do sculo XIX aos dias de hoje, a teoria das elites experimentou diversas mudanas, foi alvo de sucessivas reinterpretaes, foi apropriada de maneiras distintas. De um conjunto de teses antiigualitrias e antidemocrticas, passou a ser tomada como uma anlise realista do sistema democrtico. Na formulao de seus autores e comentadores mais recentes, o que o elitismo visa a demonstrar que, com efeito, qualquer sistema poltico, mesmo o democrtico, dirigido por minorias. A democracia, contudo, se distingue por ter no poder no uma elite fechada, cristalizada em um s grupo que se reproduz internamente, e sim aberta, renovada por meio de um processo de livre concorrncia pelos votos do eleitorado. Liberdade e concorrncia so assim condies sine qua non para a democracia, mais importantes mesmo, da perspectiva de alguns autores, do que o prprio grau de participao poltica.1 So elas que impedem que um nico grupo possa se impor de forma definitiva e exercer um controle total sobre as vidas dos indivduos. a concorrncia, igualmente, que torna as elites responsveis em relao s maiorias, comprometendo-as com anseios destas sob pena de perderem sua posio para grupos rivais. Contudo, deve-se destacar que esse comprometimento no pode ir ao ponto de tornar a elite refm das massas, pondo em xeque o sistema poltico. Do mesmo modo, preciso evitar que as massas sejam direta e facilmente mobilizveis pela elite, pois, quando isso ocorreu, como no nazismo, no fascismo e no comunismo, o que se assistiu foi a negao da prpria democracia. Para que ambos os riscos sejam eliminados fundamental a existncia de uma forte estrutura intermediria de organizaes concorrentes, como partidos, sindicatos e associaes diversas, fazendo a mediao entre elite e massa.2 O debate sobre a teoria das elites persistiu at a dcada de 80, quando sua intensidade comeou a diminuir. At ali, no entanto, foi gerada uma enorme quantidade de textos, envolvendo um sem-nmero de autores de origens e filiaes variadas, configurando uma das reas mais consagradas das cincias sociais.3 Um dos efeitos da constituio de um domnio do conhecimento altamente investido e que incide com maior fora sobre os nefitos a exigncia de uma demonstrao de familiaridade, de um controle de toda a linhagem de seus constituidores, como condio de aceitao e reconhecimento.4 Mas quanto maior a extenso da linhagem, maior ser tambm o risco de excluso de algum autor, de algum trabalho considerado fundamental por um ou outro

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especialista ou autoridade. No caso da teoria das elites, esse risco relativamente reduzido pelo consenso que se estabeleceu em torno de quais so os seus autores e textos-chave, mesmo sendo eles bastante numerosos. Mais do que isso, se a teoria das elites tem uma linhagem indisputada, uma genealogia de autores consagrada, interessante perceber que as referncias legitimadoras a ela partem, invariavelmente, de uma evocao quase que ritual s origens, queles que so reconhecidos como seus clssicos, seus pais fundadores Mosca e Pareto , ainda que nem sempre se trate de louv-los, e sim de esconjur-los.5 Essa referncia obrigatria, importante destacar, pode se dar mesmo quando o trabalho se inscreve em um campo disciplinar como o da antropologia, em cujo panteo, tradicionalmente, nenhum daqueles dois autores perfilado. Assim, Edmund Leach e S. N. Mukherjee (1970:ix), em sua introduo a Elites in South Asia, remetem-se a Mosca e a Pareto como aqueles a cujas formulaes o conceito de elites esteve intimamente associado na histria do pensamento sociolgico. Do mesmo modo, a coletnea Elites: ethnographic issues aberta por um captulo em que seu organizador, George E. Marcus, discute a teoria e o conceito de elite.6 Sua referncia inicial, de forma semelhante de Leach e Mukherjee, a reflexo de Pareto e de Mosca:

Embora diversos relatos histricos e textos filosficos tivessem, de modo implcito, reconhecido o papel social determinante das elites, o corpo de teoria mais diretamente vinculado ao conceito de elite foi aquele elaborado de maneira independente pelos pensadores italianos Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca, em fins do sculo XIX e incio do XX (Marcus, 1983:13).

Alm de tema autorizado, portanto, a teoria das elites dispe de uma longa genealogia consagrada que tem em Mosca e Pareto seu ponto de partida necessrio. Contudo, ao mesmo tempo em que se afirma como referncia obrigatria e se torna indisputada, essa sucesso de autores deixa de ser percebida como construo, o que a isenta de uma reflexo sobre os seus princpios e as operaes por meio das quais instituda. Se , ao menos em parte, pelo investimento dos autores que a genealogia construda e imposta, ela o igualmente pelo trabalho de inmeros comentadores ou leitores privilegiados. Constituindose em rea prestigiada das cincias sociais, a teoria das elites pas-

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sou tambm a conferir prestgio e reconhecimento aos que a ela se dedicavam, justificando e atraindo o interesse de um nmero crescente de comentadores.7 Por isso mesmo, ela se afirmou como um tema bastante mediatizado, o que levou a que se dispensasse por vezes o recurso aos textos dos prprios autores. Passou-se dessa forma a conhecer os escritos de um pensador, a ter acesso s suas idias, em alguns casos de modo exclusivamente indireto, por via de seus comentadores. E indo alm, os comentrios passaram a confluir para a produo de um efeito de classificao, de seleo dos trabalhos indicados como relevantes, alando-os condio de clssicos e, em contrapartida, relegando os demais ao esquecimento. Mais do que uma genealogia consagrada de pensadores, mais do que uma seqncia autorizada de obras clssicas, o que se impe, em grande parte atravs dos comentadores, uma determinada leitura dos autores e de seus textos.8 Isso se observa em uma escala tanto maior quanto mais mediatizado for o contato com o autor, quanto menor for seu controle sobre a imagem que dele se cristaliza e sobre a apropriao de suas idias. Mas mesmo quando se tem acesso aos seus prprios trabalhos, isso no significa que a percepo que deles se tem, que os elementos que deles se relevam, no sejam de modo amplo determinados a priori, ainda que o leitor no se d conta disso necessariamente.9 Na verdade, o que est em jogo, para alm da cristalizao de uma leitura, uma naturalizao de hipteses, uma imposio de um objeto pr-construdo. Desse modo, definir um trabalho como um estudo de elites, em qualquer disciplina das cincias sociais, mais do que obrigar-se invocao de uma genealogia consagrada de autores e comentadores, com a inevitvel referncia aos seus pais fundadores, significa tambm incorporar um conjunto de noes e de questes prvias. Uma vez, porm, que essas operam como instrumentos de percepo e de construo da realidade social, a sua incorporao no-controlada termina por se constituir em um obstculo ao conhecimento. O que se pretende com este livro , produzindo uma sociologia histrica da teoria das elites, contribuir para uma ruptura com a sua incorporao no-controlada. Procurar-se- ver como, historicamente, as elites se constituram em objeto de reflexo sociolgica, construindo-se em torno delas uma teoria que se imps como instrumento privilegiado de anlise social. Isso ser feito, basicamente, a partir de uma anlise das trajetrias de Mosca e de Pareto, tentando-se demonstrar como, com a construo e a afirmao da teo-

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ria, jogou-se, a um s tempo, a imposio tanto intelectual quanto poltica de seus dois formuladores. Dando-se conta das condies em que determinadas formulaes foram produzidas, remetendo-as aos seus contextos e aos seus sistemas de relaes especficos, o que se busca produzir uma desnaturalizao de noes cristalizadas, evidenciando, em um s processo, a necessidade de submeter tambm comentadores e comentrios a um mesmo tipo de anlise, inscrevendo-os em seus espaos de posies especficos, remetendo-os aos seus conjuntos particulares de constrangimentos, restituindo as condies de possibilidade de suas prprias leituras. Dessa maneira, poder-se- perceber a descontinuidade naquilo que apresentado como contnuo, localizar o que visto como universal e introduzir a concorrncia no que apropriado segundo uma lgica de influncia e de colaborao. A nfase nas trajetrias sociais confere uma das marcas distintivas deste trabalho. Em vez de, como feito normalmente, limitar o estudo a uma exegese e um comentrio de textos consagrados, inserindo-os em uma determinada cadeia de pensamento, vinculando-os queles que seriam seus predecessores e sucessores, ou detectando seus opositores intelectuais, identificando seus pontos de divergncia em relao a estes, enquadrando-os em alguma categoria ampla e fixa de estilo, buscar-se-o os fundamentos das formulaes de Mosca e de Pareto, remetendo-as s distintas posies sociais por eles ocupadas no espao italiano de fins do sculo XIX e incio do sculo XX. Trata-se, com essa abordagem, de lidar com as idias dos autores de modo objetivado, inscrevendo-as, assim como as opes, carreiras e estratgias de cada um deles, em um conjunto de possveis. Tal conjunto, por sua vez, ser visto como institudo pela interseo de um espao social de posies estruturadas, no qual os indivduos, dotados de composies de capitais e de recursos diversos, localizam-se e so localizados de forma diferencial, vale dizer relacional, com um habitus, isto , com esquemas incorporados de viso, de percepo, de classificao do mundo, geradores de prticas sociais que so, por seu turno, igualmente estruturadoras do espao estruturado, reproduzindo-o ou transformando-o.10 importante ressaltar que, da perspectiva que aqui se adota, os indivduos no podem ser tomados como pontos fixos no espao. Pelo contrrio, tanto as alteraes que se do em suas composies especficas de capitais, quanto as modificaes que se operam ao longo do tempo na estrutura do espao no qual se inscrevem, levamnos a deslocamentos relativos de posio, o que resulta em mudan-

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as em suas prprias idias, vises, percepes. isso que se procurar evidenciar a partir de Mosca e de Pareto. Portanto, em vez de tomar por base apenas um texto consagrado de cada autor ou The ruling class (Mosca, s.d.) e o Trait de sociologie gnrale (Pareto, 1933), que so comumente mais citados , trabalhar-se- com alguns de seus escritos mais significativos, produzidos em momentos distintos, relacionando-os com suas trajetrias e com suas diferentes posies sociais. Nada mais distante da linha que conduz este livro, por conseguinte, do que a leitura das formulaes daqueles autores como manifestaes de um carter individual imutvel. Nada mais estranho do que a tentativa de encontrar aquilo que seria a essncia do seu pensamento, uma essncia que se manifestaria em todos os seus escritos e que, por isso mesmo, poderia ser conhecida a partir de apenas um deles. Nada mais discrepante, por outro lado, do que tomar a afirmao, a aceitao de suas idias, como um processo natural, fruto de alguma espcie de movimento prprio, de fora magntica, de potncia luminosa, de sua superioridade, de seu poder, de seu alcance.11 Se a teoria das elites, na forma que lhes deram Mosca e Pareto, pde se impor, isso resultou, em grande parte, de um trabalho de afirmao dos autores, como efeito de seu esforo de reconhecimento. E quando se fala em trabalho de afirmao, em esforo de reconhecimento, isso feito em um duplo sentido, isto , no de imposio e aceitao tanto das idias quanto dos prprios autores. A imposio e o reconhecimento de uma idia, portanto, sero vistos aqui como inseparveis da imposio e do reconhecimento de um autor, atribuindo-lhe, somando-lhe prestgio, notoriedade, posio social, alm de outros ganhos, inclusive financeiros, tanto dentro quanto fora de seu campo privilegiado de insero. Por isso, os debates intelectuais, mesmo os aparentemente mais desinteressados, no sero tratados como meros embates de idias, em que cada contendor se v movido to-somente pela busca da verdade e do conhecimento, tentando afirmar sua tese e infirmar a do outro apenas em prol do avano da cincia. Isso no significa, claro, que se v considerar que os agentes sejam sempre explicitamente, ou mesmo conscientemente, movidos pela busca de prestgio e notoriedade. Trata-se, na verdade, de uma regra incorporada do jogo intelectual, do jogo cientfico, que se mostra como to mais legtimo quanto mais aparentemente desinteressado, desprendido for.12

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O que decorre da forma como construdo o objeto deste livro que seu eixo estruturador ser eminentemente relacional. Tomar os autores como agentes em um espao de posies implica, de modo necessrio, perceb-los como agentes em relao. Da mesma forma portanto que no se pode trat-los como pontos fixos, imutveis, no possvel isol-los em suas posies. por relao aos demais agentes, por suas disputas, concorrncias e alianas, que suas aes, estratgias, investimentos, tomadas de posio, assim como suas idias, podem ganhar maior inteligibilidade. exatamente sobre esse argumento que se apia uma das hipteses centrais do presente trabalho, qual seja, a de que foi na concorrncia entre Mosca e Pareto que, em larga medida, a teoria das elites foi formulada e imposta enquanto tal. Mais do que isso, buscar-se- mostrar que a pugna de Mosca com Pareto tambm pesou, e de forma decisiva, para a afirmao das prprias cincias sociais. H que se ressaltar, todavia, que o fato de se enfatizar um feixe de disputa no significa que vo ser desconsiderados outros igualmente importantes. Pelo contrrio, o que se procurar justamente levar na devida conta o conjunto de relaes significativas nas quais os autores se inscreviam, avaliando seus efeitos no apenas sobre a formulao, a reformulao e a imposio da teoria das elites, mas sobre a afirmao mesma das cincias sociais.13 Este ltimo ponto bsico e nos remete ao contexto geral em que viveram Mosca e Pareto, e maneira pela qual a teoria das elites, em suas formulaes originais, comumente avaliada. Ainda que possam se distanciar em aspectos fundamentais de suas anlises, h questes e problemticas centrais e interligadas, comuns aos dois autores e bastante caractersticas do quadro poltico, social e intelectual da virada do sculo XIX. Questes como a da igualdade, da democracia, da soberania popular, da representao poltica, do sufrgio universal e do socialismo foram impostas agenda poltica em um mundo em intensa transformao e movimento, um mundo em que se desagregava uma antiga ordem, em que se rompiam laos tradicionais de dominao, em que se conformavam novos atores e que antigos eram deslocados, um mundo, enfim, marcado por enfrentamentos abertos, diretos, por revolues e por guerras.14 A prpria imposio daquelas questes se deu, de fato, como parte mesmo dos enfrentamentos. Elas se afirmaram como palavras de ordem dos que combatiam o Antigo Regime procurando deslegitim-lo, desnaturaliz-lo, caracterizando como arbitrria e injusta a ordem tradicional calcada na desigualdade entre os homens , entre eles aqueles que buscavam impor-se politica-

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mente atravs da introduo de um novo ator, as massas, das quais se diziam autnticos representantes e intrpretes. Tratava-se de um momento de afirmao da democracia, de extenso da participao e da cidadania poltica, de alargamento tendencial dos limites da polis no sentido do demos, de maneira global. A discusso sobre a adoo do sufrgio universal se impunha como central e vrios pases passavam a promover uma ampliao substancial das franquias polticas.15 Tudo isso, claro, levava polticos e partidos a aderirem s novas regras do jogo, lanando-se em uma luta concorrencial pelo voto. Esse processo, por sua vez, correspondia imposio de uma nova legitimidade poltica, calcada no voto, que, em contrapartida, obrigava boa parte dos mais reticentes a declarar publicamente sua fidelidade democracia, contribuindo para a sua consolidao.16 Como lembra porm o historiador Arno Mayer, preciso reconhecer que todas essas eram mudanas em operao, e que seu ritmo no foi to acelerado quanto at aqui se julgou, com base nos discursos de seus defensores, tomados que foram como expresses dos processos reais. Mayer procura demonstrar, em seu livro A fora da tradio, que a antiga ordem era dotada de um enorme flego, persistindo, grosso modo, at a I Guerra Mundial (Mayer, 1987:14-5). Na verdade, observa o autor, as idias e os valores tradicionais eram bastante fortes na maior parte da Europa, inclusive entre a prpria burguesia em ascenso, que adotava prticas e posturas da aristocracia.17 Mais do que isso, havia mesmo vnculos evidentes entre setores da burguesia e da aristocracia do Antigo Regime, a quem os primeiros recorriam no apenas para questes de tarifas, contratos e cargos pblicos, mas igualmente para proteo externa contra potncias rivais e interna contra grupos nacionais subordinados e tambm contra agitaes de trabalhadores (Mayer, 1987:270). A presena dos trabalhadores era na verdade um elemento fundamental, exercendo um peso decisivo nos clculos dos setores dominantes e determinando a resistncia, ao menos de parte deles, em relao democracia e aos seus possveis efeitos. A afirmao do movimento operrio e a expresso que o socialismo vinha alcanando em alguns pases eram vividas como decorrncias da democracia, atribuindo-se a ela, no em si, mas pelo que poderia propiciar, um forte carter de ameaa. O resultado disso foi um certo reforo da antiga ordem, associado adoo de um liberalismo excludente, represso aos movimentos de massa e isolamento dos setores mais radicais jacobinos e socialistas. Procurava-se salvaguardar a ordem, como aponta

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Hobsbawm, aliando a represso e o endurecimento promoo de algumas reformas, implementao de polticas burguesas e adoo de instituies liberais, aceitando a ampliao da participao, mas dentro de determinados limites, restringindo-a, por exemplo, atravs de critrios sexuais ou da exigncia de qualificaes educacionais ou de propriedade.18 Em termos intelectuais afirmava-se ao invs de um quadro de otimismo impulsionado pelo progresso, de crena na razo, caractersticos do Iluminismo um clima de ceticismo, um sentimento de decadncia e de incerteza. Para a intelligentsia europia, em larga medida, segundo Mayer, a mobilizao e o apelo democrtico, nos nveis em que vinham se dando, entrariam fatalmente em choque com a cultura humanstica prevalecente, o que resultaria em um perodo de trevas (Mayer, 1987:271).19 Darwin e Nietzsche, ainda de acordo com o autor, constituram-se naquele momento em fonte intelectual para a mal-intencionada e belicosa investida ideolgica contra o progresso, o liberalismo e a democracia (Mayer, 1987:285).20 Dessa mesma raiz, na anlise de Mayer, que havia brotado o elitismo. Juntamente com o darwinismo social, ele havia desafiado e criticado

o Iluminismo do sculo XIX, e mais particularmente as presses pela democratizao social e poltica. O termo elite, carregado de valores, s se definiu como tal de forma plena no final do sculo XIX, e recebeu sua mais ampla e corrente aceitao em sociedades dominadas pelo elemento feudal. Mas, por toda a Europa, as teorias da elite espelhavam e racionalizavam prticas predominantes correntes, ao mesmo tempo em que serviam como arma na batalha contra o nivelamento poltico, social e cultural (Mayer, 1987:276).

Os autores elitistas portanto, segundo a avaliao do historiador, estavam na contracorrente da democracia e dos movimentos sociais, negando-os atravs da crtica idia de igualdade. Para eles, a democracia, tal como proposta e por extenso o prprio socialismo, que levava ao paroxismo a idia de igualdade , no apenas era uma metafsica, uma abstrao sem base real, mas tambm operava como uma forma de legitimar o poder, este sim real, de uma minoria. Apresentavam-se eles, por conseguinte, como pensadores realistas, demolidores de mitos.21

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Assim, Mosca e Pareto teriam contribudo, atravs de suas investigaes, para a manuteno do que Mayer chama de elites prindustriais. Eles o fizeram, desdenhosos e temerosos da participao e do controle populares, limitando sua ateno ao recrutamento e renovao das classes governantes (Mayer, 1987:286). Prxima a esta a anlise do cientista social Albert O. Hirschman, em seu A retrica da intransigncia.22 Ele abre seu argumento apropriando-se da tese do socilogo Thomas H. Marshall (1967), segundo a qual a cidadania no Ocidente se afirmou a partir de trs dimenses, distintas e consecutivas: a civil, no sculo XVIII, expressa pela igualdade perante a lei e pelos direitos do homem; a poltica, no sculo XIX, caracterizada pela ampliao do direito de voto no sentido do sufrgio universal; e, finalmente, a social e econmica, j no sculo XX, associada ao Welfare State. Para Hirschman, cada uma dessas dimenses desencadeou formas de resistncia especficas, ou ondas reacionrias, apoiadas em trs teses bsicas. A primeira foi a da perversidade, que sustentava que qualquer ao adotada no sentido da melhoria de aspectos econmicos, sociais ou polticos terminaria de algum modo produzindo o efeito inverso, piorando aquilo que se desejava remediar. A segunda, a da futilidade, partia da idia de que as aes propostas fatalmente resultariam infrutferas. Quanto terceira, sua avaliao era a de que as aes, ainda que pudessem ter alguma eficcia, teriam um custo muito elevado, pondo em srio risco valiosas realizaes anteriores. No fortuito, portanto, o fato de ser ela denominada tese da ameaa (Hirschman, 1992:11-6). No caso da extenso do voto na Europa do sculo XIX, a oposio foi particularmente forte. Tratava-se afinal, segundo Hirschman, de uma sociedade como Hobsbawm e Mayer tambm apontaram fortemente hierarquizada, na qual os grupos inferiores eram vistos com profundo desprezo, tanto pelas camadas altas quanto pelas mdias. A proposta de incorporao das massas poltica, por conseguinte, soava como altamente perigosa e mesmo aberrante (Hirschman, 1992:25-6). Todo esse ceticismo e hostilidade em relao ao avano da democracia, prossegue o autor, encontraram respaldo, j no final do sculo, nas teorias cientficas, mdicas e psicolgicas, que atribuam s foras irracionais um grande peso no comportamento humano. Munidas desse poderoso argumento, tais teorias ameaavam jogar por terra a cidadela liberal iluminista, expondo a fragilidade de um dos seus principais pilares a crena na racionalidade , bem como de toda uma cadeia de idias a ela associadas, entre as

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quais a do sufrgio universal. Demonstrada, afinal, a carncia de fundamento cientfico de tais idias, a sua prpria defesa perdia sentido (Hirschman, 1992:27). Um dos autores de poca que, na opinio de Hirschman, melhor expressaram essa reao negativa aos avanos do direito de voto e da democracia, enquadrando-se na tese da perversidade, foi o psiclogo francs Gustave Le Bon (Hirschman, 1992:27-9).23 A exemplo de outros pensadores, ele foi

atrado irresistivelmente para a ridicularizao dos que pretendem mudar o mundo para melhor. E no basta mostrar que esses ingnuos Weltverbesserer se do mal: preciso provar que na verdade eles so, se me for permitido cunhar o termo alemo correspondente, Weltverschlechterer (pioradores do mundo), que deixam o mundo em pior forma do que a que predominava antes de qualquer reforma ser instituda. Alm disso, deve-se mostrar que a piora ocorre exatamente na mesma dimenso em que se supe que haja melhora (Hirschman, 1992:29-30).

O livro Psychologia das multides, de Le Bon, foi publicado pela primeira vez em 1895 e tinha um carter claramente normativo. Vale a pena seguir seu argumento com algum detalhe, mesmo que isso represente um momentneo deslocamento, at porque ele se disseminou de forma evidente, sendo apropriado por um grande nmero de pensadores, e conhecido tanto por Mosca quanto por Pareto. Alm disso, esse procedimento permitir trazer elementos para relativizar o enquadramento que a ele d Hirschman, como um expoente da tese da perversidade. Era de dvida e apreenso, segundo Le Bon, o estado em que se encontrava o mundo, imerso em uma fase de transformao e anarquia. Na base disso estava o nascimento das multides como nova potncia, como a ltima soberana da idade moderna (Le Bon, 1922:vi-vii). Aladas vida poltica, as classes populares se transformaram em classes dirigentes, insufladas pela propagao de determinadas idias, como as socialistas, e pelo processo de organizao. Unificando e precisando seus interesses e reivindicaes, elas vinham se impondo com fora sociedade, ameaando conduzi-la no rumo no do seu futuro, mas do seu passado, da barbrie, de um comunismo primitivo que caracterizou a aurora da civilizao (Le Bon, 1922:vii-ix).

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Se essa era uma possibilidade bastante real, era tambm um sintoma universal, o que significava dizer que simples lamrias no evitariam o desfecho desastroso. Era preciso portanto entender a situao para lidar melhor com ela (Le Bon, 1922:ix-x). Tal a razo de ser da psicologia das multides, conhecimento indispensvel para os estadistas que quisessem, se no governar as turbas, uma vez que isso era extremamente difcil, ao menos no serem governados por elas (Le Bon, 1922:xiii). As multides, segundo Le Bon, se caracterizavam por uma unidade mental, ainda que provisria. Nelas desaparecia a personalidade consciente, individual, que dava lugar a uma alma coletiva, a sentimentos e idias comuns, a caracteres novos, distintos dos que isoladamente se expressavam (Le Bon, 1922:2-6). A vida consciente era na verdade bastante diminuta quando comparada com a inconsciente. Fruto da educao, era ela, principalmente, a responsvel pela diferena entre os homens. Por sob os atos conscientes, entretanto, havia uma base inconsciente formada de influncias hereditrias, de resduos ancestrais, que constituam a alma da raa e que, em larga medida, escapavam percepo dos homens, tornando-os ao mesmo tempo semelhantes (Le Bon, 1922:6-7). Essas caractersticas gerais componentes da raa emergiam nas multides, conformando o solo comum que as unia. Regidos pelo inconsciente, os homens, nas multides, viam dissiparem-se as suas aptides intelectuais e a sua individualidade, o que resultava em uma fuso de qualidades humanas medocres, em uma incapacidade para a realizao de atos que exigiam o uso da inteligncia (Le Bon, 1922:7-8). Alm da combinao de qualidades ordinrias, as multides geravam caracteres novos nos homens, e isso, de acordo com Le Bon, por trs razes. A primeira era a fora quase invencvel com a qual, em uma multido, o indivduo se sentia dotado e que o levava a ceder a instintos que de outro modo no cederia, a dar vazo a todos os seus desejos, certo de seu anonimato, de que no seria pessoalmente responsabilizado. A segunda e a terceira razes, respectivamente o contgio e a sugestibilidade, associadas, tornavam por sua vez irresistveis as presses sobre o indivduo, levando-o a sacrificar seus interesses pessoais em favor dos coletivos, agindo como um autmato destitudo de vontade (Le Bon, 1922:8-11). Com esse perfil, as turbas eram autoritrias e intolerantes, apegando-se mais aos tiranos que as dominavam do que aos governantes bondosos. Respeitavam a fora ao mesmo tempo em que tomavam a bondade como sinal de fraqueza (Le Bon, 1922:35).

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As decises da maioria, aferidas atravs de votaes, no eram portanto necessariamente as melhores ou mais acertadas. Pelo contrrio, era preciso ver que, ainda que de forma restrita ao momento da eleio, os eleitores tambm constituam multides. Dessa maneira, neles podiam igualmente ser observadas manifestaes como a da baixa aptido para o raciocnio, a ausncia de esprito crtico, o simplismo e a credulidade, o que, justamente, tornava suas decises sujeitas a influncias de agitadores (Le Bon, 1922:164-5). O corolrio disso parece ser claro. Se a equalizao entre os homens, gerada pela multido, era sinnimo de irracionalidade e barbrie, qualquer deciso que a tomasse por base devia obrigatoriamente ser posta em questo. E uma vez que nas eleies os homens formavam multides, o sufrgio universal padecia de srios males. Entregar a ele o destino de uma civilizao, diz Le Bon, seria torn-la refm do imprevisto, de instintos e desejos primitivos, de elementos inferiores, caracterizados por seu baixo valor mental. Nessa perspectiva, a soberania popular era um capricho altamente nocivo, que j havia acarretado pesados prejuzos e que poderia, como um de seus grandes perigos, ensejar a vitria do socialismo. Inversamente, havia em Le Bon uma outra equao, de resultado positivo, que associava de forma direta individualizao, diferena, racionalidade e civilizao. As civilizaes se originaram e evoluram a partir de pequenas minorias de espritos superiores, que eram tambm a sua garantia de continuidade. Tal cadeia, portanto, no devia em hiptese alguma ser rompida (Le Bon, 1922:171-2). Mas no se tire da nenhuma concluso apressada de que, no lugar do sufrgio universal, Le Bon defendesse algum sistema de voto restrito minoria de espritos superiores. Fiel sua premissa de que uma multido era sempre inferior, qualquer que fosse a sua composio ou tamanho, afirmava ele que em geral o sufrgio de 40 acadmicos no superior ao de 40 carregadores de gua (Le Bon, 1922:173-4). No obstante o acerto e a pertinncia de suas objees, Le Bon considerava que o sufrgio universal e a soberania das multides haviam se tornado dogmas inatacveis, assim como as idias religiosas na Idade Mdia. No era portanto possvel bloque-los, cabendo ao tempo a tarefa de operar seu desgaste (Le Bon, 1922:172-3). E, para concluir, observava que algumas das caractersticas expostas eram vlidas tambm para as assemblias parlamentares, que igualmente eram multides. Da ser falsa uma das idias bsicas do regime parlamentar, qual seja, a de que muitos homens reu-

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nidos eram capazes de decises mais sensatas e independentes (Le Bon, 1922:176-7). Entretanto, cabia reconhecer que as assemblias parlamentares conformavam multides apenas em alguns momentos. Alm disso, normalmente as leis votadas eram fruto de uma reflexo individual, especializada, elaborada no silncio de um gabinete. Por isso mesmo, apesar de todas as dificuldades, os parlamentos eram, na concluso de Le Bon, o melhor mtodo que os povos ainda acharam para governar-se e, sobretudo, subtrair-se o mais possvel ao jugo das tiranias pessoais (Le Bon, 1922:190). Retomando o argumento de Hirschman, alm de Le Bon, Mosca e Pareto haviam se perfilado na crtica democracia e ao sufrgio universal, ainda que partindo de uma tese distinta. Construindo um discurso que se apresentava como cientfico observa o autor , eles procuraram combater aqueles princpios demonstrando a sua futilidade, afirmando que qualquer sociedade, fosse qual fosse a sua organizao poltica, estaria sempre dividida entre governantes e governados, ou entre elites e no-elites (Hirschman, 1992:49). Na verdade, o que Hirschman procura indicar a existncia de um forte e generalizado clima intelectual antidemocrtico, englobando no apenas os setores conservadores, mas igualmente os ditos progressistas. No havia pois uma grande distncia entre as formulaes de um pensador como Pareto e as de Lenin, seu contemporneo. De fato, para Hirschman, em livros como El Estado y la revolucin, Lenin, mais do que Marx, havia sido influenciado por idias como as do prprio Pareto e de inmeros outros detratores da democracia e praticantes do argumento da futilidade.24 Indo mais alm, o autor sugere que o comunismo e o fascismo tinham uma matriz comum, visto ter este ltimo bebido naquelas mesmas fontes (Hirschman, 1992:123-4).25 V-se que o painel pintado por Hirschman para a origem da teoria das elites coincide com o de Mayer e, em traos gerais, com o da grande maioria dos demais comentadores. Existe portanto um relativo consenso entre eles, no que toca s questes-chave e aos mveis originais de Mosca e de Pareto, ainda que nem todos tenham a mesma avaliao de que, mais do que crticos, aqueles autores tenham sido inimigos da democracia, do liberalismo, do sistema representativo. Dois aspectos que informam a leitura dos comentadores citados cabem ser destacados. O primeiro uma clara tendncia a homogeneizar os autores e suas idias, a partir de elementos aparentemente comuns a todos eles. Dessa forma, torna-se perfeitamente

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lcito colocar lado a lado pensadores como Mosca, Pareto, Le Bon e mesmo Lenin, deixando-se de atentar para as suas diferenas. preciso ver contudo que, embora haja elementos recorrentes em suas formulaes, disso no decorre que os autores atribuam a eles os mesmos sentidos, ou que sejam idnticos os pesos e os lugares na argumentao conferidos a cada um deles. Alm disso, mesmo que seja possvel falar de uma matriz comum a todos aqueles pensadores, h que se perceber a forma diferencial com que ela apropriada, acionada, e os usos distintos que dela so feitos por cada um deles. A anlise que ser aqui desenvolvida visa justamente a dar conta dessas diferenas, sem descurar das semelhanas, relacionando-as com as trajetrias diversas, com as posies sociais distintas, e mesmo com as prticas e estratgias variadas dos autores Mosca e Pareto de modo mais especfico. Procedendo desse modo, ser possvel, igualmente, trazer elementos para uma relativizao do sentido universal de processos como o da afirmao da democracia e da expanso da cidadania poltica atravs da adoo do sufrgio universal. Muito embora se observasse uma generalizao de tais processos na Europa no perodo em questo, eles no apenas no assumiram as mesmas configuraes e os mesmos significados em todos os lugares, como tambm no foram vividos de maneira idntica por todos os grupos sociais. Assim, a mera qualificao de um discurso como uma reao ao avano da democracia, afirmao poltica das massas e ao perigo socialista pouco nos diz sobre a especificidade desse discurso; ao contrrio, ela em muito dificulta a percepo das diferenas entre esta e outras possveis reaes, e torna brutais os obstculos compreenso dos mecanismos e das formas reais do que seria ou no o avano da democracia, a afirmao poltica das massas e o fortalecimento do socialismo. Articulado a isso, deve ser igualmente levado em conta o segundo aspecto informador da leitura dos comentadores, ao qual j se fez referncia. certo que livros como os de Mayer e de Hirschman so referncias fundamentais, contribuindo para relativizar a viso que se tinha do sculo XIX e do incio do sculo XX como um perodo caracterizado pelo avano inexorvel da modernidade, do capitalismo, da indstria, do liberalismo, da democracia e das classes subalternas. Todavia, ao enfatizarem os aspectos de conservao e de reao, de restaurao, que marcaram aqueles anos, esses autores deixaram de dar a devida importncia ao que havia de novo naquelas mesmas reaes.

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Como contraponto, pode-se citar Viena fin-de-sicle, de Carl Schorske, que se debrua sobre o mesmo perodo e sobre questes de certo modo prximas. Analisando as relaes entre cultura e poltica em Viena, na virada do sculo XIX para o XX, o historiador tenta caracterizar as inovaes realizadas pela intelligentsia local em campos como os da msica, da filosofia, da economia, da arquitetura e da psicanlise em um quadro de decadncia e fragmentao. Atacando uma tradio cultural liberal na qual haviam sido gestados, os intelectuais vienenses puderam afirmar suas produes como crticas, inovadoras, transformadoras, formando a partir da novas escolas (Schorske, 1988, passim). Outra reflexo interessante a de Karl Mannheim sobre o pensamento conservador alemo do sculo XIX. Qualificando-o como moderno, Mannheim o distingue do tradicionalismo enquanto resistncia pura e simples a mudanas, empenho emocional em deter ou mesmo em fazer retroceder o curso da histria. Longe disso, aquele conservadorismo, na avaliao do autor, havia se constitudo como um esforo consciente de construo de uma filosofia poltica, de um sistema estruturado de reflexo, assim como o era, ento, o racionalismo iluminista, mas em oposio a este. Tendo portanto o racionalismo iluminista como referncia obrigatria, o conservadorismo alemo se afirmou como um contra-sistema, como uma tentativa de, mais do que pensar algo diferente, pensar, isso sim, diferentemente. E indo mesmo alm, tratou ele no apenas de afirmar-se como um pensar diferente, mas, de igual modo, como o pensar autntico, verdadeiro e superior ao Iluminismo (Mannheim, 1981, passim). O que importante ressaltar que se est diante de um esforo de compreenso de um mundo visto como em transformao, de uma tentativa de dar conta, a partir de determinados esquemas de percepo incorporados, de elementos que agora se afiguravam como questes. Desnaturalizando-se, rompendo-se gradativamente a legitimidade da ordem tradicional e das formas de dominao vigentes, elas passavam a ser encaradas como problemas, questes a serem resolvidas, objeto de intensas disputas entre portadores de solues e projetos distintos.26 Na verdade, particularmente em momentos como esse que determinadas manifestaes terminam se impondo e sendo reconhecidas como inovadoras. Mas preciso atentar para o fato de que, mesmo para os que naquele momento se identificavam e eram identificados com uma postura conservadora, no se tratava meramente, como bem observou Mannheim, de deter a roda da histria. Eles tambm reconhe-

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ciam tratar-se de um contexto distinto, com novas foras em cena, e que no podiam ser ignoradas, como fica claro em Le Bon. Mannheim refora essa hiptese ao observar que os conservadores alemes do sculo XIX de certa forma percebiam no ser sensato rejeitar terminantemente algumas idias bsicas do liberalismo, como a da prpria liberdade, em uma indicao do grau de reconhecimento que haviam alcanado.27 Eles as incorporavam, mas esvaziando seu contedo geral, universalizante, procurando qualific-las, remetendo-as a realidades especficas (Mannheim, 1981:115-6). O que estava em jogo, portanto, era no um simples retorno a um statu quo ante, mas a imposio de uma nova legitimidade social. interessante perceber que, na disputa pela imposio de uma nova legitimidade social, terminou tambm impondo-se uma nova legitimidade para a prpria disputa. Le Bon o indica, ao afirmar que no cabiam mais apenas lamrias diante da presena inexorvel das multides. Era preciso ir alm, explicando, entendendo o seu funcionamento, o que se faria, por exemplo, atravs de uma disciplina especfica como a psicologia. Os trabalhos de Mannheim e do prprio Hirschman tambm reforam a idia da conformao de uma nova legitimidade para a disputa. O primeiro, ao concluir que o conservadorismo, em sua oposio ao liberalismo, teve que se constituir assim como este em uma filosofia poltica, em um sistema estruturado de reflexo. Mais ainda, em seu empenho de relativizao das categorias bsicas do pensamento liberal, procurando qualific-las, concretiz-las, individualiz-las segundo naes, o conservadorismo, como mostra Mannheim, apontava para a necessidade de se conhecer objetivamente as origens e o desenvolvimento especficos de cada idia, de cada instituio, e assim por diante, o que se faria atravs da histria que, ento, se constitua enquanto disciplina autnoma, enquanto cincia (Mannheim, 1981:120-7). Hirschman, por seu turno, deu indicaes dos novos termos da disputa ao observar que, a partir do sculo XIX, a reao democracia e instituio do sufrgio universal havia se dado, em larga medida, sob a forma de uma argumentao cientfica que buscava demonstrar, de forma cabal e objetiva, a sua inviabilidade, evidenciando assim a fraqueza, a insuficincia e o desconhecimento daqueles que as defendiam. As cincias, portanto, se constituram em arena privilegiada das disputas pela imposio de uma nova legitimidade social. E quando se fala em cincias a referncia, basicamente, so as cincias sociais a sociologia e a cincia poltica em particular , bem

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como a histria, que nesse mesmo processo se instituram enquanto tais, enquanto disciplinas, reas especficas de reflexo, com objetos, mtodos e, acima de tudo, com especialistas prprios.28 por esse prisma que, guardadas as devidas diferenas, devem ser vistos os trabalhos de Mosca e de Pareto. Eles falam da incapacidade das massas e da desigualdade entre os homens, questionando, em conseqncia, a democracia e o sufrgio universal, alm do socialismo, em um momento em que as massas afirmavam sua presena na cena poltica, que a igualdade e a democracia se generalizavam como valores legtimos e que o sufrgio universal comeava a se disseminar. Sua linguagem, porm, no era simplesmente a do poltico militante, mas a do cientista social. Do mesmo modo, seus objetivos eram apresentados como cientficos. H que se ter bem claro, ao tomar as teses de Mosca e de Pareto, que, embora elas possam conter um carter normativo e expressar de fato um imbricamento entre cincia e poltica, no se est to-somente diante de uma forma travestida de debate poltico. Se o que est em jogo ali o prprio futuro da ordem poltica, social e econmica, a eficincia de cada jogador, suas habilidades e trunfos sero avaliados, em larga medida, em termos cientficos. Ou seja, o efeito poltico poder ser tanto maior quanto mais reconhecidamente cientficos, imparciais, forem os argumentos. Por conseguinte, trata-se tambm de uma disputa poltica, mas que, sob pena de se ilegitimar, deve se mostrar, principalmente, como um debate cientfico, objetivo, inclusive para os prprios jogadores. E na medida em que isso ocorre, mais do que a verdade poltica, que igualmente uma verdade cientfica e por isso mesmo , o que se busca a um s tempo prestgio, distino e notoriedade em um campo cientfico em formao, ou prestgio, distino e notoriedade atravs da formao de um campo cientfico. A disputa cientfica que se deu entre Mosca e Pareto pela definio das elites pode assim, de modo concomitante, ser lida como uma disputa pela definio de quem seriam as elites cientficas, pela imposio de um paradigma legtimo de avaliao e reconhecimento dos especialistas em cincias sociais. Alm disso, a concorrncia pela afirmao como elite cientfica, nesse caso, significava, ao mesmo tempo, constituir as prprias cincias sociais, impondolhes um objeto privilegiado, uma teoria a ele relacionada e uma forma legtima de trabalh-lo, assim como criando-lhes posies institucionais especficas, como cadeiras universitrias. Portanto, na luta pela afirmao e pelo reconhecimento enquanto cientistas sociais, Mosca e Pareto terminaram por trabalhar para a afirmao

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e o reconhecimento das prprias cincias sociais. E ao faz-lo, mais do que competirem por posies j existentes, puderam, eles mesmos, criar para si tais posies. interessante observar que, quando se olha para fora da Itlia, por exemplo para a Frana, verifica-se ser esse tambm o momento em que a sociologia se afirma e se institucionaliza como disciplina cientfica. No caso francs, a criao, a afirmao da sociologia universitria foi fruto, principalmente, do trabalho de Durkheim e dos chamados durkeimianos.29 A percepo dessa recorrncia, contudo, no nos deve levar a supor a existncia de uma uniformidade nos diversos processos locais de constituio das cincias sociais, ou mesmo no prprio sentido atribudo ao termo. Pelo contrrio, o que uma anlise comparativa mais fina pode indicar justamente o que h de cultural nas vises cientficas sobre o social, revelando a polissemia dos termos cincias sociais, sociologia e cincia poltica e evidenciando seus diferentes usos e apropriaes.30 No se objetiva aqui proceder a um estudo de escopo mais amplo, comparando realidades to distintas como as da Itlia e da Frana na virada do sculo XIX. Mas centrando a anlise na realidade italiana e, dentro dela, privilegiando as formulaes de Mosca e de Pareto, poder-se- trazer alguns subsdios importantes. O que se ver primeiro que as cincias sociais, no caso italiano, no chegaram a conformar no perodo tratado um domnio prprio, um campo autnomo, nem em relao ao direito no interior do qual surgiram e de modo geral se mantiveram , nem em relao poltica, qual permaneceram estreitamente vinculadas. Poder-se- perceber tambm, a partir de Mosca e de Pareto, como se constituram e concorreram duas posturas distintas em relao cincia. O que se observar que enquanto o primeiro adotava uma perspectiva mais abertamente engajada, uma viso normativa, o segundo encarecia a necessidade de um distanciamento, pautando-se por um ascetismo cientfico.31 Contudo, principalmente pela trajetria diferencial, pelas posies sociais diversas ocupadas por esses dois autores, que suas posturas distintas em relao cincia podem ser mais bem compreendidas. Tanto assim que, uma vez rompidas, sobretudo com o advento do fascismo, as condies que impuseram a Pareto um afastamento da poltica, sua conduta desengajada passou a experimentar uma reverso. Por outro lado, o mesmo contexto fascista, impondo a Mosca um isolamento poltico, levou-o a assumir uma perspectiva mais distanciada.

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Mais do que posturas distintas em relao cincia e aos vnculos entre esta, a poltica e a sociedade, o que estava efetivamente em jogo aqui, de maneira mais ampla, eram formas diversas de construo de um objeto, vale dizer sistemas de hipteses, explicaes e demonstraes diferentes. Em que pese a essas distines, Mosca e Pareto tm sido apropriados de forma homognea, apenas apontando-se suas convergncias e divergncias, seus pontos fortes e suas inconsistncias, sua atualidade ou seu anacronismo. O que isso acarreta de fato a incorporao, de modo naturalizado, de suas noes, seus problemas, suas questes, que so tomados como dados. A abordagem proposta neste livro conduz justamente a uma reflexo sobre a relao do cientista social com o seu objeto. Colocar em prtica essa reflexo significa buscar romper com o dado, com as noes impostas, com o pr-construdo e com a sensao de evidncia e obviedade produzida. Um dos efeitos de uma tal operao reflexiva, portanto, pode ser de uma desreificao, com um efeito tanto maior quanto mais autorizado for o objeto tratado.32 O fato de este livro centrar-se em Mosca e Pareto torna necessrios uma referncia e um esclarecimento a respeito da excluso de um terceiro pensador, tambm localizado por alguns nas origens da genealogia da teoria das elites. Trata-se do alemo Robert Michels que, em seu livro Sociologia dos partidos polticos, deu a seguinte formulao quela que ficou conhecida como a lei de ferro da oligarquia:

a organizao a fonte de onde nasce a dominao dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatrios sobre os mandantes, dos delegados sobre os que delegam. Quem diz organizao diz oligarquia (Michels, 1982:238).

Michels chegou a essa constatao a partir do estudo de algumas das grandes agremiaes de esquerda europias, principalmente a social-democracia alem no incio do sculo XX. Sua questo inicial era a de como a democracia podia ser exercida no interior dos partidos polticos, visto que neles se operava inevitavelmente uma concentrao de poderes, uma cristalizao de lderes, uma oligarquizao. Para respond-lo, ele investigou justamente os partidos que se apresentavam como os grandes guardies, como as expresses mais acabadas da democracia (Michels, 1982:3-5).

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O autor segue em seu livro um esquema lgico-evolutivo, partindo da necessidade de organizaes. No se concebia democracia, diz ele, sem organizao. Ela era fundamental para qualquer classe que buscava alcanar suas metas e afirmar-se socialmente. E isso se mostrava to mais verdadeiro quanto mais fraca e dominada fosse a classe, como era exemplo o operariado (Michels, 1982:15-6). A seu ver, com o crescimento e a complexificao das sociedades, o ideal participativo da democracia e a idia de governo direto das massas, que decidiam livremente em assemblias, tinham ento se tornado tcnica e mecanicamente impossveis. Michels comea a justific-lo a partir do que chama de patologia das massas. Anulando as individualidades, as responsabilidades e o poder de raciocnio, as multides eram facilmente influenciveis por oradores competentes e as assemblias, por isso mesmo, eram pouco propcias a discusses srias e decises refletidas (Michels, 1982:17-8). Sendo incompetentes para por si mesmas tomarem decises importantes, as massas necessitavam de chefes, de lderes a quem delegar tais funes, o que se refletia na sua apatia, no seu desinteresse pelas questes polticas. Alm disso, tendiam a adorar celebridades que se apresentavam, que diziam falar em seu nome (Michels, 1982:33-9). Ao lado dessa incompetncia, era preciso perceber que o volume e a disperso das massas, dada a prpria expanso demogrfica, tornavam a sua reunio em assemblias tecnicamente invivel. Diante disso, Michels concluiu que a representao de interesses por meio de organizaes e delegados era uma tendncia inexorvel. Prevaleceria aqui no entanto, em um contexto democrtico, o princpio da igualdade genrica entre chefes e massa (Michels, 1982:18). Esse princpio contudo, se vlido na origem, iria sendo aos poucos minado pela prpria diviso do trabalho poltico. A crescente complexificao das tarefas dos delegados e a necessidade de decises pontuais e urgentes sem possibilidade portanto de consulta s bases passavam a exigir deles habilidades e competncias especficas, que eram conformadas em escolas especiais. Desse modo, introduzia-se aqui um elemento de diferenciao entre delegados e massa, tornando-os, em certa medida, autnomos, independentes do controle desta (Michels, 1982:19-20). Tal situao s tendia a se aprofundar com o crescimento da organizao e, conseqentemente, do peso das atribuies dos delegados. Isso no apenas exigia que se ampliasse o quadro de funcionrios da organizao, mas igualmente que a sua dedicao pas-

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sasse a ser integral. Delegados e funcionrios tornavam-se assim profissionais da organizao, passando a depender dela para a sua sobrevivncia. Mais do que isso, a prpria sobrevivncia da organizao passava a depender deles (Michels, 1982:22-3). Com isso, observa Michels,

o direito de controle reconhecido massa torna-se cada vez mais ilusrio. Os partidrios devem renunciar a dirigir ou mesmo a supervisionar todos os assuntos administrativos. Vem-se obrigados a confiar essa tarefa a certas pessoas, especialmente nomeadas para tal fim, a funcionrios pagos pela organizao. A massa reduzida a contentar-se com prestaes de contas sumarssimas ou a recorrer a comisses de controle (Michels, 1982:22).

Apartados de suas atividades originais, os delegados passavam assim a ver como indispensveis seus ganhos na organizao.33 A continuidade desta, por seu turno, passava tambm a ficar diretamente vinculada presena daqueles que de fato conheciam seus meandros, controlavam seu funcionamento. Uma vez eleitos, por conseguinte, os delegados passavam a permanecer em seus cargos por longussimos perodos, o que vivenciavam como um verdadeiro direito moral conquistado (Michels, 1982:27). Percebendo suas posies como um direito, os chefes tendiam, por extenso, a interceder em sua sucesso, reservando-as a seus herdeiros. Nesse sentido, o que se notava era a prevalncia de prticas como a do nepotismo, do favorecimento e da cooptao, e no do mrito, da concorrncia, da eleio (Michels, 1982:66-7). O resultado dessa simbiose entre delegados e organizao era uma inverso no prprio sentido desta. Fugindo ao controle da massa, a organizao era direcionada no para os seus interesses, mas sim para os dos chefes, ou melhor, para os interesses que eles sustentavam ser da massa. Desse modo, os delegados, os representantes, deixavam de ser servidores do povo para se tornarem, na expresso do socilogo alemo, seus patres (Michels, 1982:93).34 certo, contudo, que as posies de chefia no deixavam de ser disputadas. Havia sempre novos indivduos almejando-as, o que significava a ocorrncia de lutas pela chefia. Isso forava de algum modo os antigos chefes a se mostrarem sintonizados com os sentimentos da massa, declarando serem seu instrumento, submetendose aparentemente s suas vontades. Os novos aspirantes, entretanto, buscavam derrub-los denunciando sua tirania, defendendo os

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direitos violados da massa annima, direitos que sem dvida tambm violariam uma vez alcanado o poder. Os revolucionrios de hoje, conclui Michels com ceticismo, so os reacionrios de amanh (Michels, 1982:93-103). Tais afirmaes, esclarecia o autor, no tinham o sentido de julgamento ou de aprovao, mas to-somente de demonstrar que a democracia, tal como propalada, era impraticvel. Suas formulaes eram fruto da constatao de um processo natural necessrio, decorrente da prpria democracia, e que no se limitava apenas ao mbito dos partidos, podendo ser percebido na sociedade como um todo. Buscava ele

demonstrar com evidncia que a sociedade no pode subsistir sem uma classe dominante, que esta a condio necessria para aquela e que a classe dirigente, embora sujeita na sua composio a uma freqente renovao partidria, no deixa de constituir o nico fator em que a ao se manifesta suficientemente durvel na histria do desenvolvimento humano. De acordo com essa concepo o governo ou, se preferimos, o Estado no saberia ser outra coisa a no ser a organizao de uma minoria. E essa minoria impe ao resto da sociedade a ordem jurdica, a qual aparece como uma justificao, uma legalizao da explorao qual ela submete a massa dos hilotas, em vez de ser a emancipao da representao da maioria (Michels, 1982:234).

O Estado socialista no fugia a essa regra, ainda que se quisesse a forma mais perfeita de igualitarismo. Ele era um Estado dos socialistas, e no das grandes massas, do proletariado. A vitria do socialismo, vaticinava Michels, no ser a do socialismo, que perecer no mesmo momento em que triunfarem seus partidrios (Michels, 1982:235). Michels, importante destacar, era cerca de 20 anos mais novo do que Mosca e 30 mais novo do que Pareto. Ele havia sido discpulo de Mosca em Turim, em 1907, vindo da algumas das hipteses norteadoras de Sociologia dos partidos polticos. Mosca portanto era visto por Michels como um mestre, da mesma forma que Pareto teve sua ascendncia reconhecida por ele a partir de meados da dcada de 10.35 Ainda que a primeira edio de seu livro tenha sido publicada em 1911 em alemo antes portanto do Trait de sociologie gnrale, que data de 1916 , as idias fundamentais

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de Pareto j tinham sido formuladas em trabalhos anteriores, da mesma forma que as de Mosca, cujo livro bsico e mais conhecido, Elementi di scienza politica, havia surgido em 1896. Mais do que a simples precedncia cronolgica, contudo, h um claro reconhecimento de que Mosca e Pareto foram os principais plos iniciais do debate sobre as elites, estando mais ainda referidos um ao outro. Tanto assim que dificilmente se encontra algum autor que, voltando-se para as idias de um daqueles pensadores, no se reporte de modo obrigatrio s do outro. Isso pode ser visto, alis, pelo prprio Michels, que, embora relativize a originalidade das percepes de Mosca e de Pareto, atribui a eles a constituio das elites enquanto objeto de reflexo sociolgica, aludindo ainda concorrncia entre os dois em torno da questo:

A necessidade de um grupo social dominante reconhecida, sem dvida, h muito mais tempo que imaginamos. Gaetano Mosca, que atualmente, junto com Vilfredo Pareto, o intrprete mais eminente e ao mesmo tempo o mais hbil e mais autorizado nessa concepo, Mosca, dizamos ns, embora disputando com V. Pareto a prioridade cientfica dessa teoria, no deixa de reconhecer em Hippolyte Taine e em Ludwig Gumplowicz seus precursores. Mas, fato menos conhecido, embora no menos interessante, a teoria de Mosca e de Pareto tem seus primeiros e mais considerveis antepassados intelectuais na mesma escola contra a qual ela dirige de preferncia suas flechas, ou seja, entre os pensadores socialistas e particularmente nas antigas teorias socialistas francesas: so nessas teorias, na verdade, que podem ser descobertas as sementes da doutrina que Mosca e Pareto iriam elevar mais tarde dignidade de um sistema sociolgico (Michels, 1982:226).36

preciso ver, alm de tudo, que apesar do empenho de um comentador como Ettore Albertoni (1990:17) em inclu-lo no que chama de escola italiana das elites, Michels estava bastante referido ao quadro alemo do incio do sculo XX, como bem observa Arthur Mitzman (1987). Ele havia nascido em Colnia, em uma tradicional famlia patrcia de comerciantes de l, catlica e influenciada pela cultura francesa, cuja lngua Michels aprendeu ainda em criana.

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Sua formao foi bastante cosmopolita, tendo estudado, alm da Alemanha, na Inglaterra e na Frana. Michels filiou-se social-democracia, tendo participado ativamente do movimento sindical, no apenas alemo, mas tambm francs e italiano, nunca chegando porm a alcanar posio hegemnica. Ainda assim, essa militncia lhe valeu o bloqueio das universidades alems, vedadas ao ingresso de professores socialistas ou judeus. Mesmo contando com a simpatia e o apoio de Max Weber, de cuja revista Archiv fr Sozialwissenschaft und Sozialpolitik foi assduo colaborador, Michels teve a sua carreira na Alemanha cortada, o que em parte explica a sua ida para a Itlia em 1907, perodo em que tambm se afastou do socialismo. No h assim como desvincular Sociologia dos partidos polticos da trajetria prvia de Michels. No h igualmente como descolar o livro das intensas discusses que eram ento travadas no interior do socialismo, envolvendo, entre outros, Rosa Luxemburg, Lenin e Kautsky, sobre a democracia direta e o carter dos partidos operrios. Por isso mesmo que ele foi alvo de comentrios crticos de intelectuais militantes de esquerda como Nicolai Bujarin, Antonio Gramsci e Georg Lukcs.37 Alguns crticos chegaram mesmo a no desvincular o livro de passagens posteriores da vida de Michels, como se pudessem ser estas corroboradoras do que julgavam ser a essncia do seu pensamento, emprestando sentido a todos os seus atos anteriores. A principal dessas passagens era justamente a adeso do socilogo ao fascismo, em meados dos anos 20, quando foi convidado por Mussolini para integrar os quadros da Universidade de Perugia. Para Lukcs, por exemplo, isso revelava que Sociologia dos partidos polticos, de 1911, j era norteado por princpios ou propsitos fascistas, assumidos apenas tempos depois (Lukcs, 1958:29-30). Se for somado ao que at aqui foi visto o fato de que, muito embora tenha seu nome predominantemente associado a apenas um texto, Michels tenha publicado cerca de 700 artigos e 30 livros, a maioria dos quais em alemo, ficam patentes as dimenses dos obstculos existentes para a sua incluso neste livro.38 No somente o acesso s suas publicaes seria extremamente difcil, como obrigaria a uma ampliao do leque de questes, tendo que acrescentar, alm da prpria Itlia, uma anlise, entre outros pontos, dos campos poltico e intelectual alemes. Por tudo isso, este livro se restringir a Mosca e Pareto.39

CAPTULO 1

Concorrncia e reconhecimento

Mosca e Pareto so, por via de regra, tratados de maneira conjunta pelos trabalhos referidos teoria das elites. Os dois podem simplesmente ser colocados lado a lado, procedendo-se a um arrolamento de suas idias, ou, de modo mais complexo, comparados e avaliados de forma sistemtica, apontando-se semelhanas e diferenas entre suas teses bsicas, indicando-se o alcance de cada uma. Isso pode ser percebido at mesmo nos trabalhos centrados sobre apenas um dos dois autores. Assim, por exemplo, tanto James Meisel quanto Ettore Albertoni, dois dos mais assduos e reconhecidos comentadores de Mosca, dedicam pginas a Pareto em seus textos.40 O mesmo ocorre com Arthur Livingston, editor americano de Mosca e tambm de Pareto, em sua introduo ao prprio The ruling class (Livingston, s.d.:xxxvi-xxxix). Pelo lado dos comentadores de Pareto tambm evidente o tratamento conjunto. Uma boa amostra a introduo de S. E. Finer a Vilfredo Pareto. Sociological writings e o longo captulo de Raymond Aron dedicado ao autor italiano em As etapas do pensamento sociolgico.41 H portanto um forte entrelaamento entre os dois pensadores, obrigando a que no se possa falar de um sem que ao menos se faa referncia ao outro. Uma das razes para tanto, a mais bvia, a de que ambos esto localizados nas origens da teoria das elites. Se isso bvio, contudo, o como efeito de imposio, resultado da disputa que Mosca e Pareto travaram em torno da primazia na elaborao da tese elitista. Foi essa disputa que, em grande parte, forou o encadeamento entre os dois e, mais ainda, contribuiu para a sua consolidao como fundadores da referida teoria.

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Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

A notoriedade de Pareto precedeu o seu Trait de sociologie gnrale, publicado em 1916, cerca de sete anos antes de sua morte. Foi a partir da economia poltica, campo no qual se inscrevia a maior parte de seus trabalhos, que ele se imps, se projetou, inclusive internacionalmente, como um dos expoentes do marginalismo, ao lado de nomes como os de William Stanley Jevons, Karl Menger e Lon Marie Esprit Walras. Mas suas teses sociolgicas bsicas, relativas s elites e sua circulao, vinham sendo formuladas mesmo em seus textos de cunho econmico, o que lhes emprestava maior capacidade de reverberao e difuso. Se Pareto era um autor bastante lido e conhecido, o mesmo no se pode dizer em relao a Mosca. Embora se tivesse iniciado na atividade acadmica mais jovem, bem antes de Pareto, tanto no magistrio quanto na publicao de textos, como autor Mosca era pouco difundido. Foi como poltico, principalmente, que ele se afirmou, sendo suas posies conhecidas por suas intervenes na Cmara dos Deputados e depois no Senado, como tambm por seus artigos de jornal. Esse fato foi notado por alguns de seus contemporneos, como o escritor Giuseppe Prezzolini, que, em suas memrias, faz referncia pouca fama alcanada por Mosca na Itlia (Prezzolini, 1983:258). Igualmente Mario Delle Piane, autor de uma bibliografia comentada do pensador, datada de meados dos anos 40, e do verbete a ele dedicado na International Encyclopedia of the Social Sciences, observa que as teses de Mosca sobre a classe dirigente haviam obtido, no momento em que foram formuladas, pouco sucesso e escassa difuso (Delle Piane, 1968:505). Arthur Livingston, mencionando esses mesmos aspectos, os atribui s caractersticas mentais de Mosca, moldadas pelo ambiente siciliano em que havia crescido, que determinavam um estilo de comportamento mais plcido, mais comedido, mais introvertido, evitando a pirotecnia, a exposio excessiva, a fama pblica (Livingston, s.d.:xiv). Contudo, interessante observar, no era exatamente esse o estilo que Mosca adotava quando se tratava de demarcar sua anterioridade, de reivindicar sua originalidade na formulao da tese elitista diante de Pareto. Este, a despeito de ter publicado posteriormente, alcanava maior repercusso e notoriedade, associando seu nome quela que se buscava afirmar como uma novidade sociolgica e, alm disso, no atribuindo crdito a Mosca. Em uma aula magna proferida na Universidade de Turim em 1902, imediatamente aps a publicao de Les systmes socialistes, de Pareto, Mosca lanou sua primeira investida aberta contra este, destacan-

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do que, embora ainda em grande parte aceita na cincia poltica, a classificao tradicional das formas de governo como monarquia, aristocracia e democracia, originada em Aristteles, vinha sendo posta em xeque, particularmente na Itlia. Em uma aluso a seu livro Teorica dei governi e governo parlamentare publicado em 1884, mas concludo um ano antes , Mosca referiu-se a uma nova doutrina que vinha sendo desenvolvida desde 1883 (Mosca, 1949a:10). Essa teoria era conhecida h algum tempo, informando inclusive formulaes mais recentes de outros autores, mesmo de fora da Itlia:

No ano passado, um outro escritor italiano, o Rensi, em um trabalho no qual propugnava a democracia direta e combatia o princpio da representao poltica, baseava explicitamente sua tese na concepo cientfica j exposta na Itlia.42 Essa concepo foi tambm adotada por Pareto na sua recentssima obra sobre os sistemas socialistas, embora, ao contrrio de Rensi, e com estranho esquecimento, o nosso carssimo professor da Universidade de Lausanne no tenha mencionado o escritor italiano que foi o primeiro a ter condies de formular a doutrina ora ardorosamente defendida por Pareto (Mosca, 1949a:11).43

Pareto respondeu invectiva de Mosca em 1907, na primeira edio italiana do seu Manuel dconomie politique. Ali, em uma nota, ele afirmou:

O prof. Mosca se queixa e fica muito aborrecido se no citado quando se relembra o fato de que na sociedade sempre um pequeno nmero que governa, e parece acreditar que foi ele quem descobriu isso. Para content-lo, transcrevo aqui os ttulos das suas obras, das quais conheo apenas a ltima: Teorica dei governi e governo parlamentare, 1884; Le costituzioni moderne, 1887; e Elementi di scienza politica, 1896. Na realidade, porm, o princpio que afirma que a minoria que governa conhecido h muito tempo. Trata-se de lugarcomum presente no apenas em obras cientficas, mas at mesmo em produes exclusivamente literrias (apud Mosca, 1949b:116).

Pareto, como se v, procura desqualificar o pleito de Mosca, negando, mais do que seu carter de novidade, de originalidade, tambm o de cientificidade, remetendo-o a uma espcie de senso

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comum, de intuio generalizada. E foi justamente por esse ponto que Mosca iniciou sua trplica, no artigo Piccola polemica, publicado tambm em 1907, diferenciando pensamento cientfico de intuio popular e argumentando que o fato de o primeiro trabalhar com elementos da segunda no era suficiente para invalid-lo (Mosca, 1949b:116-7). Mosca tambm procurou desvincular Pareto da cincia, referindo-se a ele repetidas vezes por seu ttulo nobilirquico de marqus, e no pelo acadmico de professor, e deslegitim-lo acusando-o de plgio:

certo que o plgio nas cincias sociais no to fcil de constatar como nos trabalhos literrios, uma vez que nas cincias supramencionadas o conceito, e no a forma, que tem a mxima importncia, e um conceito pode sempre se repetir e reproduzir-se com palavras e frases diversas. No processo pelo qual ele se desenvolve e se coloca em evidncia, um homem culto e de engenho pode sempre introduzir modificaes e colocar alguma coisa de seu. Mas quem est habituado aos estudos de crtica cientfica sabe perfeitamente o quanto fcil, no fundo, discernir se um sistema de idias surgiu espontaneamente em um escritor, como produto natural de uma elaborao totalmente original, ou seja, de uma mentalidade que se forjou por si s e pouco a pouco se foi formando, ou se aquele sistema conserva os traos de uma elaborao precedente, de uma outra mente atravs da qual ele, ou um sistema muito similar, passou anteriormente (Mosca, 1949b:118-9).

Ainda que no possa ser ignorada, uma vez que assumiu uma dimenso pblica, a concorrncia entre os dois autores foi minimizada por alguns comentadores, sendo circunscrita, alis, aos limites impostos pelo prprio Pareto. Arthur Livingston, na introduo a The ruling class, depois de comentar a disputa, afirmou que de uma perspectiva cientfica ela era irrelevante, visto no haver, em sua opinio, qualquer conexo histrica ou dialtica entre as teorias da elite, de Pareto, e da classe dirigente, de Mosca (Livingston, s.d.:xxxvi). Tambm para o socilogo Carlo Mongardini, a discusso, nos termos em que era colocada, muito pouco tinha de cientfica, contribuindo no para aclarar a questo bsica em jogo, mas sim para torn-la ainda mais confusa. Segundo ele, o que uma anlise mais objetiva e documentada permitia concluir era que, se semelhanas havia entre as formulaes de Mosca e de Pareto, elas

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deviam-se ao fato de que ambos partiam de uma raiz comum: as anlises de Taine sobre a sociedade francesa.44 Mais recentemente, Ettore Albertoni, caminhando em uma linha prxima a esta, defendeu a idia de que, em vez de se centrar na competio pela prioridade, deveriam ser enfatizados os afastamentos e proximidades das idias, as influncias mtuas de Mosca e de Pareto (Albertoni, 1990:147-51). E da mesma forma James Meisel, depois de acentuar que Mosca e Pareto haviam a contragosto se tornado parceiros, procura dissoci-los pela via da anlise, da comparao entre suas teorias, buscando principalmente suas diferenas. Meisel o justifica com o argumento de que era preciso ir alm dos juzos em jogo na concorrncia entre os dois autores, que eram prejudiciais para ambos:

Assim a associao intelectual fere ambos os autores: Mosca perdeu o direito autoral sua idia, enquanto Pareto teve a sua reputao moral danificada e ele mesmo reduzido a um terico da elite. Por uma ironia da histria intelectual, os dois inimigos terminaram tornando-se, para sempre, gmeos inseparveis da escola lanada por Gaetano Mosca quando publicou seu primeiro grande trabalho, em 1884 (Meisel, 1965b:15-6).

Se apenas o fato de que, apesar de ignorarem formalmente a concorrncia, os comentadores a incorporam, obrigando-se a comparar e a tratar Mosca e Pareto por um lado de modo conjunto, e, por outro, a partir das percepes e das categorias impostas em larga medida pela prpria disputa, j no fosse suficiente para ressaltar a sua relevncia, bastaria atentar para os termos em que os dois autores a colocavam, para a sua insistncia, para perceber que ela altamente significativa, tendo por isso mesmo que ser levada na devida conta. H que se destacar que, mais do que a primazia na formulao de uma tese, o que estava em jogo era a prioridade na descoberta de uma lei cientfica. Assim, pouco importava que outros, mesmo literatos, em vrios perodos j tivessem observado que era sempre uma minoria que governava, referindo-se a um fato tido como perfeitamente natural e evidente. O que se tratava efetivamente era de saber quem teria em primeiro lugar, nessa recorrncia, demonstrado a existncia de uma norma, de uma regra universal, atribuindo-lhe o status de questo, e, ainda alm, em um contexto em que comeava a prevalecer no o princpio do governo de uma minoria, e sim da maioria.

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Concorrncia e trabalho de reconhecimento


Os investimentos de Mosca e Pareto tanto no seu reconhecimento enquanto elite cientfica quanto na prpria afirmao das cincias sociais, suas estratgias individuais, esto relacionados s diferentes posies sociais por eles ocupadas e aos recursos que controlavam, o que transparece em suas tticas concorrenciais. Nesse sentido, significativo como, a partir da primeira edio do Manuel dconomie politique, Pareto passa a agir de modo claramente distinto do de Mosca. Enquanto este aposta em uma investida pblica visando a afirmar sua novidade e sua ascendncia, Pareto o ignora publicamente, evitando fazer qualquer referncia a ele em seus textos, retirando-o mesmo das novas edies de seus trabalhos anteriores, como o prprio Manuel. Apenas em sua correspondncia privada que Pareto continua a tratar do assunto. E em uma carta a seu amigo Carlo Placci, ainda de 1904, que podem ser buscados elementos para compreender tanto seu silncio pblico, quanto o clamor de Mosca.45 Pareto dizia que Mosca, ao invs de atac-lo, deveria agradecer-lhe pois s depois que publiquei os Systmes socialistes que vi citadas as obras que antes eram clandestinas.46 O que se percebe que, ao tornar pblica sua disputa, era tambm a si mesmo, a seus trabalhos, que Mosca procurava divulgar, saindo da clandestinidade, da obscuridade, forando o seu reconhecimento cientfico atravs do prestgio intelectual de Pareto. Para este, por seu turno, o silncio, ao mesmo tempo em que demarcava a sua superioridade, era uma forma de exorcizar Mosca, negando-lhe importncia, luz, espao, relegando-o ao esquecimento. diferena de Pareto, que parecia se impor naturalmente, sem esforo maior, Mosca era obrigado a um exerccio constante, a um trabalho incessante de reafirmao para que fosse reconhecido como novidade cientfica. por isso, em grande parte, que ele procurou manter acesa a disputa, mesmo aps a morte de Pareto. A recepo e o reconhecimento diferencial dos dois autores ficam patentes nas avaliaes que em geral deles so feitas. A comparao sistemtica entre Mosca e Pareto, at como forma de dar conta do sucesso relativamente maior deste, foi na verdade um dos efeitos de sua concorrncia que, assim, pode ser tomada tambm como um trabalho efetivo de imposio. Reconhece-se, em geral, a anterioridade cronolgica de Mosca. a Pareto, contudo, que se atribui a generalizao, a difuso da teoria e do prprio termo elite, e, mais do que isso, a sua afirmao

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cientfica. Podemos perceb-lo em Finer, Albertoni, Bobbio, Bottomore, Sereno e Sartori,47 apenas para citar alguns autores. A essa avaliao, de forma mesmo a justific-la, acrescenta-se uma outra, segundo a qual Pareto tinha uma perspectiva muito mais ampla do que a de Mosca. Enquanto este havia se limitado basicamente ao campo poltico, com seus agentes e instituies, o outro buscara erigir um grande sistema sociolgico, ao qual se subordinava a sua teoria das elites.48 Pareto visto como um pensador mais rigoroso, sistemtico, profundo, inovador e mesmo mais brilhante do que Mosca que, segundo Stuart Hughes (1965a:141), figurava para alguns como uma espcie de Pareto de segunda classe.49 O prprio Livingston, comentando as aproximaes e os distanciamentos entre os trabalhos de Mosca e de Pareto, fez a seguinte observao na introduo a The ruling class:

Ainda que semelhantes em mtodo e esprito, as duas pesquisas so vastamente diferentes em abrangncia e magnitude. A pesquisa de Pareto, baseada em uma anlise do equilbrio social, leva a uma viso abrangente de toda a sociedade e resulta em um monumento de propores arquitetnicas gigantescas o Trattato,50 que , mais do que um livro, uma cultura e uma maneira de viver. Em uma pesquisa como esta, os problemas da organizao poltica, que Mosca prope-se a resolver, so meros detalhes, mesmo que, para resolv-los, Mosca tenha que levar em considerao muitos dos fatos que so bsicos na estrutura mais ampla de Pareto; e ele os leva efetivamente em considerao, na forma de observaes, comentrios, intuies, anotaes que deliciam e surpreendem por sua agudeza e profundidade (Livingston, s.d.:xxxvii-xxxviii).

Na comparao com Mosca, Pareto se impe, portanto, como um pensador mais brilhante, mais profundo, sistemtico, amplo e inovador. Alm disso, e ao mesmo tempo reforando tudo isso, ele consegue erguer um certo vu de mistrio em torno de seu nome, passando a viver em isolamento na localidade sua de Cligny onde, rodeado de gatos da raa angor, dedica-se integralmente aos seus trabalhos.51 Assim, enquanto Mosca se apresentava, ou buscava se apresentar, como uma figura pblica envolvida com a poltica italiana, Pareto se isolava, afirmando-se como um recluso, como o solitrio de Cligny, na expresso de Schumpeter (1949:150).52 Esse isolamento teria sido fundamental, de acordo com alguns comentadores, para a configurao de suas idias, de seus

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trabalhos, o Trait de sociologie gnrale em particular. Segundo Hughes, afastado das presses e das paixes imediatas, Pareto foi capaz de tratar seus temas com um distanciamento olmpico, abordando-os de modo frio, objetivo (Hughes, 1958:260).53 Sem compromissos, ele se afigurava como um crtico mordaz, suas formulaes tinham um estilo acrimonioso, no poupando nada ou ningum, como uma metralhadora giratria, condizente com seu perfil reconhecidamente ctico. Por tudo isso, Pareto terminou se afirmando como um pensador livre, independente, sem peias, que se imps por seu prprio valor, por seus mritos superiores, sua cultura, sua erudio, nada devendo a ningum. Esta, na verdade, passou a ser reconhecida como uma de suas caractersticas mais marcantes e individualizadoras. Nas palavras de um de seus primeiros bigrafos, GeorgesHenry Bousquet, a independncia sempre foi o trao dominante em Pareto (Bousquet, 1928:193). A generalizao dessa imagem pode ser percebida em uma carta do escritor Giuseppe Prezzolini, contemporneo de Mosca e Pareto, a Ettore Albertoni, j em 1977, comparando os dois pensadores. Dizia Prezzolini:

Pareto era um esprito mais vasto, mais caloroso, mais aberto, um escritor mais poltico e mais brilhante do que Mosca: escreveu em francs, e em seguida foi traduzido para o ingls (...); era um escritor brilhante, cultivado: no conhecia apenas o latim como Mosca, mas estava penetrado pela cultura grega; havia viajado e vivido longamente em um meio internacional, ou seja, em Genebra; era independente, enquanto Mosca, para fazer carreira, fizera-se nomear para o Parlamento (apud Albertoni, 1990:151).54

interessante notar que, enquanto Pareto reconhecido por suas qualidades mais propriamente intelectuais, por sua profundidade, por seu brilhantismo, por sua erudio, enquadrando-se em um modelo, que se tornou predominante, de uma cincia desengajada, livre, crtica, objetiva, Mosca, em que pese aos seus esforos de afirmao, ficou associado a elementos extracientficos, percebido como um pensador politicamente engajado, identificado por suas posturas ticas e morais. Assim, as avaliaes da produo intelectual deste vm em geral acompanhadas de referncias sua atuao poltica exemplar, digna, sua dedicao no servio ao pas.

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Cientificamente, portanto, Pareto visto como um pensador superior, independente, desengajado, amplo, ao passo que Mosca figura como um autor que no conseguiu se desvincular das ideologias e das lutas polticas de sua poca, cujas formulaes, por essa mesma razo, so localizadas e datadas. Isso pode ser percebido, por exemplo, em Norberto Bobbio,55 que v Pareto como um crtico das ideologias, marca de sua excepcionalidade e inovao, enquanto Mosca apresentado como um conservador antiigualitarista. Uma avaliao prxima a esta que leva Carlo Mongardini (1965:179-80) a afirmar por seu turno que, enquanto as idias de Mosca esto ancoradas no sculo XIX, as de Pareto abrem o sculo XX. Se de uma perspectiva cientfica Pareto classificado em uma posio superior de Mosca, a avaliao se inverte quando se trata de tom-los por um prisma poltico. O ctico Pareto, em seu af de analisar criticamente, de desvelar a democracia, teria levado sua independncia ao paroxismo, fornecendo munio para as hostes fascistas. Mosca, por seu lado, ainda que um conservador, seria um pensador liberal que se teria oposto ao fascismo, colocando a moral acima da cincia, moderando suas crticas ao sistema parlamentar de modo a no contribuir para o avano do totalitarismo.56 Bottomore, no livro As elites e a sociedade, afirma que a diferena fundamental entre Pareto e Mosca era a de que, enquanto aquele era profundamente crtico em relao democracia, ao humanitarismo e ao progresso, este reconhecia a importncia, e at aprovava, os princpios gerais da democracia moderna (Bottomore, 1965:11). J para Bidiss que em seu The age of the masses procura retraar a histria do pensamento europeu a partir de 1870 , os Elementi di scienza politica eram o trabalho de um moderado poltico, que advogava um equilbrio pluralista de foras sociais dentro de um sistema de governo representativo parlamentar (Biddiss, 1977:133). Tambm para Hughes, o que diferenciava Mosca de Pareto era o fato de nunca ter aquele abandonado o caminho da respeitabilidade, do decoro, assumindo uma postura de oposio ao fascismo. Enquanto ele havia chegado a uma atitude relativamente favorvel em relao democracia representativa, o outro evolura firmemente para uma postura crtica, quase fascista (Hughes, 1958:252-3). At mesmo Gramsci, referindo-se a Mosca em Maquiavel, a poltica e o Estado moderno, j em plena mar montante do fascismo, afirma que seu interesse,

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na verdade, varia entre uma posio objetiva e desinteressada de cientista e uma posio apaixonada de homem de partido, imediatista, que v se desenrolarem acontecimentos que o angustiam e contra os quais deseja reagir (Gramsci, 1968:158-9).

De modo equivalente ao da independncia em Pareto, o liberalismo, associado s qualidades morais, visto como um trao essencial do carter de Mosca, de sua personalidade. Este elemento se incorporou de tal modo percepo que se imps do autor, que refletir sobre suas idias passou a significar, ao mesmo tempo, buscar nelas os sinais de adeso ao liberalismo e ao pluralismo poltico.57 Tanto no caso de Mosca quanto no de Pareto, o que se observa uma naturalizao de suas representaes, das maneiras como so percebidos, de forma que suas posturas, em vez de explicadas, passam a figurar como dados a serem reconstitudos. Elas aparecem no como estratgias, opes, tomadas de posio, mas sim como decorrncias lgicas, expresses de tendncias inerentes aos autores, cabendo descrev-las e acrescentando, no mximo, quando muito, aqueles que seriam considerados seus estopins, seus elementos detonadores, desencadeadores. Assim, Manon Michels Einaudi no artigo Pareto as I knew him, publicado nos Estados Unidos em 1935, mesmo ano do lanamento de The mind and society (Pareto, 1963), edio americana do Trait de sociologie gnrale , procurando compreender o amor do autor pelos gatos, traa linhas de identidade entre ele e esses animais, enfatizando o orgulho e, acima de tudo, a independncia:

difcil expressar a extenso do amor de Pareto por seus gatos: eles eram mesmo sagrados para ele, especialmente os angor, que caracterizava como uma raa independente e orgulhosa. E independente e orgulhoso era o prprio Pareto, amante da etiqueta mas capaz, por vezes, de mostrar os dentes por insatisfao para, de repente, no momento seguinte, revelar-se dcil novamente. Independente, ele era um amigo de todos os independentes e rebeldes em conflito com seus governos, quer fossem italianos socialistas exilados ou clericais franceses, acolhendo-os em sua casa com extrema generosidade. Orgulhoso, ele era cnscio de seu prprio valor e de sua originalidade, das origens antigas de sua famlia, to nobre e venervel quanto a de Sabia (Einaudi, 1935:338).

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O prprio economista Joseph Schumpeter, em um texto de 1949, escrito por ocasio do centenrio de Pareto, afirmou:

Pareto no pode ser rigidamente enquadrado. Ele no cortejava nenhum ismo. Nenhum credo ou partido pode reivindic-lo, embora muitos credos e partidos tenham se apropriado de fragmentos do vasto domnio por ele controlado (Schumpeter, 1949:148).

Dirigindo o foco agora para Mosca, temos, em um extremo, Mario Delle Piane, para quem, de uma atitude inicial de certa forma benevolente em relao ao fascismo, o pensador havia passado a uma oposio aberta. Quanto a isso, porm, Delle Piane observa:

Deve ser lembrado, contudo, que embora os eventos de seu tempo tenham tido alguma influncia na formulao de Mosca de uma posio liberal, ele a alcanou basicamente por meio de uma reflexo terica (Delle Piane, 1968:506).

Para Delle Piane, portanto, o contexto em que Mosca viveu pouco pesou para a formulao de suas posies. De um modo ou de outro, logicamente, naturalmente, ele chegaria a uma concluso liberal. Tambm Meisel procura mostrar como Mosca, a princpio um dos expoentes italianos da crtica democracia, julgando-a uma via desimpedida para o socialismo, terminaria por condenar as conseqncias de suas prprias idias quando Mussolini, justamente um ex-marxista, resolveu incorpor-las (Meisel, 1962:xiii). Em The myth of the ruling class, Meisel faz uma cuidadosa retomada dos trabalhos de Mosca, com especial ateno para os menos conhecidos fora da Itlia, o que o torna um dos poucos e fundamentais meios de acesso mais amplos produo do pensador. Seu livro, porm, preocupa-se mais com a lgica interna e com a sucesso dos escritos de Mosca, tentando perceber seus elementos constituidores, os valores e as motivaes ntimas que atravs deles se expressam, os conflitos entre tendncias distintas que neles estariam presentes, como pluralismo e monismo, moralismo e pragmatismo, e relativismo e

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absolutismo, tratando de dar conta de suas permanncias, prevalncias e modificaes ao longo do tempo. Na verdade, seguindo essa linha, Meisel acaba por tomar Mosca pelos seus textos e, dessa maneira, no consegue dar conta de suas opes, tomadas de posio, conflitos e alianas. Mais do que isso ou mesmo por isso , ainda que procure exercer uma firme crtica em relao ao pensador, revelando suas inconsistncias e incongruncias, ele incorpora e refora as percepes que daquele se impem. Tomando assim as representaes dos autores como dadas, no as percebendo como impostas, fruto em parte de um trabalho dos prprios autores, os comentadores, de maneira geral, tornamse herdeiros delas, contribuindo para a sua reproduo. Procedendo dessa forma, ignoram elementos que constituem recursos fundamentais para o reconhecimento mesmo dos autores, apresentando-os meramente como virtudes associadas como a cultura, a erudio e mesmo a nobreza de Pareto , ou como vcios como os vnculos polticos que abriram a Mosca a carreira universitria, acentuados por Prezzolini. No se incorpora assim, de modo efetivo, o fato de que foi o prprio Pareto, a partir de um dado momento, que buscou afirmarse como independente. Essa estratgia estava associada, por um lado, a uma tentativa frustrada de ingresso na poltica e, por outro, s suas origens nobres, aos laos familiares que garantiram as condies financeiras necessrias manuteno de sua independncia. Barrado em seus objetivos polticos, portanto, Pareto acabou trilhando uma carreira universitria, marcada pelo distanciamento e pelo progressivo isolamento. Sua trajetria cientfica e sua sociologia foram partes desse movimento. No se leva na devida conta o fato de que Mosca, de modo inverso, tentou de incio ter acesso carreira universitria. No entanto, sem alcanar uma posio estvel e no contando com suficiente suporte financeiro familiar, terminou por ter essa via bloqueada, aproximando-se ento da poltica, em um percurso que terminaria por criar condies para que efetivamente se estabelecesse em termos acadmicos. Na verdade, enquanto Pareto caminhava de modo claro no sentido do isolamento, Mosca procurava, de forma progressiva, ampliar e diversificar seus vnculos estratgicos, suas alianas, firmando-se publicamente. Se Pareto e Mosca puderam produzir vises aparentemente prximas acerca da poltica e da sociedade de maneira geral, fizeram-no a partir de trajetrias distintas, o que acarretou, ao mesmo

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tempo, posturas e tomadas de posio diversas. Partindo de uma perspectiva liberal inicial, Pareto evoluiu no sentido de um crescente ceticismo e de um antidemocratismo. J Mosca, a princpio um crtico contumaz do liberalismo e do governo parlamentar, terminou empenhado na sua defesa, na defesa da democracia. Cabe destacar que, ao se incorporar, naturalizar as percepes impostas dos autores, mais do que simplesmente reproduzilas, a prpria leitura de suas idias que se passa a informar, a determinar, enquadrando-a em um roteiro pr-construdo, definindo a priori o que dever ser encontrado. Isso fica especialmente claro no caso de Mosca, como se ver em seguida.

O terico da classe dirigente


O nome de Gaetano Mosca tem sido associado s origens da teoria das elites atravs, principalmente, de seu livro The ruling class (Mosca, s.d.). Nele estaria consubstanciada, como indica o ttulo, aquela que se imps como a maior contribuio do pensador italiano para a cincia poltica: sua teoria da classe dirigente.58 O livro data de 1939 e a traduo americana dos Elementi di scienza politica, reconhecido como um dos principais trabalhos de Mosca. Na verdade, The ruling class corresponde j segunda edio dos Elementi, publicada em 1923, revista e ampliada por um Mosca maduro, com uma longa trajetria de vida, e que trazia, segundo alguns de seus comentadores, como Ettore Albertoni (1990:130-1), sua doutrina plenamente codificada. Tambm Norberto Bobbio (1992:8), organizador, em 1966, de uma nova edio italiana do livro, dizia que os Elementi de 1923 constituam o texto final da obra, trazendo a doutrina de Mosca com uma formulao mais precisa e definitiva.59 De acordo com James Meisel, que em The myth of the ruling class procura acompanhar a evoluo do pensamento de Mosca, a segunda edio dos Elementi di scienza politica no era um mero suplemento ou uma tentativa de atualizar a primeira, mas um reincio da reflexo do autor, agora em um plano mais elevado (Meisel, 1962:190-1). Semelhante a estas a avaliao de Arthur Livingston. Diz ele, na introduo a The ruling class que, em sua verso de 1923, a teoria da classe dirigente alcanava um novo patamar, livre de alguns dos preconceitos que haviam marcado suas formulaes iniciais (Livingston, s.d.:xxxii-xxxiii).60 Se tomarmos a edio de 1923 dos Elementi, veremos que Mosca, em linhas gerais, acrescentou uma segunda parte verso

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inicial de 1896, mantida sem modificaes como uma primeira parte, apenas acrescida de novas notas, diferenciadas das originais (Mosca, 1923:vii). A primeira verso do livro comportava, alm da concluso que trazia uma extensa discusso sobre o problema religioso, o parlamentarismo e o socialismo , nove captulos. Desses, apenas dois traziam no ttulo o termo classe poltica efetivamente empregado por Mosca em vez de classe dirigente, utilizado pelos editores americanos ,61 no tendo nenhum deles sido identificado como uma teoria. Os demais captulos versavam sobre o mtodo na cincia poltica, sobre noes como frmula poltica, tipo social e defesa jurdica, sobre a teoria democrtica, igrejas, partidos, seitas, revolues passadas e presentes e, ainda, sobre exrcitos permanentes, entre outros assuntos (Mosca, 1923:509-12). J na segunda edio, ou na parte efetivamente nova dos Elementi de 1923, de seus cinco captulos, fora a concluso, trs centravam-se em problemas diversos relativos classe poltica, sendo um deles voltado especificamente para as origens e os obstculos difuso do que Mosca chamava propriamente de doutrina da classe poltica. Os dois captulos restantes tinham por objeto a constituio e a classificao dos diversos tipos de organizao poltica (Mosca, 1923:512-4). Uma comparao, ainda que superficial, entre as duas partes dos Elementi indica, portanto, que houve, entre a primeira e a segunda edies, uma mudana quanto centralidade e dimenso do lugar da classe poltica na reflexo de Mosca. Enquanto na primeira edio ela figurava como um dos elementos da cincia poltica, na segunda se constitua, explicitamente, no prprio eixo articulador, no princpio explicativo fundamental dessa cincia. Essa nfase tornou-se ainda mais evidente na edio americana, a comear pelo ttulo, que distava bastante de uma simples traduo do italiano. A prpria distribuio dos captulos, distinta da original, contribuiu para acentuar essa percepo. Captulos foram seccionados, fundidos ou renomeados, passando alguns deles a receber novos ttulos nos quais constava o termo classe dirigente. Procedeu-se assim, na verso em ingls, a uma nova organizao do livro, conferindo-lhe uma feio diferente, resultado mesmo da excluso de alguns trechos, da incorporao ao texto de determinadas notas e da eliminao de outras. Tudo isso teve em vista, nas palavras de Livingston, dar uma apresentao orgnica e legvel do pensamento de Mosca, escapando de uma simples reproduo mecnica e literal (Livingston, s.d.:xxxix-xli).62

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Na prtica, entretanto, o empenho do editor americano acabou tendo efeitos que extrapolaram a mera clarificao do texto, a tentativa de dot-lo de uma estrutura mais orgnica, de torn-lo mais atraente, saboroso. Ele contribuiu de fato para a imposio, entre outras coisas, de uma determinada leitura, de uma percepo de Mosca como tendo sido, basicamente, o formulador de uma teoria da classe dirigente.63 Isso fica claro, por exemplo, em um comentrio de Meisel a respeito da escolha do ttulo da edio americana. Ele acentua que The ruling class era bem melhor do que outros ttulos que, embora pudessem estar mais prximos do sentido literal do italiano, pouco se aproximavam dele em termos conotativos. Se era melhor, contudo, aquele ttulo tambm acabava gerando alguns equvocos:

Ele levou muitos leitores, este entre eles, a examinar o livro luz da teoria especfica sugerida pelo ttulo em ingls, e no procurar nada mais. Quando descobrimos que o trabalho muitas outras coisas alm disso, que a anlise da elite, longe de ser tratada de forma sistemtica, embutida em um tratado sobre a poltica em geral (no sentido aristotlico), o efeito de irritao e perplexidade (Meisel, 1962:124).

Na verdade, poder-se-ia ir ainda mais longe do que Meisel, afirmando que a percepo que se imps de Mosca terminou por determinar no apenas a leitura de The ruling class, mas uma releitura de todos os seus trabalhos, que assim passaram a ser vistos como um conjunto ordenado, desde o incio, por um fio que conduzia a um sentido especfico. Em outros termos, os escritos finais de Mosca passaram a conferir um determinado sentido a todos os demais, mesmo aos iniciais, articulando-os uns aos outros como um conjunto, como uma verdadeira obra, construda de forma progressiva, teleolgica, como a realizao gradual, inexorvel, de um projeto dado, contido j nas origens.64 A imposio dessa percepo de Mosca guarda, portanto, uma evidente relao com sua edio americana, veculo, em parte, de sua ampla difuso.65 Isso, claro, s vem ressaltar a importncia de se levar em conta as estratgias dos editores quando se trata de refletir sobre o reconhecimento de um autor e de suas idias. Entretanto, o que cabe enfatizar por ora que a percepo que se imps de Mosca foi resultado, igualmente, de um trabalho do prprio pensador. Afinal, quando The ruling class foi publicado,

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Mosca ainda era vivo e a prova do livro, como observa Livingston, lhe havia sido submetida (Livingston, s.d.:xli). alis o empenho do pensador que explica, em grande parte, o fato de que a mesma percepo esteja presente em autores que tomaram contato com seus trabalhos a partir, basicamente, das edies italianas. Como foi destacado, Mosca, na edio italiana dos Elementi, de 1923, j procurava fazer da classe poltica o centro de sua reflexo. Mais do que isso, em diversos trechos do livro que mais tarde qualificaria como seu trabalho maior, seu testamento cientfico (apud Bobbio, 1992:7) , ele introduziu o termo classe dirigente, usado de forma intercambivel com classe poltica, ainda que continuasse a privilegiar este. Seu objetivo com isso era conferir a suas formulaes um escopo mais amplo, geral, evitando o seu enclausuramento na esfera estritamente poltica. E foi com base nessa tentativa de ampliao que Livingston buscou justificar a adoo, na edio americana, do termo classe dirigente, contribuindo para a consolidao do seu uso.66 Mais do que produto apenas de uma evoluo intelectual, como em geral apresentada, a tentativa de Mosca de ampliar a abrangncia de seus conceitos, bem como de definir claramente suas formulaes como compondo uma doutrina, uma teoria da classe dirigente, se deu, em larga medida, como efeito de sua concorrncia com Pareto. A opo pelo termo classe dirigente visava assim a fazer frente ao sucesso e difuso do conceito de elite, mais geral, utilizado por este autor. Se o esforo, se o trabalho de apresentao de Mosca, em sua competio com Pareto, desemboca na afirmao de uma percepo de seus textos como constituindo uma obra articulada no sentido da elaborao de uma teoria da classe dirigente, importa tambm acentuar que um de seus efeitos foi, ao mesmo tempo, a imposio de determinados objetos quando se trata de estudar aqueles mesmos textos. Assim, se a viso que se tem a da realizao gradual e progressiva de um projeto, o que parece ser importante a busca de suas origens, demonstrando estar presente em todos ou quase todos os trabalhos desde o incio, mesmo que em germe, e alm disso reconstituir os seus diferentes estgios de realizao. Obviamente isso termina, por sua vez, por reforar a percepo inicial comprovando-a, objetivando-a, conformando desse modo um crculo vicioso. Isso fica bastante evidente no livro Doutrina da classe poltica e teoria das elites, de Ettore Albertoni (1990). sobre o processo gradual de codificao da doutrina de Mosca que incide o interes-

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se maior do autor. O que se tenta mostrar que Mosca foi um pensador profundamente envolvido com a realidade poltica italiana e que a codificao de sua doutrina foi fruto de um processo de amadurecimento e de reflexo sobre aquela mesma realidade, que presenciou e viveu. O esquema que Albertoni segue, entretanto, tem um carter evolutivo, importando perceber como, ao longo de sua trajetria de vida, Mosca foi se descolando do localismo de suas origens sicilianas para assumir uma perspectiva mais geral, mais cosmopolita.67 Dessa forma, o comentador percebe trs perodos evolutivos no pensamento de Mosca. O inicial, de 1879 a 1895, marcado pelos primeiros livros Teorica dei governi e governo parlamentare, de 1884, e Le costituzioni moderne, de 1887 , pode ser caracterizado como um perodo de sistema aberto, ou seja, de esboo de sua elaborao terica. No segundo, de 1896 a 1922, j se percebe, com a publicao da primeira edio dos Elementi, um sistema cientfico elaborado. E finalmente o terceiro, que se estende de 1923 a 1941, inaugurado com a segunda edio dos Elementi e encerrado com a Histria das doutrinas polticas, corresponderia doutrina plenamente codificada. Cabe acentuar que, na medida em que se consolida essa percepo do autor, opera-se uma espcie de naturalizao, que faz com que ela no figure como produzida, dispensando por conseguinte a necessidade de uma reflexo sobre as operaes das quais resultou, sobre as condies sociais de sua produo. Resulta da uma eluso dessas condies, determinando que o importante para a compreenso do autor seja, de fato, o acompanhamento de seus textos, tratando-os de forma homognea, complementar, como se tivessem todos o mesmo sentido, buscando neles as peas que se articulam na montagem da doutrina da classe dirigente. o que faz Bobbio, por exemplo, em um artigo de 1962 em que procura apresentar a doutrina de Mosca que, para ele, deve ser apreendida a partir de seus vrios trabalhos. Portanto, segundo Bobbio, qualquer tentativa de expor a teoria de Mosca da classe dirigente deve partir de uma organizao adequada do material disperso pelos textos do autor.68 No limite, teramos uma situao em que, incorporada e difundida aquela percepo de uma forma tal, o trabalho com os prprios textos de Mosca seria dispensvel, bastando recorrer a comentadores. Convm destacar, no entanto, que os comentadores no so meros herdeiros passivos das percepes impostas dos autores, contribuindo simplesmente para a sua consolidao e repro-

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duo, de forma inalterada. Longe disso, eles so atualizadores e construtores dessas percepes, fazendo-o a partir de seus prprios contextos, de suas prprias posies sociais, de seus prprios campos de relaes e de concorrncia.69

Comentadores, editores e percepes impostas


No caso especfico de Mosca, a importncia dos comentadores tem sido ampliada pelo fato de que se trata de um autor pouco traduzido, cujos trabalhos, mesmo em italiano, so de difcil acesso. James Meisel j o havia observado, ressaltando que um dos objetivos bsicos de seu The myth of the ruling class era justamente oferecer uma viso mais ampla da produo do autor (Meisel, 1962:xiii-xiv). Em um artigo sobre a penetrao de Mosca nas universidades americanas, Joseph La Palombara acentua ter sido o autor conhecido principalmente de forma indireta, atravs dos trabalhos de outras pessoas. Entre essas La Palombara cita Harold Lasswell, para os anos 30, e o prprio Meisel, a partir da dcada de 50 (La Palombara, 1989:29). Os trabalhos de comentadores, diante disso, constituem um dos instrumentos fundamentais de acesso s formulaes de Mosca. Ao mesmo tempo, por controlarem esse acesso, afirmando-se como os nicos conhecedores dos textos do autor em sua totalidade, os comentadores investem-se de maior autoridade, legitimidade, reconhecimento e prestgio. Meisel, por exemplo, tornou-se referncia necessria e mesmo suficiente, quando o assunto Gaetano Mosca. No comentrio de Renzo Sereno, o trabalho definitivo sobre Mosca The myth of the ruling class, de James H. Meisel (Sereno, 1962:30, nota 1). No mesmo sentido, Bobbio (1972:11) avalia o livro de Meisel como a pesquisa mais completa sobre o pensamento de Mosca. Tambm no caso de Albertoni possvel observar um trabalho de reconhecimento atravs da afirmao de Mosca. difcil deixar de perceber em seu livro um bias apologtico, que faz com que as referncias biografia do pensador tragam um tom de exaltao s suas virtudes, aos seus mritos, aos seus dons. Mais ainda, Albertoni preocupa-se bastante em relacionar as idias de Mosca ao contexto italiano, buscando dessa forma qualificar seu pas como o principal locus gerador de uma teoria das elites, o que justificaria o emprego do termo presente em diversas passagens do livro escola italiana das elites, englobando o conjunto das formulaes

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no apenas daquele pensador, mas tambm de Pareto e de Michels, ainda que este fosse alemo (Albertoni, 1990, passim).70 Alm de compreender o pensamento de Mosca e as origens da teoria das elites, o que estaria em jogo para Albertoni seria reivindicar para si, at por sua origem, o papel de autoridade em ambas as questes. Isso pode ser percebido por suas atividades como professor de histria das doutrinas polticas na Universidade de Milo e ainda, no incio dos anos 80, como criador e principal incentivador do Comit Internacional Gaetano Mosca para o Estudo da Classe Poltica (Comitato Internazionale Gaetano Mosca per lo Studio della Classe Politica), cujo objetivo era promover pesquisas e seminrios relativos ao pensador, sua vida, seus trabalhos e teoria das elites. Albertoni tomou parte bastante ativa nessas atividades, algumas das quais marcadas por um carter de homenagem ao pensador italiano. Os seminrios realizados pelo comit receberam a denominao de Seminrio Internacional Gaetano Mosca (Seminario Internazionale Gaetano Mosca). Os dois primeiros de acordo com o livro de Albertoni, cuja primeira edio de 1985 foram realizados na Itlia, em Palermo, cidade onde Mosca nasceu, e Milo, onde ele, como Albertoni, ensinou e produziu artigos jornalsticos.71 Outros dois seminrios ocorreram no Mxico, com a colaborao da Universidade Nacional Autnoma daquele pas e do Centre de Recherche sur les lites, dirigido por Mattei Dogan. Deve ser mencionada, ainda, a realizao de dois colquios um na Sorbonne, em 1984, organizado por Michel Maffesoli, e um na Universidade Laval de Quebec, tendo frente Jacques Zylberberg e Maffesoli e de um seminrio sobre elites, que teve lugar no XIII Congresso da International Political Science Association, em Paris, em 1985. Os resultados dos eventos, discusses e pesquisas promovidos pelo comit foram publicados em uma srie intitulada Archivio Internazionale Gaetano Mosca (Arquivo Internacional Gaetano Mosca), criada e dirigida tambm por Albertoni. A prpria apresentao da srie traz a marca de homenagem, de apologia, o que no significa necessariamente que todos os trabalhos nela contidos tenham os mesmos intentos:

O Archivio internazionale Gaetano Mosca per lo studio della classe politica recolheu estudos, pesquisas e documentao sobre a vida e o pensamento de Gaetano Mosca (1858-1941),

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um dos maiores escritores polticos e uma das maiores expresses da cultura europia amadurecida na passagem do Oitocentos para o Novecentos (Albertoni, 1989a).

A atividade de Albertoni frente do comit foi importante para a formao de redes de discusso, colaborao e apoio internacionais, que sem dvida aprofundaram as questes propostas, alm de colocarem outras novas. Essas redes, por outro lado, tambm foram fundamentais para garantir a publicao e a difuso, fora da Itlia, de trabalhos de Albertoni, como Doutrina da classe poltica e teoria das elites, entre outros. o prprio Albertoni que acentua a importncia de sua ligao com Maffesoli para a publicao do livro na Frana. Igualmente, foi Maffesoli quem intermediou a edio do trabalho no Brasil. Por outro lado, parece ter sido o intercmbio com Jos Luis Orozco professor da Universidade Nacional Autnoma do Mxico e responsvel ali pelo comit e com Rafael Prez Miranda, entre outros, que tornou possvel a edio mexicana.72 Dessa forma, Albertoni se afirmou, segundo Jacques Zylberberg, prefaciador da edio francesa de Doutrina da classe poltica e teoria das elites, como um especialista em histria das idias polticas e em teoria das elites, alm de um difusor das idias de Mosca. De acordo com ele, o pblico francfono pde, atravs do livro, ter um melhor acesso obra de Mosca e do prprio Albertoni (Zylberberg, 1990:15).73 A partir de Albertoni e de Meisel percebe-se, portanto, que os comentadores, ao falarem de Mosca, falam igualmente de si mesmos. Ao imporem Mosca discusso, eles, ao mesmo tempo, impem seus prprios nomes e seus trabalhos como especialistas e legtimos intrpretes e difusores da obra do pensador. Na verdade, essas observaes podem ser estendidas tambm aos comentadores de Pareto. O que ocorre que na busca da afirmao como especialistas, autoridades, legtimos intrpretes, os comentadores entram em concorrncia uns com os outros, em um processo em que a prpria percepo que se tem dos autores termina por ser modificada, refeita, impondo-se assim novos critrios de pertinncia para as questes que lhes devem ser apresentadas. Desse modo, mais do que reprodutores, os comentadores so igualmente produtores das percepes dos autores. So, tambm eles, partes fundamentais de seu trabalho de representao e reconhecimento. Portanto, falar das vises que se impem de um autor

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significa perceber que elas no so dadas de uma vez para sempre; antes, so reconstrudas a cada momento, e que para compreend-las preciso levar em conta, entre outros fatores, no apenas o empenho e as estratgias do prprio autor, mas tambm os de seus comentadores, com seus objetivos, suas referncias, seu contexto e suas prprias disputas. interessante, dessa perspectiva, retomar o debate sobre as personalidades independente, de Pareto, e liberal, de Mosca. Quando Schumpeter ressalta, em 1949, a independncia e a autonomia de Pareto, o que busca em larga medida legitimar o autor, naquele momento de imediato ps-guerra. J se viu como Pareto foi identificado como um dos precursores e idelogos do fascismo, chamado mesmo de Karl Marx do fascismo e da burguesia. Se isso, por um lado, serviu para alimentar durante um perodo a curiosidade por seus trabalhos, por outro, terminou por gerar uma considervel resistncia em relao a eles em alguns campos, em especial a partir dos anos prximos ao incio da II Guerra Mundial. Isso obrigou seus comentadores a se empenhar em destacar o carter estritamente cientfico, no-ideolgico de sua obra, seu carter absolutamente independente. Bousquet, assim como Schumpeter em 1949, j o fizera em 1928 (p. 193-4). Andrew Bongiorno, um dos tradutores do Trattato de Pareto para o ingls, afirmava, em 1930, que a nica relao que havia entre o autor e o fascismo era que a ascenso deste podia ser vista como evidncia de algumas das leis cientficas descritas por aquele. Propondo-se a fazer cincia pura, observava Bongiorno (1930:350-1), Pareto no esperava que suas teses pudessem ter qualquer influncia prtica. E ainda em 1966, em seu prefcio quarta edio francesa do Manuel dconomie politique, Roger Dehem acentuava: A personalidade absolutamente independente e imparcialmente crtica de Pareto no se casa com o ttulo de Karl Marx da burguesia, que lhe outorgaram os socialistas italianos (Dehem, 1966:3).74 H dois aspectos importantes na citao de Dehem que devem ser destacados. O primeiro o de que ela est referida a um debate passado, tendo sido a alcunha de Marx da burguesia forjada pelo jornal socialista italiano Avanti! em 1923, quando da morte de Pareto (Bousquet, 1928:23). Tratava-se ento de explicar o fenmeno fascista que, para alguns marxistas italianos, como Arturo Labriola, era um regime gestado pela sociedade capitalista, uma ditadura da burguesia, cujo fim ltimo era combater e reprimir a revoluo operria em marcha (apud De Felice, 1978:56). Tratavase, em suma, de identificar Pareto como idelogo do fascismo.

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Se, porm, esse debate nos remete aos anos 20, preciso ver, igualmente, que ele se imps de tal modo que ainda hoje parece ter vigncia. isso que explica a interveno de Dehem e de tantos outros comentadores. Discutir Pareto, portanto, significa, quase que obrigatoriamente, fazer referncia a seus possveis vnculos com o fascismo. A persistncia dessa questo, para alm da existncia de nexos ou simpatias reais de Pareto em relao ao fascismo, para alm da necessidade de se legitimar a leitura do autor aps a derrota e a conseqente execrao do fascismo na II Guerra Mundial, explica-se, em grande parte, como efeito da apropriao da concorrncia, mais uma vez, entre o pensador e Mosca, j nos anos 30, particularmente nos Estados Unidos. Alguns autores, em larga medida italianos ou talo-americanos, empenharam-se em manter acesa a disputa, muito embora Pareto no estivesse mais vivo, valorizando e difundindo Mosca como um liberal, opositor de Mussolini, de quem Pareto era apresentado como um dos sustentculos intelectuais. Portanto, disputa entre Mosca e Pareto foi atribudo, nesse contexto, um sentido principalmente poltico, de uma luta entre a democracia e o fascismo. Gaudens Megaro, formado em direito pela Universidade de Yale, publicou em 1938 uma biografia crtica de Mussolini Mussolini in the making em que procurava analisar os vnculos entre as formulaes de Pareto e as idias de Mussolini, que se apropriou da teoria das elites como meio de demonstrar cientificamente a inexorabilidade do fascismo. Com isso, observou Megaro, projetou-se o nome de Pareto ao mesmo tempo em que se relegou sombra o de Mosca (Megaro, 1967:112-7).75 O livro de Megaro foi saudado em uma resenha de Gaetano Salvemini, exilado italiano nos Estados Unidos, como um modelo de exatido e de senso crtico (apud Albertoni, 1989a:xxii). E no mesmo ano em que foi lanado, Renzo Sereno, da Universidade de Chicago, publicou um artigo The anti-Aristotelianism of Gaetano Mosca and its fate em que retomava as idias de Mosca desde seus primeiros escritos, observando ter sido este autor que, definitivamente, primeiro formulou uma teoria da classe poltica. Apesar disso, Pareto que se tornou mais conhecido, atravs de sua teoria das elites, que nada mais seria do que uma adaptao das teses de Mosca. E Sereno ia ainda mais longe, afirmando que o interesse maior por Pareto devia-se aos seus vnculos com a ideologia fascista, s suas relaes pessoais com Mussolini (Sereno, 1938, passim).

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importante acentuar que alguns desses comentadores tinham canais de comunicao direta com Mosca, que opinava sobre suas manifestaes. Sereno, por exemplo, correspondia-se com o pensador italiano, que fez comentrios sobre o seu artigo e precisou algumas informaes sobre a disputa com Pareto (Sereno, 1952). J Megaro assumiu, a partir de 1927, a intermediao entre Mosca e Livingston visando edio de The ruling class. Em uma de suas cartas a Mosca em 1935, aps o lanamento de The mind and society e bem antes portanto da publicao de Mussolini in the making, Megaro disse que vinha fazendo todo o possvel para difundir a obra do pensador nos Estados Unidos, bem como demarcar sua antecedncia em relao a Pareto na formulao da tese elitista. Nesse sentido, pretendia publicar um artigo em que compararia as concepes de classe poltica e de elite, e ressaltaria a primazia de Mosca. Para tanto, contudo, pedia a este que lhe escrevesse uma carta detalhando o assunto, a fim de que pudesse incorporar seu relato ao artigo, mantendo-se fiel aos seus pontos de vista.76 Convm destacar que at meados dos anos 30 no se observava ainda, nos Estados Unidos, um quadro de repdio generalizado, de deslegitimao do fascismo. Havia, ento, rgos encarregados de fazer a propaganda italiana na Amrica e, na Universidade de Columbia a mesma em que ensinava Livingston , chegou a ser criada uma Casa da Itlia em parte com recursos de simpatizantes e do prprio governo de Mussolini.77 Mais do que isso, o fascismo era objeto de curiosidade e de intensas discusses entre os intelectuais americanos. Isto deveu-se, em parte, ao fato de que as respostas crise de 1929, consubstanciadas no New Deal, geraram um processo de reorganizao e de fortalecimento do Poder Executivo, o que se imps aos cientistas sociais como questo fundamental de debate e reflexo. Por essa via, os dois grandes modelos de Estados fortes existentes, o comunista e o fascista, passaram a ser tema privilegiado de estudos e anlises (Karl, 1979:1-36). A associao de Pareto com o fascismo foi, portanto, um dos fatores que estimularam a curiosidade por seus trabalhos nos Estados Unidos, naquele momento. J no caso de Mosca, ainda que no fosse ele mesmo identificado com o regime de Mussolini, The ruling class foi visto em parte como uma anlise, ou uma crtica deste. Para alm da tentativa de conhecer o fascismo, no entanto, o que se jogava com a apropriao dos dois autores, o ltimo em particular, era a necessidade de fundar teoricamente uma viso de democracia que no apenas fosse mais condizente, mas que legitimasse o novo quadro de centralizao poltica.78

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Todo esse processo relacionava-se igualmente abertura de novos espaos de interveno, de possibilidades extra-acadmicas de afirmao para os cientistas sociais americanos, que se impuseram como tcnicos, especialistas, consultores, planejadores. Colocando suas competncias especficas a servio da formulao e da anlise de polticas pblicas, eles puderam se projetar como provedores de orientaes polticas e, desse modo, tornar-se figuras pblicas, acumulando prestgio e notoriedade, o que, em contrapartida, fortalecia tambm suas posies acadmicas e garantia o acesso a financiamentos para pesquisas. Um dos nomes mais identificados com essa viso aplicada das cincias sociais foi o de Charles Merriam, figura de proa da cincia poltica na Universidade de Chicago e do Social Science Research Council. Envolvido com a poltica local de Chicago, Merriam chegou a candidatar-se a um cargo eletivo mas no foi bem-sucedido. Seus vnculos polticos, contudo, garantiram-lhe a presena em conselhos e comisses, tanto municipais quanto federais. Merriam foi um dos leitores privilegiados dos elitistas nos Estados Unidos. Foi ele quem, em 1927, convidou Robert Michels para que proferisse algumas palestras sobre o fascismo, na Universidade de Chicago. Alm disso, ele formou uma srie de cientistas polticos que ocuparam posies dominantes no campo acadmico americano, como Harold Lasswell que, como j se viu, tornou-se reconhecido como um dos principais difusores das teses de Mosca na dcada de 30.79 Mas medida que o fascismo foi se ilegitimando politicamente, sendo percebido de forma negativa, a concorrncia entre Mosca e Pareto foi sendo apropriada como uma luta entre democracia e tirania, entre liberdade e opresso, servindo de divisor de guas entre opositores e simpatizantes do fascismo nos Estados Unidos. Atualizada portanto em um contexto distinto do original, ela passou a assumir um sentido diverso, que no apenas a imps como objeto de referncia mas tambm consolidou a imagem de Mosca como um pensador liberal, obrigando ainda os comentadores de Pareto a persistirem em um exerccio de relativizao dos vnculos do autor com o fascismo.80 interessante observar que Livingston, que no fazia nenhuma referncia a Mosca em seus textos de apresentao de The mind and society em 1935, terminou, em 1939, por incluir em sua extensa introduo a The ruling class um item especfico sobre a disputa daquele autor com Pareto. E o fez, como j foi visto, com o objetivo de reduzir sua importncia cientfica, colocando-se em oposio justa-

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mente aos textos de Megaro, de Salvemini e de Sereno (Livingston, s.d.:xxxvi-xxxix). Entretanto, mais do que determinar a persistncia do debate, impondo-lhe ao mesmo tempo novos termos, o efeito que a ao de alguns italianos e talo-americanos produziu, juntamente com a cristalizao de uma imagem de Mosca e de Pareto, foi a determinao de uma leitura de seus textos. E se poderia ir ainda mais longe afirmando que, ao menos no caso de Mosca, foi esse mesmo processo que presidiu e garantiu nos Estados Unidos a prpria materializao, a objetivao dos textos a serem lidos. diferena de Pareto, que era um autor relativamente difundido antes da publicao de The mind and society, sendo lido mesmo em francs, Mosca, at a dcada de 30, era quase desconhecido nos Estados Unidos. Contudo, a edio americana dos Elementi di scienza politica, assim como do prprio Trait de sociologie gnrale, j vinha sendo negociada e trabalhada desde o incio dos anos 20, quando Livingston encontrava-se frente do Foreign Press Service, agncia que havia criado em 1918, juntamente com dois scios, Ernest Poole e Paul Kennaday. O objetivo inicial do Foreign Press Service, aproveitando a investida do ento presidente Thomas Woodrow Wilson com quem Livingston tinha ligaes pessoais , no sentido de intensificar a presena de seu pas na Europa, era fazer propaganda americana na Itlia, contando para tanto com o apoio financeiro de um grupo de empresrios. Com o passar do tempo, entretanto, a agncia comeou a investir tambm na traduo de textos italianos para serem publicados nos Estados Unidos. Tal foi o caso dos trabalhos de Mosca e de Pareto. O fim do perodo Wilson acarretou, igualmente, o encerramento das atividades do Foreign Press Service, que ocorreu em meados dos anos 20, em funo da interrupo do fluxo financeiro que at ento convergia para ele. Livingston, porm, que era professor associado da Universidade de Colmbia, especializado em literatura italiana,81 deu prosseguimento s tradues de Mosca e de Pareto, o que se estendeu pelo restante da dcada de 20 e o incio da de 30.82 A demora na publicao de The ruling class, que se deu apenas em 1939, era explicada por Livingston, em sua introduo ao livro, como decorrente da crise de 1929:

Esta edio traduzida dos Elementos de Mosca estava planejada, em 1923, como parte de um empreendimento visando a tornar os monumentos do pensamento italiano maquiaveliano disponveis aos estudiosos de lngua inglesa. Ela normalmente deve-

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ria ter sido publicada e, se no fossem as dificuldades associadas crise de 29, efetivamente o seria antes da minha edio americana do Trattato de Pareto. Essa ordem de publicao teria preservado a seqncia cronolgica dos dois trabalhos em sua lngua nativa e dado um ponto de partida mais satisfatrio aos problemas de relao que evidentemente emergem entre eles (Livingston, s.d.:xxxvi).

Caberia perguntar por que a mesma crise no impediu que a referida ordem de publicao fosse invertida, e que The mind and society fosse lanado quatro anos antes de The ruling class, mesmo sendo bem mais volumoso do que este. A associao que se fazia entre Pareto e o fascismo, bem como a existncia de recursos para a divulgao e a propaganda do regime italiano nos Estados Unidos, podem nos fornecer uma parte da resposta. Outra parte, porm, deve ser buscada no prprio empenho superior de Livingston na edio de Pareto, conforme esclarecia Gaudens Megaro a Mosca, em 1935.83 De fato, a edio de The mind and society foi precedida por aquilo a que alguns comentadores se referem como uma verdadeira onda Pareto, marcada pela publicao de numerosos trabalhos sobre o autor e sua sociologia (ver, por exemplo, Busino, 1966:52-6). Desde o incio da dcada de 20, o Trait de sociologie gnrale vinha sendo citado como um trabalho inovador pelo peso que conferia aos sentimentos, s crenas, aos elementos no-lgicos, nas aes sociais. Assim, James Harvey Robinson, um dos criadores da New School for Social Research, em Nova York, e tido como um dos pais da chamada nova histria americana (Moura, 1990:7), dizia em The mind in the making, livro de 1921, que uma das fortes suspeitas que ento emergiam era de que tudo que havia sido formulado nas cincias sociais at ali nada mais era do que a incorporao acrtica, sob uma aparncia de racionalidade, de crenas e costumes. John Dewey o teria observado na filosofia, Thorstein Veblen na economia poltica e, agora, surgia

um socilogo italiano, Vilfredo Pareto, que em seu alentado tratado de sociologia geral dedica centenas de pginas demonstrao de uma tese similar, que afeta todas as cincias sociais. Essa concluso pode ser classificada pelos estudiosos dos prximos 100 anos como uma das muitas grandes descobertas de nossa poca (Robinson, 1921:47).

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Semelhante a esta era a avaliao de Bongiorno, em uma resenha do Trattato publicada em 1930. O livro de Pareto, a seu ver, era uma das obras seminais do sculo. Ele representava, para as cincias sociais, o mesmo que os Principia de Newton para a fsica: uma revoluo nos mtodos cientficos (Bongiorno, 1930:350-1). Foi na Universidade de Harvard, no entanto, que a apropriao de Pareto de forma valorizada parece ter sido levada mais adiante, naquele primeiro momento. Suas noes de equilbrio e de dependncia mtua, e sua nfase nas aes no-lgicas, foram tomadas como base de investigaes na rea de sociologia industrial. Um exemplo foi a pesquisa promovida pela Western Electric Company em sua usina de Hawthorne, em Chicago, com o objetivo de analisar as relaes entre produtividade e condies de trabalho, sob a orientao do Departamento de Pesquisa Industrial de Harvard, tendo frente o psiquiatra Elton Mayo.84 Daquela mesma universidade, preciso destacar a atuao de um outro mdico, o bioqumico Lawrence J. Henderson, que tambm participou da pesquisa de Hawthorne e que, em fins da dcada de 20, comeou a investir nas reas de filosofia, da cincia e de sociologia. Henderson, no incio dos anos 30, passou a organizar seminrios peridicos sobre a sociologia de Pareto, tendo deles participado, entre outros, Elton Mayo, Joseph Schumpeter, Talcott Parsons, Robert K. Merton, Crane Brinton, Bernard De Voto, Charles P. Curtis e George C. Homans.85 Na verdade, mais do que a discusso das idias de Pareto, a passagem pelos seminrios, e mesmo a publicao de textos sobre o autor, sem mencionar os vnculos pessoais com Henderson, passaram a representar para os mais novos uma credencial para o ingresso em Harvard, como foi o caso de George Homans.86 Em um tal quadro em que a referncia a Pareto havia se constitudo em marca de reconhecimento, no se restringindo a Harvard ainda que no tenha assumido a mesma configurao em toda parte , Livingston procurava se afirmar como um introdutor do socilogo, como o primeiro a chamar a ateno para a sua importncia e a traduzi-lo, divulg-lo, nos Estados Unidos. isso que deixa claro seu amigo, Giuseppe Prezzolini, lembrando que o editor, alm de esforo pessoal, investiu seus prprios recursos financeiros na produo de The mind and society (Prezzolini, 1983:257-8).87 Deve-se observar, nesse sentido, que a nota introdutria de Livingston ao livro era iniciada justamente procurando demarcar sua precedncia sobre os demais. O editor lembrava que seus esforos para a traduo de Pareto remontavam a 1920, e que havia

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sido ele o primeiro americano a publicar uma nota sobre o autor, ainda em 1915, isto , bem antes de James Harvey Robinson. Tambm teria sido ele, no ano de 1922, o primeiro a dedicar um curso ao socilogo no Will Durants Labor College, de Nova York. Mais ainda, afirmava Livingston, um artigo seu de 1926, publicado no peridico Nation, que teria, pela repercusso que alcanou, dado incio onda Pareto nos Estados Unidos. E conclua:

Para resumir, e salvo algum equvoco, o empreendimento que chega sua concluso com estes trs volumes tinha pelo menos cinco anos quando o professor Henderson iniciou seu seminrio que marcou poca em Harvard; tinha oito anos quando o senhor Aldous Huxley primeiro chamou a ateno para Pareto na Inglaterra; tinha 13 anos quando a voga Pareto se ergueu com fora total como resultado das notas do senhor Canby na Saturday Review of Literature, e da campanha brilhante, viva e efetiva do senhor De Voto, naquela mesma revista e na Harpers, em 1933 (Livingston, 1963:v-vi).

Havia, portanto, um forte investimento pessoal de Livingston para que Pareto fosse traduzido e efetivamente editado, o que era estimulado por sua concorrncia com outros divulgadores do autor.88 Quanto ao livro de Mosca, que encontrava grandes dificuldades, a presso de italianos e talo-americanos foi fundamental para que pudesse ser publicado. Destaque-se aqui a interveno de Mario Einaudi filho de Luigi Einaudi, amigo de Mosca e, tambm, um dos intelectuais que se opuseram ao fascismo ,89 que se encontrava nos Estados Unidos desde 1933, como professor em Harvard. Foi Einaudi quem convenceu a editora McGraw-Hill a publicar The ruling class (Albertoni, 1989b:xxvi; Livingston, s.d.:xli). Trazendo a marca da concorrncia de Livingston com Henderson, De Voto e outros, a traduo de Pareto recebeu um ttulo The mind and society que expressava a forma como o autor vinha sendo lido de modo predominante nos Estados Unidos. O livro de Mosca, por seu turno, marcado pela apropriao de sua concorrncia com Pareto, teve um ttulo The ruling class que o associava quela que era uma de suas principais reivindicaes frente a este, e que sinalizava a forma como deveria ser lido: uma teoria da classe dirigente. Mais do que isso, tomado como emblema da oposio ao fascismo e em parte, por isso tambm tendo a sua publicao assegurada , imps-se dele essa mesma percep-

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o, atribuiu-se-lhe um claro carter poltico, uma feio eminentemente liberal. interessante, assim, que a edio de lanamento de The ruling class estampava em sua capa a seguinte recomendao de Charles Beard, um dos principais nomes das cincias sociais nos Estados Unidos: Um livro indispensvel para todos os americanos que querem entender as foras que orientam as tendncias modernas no sentido do fascismo, do comunismo e de outros tipos de governos fortes.90 Ignorava-se, portanto, o fato de que Elementi di scienza politica, do qual The ruling class era a traduo, havia sido construdo como uma anlise no especificamente do fascismo, do comunismo, ou dos governos fortes, mas, ao contrrio como ser visto adiante , dos governos ditos democrticos, e como uma crtica mesmo a estes. Se o comunismo era contemplado e alis bastante contemplado em sua anlise, o era como uma proposta que tomava por base, e levava ao limite, a noo de igualdade, bsica no iderio democrtico. Quanto ao fascismo, embora presente, no se afigurava ainda como uma questo absolutamente central para Mosca.

PARTE I

Gaetano Mosca: a inovao conservadora

CAPTULO 2

Origens e opes de carreira

So poucas as informaes disponveis sobre as origens sociais e familiares de Mosca, bem como sobre sua juventude. Ele nasceu em Palermo, na Siclia, a 1 de abril de 1858, antes portanto da unificao italiana.91 De sua fratria, sabe-se que era composta por mais trs homens e trs mulheres. De modo condizente com a percepo que se imps de Mosca como um poltico digno e abnegado, seus comentadores e bigrafos tm-se limitado a caracterizar sua famlia como modesta mas honrada, como uma famlia culta na qual estudar e servir ao pas eram tidos em alta estima, extraindo da, como conseqncia lgica, seus movimentos e tomadas de posio ao longo da vida.92 O prprio Mosca, entretanto, nos d melhores elementos para caracterizar suas origens e sua trajetria, em um de seus primeiros escritos, Teorica dei governi e governo parlamentare, publicado em 1884 e reeditado em 1925.93 No promio ao livro, o autor relata que, quando menino, passava em casa a maior parte do tempo em que no estava na escola. Suas horas livres eram empregadas na leitura de livros que encontrava na pequena biblioteca de seu pai em seus termos. Gostava dos romances mas era para os livros de histria, pelos quais diz sempre ter tido uma especial atrao, que se voltava com maior interesse (Mosca, 1925:5). Mosca tinha o hbito de aprender de cor os fatos histricos para depois recit-los para seus professores e para os amigos do pai, que estimulavam sua aptido. No se tratava ainda, dizia ele, de uma tentativa de reflexo sobre aqueles fatos, mas simplesmente de uma memorizao. De todo modo, esse exerccio lhe permitiria, em suas palavras, acumular um capital de conhecimento histrico que lhe seria bastante til em seus estudos futuros (Mosca, 1925:5).

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Na verdade, a nfase de Mosca em seu gosto precoce pela histria no era gratuita. Tinha como objetivo primordial evidenciar aquele que era um de seus recursos bsicos, que lhe permitiu sustentar-se como professor secundrio durante algum tempo depois de formado e que, alm disso, conferiu uma das marcas mais caractersticas de sua reflexo, que buscava na histria as evidncias de leis sociais.94 Mais do que isso, porm, ao referir-se ao seu gosto pela leitura, sua vocao histrica, o autor fornece de forma indireta algumas indicaes que permitem localiz-lo socialmente de modo mais preciso. O nmero de iletrados na Itlia poca em que Mosca nasceu correspondia a 75% da populao, abrangendo praticamente todo o campesinato e a maior parte dos artesos e trabalhadores urbanos. Apenas em algumas cidades do Norte que os trabalhadores comeavam a mandar seus filhos para a escola. No Sul, eminentemente rural, a concentrao de analfabetos era maior, chegando a 87% na regio de origem do autor.95 Segundo este, as defasagens regionais faziam-se sentir na prpria qualidade do ensino, no se alterando de forma significativa nos anos que se seguiram unificao:

Mas as diferenas entre uma e outra regio eram extremamente sensveis, tanto que, no obstante muito ter sido feito nos ltimos 23 anos no sentido de aplain-las, elas ainda no desapareceram completamente. A regio mais culta e civil era o Lombardo-Vneto, que goza de uma organizao de estudos similar dos alemes. Em seguida vinha a Toscana, depois o Piemonte e os Ducados, depois o Estado Pontifcio, e por ltimo o reino das duas Siclias. Neste pas, praticamente segregado do movimento material e intelectual do restante da Europa, completamente desprovido de uma organizao regular de estudos ( de chorar quando se pensa no que eram as universidades e os estudos secundrios da Siclia, antes de 1860), a ignorncia era quase geral, e apenas poucas mentes eleitas, em virtude de iniciativa individual e de sacrifcios, podiam ter pretenses a uma cultura superior (Mosca, 1925:153, nota 1).

Na verdade, os governos posteriores unificao concederam uma relativa importncia educao elementar, tornada obrigatria em 1877, para crianas entre seis e nove anos de idade, por um perodo mnimo de dois anos.96 Ela era percebida como um mecanismo bsico de construo da nao. Nos dizeres de Massimo

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dAzeglio, um dos lderes do Risorgimento, a Itlia j havia sido feita, mas faltava ainda fazer os italianos.97 Isso significava, em grande parte, romper com o localismo em uma perspectiva ampla que ia desde a imposio de uma lngua nica sobre os diversos dialetos regionais,98 at a afirmao de uma lealdade e de uma adeso figura central do rei que tornassem possvel, por exemplo, o engajamento da populao masculina em um exrcito nacional. Tal funo caberia, em boa medida, educao primria. De fato, o nmero de escolas primrias do pas dobrou nos primeiros 20 anos da unificao. Em termos regionais, no entanto, os desnveis persistiram. Das 33.556 escolas pblicas existentes em 1871/72, 13 mil estavam no Piemonte e na Lombardia, no Norte, ao passo que apenas 2.228 eram divididas pela Apulia, Basilicata e Calbria, no Sul.99 Acrescente-se a isso o fato de que, embora fosse obrigatria a educao elementar, a precariedade da fiscalizao contribua para que a freqncia escolar fosse bastante baixa, em particular no Sul, onde era inferior a 20%.100 Desse modo, a hierarquia regional da alfabetizao na Itlia no se alterou significativamente entre a unificao e a dcada de 1880, quando foi publicada a Teorica. Enquanto o Piemonte e a Lombardia reuniam taxas de 32,3 e de 37% de analfabetismo, respectivamente, a Toscana, na regio central, se apresentava com 61,9%. J na Siclia, a proporo de analfabetos chegava a 81,2% da populao.101 O acesso educao secundria era tambm bastante restrito. Eram trs os tipos de escolas secundrias: os liceus, os institutos tcnicos e as escolas normais. Os liceus detinham maior prestgio social e seu ensino era centrado nas humanidades, enfatizando o estudo dos clssicos, da filosofia, da lingstica, da histria e da literatura. Na medida em que no conformavam uma competncia profissional especfica e que eram pagos, os liceus eram freqentados basicamente por alunos que almejavam alcanar a universidade, oriundos de famlias com meios para sustent-los durante um longo perodo. Os institutos tcnicos e as escolas normais, por seu turno, mesmo possibilitando o ingresso na universidade, particularmente nos cursos de cincias fsicas e matemticas e de engenharia, propiciavam j uma qualificao para o trabalho, como por exemplo a de agrnomo, ou a de professor primrio, sendo por isso procurados tambm por famlias de menos recursos. De todo modo, a educao secundria no alcanava mais do que 10% dos jovens.102 Por conseguinte, o nmero de estudantes que chegavam s universidades 21 em todo o pas, entre pblicas, a maioria, e privadas era bastante reduzido. Segundo estimativas, ele girava em

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torno de 13 mil na dcada de 1870 e no incio da de 1880. Algumas universidades, como a de Bolonha, uma das mais antigas da Europa, tinham 577 alunos, ao passo que outras, como a de Macerata, 47 (Clark, 1993:39). Mais do que isso, esses poucos alunos eram em larga medida originrios dos setores mdios e superiores da populao. O prprio Mosca observava, em uma nota sobre a mobilidade social ou permeabilidade dos estratos sociais, em seus termos aps a unificao, que:

Parece no haver dvida de que, no que tange permeabilidade dos estratos sociais, a situao piorou. Entre a velha gerao, que ascendeu antes de 1860, conhecemos muitas pessoas conspcuas, senadores, comendadores etc. que so filhos de operrios. Por essa poca, os estudos eram mais curtos e menos dispendiosos e com fora de vontade se podia passar de operrio a profissional liberal. Ora, h hoje talvez um nmero excessivo de advogados e mdicos, entre os quais muitos esto deslocados, muitos que teriam feito melhor se tivessem seguido outro caminho, mas entre os estudantes da universidade no conhecemos um nico [o grifo de Mosca], repetimos, um nico, que fosse filho de um verdadeiro operrio (Mosca, 1925:296, nota 1).

V-se assim que, embora originrio de uma regio eminentemente pobre, marcada por baixos nveis de alfabetizao e por um acesso precrio escola, Mosca pde chegar universidade, depois de passar por um liceu, em um perodo em que a educao elementar ainda no se havia tornado obrigatria.103 Sua famlia investiu em sua educao custeando seus estudos, permitindo que no trabalhasse em seu tempo livre e estimulando-lhe o hbito da leitura. Mosca, como se percebe, vinha de uma posio social superior da mdia da populao italiana, e da siciliana em particular. Seu pai pertencia aos quadros do servio pblico e chegou a ocupar a secretaria geral da municipalidade de Palermo, um dos mais importantes cargos na hierarquia dos governos locais, tornando-se posteriormente inspetor do correio.104 Sua famlia, alm disso, era j detentora de um alto capital escolar: seu av materno era mdico e o paterno engenheiro.105 importante assinalar que a nfase dada por Mosca educao, bem como a associao que faz entre universidade e mobilidade social guardam relao com o peso que a escolaridade vinha assumindo entre os grupos mdios e superiores, como elemento conferidor de prestgio e recurso ascensional. De modo geral, eram

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as famlias de patrimnio imobilirio menor, ou pouco significativo, que mais investiam na educao de seus filhos, preocupao que se expressava de forma freqente inclusive em testamentos da poca. Na verdade, porm, a propriedade vinha perdendo fora como princpio bsico de distino, enquanto as chamadas profisses a advocacia, a medicina e a engenharia ganhavam um progressivo reconhecimento (Socrate, 1995). Associado a isso estava o fato de que era aquele mesmo o momento em que se observava, ao menos em termos formais, um processo de imposio e de legitimao de preceitos mais igualitrios, universais, impessoais, de mobilidade e acesso a cargos e posies sociais, afirmando-se o princpio do mrito individual, aferido atravs de concursos, com provas e exames de ttulos.106 De fato, era exatamente esse processo, ou os seus limites na Itlia, que constitua o eixo da reflexo de Mosca na Teorica, como se ver adiante. As anlises sobre o sistema universitrio italiano contidas no livro nos ajudam a compreender as opes de carreira do autor, que se formou em direito pela Universidade de Palermo. Havia, segundo ele, quatro grandes cursos universitrios: o de cincia e matemtica, para onde seguiam os que queriam tornar-se engenheiros; o de medicina, ao qual se subordinavam os cursos de farmcia e de veterinria; o de letras e filosofia; e, finalmente, o de direito (Mosca, 1925:207). Para algum como Mosca, interessado em literatura e, em particular, histria, duas possibilidades se apresentavam: letras e filosofia ou direito. Os que se formavam na primeira faculdade destinavam-se principalmente ao magistrio secundrio, visto serem mais restritas as possibilidades de ingresso no ensino universitrio. A carreira de professor secundrio, entretanto, era desvalorizada, difcil, mal remunerada, o que justificava o fato observado por Mosca de que poucos jovens por ela se interessavam, mesmo diante de vantagens oferecidas por determinadas universidades, como bolsas de estudos ou taxas reduzidas (Mosca, 1925:210-1).107 Direito, ao contrrio, era uma formao socialmente valorizada. Apesar da baixa qualidade e da desorganizao de alguns cursos, conforme a avaliao de Mosca, o diploma naquela rea oferecia possibilidades mais amplas de acesso ao mercado de trabalho e de ascenso. Dessa forma, cerca de 40% dos estudantes universitrios, do incio da dcada de 1880, estavam nas faculdades de direito. Na virada do sculo, o nmero de advogados chegou a algo em torno de 24 mil, seis vezes mais do que na Prssia, cuja populao era maior do que a italiana.108

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Entre as possibilidades que se abriam aos que se formavam em direito, para alm da prpria profisso de advogado, estava o ingresso na magistratura. Esta, no entanto, segundo Mosca, vinha passando por um processo de desvalorizao. Se antes, por seus bons salrios, por suas diversas vantagens e pelo prestgio de que se revestia, a carreira era bastante almejada, agora a situao comeava a deteriorar-se, principalmente para os que se encontravam em incio de carreira, o que desestimulava e empurrava os indivduos mais bem qualificados para reas mais promissoras, ou de menor grau de dificuldade (Mosca, 1925:220-1).109 De acordo com Mosca, duas das reas mais procuradas eram, naquele momento, as do direito pblico e das cincias sociais. Elas abriam boas possibilidades na disputa por cargos pblicos e tambm no acesso ao ensino universitrio (Mosca, 1925:221). Foi justamente por elas que o autor optou, buscando ampliar suas oportunidades, conformando um padro que de modo geral marcou seus investimentos ao longo de sua trajetria. preciso no subestimar a importncia que assumia o ingresso no servio pblico, e mesmo no magistrio universitrio, em particular em uma regio como a Siclia, predominantemente rural, de reduzidas oportunidades de insero urbana. E isso, destaque-se, tanto mais quanto se tratava, ento, de um momento de consolidao do Estado nacional italiano, ampliando-se o nmero de posies e funes disponveis. Apenas para se ter uma idia, o funcionalismo pblico italiano cresceu cerca de 68% entre 1882 e 1911.110 H que se ressaltar, ao mesmo tempo, o lugar central reservado aos diplomados em direito, quer fossem propriamente advogados quer, como no caso de Mosca, fossem juristas, nos processos de formao, de montagem dos Estados nacionais, tanto em uma perspectiva poltica quanto legal e administrativa. Esse fato tem sido recorrentemente acentuado pelas anlises, enfatizando-se os estreitos liames que uniriam o direito construo e gesto do Estado, como mostra Jos Murilo de Carvalho em seu livro sobre a elite imperial brasileira (Carvalho, 1981:27-34). Em Le conflit des facults, de 1798, Kant procurava evidenciar os vnculos que uniam o direito ao poder poltico, produzindo uma classificao dos cursos universitrios bastante elucidativa. O autor observava que as faculdades ento existentes dividiam-se em superiores e inferior, segundo estivessem ou no subordinadas aos interesses governamentais. As superiores eram aquelas em que o governo interferia definindo, de algum modo, no apenas os contedos ali ensinados, como tambm sua imagem, suas manifestaes pblicas. A inferior, por seu turno, era marcada pela independncia, pela autonomia, podendo utilizar suas proposies como bem entendesse, dedicando-se estritamente ao interesse da cincia.

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De acordo com Kant, enquanto a faculdade de filosofia, com suas duas sees, a de cincia histrica reunindo a histria, a geografia, a lingstica e as humanidades e a de cincias racionais puras incluindo a matemtica e a filosofia puras, e a metafsica da natureza e dos costumes , era a inferior, as superiores eram as de teologia, de direito e de medicina. Seguindo uma ordem racional, o governo, atravs do controle do ensino da teologia, podia influenciar os pensamentos ntimos de seus sditos de modo a dirigi-los. J pelo direito se buscava, na anlise do autor, limitar as condutas externas dos governados atravs do freio da lei. Na medicina, finalmente, tratava-se de garantir um povo forte e numeroso, que poderia ser empregado de maneiras diversas (Kant, 1935:13-29).111 Da faculdade inferior saam os sbios, os doutos, ao passo que das superiores vinham, na terminologia de Kant, os letrados. Se os primeiros, senhores de uma competncia e de um capital cientficos, eram livres para exercitar a anlise e a reflexo crticas, inclusive publicamente, os segundos, tcnicos da cincia, controlando um conhecimento emprico necessrio ao estrito desempenho de suas funes, instrumentos que eram do governo, deviam restringir-se ao limite por este imposto (Kant, 1935:14-5).112 A oposio apontada por Kant foi apropriada por Bourdieu em Homo academicus, livro em que analisa a hierarquia atual do campo universitrio francs. Ali tambm, segundo o socilogo, possvel perceber a existncia de dois plos opostos: um das faculdades cientificamente dominantes mas socialmente dominadas e um das cientificamente dominadas, mas temporalmente dominantes. Tal bipolaridade indica que estariam em operao, naquele campo, princpios de hierarquizao e de legitimao diversos, ou mesmo antagnicos. Haveria um princpio de hierarquizao social, baseado nos capitais social, econmico e poltico herdados ou efetivamente acumulados pelos indivduos, em oposio a um outro especfico, cultural, estruturado sobre o capital de autoridade cientfica, de notoriedade intelectual. Por outro lado, se observaria um princpio de legitimao temporal e poltico, resultado da dependncia do campo universitrio em relao ao do poder, contrapondo-se a um distinto que se funda na autonomia da ordem cientfica e intelectual. No plo autnomo, intelectualmente legitimado e culturalmente dominante, esto as faculdades de cincias. No dependente, temporalmente legitimado, social, econmica e politicamente superior, localizam-se as faculdade de direito, alm de outras como as de medicina (Bourdieu, 1984:55-96). Um dos fortes elementos que expressam a proximidade entre o campo do poder e o curso de direito a concentrao de indiv-

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duos com essa formao no espao da atividade poltica. Era bastante alta a freqncia de diplomas de direito entre os ocupantes de cargos polticos na virada do sculo XIX, como demonstra Christophe Charle para o caso da elite francesa (Charle, 1987:407-14). O mesmo ocorria no Brasil, de acordo com os dados coligidos por Jos Murilo de Carvalho (1981:68-91). A Itlia, por seu turno, tambm no se afastava desse padro, sendo corrente a afirmao de que suas faculdades de direito eram, por excelncia, centros de preparao e vias de ingresso para a funo pblica. Cerca de 49% dos deputados italianos, segundo dados de 1913, eram formados em direito.113 Foi pelo direito mesmo, ou pelo plo universitrio temporalmente superior, imbricado com a poltica, que Mosca fez sua opo de carreira. No espao do direito, contudo, foi para a posio culturalmente legitimada do direito constitucional e das nascentes cincias sociais que o autor se encaminhou. importante destacar que o interesse de Mosca pelo direito constitucional vinha articulado a uma preocupao bastante evidente com o problema da nacionalidade. Refletir sobre as constituies, de sua perspectiva, significava analisar os fatores constitutivos e ordenadores da nao, seu arcabouo jurdico-legal e, principalmente, poltico. Mais ainda, significava faz-lo por um prisma histrico, gentico-evolutivo. Tal preocupao que presidiu a elaborao de sua tese de colao de grau, I fattori della nazionalit.114 Concluda em 1881, distante apenas 20 anos da proclamao do reino da Itlia e 10 da anexao de Roma, ela estava referida de modo claro ao processo de unificao. Em funo deste que pde ela ganhar maior inteligibilidade, assim como tambm o prprio interesse do autor pelo direito constitucional, que o levaria a desembocar em uma reflexo sobre as formas de governo. Ainda que a Siclia tivesse desempenhado um papel importante na unificao italiana, foi o Piemonte que se imps como posio dominante no processo. Como resultado, produziu-se aquilo que alguns analistas chamaram de piemontizao da Itlia: seu novo rei passou a ser Vittorio Emmanuele, do Piemonte, que manteve a numerao dinstica de II, sua primeira capital foi Turim e sua nova base constitucional o Statuto, a Carta piemontesa. Alm disso, mais da metade dos altos postos da administrao e do servio pblicos passou a ser controlada por indivduos do Norte em geral, piemonteses principalmente.115 Para Mosca, por conseguinte, tomar a nao e a sua estrutura jurdica por objeto significava, ao mesmo tempo, buscar compreender sua posio nela, expressando uma perspectiva regionalmente subordinada e apontando defa-

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sagens entre um discurso dominante de carter igualitrio e incorporador e uma prtica poltica concentradora e exclusivista.116 Esse ponto fica patente na Teorica, trabalho mais elaborado e extenso que o anterior, fruto de um esforo intelectual mais sistemtico deslanchado a partir de um curso complementar de cincia poltica e administrao, que Mosca freqentou na Universidade de Roma aps a sua formatura. Alm de ampliar seu capital escolar e cultural, o curso exerceu uma influncia significativa no autor, pesando inclusive para o enquadramento de sua reflexo nas cincias sociais e, dentro destas, na cincia poltica. O diretor do curso era Angelo Messedaglia, professor de estatstica na Universidade de Roma e deputado liberal pela regio de Verona. Considerada uma das cincias sociais, vinculada economia poltica, a estatstica gozava de forte prestgio na Itlia, constituindo-se em uma disciplina em expanso. Sua fora vinha, em grande parte, do fato de ser tomada como um dos principais meios para um exato conhecimento da realidade do novo pas. Mais ainda, ela vinha passando por uma redefinio, abandonando suas origens descritivas e compilativas para adotar uma postura mais analtica, voltando-se para a descoberta de leis sociais, mudana pela qual Angelo Messedaglia ficou identificado como um dos responsveis (Tobia, 1995:448-52). Partindo de uma viso normativa e meritocrtica, Messedaglia considerava que as cincias sociais deviam voltar-se para o aperfeioamento e a gesto do Estado e da poltica, formando tambm os quadros competentes para tanto. Nessa linha, ele defendia, desde a dcada de 1850, a criao de uma faculdade de estudos poltico-administrativos autnoma em relao de direito, o que no entanto s viria a ocorrer nos anos 20.117 De fato, essa perspectiva das cincias sociais enquanto formadoras dos quadros do servio pblico e dos agentes polticos parecia ser relativamente generalizada naquele perodo, observando-se tambm na Frana. Nesse pas se assistiu a partir de meados do sculo XIX criao e ao crescimento, ainda que dentro das faculdades de direito, de cadeiras como poltica, histria, economia poltica, legislao comparada, direito constitucional e internacional, cincia financeira, legislao industrial e economia colonial, marcadas, certo, por uma orientao jurdica, mas ministradas por professores que se percebiam como inscritos nas cincias sociais. Mais, foram elas, ou parte delas, reconhecidas como cincias do Estado, consolidando-se no ensino a partir de reformas universitrias, que reservaram ao direito a funo de formar no apenas juristas, mas tambm administradores e gestores das altas funes pblicas.118

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Foi essa viso das cincias sociais, da poltica em particular, que orientou a produo de Mosca e que deu forma ao seu conceito de classe poltica. No por acaso portanto, reconhecia o autor, na Teorica, que era com Messedaglia que tinha um de seus maiores dbitos intelectuais, tendo este lhe propiciado uma viso clara e superior dos argumentos das cincias sociais (Mosca, 1925:9).119 Como se pode perceber, as cincias sociais no constituam, ento, disciplinas plenamente institucionalizadas, autnomas. Elas se vinculavam ao direito, do qual haviam nascido e se afirmado.120 Se esse nascimento e afirmao no se deu sem conseqncias para o campo do direito, tambm necessrio ver, por outro lado, que os elos de ligao com este imprimiram nas cincias sociais, ao menos em seu incio, determinadas marcas dele bastante caractersticas.121 Podemos seguir Bourdieu quando afirma, em Homo academicus, que as cincias sociais introduziram no direito, enquadrado pelos limites mundanos do poder temporal, uma cunha de liberdade, de independncia.122 Ao mesmo tempo, contudo, preciso no tomar essa observao de forma rgida. Afinal, justamente por se enquistarem no campo do direito, algumas determinaes mundanas foram tambm constitutivas das cincias sociais de maneira geral, que assumiram de igual modo um carter normativo, no totalmente livre e independente, marcado assim por uma certa ambigidade. Portanto, investir nas cincias sociais no significava, necessariamente, caminhar para uma ruptura com o direito ou com as determinaes do poder temporal, com a normatividade, assumindo uma postura apartada de quaisquer interesses que no fossem os da pura cientificidade. certo que alguns como Durkheim, Weber e o prprio Pareto buscaram se afirmar como pensadores livres, autnomos, impondo-se e sendo reconhecidos, desse modo, como inventores, pais fundadores de uma nova cincia, a sociologia. Mesmo aqui, no entanto, no se descartava de todo a idia de que a cincia pudesse contribuir para o aperfeioamento social.123 Ainda que buscasse se afirmar como um inovador e um poderoso crtico da influncia e do poder polticos, Mosca manteve-se firme em uma linha de subordinao da cincia poltica ao direito, e mais especificamente ao direito constitucional, investindo na carreira de jurista. Em vez de desimpedir suas vias de afirmao, entretanto, sua estratgia terminou resultando em um baixo reconhecimento tanto no prprio direito, quanto, aps a sua institucionalizao, nas cincias sociais, fazendo com que permanecesse durante um bom tempo, nos termos de William Salomone, como um obscuro autor siciliano (Salomone, 1945:18).124

CAPTULO 3

Inovao e fracasso universitrio

O promio da Teorica deixa claro que Mosca, com cerca de 26 anos quando da publicao do livro e preparando-se para tentar a carreira universitria, buscava afirmar-se como uma novidade nos estudos de poltica e, por extenso, de direito constitucional. Dizia ele que, j durante seu perodo de faculdade, havia comeado a sentir um desconforto em relao s idias prevalecentes sobre os sistemas polticos em geral. Percebia que essas idias eram fundamentalmente erradas, baseadas em suposies no apenas estranhas como tambm gratuitas. Intrigava-o o fato de que mesmo especialistas no assunto, isto , jornalistas, escritores e deputados, no percebessem o que, para ele, parecia ser claro (Mosca, 1925:6). certo que havia, reconhecia Mosca, uma distncia considervel entre a simples percepo dos equvocos de um sistema de idias e a elaborao de um novo, mais conforme realidade. Para ele mesmo uma tal elaborao no se havia configurado como um propsito deliberado desde o incio, tendo chegado a ela de forma espontnea, quase inconsciente (Mosca, 1925:6-7). O que Mosca buscava era no propor mais um sistema terico entre tantos outros, mas sim elaborar um sistema verdadeiro, inquestionvel, cientificamente demonstrado. Isso significava, igualmente, atribuir um estatuto de cientificidade s cincias sociais, poltica em particular, o que sustentava no ter sido feito at ento. Na verdade, impor como dominante o seu conceito de cincia poltica era, a um s tempo, reunir condies para o reconhecimento tanto do seu sistema como cientfico, verdadeiro, quanto do seu nome como cientista, como especialista.125 Mosca iniciava o primeiro captulo da Teorica observando que as disciplinas fsicas e naturais j haviam alcanado um estatuto rigo-

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rosamente cientfico. Isso significava que elas tinham um corpo de verdades cientificamente coordenadas, cuja demonstrao era inacessvel aos profanos, que as aceitavam como tais, sem question-las:

Alm disso, estas verdades cientficas j no so fruto da observao comum e vulgar, mas antes de um mtodo especial de observao no qual somente os cultores das cincias isoladas so iniciados; acrescentemos que, tambm elas, esto em perfeita contradio com os resultados da observao vulgar. Enfim, os profanos no se arrogam em colocar em dvida nenhum dos resultados cientficos obtidos em uma destas disciplinas; antes, respeitam integralmente a palavra dos especialistas, acreditam de algum modo poder, por iniciativa prpria, alcanar alguma coisa ou colocar em cena aquelas noes que so concordes e seguramente afirmadas pelos cientistas (Mosca, 1925:12).

Para Mosca, portanto, a afirmao de uma cincia passava por um processo de constituio, e de controle, de um mtodo de trabalho, de um conjunto de procedimentos prprios, inacessveis aos homens comuns. Mais do que isso, porm, ela supunha um processo de diferenciao social, a constituio de um grupo de especialistas, de iniciados, assim reconhecidos por oposio aos profanos. Tal diferenciao, por sua vez, devia basear-se no monoplio legtimo dos meios de produo e de imposio de um discurso cientfico autntico, reconhecidamente verdadeiro. Nas cincias sociais, entretanto, com exceo da economia poltica e da estatstica, isso no se observava. No havia nelas princpios gerais cientificamente provados. Ao contrrio, todos os seus princpios eram, de fato, hipteses discutveis. Nelas no havia uma ntida separao entre verdade cientfica e juzo vulgar. No se tinha estabelecido ali, dizia Mosca, uma clara diviso entre o diletante e o cientista (Mosca, 1925:12). Esta ltima observao de Mosca ganha sentido maior quando somada ao rol de especialistas em poltica por ele anteriormente elencado: jornalistas, escritores e deputados. O autor refora a constatao de que ainda no se podia, de modo claro, distinguir o cientista do diletante, indicando tambm que o processo de diferenciao social destacado no havia, de fato, se operado na Itlia. Ao mesmo tempo, o que parece ficar patente que a universidade no detinha at ento o monoplio, nem da enunciao e da validao do discurso cientfico legtimo sobre a poltica, nem da produo dos produtores de tal discurso.

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por tudo isso que em grande parte, segundo Mosca, as cincias sociais eram marcadas por uma srie de noes apriorsticas, aceitas desde sempre, sem discusso, de modo acrtico. Essas noes foram incorporadas de uma forma tal, que combat-las significava no apenas opor-se a hbitos intelectuais entranhados, mas ir mesmo contra sentimentos, expor, de acordo com o autor, o estado primitivo em que se encontrava, mais especificamente, a cincia poltica, tambm dita sociologia (Mosca, 1925:14-6).126 Um bom exemplo disso, na opinio do pensador, eram os critrios prevalecentes de classificao das formas de governo. Remontando ainda a Aristteles, em vez de eles se basearem nas qualidades mais substanciais dos diferentes governos, tomavam os elementos mais aparentes. Partiam, portanto, da observao vulgar e no da cientfica, e por essa via dividiam os governos segundo um gradiente perceptvel de concentrao da autoridade. Os democrticos seriam aqueles governos em que a maioria da populao era o poder determinante, os aristocrticos aqueles controlados por uma classe restrita e os monrquicos concentravam a autoridade nas mos de apenas um indivduo (Mosca, 1925:15-6). Havia, para Mosca, que se buscar estabelecer no propriamente um novo sistema, mas princpios distintos de classificao. Era preciso abandonar os critrios vulgares, superficiais, baseados nas aparncias, em proveito de outros que fossem efetivamente gerais, que expressassem constncias. E que critrios eram esses? Mosca os enumerava em uma formulao recorrentemente citada como evidncia de que, j na Teorica, podiam ser encontradas as origens de sua teoria da classe poltica:

Em todas as sociedades regularmente constitudas, nas quais h aquilo que se diz ser um governo, ns, ao vermos que a autoridade deste se exercita em nome do universo povo, ou de uma aristocracia dominante, ou de um nico soberano, (...) encontramos com extrema constncia um outro fato: que os governantes, ou seja, aqueles que detm nas mos os poderes pblicos e os exercitam , so sempre uma minoria, e que abaixo deles h uma classe numerosa de pessoas, as quais, no tendo nunca participado de forma efetiva [o grifo de Mosca] do governo, no fazem seno sofr-lo. Elas podem ser chamadas de governados (Mosca, 1925:16).

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Era sempre, portanto, uma minoria que exercia as funes, que movimentava a mquina do governo, no havendo sentido em falar de governo de um s homem, ou da maioria, no caso das democracias. A essa minoria que Mosca chamava de classe poltica, e sobre ela ou sobre suas diferenas que deveriam, segundo ele, ser erigidos os critrios cientficos de classificao dos governos (Mosca, 1925:18-9). Uma questo que se colocava, entretanto, era a de como a minoria, ou a classe poltica, se afirmava e se mantinha, impondo o seu poder sobre a maioria. Havia, em primeiro lugar, que se observar que as minorias eram organizadas, ao contrrio das maiorias, impondo-se assim sobre elas. Essa imposio, claro, podia se dar sobre uma componente de fora, mas nunca exclusivamente sobre ela. A dominao era em geral legtima, sendo aceita pela maioria, ou pelos governados, que reconheciam a superioridade da classe poltica, que percebiam nela caractersticas, mritos, dons que a destacavam do conjunto da sociedade (Mosca, 1925:25-6):

Qualquer indivduo que faa parte da classe poltica deve ter, ou pelo menos presume-se que tenha, um mrito ou uma qualidade que no so possudos por todos, aos quais, na sociedade em que vivemos, a maioria dos homens confere uma grande importncia. Esses mritos e essas qualidades nem sempre foram os mesmos em todos os tempos e em todos os pases, ou, melhor dizendo, os critrios de formao ou de admisso na classe poltica so vrios. E essa variao to importante que ns acreditamos que ela possa fornecer um segundo critrio de admisso, de acordo com o qual possvel, se no classificar, ao menos estudar os governos, podendo ser revelados, no exame de suas entranhas, alguns traos dos mais caractersticos e substanciais (Mosca, 1925:26).

Os mritos, os dons, as qualidades que determinavam a formao tanto da classe poltica quanto do governo, e que Mosca chamava de foras sociais, variavam no tempo e no espao. Cada sociedade, em cada perodo histrico, valorizava determinadas caractersticas, distintas das de outras sociedades em outros perodos, conformando assim classes polticas com diferentes feies. Dessa forma, em perodos mais recuados, marcados por exemplo por disputas constantes e por guerras, o valor militar e a fora eram elementos predominantes. Com o passar do tempo, en-

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tretanto, impondo-se a paz e a estabilidade, o valor militar passava a no mais predominar, cedendo lugar riqueza. Mas isso no significa que desaparecesse ou que no pudesse voltar a predominar, particularmente em perodos de anarquia e dissoluo social. Obviamente a riqueza podia ser de natureza diversa, como territorial ou pecuniria, e, por sua vez, havia passado por duas fases, uma de direito e uma de fato. Na de direito, apenas os indivduos possuidores de determinadas riquezas podiam pertencer legalmente classe poltica. Na fase que Mosca qualifica como de fato, as barreiras legais foram derrubadas mas a riqueza continuava funcionando como uma alavanca fundamental, associada ao nascimento que, do mesmo modo, havia atravessado aqueles dois estgios (Mosca, 1925:27-31). Tambm o nascimento, abolido como critrio exclusivo e legal para a formao da classe poltica, continuava, de fato, a exercer uma grande influncia:

Nascimento significa riqueza, significa relaes que algum pode facilmente adquirir, o que poder ser extremamente difcil para uma outra pessoa; nascimento significa facilidade relativa de tornar-se dono de certos conhecimentos que, para outras pessoas, custaro muito estudo; nascimento significa dizer estar acostumado ao comando e ocupar uma posio importante; estas ltimas coisas, geralmente julgadas de pouco peso, tm, ao contrrio, uma enorme importncia na prtica da sociedade. O manto oferecido a todos, todos podem tentar ganh-lo, ainda que alguns deles distem trs passos e outros distem 100. Eis como o nascimento determinante. A experincia histrica no faz seno confirmar aquelas indues que podem ser tiradas pela sociedade atual. Existem muitos casos nos quais os cargos eletivos ficaram quase sempre enquistados nas mesmas famlias, porque naturalmente quem nasce fora delas ter de superar muitas desvantagens para poder concorrer vitoriosamente (Mosca, 1925:31-2).

Portanto, ainda que ao fim do sculo XIX no fosse mais um requisito legalmente necessrio para o ingresso na classe poltica, o nascimento continuava a operar como um poderoso propulsor, facilitando e acelerando o acesso de determinados indivduos a posies sociais elevadas. Mais do que riqueza, nascimento significava um capital de relaes pessoais, de conhecimento, significava a incorporao de hbitos e posturas de mando, a familiaridade com

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aes, funes e lugares especficos, o que, na concorrncia por determinados cargos, acarretava enormes vantagens e a quase certeza da vitria, alm de poupar um brutal esforo de adaptao, de converso. Sem dvida, o nascimento representava um forte contrapeso para um outro critrio de composio da classe poltica que se afirmava na sociedade moderna: o mrito pessoal. Era nas sociedades mais evoludas e maduras que, segundo Mosca, o mrito pessoal se afirmava como um dos elementos fundamentais de recrutamento e seleo da classe poltica. Isso se dava no apenas porque nessas sociedades se afirmavam sentimentos de igualdade e de justia social, mas tambm, e principalmente, pela importncia que nelas assumia o componente tcnico e cientfico. As funes polticas cada vez mais demandavam uma formao, conhecimentos e aptides especiais, avaliados atravs de exames. Isso, por seu turno, indicava a afirmao de uma nova fora social, o saber, que abria a possibilidade do reconhecimento tambm do esforo individual, independentemente da riqueza e do nascimento (Mosca, 1925:33-4). Fossem quais fossem a fora social prevalecente e o modo de ingresso na classe poltica, era preciso ver que essa classe no confessava nunca que comandava pela simples razo de ser composta por indivduos de caracersticas prximas, ou porque fosse mais apta. Ela sempre buscava a justificao, a legitimao de seu poder em um princpio abstrato, isto , em uma frmula poltica. Essa frmula tanto podia ser fundada em algum princpio sobrenatural, como o de que o poder vinha de Deus, quanto em um, ao menos em aparncia, racional, como o de que todo poder emana da vontade popular. Era preciso ver, contudo, que no era a frmula que determinava o modo de formao da classe poltica mas, ao contrrio, a classe que sempre adotava a frmula que mais lhe convinha (Mosca, 1925:36-8). Na verdade, as elaboraes de Mosca sobre a classe poltica contidas na Teorica estavam subordinadas, como desde o incio se v e como o ttulo indica, a uma tentativa de refletir sobre as formas de governo de modo geral, sobre seus critrios de classificao. No apenas isso, refletir sobre a classe poltica, seus critrios de formao, de ingresso, sua estabilidade e renovao significava para ele, ao mesmo tempo, pensar na prpria estabilidade do Estado. Em torno desses elementos, conclua Mosca, que girava a histria poltica da humanidade:

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Toda a histria poltica da humanidade em todos os tempos, em todas as naes e em todas as civilizaes pode ser retomada sob estes dois grandes pontos de vista: de um lado, o grau de coordenao das diversas classes polticas, a quantidade de recursos que elas sabem reunir nas prprias mos e a fora da sua ao coletiva; por outro lado, os vrios elementos que ingressam nas referidas classes, os seus diversos modos de impor-se, as suas disputas, as suas lutas, as suas transaes e combinaes. Por conseguinte, a mobilidade das sociedades humanas depende do seu contnuo variar em relao aos dois coeficientes indicados. Deles dependem o fortalecimento e o enfraquecimento dos Estados, as crises que os afetam, as agitaes ou as lutas internas pelas quais quase sempre se animam, e algumas vezes se dilaceram, e para os quais alguns vez ou outra entram em dissoluo e se esfacelam (Mosca, 1925:35-6).

Da em diante, Mosca procura demonstrar suas teses com base em exemplos histricos, comeando com a constituio poltica dos hebreus e indo at a queda do Antigo Regime. Feito isso, o autor inicia uma reflexo que ocupa mais da metade do livro sobre a situao italiana, o sistema parlamentar, os vrios nveis de governo, a administrao, a burocracia. Segundo Mosca, seu objetivo aqui era averiguar se o governo parlamentar podia, na prtica, realizar as idias que o embasavam. Queria Mosca ver se as abstraes tericas que davam suporte quele governo, e que compunham sua frmula poltica, condiziam com a sua prtica, ou se ele satisfazia as necessidades para as quais havia sido criado, trazendo verdadeiras mudanas nas condies sociais. Buscava Mosca, de modo mais preciso, verificar se o sistema parlamentar, escorado como estava nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, havia conseguido conformar uma classe poltica na base do mrito pessoal em vez do nascimento, da competncia em vez da riqueza. Tentava ele avaliar se, com a rigorosa aplicao dos princpios bsicos do sistema parlamentar, todos os elementos polticos de um pas, todos os seus valores sociais, passavam a tomar parte ativa na vida poltica, ou se permaneciam em boa parte excludos. Procurava finalmente saber se, diante de tudo isso, era possvel considerar aquele sistema como uma forma estvel e duradoura, um meio de satisfazer a contento as necessidades colocadas pela nova poca, ou se tratava-se de uma forma transitria, passageira (Mosca, 1925:143-5).

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O sistema parlamentar, para Mosca, tomando seu prprio pas por referncia, era essencialmente corruptor e imoral, pelo fato de colocar os ministros na dependncia dos deputados. Qualquer ministrio, se quisesse governar com relativa calma e por um perodo considervel, tinha que buscar o concurso da maioria no Congresso, trocando apoio por empregos, favores, privilgios e assim por diante. Com isso, o favoritismo, por um lado, e o arbtrio, por outro, passavam a ser a regra, servindo a lei para promover os amigos e os aliados, e para conter ou prejudicar os inimigos e mesmo os indiferentes (Mosca, 1925:162-5). At os homens dignos, qualificados, como boa parte dos que ocupavam os ministrios, terminavam se rebaixando moralmente. Isso se dava porque o sistema em que se inseriam baseava-se no nas leis da histria, mas em abstraes irrealizveis, resultando, de forma perversa, no inverso do que propunha:

A Camorra preferimos dizer o nome com todas as letras, porque talvez isso sirva para nos envergonharmos da coisa, cuja existncia conhecida de todos quem, dia aps dia, vai se tornando, cada vez mais, a verdadeira senhora da situao. No que os nossos ministros, que os homens que at hoje estiveram frente dos negcios, tenham sido desonestos (no garantimos nada para o futuro); ao contrrio, todos eles tinham um nvel moral bastante elevado, pelo menos se comparado ao da mdia dos cavalheiros. A questo que eles foram colocados em uma situao da qual no podem sair, a no ser rompendo com todos os seus amigos, com todas as suas ambies, com todo o seu passado. Ora, no convm impedir esses homens de fazer valer o seu interesse sem rebaixar o seu nvel moral, uma vez que, colocados nessa encruzilhada, quase sempre a sua moralidade que paga as contas da situao. Os nossos governantes do prova disso quando, embora permanecendo como homens privados honestos, tiveram pouco a pouco seu carter de homens pblicos corrompido: fruto inevitvel de um pernicioso sistema de governo que, inspirado em idias tericas e em abstraes metafsicas, no leva absolutamente em conta nem o conhecimento da histria nem o da sociedade e do carter humano (Mosca, 1925:165-6).

Os efeitos disso sobre a formao da burocracia dos ministrios e sobre o acesso aos postos pblicos em geral, como se pode concluir, s poderiam ser deletrios. Para que isso fosse mais bem avaliado, Mosca procurava dividir a histria recente da Itlia em dois perodos.

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O primeiro deles, no imediato ps-1861, havia sido extraordinrio, irregular, marcado pela necessidade de se construir uma mquina administrativa para o novo Estado. Para tanto, recorreu-se antiga burocracia dos pequenos Estados, especialmente os empregados dos governos piemonts, toscano e napolitano. Tambm os indivduos que haviam ajudado a revoluo, garibaldistas e conspiradores em geral, e que esperavam ser recompensados com empregos, foram incorporados. O resultado disso, segundo Mosca, foi a inoperncia, a ineficincia, o que levou a que fossem tomadas duas medidas reparadoras: a primeira foi uma depurao nos quadros da burocracia, e a segunda, a exigncia de ingresso atravs de provas e ttulos. Entrava-se assim no segundo perodo, ordinrio, normal, no qual a nica via legal de acesso aos cargos pblicos eram os concursos e os exames de ttulos. Se isso era a lei, entretanto era preciso ver que, na prtica, as coisas no se passavam bem dessa forma. Mesmo aqui, atravs do comprometimento e da presso sobre as bancas examinadoras, observava-se o favorecimento, a parcialidade e a operao de um sistema de cartas marcadas, ao invs do mrito pessoal e da competncia, como deveria prevalecer (Mosca, 1925:168-74). O ingresso no ensino universitrio no parecia escapar a essa norma. Eram em geral, segundo Mosca, pessoas de camadas bastante elevadas que a ele aspiravam e, para tanto, dispunham de dois meios, sendo o primeiro deles o concurso. O segundo meio era o art. 69 de uma lei de autoria de Gabrio Casati, ministro da Instruo Pblica em 1859, que autorizava a nomeao pelo rei, sem concurso, de pessoas indicadas pelo ministro, cuja obra, descobertas ou ensinamentos evidenciassem uma percia significativa e singular em uma determinada matria (Mongardini, 1980a:150, nota 6). Para Mosca, entretanto, por via de regra

os melhores professores so aqueles nomeados por concurso e os piores, as criaturas do art. 69. As razes desse fato, depois de tudo que dissemos, so fceis de adivinhar. Tambm nos concursos as poderosas amizades parlamentares e a benevolncia dos ministros exercem grande influncia. Retardar ou apressar um concurso depende do ministro da Instruo Pblica, como tambm o ministro quem nomeia a comisso, a qual deve julgar os ttulos e o mrito dos concorrentes. Enfim, o mesmo ministro pode nomear ordinrio um fulano que a comisso props como extraordinrio, e deixar extraordinrio um professor que, em trs ou quatro concursos para ctedras de diversas universidades, j foi declarado idneo para ordinrio (Mosca, 1925:212-3).127

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Ainda assim, e em funo mesmo do nmero razovel de universidades existentes na Itlia, era possvel encontrar vrios jovens professores que ingressavam graas, principalmente, ao seu mrito pessoal. Isso se dava, na maior parte, nas faculdades de engenharia e de medicina, nas quais era requisitada uma clara competncia tcnica, e nas de letras e filosofia, que exigiam alguns conhecimentos raros. Nas faculdades de direito, os melhores professores encontravamse na cadeira de economia poltica, que j se havia constitudo em uma disciplina cientfica, e nas afins. Nas outras disciplinas, quanto mais se aproximava das diretamente relacionadas com a poltica, tanto pior era o quadro de docentes (Mosca, 1925:213). Como se v, segundo Mosca, havia nas faculdades italianas uma gradao da prevalncia da meritocracia, que crescia de modo diretamente proporcional especializao, raridade e cientificidade do saber em questo, e de modo inversamente proporcional proximidade com o campo do poder poltico. Dessa maneira, em reas que exigiam o domnio de uma competncia tcnica maior, como a engenharia e a medicina, ou naquelas reconhecidamente cientficas, como a economia poltica, ao contrrio de outras, como o direito, o princpio do mrito operava de forma mais evidente e eficaz, ainda que isso no significasse, claro, a total eliminao da interferncia poltica. De sua anlise do funcionalismo italiano em geral sua poca, Mosca tira, portanto, as seguintes concluses:

Em primeiro lugar, embora legalmente todas as nossas instituies sejam organizadas de maneira que os postos e as promoes devam ser sempre concedidos por mrito pessoal, tambm esse princpio , na prtica, continuamente perturbado, no apenas pelas debilidades costumeiras do carter humano, comum a todos os tempos e a todos os pases, mas tambm por uma influncia constante e geral: pelo poder, no legal mas efetivo, que os deputados e os elementos que neles se apiam desfrutam em toda a nossa administrao, especialmente nos seus nveis hierrquicos mais elevados. Em segundo lugar, essa influncia , em grande parte, facilitada pelo quase completo arbtrio que muitos ministros detm sobre o pessoal de suas reparties; pela ilusria responsabilidade de que somente eles detm essa influncia, o que no faz seno coloc-los merc da Cmara dos Deputados; pela absoluta irresponsabilidade e pela falta de independncia dos funcionrios subalternos; pela ausncia de rgos que venham a controlar esses funcionrios e a amenizar a autocracia ministerial. Enfim, pode-se

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perfeitamente dizer que, nesse aspecto, toda a nossa organizao administrativa permaneceu no estgio primitivo e vicioso em que se encontrava sob os antigos governos absolutos (Mosca, 1925:246-7).

No que dizia respeito, por conseguinte, formao da burocracia, dos quadros da administrao do Estado, ao preenchimento dos cargos pblicos, o governo parlamentar ia, na opinio de Mosca, contra alguns de seus preceitos bsicos, assemelhando-se ao sistema absolutista. Imperava o arbtrio ministerial e a igualdade de oportunidades, assentada sobre o mrito e a competncia pessoais, era neutralizada ou reduzida pelo privilgio, o favor, a amizade, o parentesco. Mais do que isso, o prprio mecanismo fiador da igualdade e aferidor do mrito, o concurso, controlado pelos parlamentares, era apropriado por estes como recurso de patronagem, de reforo e recompensa de suas clientelas. O que se indicava, dessa forma, que mesmo no tocante aos cargos eletivos como o de deputado, as teses centrais do governo parlamentar no pareciam operar na prtica. As funes pblicas, inclusive as eletivas, passavam por um processo ao qual Mosca se referia como enfeudamento, tornando-se seus detentores seus senhores, adquirindo sobre eles um direito vitalcio, um privilgio, que podia ser passado a seus herdeiros. Isso se relacionava ao fato de que, longe de serem os eleitos representantes de uma maioria, como se propalava, os deputados, observava o autor, faziam-se eleger por uma minoria, sendo, na realidade, impostos em vez de escolhidos:

Qualquer um que tenha assistido a uma eleio sabe perfeitamente que no so os eleitores que elegem o deputado, mas normalmente o deputado que se faz eleger pelos eleitores [o grifo de Mosca]; se essa afirmao no do agrado, podemos substitu-la por outra que diz que so os seus amigos que o fazem eleger. De qualquer modo, certo que uma candidatura sempre obra de um grupo de pessoas reunidas por um objetivo comum, de uma minoria organizada, que, como sempre, fatal e necessariamente se impe s maiorias desorganizadas (Mosca, 1925:250-1).

Uma boa prova disso, para o autor, podia ser encontrada na em geral baixa percentagem de comparecimento eleitoral. O triunfo da maioria, no entanto, no estaria garantido mesmo que o com-

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parecimento fosse total. certo que, teoricamente, cada eleitor tinha a mais ampla liberdade de escolha. Na prtica, porm, havia rgidos limites, dirigindo-se os votos para aqueles dois ou trs candidatos que melhor conseguiam se impor, ou que tinham maiores chances de vitria, ou dos quais se esperava receber alguma espcie de favor. Era falsa, por conseguinte, a tese de que o sistema parlamentar garantia a representao das grandes massas (Mosca, 1925:251-2). Tudo isso era magnificado pelo fato de que, a nvel local, os pleitos eram diretamente dirigidos por trs elementos: os prefeitos, que exerciam uma forte presso sobre os votantes;128 os grandes eleitores, que eram aqueles que, por sua posio, tinham um squito considervel, um nmero respeitvel de dependentes; e as associaes polticas e operrias (Mosca, 1925:252-6). Em um tal enquadramento, em um contexto em que o reconhecimento dos representados pouco pesava para o acmulo de capital poltico, a ampliao das franquias certamente, na avaliao de Mosca, seria ineficaz, inexpressiva. O alargamento do sufrgio, ao contrrio do que se propalava, no se constituiria em um remdio para o governo parlamentar, mas to-somente em uma desculpa para a teoria democrtica. Continuariam determinando o resultado os mesmos elementos que o determinavam no sistema de voto restrito (Mosca, 1925:270-1).129 Mais uma vez, portanto, reforava-se para Mosca a idia de que o sistema parlamentar era essencialmente corruptor. Contradizendo suas prprias teses, vedando bens e posies sociais ao acesso por meio de mecanismos formais, impessoais, que valorizassem o mrito e a competncia individuais, o sistema parlamentar terminava obrigando a um rebaixamento moral aqueles que buscavam a satisfao de seus interesses.

Todos eles, do mais alto ao mais baixo, do ministro ao eleitor, encontram o seu interesse privado quando traem os interesses pblicos que lhes so confiados. Todos devem, para seguir adiante e conseguir sustentao, favorecer os aderentes e os amigos, mesmo que isso prejudique o bom andamento dos negcios, a conscincia e a justia. nesse sistema de governo que a independncia do carter, a austeridade, a imparcialidade qualidades preciosas que constituem a verdadeira fora moral dos indivduos, dos povos e dos organismos polticos so mais sacrificadas, mais ficam afastadas, pelo poder, das pessoas que as possuem e, por isso, mais tendem a permane-

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cer inoperantes ou a desaparecer. tambm nesse sistema que a velhacaria moral, a falta de qualquer sentimento de justia, a esperteza, a intriga, que so exatamente as qualidades que preferencialmente conduzem os povos e os Estados runa, encontram o seu melhor terreno, levam adiante os seus sequazes e, conseqentemente, mais tendem a colocar-se em evidncia e a desenvolver-se (Mosca, 1925:258-9).

Esse mesmo sistema era responsvel, para Mosca, por uma piora nas condies sociais na Itlia, em especial para os grupos inferiores. E o que se constitua em uma agravante era o fato de que as possibilidades de melhora, de ascenso, de mobilidade, a seu ver, encontravam-se bloqueadas (Mosca, 1925:294-6). Com isso, observava o autor, criava-se uma situao de isolamento das classes sociais, cujas conseqncias poderiam ser funestas. O pobre passava a ver o rico como seu inimigo, enquanto este tinha daquele idias igualmente falsas, romanceadas.

Em meio a tudo isso, brinca-se com o fogo, como no se soubesse que o fogo queima e consome. Admite-se a existncia de uma questo social, que ela deva ser alvo de atenes, que as classes pobres so vtimas da injustia social. Permite-se que essas idias se propaguem, acendem-se esperanas, fazem-se promessas sem se refletir, porm, sobre como cumpri-las, como se fosse possvel cumprir todas elas. Deixa-se que o movimento se organize, que as classes baixas se habituem e se eduquem idia da luta, e se preparem para sustent-la; que a mina, enfim, pouco a pouco seja carregada e que depois se durma tranqilo, certo de que ela nunca ir explodir. Prestem bem ateno, porm, porque quando estiver pronta, basta um fsforo! (Mosca, 1925:297-8).

Mosca conclua, diante disso, que no seria longa a vida do regime parlamentar, que ele no se afirmaria como uma forma de governo estvel e normal. Tratava-se, na verdade, de uma organizao baseada em concepes abstratas, metafsicas, refratria s leis naturais do desenvolvimento e do ordenamento de todas as sociedades e que por isso mesmo, na prtica, fracassava, mostrava-se dbil, inqua, trazendo em si, e favorecendo, os germes da dissoluo. Tratava-se certamente de um regime fadado ao desaparecimento, aps um perodo de agitao e perigos (Mosca, 1925:299).

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Apesar de mais volumosa, a segunda parte da Teorica a menos trabalhada pelos comentadores. Das razes para que isso se d, duas devem ser particularmente enfatizadas. A primeira que, mais interessados no que seriam as origens e a evoluo da doutrina ou da teoria da classe poltica, sobre a seo inicial que fazem incidir suas atenes. Alm disso, e aqui entramos j na segunda razo, no h como negar que a seo seguinte da Teorica discrepa bastante da percepo predominante, como vimos, de um Mosca liberal. Foi a segunda parte, basicamente, que rendeu ao livro a caracterizao, por alguns, de uma crtica impiedosa ao sistema parlamentar e ao liberalismo (Salomone, 1945:18). Tal desprezo dos comentadores pela segunda seo da Teorica ganha significado e visibilidade ainda maiores se levarmos em conta que decorrente, em larga medida, de um empenho, de um trabalho tardio do prprio Mosca, no sentido de impor de seus textos tanto uma leitura liberal quanto uma viso perfeitamente articulada, como se constitussem uma obra gradual de construo e aperfeioamento da teoria da classe dirigente. Assim, no prefcio segunda edio da Teorica, em 1925, o autor esclarecia ser de fato a primeira a parte mais importante do livro, uma vez que era ali que vinha exposta a sua doutrina. A segunda parte, por seu turno, expresso de sua forma anterior de pensar, de sua viso juvenil da poltica, com a qual no mais concordava, devia ser encarada tosomente como um documento do instante em que foi produzida, a primeira metade dos anos 1880 (Mosca, 1925:iii). Voltar-se- a essa questo adiante para falar dos motivos que, em 1925, levaram Mosca a tentar impor essa percepo da Teorica. Por ora, o que importante destacar que, sem levar a segunda parte do livro na devida conta, deixa-se de lado um elemento fundamental no apenas para a compreenso da primeira parte, da percepo de Mosca da classe poltica, bem como de seu reconhecimento, mas para a prpria relativizao das interpretaes correntes das origens da teoria das elites. Mais do que uma dura crtica ao sistema parlamentar, ao liberalismo e democracia, a Teorica pode ser lida como uma dura viso do mundo de um jovem siciliano, oriundo de uma frao subordinada das classes dominantes, que aspirava a ingressar na carreira universitria. Esse ponto, certo, tem sido acentuado por alguns comentadores. Quando o fazem, porm, tm muito mais o objetivo de justificar o expurgo da segunda parte do livro de sua anlise, ou de amenizar, relativizar, as crticas feitas pelo pensador. Dessa forma, para Livingston, por exemplo, o Mosca da Teori-

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ca foi sem dvida influenciado por preconceitos de nacionalidade, de regio e de partido, incorrendo assim em erros metafsicos (Livingston, s.d.:xxxiv). Como j acentuado, Mosca vinha de uma regio posicionada inferiormente em termos sociais e polticos. No apenas a Siclia era identificada como a rea mais atrasada da Itlia, eminentemente rural, com maiores ndices de pobreza e de analfabetismo, como, nos governos e no jogo de foras que se seguiram unificao, ela ocupava uma posio secundria, o que, alis, o prprio Mosca indica em diversas passagens de seu livro. Na verdade, o Norte deu, em larga medida, o tom da poltica italiana no perodo, mesmo quando alguns sicilianos ocuparam a frente da cena e ainda que, em boa parte, estivesse no Sul uma das principais bases de apoio dos governos posteriores unificao, uma base rigidamente controlada e obediente.130 De fato, mais importante do que a presena ou no de um siciliano testa do governo, era a percepo de que, por detrs de uma retrica liberal predominante, o que se conformava na Itlia, naquele momento, era um sistema fechado, com possibilidades de ascenso reduzidas pelo controle exercido pelos polticos sobre o acesso a cargos e posies, tanto os mais quanto os menos valorizados. O que prevalecia era o privilgio associado s relaes pessoais, ao nascimento e riqueza , ao invs da igualdade, o favorecimento associado ao parentesco, amizade e patronagem , em vez do mrito individual. interessante que Mosca, no promio Teorica, lembra que, em sua juventude, seus amigos eram todos liberais e at prximos esquerda. Ele mesmo se dizia simptico teoria ento considerada mais avanada, manifestando-se a favor do liberalismo, da democracia e da repblica. Apenas mais tarde, j quando cursava a faculdade de direito, que, em seus termos, veio a desenvolver uma nova atitude intelectual (Mosca, 1925:5-6). Ora, o incio dos estudos universitrios de Mosca, em meados da dcada de 1870, coincide com o fim do governo da chamada direita, representada pelos setores que haviam tomado a frente da unificao, e o incio de um longussimo perodo de mando da esquerda, entrecortado apenas por alguns curtos intervalos. Entretanto, preciso que no se tome o termo esquerda no seu sentido ideolgico e doutrinrio mais recente. De fato, uma esquerda mais ideolgica, representada pelo Partido Socialista, s viria a ganhar expresso significativa na Itlia por volta da dcada de 10.

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Ainda que incorporando elementos do iderio republicano e socialista, a esquerda que chegava ao poder em 1876 era, basicamente, um agrupamento heterogneo de oposies, de forte base no Sul, no qual despontavam alguns setores que ocuparam uma posio subordinada no arranjo poltico resultante da unificao, como antigos seguidores de Giuseppe Garibaldi e adeptos de Giuseppe Mazzini. Contudo, uma vez no poder, uma vez ocupando o plo dominante, seus lderes deixaram de lado tanto o republicanismo quanto seus traos socializantes, aceitando a monarquia e assumindo um discurso liberal. O primeiro lder da esquerda a governar, de 1876 a 1887, foi Agostino Depretis, seguido por Francesco Crispi, de 1887 a 1896, e, finalmente, por Giovanni Giolitti, que controlou a poltica italiana de 1901 a 1914. Trata-se, como se v, de uma estabilidade surpreendente, de quase quatro dcadas, que se escorou em um mecanismo de neutralizao e de cooptao das oposies, que se tornou conhecido como transformismo, cuja essncia fica bem caracterizada pela expresso cunhada pelo prprio Depretis: justia para todos; favores para os amigos (Hearder, 1992:204). A base do transformismo e da permanncia da esquerda, portanto, foi um sistema de troca de apoio poltico por favores, cargos e toda sorte de benesses governamentais, aliado ao emprego da violncia e de formas variadas de presso sobre os inimigos e os setores renitentes. A marca mais caracterstica do perodo chamado por alguns de ditadura parlamentar em vista dos grandes lapsos de tempo durante os quais Depretis, Crispi e Giolitti puderam controlar a poltica com o aval do Parlamento, conferindo aos deputados, em contrapartida, um enorme poder foi, dessa forma, a da corrupo, do favor, do nepotismo, do privilgio, da pessoalidade, da patronagem.131 Foi esta a percepo que se reteve do liberalismo e do sistema parlamentar italianos na virada do sculo XIX. Ela deu forma a uma vaga de ceticismo poltico, projetando uma vertente antiliberal e antidemocrtica do pensamento social do pas, na qual se incluam os nomes de Mosca e de Pareto.132 No caso de Mosca, muito longe de se tratar de manifestaes reacionrias, de uma defesa de uma ordem em decadncia, em desarticulao, de uma tentativa de fazer retroceder a roda da histria, promovendo um retorno nostlgico a um statu quo ante, a uma idade do ouro, como propugnam anlises correntes da teoria das elites, suas formulaes confluam justamente para um desvelamento de linhas de continuidade entre o liberalismo e o Antigo Re-

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gime, contra o qual propalava aquele ter se erigido. Mais do que a simples sobrevivncia de facto de mecanismos que antes existiam de jure, mais do que a apropriao e a atualizao de antigas prticas em um novo contexto, o governo parlamentar, na percepo do autor, havia inventado modalidades distintas de dominao, de patronagem e de autoperpetuao, havia ampliado sobremaneira os recursos ao seu dispor, pela prpria complexificao e diversificao da sociedade e do Estado, tomando por base, agora, o instituto do voto, legitimando-se atravs de uma retrica liberal, assumindo uma posio de fora com o argumento do aval da maioria. Deve-se reconhecer, contudo, que a crtica de Mosca no o conduzia a uma proposta de aperfeioamento do liberalismo e do parlamentarismo. A seu ver, qualquer tentativa nesse sentido seria intil, uma vez que tanto um quanto o outro eram marcados por taras genticas. Assim, as mazelas vividas pela Itlia eram no fruto do desvirtuamento dos princpios liberais ou da m conduo do parlamentarismo, mas suas conseqncias lgicas, necessrias, inevitveis. Se Mosca, em seus primeiros escritos, percebia o liberalismo e o parlamentarismo como sistemas natimortos e socialmente deletrios, no buscava propor alternativas. Bastava-lhe, na verdade, haver descoberto, como acreditava ter feito, a chave para a compreenso mais profunda, cientfica, verdadeira, positiva, no apenas daqueles sistemas, mas dos governos de maneira geral, rompendo a armadura das classificaes predominantes, erguendo o vu das crenas, das frmulas polticas. Mais do que isso, porm, impor sua viso como radicalmente original, cientfica, verdadeira significava afirmar a si mesmo, buscar ser reconhecido, aceito, como um inovador, um cientista, um pensador realista, iconoclasta. Foi essa a estratgia que orientou os investimentos do autor, contando para tanto com o suporte familiar, que lhe permitiu, alm do acmulo de capital escolar, financiar a publicao de seus trabalhos. Com textos publicados e com seus diplomas, Mosca buscou o ingresso na carreira universitria. A forma como o fez, todavia, terminou por impor-lhe um fracasso inicial. Nas cincias sociais, Mosca investiu em uma rea menos constituda, a poltica, procurando atribuir-lhe um estatuto cientfico de que, diferena da economia e da estatstica, ainda no gozava. Fazendo-o, no entanto, o autor tentava afirmar-se como novidade no campo do direito constitucional, que identificava com a cincia poltica. Sua reflexo de trao eminentemente histrico, mais analtica e sociologizante, distinguindo-se dos estudos correntes de direito

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constitucional, formalistas, estritamente legais, descritivos e classificatrios, no pde, contudo, ser plenamente reconhecida como jurdica, o que o levou a uma espcie de limbo intelectual.133 Contribuiu para isso tambm o fato de que era com teses de carter denunciativo, que mais soavam como crticas polticas e que exatamente como tais foram em geral recebidas , que ele buscava ser reconhecido, justamente, no plo universitrio politicamente legitimado, imbricado com o campo do poder. Como resultado, Mosca terminou sendo preterido em selees para a ctedra de direito constitucional nas universidades de Modena, Pvia, Catnia e Messina, todas elas vencidas por Vittorio Emanuele Orlando, seu amigo desde a infncia. Assim como Mosca, Orlando foi um crtico da poltica parlamentar italiana. Ao contrrio dele, contudo, suas formulaes foram acolhidas, no interior do prprio campo do direito, como argumentos cientficos que se articulavam na construo de um sistema jurdico racional. Orlando acabou por isso mesmo impondo-se como um inovador em termos de anlise jurdica do Estado, um pioneiro, fundador da escola italiana de direito pblico.134 Mosca, por seu turno, alm do fracasso universitrio inicial, tambm foi malsucedido em concursos de prmios cientficos da Reale Accademia dei Lincei uma das academias cientficas mais antigas e notrias de ento , bem como na tentativa de obter bolsas de aperfeioamento no exterior. Seu primeiro emprego terminou sendo o de professor de histria e geografia em uma escola tcnica de Palermo, o que aceitou a fim de no sobrecarregar sua famlia e poder continuar a publicar seus textos.135 Ainda que tivesse podido garantir-lhe uma alta formao escolar, sustentando seus estudos, a famlia de Mosca encontrava-se com sua posio social ameaada, enfrentando uma crise financeira desde o incio dos anos 1880. Com isso, o autor era obrigado a recorrer a emprstimos de amigos, o que fazia para saldar dvidas editoriais. A um desses amigos, Giuseppe Amato Pojero, Mosca explicava em meados de 1886:

Desde que retornei de Roma,136 tenho lutado continuamente contra dificuldades de carter econmico. A minha famlia, j no pouco abalada, sofreu h trs anos uma espcie de revs devido a um investimento imprudente de um irmo meu, mais jovem e militar, e por isso no tem podido me dar qualquer auxlio (apud Brancato, 1982:307).

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Foi apenas naquele mesmo ano de 1885 que Mosca conseguiu ser aceito como professor de direito constitucional na Universidade de Palermo. Isso se deu aps a apresentao, no ano anterior, de uma tese de livre-docncia, de contedo mais tradicional e de ttulo bastante alentado, Dei rapporti fra il parlamento ed il potere giudiziario in ispecie in relazione ai giudizi di constituzionalit delle leggi alla verifica delle elezione ed al sindacatto delle Camere sull'azione del potere giudiziario (Das relaes entre o Parlamento e o Poder Judicirio em especial no que diz respeito aos juzos de constitucionalidade das leis, mediante a verificao das eleies e ao controle, pelas Cmaras, da ao do Poder Judicirio).137 O cargo de professor, entretanto, no representou para Mosca o incio de uma carreira estvel, ou de uma profissionalizao universitria. No se tratava de um cargo regular e sua remunerao era baixa, o que determinou a continuidade de sua dependncia familiar (Livingston, s.d.:xiii). preciso acentuar que Mosca no representava um caso nico. A opo pela carreira universitria, ento, de maneira geral implicava um perodo de acumulao e de provao, sem necessariamente haver contrapartida de remunerao, o que podia significar uma extenso, por um prazo maior, da dependncia familiar. O corolrio disso que a carreira se afigurava como uma possibilidade, basicamente, para os indivduos oriundos de famlias com um razovel nvel de renda, ou que, como ocorria com poucos, desenvolvessem outras funes remuneradas, como por exemplo mdicos e advogados, que se voltavam para o magistrio superior como forma de ampliar e consolidar seu prestgio e sua notoriedade (Socrate, 1995:375-6). Na Alemanha, at a I Guerra Mundial, como observa Hughes (1958:45), era relativamente alta a extrao social dos professores universitrios, condio fundamental de sobrevivncia, em particular para aqueles que se encontravam na base da hierarquia acadmica. O prprio Weber era filho de um jurista e poltico que vinha de uma famlia de comerciantes e industriais txteis, em cuja casa permaneceu at os 29 anos de idade.138 O mesmo se dava na Frana onde, em 1860, como demonstra Christophe Charle, a origem social dos docentes superiores era de mdia a alta, e a idade de acesso a uma cadeira universitria girava em torno dos 40 anos.139 No caso de Durkheim, que no tinha uma extrao social elevada, o casamento foi importante para a sua estabilidade financeira, pesando de forma positiva em sua carreira (Charle, 1984, passim).

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Tambm para Mosca o casamento foi importante, mas no diretamente para a carreira universitria. Pelo contrrio, casando-se em 1888, aos 30 anos, com Maria Giuseppa Salemi, filha de Bernardo Salemi-Pace, mdico diretor do Hospital Psiquitrico de Palermo, Mosca, diante das dificuldades que vinha encontrando, foi buscar uma fonte de renda consistente fora da universidade. Assim que ele naquele mesmo ano mudou-se para Roma, onde assumiu o posto de revisor parlamentar da Cmara dos Deputados, para o qual foi aprovado em concurso. Seu reconhecimento, por conseguinte, viria a partir, principalmente, do campo poltico.140 As dificuldades de reconhecimento apesar do alto investimento escolar e do empenho em apresentar-se como novidade cientfica , o fracasso inicial da carreira universitria e a ameaa posio social so elementos importantes para a compreenso das teses e das vises expressas nos primeiros escritos de Mosca. Torna-se mais clara, quando se levam em conta esses elementos, a nfase do autor na urgncia da imposio do princpio do mrito e da competncia, aferido atravs de concursos limpos, isentos. Entende-se, a partir deles, sua clara insistncia na necessidade de uma valorizao do esforo individual em vez da riqueza, do nascimento, das relaes pessoais. Do mesmo modo, ganham maior sentido a forte componente moral de seu discurso e o carter normativo que para ele tinha a cincia social, vista como uma disciplina que deveria promover o aperfeioamento da sociedade.

CAPTULO 4

Capital social e carreira universitria

A ida de Mosca para a Cmara dos Deputados foi, em larga medida, uma decorrncia de seu fracasso universitrio inicial. Com o passar do tempo, entretanto, os cerca de 10 anos que ali permaneceu, de 1888 a 1898, terminaram se constituindo em um importante perodo de acmulo, tanto de conhecimentos sobre o funcionamento efetivo de seu principal objeto de reflexo, o Parlamento e a classe poltica, quanto de capital social, de relaes pessoais que lhe permitiram no apenas o ingresso efetivo na carreira universitria, como tambm lhe abriram o acesso a uma bem-sucedida trajetria poltica.141 O emprego na Cmara possibilitou a Mosca permanecer ligado ao ensino, agora na Universidade de Roma, onde passou a ministrar um curso livre de direito constitucional, mas apenas a partir de 1893.142 Sua produo intelectual, no entanto, escasseou no perodo em que esteve afastado da universidade, limitando-se, basicamente, a algumas poucas resenhas. Apenas em 1894 que surgiram dois artigos seus, um sobre livre-cambismo e transformaes agrrias na Siclia, e outro voltado para o direito constitucional, mesmo assunto que foi objeto de um livro que veio a ser publicado, em 1895, a partir de anotaes de aulas feitas por dois de seus alunos de Roma. Em 1896, ento, Mosca publicou a primeira verso dos Elementi di scienza politica, livro com o qual finalmente venceu o concurso para a ctedra de direito constitucional da Universidade de Turim, iniciando uma carreira universitria estvel.143 Os Elementi so expresso do acesso privilegiado de Mosca ao seu campo de investigao: a poltica, o Parlamento, enfim, a classe poltica. O autor continuou bastante crtico em relao ao sistema representativo e, mais especificamente, ao parlamentarismo, que considerava uma forma degenerada daquele (Mosca, 1923:264).

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diferena da Teorica, no entanto, que mais soava como um conjunto de invectivas, de denncias, os Elementi, alm de denotarem maior proximidade com a poltica, assumiam um tom mais analtico. Tambm neles encontrava-se o conceito de classe poltica, expressando uma minoria organizada, portadora de qualidades excepcionais e que, inexoravelmente, em todas as sociedades, em todos os tempos, impunha-se maioria desorganizada, ainda que de modos diferentes (Mosca, 1923:52-6). Igualmente aqui eram apontados como fundamentais, para a prpria manuteno e a estabilidade do poder, para que dele pudessem ser extrados todos os ganhos possveis, os princpios morais e legais elaborados pela classe poltica como justificativa de sua dominao, e que consubstanciavam o que Mosca chamava de frmula poltica. A frmula poltica, que variava de sociedade para sociedade, no era, dizia Mosca, uma pura inveno, ou uma forma de iludir a massa para conseguir o seu apoio. Tratava-se de uma necessidade, universalmente sentida, decorrente da prpria natureza social do homem, de governar e ser governado no apenas na base da fora material e intelectual, mas tambm sobre um princpio moral (Mosca, 1923:74-5). Sendo assim, a frmula poltica, ao mesmo tempo em que fornecia o princpio de legitimao do poder da minoria governante, podia representar um limite a esse mesmo poder, um ponto alm do qual no se poderia ir. Para conclu-lo, Mosca introduziu nos Elementi uma noo nova, a de defesa jurdica. O homem, naturalmente, na opinio do autor, buscava satisfazer todos os seus desejos, apetites e interesses. Ele s se continha diante da percepo do dano e do sofrimento que sua prpria satisfao poderia causar a outros. Essa percepo, e a conseqente conteno, configuravam aquilo a que o autor se referia como senso moral. Quando esse senso tinha na sua base laos afetivos, dizia-se que era orientado pela simpatia. Quando, entretanto, se tratava de um sentimento generalizado de respeito aos outros, mesmo estranhos ou inimigos, estar-se-ia diante do senso de justia (Mosca, 1923:108-9). Na verdade, podia-se dizer que o senso moral era produzido. Em todas as sociedades, mesmo as primitivas, se observava que a moralidade geral funcionava como um freio eficaz aos instintos imorais individuais. E essa moralidade social, essa conscincia da multido, que, de modo geral, se expressava na opinio pblica, na religio, na lei. Dessa maneira, o juiz era, de fato, um instrumento do senso moral coletivo, de todos, contra os maus instintos e

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as paixes de cada um. Por sua vez, o mecanismo social que regulava a disciplina, o temor do dano e da pena, o sentimento de responsabilidade perante os outros, era o que o autor chamava de defesa jurdica (Mosca, 1923:112-4). Alando a noo de defesa jurdica ao centro de sua reflexo, Mosca, nos Elementi, fazia concesses teoria democrtica que o afastavam do tom dominante da Teorica. Segundo ele, o desejvel era uma situao de crescente aperfeioamento da defesa jurdica, o que s se mostrava possvel em um contexto em que todas as foras sociais e polticas pudessem expressar-se de forma ampla e aberta. Por isso mesmo era inegvel, afirmava o autor, que o sistema representativo havia acarretado um expressivo progresso na defesa jurdica (Mosca, 1923:263-4). Esse mesmo sistema que havia propiciado a melhoria da defesa jurdica, entretanto, era responsvel pela sua limitao, em particular sob a forma degenerada do parlamentarismo. Nesse caso, o corpo poltico passava a concentrar todo o prestgio e o poder da autoridade legtima, estendendo sua influncia sobre a mquina administrativa e judiciria, sobre o Estado, enfim, agindo por si s, de forma irresponsvel, sem crtica externa, controlando o acesso aos cargos pblicos, vistos como trunfos eleitorais (Mosca, 1923:145, 264-5). A promiscuidade, portanto, entre a poltica e a administrao pblica, caracterstica do parlamentarismo, era altamente prejudicial defesa jurdica, uma vez que obstava qualquer possibilidade de controle recproco. E isso, sustentava ainda o autor, s tenderia a potencializar-se em uma situao em que prevalecesse o princpio do sufrgio universal, dado o seu poder, aparentemente contraditrio, de homogeneizar a classe poltica, calando as vozes discordantes. Era preciso ver, em primeiro lugar, que, ao contrrio do que proclamava a teoria democrtica, o sufrgio universal no impedia que uma minoria controlasse o poder, no garantia a ampla representao de todas as foras sociais. Retomando um dos argumentos da Teorica, Mosca observava que, em qualquer situao, um deputado nunca era escolhido pelos seus eleitores, mas sim, inversamente, fazia-se escolher por eles, uma vez que dispunha de meios morais, intelectuais e materiais para impor-se aos outros (Mosca, 1923:140-2). Se caa por terra, diante disso, a idia de que o voto expressava a vontade popular soberana, era foroso reconhecer, por outro lado, que alguns sentimentos e interesses da massa terminavam por ter eco entre os deputados. Isso se dava porque, na disputa pelo voto, os concorrentes, na concepo do autor, eram obrigados a adular a massa, buscando atrair a sua simpatia (Mosca, 1923:144).

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As conseqncias disso, contudo, s podiam ser deletrias. Uma delas, sem dvida, era a de que os candidatos a deputado acabavam por abraar propostas irrealizveis e mesmo demaggicas, semeando o terreno para a anarquia e o socialismo (Mosca, 1923:314). De fato, o socialismo, na opinio do autor, era um desenvolvimento lgico da doutrina democrtica, uma doena intelectual do sculo XIX, sem p na realidade, visto que a igualdade absoluta era impraticvel (Mosca, 1923:328-9).144 Outra conseqncia do princpio democrtico do sufrgio universal era a unanimidade em torno dele que se impunha entre os polticos, pela prpria necessidade de atrair os votos da massa, inibindo vises discordantes. A poltica, dessa forma, passava a ser orientada por um princpio nico, inquestionvel, o que comprometia a defesa jurdica, conformando uma situao de despotismo, s que escorado na idia de soberania popular. Na verdade, afirmava Mosca ampliando essa observao, a preponderncia absoluta de apenas uma fora poltica, o predomnio de um conceito simplista na organizao do Estado, a aplicao severamente lgica de um nico princpio inspirador de todo o direito pblico, todos eram elementos necessrios ao despotismo, quer se apoiasse no direito divino, quer na soberania popular. Isso porque, dizia Mosca,

quando aqueles que esto frente da classe governante so os intrpretes exclusivos da vontade de Deus ou do povo, e exercitam a soberania em nome desses entes, em sociedades profundamente imbudas de crenas religiosas ou de fanatismo democrtico, e quando outras foras sociais organizadas no existem, alm daquelas que representam o princpio no qual se baseia a soberania da nao, nenhuma resistncia, nenhum controle eficaz so capazes de amenizar a tendncia natural que aqueles que se encontram no pice da hierarquia social tm de abusar dos seus poderes (Mosca, 1923:122-3).

Na viso do autor, portanto, a expanso e a redefinio da cidadania poltica, com a afirmao dos ideais democrticos, haviam imposto um novo princpio de legitimidade, baseado no voto, expresso numericamente objetivada da vontade da maioria, dos desgnios populares. A afirmao da legitimidade do voto, por sua vez, havia ensejado uma luta concorrencial pelo eleitorado que, teoricamente, estaria disponvel, aberto a todos os que desejavam se apresentar como

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representantes. Mas isso gerava alguns efeitos distintos que, articulados de forma perversa, conduziriam ao prprio fim da democracia em vez do seu reforo e ao rebaixamento da defesa jurdica. Havia que se observar, em primeiro lugar, que a luta pelo eleitorado era, ao mesmo tempo, uma luta entre representantes, ou aspirantes a representante, pelo eleitorado. Tratava-se de uma luta em que saam vencedores aqueles que fossem mais eficazes na auto-identificao com os interesses, ou os supostos interesses, do eleitorado que, no limite, com o processo de expanso da insero poltica, tendia a confundir-se com o povo, a massa como um todo. Na medida em que isso se dava, cada postulante a cargos eletivos, a fim de sair vitorioso, ou cada um dos que j os ocupavam, com o sentido de ser reconduzido, terminava sendo empurrado para uma mesma posio de esquerda, incorporando propostas, fazendo promessas de cunho demaggico, irrealizveis, rebaixando o nvel da poltica, cedendo terreno instabilidade. Dessa forma a luta concorrencial em um contexto de legitimidade democrtica tinha como um de seus efeitos bsicos, na acepo de Mosca, no a diversidade, a diferena, mas um certo consenso, uma unanimidade, uma indiferenciao entre as foras polticas, submergindo, sufocando a possibilidade de uma oposio aberta. O leque poltico, portanto, fechava-se no sentido de um nico plo, fazendo prevalecer um princpio de legitimidade apenas, eliminando a prpria concorrncia e assim dando base para a cristalizao, a perpetuao, de uma dada configurao poltica, respaldada no argumento da soberania popular. Se for lembrado, todavia, que o representante nunca o eleito de uma maioria, mas sim algum que a ela se impe, dizendo falar em seu nome, pode-se concluir, como fazia o autor, que a concorrncia democrtica podia terminar por conduzir sua prpria supresso, neutralizando e cooptando a oposio, permitindo o encastelamento de uma minoria com uma brutal soma de poder, pois que legitimada pelo suposto aval da maioria. Em nome, por conseguinte, da maioria, da soberania popular, era uma minoria que se impunha de forma soberana, desptica mesmo, podendo inclusive voltar-se contra a prpria maioria. Era este o eixo sobre o qual se estruturava a crtica de Mosca ao socialismo, ou democracia social, em seus termos, que se lhe afigurava como um despotismo muito pior do que tantos outros, concentrando de forma magnificada todos os traos negativos at aqui arrolados. Ele no somente no realizaria a to propalada igualdade social, impossvel que era, conforme j se acentuou, como alaria

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direo uma classe, a dos administradores, que em nome da vontade da maioria reinaria soberana, absoluta, livre de crticas, com condies de autonomizao sem precedente, concentrando poderes inimaginveis, controlando tanto a poltica quanto a economia, a produo e a circulao de bens e servios, distribuindo cargos, benesses, favores e, igualmente, impondo privaes, sofrimentos (Mosca, 1923: 288-90). Assim se estaria diante, para utilizar o termo do prprio pensador, de uma situao em que a defesa jurdica tenderia a um nvel prximo de zero. Por tudo isso, na concepo de Mosca, o socialismo era um sistema altamente corruptor e nocivo, fadado, da mesma forma que o parlamentarismo, degradao. Em suas palavras:

No se deve, portanto, ter iluses quanto s conseqncias prticas de um regime em que a direo da produo econmica, a sua distribuio e o poder pblico forem indissoluvelmente ligados e atribudos s mesmas pessoas. Verificamos que, na medida em que o Estado absorve e distribui uma parcela maior da riqueza pblica, os chefes da classe poltica tm mais meios de influncia e de arbtrio sobre os seus subordinados e mais agilmente se subtraem ao controle de quem quer que seja. No h quem no saiba que, na verdade, uma das principais causas da decadncia do parlamentarismo foi a grande quantidade de empregos, de tarefas, de trabalhos pblicos e de outros favores de natureza econmica que os governantes podem distribuir a indivduos ou a coletividades de pessoas. Os inconvenientes desse regime so maiores onde a quantidade de riqueza que o governo e os corpos eletivos locais absorvem e distribuem relativamente maior, e onde, por conseguinte, mais difcil alcanar uma posio independente e um ganho honesto sem ter que se haver com as administraes pblicas. Ademais, se todos os instrumentos da produo estivessem nas mos do governo, ele seria o rbitro da sorte e do bem viver de todos, e jamais vicejaria oligarquia mais poderosa ou Camorra mais universal em uma sociedade de cultura avanada. Quando todas as vantagens morais e materiais dependerem daqueles que encerram o poder nas mos, no haveria vileza suficiente para content-los, da mesma forma que no h violncia ou fraude qual no se recorreria para chegar ao poder, seja por pertencer ao grupo daqueles que distribuem o bolo, seja por permanecer entre os muitos que devem se contentar com a fatia que lhes dada (Mosca, 1923:131-2).

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Das crticas contidas nos Elementi, as mais recorrentemente ressaltadas pelos comentadores de Mosca so aquelas dirigidas ao socialismo. Contudo, o autor tambm manifestava um acentuado anticlericalismo. Havia para ele, na Europa de seus dias, apenas duas foras que ameaavam o equilbrio jurdico. Uma delas, mais perigosa, era obviamente o socialismo. A outra, mais organizada, era a Igreja Catlica (Mosca, 1923:134). A ameaa representada pela Igreja se colocava na medida mesmo em que ela se imiscua nos assuntos polticos. Configuravase assim, de igual modo que na prevalncia do princpio democrtico, a possibilidade de instituio de um regime desptico, pondo em risco a defesa jurdica. Aqui, entretanto, em vez de se basear a soberania no direito da maioria, ela o seria no direito divino. Para Mosca, por conseguinte, a nica forma de se avanar no sentido da melhoria da defesa jurdica era promover a separao definitiva dos poderes temporal e religioso. Era preciso que o princpio em nome do qual se exercia a autoridade secular nada tivesse de sagrado, ou de intocvel, imutvel, eterno (Mosca, 1923:127).145 A preocupao de Mosca com o nvel de defesa jurdica, com o rebaixamento do senso moral, articulava-se a uma outra com a questo da estabilidade poltica. De fato, as situaes de baixo nvel de defesa jurdica pareciam ser propcias cristalizao da classe poltica, permitindo que a hereditariedade operasse como mecanismo fundamental de renovao. Para compreender essa observao, preciso retroceder a um dos primeiros pontos debatidos por Mosca nos Elementi: o darwinismo social. O princpio da seleo natural, da luta pela sobrevivncia, observado por Darwin no tocante evoluo das espcies, no podia, na opinio do pensador italiano, ser transposto para as sociedades humanas. Nestas, o que operaria como um fato constante, universal, era uma luta pela preeminncia, assim entendidas as aes dos homens para galgarem posies mais elevadas, prestgio, riqueza, poder, os meios, enfim, que dariam a possibilidade de mandar, dirigir (Mosca, 1923:29-31). Toda classe poltica tendia a estabilizar-se, o que significava dizer que procuraria manter as posies alcanadas e, ao mesmo tempo, garantir sua sucesso por seus descendentes. Se no de direito, ao menos de fato, portanto, toda classe poltica tendia a tornar-se hereditria como, alis, j havia sido observado na Teorica. Nesse processo, algumas famlias passariam a concentrar as qualidades necessrias ao ingresso na classe poltica, mesmo quando

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testadas atravs de concursos pblicos, como no caso do grau acadmico e da cultura cientfica, nos termos do autor. O que procurava Mosca demonstrar, em outros termos, era como socialmente, ao se afirmar como dominante, uma classe terminava por impor ao mesmo tempo seu prprio perfil, sua prpria estrutura de capitais, como padro de excelncia, de reconhecimento, requisito bsico para qualquer aspirante a dirigente. Desse modo, eram seus prprios descendentes que, objetivamente, eram reconhecidos como excelentes, como eleitos. Contudo, o que para eles era natural, como decorrncia de sua prpria socializao, de seus vnculos, de suas relaes, para outros, oriundos de outras posies, era visto como construdo, fruto de um grande trabalho, de um esforo pessoal. Nas palavras de Mosca:

Tambm quando os graus acadmicos, a cultura cientfica, as atitudes especiais provadas por meio de exames e de concursos franqueiam o ingresso aos cargos pblicos, no se destri a vantagem especial a favor de alguns, aquilo que os franceses definem como a vantagem das posies j adquiridas. Na realidade, mesmo que os exames e concursos sejam abertos teoricamente a todos, faltam sempre maioria dos candidatos os recursos necessrios para arcar com as despesas de uma longa preparao, enquanto muitos outros carecem das amizades e dos parentes, mediante os quais um indivduo colocado subitamente no bom caminho [o grifo de Mosca], evitando-se assim as hesitaes e os erros, inevitveis quando se entra em um ambiente desconhecido, no qual no se tm guias nem apoios (Mosca, 1923:64).

Na verdade, nem mesmo o princpio democrtico da eleio com sufrgio universal podia, na prtica, romper com isso de forma definitiva. Afinal, os que j dispunham de fora poltica, como os herdeiros, acabavam sempre sendo eleitos. Era bastante comum, por isso mesmo, que se encontrassem nos parlamentos ingls, francs e italiano, por exemplo, filhos, irmos, sobrinhos e genros de deputados e de ex-deputados (Mosca, 1923:64-5). Se era natural a tendncia hereditariedade da classe poltica, ela tambm podia ser altamente danosa, tendo em vista o exclusivismo que produzia e, conseqentemente, o isolamento psicolgico e intelectual da plebe. Os desdobramentos disso podiam ser de duas ordens, porm ambas conducentes a um mesmo fim.

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Uma primeira ordem de desdobramentos referia-se ao fato de que, fechadas ao ingresso de elementos das classes inferiores que, pelas prprias necessidades de vida, mantinham acesa a chama da luta e da rudeza caractersticas da natureza humana, as classes superiores terminavam por perder energia, tornavam-se pobres de carter e ricas de indivduos passivos. Dessa forma, passavam elas, segundo Mosca antecipando-se a Pareto , a cultivar a frivolidade e a abstrao, perdiam o senso de realidade e a virilidade, entregavam-se a teorias exageradamente sentimentais e humanitrias sobre a bondade inata da espcie humana. Crentes no carter natural e eterno de sua posio que deixavam de perceber como conquistada, resultado de um processo de imposio , as classes superiores tornavam-se cegas s ameaas que sobre elas pairavam, terminando por dar preferncia a mtodos brandos e persuasivos de governo, deixando de lado os mais rgidos e impositivos (Mosca, 1923:105-7). Tudo isso se mostrava extremamente perigoso quando, e aqui entramos j na segunda ordem de desdobramentos, em funo mesmo do isolamento, da impossibilidade de acesso s posies superiores, as classes inferiores deixavam de estar comprometidas com a manuteno da ordem, e a sociedade, como ocorria nas situaes de baixo nvel de defesa jurdica, perdia coeso moral. Este seria um terreno frtil para uma revoluo, como procurava Mosca deixar claro:

Em primeiro lugar, aps esse isolamento, forma-se, quase necessariamente, em meio plebe uma outra classe dirigente, muitas vezes antagnica quela que tem nas mos o governo legal. Quando essa classe dirigente plebia bem organizada, isso pode causar srios embaraos a quem oficialmente governa uma determinada sociedade (...). Em toda a parte onde uma frao da classe poltica ou porque convertida a uma nova frmula poltica, ou por outras razes aspira a derrubar o governo legal, ela costuma sempre se apoiar nas classes inferiores, que facilmente a seguem quando so inimigas ou indiferentes em relao ordem de coisas constituda. por causa dessa aliana, to freqentemente firmada, que ns vemos a plebe como um instrumento necessrio a quase todas as sublevaes e revolues e tambm por isso que to freqente a presena de homens de uma condio social superior frente dos movimentos populares (Mosca, 1923:104-5).

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Uma das diferenas bsicas entre a Teorica e a primeira edio dos Elementi que, nesta, Mosca procurava dar a suas formulaes uma feio mais generalizante, no as limitando ao caso italiano. O autor buscava sempre incluir em suas demonstraes, alm de constantes citaes histria de povos antigos, exemplos ingleses, franceses e mesmo norte-americanos, ressaltando assim o carter recorrente dos fenmenos observados, expondo-os como expresses de leis sociais. Em que pese ao empenho do autor, contudo, difcil deixar de estabelecer correlaes entre suas formulaes e a conjuntura poltica, a experincia parlamentar italiana com a qual, a partir de sua ida para a Cmara em 1888, ele passou a conviver cada vez mais de perto.146 Sua viso do liberalismo, da democracia, como conduzindo a uma indiferenciao poltica, tem um claro referente no transformismo. Foi este que, atravs de um eficiente mecanismo de presso, associado distribuio de cargos, favores, benesses, recursos, produziu no Parlamento italiano uma singular e inusitada situao de forte unanimidade poltica em torno do governo e do liberalismo, reduzindo a oposio a uma situao de insignificncia quase absoluta.147 Se no topo o que se observava era a unanimidade e a cristalizao da classe poltica, o alerta de Mosca quanto ao potencial explosivo, revolucionrio, da situao refletia a percepo de que, na base da sociedade italiana, se dava uma certa disseminao do socialismo ainda que no se constitusse, ento, em uma fora significativa e do anarquismo, em associao com um processo de perturbao social. De fato, a dcada de 1890 foi marcada por mobilizaes camponesas na Siclia e por distrbios operrios nas cidades, particularmente ao Norte, em Milo, desembocando, em maio de 1898, em uma interveno militar que levou o general Luigi Pelloux ao cargo de primeiro-ministro no qual permaneceu at 1900 e perseguio e priso, em meio a um estado de stio, daqueles considerados opositores, socialistas principalmente, em uma sucesso de eventos que se tornou conhecida como Fatti di Maggio.148 Como se pode perceber, por conseguinte, as formulaes de Mosca estavam diretamente referidas ao quadro poltico italiano da virada do sculo. Contudo, elas tambm estavam voltadas para o campo universitrio, no qual o autor, no apenas com os Elementi, mas com a retomada e a intensificao, a partir de 1894, de sua atividade literria, procurava ingressar de forma estvel. Assim, se ele se dirigia aos polticos, no era, ao menos nesse momento, de

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modo predominante, porque almejasse tornar-se membro da classe poltica, mas sim em funo de sua concepo normativa da cincia poltica. Inscreviam-se os Elementi, em termos bsicos, em uma estratgia de consolidao da carreira universitria de Mosca, tendo em vista a conquista de um cargo efetivo. Constituam-se eles, tomando a srio as formulaes do prprio autor, em uma de suas armas na luta pela preeminncia universitria. Isso permite compreender o esforo de Mosca em descentrar, em generalizar seu discurso, conferindo-lhe um tom mais analtico, construindo suas proposies sob a forma de leis cientficas, enquadradas nos parmetros de cientificidade vigentes, e no como tomadas de posio polticas. Ele dedicava todo o primeiro captulo do livro, intitulado Il metodo nella scienza politica, ao debate com algumas das teorias correntes, como o darwinismo social e o evolucionismo. O autor tambm retomava, aqui, a crtica j iniciada na Teorica s classificaes tradicionais das formas de governo, de Aristteles a Montesquieu. O que procurava mostrar, em uma elaborao muito prxima da que Pareto faria mais tarde, que vrias das idias ento prevalecentes no estudo da poltica eram, na verdade, justificativas mais ou menos filosficas, teolgicas ou racionais de certos tipos de organizaes polticas (Mosca, 1923:7, passim). Pseudo ou, na melhor das hipteses, protocientficas, portanto, elas tomavam as organizaes polticas por suas frmulas polticas, restringindo-se a estas. Desse modo, no se poderia dizer que, at aquele momento, tivesse o estudo da poltica alcanado um estgio verdadeiramente cientfico (Mosca, 1923:6-7). Mosca buscava por essa via impor como relevantes suas prprias idias que, mais do que novas, singulares, objetivas ou poderosas, seriam pioneiras, no sentido de que com elas, finalmente, seria transposto o limiar da cientificidade. Ainda aqui, contudo, no se trata, para ele, de afirmar-se como o inventor ou o instituidor de uma cincia autnoma, independente do direito. Tratava-se, isso sim, de atribuir um estatuto de cientificidade a uma das reas deste j existentes. No havia, dessa forma, incompatibilidade entre ser um jurista e especializar-se no estudo da poltica. Pelo contrrio, ao se apresentar como cientista poltico, era como jurista mesmo que o autor procurava se afirmar (Mosca, 1923:3). Mosca se apropriava do nome cincia poltica de uma forma tradicional, expressando, ao mesmo tempo, uma postura conservadora. Segundo ele, cincia poltica era o termo que sempre havia sido utilizado, e que ainda o era, para classificar os estudos sobre a poltica. Alm do mais, o novo termo que comeava a se impor, sociologia,

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no tinha ainda uma definio e uma abrangncia muito claras e precisas, compreendendo todas as cincias sociais (Mosca, 1923:4). Persistia Mosca, por conseguinte, em sua tentativa de ser reconhecido como um inovador, mas com uma estratgia eminentemente conservadora, sem romper com o direito e, assim tambm, com o poder temporal, mantendo da cincia uma viso normativa. Se, entretanto, ele pde agora ser bem-sucedido, isso deveu-se a uma mudana fundamental, tanto na essncia dessa mesma estratgia, quanto em seu modus operandi, em consonncia com os deslocamentos do autor no espao social. Na Teorica Mosca buscava abrir seu caminho a partir de uma postura denunciatria, iconoclasta, como se procurasse ganhar legitimidade, para usar seus prprios termos, no entre os iniciados na cincia, mas entre os profanos. Isso, como se viu, terminou criandolhe obstculos, impondo-lhe fracassos iniciais. J nos Elementi, o autor procuraria abrandar o tom de seu discurso, despi-lo de um carter excessivamente crtico, centrado nas taras especficas do sistema parlamentar italiano, assumindo uma postura mais objetiva, demonstrando a relevncia cientfica de seu trabalho, dirigindo-se, enfim, de forma inequvoca, aos especialistas. Enquanto a Teorica era marcada por um tom reformista, os Elementi traam uma postura ctica. Afinal, a exposio de suas idias sob a forma de leis implicava conferir-lhes um carter de inexorabilidade. Assim que, criticando a tese evolucionista de que na luta pela sobrevivncia venciam os indivduos de senso moral superior, Mosca afirmava que na luta pela preeminncia eram justamente estes que contavam com as maiores desvantagens, sendo alvos de poderosas armas que, mesmo conhecendo e estando ao seu alcance, tinham escrpulos em utilizar (Mosca, 1923:110). Este ltimo ponto fundamental pois indica, mais do que uma clara percepo das regras do jogo social, a sua incorporao, expondo os novos elementos da estratgia de Mosca. Ele se articula ao fato, para o qual h alguns indcios, de que o ingresso do autor na Universidade de Turim deveu-se igualmente a fatores extraacadmicos. preciso ver que, se os Elementi lhe abriram o caminho, apenas eles, ao que parece, no foram suficientes. Apesar dos esforos de Mosca, o livro era marcado pelos mesmos elementos de ambigidade dos trabalhos anteriores, fazendo com que nem se ativesse aos cnones juridicistas, nem com eles rompesse. Tambm por isso, ao mesmo tempo, persistindo em uma viso normativa da cincia, os Elementi, de igual modo que a Teorica, no obstante o em-

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penho em contrrio do autor, foram percebidos, principalmente, como uma tomada de posio poltica. Isso sem dvida dificultava, mais do que facilitava, seu trnsito em um campo largamente permeado pela poltica, e por aquela poltica mesmo que criticava, como era a universidade italiana de ento, e em especial a rea do direito. A publicao dos Elementi por isso repercutiu de modo fraco, como admite o prprio autor.149 Mais ainda, Mosca com eles se candidatou em 1895 a um prmio da Reale Accademia dei Lincei s melhores obras cientficas, inscrevendo o livro na categoria de cincias sociais e econmicas. O resultado, contudo, no lhe foi favorvel (Mongardini, 1980a:106, nota 12). Portanto, assim como quando foi publicada a Teorica, Mosca, com os Elementi, enfrentava dificuldades para ser reconhecido, percebido como novidade cientfica e jurdica. O relatrio da banca examinadora que o aprovou para a cadeira de direito constitucional na Universidade de Turim expressava essa dificuldade, indicando, ao mesmo tempo, a distncia que havia entre a linha de reflexo do autor e o curso dominante dos estudos jurdicos na Itlia. Ali se lia: o elemento histrico e poltico predominante nos escritos de Mosca; entretanto, ainda que menos desenvolvido, o elemento jurdico tambm no de todo descurado (apud Sola, 1994:96). Para compreender como Mosca pde estabilizar sua carreira universitria, nela se profissionalizando, preciso, por conseguinte, no limitar a ateno aos seus escritos. Para alm destes, da forma como foram percebidos, do seu reconhecimento intelectual, cientfico e jurdico, pesou de forma significativa a sua identificao pessoal, seu capital social, os feixes de relaes nos quais se inscrevia e que foram ampliados com a sua passagem pela Cmara dos Deputados. Cabe destacar, inicialmente, que a banca examinadora de Mosca em Turim era presidida justamente por seu amigo Vittorio Emanuele Orlando. Ressalte-se, ainda, que o primeiro-ministro italiano em 1896, ano da publicao dos Elementi pela prpria tipografia da Cmara dos Deputados e do concurso para Turim, era Antonio Starabba, marqus Di Rudin, antigo parlamentar originrio tambm de Palermo, eleito pelo colgio siciliano de Caccamo, regio de onde provinham os sogros de Mosca. Mosca foi secretrio particular de Di Rudin e com ele desenvolveu, nos dizeres de Albertoni, uma relao pessoal e poltica particularmente assdua e devotada. De fato, o marqus terminou se afirmando como seu protetor, empregando sua influncia para promov-lo em sua carreira, prestando ajuda a seus

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parentes e amigos. Mosca tornou-se, alm disso, herdeiro poltico de Di Rudin, elegendo-se deputado pelo mesmo colgio eleitoral, j em 1909, aps a morte do marqus.150 Diante disso, a substituio de uma postura reformista por uma ctica, da Teorica para os Elementi, pode ser tomada como resultado de uma percepo do autor de que, na luta pela sua preeminncia universitria, no bastavam o que julgava ser a verdade e o poder de suas idias, no eram suficientes seu mrito e esforo pessoais. Ele tinha que lanar mo, se quisesse ser bem-sucedido, do capital social acumulado em seus recentes deslocamentos no espao.151 Mosca buscava se afirmar e ser reconhecido como um pensador inovador. Sem dispor dos meios, dos recursos de ruptura, no entanto, trilhou um percurso social tradicional, optando por uma estratgia conservadora, o que o obrigou a operar com as regras de um jogo que, embora criticasse, parecia ser a sua condio de sucesso. Se, todavia, essa foi a chave que lhe abriu a porta da universidade e mesmo, posteriormente, da poltica, foi tambm ela, em grande parte, que fez com que se esfumasse o seu carter de novidade, impedindo que como tal fosse identificado. J ao final de sua trajetria, em um quadro de isolamento poltico, seus percalos foram crescentemente sentidos como um fracasso, o que era magnificado pela percepo de que Pareto, ele sim, que terminou sendo associado s origens cientficas da tese elitista.

CAPTULO 5

Prestgio intelectual e capital poltico

Os anos de Mosca em Turim corresponderam a um perodo de ascenso, de acmulo de prestgio e de notoriedade intelectual e, principalmente, poltica, o que lhe rendeu vnculos significativos mesmo nos meios empresariais. Ao longo de sua trajetria, Mosca procurou alargar suas reas de penetrao de modo crescente, acumulando capital de relaes sociais, em campos diversificados, alm de investir na publicizao de sua imagem. Foi igualmente no perodo de Turim que ele se imps como figura pblica, passando a ser reconhecido como autoridade, como eminncia, e, de igual modo, como um homem de posies firmemente conservadoras, como um crtico do governo parlamentar, saindo assim da obscuridade. Turim, como observa Stuart Hughes (1958:62), era, ento, um dos principais centros culturais da Itlia, acima de Roma e ao lado, ainda que mais recente, de Milo, Npoles e, sobretudo, Florena. Esse quadro, que Hughes qualifica como de disperso, por oposio a modelos mais centralizados e hierarquizados, como o da Frana, era decorrente do fato mesmo de que at antes da unificao a Itlia era dividida em vrios pequenos Estados, cada um com vida cultural e sistema educacional prprios, autnomos. A unificao imps uma centralizao, superpondo-se s diversas estruturas independentes, subordinando-as ao Ministrio da Instruo Pblica, o que acarretou alteraes significativas no quadro preexistente. De todo modo, se novos plos puderam ser estimulados, outros com grandes universidades de longa tradio, como as de Pisa, Bolonha, Pvia, Pdua e Npoles, mantiveram o seu prestgio.152 Na Universidade de Turim, Mosca passou a conviver com algumas figuras ento de grande notoriedade, como Cesare Lombro-

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so,153 o eclesiologista Francesco Ruffini, os juristas Giuseppe Carle e Gioele Solari, e o economista Luigi Einaudi, com quem desenvolveu uma forte, duradoura e estratgica amizade.154 Foi em Turim, igualmente, que Mosca veio a conhecer Robert Michels, que para l se transferiu em 1907.155 A produo intelectual de Mosca foi particularmente intensa aps sua ida para Turim, ainda que viesse a decrescer entre 1912 e 1919. Sua nfase maior no perodo inicial foi justamente na rea do direito. Dos vrios livros e artigos listados nas bibliografias de Mosca, os mais numerosos e significativos versavam sobre direito constitucional, em uma demonstrao da persistncia da estratgia universitria bsica do autor. Os restantes orbitavam por temas como a economia poltica, a mfia, a poltica externa italiana e alguns dos pontos que freqentavam suas reflexes sobre cincia poltica, como a relao dos liberais italianos com a poltica eclesistica e os princpios bsicos que regeram o acesso classe poltica.156 Alm desses trabalhos, Mosca publicou uma srie de artigos no jornal milans Corriere della Sera, para o qual colaborou com relativa intensidade entre 1901 e 1925. Outro peridico no qual escreveu foi o La Tribuna, de Roma, de 1911 a 1921.157 A presena de Mosca nos jornais contribuiu para difundir suas idias, ampliar sua notoriedade e projet-lo como figura pblica. E a feio pblica que ele assumiu foi a de um pensador conservador, crtico ferrenho do governo parlamentar e da ampliao das franquias polticas.158 No incio da dcada de 1900, o autor estendeu ainda mais sua rede de relaes, baseado no seu prestgio crescente, estabelecendo vnculos com as elites empresariais do Norte da Itlia. De fato, sua colaborao com o Corriere della Sera j se inscrevia nessa estratgia, visto que o jornal dirigido por Luigi Albertini tinha fortes ligaes com setores industriais e financeiros de Milo (Salomone, 1945:29). Mais ainda, nessa mesma cidade Mosca passou, a partir de 1902, a ministrar a cadeira de direito constitucional e administrativo na universidade comercial Luigi Bocconi. A Universidade Bocconi no estava subordinada esfera do Estado, vinculando-se s empresas lombardas. Quando Mosca para l foi convidado, iniciava-se um programa de formao especfica para chefes de empresas industriais e comerciais. Na verdade, tratava-se, para aquele setor dominante da elite empresarial italiana, em grande parte, de construir uma unidade de pensamento e de mtodo administrativo, conformando e institucionalizando uma competncia especfica necessria ao seu exerccio profissional. O que se buscava,

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nas palavras de Mosca, era criar uma classe comercial e industrial preparada em moldes profissionais e cientficos, algo que no vinha sendo feito a contento pelas escolas tradicionalmente cursadas por aquelas elites, com nfase nas de direito, cuja formao era abstrata em excesso.159 Essa nova atividade, que exerceu at 1923, com uma interrupo entre 1914 e 1916, teve um peso fundamental para Mosca. Em primeiro lugar, como j foi apontado, lhe permitiu aumentar sua notoriedade, alm de expandir sua prpria rede de relaes, assim como seu capital social. Em segundo, foi ela uma primeira investida no sentido de uma autonomizao em relao ao direito, ainda que isso no implicasse, necessariamente, a constituio de uma cincia autnoma, independente. Pelo contrrio, tratava-se de buscar no uma legitimidade puramente acadmica, universitria, mas sim social, econmica e at mesmo poltica, uma vez que, para o autor, a iniciativa da Universidade Bocconi poderia se constituir em um ncleo de formao especfica tambm para a classe poltica, aqui includos os ocupantes das altas funes pblicas (Delle Piane, 1949:29-30). Mosca no investia, portanto, em uma completa autonomizao da cincia, ou mesmo da universidade, em relao ao campo do poder poltico e, como se v, tambm ao econmico, o que o levava a assumir posturas aparentemente ambguas. Assim, enquanto foi membro do Conselho Superior de Instruo Pblica, de 1906 a 1910, ele se ops a que o mesmo fosse ampliado de modo a incluir uma representao parlamentar. Seu argumento era o de que isso poderia significar um golpe de morte na necessria autarquia cientfica, administrativa e disciplinar, na liberdade de ctedra.160 O mesmo Mosca, porm, insistia no carter normativo da cincia poltica, que deveria afirmar-se como provedora tanto de orientaes, de um norte ao poltica, quanto de grandes expoentes, formando a classe poltica em seus diversos nveis. O que se percebe a partir de Mosca, por conseguinte, a existncia, at aquele momento, de um imbricamento claro entre os campos universitrio e do poder temporal na Itlia. Havia uma superposio que possibilitava no apenas a constante interveno, apontada por Mosca exausto, de parlamentares em questes que seriam primeira vista de mbito puramente acadmico, mas tambm a forte incidncia de professores universitrios entre os parlamentares.161 Assim, apenas para citar alguns daqueles com quem Mosca se relacionou ao longo de sua trajetria, Antonio Salandra, seu professor de legislao econmica e financeira no curso complementar de cincia poltica e administrao de Roma, chegou a ser

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primeiro-ministro, de 1914 a 1916. Por seu turno, Cesare Lombroso, Luigi Einaudi, Gioele Solari e Francesco Ruffini, colegas de Turim, participaram, o primeiro, do Partido Socialista, e os restantes do Liberal (Delle Piane, 1968:505).162 Falar em imbricamento, em superposio, entre poltica e atividade universitria, em um quadro de franquias restritas, em que o reconhecimento poltico passava, principalmente, pelos pares, pelos representantes, significa perceber que o capital simblico de prestgio intelectual, acadmico, universitrio podia tambm ser convertido em capital poltico. O inverso, contudo, no era necessariamente verdadeiro. O que Mosca indica de modo evidente, e atravs mesmo de suas ambigidades, que enquanto o caminho da poltica universidade, muito embora recorrente, comeava a ser visto de forma negativa, denunciado, o da universidade poltica era percebido como altamente legtimo, constituindo-se em um percurso bastante comum, especialmente no caso dos cursos de direito. Na verdade, projetando-se como um intelectual de prestgio, um especialista nas questes do Estado, uma figura pblica, um notvel, o prprio Mosca passava a reunir condies para lanar-se na poltica, como de fato o fez, escorado e fortalecido tambm por seus novos trunfos, seus vnculos com as elites empresariais. Muito mais do que de consolidao universitria, os anos de Mosca em Turim foram de acmulo de capital poltico. Se pde o autor tornar-se uma figura pblica, se suas idias alcanaram foros mais amplos, apesar de seus livros terem pouco sucesso e serem, nos termos estigmatizadores de Pareto, praticamente clandestinos, foi graas no apenas ao seu reconhecimento universitrio e cientfico, mas sim ao seu reconhecimento poltico, pelo fato de que passava a ser identificado com e a expressar uma corrente de crtica ao governo parlamentar que ento comeava a ganhar fora, a se disseminar. Era principalmente no espao de posies polticas, dessa forma, que reverberavam suas formulaes sobre a poltica. No h que se desconsiderar, porm, um outro fator fundamental para a passagem de Mosca para a poltica, alm do seu reconhecimento, dos seus novos trunfos pessoais. Trata-se de sua forte ligao com Di Rudin. O marqus morreu em 1908 e foi em sua cadeira na Cmara que, em 1909, Mosca se sentou. Assim, o autor, que tantas pginas dedicou demonstrao da persistncia do princpio da hereditariedade no sistema liberal, moderno, entrou para a poltica como sucessor de um antigo poltico, Di Rudin, herdando o colgio eleitoral de Caccamo (Albertoni, 1990:55, 111-2).

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preciso enfatizar o fato de que Mosca elegeu-se por um colgio siciliano mesmo morando em Turim, bastante afastado portanto (Albertoni, 1990:112). Na verdade, o termo herana, nesse caso, parece assumir quase o sentido mesmo de um bem prprio, objetivo, que passado a algum. Pode-se perceb-lo pela forma como o peridico LIllustrazione Italiana, traando um perfil dos novos deputados eleitos em 1909, inicia a apresentao de Mosca: Sobre o professor Gaetano Mosca eleito em Caccamo no colgio que foi do marqus Di Rudin... (apud Albertoni, 1990:111).163 Mosca foi eleito deputado por duas vezes, ambas concorrendo com um candidato clerical, grande proprietrio e conselheiro, justamente, da provncia de Palermo: o prncipe Giuseppe Spadafora de Policastrello. Na primeira, em 1909, para um total de 57.268 habitantes, segundo Albertoni (1990:111-2), o colgio de Caccamo tinha 3.391 eleitores. Destes, apenas 2.249 compareceram eleio, destinando, dos votos vlidos, 1.260 para Mosca e 964 para Spadafora. Na segunda eleio, em 1913, agora na vigncia do sufrgio universal masculino, o colgio de Caccamo j contava com 17.833 eleitores, mas apenas cerca de 51%, 9.217, foram s urnas. Dessa vez a vitria relativa de Mosca sobre Spadafora foi maior, obtendo 5.944 dos votos vlidos contra 2.761. Embora eleito pelo Partido Liberal, Mosca procurava apresentar-se como um conservador. Em um de seus primeiros discursos como deputado, ainda em 1909, ele diria: Acho que muitos de meus colegas j sabem que eu sou conservador, e como tal no aceito novidades que no sejam amplamente justificadas (apud Albertoni, 1990:211-2, nota 13). Na verdade, mesmo antes de eleito, Mosca era assim reconhecido, como se pode ver por um comentrio sobre sua candidatura feito por Cesare Lombroso:

Apesar de partidrio convicto do pensamento socialista, sinto a necessidade de expressar meus mais calorosos votos a favor da candidatura de Gaetano Mosca, que no entanto um dos mais tenazes conservadores (apud Albertoni, 1990:111).

Seu esforo de apresentao, seu trabalho de representao como um conservador, ganha sentido por relao estrutura ento dominante no espao de posies polticas italiano. Era em um quadro poltico cujo tom era dado pelo transformismo e por seu

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maestro Giolitti, que se identificava como um liberal democrata, que Mosca buscava afirmar-se como um conservador.164 Em uma configurao de foras com um enorme centro, associado a todo um conjunto de prticas, a tudo aquilo que desde seus primeiros escritos vinha denunciando, criticando, com uma esquerda extremada, que percebia como um perigo ainda maior, Mosca localizouse direita, marcando sua diferena, sua identidade, tomando posies muitas vezes contrrias vaga dominante. Tal foi, por exemplo, o caso da apreciao, em 1912, do projeto de reforma eleitoral que tornava universal o sufrgio masculino acima dos 30 anos, de autoria do prprio Giolitti. Mosca, de modo coerente, foi o nico parlamentar que se manifestou publicamente em oposio a ele, e um dos dois votos contrrios ao projeto.165 Como poltico, Mosca chegou a ter tambm uma experincia ministerial, entre 1914 e 1916, os primeiros anos, portanto, da I Guerra Mundial. Tratava-se do governo de seu antigo professor Antonio Salandra, que ascendeu aps a queda de Giolitti, tendo Mosca ocupado a subsecretaria para as colnias.166 Alm disso, ele foi em 1919 nomeado senador pelo rei Vittorio Emanuele III, cargo no qual encerraria sua carreira, j em 1925 (Albertoni, 1990:120-2). A produo intelectual de Mosca entre 1912 e 1919, seu perodo de maior atividade poltica, restringiu-se basicamente a artigos jornalsticos. Nenhum trabalho acadmico significativo foi publicado no perodo. Quando, porm, ele finalmente retomou sua produo, o fez com uma marca distinta. Praticamente nenhum dos trabalhos trazia no ttulo o termo direito, sendo todos identificados como textos de cincia poltica.167 Se at ali no havia diferena para Mosca entre ser um cientista poltico e ser um constitucionalista, um jurista, subordinandose, na verdade, aquele a estes, se at 1919 sua estratgia bsica era impor-se como um jurista, um constitucionalista, fazendo no entanto cincia poltica, agora sua ordem de prioridade se invertia. Ainda que no necessariamente desvinculada da faculdade de direito, mesmo que mantendo seu carter normativo, a cincia poltica, para o autor, comeava a se afigurar como uma disciplina especfica, com uma identidade distinta da do direito pblico ou do direito constitucional, uma identidade na qual procurava se enquadrar, criando, ao mesmo tempo, por essa via um espao prprio para si. Nesse momento, Mosca iniciou uma srie de cursos especficos de cincia poltica na Universidade Bocconi. Alm disso, ele promoveu uma clara reviso de sua produo intelectual ressal-

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tando, retendo justamente seu carter sociolgico, o que significava relegar a segundo plano seus textos jurdicos. O que buscava ele, agora, era apresentar seus trabalhos de forma orgnica, como elos de uma cadeia reflexiva coerentemente articulada e orientada, imp-los como peas de uma obra cujo marco fundador era a Teorica, e que se confundia com a teoria da classe poltica, que procuraria afirmar como descoberta pioneira sua. H sem dvida vrios elementos importantes para se compreender o novo investimento de Mosca, bem como seu esforo de imposio de seus trabalhos como obra mais marcadamente de cincia poltica. Sua trajetria, seu prestgio, sua posio de notvel, seu capital social e poltico, a estabilidade alcanada pelo cargo vitalcio de senador, que o isentava da concorrncia eleitoral, tudo isso confluiu para conformar as possibilidades de uma estratgia distinta. Um fator fundamental, contudo, foi o sucesso que vinham alcanando, j naquele momento, os livros e as idias de Pareto. Afirmando-se a partir da economia poltica, Pareto passava, agora, a investir em uma cincia social nova, a sociologia, publicando pouco tempo antes, em 1916, seu Trait de sociologie gnrale, livro que teve considervel difuso e que, de forma mais significativa, deu reconhecimento cientfico tese elitista. A concorrncia com Pareto, a disputa pela primazia na elaborao da tese elitista, pesou de modo decisivo para impulsionar Mosca no sentido da constituio de uma nova disciplina, da afirmao de uma identidade especfica de cientista poltico e, nesse mesmo processo, de imposio de uma releitura de sua obra. Tal foi um dos sentidos mais profundos da segunda edio tanto dos Elementi, de 1923, quanto, j em 1925, da Teorica.

CAPTULO 6

Duplo referencial e fracasso duplo

Como j se viu, Mosca, na segunda edio dos Elementi, manteve a verso anterior na ntegra, acrescentando apenas umas poucas notas com o sentido de relativizar algumas de suas obervaes mais duras, datando-as, remetendo-as ao momento especfico em que haviam sido produzidas. Aps a verso original que se seguia uma segunda parte, esta sim nova. Dizia Mosca haver optado por esse procedimento, mesmo tendo transcorrido cerca de 27 anos entre uma e outra edies, com o conseqente acmulo de fatos e elementos novos, ainda que reconhecesse ter mudado bastante a sua forma de encarar a realidade, basicamente por duas razes. A primeira era a de que o tempo, a seu ver, nada mais havia feito do que confirmar vrias de suas anlises. J a segunda era a continuidade mesma que havia no apenas entre as duas edies, mas tambm entre elas e a prpria Teorica, seguindo todas um mesmo mtodo, eixo unificador de sua obra (Mosca, 1923:vii-viii). Nas palavras do autor:

Tanto na primeira quanto na segunda parte do presente trabalho esforcei-me por permanecer fiel ao mtodo que adotei quando era muito jovem, escrevendo a Teorica dei governi, e que desde ento sempre persegui (Mosca, 1923:viii).

Mosca, portanto, no incio dos anos 20, caminhando para a afirmao da cincia poltica como uma disciplina distinta, procurava impor a viso de seus trabalhos, ainda que separados por lapsos de tempo bastante considerveis, como um todo orgnico,

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como uma verdadeira obra cimentada por um mtodo nico e cujo marco original era a Teorica. Deixando de fora dessa construo seus textos mais caracteristicamente jurdicos, o autor afirmavase, alm do mais, como algum que havia dedicado toda a sua vida intelectual, de modo exclusivo, cincia poltica. Tal a percepo que, a partir dali, Mosca procurava impor de si mesmo e de seus trabalhos. Tal era a percepo que em grande parte temos hoje, consolidada e magnificada, conforme j se viu, pelos seus comentadores. por isso que lemos as duas partes dos Elementi como se formassem uma unidade perfeita. A Teorica que lemos, e que foi reeditada tambm sem alteraes em 1925, no a de 1884, mas a de fins da dcada de 10 e incio da de 20. Nela procuramos a origem da doutrina da classe poltica, termo que, na verdade, s aparece na segunda edio dos Elementi. De fato, Mosca inicia a segunda parte dos Elementi com um captulo que tem por ttulo: Origini della dottrina della classe politica e cause che ne ostacolano la diffusione. principalmente aqui, portanto, que passa a ser importante falar de uma doutrina da classe poltica e retraar sua origem. E faz-lo significa ressaltar o papel de Mosca como seu primeiro formulador, j na Teorica, em um sentido verdadeiramente cientfico. Mais do que isso, faz-lo significa afirmar a precedncia, nessa formulao, de Mosca sobre Pareto. Tem-se ressaltado freqentemente que o principal alvo das crticas de Mosca nos Elementi, na verdade seu mvel fundamental, a base de suas formulaes, era o socialismo.168 Sem, entretanto, levar na devida conta a disputa que se desenrolava entre Mosca e Pareto sobre a precedncia na formulao da tese de que em todas as sociedades, em todos os tempos, havia uma minoria dirigente e uma maioria dirigida, no se pode compreender de modo mais profundo diversas passagens do livro, bem como a ponte que se procura estabelecer entre ele e a Teorica. Como primeiro trabalho onde Mosca esboava sua tese, a Teorica foi publicada em 1884, muito antes de qualquer livro de Pareto. Essa questo no , em geral, suficientemente relevada, em parte porque nosso contato com Mosca limita-se leitura da edio americana dos Elementi. evidente, quando se comparam as duas verses, que em The ruling class a disputa entre os autores foi significativamente minimizada, tendo inclusive algumas das referncias crticas de Mosca a Pareto sido eliminadas. O que Mosca efetivamente procura fazer no primeiro captulo, e de certa forma em toda a segunda parte dos Elementi, , mais do que expor uma outra vez sua doutrina, indicar as razes de sua

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fraca difuso, aceitao e reconhecimento, e mesmo de sua baixa incorporao na atividade poltica em geral. Para tanto, ele parte para uma reconstituio das origens da doutrina. interessante como aqui, de modo claro, Mosca amplia o escopo de seu conceito de classe poltica, extrapolando os limites do governo e da poltica. Se isso guarda uma evidente relao com os vnculos, a vivncia, a experincia de formao de setores do empresariado italiano que nos ltimos anos Mosca havia desenvolvido, no h tambm como descartar o fato de que esteja referido ao sucesso da noo mais abrangente de elite, de Pareto, em particular tendo em vista a recente publicao do seu Trait de sociologie gnrale.169 Diz Mosca:

A doutrina segundo a qual em todas as sociedades humanas que atingiram um certo grau de desenvolvimento e cultura a direo poltica no sentido mais amplo da expresso (incluindo, por conseguinte, a direo administrativa, a militar, a religiosa, a econmica e a moral) constantemente exercida por uma classe especial ou seja, por uma minoria organizada mais antiga do que comumente acreditam muitos daqueles que a defendem (Mosca, 1923:335).

Afirma o autor que, baseando-se em fatos bastante evidentes, que por isso mesmo, no escapavam at observao vulgar, a doutrina j se encontrava em germe em alguns pensadores polticos anteriores, como Maquiavel, por exemplo. Em suas linhas fundamentais, no entanto, ela havia comeado a ser traada com Saint-Simon, vindo em seguida Comte, Taine, Marx, Engels e Gumplowicz (Mosca, 1923:335-7). Aps Gumplowicz, ento, vinha o prprio Mosca, com a sua Teorica. Apenas nos anos seguintes que haviam sido publicados a primeira edio dos Elementi e os trabalhos de Ammon, Novikof e Rensi, alm dos de Pareto e tambm de Michels, discpulo de Mosca e a cujo Sociologia dos partidos polticos o autor no poupa elogios.170 Mais do que demarcar a sua primazia em relao a Pareto, no entanto, tratava-se, para Mosca, de desqualificar as suas formulaes. Assim, no quinto captulo da segunda parte do livro, Schiarimenti e polemiche, Mosca procurava atacar o conceito de elite que para ele se confundia, da mesma forma que o marxismo, com a idia proveniente do sculo XVIII de que, em uma sociedade, prevaleciam, mandavam sempre os melhores (Mosca, 1923:457-8).

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Para rebater essa noo, Mosca comeava por se perguntar quem eram os que mereciam ser chamados de melhores. Pelo senso comum, dizia ele, melhor era o comparativo ou at o superlativo de bom, ou bondoso, no sentido moral, altrusta. Aplicada vida poltica, entretanto, a expresso assumia um sentido ainda mais vago, significando aquele que reunia os requisitos que o tornavam apto a governar seus semelhantes. Dessa forma, o adjetivo podia sempre, em tempos normais, ser aplicado classe dirigente que em uma dada poca, em um dado pas, reunia os elementos mais aptos. Isso, porm, no significava obrigatoriamente que fossem eles os indivduos mais elevados intelectual ou moralmente. Mais do que senso de justia, altrusmo ou vastido de conhecimentos, o importante para governar era a perspiccia, a rpida intuio da psicologia dos indivduos e das massas e, acima de tudo, a confiana em si mesmo e a fora de vontade (Mosca, 1923:458-9). Conclua o autor, portanto, que: por essa razo que nos parece inexata a expresso lite adotada por Pareto para designar aquela que ns, muitos anos antes, havamos denominado classe poltica [os grifos so de Mosca] (Mosca, 1923:459, nota 1). A afirmao da primazia de Mosca, juntamente com a desqualificao das formulaes de Pareto, articulavam-se, nos Elementi, com o empenho em ressaltar a novidade da doutrina da classe poltica, ainda que pudesse ter ela razes relativamente antigas. Nas palavras do autor:

Quando se escrever a histria da nova doutrina da classe poltica no ser difcil atribuir a qualquer escritor a parte de mrito de ter trazido a sua contribuio do material bom, medocre ou ruim empregado na construo do edifcio, e distinguir tambm que material era realmente novo e que material j era usado (Mosca, 1923:337).

A doutrina era nova, dizia Mosca, porque havia surgido com o processo de desgaste da concepo otimista da natureza humana, caracterstica do sculo XVIII. Segundo essa concepo, base da teoria democrtica, uma vez destrudas as desigualdades legais entre os homens, todos os estratos sociais passariam a progredir intelectual e moralmente, tornando-se aptos a dirigir o Estado que, assim, seria expresso da vontade da maioria, manifestada atravs do sufrgio universal (Mosca, 1923:338-9).

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Ainda que desgastada, contudo, a teoria democrtica continuava a exercer uma influncia bastante grande, moldando a mentalidade dos indivduos, orientando suas aes polticas. Mais do que isso, as prprias instituies polticas vigentes haviam sido plasmadas por aquela teoria, que se constitua em paradigma dominante. Critic-la, portanto, mostrava-se uma tarefa herclea, que enfrentava pesadas resistncias. Tal a razo da baixa penetrao, da fraca eficcia prtica da nova doutrina, da sua doutrina, na poltica e mesmo na cincia, onde encontrava poucos adeptos (Mosca, 1923:339-40). O regime democrtico, diz Mosca retomando um ponto contemplado em seus textos anteriores, tinha uma grande fora conservadora. Mesmo seus adversrios tinham que aceit-lo oficialmente, submeter-se a suas regras, adular o sufrgio universal, caso quisessem evitar a morte poltica e chegar ao governo, galgar posies nas quais seus interesses pudessem ser mais bem defendidos. Uma vez portanto que os adversrios dificilmente expressavam seu desacordo em pblico, no se conformava uma coalizo de sentimentos e interesses necessria para que uma doutrina distinta se tornasse uma fora ativa, capaz de transformar as instituies (Mosca, 1923:340). O que se pode perceber a partir dos pontos apresentados na segunda edio dos Elementi que a concorrncia de Mosca com Pareto pelo reconhecimento cientfico, que o levava a explicitar, concatenando, suas formulaes como um corpo doutrinrio, como uma obra, dela expurgando seu carter jurdico, classificando-a desde sempre como de cincia poltica, associava-se tambm, de modo inextricvel, luta parlamentar do autor pela imposio e o reconhecimento polticos de suas propostas cientficas. Na verdade, ainda que o pensamento de Mosca s possa ser compreendido, efetivamente, se for levado em conta seu duplo referencial, cientfico e poltico, parece evidente o peso predominante de sua imerso nas lutas polticas de seu tempo. Dessa forma, as posies cientficas do autor acerca da poltica so claramente pontuadas, informadas por suas posies no espao de posies polticas. Isso fica patente em suas anlises da democracia. Elas expressam, a um s tempo, sua viso cientfica e sua tentativa de ganhar visibilidade poltica, destacando-se na monotonia da paisagem de unanimidade produzida pela teoria democrtica na Itlia. Por isso mesmo que, ao acentuar tambm as desvantagens da aristocracia, Mosca observava que isso podia parecer suprfluo no primeiro quartel do sculo XX, quando bem poucos so aqueles que em pblico no se declaram partidrios entusiastas da democracia (Mosca, 1923:427).

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Contudo, era justamente por estar referido de modo direto ao campo poltico que Mosca, na segunda edio dos Elementi, era muito mais cauteloso em relao a suas crticas teoria democrtica e ao governo parlamentar, representativo. De fato, se na Teorica ele era um crtico feroz, impiedoso, e se na primeira verso dos Elementi assumia uma postura ctica, possvel dizer que o Mosca de 1923 incorporava fortes doses de relativismo no que tocava questo da democracia e da representao poltica. E era quando sobrevinha esse relativismo que seus escritos anteriores podiam ser referidos no apenas para demarcar primazia e continuidade, mas tambm para acentuar a diferena de sua atual forma de pensar:

Aquele leitor que se lembrar do que escrevemos na Teorica dei governi, a propsito do governo parlamentar, talvez tenha notado que as nossas idias sobre o assunto foram bastante alteradas. Era difcil, com efeito, que isso no ocorresse passados 39 anos, e os primeiros indcios dessa modificao j se revelavam na primeira parte deste trabalho, que foi publicada pela primeira vez no final de 1895. Conservamos, em essncia, at hoje o conceito fundamental da Teorica dei governi, isto , que todas as organizaes estatais so constitudas por minorias organizadas e, por isso, qualquer forma de regime poltico presumivelmente baseada na livre expresso da vontade da maioria contm uma insanvel mentira, que, a longo prazo, deve produzir a sua decadncia. Reconhecemos tambm serem fundadas quase todas as outras crticas atribudas ao governo parlamentar, mas um maior conhecimento da histria da vida nos ensinou a consider-las com maior indulgncia, tendo constatado ser impossvel existir uma forma de organizao poltica a qual, no seu funcionamento prtico, no seja maculada pelas inevitveis fraquezas morais e intelectuais da natureza humana. E hoje nos aterroriza, antes de tudo, a previso de que os tipos atuais de organizao poltica possam ser substitudos por outros nos quais as fraquezas aludidas tero um campo de ao bem mais vasto e podero agir com eficcia maior (Mosca, 1923:396, nota 1).

Se Mosca se mostrava mais cauteloso em suas avaliaes da democracia e do governo representativo, no media as palavras, contudo, quando se tratava de analisar o que seria, para ele, um de seus desdobramentos mais deletrios: o socialismo. Jamais, em lugar algum, dizia ele, uma maioria havia dirigido uma minoria, ainda mais se fosse aquela pobre e ignorante, e esta rica e culta. Por isso mesmo, a ditadura do proletariado no passava da opresso de uma classe, igualmente restrita, s que exercida em nome do proletariado (Mosca, 1923:398-400).

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Era inexorvel, portanto, que estivesse sempre frente do governo uma minoria, mesmo quando o discurso fosse justamente o oposto. Diante disso, qualquer anlise consistente das formas de governo devia partir das minorias governantes. O que diferenciava uma democracia de uma aristocracia era no o fato de que uma era o governo da maioria, ao passo que outra o da minoria. Ambas eram governos de minorias. O que as diferenciava era, por um lado, o sentido do fluxo de autoridade, e, por outro, os padres de recrutamento e renovao da minoria governante. Em todas as sociedades a autoridade flua, ou era delegada, do alto para baixo da escala poltica e social, de tal modo que um superior que escolheria um funcionrio inferior, ou vinha de baixo para cima, dos governados aos governantes. Enquanto o primeiro modo era chamado por Mosca de princpio autocrtico, o segundo recebia a denominao de princpio liberal. certo, porm, que esses dois princpios nunca operavam de forma pura, podendo estar fusionados ou combinados em propores diversas (Mosca, 1923:401-2). Apenas perceber se a autoridade emanava do alto, ou se era delegada a partir de baixo, contudo, no era suficiente para qualificar uma forma de governo. Era preciso averiguar tambm o modo como era recrutada e renovada a classe que detinha a autoridade. Para tanto, Mosca identificava duas tendncias distintas. A primeira era a aristocrtica e nela se tinha uma classe dirigente cristalizada, fechada aos indivduos de fora, que se renovava por sucesso, por herana, reservando o poder a seus prprios descendentes. J na segunda tendncia, a democrtica, o que se via era uma classe governante aberta ao acesso de indivduos oriundos da classe governada (Mosca, 1923:402-3). Assim como no caso dos princpios autocrtico e liberal, porm, nunca se encontrava uma tendncia nica operando de forma pura. Era da combinao, em propores diferenciadas, dos dois princpios e das duas tendncias que se formavam os regimes polticos (Mosca, 1923:403). Observava Mosca, claramente informado pela noo de circulao das elites, de Pareto, que a tendncia democrtica, que promovia uma real renovao da classe dirigente, agia de forma constante, com maior ou menor intensidade, em todas as sociedades humanas. Em tempos normais, era possvel assistir a uma lenta e gradual renovao da classe dirigente, infiltrada por indivduos vindos de baixo. Em momentos excepcionais de srias crises, entretanto, a renovao podia se dar de forma rpida e violenta (Mosca, 1923:421-2).

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Na verdade, acentuava o autor, no se podia negar que a tendncia democrtica, sobretudo se restrita a limites moderados, era indispensvel ao progresso das sociedades. Possibilitando a mobilidade, ela se constitua em um elemento propulsor dos indivduos e das classes, ao mesmo tempo em que reforava a estabilidade poltica:

A luta entre aqueles que esto no alto e aqueles que, nascidos embaixo, aspiram a subir foi, e ser sempre o fermento que levou os indivduos e as classes a alargarem os prprios horizontes e a procurarem novos caminhos que nos conduziram at o grau de civilizao alcanado no sculo XIX. Esse grau de civilizao tornou possvel, no campo poltico, a criao do grande Estado representativo moderno, o qual, como vimos no captulo precedente, entre todos os organismos polticos, aquele que conseguiu coordenar uma soma maior de energias e de atividades individuais em direo dos fins de interesse coletivo. Pode-se acrescentar que a tendncia democrtica, quando a sua ao no tende a tornar-se excessiva e exclusiva, representa o que em linguagem vulgar se chamaria de uma fora conservadora. Isso porque ela realimenta continuamente as classes dirigentes atravs da admisso de elementos novos, que tm inatas e espontneas as atitudes para o comando e a vontade de comandar, e impede assim a exausto das aristocracias de nascimento, que costuma preparar os grandes cataclismas sociais (Mosca, 1923:423).

certo, porm, que mesmo ali onde prevalece a tendncia democrtica se pode assistir afirmao da sua oposta, a aristocrtica. Afinal, na luta pela preeminncia, como se acentuava na primeira parte do livro, todos os que chegavam ao primeiro grau da escala social buscavam consolidar suas posies, criando defesas para si e para seus filhos (Mosca, 1923:423-5). Para alguns como os socialistas, isso era uma decorrncia natural da propriedade privada, que dava melhores condies a uns do que a outros, facilitando o seu acesso a posies mais elevadas. Mosca, porm, contra-argumentava que a tendncia aristocrtica poderia prevalecer mesmo em uma sociedade igualitria, em que tivesse sido abolida a propriedade privada. Mais do que isso, ela, nesse caso, certamente prevaleceria, dado o poder sem precedentes que seria conferido nova minoria dirigente:
certo que nessa objeo h uma grande parcela de verdade, e s no dizemos que totalmente verdadeira porque os conhecimentos e as relaes dos pais podem ser transmitidos

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parcialmente aos filhos, mesmo quando a famlia no tem um patrimnio palpvel. Poucos, porm, se do conta hoje de que, em um Estado coletivista, o inconveniente aludido, que ora tem por base a propriedade privada, no desapareceria, mas sim se apresentaria de forma mais acentuada. Afinal, como j demonstramos no ltimo captulo da primeira parte deste trabalho, e como acontece atualmente na Rssia, aqueles que regem um Estado organizado de acordo com os princpios coletivistas teriam prerrogativas e meios de ao muito maiores do que os ricos e os poderosos de hoje. De fato, em um Estado coletivista os dirigentes acumulariam o poder poltico com o poder econmico e, dispondo assim da sorte de todos os indivduos e de todas as famlias, teriam mil maneiras de distribuir favores e castigos e seria estranho que eles no se valessem dessas prerrogativas para garantir aos seus filhos os melhores postos (Mosca, 1923:425-6).

Se a presena do socialismo era to forte como antema na segunda parte dos Elementi, era porque nunca, como nos anos que antecederam a nova edio do livro, ele havia sido um perigo to real. A Revoluo Russa era ainda um fato bastante prximo, e seu fantasma rondava o restante de uma Europa combalida, recm-sada da I Guerra Mundial.171 Os anos de 1919 a 1921, conhecidos na Itlia como o Binio Vermelho, foram marcados por fortes distrbios e agitaes sociais, coroados pela ocupao armada de fbricas pelos operrios, particularmente em Milo e Turim. Embalados pelo que parecia ser uma mar montante do movimento de massas e por um desempenho eleitoral bastante expressivo em 1919, os socialistas passaram, de modo predominante, a adotar o que chamavam de postura maximalista, isto , a luta pela implementao imediata do programa mximo do partido, de seus objetivos estratgicos, deixando de lado o gradualismo.172 Em um quadro como este, a cincia poltica, na viso de Mosca, poderia ter um papel fundamental, contribuindo para a constituio de uma poltica cientfica, evitando que catstrofes do tipo das que interrompiam o curso da civilizao, como a que ocorria na Rssia, se generalizassem. Para tanto, era preciso compreender bem o mecanismo poltico, a fim de poder dirigir sua ao sem violent-lo (Mosca, 1923:466-73). Atravs da cincia poltica, dizia Mosca, o homem poderia dominar seus instintos e paixes, de modo a melhorar seu prprio destino. E o autor aplicava esse seu princpio a si mesmo ao perceber que, naquele momento, o ataque ao socialismo no podia se confundir, como at ali vinha sendo feito, com a crtica irrestrita

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democracia, ao sistema representativo, ao parlamentarismo. A ordem que poderia vir a se impor em substituio, afinal, poderia resultar em algo muito pior, com a total eliminao da poltica representativa, das liberdades e da defesa jurdica. De fato, analisando a situao da Europa e da Itlia em particular aps a I Guerra Mundial, uma situao que caracterizava como de crise, Mosca percebia a conformao de trs solues radicais, todas altamente nocivas, e que cabia evitar. A primeira, objeto de crtica em boa parte do livro, era a ditadura do proletariado. A segunda, menos provvel, era o retorno a uma situao anterior de absolutismo burocrtico, que significaria a subordinao da representao poltica burocracia. A terceira, finalmente, a sindicalista, classista, que acarretaria a sobreposio dos interesses corporativos aos da coletividade, impondo o que seria um feudalismo funcional. Todas as trs, dizia o autor, conduziriam a uma decadncia no apenas da poltica, mas da civilizao como um todo (Mosca, 1923:494-500). Sobre a soluo sindical, alertava Mosca em um discurso pronunciado no Senado em fins de 1922:

Egrgios colegas, no nos iludamos. Se o sistema das eleies pelos votos individuais for substitudo, amanh, por uma representao das classes, o Estado sofrer uma grande e perigosssima transformao. E no nos iludamos, assim como o deputado Mussolini nos ensina que os rgos polticos no valem tanto pelos poderes legais que detm quanto pelas foras polticas que lhes esto por detrs, aquele Parlamentozinho poderia facilmente tornar-se o rgo soberano preponderante. Nele no prevaleceriam os sindicatos mais cultos, como, por exemplo, o dos professores universitrios, mas antes aqueles que desempenham as funes mais indispensveis vida econmica. Se houvesse um Parlamentozinho de cunho sindicalista, deveria ser providenciada uma nova verso do aplogo de Mennio Agripa: as mos, os braos, os ps e as pernas se imporiam no mais ao estmago, mas sim ao crebro (apud Mongardini, 1980a:318).

Era portanto diante daquelas trs solues ameaadoras que Mosca era levado a suavizar suas crticas, chegando mesmo, na concluso dos Elementi, a reconhecer a superioridade dos regimes representativos. Eles que impunham limites ao arbitrria dos poderes do Estado, atravs das liberdades individual e de imprensa. Eles que melhor garantiam a constituio de Estados fortes, estveis, canalizando uma enorme soma de energias individuais para interesses coletivos (Mosca, 1923:484-5).

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E finalizando a nova edio do livro, Mosca, mais uma vez, invocava a Teorica. Agora, todavia, para ressaltar do alto dos seus 65 anos, no o que unia aqueles dois momentos de reflexo, mas o que os apartava. Nas palavras do autor:

tendo, h 40 anos, iniciado a nossa carreira de escritor com um mpeto juvenil, que porm no renegamos, na qual procuramos desnudar as mentiras contidas nos pressupostos do regime representativo e os vcios do parlamentarismo, hoje quando a idade avanada nos tornou mais cautelosos e, ousaremos afirmar, mais ponderados os juzos e mais meditadas as concluses, e ainda considerando atentamente e sem paixes as condies de muitos povos europeus e sobretudo as da nossa Itlia , sentimonos obrigados a recomendar nova gerao a restaurao e a conservao do regime poltico que herdou de seus pais (Mosca, 1923:501).

A referncia feita por Mosca a Mussolini, em seu discurso de 1922, evidencia que, alm de seus alvos tradicionais, suas formulaes tinham agora um novo destinatrio: o fascismo. O prprio texto do prefcio segunda edio dos Elementi foi escrito em dezembro de 1922, depois portanto da grande manifestao de fora fascista, que ficou conhecida como a Marcha sobre Roma, quando milhares de militantes de diversos pontos do pas desfilaram em passeata pela capital, prenunciando a chegada de Mussolini ao cargo de primeiro-ministro, pouco tempo depois. Alm disso, a proposta corporativista, criticada pelo autor como uma das trs solues radicais para a Europa do ps-guerra, era veiculada justamente por uma das vertentes do movimento fascista, formada no interior do sindicalismo. importante destacar que, quando de sua ascenso em outubro de 1922, Mussolini no era visto como um mal maior por uma significativa parcela do espectro poltico italiano. Pelo contrrio, galgando legalmente o poder, e ali se mantendo dessa mesma forma no perodo que imediatamente se seguiu, ele despontava como uma possibilidade de reordenamento do sistema poltico e social italiano, assombrado por greves, mobilizaes e enfrentamentos, pelo fortalecimento do socialismo, pela dificuldade de constituio de coalizes partidrias que conduzissem formao de governos minimamente estveis, durveis, como tambm pelo fantasma de Giolitti.

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Havia, certo, o temor de que Mussolini pudesse vir a desfechar um golpe de Estado, o que tambm serviu para amainar as resistncias sua ascenso. Entretanto, apesar de suas manifestaes de fora, ele no dava mostras imediatas de que pretendesse romper por completo a legalidade, alm de deixar aberto um canal de dilogo com diversos setores polticos, dando-lhes a sensao de que poderia ser mantido sob controle. Seu gabinete recebeu o nome de Governo Nacional e reuniu trs ministros fascistas, dois popolari, quatro liberais, um nacionalista, dois militares e um intelectual de prestgio, Giovanni Gentile, que ocupou o Ministrio da Instruo Pblica.173 Acrescente-se a isso o fato de que, com um discurso centrado no mote de restaurao da lei e da ordem, Mussolini procurou limitar a ao dos squadristi, grupos fascistas paramilitares.174 O crdito poltico inicial a Mussolini transparece em um discurso de Mosca no Senado, saudando o novo primeiro-ministro e lembrando que a sua principal tarefa seria restaurar o sistema representativo, para o que poderia contar com o apoio irrestrito de todas as foras polticas. Se conseguisse realiz-la, acrescentava Mosca, alm do homem de governo que j havia se revelado, Mussolini tambm poderia ser considerado um verdadeiro homem de Estado (apud Mongardini, 1980a:316-9). Criticado por seu discurso pelo amigo Guglielmo Ferrero, Mosca respondeu, em uma carta j de janeiro de 1923:

No acredito que no meu discurso tenha havido uma contradio. Quando eu o pronunciei, Mussolini estava no poder h poucas semanas e podia-se esperar (e eu ainda espero, se bem que hoje os prognsticos no sejam bons) que ele quisesse e pudesse restabelecer o regime representativo. De resto, e tambm com pouca esperana de ser escutado, no teria podido me dirigir a outros com vistas atualizao do programa que eu acreditava e acredito ser o melhor. E convenhamos, era totalmente intil invocar a obra de Giolitti, Facta, Orlando ou Nitti, isto , daqueles que foram eficazes colaboradores do desmantelamento do regime, que a voc e a mim parece, neste momento, o nico possvel (apud Mongardini, 1980a:324).175

Por sua posio no espao poltico, Mosca no somente no pde prever a ameaa representada pelo fascismo, como chegou mesmo a ver nele uma possibilidade de restabelecimento da ordem e

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de neutralizao daqueles que lhe pareciam ser os reais elementos de perigo para a Itlia. Com o progressivo endurecimento do regime, porm, o autor passou a uma linha clara de oposio, batendo-se, como acreditava tambm estar fazendo ao apoiar Mussolini, pela manuteno do sistema representativo e do parlamentarismo. Tendo acumulado um expressivo capital poltico, galgado posies de prestgio, alcanado no Senado a estvel condio de notvel, o estreitamento do espao poltico significava igualmente, para ele, o estrangulamento de sua prpria carreira. O ano de 1925, para o autor, foi marcado por algumas ltimas tentativas mais efetivas de resistncia. Juntamente com Giovanni Amedola, Luigi Albertini, Gaetano Salvemini, Luigi Einaudi e Arturo Labriola, ele assinou em maio um manifesto preparado por Benedetto Croce, exaltando os ideais de liberdade, justia e democracia, em resposta a um documento firmado por intelectuais fascistas como Gentile, Filippo Marinetti e o escritor Luigi Pirandello, entre outros, em que se proclamava falido o Estado liberal e se identificava o fascismo ptria, religio, aos mais altos ideais da nao.176 E em dezembro do mesmo ano, em um pronunciamento sobre um projeto apresentado por Mussolini ampliando seus poderes, Mosca dizia que, com ele, assistia-se s exquias do governo parlamentar, e acrescentava:

Eu jamais teria acreditado ter de ser o nico a fazer o elogio fnebre do regime parlamentar. Recordo-me quando na Cmara fiquei surpreso pelo fato de que, pelo costume, quando morria um ex-deputado, era quase sempre o seu sucessor no Colgio que lhe fazia o elogio fnebre, sucessor que na maioria dos casos lhe havia tomado o lugar. Eis, ento, quem tanto criticara seu antagonista obrigado a louv-lo. Da mesma forma, eu, que sempre critiquei duramente o governo parlamentarista, devo agora lamentar sua queda. Reconheo que esse sistema deveria sofrer modificaes sensveis, mas no creio que tenha chegado o momento de empreender sua transformao radical, e agora que o abandonamos justo evocar-lhe os mritos (apud Albertoni, 1990:60-1).

As crticas de Mosca inscreviam-se em um processo mais geral de ruptura dos liberais com Mussolini. Um dos estopins desse processo foi o assassinato, em 1924, do deputado socialista Giacomo Matteotti por militantes fascistas. Matteotti vinha desferindo duros

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ataques contra Mussolini e a alta hierarquia fascista, acusando-os de terem conseguido a maioria das cadeiras do Parlamento, nas eleies daquele ano, atravs de fraude e violncia, argumento que utilizava para pedir a anulao dos votos dados aos seus deputados. O socialista foi seqestrado no dia 10 de junho, sendo morto em seguida, o que desencadeou uma onda de protestos que incluiu o episdio que ficou conhecido como a retirada para o Aventino. Recordando o movimento de descontentamento da plebe romana que, liderada por Caio Graco, retirou-se para a colina do Aventino, fora dos muros da cidade, uma parcela significativa dos parlamentares decidiu boicotar os trabalhos. Desse ponto em diante, os prprios liberais, que haviam participado do governo Mussolini e que haviam composto a sua lista eleitoral em 1924, foram assumindo uma postura de oposio. Um dos principais meios pelos quais suas crticas eram veiculadas era o jornal de Luigi Albertini, Corriere della Sera, que por isso mesmo terminou sendo alvo de forte censura.177 Foi nesse momento que Mosca decidiu reeditar a Teorica sem alteraes. No prefcio que acrescentou ao livro datado de 1924 , ele procurava resgatar positivamente sua primeira parte, com o sentido de reforar tanto a unidade de sua obra quanto sua primazia sobre Pareto. Ali, segundo ele, estava exposta a doutrina da classe poltica, que ento podia ser considerada nova e, na Itlia, absolutamente nova (Mosca, 1925:iii). Quanto segunda parte, justamente a que continha crticas virulentas ao parlamentarismo e teoria democrtica, Mosca lhe atribua um valor histrico, apresentando-a como um documento de poca. Ela expressaria as condies materiais, intelectuais, morais e polticas da Itlia, certo, mas tambm do prprio autor, no incio dos anos 1880. Assim que ele decidiu mant-la, ainda que no mais pudesse subscrever suas concluses, tomando porm o cuidado de relativiz-la, do mesmo modo que a primeira parte dos Elementi, atravs de notas que lembravam ao leitor quando o livro havia sido escrito e quantos anos tinha ento (Mosca, 1925:145-298). Mesmo no caso do socialismo, Mosca procurava, agora, abrandar suas observaes. Dessa maneira, no captulo em que falava da questo social na Itlia e do perigo do isolamento entre as classes, uma vez que formava um terreno frtil para a difuso de idias revolucionrias, Mosca colocou uma nota em que dizia que aquelas pginas precisavam ser complementadas ou mesmo refeitas. O leitor, contudo, deveria levar em conta

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que as referidas pginas foram escritas h mais de 40 anos, quando, na Itlia, estava no nascedouro aquela corrente de sentimentos e de idias comumente chamada de socialismo, e quando o autor ainda era muito jovem (Mosca, 1925:298).

Era por conseguinte a inicial a parte mais importante da Teorica. E ela era a mais importante no apenas porque continha a primeira elaborao de sua doutrina da classe poltica, no apenas porque demarcava a sua novidade e a sua primazia. A primeira parte era importante porque, da mesma forma que a segunda, era um documento. Era um documento, contudo, no do incio dos anos 1880, mas de meados da dcada de 20. Era um documento que comprovava que a doutrina da classe poltica e as crticas ao parlamentarismo e democracia nela embutidas vinham sendo apropriadas de forma indevida, abusiva, justificando o fechamento do regime, o que no condizia com a imagem que, no em 1884, mas certamente sim em 1925, Mosca lutava por impor de si mesmo como defensor do governo representativo. Assim, dizia o autor:

agora que a sorte comea a sorrir para a aludida doutrina, ao mesmo tempo ela vem sendo desgraadamente exagerada e, ainda pior, desfigurada. De resto, esse destino comum a todas as doutrinas polticas quando, saindo do campo da teoria pura, comeam a se tornar foras ativas e modificadoras das instituies polticas e, por isso, so adotadas quer para justificar o assalto ao poder, quer para dar uma base moral ao poder j exercido de fato (Mosca, 1925:iv).

O trecho de Mosca cristalino, indicando que, ao procurar se afirmar como um provedor de orientaes polticas, de acordo com sua concepo normativa da cincia, ele terminou se vendo prisioneiro das apropriaes polticas de suas formulaes, perdendo o controle sobre elas. Por isso mesmo, o autor viveu a angstia de sentir ter colaborado, pavimentado o caminho para o fascismo, contribuindo para criar um ambiente a ele favorvel, receptivo, fornecendo-lhe, em parte, sua justificativa intelectual.178 Ainda por isso, prximo dos 70 anos de idade, encerrando a contragosto sua carreira poltica, constituindo-se em um dos principais alvos das crticas dos peridicos fascistas, abandonando, diante da censura imprensa, sua atividade jornalstica, o autor passaria em alguns momentos a auto-referir-se como um fracassado.179

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E sua sensao de fracasso era tanto maior quanto aquele mesmo regime ao qual agora se opunha erigia um pedestal ao seu principal adversrio intelectual, Pareto, elevando-o condio de expresso maior do pensamento italiano, algo como um precursor, um antecipador, um profeta do fascismo. diferena do que ocorreu com Mosca, contudo, importante destacar, a apropriao poltica das idias de Pareto, ainda que tivesse dificultado a sua penetrao em alguns meios, no foi suficiente para bloquear o seu reconhecimento cientfico. Pareto pde ser bem-sucedido na autonomizao de suas formulaes, no sendo comprometido, de modo definitivo, por sua associao com o fascismo. Mosca, ao contrrio, operando com um duplo referencial, poltico e cientfico, terminou igualmente por se impor um duplo fracasso, tanto poltico quanto cientfico. Ainda que tivesse sido Mosca o primeiro a elaborar o conceito de classe poltica e portanto a doutrina das minorias dirigentes, foi a elite de Pareto que se difundiu e alcanou reconhecimento, e isso mesmo fora da Itlia.180 Da que inclusive aps a morte de Pareto, que se deu em 1923, Mosca prosseguisse empenhando-se em demarcar a sua primazia, obrigando-se a uma constante reafirmao e defesa de seu direito sobre a doutrina. Em um quadro de isolamento e de retirada da poltica, Mosca, que j no prefcio segunda edio dos Elementi (1923:ix) anunciava o fim prximo de sua carreira cientfica devido idade, no apenas a manteve como passou a dedicar-se somente a ela, ministrando a cadeira de histria das instituies e das doutrinas polticas, criada para ele na Universidade de Roma. Mas em vez de base para uma nova ascenso, agora exclusivamente universitria, e para a criao de uma nova cincia, de uma nova disciplina autnoma em relao tanto poltica quanto ao direito, sua posio inscrevia-se em um movimento de descenso tambm acadmico, dado forte interveno do Estado fascista nas universidades, limitando a liberdade e a independncia, impondo currculos, impulsionando ou bloqueando trajetrias. Foi em 1923 que Mosca foi convidado para a Universidade de Roma, ento presidida por Antonio Salandra, vindo a ocupar a ctedra de direito pblico interno, pertencente a Vittorio Emanuele Orlando, que se transferia para a de direito constitucional. Naquele mesmo ano, Giovanni Gentile, ainda ministro da Instruo Pblica de Mussolini, comeou a promover uma reforma universitria que resultou, entre outras coisas, j em 1924, na criao de uma escola depois faculdade de cincia poltica naquela universidade. O

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objetivo da escola, segundo seu decreto de criao, era formar quadros para as carreiras administrativa, diplomtica, colonial e para o jornalismo. Institucionalizada, portanto, pela interveno de um governo forte, a cincia poltica na Itlia, enquanto disciplina autnoma, independente do curso de direito, teve na subordinao poltica uma de suas marcas constitutivas bsicas, como demonstrava seu prprio objetivo primordial. Por isso mesmo, ela se tornou extremamente dependente das variaes conjunturais polticas, como puderam sentir os liberais que, de incio, formavam a maioria do corpo docente da nova escola. De fato, o modelo de constituio da escola de cincia poltica, seu sentido prtico, sua nfase na formao da classe poltica haviam sido tomados, em parte, de formulaes anteriores de intelectuais liberais como Messedaglia, Salandra e Mosca. A sua prpria criao, na verdade, foi resultado da aliana entre Mussolini e o Partido Liberal. Inversamente, foi a ruptura dessa aliana, e em particular o discurso de Mosca no Senado em 1925, opondo-se ao projeto que ampliava os poderes do chefe de governo, que determinou a excluso dos quadros da escola, alm do prprio senador, de Salandra, Orlando, Alfredo Codacci-Pisanelli, Antonio De Viti De Marco e Umberto Ricci. A cadeira ministrada por Mosca, histria das instituies e das doutrinas polticas, foi inclusive cortada do currculo de cincia poltica. Se ele pde continuar a lecion-la, foi como curso complementar, no-obrigatrio, e junto faculdade de direito, o que fez at o ano de 1933, quando se aposentou. Foi desse curso que se originou o seu ltimo livro, Histria das doutrinas polticas desde a Antigidade (1968), publicado em 1932.181 interessante observar que foi nesse momento de interrupo da carreira poltica e de bloqueio da trajetria universitria que Mosca mais investiu na projeo e no reconhecimento internacionais.182 Foi tambm a sua posio nesse momento, portanto, que marcou a recepo de seus trabalhos fora da Itlia, impondo-lhes uma leitura em larga medida poltica, como textos produzidos por um autor liberal, antifascista, formulador de uma perspectiva realista da democracia. Da mesma forma que Mosca, Pareto, submetido a um fracasso poltico na Itlia, ainda em fins do sculo XIX, optou por uma trajetria de isolamento, de desengajamento, que resultou em sua partida para a Sua. Pareto tinha, ento, cerca de 48 anos, e sua estratgia levou-o a se afirmar como um dos inventores de uma nova vertente da economia poltica e a investir fundo em uma outra cincia, tam-

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bm nova, a sociologia, impondo-se como um de seus pais fundadores. Mosca, entretanto, com seu estilo conservador, aos 70 anos de idade no se sentia em condies de abandonar seu pas, mesmo investindo em projeo exterior. Sua posio, ainda que associada a uma cadeira recente, constituiu-se em um contexto poltico extremamente desfavorvel, como forma de refgio e de recluso, e no como base para invenes disciplinares. Operando com um referencial ao mesmo tempo poltico e universitrio, vinculando a cincia poltica, Mosca tornou-se vulnervel s inverses da conjuntura. Assim, sua derrota poltica determinou tambm o seu bloqueio universitrio. Dissiparam-se igualmente, por essa via, as condies para que fosse reconhecido como novidade cientfica, reforando-se, em contrapartida, a leitura de seus textos como manifestaes ideolgicas, expresses de uma postura poltica e portanto como documentos datados, localizados.183

PARTE II

Vilfredo Pareto: a sada aristocrtica

CAPTULO 7

De diletante a especialista

Vilfredo Federico Damaso Pareto nasceu em Paris, no ano de 1848. Seu pai era o marqus Raffaele Pareto, oriundo de Gnova, na Ligria, ao Norte da Itlia, e encontrava-se exilado na Frana desde meados dos anos 1830, por sua participao no movimento nacionalista liderado por Giuseppe Mazzini. Foi em Paris que o marqus casou-se com uma moa de origem local chamada Marie Mtenier, sobre a qual no h maiores informaes. Os grupos dominantes do Norte da Itlia, e em particular os de regies como o Piemonte e a Ligria, tinham estreitos e antigos vnculos com a Frana.184 O controle francs sobre a Itlia, entre 1796 e 1815, havia substitudo o austraco, mas com vantagens para aqueles grupos locais, que passaram a gozar de liberdade e autonomia relativamente maiores. Com a queda do regime napolenico e os desdobramentos do Congresso de Viena, entretanto, a dominao austraca foi restaurada, acarretando uma perda de espao, de autonomia, de prerrogativas dos grupos locais, o que desencadeou uma expressiva onda de descontentamento. Tal foi um dos principais estopins dos movimentos nacionalistas, como o mazzinista, que comearam a espocar, contando com a forte participao de setores aristocrticos. Mazzini criou, em 1832, a Jovem Itlia, raiz de um movimento mais amplo, a Jovem Europa, cujo objetivo era combater aqueles que concebia como governos reacionrios, absolutistas. Vanguarda na luta por uma associao mundial de povos livres, a Itlia deveria, como um primeiro passo, na sua acepo, unificar-se sob a forma de uma repblica democrtica. Mazzini mesclava elementos religiosos em sua proposta, adotando o mote de Deus e o povo, definindo sua ao como uma cruzada moral e espiritual. Depois de algumas investidas militares

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facilmente neutralizadas, o movimento mazzinista foi derrotado, levando vrios de seus seguidores priso ou ao exlio, como ocorreu com o prprio Mazzini em 1837.185 Formado em agronomia, Raffaele tinha ainda pretenses intelectuais e artsticas, pintando quadros e esculpindo. Em Paris, ele pde publicar alguns trabalhos relacionados sua profisso como Irrigation et assainissement des terres , e foi tambm secretrio da Socit des Arts.186 Foi em fins da dcada de 1850, com o avano do processo de unificao liderado pelo conde Camillo Benso di Cavour, com o suporte de Napoleo III , que Raffaele Pareto pde retornar ao seu pas. Seu primeiro emprego, entretanto, foi de professor de francs da Reale Scuola di Marina di Genova. Ele permaneceu ali entre maio e novembro de 1859, quando se transferiu para o Istituto Leardi, um instituto tcnico em Casale Monferrato, onde passou a ensinar agricultura e contabilidade. Raffaele no gozava de boa situao econmica, chegando mesmo, em alguns momentos, a mostrar-se apreensivo quanto sua capacidade de custear os estudos de Vilfredo at o final (Giacalone-Monaco, 1966:103).187 Por suas origens sociais, entretanto, ele se inseria em uma rede de relaes que lhe garantiu o acesso a recursos como o apoio familiar, necessrios para contornar seus problemas. Ele era o mais novo de uma fratria de trs, tendo um de seus irmos mais velhos, Damaso, casado com a ltima descendente de uma linhagem de prestgio, Spinola, formando o ramo ParetoSpinola.188 O outro irmo, Domenico, teve para ele um papel fundamental assim como para o prprio Vilfredo, como se ver , ajudando-o financeiramente. Domenico alcanou posio de destaque na diplomacia italiana e, j em 1864, foi eleito membro do Conselho Municipal de Gnova, um dos rgos importantes na estrutura do poder local.189 Mais do que ajuda econmica, apoio familiar, o que o nome aristocrtico e os vnculos pessoais de Raffaele lhe propiciaram foram contatos, indicaes, cartas de recomendao, meios para melhorar sua posio. Assim, escrevendo ao irmo Domenico em 1862, ele dizia estar cogitando pleitear uma ctedra de hidrulica aplicada em Milo, para o que pediria a um primo, Lorenzo Pareto, que o recomendasse ao ministro da Instruo Pblica, Carlo Matteucci, com quem mantinha estreitas ligaes (Giacalone-Monaco, 1966:99-100). Foi no Ministrio da Agricultura, porm, que Raffaele terminou por conseguir um posto, em 1863, como responsvel pelos as-

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suntos relativos a saneamento e irrigao. Com isso, a famlia mudou-se para Turim, ento sede do governo. Novas mudanas vieram, posteriormente, com a transferncia da capital para Florena e, depois, para Roma. Raffaele foi aceito como membro de algumas das academias e sociedades cientficas e artsticas existentes nas cidades por que passou ocupando cargos pblicos: a Accademia Reale dellAgricoltura de Turim, a Accademia Fiorentina delle Arti del Disegno e a Reale Accademia dei Lincei, em Roma. Ele dirigiu, ainda, a publicao da Enciclopedia delle arti e industrie e de um trabalho extenso sobre arquitetura e arte italianas intitulado Italia monumentale, alm de ter colaborado no Giornale dellIngegnero, Architetto e Agronomo, de Milo.190 Raffaele Pareto morreu em 1882, quando era chefe da Diretoria dos Trabalhos Pblicos.191 Vilfredo Pareto iniciou seus estudos, na Itlia, no Istituto Leardi, o mesmo em que seu pai ensinava, matriculando-se na seo de fsica e matemtica. Com a mudana da famlia para Turim, um dos principais centros da Itlia unificada, culturalmente cosmopolita e politicamente dominante, ele transferiu-se para o Regio Istituto Tecnico daquela cidade, onde completou sua formao secundria.192 nico filho homem,193 Pareto aproximou-se da via aberta pelo pai, encaminhando-se para a engenharia, na qual se formou, em 1869, pela Universidade de Turim. Seus dois primeiros anos de estudos superiores foram dedicados obteno de uma licenciatura em cincias fsicas e matemticas, aprofundando-se em mecnica racional, cujo ensino era particularmente forte naquela universidade. Posteriormente, ento, ele pde cursar por mais dois anos a Escola de Aplicao para Engenheiros. Alm da base matemtica e fsica, importante ressaltar que, em sua passagem por Turim, Pareto entrou em contato com o darwinismo que, de acordo com Giovanni Busino, tinha naquela universidade um dos seus mais ativos plos irradiadores na Itlia. E o autor, sem dvida, bebeu bastante daquela fonte.194 A tese com a qual Pareto colou grau em engenharia intitulavase Princpi fondamentali della teoria della elasticit dei corpi solidi e ricerche sulla integrazione delle equazioni differenziali che ne definiscono l'equilibrio (Princpios fundamentais da teoria da elasticidade dos corpos slidos e pesquisas sobre a integrao das equaes diferenciais que definem o seu equilbrio). J ali portanto, observam alguns comentadores, manifestava-se o interesse do autor pela questo do equilbrio que posteriormente constituiria uma de suas principais preocupaes tericas, tanto na economia quanto na so-

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ciologia.195 A economia e a sociologia de Pareto, nessa perspectiva, teriam se constitudo a partir da transposio dos problemas e dos mtodos de investigao e de reflexo da fsica.196 preciso acentuar contudo, que, no caso da sociologia, essa transposio se deu apenas parcialmente. Como se ver adiante, a noo de equilbrio social, central em Pareto, era marcada, em larga medida, por uma perspectiva biolgica, orgnica. Mais do que fsica, por conseguinte, ela pode ser vista como fisiolgica. Formado, enfim, Pareto era portador de um diploma valorizado, conferido por uma escola de prestgio. Perito em fsica e matemtica, era tambm fluente em outras lnguas, como o francs e o ingls, o que lhe rendeu significativos dividendos em sua carreira acadmica. Esta, porm, s se abriria posteriormente. Pareto, a princpio, empregou-se como engenheiro da Societ Anonima delle Strade Ferrate Romane, trabalhando em sua seo de Florena de 1870 a 1873. As relaes pessoais e familiares de seu pai foram centrais no incio de sua trajetria profissional, abrindo-lhe o acesso a empregos e posies. Foi Antonio Allievi, amigo de Raffaele Pareto e, assim como este, antigo mazzinista, que conseguiu o primeiro emprego de Vilfredo. Allievi foi membro do Gabinete de Cavour e diretor da Banca Generale, acionista maior da estrada de ferro de Roma.197 Apesar dos seus vnculos, Pareto sentia-se desprestigiado e bloqueado em sua ascenso na empresa, o que culminou em sua sada em 1873, quando, enfrentando dificuldades, ela passou a ser administrada pelo Estado. Naquele mesmo ano ele se transferiu para a Societ dellIndustria del Ferro di San Giovanni Valdarno, transformada em 1880 na Societ delle Ferriere Italiane. Tratava-se de uma indstria do ramo siderrgico com sede em Florena, e Pareto teve ali uma carreira bem-sucedida, vindo a tornar-se diretor-geral. Quem patrocinou seu novo emprego foi Ubaldino Peruzzi, que, juntamente com sua esposa, Emilia, afirmaram-se como seus protetores. Pareto mantinha com eles uma intensa correspondncia e um de seus trabalhos, publicado ainda na dcada de 1860, era dedicado ao casal. Peruzzi era um nome bastante antigo da aristocracia de Florena, vinculado a casas bancrias e com negcios em outros pases europeus. Ubaldino, que mantinha laos com a famlia de Pareto, foi deputado e tambm senador. Ele foi, ainda, ministro dos Trabalhos Pblicos e do Interior de governos da direita e, na dcada de 1870, era justamente o prefeito de Florena.198 Ubaldino e Emilia Peruzzi tinham um dos mais concorridos sales de Florena, no qual introduziram Pareto. Freqentando-o

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com assiduidade, ele pde ampliar sua rede de relaes, ganhando prestgio e notoriedade. De fato, a prpria presena e a aceitao nos sales, um dos principais loci de sociabilidade das altas elites de ento, eram j marca de distino.199 Pareto foi se impondo com uma imagem de homem culto, erudito, profundo conhecedor dos clssicos, em cujo estudo investia seu tempo livre. De seu gosto pelos clssicos resultou a traduo de uma antologia de poetas gregos, o que, segundo alguns bigrafos como Giacalone-Monaco (1968:249) e Maffeo Pantaleoni (1924:11), buscando ressaltar a sua versatilidade e a sua genialidade, teria feito apenas como exerccio. preciso ver que o gosto pelos clssicos, pela erudio, constitua-se ento, e como de resto ainda hoje, em um forte elemento de reconhecimento, de distino, em uma marca de superioridade. E seu efeito era to mais eficaz e evidente quanto mais natural se mostrava, afigurando-se como fruto de uma aptido inata, expressando-se de forma espontnea e desinteressada.200 Cabe destacar que Florena era, naquele momento, um dos principais centros intelectuais da Itlia, alm de ter sido, entre 1866 e 1870 quando, finalmente, Roma foi anexada , a capital do reino. No entanto, desenvolvia-se ali uma intensa atividade intelectual fora da universidade, nas sociedades, nas academias, nos sales. A Universidade de Florena era relativamente nova e sem tradio, perdendo para a de Pisa, que dominava a regio. Havia em Florena, portanto, um amplo espao exterior universidade, em que podiam ser desenvolvidas atividades intelectuais e mesmo cientficas, de forma amadorstica, no-profissional, mas nem por isso menos reconhecida. Pelo contrrio, constituamse os sales, as sociedades, e principalmente as academias, em importantes instncias de reconhecimento, inclusive das reflexes que eram produzidas no interior dos centros de ensino. Configurava-se um quadro em que, tomando a terminologia de Weber, havia um certo predomnio de diletantes sobre os especialistas da cincia.201 Nesse contexto, o que se observa que a universidade ainda no se havia imposto como locus nico, ou principal, de gerao e de legitimao do conhecimento, nem como de gerao e de legitimao de geradores e de legitimadores de conhecimento. Mais do que isso, havia uma clara interdependncia entre produo intelectual e campo do poder temporal, econmico, poltico e social, sendo neste, em larga medida, que se buscava reconhecimento. Atentando-se, por outro lado, para o fato de que as academias cientficas eram chamadas, em grande parte, de reais, e de que

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era bastante alta, de maneira geral, a origem social de seus membros, poder-se- perceber que a ampla margem de no profissionalizao da cincia estava tambm relacionada a uma viso aristocrtica que dela se tinha como atividade nobre, desinteressada, no-conferidora de capital econmico, mas to-somente simblico, de reconhecimento.202 Por essa perspectiva, a atividade cientfica assumia igualmente, tomando de emprstimo o termo de Elias, um sentido de representao. Ela se afirmava como um recurso de auto-afirmao, de ostentao, de evidenciao, e assim tambm de diferenciao, de identificao, na luta competitiva das altas elites pelo prestgio social, e mesmo poltico (Elias, 1987:38-67). A busca de reconhecimento social e poltico, por conseguinte, justificava o interesse economicamente desinteressado pela cincia.203 Foi esse o contexto em que Pareto se imps. Atravs de seu convvio na corte, de sua presena nos sales, enfim, de um padro de relacionamento social bastante distinto daquele do pensador solitrio, isolado, dos anos posteriores, Pareto foi ganhando prestgio, acumulando capital social, estendendo sua rede de relaes pessoais.204 Sua passagem por Florena e sua ligao com os Peruzzi foram, portanto, estratgicas em sua trajetria. A vila dos Peruzzi era tambm um importante local de reunies polticas e de discusso econmica, com nfase na questo do protecionismo, do livrecambismo, por ali circulando economistas notrios e editores de vrios peridicos econmicos. Alm disso, Ubaldino era um dos nomes mais influentes da Reale Accademia Economico-Agraria dei Georgofili, criada ainda em 1753. Da insero de Pareto na rede de relaes de Ubaldino Peruzzi que vieram seus primeiros investimentos intelectuais na rea da economia poltica. Tambm atravs dele que lhe foram abertos espaos em peridicos econmicos, que foi nomeado scio ordinrio da Accademia dei Georgofili e que se filiou Societ Adamo Smith, criada em 1874, em Florena, por alguns dos freqentadores de Peruzzi, pensadores e militantes livre-cambistas.205 Se, porm, foi como atividade paralela, praticada em seu tempo livre e obedecendo principalmente a uma lgica de reconhecimento social que Pareto passou a investir na economia poltica, j a partir de fins dos anos 1870 era possvel observar uma inverso nessa tendncia, associada a uma clara inflexo na trajetria do autor. Isso se devia, em grande parte, a mudanas significativas no campo poltico italiano, as mesmas mudanas, alis, que informaram as anlises de Mosca sobre a classe poltica. Trata-se da vitria da esquerda nas eleies de 1876 e da implementao do transformismo.

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Na verdade, necessrio destacar que, da perspectiva de Pareto, da posio que ocupava no espao social, bastante distinta da de Mosca, mais do que a vitria da esquerda, as eleies de 1876 representaram a derrota da direita. De modo mais especfico, aquelas eleies deslocaram da posio politicamente dominante o grupo que havia controlado o processo de unificao, ao qual Pareto se vinculava por laos sociais, de amizade e mesmo de parentesco. Sua viso daquele quadro era portanto bastante negativa, vislumbrando a possibilidade de um descenso, vivenciando uma desvalorizao de seu capital social. Diretor de uma grande empresa, Pareto viu-se na necessidade de negociar com o governo, agora em uma nova posio, sem dispor de parte de seus trunfos anteriores e, alm disso, submetendo-se s regras impostas pelo transformismo, com corrupo, presses, acordos e negociatas, curvando-se diante do poder dos deputados. Mais ainda, as polticas econmicas adotadas pelo governo vieram a constituir-se em gravame para a posio de sua empresa. Foi a postura intervencionista que predominou nos governos da esquerda, que passaram a investir fortemente na promoo do desenvolvimento industrial. Foram favorecidas, em larga medida, as indstrias naval e de construo, alm de empenharem-se esforos na melhoria e na expanso das ferrovias. siderurgia foi atribudo um papel central nesse processo, concedendo-se incentivos e privilgios s indstrias que fornecessem ao para aqueles ramos. A ao do Estado, contudo, terminou por resultar na criao de uma nova empresa em Terni que, com fornos mais potentes e controlando todo o ciclo de produo do ferro e do ao, destacouse das demais, obrigando-as a um longo e custoso processo de modernizao e de reestruturao.206 Diante de tudo isso, Pareto, com um habitus aristocrtico, privilegiando a defesa de sua honra, de seu prestgio, e dispondo de recursos sociais e econmicos para tanto, optou por romper as regras do jogo, entrando em rota de coliso com o governo.207 Ele passou assim a assumir uma postura de crtica aberta, nela investindo e arriscando seu prestgio, sua posio, combatendo o intervencionismo e o protecionismo, denunciando a corrupo, pregando a moralidade, o livre-cambismo, a democracia, opondo o pacifismo poltica colonialista italiana que vinha ento sendo implementada.208 Seu crculo pessoal passou a se constituir, tambm, em crculo de oposio poltica, e foi igualmente a feio de arma poltica que sua reflexo econmica passou a assumir.209

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interessante notar que se a virada de Pareto coetnea de Mosca, tendo as crticas deste e as invectivas daquele o mesmo referencial, h tambm distines claras entre eles, relacionadas s suas trajetrias. Enquanto para o Mosca da Teorica, de posio e de capital social inferiores, o que se caracterizava era uma situao de via ascensional obstaculizada, Pareto, de alta origem e elevado capital social, percebia a situao italiana como conducente ao seu declnio. Enquanto o primeiro diagnosticava o quadro italiano como uma conseqncia lgica e necessria do liberalismo, sustentando assim a necessidade de constituio de um novo sistema, o segundo considerava-o um desvio, pregando o retorno, a fidelidade aos princpios liberais, livre-cambistas, que teriam marcado o perodo de hegemonia da direita.210 Por sua posio variada, era tambm diferencial o peso que assumia a palavra pblica de cada um dos dois autores. Assim, ainda que as crticas de Mosca fossem mais demolidoras, provenientes de um jovem jurista recm-formado, de um autor praticamente obscuro, que escrevia em Palermo, na Siclia, tinham um impacto menor do que as do nobre engenheiro, que ocupava um alto posto em uma empresa de porte considervel e que falava a partir de Florena, onde freqentava e era reconhecido nos melhores sales e nas academias, exercendo uma liderana intelectual e que se inseria em uma rede de relaes altamente influente. Pareto apostou todos os seus trunfos, investiu todos os seus recursos, seu prestgio, sua posio, em sua estratgia poltica liberal, mas acabou perdendo. Ele se apresentou como candidato oposicionista pela provncia de Pistia, nas eleies de 1882, mesmo ano em que morreu seu pai, mas no foi bem-sucedido. Mais ainda, incompatibilizando-se de forma crescente com o governo, tornou de tal modo difcil sua situao frente da Societ delle Ferrierre Italiane, que terminou se vendo na obrigao de abandonar o emprego. Contudo, preciso no creditar a sada de Pareto apenas s dificuldades que vinha experimentando. Afinal, ela se deu em 1889, aps a morte de sua me, tendo Pareto recebido sua parte na herana familiar. De fato, a herana lhe deu condies para operar uma mudana em sua vida, abrindo caminho para um isolamento crescente. Alm de abandonar o emprego, passando a prestar servios eventuais como consultor, ele casou-se com Alexandra Bakounine, filha do cnsul russo em Florena, e mudou-se para Fiesole, uma regio mais afastada (Giacalone-Monaco, 1959:191; 1967:736). Pareto passou ento a dedicar-se integralmente sua campanha liberal e pacifista, participando de manifestaes, fazendo

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palestras e escrevendo artigos, atividade na qual se revelou bastante prolfico.211 Mais ainda, a economia poltica, qual antes se dedicava nas horas vagas, passou a ser seu principal objeto de interesse, empenhando-se em seu estudo de forma intensa. Nesse processo, o autor entrou em contato com vrios economistas, defensores do livre-cambismo e opositores do governo. Um deles, de fundamental importncia, foi Maffeo Pantaleoni, a quem conheceu na vila dos Peruzzi e cujos Elementi di economia pura leu em 1891, sendo por eles fortemente influenciado. Pantaleoni terminou por tornar-se um de seus amigos mais prximos, orientando-o em seus primeiros passos pela economia pura, de base matemtica, e introduzindo-o s idias e ao prprio Lon Marie Esprit Walras, professor da Universidade de Lausanne, na Sua, e tido como um dos criadores daquela disciplina.212 Foi a partir desse momento que Pareto passou a investir mais abertamente em uma carreira cientfica e universitria. Suas crticas ao governo, porm, haviam tornado sua situao na Itlia invivel. O governo Crispi proibia sistematicamente suas conferncias, determinando que a polcia as impedisse. Todos os seus esforos no sentido de ministrar cursos universitrios, mesmo gratuitos, na Universidade de Florena, eram baldados. Vivendo tudo isso como uma brutal humilhao, como ele mesmo lembraria, ainda com rancor, em meados dos anos 10, Pareto empenhou-se em buscar uma posio fora da Itlia (Einaudi, 1935:346). preciso ver que, para o autor, o acesso carreira universitria passou a se afigurar, a partir de um determinado momento ainda que no de modo exclusivo, importante que fique claro , como uma possibilidade de profissionalizao no sentido da obteno de uma fonte de ganhos regulares. Sua herana familiar, embora lhe tivesse garantido uma certa estabilidade, no era suficiente para tranqiliz-lo por um longo tempo. Foi tambm Pantaleoni que veio em seu auxlio nesse sentido, empenhando-se junto a Walras, que estava prximo de se aposentar, para que indicasse Pareto como seu sucessor na cadeira de economia poltica em Lausanne. Em fins de 1892, em meio s negociaes com Lausanne, sem ainda saber se seria bem-sucedido, ou que tipo de vnculo conseguiria como professor ordinrio ou extraordinrio , Pareto escrevia a Pantaleoni indicando preocupaes quanto sua estabilidade financeira, alm do grande prestgio que representava ser o sucessor de Walras:

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Se a coisa pudesse acontecer, seria uma grande honra para mim. Imagine com que prazer eu aceitaria! Mas, como te disse, h algumas dificuldades. Eu no sou vido por dinheiro. Ao contrrio, cometi certos atos na minha vida, incluindo a o meu casamento, sem dar importncia para os meios de fortuna, que talvez pessoas muito razoveis pensariam em utilizar. Mas me convm pensar um pouco no futuro. preciso que eu veja como encontrar uma maneira de conciliar interesses opostos e aceitar este emprego, extremamente desejado por mim, sem que da derive grave prejuzo. E espero poder fazer isso, mas necessito de um pouco de tempo.213

Cabe ressaltar que Pareto, j ento, comeava a se tornar reconhecido como um difusor das idias de Walras. Particularmente impressionado por seu sistema de equilbrio, expresso de forma matemtica, o autor passou a discuti-lo em artigos publicados no LEconomista, em LIdea Liberale, e mesmo no Giornale degli Economisti,214 assim como em diversos peridicos fora da Itlia, como o Journal des conomistes, o Le Monde conomique e a Revue des Deux Mondes, da Frana, o The Speaker, The Economic Journal e Pall Mall Gazette, da Inglaterra, e o Political Science Quarterly e The Journal of Political Economy, dos Estados Unidos (Rosa, 1984b:481-542). Alm de expor e fazer circular suas idias por um permetro intelectual o mais amplo possvel, a distribuio geogrfica das publicaes de Pareto, possibilitada, a princpio, em grande parte por sua rede de relaes pessoais, indicava igualmente seus objetivos profissionais e mesmo polticos. Na verdade, suas publicaes no exterior tinham, de igual modo, um forte contedo poltico, fustigando o governo italiano, o que contribua para inviabilizar cada vez mais sua situao pessoal no pas, forando-o, em contrapartida, busca de uma sada externa. Bloqueada sua carreira universitria na Itlia, ele investiria, ao lado da Sua, justamente na Inglaterra e na Frana, onde mais publicava.215 Se Walras estava na Sua, era na Inglaterra que alguns economistas, como Francis Ysidro Edgeworth, em cujo The Economic Journal Pareto colaborava, desenvolviam tambm a economia matemtica a partir de William Stanley Jevons e de Alfred Marshall. Mas a clara identificao de Pareto com os pontos de vista de Walras, que competia com a linha inglesa, tornavam suas possibilidades, nesse caso, mais remotas. Na Frana, embora houvesse uma forte reao matematizao da economia poltica, o que se observava era uma crescente legiti-

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mao cientfica, assim como uma institucionalizao da disciplina, que at ento tinha um papel secundrio, meramente subsidirio, dentro dos cursos de direito. Isso redundou, entre 1889 e 1896, em meio a um processo de reformulao dos cursos de direito como um todo, no estabelecimento de normas legais que regulamentavam a formao bsica necessria a um professor de economia poltica (Le Van-Lemesle, 1987:113-5). Em um tal contexto abriam-se, certo, boas perspectivas de insero. Mesmo assim, ainda que tivesse fortes vnculos e relaes pessoais na Frana e ali publicasse com freqncia, Pareto no obteve sucesso em suas gestes. Ele foi primeiro bombardeado por sua leitura da economia, excessivamente matemtica segundo seus crticos.216 Alm disso, o prprio governo italiano parece ter se empenhado em obstaculizar o caminho de Pareto na Frana. Foi na Sua que o seu investimento na publicao, tanto de suas idias quanto de seu nome, tornando-os conhecidos, notrios, aliado operao de sua rede de relaes, com a interveno, o empenho pessoal, direto, de seus amigos, terminou surtindo bons efeitos, contribuindo para que tivesse acesso a uma posio acadmica. Assim que, em 1893, Pareto foi finalmente contratado em Lausanne como professor extraordinrio, sendo efetivado como ordinrio j no ano seguinte.217 A fim de evitar os percalos que teve na Frana, com aes de represlia do governo italiano, Pareto empenhou-se para que todo o processo de negociao de sua contratao por Lausanne transcorresse em sigilo. Dessa forma, em uma carta a Walras, antes de ser nomeado, ele dizia:
Se o governo italiano e os amigos e cmplices daquele governo vierem a saber que eu aspiro a uma cadeira em Lausanne, faro tudo o que estiver em seu poder para impedir-me de consegui-lo (apud Bousquet, 1928:19).218

Se isso, por um lado, era bastante revelador do grau de incompatibilidade e de como Pareto vivia a sua situao na Itlia, por outro, terminou tambm por pesar de modo favorvel para a sua contratao. Na verdade, assim como na Frana, havia em Lausanne, onde a economia poltica se localizava igualmente na faculdade de direito, uma resistncia ao matematismo walrasiano, que afastava os alunos de seus cursos. Assim, no foi a rigor a estrita competncia cientfica ou mesmo o empenho de Walras, por si ss, que definiram o destino universitrio de Pareto. Foi, principalmen-

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te, sua atuao como polemista, sua militncia livre-cambista, e a interveno direta de alguns liberais franceses junto s autoridades suas, como o prprio Pareto reconhece em uma carta a Pantaleoni logo aps sua nomeao:

Fiquei sabendo aqui que as recomendaces de Walras acabaram por prejudicar-me! Parece impossvel, mas foi assim que aconteceu. Eis o motivo. O bom Walras terminou tendo apenas seis alunos nas suas aulas. O Departamento de Instruo Pblica temia que, como ele, eu desse aulas que por poucos podiam ser entendidas. Foi de grande utilidade para mim ser recomendado por amigos de Paris e sobretudo o artigo da Revue des Deux Mondes.219

Suas tomadas de posio livre-cambistas, que haviam bloqueado sua carreira na Itlia, que em parte lhe abririam as portas da Universidade de Lausanne. Ainda assim, no h como deixar de ressaltar que foi o fracasso poltico no seu pas que levou o engenheiro Pareto a converter-se no economista e, mais ainda, a buscar na carreira universitria uma alternativa, passando de diletante a especialista da cincia. Se todavia Pareto conseguiu converter-se de engenheiro em economista, necessrio que se leve na devida conta o fato de que, para que isso se operasse com sucesso, a prpria formao de Pareto em engenharia constituiu-se em um recurso fundamental. Ela permitiu, em primeiro lugar, que se construsse um elo de identificao entre o autor e Walras. Assim, na carta em que apresentava Pareto a Walras, Pantaleoni ressaltava: Ele um engenheiro como voc; ele um economista no como voc, mas que deseja tornarse igual a voc, se voc ajud-lo (apud Coser, 1971:404). Walras havia freqentado um dos mais prestigiados centros de formao de engenheiros na Frana, a cole des Mines, tendo adquirido uma forte base em matemtica e fsica, estudando Descartes e Newton. Mas, ao contrrio de Pareto, sua carreira de engenheiro no foi bem-sucedida. Deslocado nos crculos cientficos de seu pas, segundo Schumpeter, ele trabalhou como jornalista, voltando-se especialmente para as questes econmicas. Por essa via foi que, aps ter participado de um congresso sobre impostos em Lausanne em 1860, ele pde ali estabelecer vnculos consistentes, vindo finalmente, 10 anos depois, a ser indicado para a recm-criada cadeira de economia poltica (Schumpeter, 1952:75; 1964:101-2).

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Uma das novidades de Walras, contudo, o que marcava a sua singularidade para alm do contedo de suas anlises, estava justamente na possibilidade de integrar sua base fsica e matemtica na anlise das questes econmicas. Foi desse modo que ele pde se afirmar como inventor da economia matemtica, ou do tratamento matemtico da economia poltica, o que significava, ao mesmo tempo, impor-se a si mesmo como parmetro necessrio aos pretendentes a especialistas na disciplina. Mais do que propiciar uma simples identificao com a trajetria de Walras, por conseguinte, a formao de Pareto em engenharia lhe preenchia os requisitos bsicos para pleitear o ingresso no campo da economia poltica, pela vertente que ento se construa.220 Voltando-nos para a Inglaterra e a ustria, onde a abordagem matemtica vinha tambm ganhando terreno, poderemos perceber um quadro semelhante ao acima traado. Tanto os ingleses Jevons, Marshall e Edgeworth, quanto o austraco Karl Menger, tinham slida formao em matemtica e fsica.221 Na verdade, alm de produzir uma viso, uma leitura distinta da economia poltica, tratava-se, pela linha sua, com Walras e Pareto, assim como pela inglesa e a austraca, de construir e consolidar um estatuto cientfico para a disciplina. De fato, se nos lembrarmos das formulaes de Mosca, veremos que, seguindo os padres positivistas ento predominantes, a economia poltica era, das cincias sociais, uma das poucas que estavam por alcanar um estgio plenamente cientfico. Isso significava dizer, ainda seguindo o pensador siciliano, que reunia um corpo de verdades comprovadas, de leis inquestionveis, que seguia um mtodo sistemtico, rigoroso, e, acima de tudo, que havia conformado um corpo de especialistas que detinham determinadas qualidades, competncias, que os distinguiam dos profanos, e que exerciam o monoplio da produo e da imposio do discurso cientfico legtimo. Foi nas cincias naturais j constitudas que, em larga medida, as cincias sociais, no momento em que se afirmaram, foram buscar seus padres de conformao. E das cincias naturais, foi a fsica, particularmente a newtoniana, onde se articulavam a matemtica pura e a mecnica racional, que desde o sculo XVIII se tornou um dos modelos cientficos dominantes.222 Foi, em termos bsicos, com a incorporao daquele paradigma que, muito mais do que um arcabouo de reflexo, um instrumento de anlise, imps-se a percepo dos fatos como fenmenos e da realidade social como sistema, ambos em um sentido fsico, sujeitos portanto s leis da esttica

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e da dinmica, decomponveis em suas partes menores, necessrias, e traduzveis em uma linguagem puramente matemtica.223 Quanto mais prximo, por conseguinte, se estava desse modelo ideal, maior o grau de cientificidade alcanado. E foi esse, justamente, o padro no qual se calcou a nova economia, nos termos de seus criadores, como se poder perceber adiante, pelos escritos de um deles, Pareto. Tratava-se de uma economia praticada por engenheiros, indivduos treinados, sensibilizados, que percebiam o mundo a partir da perspectiva fsica e, ainda alm, dispunham dos recursos necessrios construo e compreenso desse mesmo mundo, a saber, o controle da matemtica, o domnio do clculo integral e diferencial. Tratava-se de uma economia que pleiteava um estatuto de cientificidade semelhante ao da fsica, que almejava um grau de perfectibilidade, de objetividade, que se expressava na possibilidade de uma completa matematizao, justificando o ttulo de economia pura, cunhado tambm por seus cultores, de forma mesmo a diferenci-la da economia poltica tradicional. O sucesso desse empreendimento pode ser aferido pelo j citado comentrio de Schumpeter sobre Walras, segundo o qual, as formulaes deste poderiam ser comparadas s realizaes da fsica terica (Schumpeter, 1964:100). Se a nova economia se enquadrava ou procurava se enquadrar nos preceitos de cientificidade predominantes no sculo XIX, e mesmo no incio do sculo XX, isso no significa que o seu poder de imposio fosse tal que lhe permitisse um imediato, um automtico reconhecimento. Pelo contrrio, se ela pde se afirmar, foi como resultado do trabalho de imposio de seus formuladores, da concorrncia que estabeleceu com a economia poltica tradicional. Como foi visto, era nos cursos de direito que se ensinava a economia poltica, e em grande parte como matria subsidiria daquele. Ora, a nova economia, que na realidade procurava se afirmar como a verdadeira, legtima, no somente era praticada por indivduos estranhos ao campo do direito, e que o estranhavam do mesmo modo, como tambm produzia uma viso distinta das aes econmicas, alm de exigir uma competncia da qual aqueles que tinham uma formao jurdica eram em sua maioria totalmente destitudos. Isso, claro, terminou por gerar tenses e resistncias considerveis, das quais so exemplos os j referidos ataques s idias de Pareto na Frana, as dificuldades iniciais para sua contratao em Lausanne e a baixa audincia dos cursos de Walras. Foi por isso mesmo que Pareto foi advertido por Walras, logo ao chegar a Lausanne, para que desse aos seus cursos o carter menos matemtico possvel.224

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Ainda que procurasse seguir os conselhos de seu predecessor, Pareto tambm enfrentaria problemas semelhantes, como se ver adiante. O que importa ressaltar, por ora, que sua competncia matemtica e fsica foi para ele de grande valia, condio fundamental para que pudesse se afirmar como sucessor aceito pelo prprio Walras. Mas, alm dessa competncia, havia ainda uma outra, conferida a Pareto por sua formao em engenharia, que veio a se constituir em um grande trunfo em sua converso economia. No se trata dessa vez, entretanto, de algo que tivesse aprendido em seu curso universitrio, mas sim em sua carreira profissional tcnica e administrativa, em seu treinamento empresarial. Como lembra Schumpeter, Pareto tinha um conhecimento, uma familiaridade com a prtica empresarial, a industrial em particular, que era muito pouco usual entre os economistas de sua poca (Schumpeter, 1949:150). Desse modo, o autor conseguiu operar com sucesso sua converso economia justamente em um momento em que ela vinha sendo construda como disciplina de base matemtica e de perfil fsico. A concluso dessa converso, porm, teve como condio a sua sada da Itlia, para o que Pareto mais uma vez dispunha dos recursos necessrios. Foi obviamente fundamental, para tanto, sua amizade com Pantaleoni e seus vnculos pessoais na Frana. Foi de igual modo bsico, contudo, a sua fluncia em outras lnguas alm do italiano, como o ingls e principalmente o francs, fluncia essa que lhe tornou possvel a publicao de trabalhos e mesmo o estabelecimento de alianas fora da Itlia. Some-se a isso, ainda, o fato de que Pareto havia tido j uma experincia familiar de exlio, e que as viagens, particularmente para Paris, eram uma constante em sua vida. importante observar que, mais do que a completa converso economia, a sada de Pareto da Itlia lhe permitiu efetivar a passagem a especialista e, ainda alm, mergulhar na cincia enquanto atividade autnoma. Na verdade, isso j se configurava como projeto antes mesmo de sua contratao por Lausanne, como se v em uma carta dirigida a Walras:

H algum tempo eu tenho o projeto de estabelecer-me em alguma pequena cidade da Sua ou da Inglaterra, passando a ocupar-me exclusivamente da cincia pura. Se eu for nomeado para Lausanne, no estarei fazendo mais do que antecipar a execuo deste projeto que, de todo modo, ter lugar cedo ou tarde... Minha inteno a este respeito, se for nomeado, estabele-

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cer-me para sempre: eu renuncio ao combate pela defesa das teorias econmicas na Itlia. Meus amigos e eu no obtemos absolutamente nada e perdemos um tempo que poderia ser mais bem empregado no estudo da cincia (apud Bousquet, 1928:19).

Da perspectiva de Pareto, havia portanto uma clara ciso entre militncia poltica e o que chamava de cincia pura. Sua opo pela cincia, desse modo, vinha associada a uma abdicao poltica, decorrente mesmo de seu fracasso, a uma renncia vocalizao de seu descontentamento, em favor da sada da Itlia. Mais do que uma resignao, todavia, a sada de Pareto da Itlia tinha tambm um sentido mais positivo, que era o de buscar um desengajamento, tido como fundamental atividade cientfica objetiva.225 O que se percebe, por conseguinte, um movimento distinto daquele inicial do autor. Partindo de uma posio caracterstica de herdeiro, com alta origem social, elevado capital escolar e cultural, com uma carreira precoce, bem-sucedida, Pareto se afirmava como um diletante, dedicando-se economia em tempo parcial, como atividade financeiramente desinteressada, buscando reconhecimento social, o que significava, ao mesmo tempo, marcar sua presena em pblico e manter uma ampla rede de relaes pessoais. No entanto, com as mudanas observadas no campo poltico italiano a partir de 1876, sentindo fletir sua trajetria, ameaada sua posio e seu prestgio, o autor apostou todos os trunfos em uma estratgia de oposio intransigente, passando a economia, que antes era recurso de prestgio social, a constituir-se em arma poltica. Seu fracasso, contudo, levou-o a uma retirada da poltica, buscando construir sua autonomia atravs de uma insero universitria, tornando-se um especialista, investindo na economia em tempo integral, agora como cincia pura, independente, objetiva. Para que isso fosse possvel, ento, foi necessrio que Pareto sasse da Itlia, onde sua carreira se encontrava bloqueada. E mais do que a sada, sua nova opo levou-o por um caminho de crescente isolamento, de restrio de seu crculo pessoal, o que considerava condio sine qua non para o exerccio da cincia. Convertendo com sucesso os recursos acumulados em sua formao em engenharia, Pareto pde, como herdeiro de Walras, afirmar-se como um dos criadores da economia matemtica. Investindo em uma nova disciplina, ele foi tambm capaz, em contrapartida, de inventar um lugar para si, impondo-se, sendo assim reconhecido como novidade cientfica.

CAPTULO 8

Economista e socilogo

Pareto publicou seu primeiro livro em 1896, aos 48 anos de idade, e quase ao mesmo tempo em que saa a edio original dos Elementi di scienza politica de Mosca. Tratava-se do Cours dconomie politique, resultado de trs anos de aulas na Universidade de Lausanne. diferena de seus outros trabalhos, o Cours passou um longo perodo sem ser reeditado, o que lhe conferiu um certo carter de raridade. Na verdade, dos livros de Pareto, ele hoje o menos conhecido, e corresponde a uma fase do autor marcada ainda pelo liberalismo e por uma crena iluminista no progresso e no papel propulsor que nele teria a cincia. O Cours est referido, enfim, a uma fase no caracteristicamente identificada com o autor, o que ao menos em parte explicaria seu baixo interesse. As aulas que correspondiam ao livro j haviam circulado entre alunos e amigos sob a forma de apostilas, distribudas gratuitamente. Fundidas, elas foram publicadas em dois tomos, o primeiro em 1896 e o segundo em 1897, por F. Rouge, editor da Universidade de Lausanne. Mas, apesar do empenho do editor, o livro, como reconhecia o prprio Pareto, no foi um grande sucesso de vendas (Busino, 1964:xxi-xxii). significativa, entretanto, a atitude de Pareto nesse aspecto. Novamente aqui ele assumiu uma postura economicamente desinteressada, chegando mesmo a abrir mo de seus direitos autorais. Em sua correspondncia, porm, ainda que de modo irnico, ele denotava apreenso em relao s vendas do livro. Em uma de suas cartas, depois de elogiar seu editor, Pareto dizia: Eu tenho fortes dvidas de que o bravo homem possa vender tantos exemplares quanto as despesas exigem! Alm de meus alunos, quem mais poder ler livros como estes? (apud Busino, 1964:xxi-xxii).

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E em outra passagem, comentando as vendas na Itlia, perguntava: Sabes quantos exemplares o pobre homem conseguiu vender na Itlia? Apenas 40! (apud Busino, 1964:xxii).226 O desprendimento de Pareto tambm contrasta com a evidente virulncia de suas reaes s crticas feitas ao livro. Assim, diante dos comentrios de Irving Fisher em The Yale Review, de novembro de 1896, o autor escrevia a Pantaleoni: Ele nao entendeu nada (...) Teria sido melhor no publicar meu livro, pois aqueles que poderiam entend-lo o entendem ao contrrio (apud Busino, 1964:xxiii).227 Essa ambivalncia do autor traduzia o fato de que seu desinteresse econmico era a prpria forma de manifestao de seu alto interesse pelo reconhecimento, agora cientfico. Por outro lado, a mesma ambivalncia, a violncia e o sarcasmo nas reaes em relao a quem quer que fosse, associados a uma postura externamente desprendida, compunham tambm a representao que Pareto imporia de si como pensador absolutamente independente. Era portanto sob a forma do desinteresse, da objetividade, do distanciamento, da autonomia, da independncia, que se mostravam seu interesse, sua parcialidade, suas tomadas de posio. Isso, porm, se apresentaria de forma mais clara, mais acabada, adiante. No Cours, Pareto de certo modo ainda externava uma preocupao normativa, no conflitante com o perfil eminentemente cientfico que se empenhava em atribuir ao livro. Assim, logo no prefcio, o autor esclarecia que seu principal objetivo era o de fornecer um esboo da economia poltica como cincia natural, isto , como uma disciplina, segundo ele, experimental, fundada exclusivamente sobre os fatos (Pareto, 1964:iii).228 Na verdade, at mesmo a exposio dos fatos, para Pareto, devia assumir uma forma perfeitamente clara e objetiva, de modo a exorcizar qualquer trao de pessoalidade e de subjetividade. Dessa maneira, ele procurava fundar, no Cours, um padro de exposio cientfica prprio economia poltica que seguiria tambm, de modo geral, nos seus demais livros , constitudo de pargrafos numerados, e que se opunha forma narrativa caracterstica do que chamava de literatura econmica.229 Dentro dessa perspectiva, Pareto dizia que a sua abordagem dos fenmenos sociais, os econmicos includos, era a mesma do astrnomo, que observava os movimentos dos astros sem poder modific-los. Restringia-se ele a colher os fatos e classific-los para, assim, extrair suas leis empricas ou racionais (Pareto, 1964:II, p. 2).230 Isto, porm, no significava que se devesse adotar uma atitude fatalista diante do mundo, diante de leis que eram inexorveis, como o faziam, segundo o autor, aqueles aos quais se referia como socialistas histricos. Afinal, observava Pareto:

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Ao fazer esse raciocnio, esquece-se que, entre as condies que determinam a evoluo, encontra-se o estado intelectual dos homens. Esse estado depende, por sua vez, dos conhecimentos, que esto estreitamente ligados ao estado do avano das diferentes cincias (Pareto, 1964:II, p. 19).

Uma das idias bsicas que informavam o Cours dconomie politique, uma de suas noes estruturantes na verdade no apenas desse livro, mas tambm de todos os demais , era a de dependncia mtua, tanto dos fenmenos econmicos quanto dos sociais (Pareto, 1964:iv). Sua origem era a mecnica, que estudava o movimento dos corpos como um sistema, como uma resultante da interao entre diversas foras, de tal modo que uma alterao em alguma delas provocava mudanas nos efeitos das demais, no sistema como um todo, e assim tambm na prpria resultante ou no movimento. Por esse mesmo prisma, portanto, que deviam ser abordadas as aes econmicas e sociais, no sendo possvel, nunca, darlhes explicaes monocausais. Esse ponto importante uma vez que se refere prpria maneira como Pareto definia o seu objeto. O que a economia poltica buscava fazer, para ele, de uma perspectiva hedonista, era dar conta de fenmenos resultantes de aes que os homens empreendiam a fim de conseguir aquilo que satisfaria s suas necessidades ou desejos. A essa relao entre homens e determinadas coisas, em um sentido bastante amplo necessrias ou desejveis, em geral os autores davam o nome de utilidade. Como entretanto o termo utilidade j era empregado na linguagem ordinria por oposio a nocividade, o seu uso na reflexo cientfica podia resultar em equvocos e na excluso de uma ampla gama de bens ou coisas que, embora sentidos como necessrios ou desejveis, podiam no ser exatamente teis, ou mesmo serem nocivos. Diante disso, Pareto propunha que, para se referir quela relao, fosse usado o termo ofelimidade, de origem grega (Pareto, 1964:I, p. 3). claro que, enquanto tal, a ofelimidade no se referia apenas aos bens que circulavam pelo mercado estritamente econmico. O poder poltico ou o religioso, por exemplo, tambm podiam se afigurar como coisas desejveis ou necessrias para algum que, desse modo, efetuaria determinadas aes para alcan-los, ou mesmo no, dependendo de outros fatores. Centrando assim suas atenes sobre as aes humanas, Pareto terminaria extrapolando os limites da economia, ou das aes econmicas, para abarcar a sociedade de maneira geral, introduzindo a sociologia no seu campo de preocupa-

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es. Seu interesse pela sociologia era portanto, em grande parte, uma decorrncia do seu investimento e da sua viso da economia poltica, e a ela, a princpio, subordinado. O prprio autor, alis, destacava esse ponto em uma carta a um de seus crticos, ainda em janeiro de 1897. Pareto esclarecia que o centro de seu interesse eram os atos produzidos por vontades, ou o que chamava de atos potenciais. No caso dos atos econmicos, o modelo para estud-los podia ser o da mecnica racional, no havendo a problemas maiores. Afinal, como considerava ele ento, o homo oeconomicus uma balana mais ou menos perfeita [os grifos so de Pareto]. Quando se saa desse campo, no entanto, o quadro j no era mais to claro, o que o intrigava e atraa, embora ainda no pudesse configurar uma soluo:

pelo fato mesmo de que, at o presente, eu no tenha podido resolv-los de uma maneira ao menos um pouco plausvel, que me abstive de publicar um trabalho sobre os princpios da sociologia, que me absorvem h muito tempo (apud Busino, 1964:xxiv).

Como se ver, a sociologia ganhou terreno na produo de Pareto, chegando mesmo a indicar uma inverso no peso que lhe era atribudo em relao economia poltica, na razo direta do isolamento do autor, do agravamento de sua situao pessoal em funo de uma doena cardaca que o acometeu a partir do incio dos anos 1900, e da conseqente afirmao de sua postura ctica, alm da prpria concorrncia universitria. Na verdade, o que se observa que a viso mesmo que tinha Pareto da economia poltica como constituindo uma cincia perfeita, nos moldes da fsica, passaria nesse processo a ser objeto de relativizao. Por ora, contudo, o que importante destacar que, j no Cours dconomie politique, o autor inclua dois captulos mais propriamente sociolgicos, ambos no segundo tomo. Um deles tinha o ttulo de Principes gnraux de lvolution sociale e era o primeiro do livro II, significativamente nomeado Lorganisme conomique. Como j foi dito, uma das noes que estruturam o Cours, e o captulo em particular, a de dependncia mtua, que vem articulada de equilbrio social. As sociedades, argumenta Pareto, se encontravam em geral em estado de equilbrio, modificando-se apenas lentamente, em funo das fortes resistncias que opunham s foras transformadoras. Tratava-se, portanto, uma vez que se obser-

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vavam mudanas, ainda que lentas, de uma situao de equilbrio dinmico, e no esttico. Ocorre porm que, se na mecnica o estado dinmico de um sistema podia ser estudado, de modo completo, por princpios j plenamente consagrados e aceitos, no havia nada equivalente na cincia social, o que obrigava a que, nela, se partisse de consideraes acerca do equilbrio esttico (Pareto, 1964:II, p. 9-10). O que diferenciava um fenmeno social de um fsico, na sua concepo, era que, neste, o conhecimento das foras mutuamente dependentes que agiam sobre um corpo permitia conhecer, de igual modo, o seu movimento, prevendo sua trajetria. J na sociedade, o mesmo conhecimento das foras em interao no conduzia necessariamente, de maneira exata, a uma previso do movimento (Pareto, 1964:II, p. 22). Ainda assim, Pareto considerava a sua analogia da sociedade com um sistema fsico bastante eficaz. Ela dispunha de um poder heurstico maior do que outra, ento em voga, advinda da biologia, e que comparava a sociedade a um organismo vivo (Pareto, 1964:II, p. 26-38). Pareto dedica um bom nmero de pginas de seu livro discusso da extenso da teoria da evoluo de Darwin economia poltica e cincia social, dizendo que ela vinha se dando de forma exagerada. Tenta ele estabelecer distines entre as sociedades humanas e os organismos vivos, e mesmo entre elas e as sociedades de animais. E justamente uma das diferenas que aponta, antecipando aquilo que mais tarde chamaria de circulao das elites, a de que nas sociedades humanas as aristocracias s podem se manter custa de uma renovao constante, incorporando os indivduos das classes inferiores que mais se distinguem.231 Aqui, de modo diverso do que se observava nas sociedades de animais, toda aristocracia fechada, dizia Pareto em uma forma muito prxima tese do isolamento das classes de Mosca, tenderia a se deteriorar (Pareto, 1964:II, p. 29-30 e segs.). No se tratava, na verdade, de invalidar por completo a analogia biolgica, mas sim de indicar que ela, por si s, era insuficiente, e que o modelo fsico abria maiores perspectivas, permitindo caracterizar melhor o princpio da dependncia mtua, do qual alis era derivado. O ttulo que dava Pareto quele que era o segundo captulo sociolgico do Cours, inclusive, era o de La physiologie sociale. Esse captulo o ltimo do livro, antes do resumo final, e vem imediatamente aps um outro que discute a distribuio da renda. Tal ordem no fortuita. A fisiologia lidava, justamente, com a heterogeneidade social. Distintas entre si, as sociedades no conformavam, tambm internamente, um todo homogneo. Essa hetero-

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geneidade, por sua vez, e isso que o autor procura demonstrar, guardava estreita relao com a curva de repartio das rendas (Pareto, 1964:II, p. 347). No se pense, no entanto, que seria possvel extinguir as desigualdades sociais, forando-se um achatamento na curva de distribuio da renda, atravs de mudanas na organizao econmica da sociedade, como propugnavam os socialistas. Essa, na verdade, era uma das teses monocausais que, de maneira equivocada, no levavam em conta a noo de dependncia mtua, localizando to-somente na propriedade privada e no capital a origem de todos os males (Pareto, 1964:II, p. 392-4). Alm disso, observa Pareto, a curva da distribuio da renda, que assumia a forma grfica de uma hiprbole, estreita no topo e ampla na base, em mdia variava muito pouco no tempo e no espao, configurando-se portanto em uma lei universal, transistrica (Pareto, 1964:II, p. 408).232 Dessa maneira, mudanas na organizao econmica, ainda que profundas, podiam no produzir, obrigatoriamente, alteraes significativas na curva (Pareto, 1964:II, p. 363). No seria apenas aqui, e nem somente no Cours, que a teoria socialista seria criticada. De fato, ela se constitua em um dos principais alvos dos ataques de Pareto, infenso que era idia de uma igualdade absoluta entre os homens, e que a ela se voltaria inteiramente em seu segundo livro. certo entretanto que, mesmo redefinindo-as, o autor procurava reter algumas das noes da teoria socialista, principalmente a de luta de classes. Dizia ele concordar que o conceito tinha uma grande importncia em uma perspectiva histrica, at mesmo porque, dada a heterogeneidade social, os indivduos tinham de fato interesses diferentes. Essa luta, todavia, podia se dar de duas formas distintas: a da concorrncia econmica, que era salutar, com efeitos positivos sobre a produo de riqueza; e a tentativa de cada classe social apropriar-se do poder, a fim de fazer dele uma mquina de espoliao. Esta ltima forma poderia sem dvida produzir efeitos deletrios, destruindo a riqueza e assim aumentando a desigualdade de renda, pouco importando aqui se a classe dominante constitusse uma oligarquia, uma plutocracia ou se se tratasse de uma democracia (Pareto, 1964:II, p. 396). Portanto, em qualquer sistema, mesmo os mais igualitrios, em qualquer forma de governo, mesmo as ditas democrticas, poderia ser constituda uma classe espoliadora, pouco interferindo o modo como fosse escolhida ou alcanasse a dominncia. Assim, muito mais importante do que impor essa ou aquela forma de eleio, muito mais importante do que poder escolher em nome de quem se faria a

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espoliao, era evitar a prpria espoliao. certo, porm, ressalvava Pareto, que

quando a classe dominante recrutada por hereditariedade ou por cooptao, o seu jugo mais odioso do que quando ela recrutada por eleio; da no se segue, contudo, que ele seja tambm mais pesado. Ainda no foi devidamente demonstrado que um governo oligrquico tenha sido mais desonesto do que o da municipalidade de Nova York, eleito pelo sufrgio universal. O povo da Toscana era mais feliz e menos espoliado sob o governo absoluto de Leopoldo do que no governo constitucional atual (Pareto, 1964:II, p. 387).

Pareto, como se v, embora caminhe no sentido de uma autonomizao de sua reflexo em relao poltica, e poltica italiana principalmente, a ela permanece, no Cours dconomie politique, ainda bastante vinculado. Assim, seu esforo de relativizao cientfica, nesse trabalho em especial, termina por assumir, igualmente, o tom de um esforo de desqualificao poltica do governo italiano e dos grupos dominantes do pas. Dessa forma, em um outro trecho em que discute os efeitos polticos e sociais das diferenas nas caractersticas e nos mecanismos de recrutamento dos grupos superiores, o autor afirma:

As classes ricas tiveram em todos os tempos, e mesmo sob os regimes democrticos, uma influncia notvel sobre o governo do pas. A maneira pela qual essas classes so recrutadas, quer dizer, o modo como se faz o recrutamento dos titulares das rendas portanto fortemente importante na determinao dos fenmenos sociais. As qualidades que fazem o homem vencer a luta contra as foras da natureza no so as mesmas que asseguram a vitria contra as artimanhas e as emboscadas que emprega a espoliao. Uma sociedade onde, como na Sua ou na Inglaterra, no se chega riqueza a no ser pelo trabalho, a indstria, o comrcio, diferir consideravelmente de outra onde aquela riqueza , em parte, fruto da fraude e de intrigas polticas (Pareto, 1964:II, p. 388-9).

Ao localizar-se em uma rea de interseo entre a poltica e a cincia, o autor se aproxima bastante das formulaes de Mosca, entre elas, por exemplo, a da luta pela preeminncia. Eram recor-

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rentes, segundo Pareto, as dissenses no interior da classe dominante, ou mesmo entre ela e alguma outra. Essas dissenses, por sua vez, poderiam representar um alvio no jugo imposto sobre os sujeitos, na medida mesmo em que, na luta pela dominao, o adversrio mais fraco, como forma mesmo de ascender, procurava apoiar-se nas classes subordinadas, dizendo defender seus interesses. Uma vez alcanado o seu fim, no entanto, ele buscava preservar a sua posio, empregando inclusive os mesmos meios que havia condenado, ainda que com outros nomes. A prpria burguesia, para o autor, era um exemplo disso, tendo, aps conquistar o poder, esquecido de suas palavras de ordem. A diferena que se podia apontar era que, agora, os antigos e ilegtimos meios de espoliao, renomeados, passaram a ser julgados legtimos pelos novos dominadores (Pareto, 1964:II, p. 388). Em outros termos, da perspectiva de Pareto, e como j vimos da de Mosca tambm, o liberalismo, a democracia, a igualdade haviam sido, simplesmente, armas da burguesia na sua luta pelo poder, armas que havia abandonado, ato contnuo, em proveito de prticas caractersticas do Antigo Regime, as mesmas que antes condenava. diferena de seu contemporneo siciliano, porm, o Pareto do Cours dconomie politique via nas mazelas vividas o resultado do abandono dos princpios liberais, e no suas conseqncias lgicas, inevitveis. Esse ponto fundamental, relacionando-se ao fato de que, na verdade, no teria havido uma ruptura radical na passagem de Pareto da poltica para a cincia. De fato, como j se pde ver, seu ingresso na economia se deu como decorrncia mesmo de sua militncia poltica livre-cambista. Nesse sentido, sua ateno no incidiu sobre qualquer vertente econmica, e sim sobre a economia pura que, mais do que simplesmente uma base matemtica, tinha como uma de suas hipteses centrais a idia de que o mercado auto-regulado. Isso significa dizer que, ao buscarem maximizar seus interesses, os indivduos maximizariam tambm a produo de riquezas, tendendo a um timo. A condio sine qua non para que isso ocorresse, no entanto, era a excluso da interveno de qualquer fora externa ao mercado, como o Estado. Para Pareto, por conseguinte, fundar cientificamente a economia pura significava tambm, em contrapartida, fundar teoricamente a postura poltica livre-cambista. Desse modo, era sob a forma mesma do distanciamento, baseado na transposio do paradigma fsico e na obedincia a um rigoroso tratamento matemtico, que se mostrava o engajamento do autor.233

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A publicao do Cours dconomie politique embalou a rpida ascenso de Pareto em Lausanne. Como se viu, ele entrou para a universidade em 1893, como professor extraordinrio, e j no ano seguinte foi efetivado como ordinrio. Em 1896, ano tambm da primeira edio do Cours, o autor foi escolhido deo da faculdade de direito, o que equivalia a tornar-se seu diretor.234 O mesmo caminho da ascenso, no entanto, o conduziu a um isolamento dentro da universidade. Por sua formao, por sua nfase matemtica, por seu empenho em tornar a economia poltica uma cincia natural, Pareto comeou a perceber-se, e a ser percebido, como j havia ocorrido com Walras, como um corpo estranho dentro da faculdade de direito, limitado pela prpria base dos alunos, que julgava insuficiente (Biaudet, 1965: 43). Assim, enquanto ultimava a publicao do Cours, o autor escrevia a Pantaleoni dizendo que, se a economia poltica que podia ser ensinada era uma tolice, no havia sentido em obrigar os alunos a aprend-la. E conclua:

O ensino da economia poltica dentro de uma faculdade de direito s pode ser muito elementar. Apenas em uma escola superior de cincias sociais que poder ser ensinada a verdadeira cincia econmica (apud Busino, 1964:xxii).

Pareto, que havia fracassado na poltica partidria de seu pas, investiu, em seus primeiros anos de Lausanne, na poltica universitria. Galgando a posio de deo, ele apostou seu prestgio e seu poder na tentativa de promover reformas no ensino de cincias sociais, tendo em vista uma maior autonomia em relao ao curso de direito, bem como abrir espao para uma efetiva nfase matemtica. Seu projeto, no entanto, esbarrou na firme resistncia dos demais professores. Alm disso, viu Pareto, na mesma poca, dois de seus amigos italianos serem preteridos aos cargos de professor das cadeiras de sociologia criminal e de direito penal pblico, na mesma Universidade de Lausanne, para os quais ele prprio os havia indicado.235 Associado a tudo isso, e agravando tudo isso, estava o fato de que, em sua trajetria ascendente, Pareto terminou entrando em rota de coliso com Walras que, embora aposentado, continuava vinculado a Lausanne como Honorarprofessor, exercendo forte influncia (Schumpeter, 1952:75; 1964:133). Cabe salientar, como acentua

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Schumpeter, que, at o Cours dconomie politique, Pareto se havia mantido, basicamente, dentro dos marcos tericos lanados por Walras, passando a apresentar idias mais originais apenas a partir de 1897.236 Ao se projetar, portanto, o autor entrou em concorrncia com Walras, negando sua condio de herdeiro. J em 1896 as divergncias entre os dois eram referncia constante nas cartas de Pareto a Pantaleoni. Assim, pouco aps a publicao do Cours dconomie politique, o autor escrevia ao amigo a respeito de uma resenha do livro, que havia sido indicada pelo prprio Walras:

Walras teve a feliz [o grifo de Pareto] idia de aconselhar o diretor da Gazetta di Losanna a mandar um cretino escrever um artigo sobre o meu livro, que afirma que a matemtica no serve em nada para a cincia econmica, e me considerando pouco menos do que um asno porque quero fazer da economia poltica uma cincia natural. Ri muito e ainda rio do que aconteceu. Walras vive agora nas nuvens com a sua metafsica, mais parecendo um astrnomo que caiu em um poo.237

E mais tarde, comentando um artigo publicado em La Revue Socialiste, em que Walras defendia idias estatistas e a necessidade de uma conciliao entre liberalismo e socialismo, Pareto dizia:

Se acontecer de cair em suas mos a Revue Socialiste de abril, leia um artigo de Walras. No vale absolutamente nada. Eu no teria feito nenhum comentrio, mas como ele quis ter a minha opinio, tive de dizer-lhe a verdade.238

Nesse quadro, Pareto passou a vivenciar Lausanne como um ambiente extremamente negativo, tacanho, estril. Novamente escrevendo ao amigo Pantaleoni, portanto, ele observava:

No h ningum aqui com quem conversar. Estes pobres de esprito consideram as discusses coisas inteis, das quais nada se tira. Tolices. A utilidade da discusso consiste no aquecimento das idias, de onde nascem os novos conceitos. Essa ginstica me faz falta aqui. Estou me embotando! (apud Busino, 1964:xxii).

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Sentindo-se isolado, Pareto, de forma lenta e progressiva, afastou-se do ensino regular de economia poltica para dedicar-se aos seus livros, o que era justificado, em parte, tambm por sua doena cardaca. Esse processo coincidiu, igualmente, com o recebimento em 1898 de uma grande herana de seu tio Domenico, que no tinha filhos, o que lhe garantiu independncia financeira e lhe permitiu retirar-se para a vila de Cligny, em 1901. Por outro lado, nesse mesmo ano, sua situao pessoal se agravou ainda mais, sendo abandonado por sua mulher enquanto se encontrava em Paris, ministrando um curso na cole des Hautes tudes Sociales.239 Frustrado em seu intento de promover reformas no ensino de cincias sociais em Lausanne, sem fora suficiente para impor a nomeao de pessoas a ele ligadas para cadeiras vagas na universidade, afastado de seu predecessor, isolado pessoalmente, e tudo isso agravado por seu mal cardaco, Pareto, agora escorado em uma confortvel situao financeira, tomou um caminho que j lhe era conhecido.240 Do mesmo modo que no caso de sua ruptura com a Itlia, o autor optou pela sada. Nesse momento, entretanto, no se tratava de um abandono do pas, mas sim de um alheamento, de um enclausuramento em Cligny, de uma reduo drstica de suas viagens e de um progressivo afastamento do ensino regular de economia poltica. Assim como antes, a nova sada de Pareto no o conduziu ao abandono, a uma abdicao atividade intelectual, sendo, ao contrrio, identificada como fundamental para a sua intensificao. Em uma carta ao chefe local do Departamento de Instruo Pblica, em 1899, ele encaminhava o seu pedido de demisso de Lausanne, alegando que suas pesquisas cientficas, cada vez mais absorventes, impunham-lhe a necessidade de renunciar s atividades de professor (apud Busino, 1963:279). Longe de resultar em uma ruptura com a universidade, porm, o que o pedido de demisso de Pareto produziu foi um reforo de sua posio, conferindo-lhe ainda alguns privilgios. Temerosas de que a sua sada pudesse afetar o prestgio de Lausanne, as autoridades o mantiveram na condio de professor titular, concederam-lhe competncia exclusiva no que tocava aos exames universitrios, o que significava poder impor padres prprios de avaliao dos alunos, e reduziram a sua carga de trabalho, destinandolhe apenas uma hora semanal de curso. Mais do que isso, foi criada em 1902 uma formao especfica em cincias sociais, a cargo no apenas da faculdade de direito, mas tambm da de letras (Biaudet, 1965:45).

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O isolamento de Pareto em Cligny portanto no foi total, prosseguindo ele com seus cursos, ainda que de forma menos intensa, mantendo-se, como se percebe por sua correspondncia, bastante preocupado com os acontecimentos sua volta. Alm do mais, sua vila tornou-se plo de atrao de diversos intelectuais, que para l afluam em busca de discusso. Apesar disso, a imagem que se foi impondo de Pareto, a partir daqui, foi a do eremita, do pensador solitrio e, por isso mesmo, do intelectual absolutamente original, brilhante. O que se percebe de fato que o retiro, determinado em grande parte pela frustrao com o magistrio, por problemas pessoais, e possibilitado pela herana de seu tio, foi sendo redefinido, apresentado como opo racional de busca de objetividade, elemento bsico para a produo de um trabalho verdadeiramente cientfico, autnomo, independente, tanto no sentido da imparcialidade, quanto no do ineditismo, da inexistncia de vnculos significativos com antepassados, de uma reflexo que no era resultado de uma herana intelectual. E aquele que era apresentado como fruto mais caracterstico dessa ascese cientfica era, justamente, a sua sociologia. Assim, em uma carta de 1907 a Pantaleoni, quando iniciava a redao do Trait de sociologie gnrale, concebido a princpio como um manual de sociologia, Pareto qualificava o afastamento da poltica e o isolamento como fundamentais para a sua atividade cientfica:

Isso me foi demonstrado pela minha prpria experincia. Embora eu tivesse em mente fazer, modificar praticamente a vida social, enquanto vivi em meio aos partidos, no entendi nada a sociologia; s quando abri mo de todo e qualquer desejo de uma ao prtica, comecei a entender alguma coisa de sociologia; e essa alguma coisa, por pouco que seja, suficiente para que eu perceba os pensamentos que tinha em outros tempos como privados de senso comum, como estpidos. Os meus conhecimentos em pouco foram acrescidos. Na minha idade, a inteligncia declina, no cresce; portanto, o fenmeno no pode ter relao com outra coisa seno com o meu gnero de vida.241

E em 1916, j aps a publicao do Trait, Pareto voltava ao mesmo assunto:

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Para estudar as doutrinas sociais sob o aspecto exclusivamente experimental, era preciso que eu fosse um homem que se separasse inteiramente do mundo, de modo a no ter em vista, nem sequer indiretamente, nenhum efeito prtico, e que se subtrasse influncia que amigos e conhecidos pudessem vir a exercer. Quis o destino que exatamente esse homem se retirasse para o ermo de Cligny e teria sido ainda melhor que ele tivesse se retirado para um lugar ainda mais afastado (...) No sei se a minha Sociologia uma obra que vale ou se no vale, e no compete a mim decidir isso; seja como for, porm, certo que ela o fruto das minhas condies especiais e que foi e para mim uma sorte toda especial poder viver em Cligny, longe dos rudos do mundo.242

Retomando, porm, o fio da trajetria de Pareto, o que se v que sua nova posio, seu isolamento, deixou a princpio, como marcas indelveis em seus textos, a associao de um carter ctico, crtico ao extremo, com um sarcasmo acentuado, que alis configuraria a forma com que em geral identificado.243 Esse ceticismo, esse sarcasmo, essa crtica, na verdade, foram mesmo dirigidos para suas antigas vises polticas, que foi abandonando em proveito de uma postura eminentemente antidemocrtica e anti-humanitarista.244 Seu prprio racionalismo, sua crena no progresso, por essa via, terminaram sendo objeto de questionamento.245 Em uma de suas cartas a A. Antonucci, datada de 1907, Pareto dizia:

Eu no tinha qualquer noo de que as minhas argumentaes eram tentativas de dar uma roupagem lgica a crenas que eram, fundamentalmente, de natureza emocional (apud Parsons & Allais, 1968:399-400).

Pareto estenderia essa percepo para a sociedade como um todo, conformando uma das principais bases de sua sociologia, qual passou a dedicar parte crescente de seu tempo, na medida mesmo em que se deslocava da economia poltica.246 J em um artigo do incio dos anos 1900, ele observava:

O homem, impelido a agir por motivos lgicos, ama ligar logicamente suas aes a certos princpios para, ele imagina, a posteriori justific-los. O homem que, desse modo, engana os outros

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por suas prprias afirmaes comeou por enganar a si mesmo e cr firmemente naquilo que afirma (Pareto apud Busino, 1966:24).

Eram os sentimentos e os instintos que, basicamente, impulsionavam o homem. Como, todavia, ele tinha a necessidade de revestir suas aes de um carter lgico, racionalizava-as posteriormente, buscando para elas uma justificativa e invertendo a ordem dos fatos, como se tivesse sido a razo o elemento propulsor. Isso explicava por que determinadas teorias, propostas, projetos, apesar de logicamente fundados, como acreditava Pareto ser o caso dos seus, podiam no ser aceitos. Por outro lado, tambm permitia entender por que alguns sistemas de idias, apesar de comprovadamente equivocados, logicamente incorretos, experimentavam altas taxas de adeso. De fato, o que parecia estar em jogo para Pareto nessas formulaes era, principalmente, a tentativa de dar conta da defasagem entre o seu efetivo reconhecimento e as suas expectativas. A partir dessa tentativa que se pode, em larga medida, compreender a sociologia de Pareto, bem como a forma como ela foi se impondo, ocupando suas atenes de forma crescente. Assim que, mesmo em seu segundo livro, Les systmes socialistes, inteiramente dedicado crtica ao socialismo e que no por acaso foi identificado por alguns comentadores, como Bousquet (1928:103), como a origem da sua sociologia, Pareto inclua algumas formulaes que mais soavam como ajustes de contas com seu passado racionalista e liberal. No ltimo captulo ele observava:

Afirmar que uma certa medida aumentar o bem-estar da sociedade e afirmar que essa medida aplicvel, ou ser aplicada, so duas coisas essencialmente diferentes. No entanto, toda escola que quer tomar parte ativa na poltica social levada, quase necessariamente, a confundi-las. No se pem os homens em ao a no ser pela f, e bem difcil induzir os outros a professar uma f que no partilham. natural, portanto, que o partido liberal tenha f na realizao prxima dos princpios que proclama, mas preciso confessar que, sob esse ponto de vista, ele praticamente no teve sucesso. Seus princpios podem ser intrinsecamente teis sociedade, mas claro que devem conter algo que repugna natureza dos homens, tal como existem hoje, uma vez que estes deles se afastam cada vez mais (Pareto, 1965:II, p. 418-9).247

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Les systmes socialistes foi editado originariamente em francs, em dois volumes, nos anos de 1902 e 1903.248 Pareto, dessa vez, publicou seu livro em uma coleo intitulada Bibliothque Internationale dconomie Politique, por uma editora comercial, no-universitria, de nome ditions V. Giard & E. Brire. A idia do trabalho havia sido gerada a partir de discusses com Pantaleoni acerca de alguns pontos especficos levantados no Cours dconomie politique.249 Tratava-se de uma anlise crtica do socialismo que, ento, experimentava um sucesso considervel.250 Como observava Pareto em sua introduo, hoje quase todo mundo adula os socialistas, porque eles se tornaram poderosos (Pareto, 1965:61). Esse sucesso, essa adeso ao socialismo, porm, na sua acepo, se afigurava como um ato de f, constituindo-se ele portanto, como de resto tambm Mosca j havia acentuado, em um novo credo, em uma nova religio, vindo da a base de sua aceitao (Pareto, 1965:I.63). Ningum se tornava socialista, dizia Pareto, pelo fato de ter sido persuadido por um argumento lgico-racional. Ao contrrio, era-se persuadido por um argumento lgico-racional porque se era socialista (Pareto, 1965:I, p. 21). E isso era to mais verdadeiro, como procurava Pareto demonstrar, quanto a doutrina socialista era logicamente, racionalmente infundada. Comeava ele, entretanto, esclarecendo que no era alimentado por outro interesse que no o puramente cientfico e que, ao contrrio do marxismo, visava apenas a explicar, e no a arrebanhar adeptos. No buscava, em suas palavras, defender ou combater qualquer doutrina ou tendncia, mas to-somente encontrar a verdade, uma verdade absoluta, a nica existente para a cincia (Pareto, 1965:I, p. 2). Essa verdade, prosseguia Pareto, s podia ser alcanada por uma investigao desapaixonada, que deixasse de fora os sentimentos, que seguisse um padro rigidamente objetivo. Cincia e sentimento eram incompatveis. Nenhum matemtico, por exemplo, incorreria no absurdo de buscar demonstrar um teorema apelando para os imortais princpios de 1789, ou para a f nos destinos da ptria (Pareto, 1965:I, p. 2-3). claro, porm, que, por no ser o homem apenas racional, a total eliminao dos sentimentos da cincia se constitua em uma tarefa bastante difcil:

Cada um de ns tem em si um adversrio secreto, que trata de impedi-lo de seguir aquela via e de se abster de misturar seus

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prprios sentimentos s dedues lgicas dos fatos. Ao assinalar esse problema em geral, sei bem que dele no estou isento. Meus sentimentos me conduzem no sentido da liberdade; tomo, portanto, o cuidado de reagir contra eles mas, em o fazendo, pode ser que eu tenha passado da medida e que, temeroso de dar um peso demasiado aos argumentos em favor da liberdade, eu no lhes tenha dado bastante. Do mesmo modo, possvel que, com medo de depreciar demais os sentimentos que no partilho, eu tenha, ao contrrio, lhes dado um valor excessivo. Em todo caso, no estando perfeitamente certo de que essa fonte de erro no existe, era meu dever apont-la ao leitor (Pareto, 1965:I, p. 5-6).

Pareto erigiu sua crtica ao socialismo sobre a base da noo de elite, que aqui j aparecia de forma intercambivel com aristocracia, tendo a sua origem em uma extenso, aos diversos campos sociais alm do econmico, daquilo que se observava na curva de distribuio da riqueza. Essa curva, afirmava o autor, conformava uma pirmide social, ocupada no topo pelos ricos e na base pelos pobres. Tal era a forma imutvel de todo organismo social. Dizer, no entanto, que a forma do organismo social era imutvel no significava afirmar que, internamente, no pudesse haver alteraes de posio. Na verdade, assim como no organismo vivo, suas molculas no permaneciam em repouso, observando-se movimentos mais ou menos intensos, com indivduos decaindo e ascendendo. O mesmo padro de distribuio da riqueza, observava Pareto, era coextensivo s aptides humanas de maneira geral, boas ou ms, como a inteligncia, a musicalidade, a capacidade matemtica, a truculncia, a intrujice e assim por diante. Formavam-se, portanto, diversas curvas semelhantes da distribuio da riqueza, que permitiam dispor os homens em camadas segundo determinadas caractersticas. Por outro lado, a posse de cada uma dessas caractersticas, em maior ou menor grau, era o que determinava o sucesso ou o fracasso de um indivduo na busca e na conservao da riqueza, de acordo com o momento e com a sociedade. Desse modo, o fato de algum ocupar o topo da pirmide da genialidade matemtica no implicava, necessariamente, que ele se situava na mesma posio quanto distribuio da riqueza (Pareto, 1965:I, p. 6-8). Havia, porm, uma curva na qual se observava uma coincidncia entre as posies ocupadas pelos indivduos em relao da riqueza; era a do poder ou da influncia poltica e social. Os indivduos que ocupavam o topo dessas pirmides que constituam uma elite:

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Mas se dispusermos os homens segundo o seu grau de influncia e de poder poltico e social, nesse caso, na maioria das sociedades, sero, ao menos em parte, os mesmos homens que ocuparo o mesmo lugar nessa figura e na da distribuio da riqueza. As classes ditas superiores so tambm, em geral, as mais ricas. Essas classes representam uma elite, uma aristocracia (no sentido etimolgico de melhor). Enquanto o equilbrio social for estvel, a maioria dos indivduos que as compem aparece como eminentemente dotada de certas qualidades, boas ou ms, que asseguram o poder [os grifos so de Pareto] (Pareto, 1965:I, p. 8).

Pareto procura, como se v, invalidar a frmula segundo a qual a distribuio da riqueza que determinava no apenas o poder poltico, mas para utilizar uma expresso do vocabulrio marxista toda a superestrutura da sociedade, e como j havia sustentado no Cours dconomie politique um achatamento naquela acarretaria uma equalizao do poder e da influncia poltica e social. Ao contrrio, dizia o autor, a concentrao do poder e da influncia que facultava a produo e a conservao da desigualdade na distribuio da riqueza. claro que uma afirmao como esta nos poderia levar concluso de que a democracia, a soberania popular, o poder da maioria conduziria, efetivamente, ao fim das desigualdades sociais. E assim seria, de fato, se os homens fossem iguais. Ocorre porm que, na acepo de Pareto, no eram. As qualidades, boas ou ms, que determinavam o acesso ao poder, bem como a sua manuteno, e assim o enquadramento na elite, tambm eram desigualmente distribudas, e a pela prpria natureza humana. Portanto, enquanto Mosca, de origem e de capital social inferiores, chegou noo de classe poltica atravs de uma reflexo sobre os mecanismos sociais e polticos de acesso e manuteno do poder, enfatizando a importncia, para a sociedade moderna, do princpio do mrito, do esforo e do empenho pessoais, Pareto, de origem aristocrtica e alto capital social, formulou o conceito de elite a partir da demonstrao da inevitabilidade da desigualdade social, fundando-a, porm, no que era uma distino essencial em relao s no-elites. Assim, no por acaso ele identificava elite a aristocracia, ainda que procurasse neutralizar o termo, objetiv-lo, remetendo-o sua raiz etimolgica, que era a de melhor. Ocorre que melhor ou aristocracia guardava aqui mais um sentido absoluto do que relativo, uma vez que referido quilo que era imutvel: a natureza humana.251

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Remeter as desigualdades sociais natureza humana, embora implicasse concluir que sempre houve e sempre haveria elites, no significava perceber a sociedade como absolutamente esttica. Como se viu, no eram sempre os mesmos indivduos que ocupavam o topo da pirmide social. As elites se alternavam por um processo que Pareto denominou circulao e que constitua um princpio fisiolgico fundamental para a sade do corpo social.

Um fato de extrema importncia para a fisiologia social o de que as aristocracias no duram. Todas elas passam por uma decadncia mais ou menos rpida. Ns no temos que pesquisar aqui as causas desse fato, sendo-nos suficiente constatar a sua existncia, no apenas para as elites que se perpetuam pela hereditariedade, mas tambm, ainda que em um grau menor, para as que se recrutam por cooptao (Pareto, 1965:I, p. 9).

Uma das formas atravs das quais a circulao se operava era a da simples extino de uma elite por morte. Mas havia outras formas possveis, sendo uma delas a que decorria da degenerao dos elementos que a compunham. Aqui, como ocorre com qualquer animal vivo, a elite s poderia sobreviver custa da substituio de seus elementos degenerados por outros novos. Do mesmo modo que no organismo, por conseguinte, cessando a circulao, a elite entraria em necrose e morreria (Pareto, 1965:I, p. 9 e11). Mais do que isso, o prprio equilbrio social, nesse caso, que estaria comprometido, tornando a sociedade vulnervel a distrbios, invases ou revolues, que poderiam levar uma nova elite ao poder. Nas palavras de Pareto:

Um simples atraso naquela circulao pode ter um efeito de aumentar consideravelmente o nmero de elementos degenerados que pertencem s classes que ainda possuem o poder e de aumentar, por outro lado, o nmero de elementos de qualidade superior das classes sujeitas. Nesse caso o equilbrio social se torna instvel; o menor choque, venha do exterior ou do interior, o destri. Uma conquista ou uma revoluo levam tudo a uma desordem, alando ao poder uma nova elite, estabelecendo um novo equilbrio que permanecer estvel por um perodo mais ou menos longo (Pareto, 1965:I, p. 11).

A histria para Pareto, diante disso, nada mais era do que um movimento cclico de alternncia de elites. A cada elite que

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galga o poder corresponderia um perodo de equilbrio, seguido de um processo inexorvel de decadncia e de ascenso de uma nova elite. Este era, de fato, o movimento geral da sociedade, e a luta de classes, que o marxismo via como motor da histria, embora verdadeira, nada mais era do que um caso particular desse movimento:

A luta de classes, sobre a qual Marx dirigiu especialmente a sua ateno, um fato real, do qual encontramos traos a cada pgina da histria, mas ela no tem lugar apenas entre duas classes: a dos proletrios e a dos capitalistas; pode ser vista entre uma infinidade de grupos que tm interesses diferentes e, sobretudo, entre as elites que disputam o poder (Pareto, 1965:I, p. 117-8).

Por outro lado, se todas as sociedades eram marcadas por um movimento constante de circulao de elites, era possvel afirmar que a revoluo socialista, na verdade, era um processo de substituio de uma elite por outra. Desse modo, a sociedade sem desigualdades e sem lutas nunca seria alcanada. Nas palavras de Pareto:

De resto, todos os revolucionrios proclamam, sucessivamente, que as revolues passadas no fizeram mais do que enganar o povo; apenas aquela que eles tinham em vista que seria a verdadeira revoluo. Todos os movimentos histricos dizia, em 1848, o Manifesto do partido comunista foram, at aqui, movimentos de minorias. O movimento proletrio o movimento espontneo da imensa maioria em proveito da imensa maioria. Infelizmente, esta verdadeira revoluo, que deve trazer aos homens uma felicidade sem turbulncias, no mais do que uma miragem decepcionante, que jamais se torna realidade; ela se assemelha idade do ouro dos milenaristas; sempre esperada, sempre se perde nas brumas do devir, sempre escapa aos seus fiis no momento mesmo em que crem t-la [os grifos so de Pareto] (Pareto, 1965:I, p. 60-1).

Mesmo sendo um fenmeno objetivo, a circulao das elites no era por ns assim reconhecida. Ocorre que, em funo de nossas paixes e preconceitos, lanamos sobre a realidade um vu que nos impedia de perceb-la como era. Havia, por isso mesmo, que se fazer uma distino entre um fenmeno objetivo e a forma como nosso esprito o percebia, o que, por si s, constitua um outro fenmeno, que se chamava de subjetivo (Pareto, 1965:I, p. 15).

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Essa distino entre fenmeno objetivo e subjetivo era fundamental, permitindo-nos entender por que, freqentemente, nos iludimos em relao a nossas aes, considerando-as fruto da racionalizao quando, de fato, eram resultado de instintos (Pareto, 1965: I, p. 21-2). Por ela compreendemos, igualmente, por que a maioria dos homens que tomam parte ativa em movimentos polticos, ao invs de perceberem que, desse modo, buscam de fato vantagens para si mesmos ou para sua classe, imaginam-se, com a mais absoluta boaf, lutando por outras classes desfavorecidas ou por altos ideais humanitrios, pela justia e pela liberdade (Pareto, 1965:I, p. 36). interessante observar que Les systmes socialistes parte de uma aparente contradio. Por um lado, o livro se inscreve em um quadro de questionamento do racionalismo. No pela razo, como se viu Pareto sustentar, que os homens so movidos, mas sim pela f, pelos sentimentos. Dessa forma, a difuso do socialismo devia ser creditada ao seu carter milenarista, promessa de um novo tempo de felicidade, de uma idade do ouro, ao fato, enfim, de se constituir em um novo credo. Por outro lado, porm, o autor, para afirm-lo, se coloca em um patamar distinto do da religio, que era o da cincia, a partir do qual procura, lgica e experimentalmente, demonstrar sua tese. Seu nico interesse, acentua ele, era o de encontrar e evidenciar a verdade. O que se pode perceber primeira vista que Pareto estava investido de um sentido da cincia enquanto atividade autnoma, distinta da poltica e da religio. Seu objetivo era no o de encantar, seduzir, revelar ou converter, mas sim e to-somente explicar determinados fenmenos, desvel-los, encontrar e demonstrar a verdade. Era basicamente a seus pares portanto que Pareto estava se dirigindo, restringindo-se aos limites da cincia e operando, em conseqncia, com uma lgica de concorrncia distinta da que se observava entre seitas, igrejas e partidos. Tal procedimento se mostrava to mais justificado quanto seu adversrio, o materialismo histrico, reivindicava para si mesmo o status de doutrina cientfica. Combat-lo nesse campo, assim, significava caracteriz-lo como desprovido de base lgica e experimental, o que o levava a concluses incorretas. Significava, ainda mais, deslegitim-lo, negar-lhe o reconhecimento como discurso cientfico, apresentando-o como um novo credo e explicando, a partir da, o seu sucesso. H aqui um elemento que deve ser destacado: o de que, para se opor ao marxismo, que adotava uma terminologia emprestada em parte mecnica, empregando termos como infra e superestrutura, motor da histria, foras produtivas e assim por diante, Pareto

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terminou baseando seu argumento, claramente, na analogia biolgica que, no Cours dconomie politique, havia sustentado ser menos reveladora do que a fsica. Sua noo de circulao das elites, como se viu, tinha um evidente referencial fisiolgico. Na verdade, se poderia ir mesmo mais longe, observando ser tambm mdica a sua marca, lembrando que o Pareto de Les systmes socialistes era j aquele autor atormentado pelo mal cardaco, por seus problemas circulatrios. Ao mesmo tempo, privilegiar a analogia biolgica, nesse caso, associava-se abdicao definitiva de qualquer veleidade progressista que se pudesse ter, centrando a ateno no funcionamento do organismo social e nas condies do seu equilbrio fisiolgico. Se a sociedade se constitua em uma determinada forma, alter-la seria violentar a sua natureza, ofender seu cdigo gentico, comprometendo seu estado de sade, pondo-a em risco de vida. preciso atentar, contudo, para o fato de que, ainda que Pareto o negasse ou mesmo no o colocasse como objetivo explcito, desqualificar o marxismo cientificamente, ento, significava, de igual modo, contribuir para a sua deslegitimao poltica. Afinal, se ele vinha se difundindo de forma patente, isso se dava no propriamente em termos acadmicos, mas sim polticos.252 E sua fora poltica advinha, em grande parte, de sua promessa de um novo tempo, um tempo de justia e de igualdade entre os homens, um tempo de abundncia. Esse tempo, todavia, e isso fundamental, era apresentado no como um desejo, ou como uma utopia, mas como o destino inexorvel da humanidade, como uma verdade cientfica inarredvel. Mais do que um alentado tratado cientfico, portanto, Les systmes socialistes pode ser visto tambm como um instrumento de disputa poltica. Tratava-se, contudo, de um instrumento cujas condies de eficcia estavam diretamente relacionadas sua noidentificao como tomada de posio poltica, sua percepo como um trabalho objetivo e desinteressado. Compreende-se, assim, como Pareto podia ser apropriado politicamente por aqueles que se opunham ao socialismo, como mais tarde seria o caso dos fascistas. Do mesmo modo, entende-se como o autor, atravs de seus trabalhos, alm de notoriedade cientfica, podia ainda que no fosse esta a sua meta declarada, assumida, ou justamente por isso acumular prestgio e reconhecimento polticos, sem que de fato um viesse necessariamente a neutralizar o outro.

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Na verdade, a prpria maneira como foi construdo Les systmes socialistes sugere que, atravs dele, Pareto dirigia-se no apenas a seus pares cientficos. De modo diferente do Cours dconomie politique e mesmo dos trabalhos posteriores, o livro no foi dividido em pargrafos numerados, a forma, como j se viu, que o autor considerava mais indicada para um texto cientfico. Essa questo aponta para uma diferena fundamental entre Pareto e Mosca. Enquanto este, poltico de carreira e portador de uma concepo normativa da cincia, apresentava suas idias como elementos para a elaborao de uma poltica cientfica, conferindo a elas a feio de tomadas de posio, Pareto se afirmava como um pensador imparcial, objetivo, cujo nico mvel era a busca da verdade, enquadrando-se no padro de cincia autnoma que ento se impunha, ainda que isso no significasse, de fato, que seus textos fossem isentos de conseqncias polticas. Enquanto Mosca, portanto, era identificado como uma posio, um agente em luta no campo poltico, subordinando suas idias a essa luta e, por isso mesmo, dificultando sua difuso e seu reconhecimento cientficos, limitando o escopo de seus textos, Pareto, ao contrrio, assumia a imagem do pensador neutro, independente, voltado exclusivamente para a cincia como um campo autnomo, distinto da poltica, o que lhe facilitava o trnsito por reas diversas. Impondo-se dessa forma, Pareto podia, igualmente, ser reconhecido como um pensador original, mesmo quando suas idias eram claramente influenciadas pelo prprio Mosca, como era o caso de algumas das contidas em Les systmes socialistes. Este um ponto importante pois, como se pde perceber, a concorrncia de Pareto com os socialistas guardava estreita relao com a elaborao de suas teses sobre as elites e sua circulao. Na sua disputa com os socialistas, contudo, Pareto lanava mo de algumas das idias de Mosca, cujos Elementi di scienza politica conhecia, sem no entanto lhe dar o devido crdito, provocando a reao deste.253 De fato, vrias das formulaes de Pareto so muito prximas das de Mosca, a comear pela prpria leitura do socialismo como um credo e, de maneira geral, por alguns elementos centrais de sua crtica a ele. Pareto, no entanto, faz apenas uma meno aos Elementi, em um trecho de menor importncia e j quase no final do livro, no reconhecendo nenhuma dvida intelectual significativa para com o outro autor (Pareto, 1965:II, p. 433). Sem reconhecer em Mosca um antecessor, e no apenas em Les systmes socialistes, mas em seus textos de maneira geral, Pareto o obrigou a um incessante exerccio de reao, de manifestao,

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de reivindicao de sua autoria e da novidade de suas idias. Mosca, portanto, ainda que tivesse primeiro formulado a tese elitista, no foi assim percebido, vendo-se compelido a reafirmar, a demonstrar constantemente sua primazia, sua anterioridade. Pareto, por seu turno, nada precisava provar, sendo naturalmente reconhecido como um pensador brilhante, original, autnomo, independente. interessante notar, contudo, que, se Pareto reconhecido como um pensador independente, ele o tambm como efeito de seu trabalho de afirmao. J se viu como, logo na introduo a Les systmes socialistes, o autor observava que seus sentimentos o impeliam no sentido da liberdade. E mais tarde, em 1907, em uma carta a A. Antonucci, Pareto qualificava a independncia como um trao constitutivo de seu carter, de sua natureza, e no algo adquirido:
Meus sentimentos me levam evidentemente no sentido daquela independncia individual que, um tempo, teve o nome de liberdade. Eu tinha 16 anos quando tive a ocasio de ler dois autores de concepes opostas: Bossuet e Bastiat. O primeiro me descontentou amplamente; o segundo satisfez de modo pleno minhas convices, que eram contrrias s das pessoas em meio s quais eu vivia, o que me permite dizer que elas no foram adquiridas, sendo sim conseqncias do carter que tinha desde o meu nascimento (apud Busino, 1966:9).

Identificando-se, portanto, como independente, Pareto foi sendo assim tambm identificado. Essa sua imagem foi reforada ao longo dos anos 1900, com seu progressivo isolamento em Cligny, com suas manifestaes crescentemente cticas, e foi com ela, justamente, que Pareto alcanou maior notoriedade no meio cientfico. Um trabalho caracterstico desse perodo, alm de Les systmes socialistes, foi o Manuel dconomie politique. Ao contrrio dos anteriores, esse livro foi publicado inicialmente na Itlia, em 1907, vindo a primeira edio em francs apenas em 1909.254 Segundo Schumpeter, o Manuel representava um avano efetivo em relao a Walras, constituindo-se, no que dizia respeito economia pura, no ponto mais elevado atingido por Pareto (Schumpeter, 1949:157). Se, contudo, o livro marcava a mais alta posio alcanada por Pareto na economia poltica, ao mesmo tempo sinalizava o crescente investimento do autor na sociologia. O ano de sua publicao, 1907, foi tambm o da aposentadoria de Pareto em Lausanne, onde passou a proferir apenas algumas palestras anuais sobre sociologia.255 Foi aquele, igualmente, o ano em que o autor iniciou a redao do seu Trait de sociologie gnrale, que concluiu em 1912.256

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No por acaso, portanto, Pareto comea o Manuel referindose queles que se dispunham a estudar a economia poltica e a sociologia e que tinham, segundo ele, trs mveis principais. O primeiro era o de reunir receitas teis atividade econmica e social, tanto para as autoridades pblicas quanto para os homens em geral. O segundo era o de promover o bem e o aperfeioamento dos homens e da sociedade, disseminando uma doutrina que se acreditava ser excelente. O terceiro, afinal, era to-somente o de encontrar as uniformidades nos fenmenos, suas leis, sem que se tivesse em vista nenhuma utilidade prtica direta, sem qualquer preocupao em prescrever receitas ou buscar o bem para uma ou qualquer das partes da humanidade. O objetivo aqui, como de fato o que cabia cincia, era pura e simplesmente conhecer, explicar. Era neste ltimo caso que Pareto enquadrava seu livro. Seu esforo ali, portanto, era no sentido de manter-se em uma linha de objetividade, procurando no influenciar ou convencer o leitor (Pareto, 1966b:1-3). Como se v, Pareto mais uma vez investe em uma postura distanciada da cincia, marcando seu afastamento de sua antiga postura aberta de interveno poltica. Nesse caso, entretanto, mais do que a repetio ou o reforo de pontos de vista j expressos, o que estava em jogo, atravs de um esforo de relativizao, era uma estratgia de neutralizao de reaes negativas a algumas de suas formulaes mais duras em relao igualdade, ao humanitarismo e necessidade do emprego da fora. Por isso mesmo que Pareto, em grande parte, dedicava vrias pginas do Manuel a uma reflexo sobre o lugar dos juzos e para usar uma expresso ao seu gosto das aes morais na cincia. Tratava-se, segundo o autor, de questes que, embora no estivessem separadas na realidade, no deviam se imbricar, e isso, basicamente, por duas razes. A primeira relacionava-se com o prprio mtodo cientfico, que operava cortes na realidade, isolando objetos para melhor estud-los. interessante observar como, no jogo de concorrncia, Pareto acaba deixando de lado perspectivas anteriores, e mesmo incorporando novas. J se viu como, na crtica ao marxismo, ele construiu seu argumento a partir da leitura biolgica da sociedade que, antes, havia considerado limitada diante da fsica. Agora era a prpria noo de dependncia mtua que parecia ser momentaneamente deixada de lado:

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O homem real compreende o homo oeconomicus, o homo ethicus, o homo religiosus etc. Em suma, considerar esses diferentes corpos, esses diferentes homens, equivale a considerar as diferentes propriedades daquele corpo real, daquele homem real, cortando em fatias a matria a ser estudada. Ns nos equivocamos pesadamente quando acusamos aquele que estuda as aes econmicas ou o homo oeconomicus de negligenciar, ou mesmo de desdenhar as aes morais, religiosas etc. isto , o homo ethicus, o homo religiosus etc. ; o mesmo seria afirmar que a geometria negligencia, desdenha as propriedades qumicas dos corpos, suas propriedades fsicas etc. Cometemos o mesmo erro quando acusamos a economia poltica de no levar em conta a moral; como se acusssemos uma teoria do jogo de xadrez de no levar em conta a arte culinria (Pareto, 1966b:18).

A segunda razo pela qual, de acordo com Pareto, cincia e moral no se deveriam confundir era a de que uma, na verdade, no dizia respeito outra. A moral era uma atribuio daquele que prescrevia receitas, no do cientista. Era aquele que tentava implementar medidas prticas que devia levar em conta suas conseqncias morais, religiosas e polticas, alm das econmicas (Pareto, 1966b:19). J o primeiro captulo do livro, aps o introdutrio, intitulava-se Introduction la science sociale. Portanto, antes de qualquer considerao estritamente econmica, ele se debruava sobre a cincia social de maneira geral. Aqui, importante destacar, a psicologia, que constitua o eixo dos argumentos do Trait, era referida como a base da economia poltica e, de modo mais amplo, de todas as cincias sociais. As aes humanas, dizia o autor, deviam ser classificadas como lgicas ou no-lgicas (Pareto, 1966b:40-1). Essa classificao contudo no devia tomar por base apenas o que diziam os homens a respeito de suas aes, visto que tendiam eles a representar como lgicas aes que, de fato, eram no-lgicas (Pareto, 1966b:42). Eram dizia Pareto mais uma vez os interesses e os sentimentos que, principalmente, impulsionavam os homens ao, ainda que buscassem eles se convencer de que eram guiados pela razo, construindo, a posteriori, teorias que confeririam aparncia lgica a suas aes (Pareto, 1966b:134-5). As aes no-lgicas, portanto, tinham uma importncia fundamental na vida social. A moral e os costumes, por exemplo, dependiam inteiramente delas. Afinal, nenhum povo havia tido, at ento, uma moral cientfica ou experimental.

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Havia fenmenos, dizia o autor empregando uma lgica relativista, chamados de ticos ou morais, que eram tidos como perfeitamente conhecidos, ainda que nunca tivessem sido estudados de forma objetiva. Todos defendiam princpios que julgavam lgicos, superiores aos demais, buscando universaliz-los, imp-los aos outros. No se importavam, desse modo, em saber o que os homens de uma poca ou de um lugar dados consideravam moral. Limitavamse a avali-los segundo seus prprios padres, que tinham como absolutos, tecendo a partir da suas teorias, implcitas ou explcitas, que nada mais eram portanto do que entidades metafsicas da mesma ordem, por exemplo, do que progresso (Pareto, 1966b:51-3). Pareto procurava impor tais formulaes como novas, caracterizando como subjetivas as teses sobre a moral de autores como Spencer, que o antecederam e que se haviam afirmado como dominantes. Essas teses, aceitas de forma geral, nada mais eram do que a atribuio de valor objetivo a fatos que, na verdade, eram subjetivos (Pareto, 1966b:61-5). Era este tambm, segundo Pareto, o caso de Stuart Mill, que trabalhava com a noo abstrata de gnero humano, como se as sociedades fossem iguais entre si e ao longo do tempo, ou mesmo como se uma nica sociedade pudesse ser homognea (Pareto, 1966b:66-8). Uma dessas abstraes, baseada na idia de igualdade, que tinha pretenses a constituir-se em uma legislao de carter universal mas que, de acordo com o autor, no passava, na realidade, de uma racionalizao pseudocientfica, era a Declarao dos Direitos do Homem (Pareto, 1966b:69-70). As sociedades humanas eram heterogneas, distinguindo-se os elementos que as compunham no apenas por seus caracteres evidentes, como sexo e idade, mas tambm por outros menos observveis, como inteligncia e coragem. Por conseguinte, tomar os homens como objetivamente iguais era um absurdo, ainda que, em termos subjetivos, a noo de igualdade pudesse, de modo efetivo, desempenhar um papel importante, pesando de maneira inegvel sobre os processos sociais (Pareto, 1966b:128-9). Pareto procurava evidenciar essa importncia a partir das noes de elite e de circulao. O autor retomava aqui a definio de elite j presente em Les systmes socialistes como uma aristocracia, como os melhores, de acordo com as qualidades valorizadas em determinada sociedade, favorecendo a prosperidade e a dominao de uma classe. Como j se viu, isso implicava pensar na possibilidade de uma aristocracia de santos, de uma aristocracia de ladres, de uma aristocracia de sbios, de uma aristocracia de guerreiros e assim por diante, o que, por sua vez, significava reco-

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nhecer que em todas as sociedades, mesmo nas mais democrticas, haveria sempre uma elite que governaria. Se contavam, entretanto, com a virtualidade de alcanar o poder, pelo qual lutavam entre si, as elites, at por isso mesmo, estavam destinadas a uma inexorvel transitoriedade. Elas se sucediam atravs do processo de circulao (Pareto, 1966b:129). A tese da circulao das elites, no Manuel, assume uma feio mais objetivada, sendo ilustrada matematicamente, atravs de grficos e tabelas estatsticas demogrficas.257 Pareto procura, desse modo, reforar o argumento de que a circulao era um mecanismo fundamental ao equilbrio social, impedindo o acmulo de elementos inferiores nas classes superiores e de superiores nas inferiores, o que podia redundar em instabilidade e revoluo violenta (Pareto, 1966b:386-7). A constante infiltrao, nas camadas sociais mais altas, de elementos aptos das mais baixas era, assim, um importante fator de estabilidade (Pareto, 1966b:429). Se a circulao contnua era fundamental, isso no significa que ela necessariamente ocorresse. Na verdade, o que se observava na sociedade no era apenas a luta pela ascenso, mas tambm a obstinada tentativa das elites no sentido de manterem suas posies. Nessa luta eram empregados meios ou recursos diversos, sendo um deles as teorias como a da igualdade entre os homens. O que estava em jogo, de fato, nos embates pela igualdade, era no a prpria igualdade, mas a substituio de uma elite por outra. Nas palavras de Pareto:

Vemos agora a grande importncia subjetiva da concepo da igualdade dos homens, importncia que no existe do ponto de vista objetivo. Essa concepo o meio comumente empregado, especialmente em nossos dias, para livrar-se de uma aristocracia e substitu-la por outra (Pareto, 1966b:132).

O grande problema, porm, observa Pareto, que ao confundirem a importncia subjetiva da concepo com a existncia real da igualdade entre os homens, as elites passam a orientar suas aes nesse sentido, deixando de empregar recursos fundamentais como a fora. Dessa forma, elas no apenas selam o seu destino, entrando em um inevitvel processo de decadncia e baixando a guarda para as elites rivais, que no se eximem de usar a fora e a violncia, como comprometem o prprio equilbrio social. Uma boa amostra disso, na opinio do autor, era a burguesia, com o que interpretava ele como sendo um verdadeiro culto ao humanitarismo.258

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Em uma formulao que nos permite entender por que, posteriormente, ele seria apropriado como uma espcie de profeta do fascismo, Pareto dizia:

O grande erro da poca atual o de acreditar que se pode governar os homens puramente por meio de argumentos, sem se fazer uso da fora, que , ao contrrio, o fundamento de toda organizao social. mesmo curioso observar que a antipatia da burguesia contempornea contra a fora a conduz a deixar o campo livre violncia. Os malfeitores e os arruaceiros, estando certos de sua impunidade, faro tudo o que quiserem. As pessoas mais pacficas so impelidas a se sindicalizar e a recorrer ameaa e violncia pelos governos que no deixam aberta outra via para a defesa dos seus interesses. A religio humanitria desaparecer muito provavelmente quando tiver completado a sua obra de dissoluo social e quando uma nova elite se tiver elevado por sobre as runas da antiga. A inconscincia ingnua de uma burguesia em decadncia confere toda fora quela religio, que no ser mais de qualquer uso no dia em que os adversrios da burguesia se tornarem fortes o suficiente para no mais esconderem seu jogo (Pareto, 1966b:134).

Assim, aquilo que, antes, havia sido uma arma nas mos da burguesia em ascenso, voltava-se, agora, contra ela mesma. Eram as classes inferiores que tinham necessidade de um discurso igualitrio e humanitrio, como forma de amenizar as angstias de sua existncia. Todo o esforo das democracias, desse modo, era no sentido de dar a aparncia do poder ao povo e a realidade do poder a uma elite (Pareto, 1966b:136-9). Tomar, porm, a aparncia pela realidade podia significar para a burguesia, na viso de Pareto, a decretao de sua prpria sentena de morte. Concepes e teorias como a democrtica, portanto, deviam ser tomadas no pelo valor objetivo, que no tinham, mas pelo subjetivo. Elas tinham o poder de detonar emoes e sentimentos, impulsionando os homens ao, movendo-os, direcionando-os em um ou em outro sentido. Ao mesmo tempo, por serem assim, essas mesmas concepes e teorias tornavam-se imunes refutao cientfica. Por mais corretas ou exatas que fossem as crticas a elas, por conseguinte, poucos desdobramentos concretos tinham, como se podia perceber e aqui Pareto faz uma observao que mais soa como uma nova tentativa de dar conta do prprio fracasso poltico pelas discusses cientficas em torno do livre-cambismo, que, segun-

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do o autor, baixssima influncia tinham exercido sobre as prticas mesmo livre-cambistas ou protecionistas (Pareto, 1966b:134-5). Chegado a esse ponto, Pareto passou a divisar o estudo da sociologia como mais importante, porque mais englobante e primordial, do que o da prpria economia poltica, invertendo assim os termos de sua equao anterior. Isso no significava, porm, o seu abandono da economia, mas sim a constatao de que era a sociologia que podia fornecer a chave mesmo das aes econmicas. Tratava-se de perceber a prevalncia dos atos no-lgicos, mesmo naqueles domnios em que, de modo usual, no havia dvida quanto ao seu carter eminentemente lgico, racional. Assim, escrevendo a Pantaleoni sobre o Manuel, dizia Pareto em 1907:

A utilidade de ligar, em uma introduo, sociologia e economia consiste em mostrar concretamente como a segunda apenas uma parte da primeira, e conseqentemente como, por si s, no pode resolver nenhum ou quase nenhum problema prtico.259

E mais tarde, no mesmo ano, reafirmava ao amigo que adotava uma postura distinta, argumentando com a superioridade dos estudos econmicos que:

Isso que agora da maior urgncia para compreender os fenmenos sociais a sociologia. A parte econmica dos fenmenos , em grande medida, dominada pela parte no-econmica. Por conseguinte, as dedues puramente econmicas so bastante distantes da realidade. O erro mximo da economia dita liberal foi no comprender isso.260

Entretanto, mais do que a constatao de um vnculo de necessidade entre a economia e as aes humanas de maneira geral e a sociologia, tratava-se, na nova converso de Pareto, da percepo de que aquela ltima se constitua em uma rea de fronteira, no-saturada, de baixa concorrncia, em conformao e, por isso mesmo, aberta inveno. Tal o sentido expresso em algumas das cartas de Pareto a Pantaleoni, como uma datada ainda de 1907, quando iniciava a redao do Trait de sociologie gnrale:

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O que mais til, ocupar-me de sociologia ou de economia? Acredito que me ocupando de sociologia, e eis por que acho isso. Para fazer progredir a economia bastam engenho e saber, e muitas pessoas (e digo isso sem falsa modstia) me superam nesse aspecto. Para estudar sociologia, necessrio no presente [o grifo de Pareto] momento histrico (no digo sempre) estar absolutamente fora da vida ativa, viver como um eremita, como eu fao em Cligny.261

E em 1909, falando da sucesso na cadeira de sociologia em Lausanne, Pareto expressava igualmente uma lgica de concorrncia, agora interinstitucional:

Na Universidade de Lausanne, o curso de sociologia ministrado atualmente pelo meu colega Millioud.262 Espero que ele faa uma sociologia verdadeiramente cientfica, e nesse caso a Universidade de Lausanne ser a nica onde tal cincia lecionada.263

Quando se referia a uma sociologia cientfica, desconhecendo ou desconsiderando iniciativas contemporneas s suas nesse mesmo sentido em outros pases, Pareto tinha em mente uma disciplina que constitusse os instrumentos efetivos de explicao das aes humanas. No mais bastava, no mais se mostrava suficiente a mera constatao de que os homens eram movidos simplesmente por seus sentimentos, desejos e instintos, de que as aes humanas, em sua imensa maioria, eram no-lgicas. Tratava-se de entender a lgica das aes no-lgicas, cumpria descobrir a rationale dos atos no-racionais, importava erigir tambm a sociologia como cincia perfeita.264 Desse modo seria possvel no apenas dar conta de eventos passados e de processos correntes, mas tambm, e isso que se afigurava como fundamental, prever movimentos futuros, resultados mais provveis. Tal o carter de novidade, de ineditismo, que Pareto atribua sua sociologia. Seu estudo cientfico, experimental, objetivo, das aes humanas deveria ser capaz de permitir a previso do curso dessas mesmas aes, a anteviso de seus desdobramentos. E foi escorado nessa convico que o Pareto socilogo passou a assumir posturas eminentemente profticas, imprimindo tambm mais essa marca imagem que imps de si mesmo.

CAPTULO 9

Cincia e profecia

o Trait de sociologie gnrale que, comumente, associado ao novo momento da trajetria de Pareto, ainda que vrias de suas idias bsicas j estivessem contidas em trabalhos anteriores.265 Na verdade, o livro tomado como via de acesso, privilegiada e suficiente, ao pensamento sociolgico do autor, tornando desnecessrio o recurso a outros escritos. passagem pelas obras que precederam o Trait, consideradas econmicas, pode ser atribuda alguma importncia no mximo pelo fato de que, conforme a leitura que feita de Pareto, consagrada principalmente a partir de Raymond Aron, ele definia a sociologia por contraste com a economia (Aron, 1982:383). Como se viu, entretanto, h que se relativizar essa leitura, no sendo to evidente o contraste entre as duas disciplinas, nem rgido o corte entre elas. O que se pode observar, de fato, que as idias sociolgicas de Pareto, elaboradas a partir da reflexo econmica, terminaram assumindo uma dimenso e uma importncia tais, que passaram a ser percebidas como fundamentais mesmo para a prpria compreenso da economia. Se havia portanto um conjunto de aes econmicas que podiam ser caracterizadas como lgicas, a sua grande maioria, como de resto era o que em regra marcava as aes humanas como um todo, deveria ser reconhecida como nolgica, passvel assim de um estudo sociolgico. A distino, pois, entre aes lgicas e no-lgicas que constitua uma das principais bases da sociologia de Pareto. A partir dela, a partir de um estudo das aes humanas, que o autor procurava alcanar seu objetivo principal no Trait de sociologie gnrale: conhecer as formas sociais (Pareto, 1933:65). Pareto iniciava o livro buscando justific-lo e, ao mesmo tempo, demarcar seu ineditismo, sua originalidade. Isso se fazia necessrio

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porque, segundo o prprio autor, os socilogos, de maneira geral, h muito que vinham tambm se debruando sobre as aes humanas. Sua novidade e assim tambm seu sentido residiam justamente no modo distinto como as aes humanas eram tratadas. Mais do que afirmar sua diferena, distinguir-se de seus antecessores, Pareto procurava legitimar sua incurso na sociologia impondo-a a um s tempo como pioneira e definitiva, uma vez que escorada no que afirmava ser um rgido mtodo cientfico, lgico-experimental, habilitando-se por essa mesma via a reivindicar, para utilizar seu prprio termo, a etiqueta de socilogo cientfico.266 Segundo o autor, os socilogos haviam se limitado, at aquele momento, a classificar as aes humanas concretas tal como podiam ser diretamente observadas e, ao mesmo tempo, a forma como eram justificadas, racionalizadas. De igual modo que um composto qumico, entretanto, as aes concretas, na viso de Pareto, eram snteses de elementos diversos, combinados em propores variveis. Sem conhecer esses elementos, e as maneiras especficas como se combinavam, portanto, deixava-se de dar conta do prprio sentido das aes. Diante disso, cabia ao socilogo, da mesma forma como procedia o qumico, decompor os fenmenos observados em seus elementos mais simples, constantes, para, a sim, classific-los e s suas combinaes (Pareto, 1933:66). Por essa via, pela decomposio das aes humanas em suas menores partes constitutivas, que Pareto desembocava na sua distino em lgicas e no-lgicas. As aes lgicas, na acepo do autor, eram aquelas que se constituam em meios mais apropriados para alcanar objetivos visados, aquelas que, como indicava o prprio nome, formavam uma cadeia lgica de causa e efeito com seus fins. No era bastante, no entanto, que apenas aos prprios atores, queles que as empreendiam, valia dizer, subjetivamente, segundo o pensador, o encadeamento parecesse lgico. Era preciso que ele assim se mostrasse tambm objetivamente, isto , aos olhos do analista. As aes que escapassem a esse enquadramento, quer porque subjetivamente, quer porque objetivamente, ou porque por ambos os lados no se afigurassem como lgicas, eram consideradas nolgicas. V-se, assim, que as aes no-lgicas, definidas pelo autor de forma residual, no deviam ser confundidas, tratadas como necessariamente ilgicas. Amostras de aes lgicas eram, por exemplo, os movimentos de compra e venda de bens dos agentes no mercado, os atos tcnicos de um engenheiro, os experimentos empreendidos por

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um fsico em um laboratrio. J os sacrifcios oferecidos a Poseidon pelos gregos antigos como forma de garantir o sucesso em empreitadas martimas podiam ser tomados como aes no-lgicas. certo que, subjetivamente, ou para os prprios gregos, aquelas oferendas podiam ser to lgicas quanto o ato de remar, estimulando-os inclusive a perseguir suas metas com maior afinco, o que sem dvida podia contribuir para que terminassem sendo bem-sucedidos. Em termos objetivos, contudo, o mesmo j no podia ser dito, uma vez que no havia nenhuma prova cabal da existncia de um vnculo direto, lgico e necessrio entre sacrifcios e sucesso naval (Pareto, 1933:66-7). De fato, como observava Pareto, retomando sua tese j antiga, as aes humanas, em sua grande maioria, eram no-lgicas, ainda que nem sempre primeira vista pudessem assim parecer. E era justamente nas aes no-lgicas que a sociologia, em sua acepo, tinha seu objeto de estudo. Os homens, de maneira geral, tendiam a racionalizar suas aes, atribuindo-lhes um carter lgico que, na verdade, eram justificativas ex post facto. Tais justificativas eram aquilo que Pareto chamava de derivaes (Pareto, 1933:459). As cincias sociais, segundo ele, tinham at ento incorporado as derivaes, contentando-se assim com as justificativas lgicas das aes no-lgicas que de fato desprezavam, no as percebendo como uma componente fundamental dos atos humanos em geral. Tomando portanto de forma acrtica as justificaes pelas aes, como se estas fossem sempre lgicas, as cincias sociais deixavam de produzir o seu necessrio desvelamento, enxergando por toda parte um domnio crescente da razo, que seria responsvel pelo progresso, pela coeso e pelo equilbrio sociais. Nas palavras de Pareto:

1 A existncia e a importncia das aes no-lgicas. Isso contrrio a muitas das teorias sociolgicas, que desdenham ou negligenciam as aes no-lgicas, ou lhes do pouca importncia, esforando-se em tornar todas as aes lgicas. A via a ser seguida no estudo das aes dos homens, em sua relao com o equilbrio social, ser diferente se dermos importncia maior s aes no-lgicas ou s aes lgicas. preciso, portanto, que nos detenhamos agora nessa matria. 2 As aes no-lgicas so geralmente consideradas do ponto de vista lgico por aqueles que delas tratam, produzindo sua teoria. Da a necessidade de uma operao de importncia pri-

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mordial para o nosso estudo, que a de levantar aqueles vus e reencontrar aquilo que dissimulam. Ela , por isso, contrria a muitas teorias que se detm nos vus, no tidos como tais, mas tomados como a parte fundamental das aes (Pareto, 1933:150).

Na viso do pensador, por conseguinte, como se para utilizar seus termos as cincias sociais, at o Trait, no passassem de estudos no-lgicos, cujos meios, objetivamente, no se coadunavam com os fins, ainda que, subjetivamente, ou aos olhos dos prprios cientistas sociais, pudesse parecer que sim. A histria das instituies sociais, observava Pareto, havia se tornado uma histria das derivaes, o que acabava por cumprir uma finalidade prtica, qual seja, a de persuadir os homens a agirem de uma forma considerada til sociedade. Este, porm, no era o seu prprio objetivo. Outra no era a sua finalidade, asseverava ele mais uma vez, a no ser conhecer a uniformidade dos fatos sociais de modo imparcial, restringindo-se ao domnio lgico-experimental para, assim, poder ir alm dos vus que se interpunham entre ele ou entre os socilogos de maneira geral e a realidade (Pareto, 1933:790-1). Esta, segundo Pareto, era a marca do absoluto ineditismo, da relevncia e da superioridade de sua sociologia. Ela se fundava, de fato, sobre um esforo de objetivao da sociologia. diferena do que at ali se vinha fazendo, em suma, o que almejava o autor, tomando sua prpria terminologia, era produzir um estudo lgico das aes no-lgicas.267 preciso ressaltar, contudo, que Pareto no subestimava a importncia das derivaes, como se pode perceber pela substancial parte do Trait a elas dedicada. Ao contrrio, acentuava ele que as derivaes se constituam em um contrapeso fundamental para o equilbrio social, orientando as aes dos indivduos uma vez que estes delas se convencessem, a elas aderissem, assim como a um credo. Um indicador disso estava, por exemplo, no fato de que tanto a proposta democrtica quanto a socialista, ento em ascenso, afiguravam-se ao autor como derivaes, operando mesmo como verdadeiros cultos religiosos.268 A questo, por conseguinte, estava no em descartar as derivaes, desconhec-las, mas sim em trat-las como tais, como justificaes, e no como causas profundas das aes. Essa viso, porm, fazia permanecer o problema de quais eram, efetivamente, aquelas causas. Para respond-lo, Pareto lanava mo do conceito de resduo, que foi buscar na psicologia.

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Os resduos correspondiam a determinados sentimentos e instintos dos homens. Eles no eram os prprios sentimentos e instintos, mas sim a sua manifestao, de maneira anloga da coluna de mercrio de um termmetro, que no era a variao da temperatura em si, ou a sua origem, mas seu indicador (Pareto, 1933:461-2).269 Se uma derivao tinha fora, empolgava, isso se devia no a um poder de convencimento, de persuaso, a um acordo racional ou a consideraes lgico-experimentais, mas sim aos sentimentos que ela evocava em seus adeptos. Desse modo, sua aceitao ou sua rejeio devia ser explicada no a partir dela mesma, de sua formulao, de sua lgica interna, mas sim dos resduos que acionava:

Os homens se deixam persuadir sobretudo pelos sentimentos (resduos), por conseqncia, podemos prever, o que alis confirmado pela experincia, que as derivaes tiraro sua fora no de consideraes lgico-experimentais, ou ao menos no exclusivamente dessas consideraes, mas sim dos sentimentos (Pareto, 1933:785).

Pareto dividia os resduos em seis classes, que iam do instinto de combinaes e da persistncia dos agregados integridade dos indivduos e de seus dependentes, passando pela necessidade de manifestar os sentimentos atravs de atos exteriores, pelos sentimentos de sociabilidade e pelo instinto sexual (Pareto, 1933:466-8). Na verdade, porm, duas eram as classes fundamentais para a sociologia, visto que essa cincia, na sua acepo, voltava-se para as aes humanas, sim, mas na sua articulao com o equilbrio social. Eram elas a do instinto de combinaes e a da persistncia dos agregados. Na primeira estava includa a necessidade de combinar coisas dados, sentimentos em geral, semelhantes ou no e de produzir desenvolvimentos lgicos, com desdobramentos prticos, bem como a f na eficcia dessa operao. Essa classe de resduos estava, por exemplo, na base da tomada de atitudes arriscadas, certo, mas tambm empreendedoras ou inovadoras. J a segunda abarcava a persistncia das combinaes j existentes, das uniformidades e das personificaes (Pareto, 1933:466-8). A essa classe estavam associadas a preservao da tradio e as atitudes conservadoras. A distribuio dos resduos pela sociedade se fazia, segundo Pareto, de forma desigual, em nveis e com foras variveis. Desse modo, enquanto alguns indivduos tinham uma proporo maior de resduos de uma determinada classe, outros tinham de uma outra e assim por diante (Pareto, 1933:1.070). Nessa perspectiva, portan-

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to, os homens eram diferentes entre si, dotados de natureza diversa, com distintas propenses ao. Enquanto elementos geradores de aes, os resduos, ainda que desigualmente distribudos, perpassavam a sociedade como um todo, no sendo exclusivos de um ou de outro grupo social. Todos os indivduos, de todos os grupos sociais, eram dotados de uma determinada composio de resduos. Somada porm classificao hierrquica, a sua concentrao diferencial era um importante fator diversificador, imprimindo nas sociedades, quaisquer que fossem elas, mesmo as que se diziam mais igualitrias, a marca necessria da heterogeneidade. Cabia ento, da perspectiva de Pareto, a fim de se promover uma compreenso mais efetiva das formas sociais e do seu equilbrio, aprofundar a reflexo sobre a questo da heterogeneidade. Ele o fazia atravs da retomada de sua observao de que havia, em todos os ramos das atividades humanas, indivduos que se destacavam dos demais por suas capacidades, por suas qualidades superiores. Esses indivduos compunham uma minoria, distinta do restante da populao, qual se denominava elite (Pareto, 1933:1.296-7). Contudo, da mesma forma que antes, fazia o autor um esforo no sentido de neutralizar o termo, explicando que o havia empregado assim como poderia t-lo feito com qualquer outro, at uma simples letra, com o mesmo sentido. O que importava, ao nomear a minoria, era no atribuir-lhe um valor positivo ou negativo, qualific-la como intrinsecamente boa ou m, mas caracteriz-la, como j se viu, como uma aristocracia, como composta dos melhores, daqueles que condensavam, que concentravam as caractersticas definidoras de um grupo, qualquer que fosse, de operrios a ladres, de guerreiros a sacerdotes (Pareto, 1933:1.297).270 Pareto podia de fato ter utilizado qualquer outro termo, ou mesmo uma letra, mas no o fez. Optou pela categoria elite, o que no axiologicamente indiferente, nem isento de desdobramentos significativos, uma vez que o seu sentido, ento, como aponta Raymond Williams, era o de eleito, preferido, seleto, excelente, expressando distino social (Williams, 1981:96-8). Isso se torna ainda mais evidente se lembrarmos que o autor usava o termo de modo intercambivel com aristocracia.271 De toda forma, a impresso que se tem primeira vista a de que, na concepo de Pareto, as sociedades eram bipolarizadas, divididas de forma estanque entre elites e no-elites. Ele, contudo, vai aos poucos complexificando esse quadro, ainda que voltando-se apenas para as elites constitudas, seu objeto bsico de preocupao.

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Nesse sentido, Pareto comeava por observar que, para o estudo do equilbrio social, a elite devia ser dividida em duas. De um lado estava a elite governante, composta pelos indivduos que desempenhavam um papel significativo e influente no governo, e, de outro, a no-governante (Pareto, 1933:1.297). A elite governante, no entanto, no se confundia necessariamente com aqueles indivduos que ocupavam as posies formais de poder. Em uma construo muito prxima da classe poltica de Mosca, Pareto, que alm de elite governante tambm empregava o termo classe governante, afirmava:

Existe em toda parte uma classe governante, mesmo l onde h um dspota; mas as formas sob as quais ela aparece so diversas. Nos governos absolutos era apenas um soberano que aparecia em cena; nos governos democrticos, um parlamento. Nos bastidores, porm, encontram-se aqueles que desempenham um papel importante no governo efetivo. Sem dvida eles devem, por vezes, inclinar-se diante dos caprichos dos soberanos ou de parlamentos ignorantes e tirnicos; mas eles no tardam a retomar sua obra tenaz, paciente, constante, cujos efeitos so bem maiores do que aqueles da vontade dos seus mestres aparentes (Pareto, 1933:1.442).

Mesmo a elite, ou a classe governante, na viso de Pareto, no podia ser tomada como um todo homogneo. Ela apresentava diferenas no que tocava, por exemplo, maneira e aos mecanismos como galgava e se mantinha no poder, quer privilegiasse o emprego de maiores doses de fora, quer de astcia, ardil, na busca de consentimento.272 Outra linha de segmentao possvel, ditada pela concentrao diferencial de resduos, era aquela que dividia spculateurs e rentiers.273 Enquanto nos primeiros predominavam os resduos da classe dos instintos de combinaes, nos segundos eram os da persistncia dos agregados. Portanto, enquanto os primeiros eram empreendedores, arrojados, buscavam novidades em todos os domnios, os segundos eram contidos, receosos (Pareto, 1933:1.427-32). Enfatizava o autor, todavia, que essas duas categorias estavam referidas no a atores concretos, a ocupaes econmicas determinadas ou a partidos polticos especficos, mas sim a atitudes, impulsos, instintos, em suma, a resduos em propores variadas. Assim, um comerciante tanto poderia ser um rentier quanto um spculateur. Por seu turno, um partido dito revolucionrio poderia ter seus quadros

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dominados por rentiers, da mesma forma em que predominariam spculateurs em um conservador (Pareto, 1933:1.433-5). Vale observar que principalmente quando se refere elite governante que Pareto, no Trait, aborda a questo da circulao articulada do equilbrio social, da possibilidade de rupturas polticas revolucionrias.

Pelo efeito da circulao das elites, a elite governamental se encontra em um estado de transformao lenta e contnua. Ela corre como um um rio; a de hoje diferente daquela de ontem. De tempos em tempos se observam perturbaes bruscas e violentas, semelhantes s inundaes de um rio. Em seguida, a nova elite governamental recomea a modificar-se lentamente; o rio retorna ao seu leito e corre novamente. As revolues se produzem porque, seja pela reduo do ritmo da circulao da elite, seja por uma outra causa, elementos de qualidade inferior se acumulam nas camadas superiores. Esses elementos no possuem mais os resduos capazes de mant-los no poder e evitam o uso da fora; ao mesmo tempo desenvolvem-se, nas camadas inferiores, elementos de qualidade superior, que possuem os resduos necessrios para governar e esto dispostos a fazer uso da fora (Pareto, 1933:1.304-5).

A citao acima enfeixa duas questes importantes, inter-relacionadas, que cabem ser ressaltadas. A primeira a do eterno movimento cclico de modificao da elite governante. Esse movimento, esclarecia Pareto, no se caracterizava pela simples alternncia de indivduos e principalmente de indivduos de uma mesma insero social nas posies de mando. A incorporao de indivduos oriundos das classes inferiores afigurava-se, para ele, como fundamental, na medida mesmo em que traziam com eles novas energias e propores de resduos necessrias manuteno do poder (Pareto, 1933:1.304). A circulao das elites, portanto, diferia daquilo que poderamos chamar de cooptao, ou de uma adeso total, em que os novos indivduos mudavam sua maneira de ser, adotando a dos antigos, como ocorria na Itlia do transformismo. Era fundamental para a circulao, na viso de Pareto, que os novos membros trouxessem e mantivessem seus sentimentos, opinies e valores, produzindo assim uma mudana no perfil e nas aes da elite (Pareto, 1933:1.654).

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Este era um mecanismo bsico que, quando cessava de operar, cristalizando-se a elite governante, conduzia a uma inevitvel degenerao. Desse modo, o prprio equilbrio social se via seriamente comprometido, perturbado, o que poderia levar a uma situao de runa mesmo da nao como um todo (Pareto, 1933:1.304). Aqui se abriria a possibilidade de uma mudana radical da elite, atravs de um processo revolucionrio, segundo ponto importante do trecho de Pareto anteriormente citado. Incorporando a perspectiva marxista, o autor referia-se elite, classe governante e governada como inimigas em luta. Essa luta todavia, ao contrrio do que sustentavam os pensadores socialistas, era eterna, infindvel, uma vez que sempre, fosse qual fosse o sistema, mesmo comunista, haveria uma elite no poder e um grupo dele excludo. O fim das classes, portanto, no levaria anulao necessria da desigualdade e nem, assim tambm, da luta social. Nessa luta, claro, cada grupo lanava mo dos recursos ao seu dispor. E dois desses recursos, de fundamental importncia, como j se viu, eram o ardil, ou o consentimento, e a fora. No se tratava, porm, de ressaltar o exclusivismo ou a superioridade de um desses recursos. Pelo contrrio, Pareto observava que a vitria na luta, ou, mais especificamente, o sucesso da elite em manter-se no poder, estava na relao direta do emprego, em propores adequadas, tanto do ardil quanto da fora (Pareto, 1933:1.409). O que se percebe desse modo que, da perspectiva de Pareto, o equilbrio social dependia, por um lado, da manuteno de um fluxo circulatrio lento mas contnuo, e, por outro, do emprego, pela elite, tanto do ardil quanto da fora. Se a circulao cessava, a elite se ossificava e entrava assim em um inevitvel processo de esclerose e decadncia. A elite decadente, de forma fatal, perdia energia, entregandose s derivaes que propiciaram a sua ascenso, erigindo-as em verdadeiros cultos, religies. Com isso, perdia a dimenso exata dos perigos que a ameaavam, dos elementos superiores que se acumulavam nas camadas sociais inferiores, recusando-se a empregar a fora da qual, todavia, seus inimigos faziam amplo uso. Selava assim a elite o seu destino, fechando o ciclo de sua dominao, entregando-se em holocausto e levando a nao runa. Na verdade, era esse mesmo o diagnstico que fazia Pareto do mundo, naquele momento. A burguesia, ou a plutocracia, que ocupava a posio politicamente dominante, orava pela bblia do humanitarismo, sacralizava os rituais democrticos, adorava o deus povo e, assim, manietava-se, deixando livre o campo de ao de seus ini-

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migos, negando-se a submet-los atravs da fora. Era, portanto, o fim prximo do ciclo da burguesia, ou da plutocracia, demaggica que previa o autor. interessante lembrar, nesse ponto, que Pareto atribua sua passagem sociologia, e mesmo a possibilidade de redao do Trait, ao seu isolamento, entenda-se por isso, principalmente, sua abdicao poltica partidria articulada a sua sada da Itlia.274 Se assim foi, contudo, preciso atentar tambm para o fato de que, inversamente, foi a sua sociologia mesmo, ou algumas de suas idias centrais, que em grande parte permitiram a Pareto trilhar o caminho de volta ao seu pas e poltica. No se tratou, certo, de um retorno em um sentido literal, visto que at a sua morte, em 1923, o autor continuou vivendo em Cligny. O que se observou foi a sua gradativa afirmao nos meios italianos, sua presena crescente nos peridicos do pas, rompendo aquela que era, em seus prprios termos, uma conspirao de silncio que contra ele se teria promovido (Einaudi, 1935:338). Esse retorno apesar do claro empenho de Pareto em caracterizar sua reflexo como eminentemente cientfica, experimental, objetiva, imparcial foi regido, em larga medida, por seu reconhecimento poltico. Se atentarmos para a cronologia da bibliografia de Pareto, veremos que, at meados dos anos 1890, ele escrevia de forma relativamente constante para alguns peridicos italianos. Dali at a metade da dcada de 1900 houve uma evidente interrupo, ainda que no absoluta. Aos poucos, entretanto, percebe-se um gradativo aumento de sua presena, ampliando-se tambm o nmero de peridicos para os quais escrevia, entre os quais se incluam jornais dirios. Isso se deu em um crescendo j a partir de meados dos anos 10, tendo-se observado freqncia maior no incio da dcada de 20 (Rosa, 1984b:481-525). Ainda em 1917, pouco aps a publicao do Trait, Pareto reclamava com Pantaleoni do que chamava de cincia oficial italiana. Lembrava ele, com rancor, que nunca nenhuma academia ou universidade do pas o havia aceitado ou lhe prestado qualquer honra. Apenas pela proteo de Ubaldino Peruzzi que havia conseguido tornar-se scio da Accademia dei Georgofili, antes mesmo de ter publicado qualquer livro.275 A mesma tenso se faria presente ainda naquele ano, quando da comemorao, pela Universidade de Lausanne, do jubileu de Pareto. Apesar do comparecimento do cnsul italiano na cidade e de o amigo Pantaleoni ter sido enviado como representante do ministro da Instruo Pblica, o autor recusou a homenagem do go-

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verno de seu pas, tomando-a como um insulto, uma vez que s se concretizou aps um demorado processo de negociao, alm de ser inferior a outras concedidas a alguns de seus adversrios. Pareto tambm se ressentiu do relativo desdm das universidades italianas, que no compareceram.276 A partir dali, contudo, esse quadro comeou a se alterar e, j no incio dos anos 20, ele passou a receber convites de filiao a algumas das academias cientficas italianas, ainda que os recusasse.277 Essa inverso tinha uma clara contrapartida nas mudanas ocorridas no campo poltico na Itlia. Tratava-se do perodo ps-guerra, ps-Revoluo Russa, marcado pela instabilidade poltica, pelo crescimento do socialismo, por fortes mobilizaes sociais nas cidades e no campo, configurando o que era percebido como uma crise da democracia parlamentar italiana, uma descrena na sua possibilidade de fazer frente situao, legitimando o emprego da fora, mesmo que de forma extralegal, como o vinham fazendo as brigadas fascistas, combatendo os considerados agitadores e grevistas.278 E o Pareto que tambm se legitimava, que ganhava notoriedade, espao mesmo em jornais dirios italianos, era justamente aquele que vinha h algum tempo chamando a ateno para a fora como uma das escoras centrais do equilbrio social e prevendo, ainda mais, o fim prximo do ciclo da plutocracia demaggica, com conseqentes profundas mudanas. Tal o tema de vrios de seus artigos escritos no perodo, como por exemplo Lavenir de lEurope. Le point de vue dun italien, de meados de 1922, publicado em La Revue de Genve. Ali, Pareto dizia que o ciclo da plutocracia demaggica no se poderia estender por muito tempo, chegando ao trmino por efeito da circulao das elites, o que se daria, a seu ver, em muito breve. Se experimentalmente, cientificamente, era possvel deduzir esse desfecho, no era possvel saber ainda com toda certeza o que resultaria da. Na Roma antiga, com a qual Pareto considerava ter a sua sociedade fortes semelhanas, a plutocracia havia sido substituda pelo poder de uma elite militar. Outros apontavam para a revoluo bolchevique como a sada mais provvel, com o que o autor no concordava, ainda que no rejeitasse de todo essa possibilidade (Pareto, 1966b:322-3). De qualquer modo, o que, para ele, se afigurava como certo que a democracia no poderia persistir tal como operava:

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No final do sculo XIX, ns podamos crer, apesar dos avisos de alguns pensadores, que o governo de nossas sociedades seria inteiramente aquele da maioria, que seria alcanado por meio do sufrgio universal e do parlamentarismo. Agora, comeamos a perceber que o poder da maioria mais nominal do que real e que ele est em vias de esfacelar-se, como se esfacela o poder dos reis constitucionais. Mesmo se admitirmos, o que contestado por vrios autores, que a maioria seja capaz de ter uma vontade, a experincia demonstra que essa vontade, em aparncia todo-poderosa, no o na realidade, encontrando-se anulada pelos artifcios dos governantes: pode ser que ela reine, mas certo que ela no governa (Pareto, 1966b:323-4).

Mais do que isso, a guerra havia dotado os governos de poderes extraordinrios dos quais, no entanto, mesmo com o fim dos conflitos, eles no abriam mo. Assim, em nome do bem-estar do povo e dos supremos interesses da nao, decretos-leis eram editados e antigos cdigos e prescries alterados, desrespeitados, deslocando a funo legislativa do Parlamento:

Para justificar estas medidas, invoca-se, por um lado, as necessidades urgentes do momento e tudo aquilo que parece til no deixa de ser declarado urgente , e, por outro, a incapacidade tcnica dos parlamentos. Sendo ou no fundadas tais justificativas, isso em nada muda o fato de que a funo legislativa tende a escapar aos parlamentos e, por extenso, tambm s maiorias das quais so, ou parecem ser, a emanao. Quando o poder legal desempenha mal a sua funo, que de assegurar a autoridade da lei, de proteger os cidados e seus direitos, os poderes externos lei tomam o seu lugar. Foi esta, na Alemanha antiga, uma das causas para o estabelecimento dos tribunais secretos; esta atualmente, na Itlia, a causa principal do fascismo. Este fenmeno o indicador de um estado de esprito que, muito mais marcado na Itlia, encontra-se tambm em outras partes, e pode contribuir para conduzir a importantes transformaes [os grifos so de Pareto] (Pareto, 1966a:324).

O que se v, portanto, que, da perspectiva de Pareto, era o fascismo que despontava como forte alternativa para o quadro poltico italiano de ento. E ao se impor, em fins daquele mesmo ano de 1922, o fascismo, por seu turno, o fez em parte apresentando-se como realizao de uma profecia paretiana, como inevitabilidade cientfica prevista pelo autor.

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Tal foi a apropriao de Pareto feita pelo fascismo, ou por uma de suas vertentes significativas, que o alou condio de um dos maiores pensadores italianos. O prprio Mussolini conhecia a reflexo do autor desde pelo menos meados da dcada de 1900, quando, morando na Sua, inscreveu-se em alguns de seus cursos em Lausanne, e qualificava a sua teoria das elites como uma das mais geniais concepes sociolgicas.279 Tornando-se assim primeiro-ministro, Mussolini, em 1922, indicou Pareto como representante italiano na conferncia sobre o desarmamento da Liga das Naes, nomeando-o tambm senador, j no ano seguinte. Foi este ainda convidado a escrever artigos para o peridico pessoal de Mussolini, Gerarchia.280 Com cerca de 75 anos e com sua sade debilitada, entretanto, a nica nova atividade que de fato Pareto chegou a exercer foi a de colaborador de Gerarchia. Mesmo assim, o que importante observar que foi com a ascenso de Mussolini e do fascismo que o ostracismo de Pareto foi interrompido. Foi tambm a partir dali que ele pde, afinal, ser reconhecido politicamente em seu pas e, igualmente por essa via, de modo mais efetivo, cientificamente. Isso, claro, s refora o que j foi anteriormente visto, quando da anlise da trajetria de Mosca, quanto no-autonomizao, na Itlia, das cincias sociais, e em particular durante o domnio fascista. Foi principalmente com Mussolini, portanto, que Pareto passou a gozar de prestgio e reconhecimento, ao mesmo tempo poltico e cientfico, em seu prprio pas, recebendo as honras que julgava merecer.281 Aceitou ele assim essas honras, legitimando tambm, dessa forma, a apropriao que dele era feita pelo fascismo.282 Por outro lado, se Pareto tinha algumas dvidas quanto ao fascismo e reservas iniciais em relao ao seu lder, elas foram, em larga medida, se dissipando aps a posse de Mussolini. Assim, em junho de 1921, em carta a Pantaleoni, que tinha fortes simpatias pelo fascismo, afirmava:

Tenho prazer em sentir que a grande confiana que tinha nos fascistas agora minguou. Persuadidos de que, como sempre te disse, enquanto no tiverem um ideal, um mito, um programa, no sero um partido, louvam agora a Giolitti, como os bandos louvaram a Csar nos comcios romanos. Foram e permanecem sendo um meio, e no um fim. Tambm sobre Mussolini, voc se lembra do que eu lhe dizia quando estava aqui (a propsito, quando voc volta?). um intrigante. Tambm nele falta um ideal.283

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J aps a Marcha sobre Roma, em fins de outubro de 1922, embora observasse, ao mesmo Pantaleoni, no ser possvel saber se o fascismo seria ou no bem-sucedido, dizia ser timo o seu princpio poltico, mas no to bom e econmico. Quanto a Mussolini, o autor o qualificava como um homem de Estado de mrito incomum.284 E escrevendo a um outro amigo, Carlo Placci, o autor ia ainda mais longe, afirmando:

Mussolini esteve algum tempo em Lausanne e freqentou os meus cursos, mas no cheguei a conhec-lo pessoalmente. Ele agora se revelou exatamente como o homem que a sociologia pode invocar. E agora eu poderia colocar um ponto final nos meus dois pequenos volumes,285 com as mesmas palavras que Maquiavel usa no final do Prncipe. Transcreveria sem hesitar o trecho que voc conhece e que diz: Consideradas, pois, todas as coisas acima referidas, e pensando comigo mesmo se, na Itlia, os tempos presentes poderiam prometer honras a um prncipe novo e se havia matria que desse, a um que fosse prudente e valoroso, oportunidade de introduzir uma nova ordem que lhe trouxesse fama e para o povo prosperidade, parece-me que h tantas coisas favorveis a um prncipe novo que no sei de poca mais propcia para a realizao daqueles propsitos.286

E tambm a Carlo Placci, em julho de 1923, Pareto afirmava que, embora houvesse vrios perigos e obstculos no caminho, a salvao da Itlia podia estar no fascismo.287 Se ele manteria ou no essa avaliao impossvel saber, visto que cerca de um ms depois, em 19 de agosto de 1923, o autor veio a falecer. De todo modo, sua autorizao anterior, sua legitimao prvia de sua apropriao pelo fascismo, terminaram por propiciar a vinculao de seu nome a este. Mais do que isso, o fascismo erigiu de Pareto, aps a sua morte, a imagem de um verdadeiro profeta, quase um santo, um heri com qualidades sobre-humanas, impondo-lhe uma leitura espiritualista, reservando-lhe um lugar de destaque em seu panteo e obrigando os seus comentadores, que falavam j a partir de um referencial, de um contexto distinto, a um contnuo esforo de relativizao.288

Concluso

Tomar as elites como objeto de pesquisa significa, obrigatoriamente, impor-se a tarefa de percorrer uma genealogia de autores que se consagraram como produtores, ou comentadores e leitores privilegiados de um corpo terico especfico, identificado com aquele tema, com nfase especial nas suas origens. De modo geral, entretanto, essa genealogia apresentada como uma sucesso de idias, obedecendo a uma lgica de acmulo, de influncia, de complementaridade, de diviso do trabalho intelectual, de contigidade, produzindo uma aparncia de continuidade, de universalidade e de contemporaneidade, ainda que se trate de demarcar diferenas e oposies entre as teses arroladas. Dessa forma, os autores e os seus textos so tratados de maneira equivalente, como se tivessem as mesmas marcas, o mesmo referente, inscrevessem-se em uma mesma rea de reflexo sociolgica, nomeada, e assim tambm circunscrita, a partir da categoria elites. Quando as defasagens ou as divergncias emergem, so percebidas como resultado de nfases diferenciadas, tomadas de posio cientficas distintas. De todo modo, o que resulta dos conflitos, segundo a leitura consagrada, o aperfeioamento da teoria, o incremento da sua eficcia ou mesmo a sua atualizao, com o acrscimo de questes novas e mais pertinentes. Se o que importa, acima de tudo, captar a essncia do pensamento de um autor, a fim de que se possa enquadr-lo na cadeia sucessria da teoria, avaliando suas contribuies, percebendo suas influncias ou mesmo indicando seus pontos ultrapassados, basta recorrer ao seu texto considerado clssico e, dentro dele, ao captulo principal, submetendo-o a um trabalho de interpretao. Quando porm se trata de um autor pouco traduzido, ou cujos es-

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critos so de acesso mais difcil, como o caso de Mosca, as resenhas de leitores e comentadores autorizados podem ser consideradas suficientes. Forma-se assim um quadro coerente e harmnico, mas fechado. Trabalhar com a teoria das elites, desse modo, significa saber, mais do que os autores que devem ser lidos, a seqncia exata e a forma em que isso deve ser feito, contando de sada com um conjunto de questes dadas, tidas como as mais pertinentes. De fato, o que se observa um processo de naturalizao, no qual as inmeras operaes de construo e de afirmao da continuidade, da universalidade e da contemporaneidade, vale dizer, de constituio, de evidenciao e de imposio de uma teoria e de suas formulaes clssicas, passam despercebidas, sendo assim incorporadas de modo no-controlado. Nesse processo est envolvida uma ampla gama de agentes como autores, comentadores, editores, tradutores, universidades e mesmo governos e partidos polticos, entre outros, cada um diferentemente posicionado, com percepes, recursos e estratgias distintos, e em competio entre si. Quando esses elementos so levados em conta, o efeito de ruptura da harmonia do quadro prevalecente, introduzindo-se uma cunha de descontinuidade onde antes havia continuidade, de singularidade no que se tratava como universalidade, de anacronismo no que se percebia como contemporaneidade, e de estranhamento no que soava familiar. Dessa forma, as idias, do mesmo modo que os comentrios, deixam de ser percebidas como entidades desencarnadas para serem objetivadas, remetidas aos seus formuladores e estes inscritos nas suas trajetrias e nos seus espaos de posies especficos. Essa operao se mostra to mais fundamental quanto se tem em mente que, muito alm de idias em um sentido estrito, o que est em jogo, nesse caso, so instrumentos de construo do mundo social. Incorporar de forma acrtica, no-controlada, como se fossem evidentes, pacficas as leituras consagradas de uma teoria significa tomar como dadas, sem que disso se d conta, questes, hipteses e noes que informaro pesquisas e anlises de resultados, que presidiro processos de demonstrao, tomando, por essa via, um objeto pr-construdo. O que resulta da, alm e mesmo por isso da excluso de uma srie de problemticas pertinentes mas que se tornam impensveis, a confirmao e o reforo das percepes e das leituras prvias. No caso da teoria das elites, a operao reflexiva exige uma anlise de suas origens, ou mais especificamente de Mosca e de Pa-

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reto, referncias obrigatrias legitimadoras dos estudos relacionados ao tema, mesmo quando se trata de critic-los. Os dois italianos figuram como pais fundadores da teoria, como autores complementares, que enfatizam pontos distintos mas interligados, ainda que um, Pareto, seja percebido como mais brilhante, vasto, independente, tendo uma perspectiva mais autnoma e objetiva da cincia, e o outro, Mosca, mais restrito, voltado especificamente para a esfera da poltica, e por ela informado, operando portanto com uma viso engajada da atividade cientfica. Mas o que se pde notar que longe de serem complementares, Mosca e Pareto eram autores concorrentes. E foi essa concorrncia que em larga medida determinou seu encadeamento, levou Mosca a formular sua tese da classe poltica como doutrina da classe poltica e, alm disso, a operar um deslocamento de nfase temtica, impondo, em contrapartida, uma percepo de seus trabalhos como obra dedicada desde o incio doutrina, enquadrandose na cincia poltica e buscando maior autonomia em relao ao direito. Mais do que isso, foi possvel demonstrar que a apropriao da disputa entre os dois autores por outros agentes em um outro contexto o dos Estados Unidos dos anos 30 , e portanto em um quadro concorrencial distinto, teve um peso fundamental para que tambm se marcasse a presena de Mosca nas origens da teoria das elites. Fixou-se assim a percepo desse autor como eminentemente um terico, agora da classe dirigente termo que ganhou destaque e passou a se associar ao seu nome principalmente a partir da sua apropriao americana , ao mesmo tempo em que se imps, no apenas dele mas tambm de Pareto, uma leitura de marcado trao poltico. Mosca e Pareto tiveram trajetrias distintas, que se refletiram em suas percepes diversas. Enquanto um era siciliano de Palermo, oriundo de um setor subalterno das classes dominantes, o outro era de origem nobre, nascido em Paris e criado em Turim, no Piemonte, de onde provinha o grupo que tomou a frente do processo poltico de unificao da Itlia. Mosca estudou direito na universidade de sua prpria cidade natal, que no recorrentemente citada como instituio de ensino de primeira linha, ao passo que Pareto formou-se em engenharia em Turim, que era um dos importantes centros culturais do pas. O interesse maior de Mosca dirigia-se, inicialmente, para o direito constitucional. Refletir sobre a constituio significava perquirir os fatores conformadores e reguladores da nao, o que ganhava sentido maior diante do fato de que era recentssima a for-

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mao do Estado nacional italiano e de que a regio da qual Mosca era originrio havia ocupado um lugar subordinado nesse processo de formao. O que mais preocupava Mosca nesse processo, constituindo o cerne de sua anlise, era que a forma de governo assumida pelo Estado italiano resultava em um grave desequilbrio de poderes, conferindo aos parlamentares, classe poltica, uma autonomia que os colocava acima das outras esferas, que passavam a ficar subordinadas a eles. De fato, como vimos, a poltica italiana se encontrava, poca em que Mosca escreveu a Teorica, imersa nas prticas do transformismo. Aquilo porm, que era fruto da configurao poltica especfica de seu pas, foi interpretado pelo autor como uma norma universal, resultado lgico, necessrio, do governo parlamentar. De nada adiantariam, portanto, a extenso das franquias, a adoo do sufrgio universal, uma vez que no implicavam uma alterao da estrutura viciada do governo. Pelo contrrio, elas s viriam legitimar ainda mais a ao da classe poltica. E nem se diga que com a ampliao da participao a minoria seria controlada pela maioria, ou que seriam eleitos indivduos de maior valor moral. Segundo Mosca, era sempre a minoria que se fazia eleger, ao invs de ser eleita, e fazia-se eleger aquele que dispunha de recursos para tanto, o que significava dizer que havia uma constante reconduo dos mesmos indivduos ou de seus herdeiros. Respaldados pelo argumento de que representavam a vontade da maioria, ento, esses indivduos teriam acrescido o seu poder de forma brutal. Alm disso, de acordo com o autor, a concorrncia pelo voto, em vez de ser uma garantia de diversidade, ou de pluralidade poltica, conduzia de forma inapelvel unanimidade. Havia, portanto, uma convergncia do espectro poltico no sentido de uma adeso posio liberal, reduzindo a oposio a algo prximo de zero. Mosca reputava suas teses como altamente inovadoras, escorando-se nisso em suas tentativas iniciais de acesso carreira universitria. Sem ser herdeiro de algum professor de prestgio, sem contar com vnculos polticos que lhe garantissem o acesso a uma posio no magistrio superior, em um quadro de convergncia liberal e de troca generalizada de favores e apoios por cargos, produzidas pelo transformismo, o autor procurava afirmar-se como um inovador, enfatizando tambm a legitimidade do princpio do mrito e demarcando a sua diferena em relao vaga dominante. Investindo na carreira tradicional do direito, no entanto, no pde Mosca ser reconhecido como um inovador, enfrentando sucessivos fracassos iniciais, tendo que se empregar como professor

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secundrio e conseguindo apenas um cargo de professor extraordinrio em Palermo. Esse mesmo cargo o autor teve que abandonar ao se casar, conseguindo uma vaga de funcionrio da Cmara dos Deputados, em Roma, para onde se mudou. A passagem pela Cmara dos Deputados foi fundamental para que Mosca acumulasse laos polticos e se mantivesse, ainda que tambm como professor extraordinrio, vinculado ao magistrio superior na Universidade de Roma. O acesso do autor a uma posio estvel na carreira universitria s se daria em 1896, mesmo ano da publicao dos Elementi di scienza politica, com sua ida para Turim. Mais do que o reconhecimento de suas teses, mais do que o livro, que no teve uma grande difuso e foi rejeitado em concursos cientficos, foram fundamentais para o ingresso de Mosca na Universidade de Turim seus novos vnculos, seu capital social. Como se viu, os Elementi traziam a marca da trajetria de Mosca, substituindo o reformismo que caracterizava a Teorica por uma postura mais ctica. Ao mesmo tempo, o autor fazia ali algumas concesses ao liberalismo, acentuando ter sido nesse sistema que a humanidade havia alcanado o seu ponto mais alto de civilizao, sendo ainda ele o que havia permitido o maior nvel de defesa jurdica. Os anos de Turim foram caracterizados, na trajetria de Mosca, por um movimento ascendente. O autor acumulou prestgio, notoriedade, escrevendo artigos para grandes jornais e estabelecendo liames com setores empresariais do Norte. Foi nesse processo que ele passou a afirmar-se tambm politicamente, elegendo-se deputado como herdeiro de Di Rudin. Como se pde ver, esse perodo, que para Mosca foi de projeo, de publicizao, de acmulo de prestgio, de notoriedade, de capital social e de entrada na poltica partidria, correspondeu, na trajetria de Pareto, ao seu afastamento da militncia poltica, sada da Itlia e ao seu progressivo isolamento. Se Mosca enfrentou dificuldades no incio de sua carreira profissional, com Pareto ocorreu o inverso. Com seu caminho facilitado por seus vnculos familiares, Pareto teve uma carreira bem-sucedida at meados dos anos 1870, quando se observou uma inflexo em sua trajetria, determinada pela vitria poltica da esquerda na Itlia. Ao ver deslocado do poder o grupo com o qual tinha fortes ligaes pessoais, Pareto passou a investir em uma militncia poltica livre-cambista, que o levou a uma situao de crescente incompatibilizao com o governo. Esse movimento correspondeu, igualmente, passagem do autor de economista diletante a especialista. Foi

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no estudo da economia pura que Pareto passou a investir, o que pode ser compreendido tanto por sua perspectiva fsica e matemtica, quanto por seu carter marcadamente antiestatista. Em meados dos anos 1890, ao mesmo tempo portanto em que Mosca ia para Turim, Pareto deixava a Itlia, assumindo a cadeira de Walras na Universidade de Lausanne. O autor qualificava sua sada do pas como uma abdicao a toda e qualquer pretenso poltica, marcando sua dedicao exclusiva cincia, cincia pura, objetiva, autnoma. a partir de sua trajetria, portanto, que possvel entender no apenas sua converso economia, mas tambm sua adoo de uma postura absolutamente distanciada, em um sentido literal mesmo, em cuja base estava o seu fracasso poltico. O que se viu, entretanto, que no houve necessariamente uma ruptura na passagem de Pareto da poltica cincia econmica. Pode-se compreender em parte essa passagem como uma tentativa de fundar teoricamente a postura poltica livre-cambista. De fato, era sob a forma do distanciamento cientfico que, agora, se manifestava o engajamento de Pareto. Havia, nesse ponto, uma clara diferena entre Pareto e Mosca. Enquanto aquele transps economia o paradigma fsico, adotando uma linguagem eminentemente matemtica e objetivista, este, enquadrado pelos marcos do direito, pautou-se por uma viso normativa da cincia, e da cincia poltica em particular, cujo objetivo seria contribuir para uma poltica cientfica. Se Pareto foi reconhecido como um cientista, como um pensador autnomo, Mosca o foi, principalmente, como um poltico. Isso significa que, como cientista, Mosca no falava apenas aos cientistas, mas tambm aos polticos. Era duplo portanto o seu referencial, o que guarda relao, por um lado, com a interpenetrao que se observava na Itlia entre atividade intelectual e poltica, e, por outro, com o fato de que Mosca, efetivamente, investiu em uma carreira poltica. Pareto, ao contrrio, dirigia-se de modo direto, e restrito, aos cientistas, o que no impedia, claro, que fosse tambm reconhecido politicamente. Essa restrio, todavia, no implicou que ele se tivesse tornado um intelectual corporativo para retomar os termos de Kant , dependendo dos ganhos da universidade, subordinando-se s suas normas, sujeitando-se aos seus padres de avaliao e de legitimao. Mesmo na universidade Pareto manteve-se, em parte, como um intelectual independente, isolando-se quando via frustradas suas propostas, dando poucas aulas. Essa independncia pode ser duplamente creditada s suas origens aristocrti-

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cas: pelo senso de superioridade que delas decorreu; e pela estabilidade financeira proporcionada por heranas familiares. Foi dessa independncia e do progressivo isolamento, associado a frustraes polticas, acadmicas e pessoais, que em larga medida decorreu o deslocamento de Pareto da economia para a sociologia. Sua nfase nas aes no-lgicas representava uma tentativa de dar conta de suas prprias frustraes. Ao mesmo tempo, sua teoria das elites e de sua circulao indicava que o isolamento do autor no era absoluto. De fato, a elaborao da teoria se relacionava, em parte, com a concorrncia de Pareto com os socialistas e tambm com sua competio com Mosca, de cujas idias se apropriou mas cuja importncia insistia em diminuir ou simplesmente negar, no o mencionando. Convm acentuar, contudo, que, ainda que seja possvel perceber semelhanas, as formulaes de Mosca e de Pareto guardam algumas diferenas bsicas. O termo elite, de Pareto, articulava-se a um argumento sobre a inevitabilidade da desigualdade entre os homens. Do ponto de vista do autor, enquadrado por sua origem nobre, essa desigualdade tinha uma marca essencialista, remetida prpria natureza humana. No por acaso, portanto, elite era usado por ele de modo intercambivel com aristocracia. Por isso mesmo tambm no parece estranho que, ao se referir elite, Pareto adotasse sempre a perspectiva do grupo estabelecido no poder, falando dos meios que empregava para ali se manter ou do que poderia lev-lo runa. J Mosca, com origem e capital social mais baixos que os de Pareto, embora acima dos da mdia da populao, e vindo de uma regio que havia sido marcada pela subordinao poltica, preocupavase, basicamente, com o problema da desigualdade poltica, como o prprio termo que privilegiou denota. Ainda que a desigualdade poltica tambm se afigurasse para ele como uma inevitabilidade, suas causas eram remetidas no a uma essncia ou natureza humana. Sua nfase recaa sobre a concentrao de recursos como fora, riqueza, nascimento, saber ou mrito, que permitiam o acesso classe poltica. Sua perspectiva, ao menos em seus primeiros escritos, era claramente exterior classe poltica. Tratar, portanto, Mosca e Pareto de modo indiferenciado, simplesmente enquadrando os dois no que seria uma teoria geral das elites, como se a distanci-los houvesse apenas o fato de que um atentava mais para a circulao e o outro para os mecanismos de seleo das elites, ignorar descontinuidades mais profundas que os apartavam e que se embutiam nos prprios termos utilizados por cada um.

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Embora se tivesse falado anteriormente em um deslocamento de Pareto da economia para a sociologia, preciso acentuar que, como pde ser visto, do mesmo modo que sua passagem da poltica cincia no constituiu uma ruptura radical, uma adoo de uma postura efetivamente desengajada, o investimento na sociologia tambm no resultou em um abandono da economia. Pelo contrrio, alm de a economia marcar bastante a sociologia de Pareto, o autor continuou a publicar intensamente naquela rea. De fato, para ele a sociologia, ao propiciar uma viso mais abrangente, permitia dar conta de modo efetivo das aes humanas de maneira geral, inclusive as econmicas. E no apenas isso, por consistir em um estudo lgico, cientfico, das aes humanas, a sociologia permitia at mesmo prever o rumo dessas aes. Desse modo, o investimento de Pareto na sociologia correspondeu, igualmente, a um perodo em que passou a assumir posturas crescentemente profticas. E o que se afigurava para ele, apoiado em sua noo da circulao das elites, era que se aproximava o fim do ciclo da plutocracia demaggica, aferrada religio humanitria, e que teimava em no usar a fora para neutralizar seus inimigos. Foi dessa forma, principalmente, que Pareto voltou a se fazer mais presente na Itlia, em um momento de instabilidade que marcou o fim da I Guerra Mundial, de impacto causado pela Revoluo Russa, de crescimento e de radicalizao do socialismo, de mobilizao nas cidades e no campo, e de afirmao do fascismo. Foi, entretanto, apenas com a ascenso de Mussolini que Pareto passou a ser efetivamente glorificado em seu pas, alado condio de profeta do novo regime, recebendo e aceitando as honras que julgava merecer, ganhando reconhecimento poltico por sua produo cientfica. O fascismo foi tomado como demonstrao do acerto das previses de Pareto o que representou um estmulo curiosidade por seus trabalhos , ao mesmo tempo em que se apropriou de suas idias como demonstrao cientfica de sua inevitabilidade. Esse mesmo momento em que se deu o novo ascenso de Pareto na Itlia, contudo, foi o que marcou o descenso de Mosca, impondolhe um fracasso poltico, um isolamento na universidade, uma dedicao exclusiva cincia, vinculado, agora, cadeira de histria das doutrinas polticas, na Universidade de Roma. Foi a crescente projeo de Pareto como socilogo na Itlia, o sucesso de sua teoria das elites, que, em grande parte, levou Mosca a formular suas teses sobre a classe poltica como uma doutrina da classe poltica e a buscar impor uma continuidade entre os seus trabalhos, como se constitussem uma obra de aperfeioamento e de reafirmao daquela doutrina,

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que j estaria presente, de forma articulada, desde o seu primeiro livro, a Teorica dei governi. E mais, se era sobretudo como jurista que at ento Mosca buscava se afirmar, mesmo quando seus textos traziam no ttulo a expresso cincia poltica, agora era como cientista poltico que preferencialmente, o autor se apresentava. Isso, entretanto, no acarretou para ele, de modo necessrio, uma completa autonomizao da cincia poltica em relao ao direito, ou mesmo, e principalmente, prpria poltica. Pelo contrrio, a urgncia da construo de uma poltica cientfica parecia bastante clara ao autor, j naquele incio da dcada de 20. Mosca, que investiu firmemente em uma carreira poltica, nela se notabilizando, afirmando-se como um poltico digno, uma espcie de reserva moral do Parlamento italiano, ops-se ao fascismo, desautorizando o uso que fazia este de suas crticas ao governo parlamentar. Tambm esse novo momento se refletiu em seus textos, levando-o a moderar suas avaliaes anteriores em relao democracia, ao sistema representativo e mesmo ao socialismo. O que se percebe, nesse ponto, uma clara inverso dos autores em relao s suas posturas iniciais, ambos escorados em suas respectivas teses, da classe poltica e das elites, atribuindo-lhes, porm, um sentido distinto. Enquanto Mosca, a princpio, percebia as mazelas do quadro italiano como decorrncias lgicas e necessrias do liberalismo e do governo parlamentar, que conferiam enormes poderes classe poltica, Pareto as avaliava, ao contrrio, como resultado do abandono, pelas elites, dos princpios bsicos do sistema liberal. J ao final, Pareto, com base em sua sociologia, vaticinava o fim inexorvel do ciclo das elites no poder, e assim tambm da poltica liberal, por sua fidelidade ao credo humanitrio, ao passo que Mosca, falando a partir de sua cincia poltica, apresentava a manuteno do sistema representativo e do governo parlamentar como principais e urgentes tarefas da classe poltica.

Notas

1. Para autores como o socilogo Seymour Martin Lipset, no era necessariamente vlido o argumento democrtico clssico de que era desejvel uma participao ampla e generalizada. O que o caso da Alemanha dos anos 30 demonstrava, com a ascenso poltica do Nacional-Socialismo, era que o aumento da participao direta podia decorrer tambm, inversamente, de um declnio na coeso social e de uma disfuno no processo democrtico (Lipset, 1960:32. Ver tambm, nessa linha, Milbrath, 1966:142-54). Nessa perspectiva, absteno e apatia polticas poderiam ser tomadas como indicadores positivos. Tal a posio do cientista poltico W. H. Morris Jones, autor de In defense of apathy, artigo de 1954 no qual procura mostrar que a idia do dever do voto era mais prpria ao campo totalitrio, em nada contribuindo, ao contrrio do que se acreditava, para a defesa da democracia. Foram os no-apticos, baseados em noes incorretas da democracia, que garantiram a ascenso de Mussolini, Hitler e Stalin. A existncia de uma parcela aptica do eleitorado era um claro sinalizador dos limites da interveno da poltica, alm de constituir-se em um amortecedor para os fanticos, eles, sim, um real perigo para a democracia (Jones, 1954, passim). A mesma questo permeia dois artigos bastante referidos sobre o problema do consenso na democracia, ambos do incio dos anos 60: Fundamental principles of democracy: bases of agreement and disagreement, de Prothro & Grigg (1960), e Consensus and ideology in American politics, de McClosky (1964). Para uma crtica especfica a esses dois trabalhos, ver Femia (1977). Para uma refutao da idia de que a democracia se beneficia de uma baixa participao, ver Duncan & Lukes (1963). 2. Foge aos objetivos deste livro analisar com mincia as formulaes recentes da teoria das elites. Procurou-se apenas traar um quadro geral reunindo algumas teses bsicas, ainda que reconhecendo a existncia de diferenas significativas entre elas. Seus formuladores so autores to diversos quanto Joseph Schumpeter, Raymond Aron, Karl Mannheim, Harold Lasswell, C. Wright Mills, Robert Dahl e Giovanni Sartori, apenas para citar os mais notrios. Um estudo mais detido dos argumentos destes e de outros autores pode ser visto em Grynszpan (1996). 3. O que se tomou como referncia bsica foi a produo acadmica estrangeira, em particular a norte-americana e a europia, atravs da qual o debate foi apropriado no Brasil. Aqui, no entanto, a cronologia do debate foi de certo modo inversa, experimentando uma intensificao no momento mesmo em que reflua

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fora do pas. Na verdade as elites, durante muito tempo, foram consideradas objeto de estudo ilegtimo, ainda que constassem como matria obrigatria nos currculos de cincias sociais. Essa preterio pode ser entendida, ao menos em parte, como resultado de uma relao estreita entre os campos acadmico e poltico, que produziu uma hierarquizao de objetos que tomava a premncia e a excluso sociais e polticas como princpios bsicos de relevncia sociolgica. Acrescente-se a isso a rejeio de que foram alvo os formuladores iniciais da teoria das elites que, como se ver adiante, tiveram seus nomes associados ascenso do fascismo na Itlia. No se tratar, neste livro, de analisar as condies e as formas de apropriao da teoria das elites no Brasil. Ainda assim, cabe assinalar que o prprio padro de distribuio dos livros referidos teoria pelas bibliotecas do Rio de Janeiro, por exemplo, apresenta por si s alguns elementos bastante interessantes. H uma clara incidncia de textos-chave, em edies e verses variadas, em acervos como os da Fundao Getulio Vargas, da Escola Superior de Guerra e da Escola de Guerra Naval, o que pode ser um indicador do peso que as distintas formulaes da teoria exerceram sobre setores significativos das elites brasileiras, como o burocrtico, o empresarial e o militar. 4. Mariza Peirano (1995, especialmente o cap. I e o posfcio) procura mostrar que, no caso da antropologia, a conformao de uma competncia profissional especfica inseparvel de um certo grau de controle da histria da disciplina. O processo de formao do iniciante, portanto, constitudo pela transmisso de uma tradio de trabalho por meio da sua insero em uma das distintas linhagens da disciplina, conferidoras de um lugar na comunidade de especialistas. 5. Ver, por exemplo, Albertoni (1989a:ix-xxiv, 1990:17-28), Bobbio (1991:385-6), Bottomore (1965:8), Coser (1971:411), Giddens (1975:144), Kolegar (1967:354), Meisel (1962:3-5, 1965a:2), Parry (1969:15) e Sartori (1965:56-8). Autores como Renzo Sereno (1962:3-51) e Suzanne Keller (1963:16-24), embora reconheam Mosca e Pareto como os primeiros formuladores e sistematizadores da teoria das elites, localizam as origens de algumas de suas questes bsicas ainda em Aristteles e Plato. O ingls W. G. Runciman, por seu turno, mesmo qualificando Mosca e Pareto como patriarcas menores da sociologia poltica, quando comparados a Marx e a Weber, identifica a sua reflexo sobre as elites como uma contribuio efetiva (Runciman, 1969:64). 6. Ver tambm a coletnea de Marcus, principalmente sua parte introdutria (1983:7-57), para um arrolamento de trabalhos antropolgicos sobre elites. 7. Em sua anlise sobre o campo da cincia, o socilogo Pierre Bourdieu (1983:125) observa que o afluxo de pesquisadores para um determinado tema ou problema pode ser explicado pela sua possibilidade de conferir ganhos simblicos em prestgio, notoriedade e reconhecimento, mais do que propriamente por uma importncia cientfica intrnseca. 8. Buscando refletir sobre as condies sociais de possibilidade da leitura, Bourdieu chama a ateno para a distino entre as categorias de auctor e de lector. A primeira designa aquele cuja auctoritas se baseia na produo de um discurso novo. J o lector funda a sua legitimidade na auctoritas do auctor, comentando seu discurso j estabelecido. No entanto, ao impor como verdadeira a sua leitura do discurso de um auctor, o que faz o lector universalizar as condies sociais de possibilidade de sua prpria leitura, produzindo em torno dela um efeito de evidncia e de reconhecimento (Bourdieu, 1990:134-6. Ver tambm Bourdieu & Chartier, 1993:268). 9. H que se considerar igualmente o papel desempenhado, entre outros, por editores e tradutores na determinao de uma leitura dos textos. Mesmo que no se

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v desenvolver esse ponto, que mereceria um estudo especfico, algumas indicaes sero dadas adiante, particularmente no que toca ao caso de Mosca. Para uma reflexo nessa linha, ainda que centrada em um objeto distinto, ver Chartier (1992, 1993, 1994). 10. So apropriadas, aqui, basicamente as teses de Pierre Bourdieu. Destacase, em particular, sua teoria dos campos enquanto espaos de lutas concorrenciais entre agentes diversamente posicionados, dotados de estruturas distintas de capitais, sua viso de trajetria como sucesso de posies ocupadas por um mesmo agente em um espao em devir, em constante transformao, bem como sua noo de habitus. Sobre esses pontos, ver Bourdieu (1986, 1989:7-15, 1989b:59-73 e 131-61). 11. Uma referncia importante nesse sentido a anlise de Mozart feita por Norbert Elias. O socilogo procura entender como foi que o msico, apesar da genialidade e virtuosismo, terminou morrendo pobre, doente e ignorado, aos 35 anos. Isso, a seu ver, s pode ser feito custa de um rompimento com a perspectiva biogrfica tradicional, que toma os indivduos como personalidades absolutamente singulares e incomparveis, e com as histrias da arte a-histricas, que se limitam a enquadrar as realizaes artsticas em grandes categorias abstratas, apresentando-as como expresses ou representantes de determinados estilos. Os indivduos, assim como as formas pelas quais so reconhecidos, at mesmo para que possam ser compreendidos na sua especificidade, sustenta Elias, devem ser remetidos aos seus contextos, s presses sociais que agem sobre eles, s redes de interdependncia nas quais se inscrevem (Elias, 1995:15-9). Em um sentido prximo segue Didier Eribon, em sua resposta s crticas dirigidas sua biografia de Michel Foucault (Eribon, 1990). Diz ele que fazer a biografia do autor implicou romper com todos os mitos de um eu fundador, de um projeto original, de uma coerncia teleolgica, optando por uma diversidade de fisionomias historicamente determinadas, definidas a cada momento pelo entrecruzamento de foras variadas (Eribon, 1994:24). Ver tambm as investidas de Lucien Febvre, ainda em 1938, contra as histrias da filosofia que mais se apresentavam, segundo ele, como engendramentos de conceitos sados de inteligncias desencarnadas e depois vivendo com sua prpria vida fora do tempo e do espao (Febvre, 1978:124). 12. Para uma anlise da cincia como campo social e portanto como campo de lutas concorrenciais e da autoridade cientfica como capital, associado ao prestgio e notoriedade, que pode ser acumulado, transmitido ou mesmo reconvertido em outras espcies de capital, ver Bourdieu (1983). 13. O fato de se pretender abarcar aqui o conjunto de relaes de Mosca e de Pareto, dando conta de seus desdobramentos significativos, no implica que se tenha a pretenso de esgotar esse conjunto, ou de tratar de forma efetiva, com o mesmo nvel de detalhamento e de profundidade, cada uma de suas distintas subpartes. 14. Para um quadro geral do perodo, ver, por exemplo, Hobsbawm (1977a, 1977b, 1988). 15. Hobsbawm (1977b:121, 1988:127). 16. Hobsbawm (1988:129-31). Os prprios usos do termo elite, como mostra Raymond Williams, sofriam alteraes significativas, espelhando o quadro de transformaes. At o sculo XVIII ele era intercambivel com um outro termo, eleito, significando preferido, seleto, distinto, em um sentido tanto social quanto religioso. Mas a partir do sculo XIX o significado religioso foi expurgado, limi-

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tando-se a categoria a expressar distino social ou, igualmente, excelncia dentro de um grupo especfico. Nessa linha, elite tornou-se um equivalente de melhor, cumprindo, da mesma forma que o conceito de classe, mas em concorrncia com ele, um importante papel classificatrio, em um contexto de ruptura das antigas ordens de diferenciao social. Ao mesmo tempo, em um instante em que se ampliava a cidadania poltica e se afirmavam novos padres de legitimidade baseados, entre outros elementos, na escolha eleitoral, o termo elite tambm passou a significar aptido, capacidade para o governo (Williams, 1981:96-8). 17. O historiador Eric Hobsbawm tambm chama a ateno para esse aspecto. Segundo ele, a Revoluo Francesa havia derrubado a sociedade aristocrtica, mas no a aristocracia ou a influncia aristocrtica, que serviam de parmetro para os novos grupos superiores (Hobsbawm, 1977a:203). 18. Hobsbawm (1977a:129, 1988, especialmente os caps. 4 e 5). O historiador Michael Biddiss, em seu The age of the masses, observa que, por volta da dcada de 1870, uma boa parte dos pases europeus j havia adotado instituies liberais parlamentares, o que contrastava com uma clara resistncia ao princpio da igualdade poltica, manifestada atravs de mecanismos de excluso. Mas apesar das restries, ocorreu no perodo, como tendncia, um avano no sentido da poltica de massa (Bidiss, 1977:38). O socilogo Robert Castel (1995:240-7) enfatiza pontos prximos, qualificando o liberalismo francs do sculo XIX como restaurador da ordem, informado pela noo de governo dos melhores. 19. A recorrncia de determinados temas que, segundo H. Stuart Hughes, marcou a produo intelectual de fins do sculo XIX e incio do sculo XX, permite perceber seus produtores como pertencentes a uma gerao especfica a de 1890. Naquela dcada e na seguinte que, principalmente, os pressupostos bsicos do pensamento social dos sculos XVIII e XIX, identificados com o Iluminismo, foram submetidos a um forte exame crtico. A gerao de 1890 havia reagido contra o pensamento positivo, contra o primado da racionalidade, assumindo um cunho marcadamente subjetivo, contra a democracia e o socialismo, colocando-se a tarefa de ir alm do que julgava ser as fices da ao poltica, os mitos, buscando a realidade que estava por detrs deles, os verdadeiros detentores do poder, as elites (Hughes, 1958:33-6 e 63-6). Sobre essa questo ver tambm Biddiss (1977:14-5). 20. Para Mayer (1987:273), o darwinismo social havia se convertido, naquele momento de remobilizao da antiga ordem, em uma Weltanschauung, em uma concepo de mundo predominante entre as classes dominantes e governantes da Europa. 21. Para Runciman, o que conferiu notoriedade a Mosca, a Pareto e tambm a Robert Michels outro autor central no que toca teoria das elites foi justamente o fato de, em plena mar montante da democracia, terem acentuado o carter inevitvel das oligarquias. Em suas palavras: Essa vigorosa nfase na oligarquia, embora possa ser apenas uma reafirmao do que j havia sido dito por outros, adquire um significado diferente e mais poderoso em um quadro de prticas e instituies supostamente democrticas. As formas constitucionais e organizacionais discutidas por todos os trs autores so a expresso de expectativas baseadas, precisamente, na crena de que a democracia pode ser posta em prtica. Portanto, denunciar essa ortodoxia em expanso significava tomar uma posio ao mesmo tempo original e provocativa. Dizer que todos os governos prvios foram oligarquias interessante se no profundo; afirmar que os governos democrticos tambm o so e sempre o sero desconcertante (Runciman, 1969:70).

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As observaes de Biddiss (1977:132-3), Hughes (1958:63-7) e Geraint Parry (1969:23) seguem nesse mesmo sentido. Sobre as idias especificamente de Robert Michels, ver adiante nesta mesma introduo. 22. Na verdade, essa leitura relativamente generalizada, como aponta Ferdinand Kolegar (1967:354). Alm de Mayer e de Hirschman, pode-se citar Norberto Bobbio (1991:391), para quem a teoria das elites havia sido uma reao ideolgica ao advento da sociedade de massa, tendo contribudo para dificultar a afirmao da democracia. Igualmente T. B. Bottomore, outro comentador bastante citado, atribui as teses de Mosca e de Pareto sua oposio ao socialismo. Suas crticas democracia, segundo ele, baseavam-se no fato de que a consideravam uma porta aberta para o socialismo (Bottomore, 1965:16-20). Esta tambm a posio de Hughes (1958:78-9) e de Parry (1969:27), para quem o pensamento elitista no pode ser plenamente compreendido se no se levar em conta o impacto do marxismo. 23. Como observa Biddiss, a emergncia da sociedade, da cultura e da poltica de massas forneceu aos intelectuais de fins do sculo XIX seu tema bsico de reflexo. Mas como, em grande parte, consideravam as massas medocres, incompetentes, eles terminaram por traar para a sociedade europia um quadro extremamente ctico, pessimista (Biddiss, 1977:14-5). Parte importante dessas avaliaes encontrava-se, como indica Hobsbawm, no campo da psicologia. Autores como Gabriel Tarde e Gustave Le Bon voltaram-se para as aes das massas para demonstrar como os homens, em larga medida, eram guiados no pela razo, mas pelos instintos, pelos apetites, mesmo os mais baixos e violentos (Hobsbawm, 1988:377). 24. Em El Estado y la revolucin, publicado em 1918, Lenin sustentava a tese de que, nas sociedades de classes, os sistemas de governo nada mais eram do que ditaduras, formas de opresso de uma classe sobre outra, sendo o Estado o instrumento dessa opresso. No capitalismo, portanto, a democracia, ao contrrio do que se dizia, era sinnimo de opresso de uma minoria a burguesia sobre uma maioria o operariado. J a ditadura do proletariado, esta sim se aproximava do ideal democrtico, visto que significava o governo, a imposio da vontade da maioria sobre a minoria (Lenin, 1978a, passim). O carter antidemocrtico das idias de Lenin e seu parentesco com as teses elitistas tm sido acentuados por diversos autores alm de Hirschman, entre os quais Robert Dahl (1989:53-4), Seymour Lipset (1968:17, nota 2), Peter Bachrach (s.d:2) e Geraint Parry (1969:55). Esses autores baseiam sua afirmao nos livros Que fazer?, de 1902, e La enfermedad infantil del izquierdismo en el comunismo, de 1920. Em ambos, Lenin expressava a viso de que, por si mesmas, as massas eram incapazes de promover um salto de qualidade no sentido do socialismo, necessitando da direo de uma organizao de revolucionrios conscientes. Em Que fazer?, Lenin declarava: Ora, eu afirmo: 1) que no seria possvel haver movimento revolucionrio slido sem uma organizao estvel de dirigentes, que assegure a continuidade do trabalho; 2) que quanto maior a massa espontaneamente integrada luta, formando a base do movimento e dele participando, mais imperiosa a necessidade de se ter tal organizao, e mais slida deve ser essa organizao (seno ser mais fcil para os demagogos arrastar as camadas incultas da massa); ... (Lenin, 1978b:96). Em La enfermedad infantil del izquierdismo en el comunismo, ele afirmava: A tarefa imediata da vanguarda consciente do movimento operrio internacional, isto , os partidos, grupos e tendncias comunistas, consiste em saber levar as grandes massas (hoje ainda, na maioria dos casos, adormecidas, apticas, rotineiras, inertes, sem despertar) a esta sua nova posio ou, melhor dizendo, a saber dirigir no apenas o seu prprio partido, mas tambm a estas

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massas, no transcurso de sua aproximao e de sua passagem a esta nova posio (Lenin, 1979:412). 25. As relaes entre o fascismo e o pensamento elitista sero abordadas mais adiante. Por ora, suficiente ter em mente que, embora tivesse morrido em 1923, pouco aps a ascenso de Mussolini, Pareto foi tomado como um idelogo do fascismo, um antecipador do novo regime. Mosca, por sua vez, ainda que a ele tivesse se oposto, sendo por isso mesmo predominantemente considerado um pensador liberal, visto, de algum modo, como tendo tambm contribudo para a afirmao do fascismo, atravs de suas crticas ao governo parlamentar, como se ver frente. 26. Em um artigo intitulado O sculo de Michels, Wanderley Guilherme dos Santos observa que a participao poltica surge como um problema a partir mesmo do momento em que se rompe a correlao direta entre as posies social e poltica, ou entre a posio no demos e o lugar na polis. Quebrada essa correlao, caracterstica do Antigo Regime, abria-se uma concorrncia no apenas por posies polticas, mas igualmente pela criao de novas posies e instituies. Dentre essas novas instituies estavam justamente os partidos que, de meados do sculo XIX em diante, lutaram para exercer o monoplio da representao poltica (Santos, 1985:286-9). 27. Gustave Le Bon, ao discutir a eficcia das assemblias parlamentares, tendo em vista o fato de que elas tambm se constituam em multides, reconhecia, de todo modo, tratar-se o regime parlamentar de um ideal de todos os povos civilizados modernos (Le Bon, 1922:177). 28. Na verdade, mais do que constituir-se em uma cincia, a histria, naquele perodo, afirmou-se como um elemento fundamental para as cincias sociais em formao, servindo-lhes de laboratrio, de campo de experimentao, suprindolhes com um estoque de dados, de informaes, de evidncias, a partir dos quais suas leis podiam ser conhecidas e demonstradas de modo objetivo, positivo. 29. Ver Karady (1976, 1979, 1983), Ortiz (1989) e Weisz (979). 30. Para uma anlise nessa linha ver o trabalho de Wolf Lepenies (1990) sobre a afirmao da sociologia na Frana, na Inglaterra e na Alemanha. Outro estudo interessante o de Mariza Peirano (1981) sobre a antropologia no Brasil. O que a autora procura mostrar que as questes antropolgicas so apropriadas de modos distintos em diferentes contextos socioculturais nacionais. 31. Utiliza-se aqui a dade de Norbert Elias (1993) em seu Engagement et distanciation. Nesse livro, o autor discute justamente os efeitos epistemolgicos da operao de transposio, para as cincias sociais, do mtodo das cincias fsicas, construdo sobre o princpio da neutralidade, do distanciamento. 32. Toma-se por referncia aqui a idia de sociologia reflexiva de Bourdieu. Ela implica, nos termos do autor, uma objetivao da objetivao, uma desconstruo do pr-construdo e, assim como uma ruptura com o dado. De claro efeito dialgico, a reflexividade metdica, na viso do socilogo, deve-se constituir em um exerccio sistemtico, levando-nos a perquirir sobre nossas prprias pr-noes (Bourdieu, 1989b:17-8). 33. Para Michels, isso era ainda mais evidente no caso de indivduos que no possuam fortuna pessoal ou outras fontes de renda, como antigos operrios que se tornavam lderes. A perda do cargo significava para eles um desastre. Desligados do hbito do trabalho manual e gozando de vantagens e privilgios que de

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outra forma dificilmente teriam, um retorno antiga condio era, para eles, no mnimo dramtico (Michels, 1982:118). 34. Segundo Michels, um dos perigos da autonomizao da liderana sobre a base da soberania popular, sobre a base enfim do ideal democrtico, era o cesarismo. Amparado no que seria a vontade coletiva, justificando-se com o apoio de uma esmagadora maioria de votos, um indivduo podia passar a impor a sua dominao, suprimindo a prpria democracia e denunciando como antidemocrtica qualquer forma de oposio ou protesto. Em nome da democracia, portanto, as maiores violncias podiam ser cometidas. A soberania, dessa forma, era a raiz da sua prpria supresso (Michels, 1982:125). 35. Michels era, em meados dos anos 10, um dos vrios estudiosos que de tempos em tempos peregrinavam a Cligny, na Sua, onde morava Pareto, para com ele discutir, ouvir crticas, obter orientao, ou simplesmente homenage-lo. Para um relato de algumas dessas visitas e de detalhes do cotidiano de Pareto, ver Manon Michels Einaudi. 36. Michels era um elemento subsidirio na competio entre os dois pensadores italianos. Tanto Pareto, no Trait de sociologie gnrale, quanto Mosca, na segunda edio de Elementi di scienza politica, de 1923, citavam-no como evidncia do acerto, como comprovao de suas respectivas teses. Michels, por seu turno, embora se perfilasse principalmente ao lado de Mosca, em Sociologia dos partidos polticos, tecendo loas a ele e crticas s formulaes de Pareto, disse, mais tarde, que, ainda que tivesse sido aquele o primeiro a publicar um esboo da teoria das elites, no podia ser este tomado como um mero apropriador, uma vez que j vinha, paralelamente, elaborando suas hipteses (Pareto, 1933:1.044, nota 1.713, 1.508, nota 2.307, e 1.537, nota 2.326; Mosca, 1923:338, 340, 395, 398, 408 e 419; Michels, 1982:25, 100, 225-6; Beetham, 1977a:13-4 e 23). 37. Tanto Bujarin quanto Gramsci e Lukcs centraram fogo na concluso de Michels de que o socialismo era impossvel, apesar de nenhum deles negar a veracidade das observaes do socilogo. Bujarin constri seu contra-argumento sobre a base da impossibilidade cientfica de que os dirigentes, necessrios mesmo no socialismo, viessem a se constituir em uma classe dominante, visto que no detinham a propriedade privada dos meios de produo (Bujarin, 1972:308-10). Gramsci, por sua vez, caminha pela diferenciao entre democracia de partido e democracia no Estado, sustentando que esta podia exigir um partido fortemente centralizado. Mais ainda, a existncia, segundo ele, de uma diferena entre chefes, particularmente intelectuais, que tinham uma importante funo, e massas, desde que no se tratasse de uma distino de classes, no era suficiente para inviabilizar o socialismo (Gramsci, 1968:109). J Lukcs procura mostrar como Michels tentara denegrir a democracia operria, apresentando como leis sociolgicas universais aquilo que na verdade era um fenmeno singular, particular, fruto especfico, em seus termos, do reformismo social-democrata (Lukcs, 1958:206). 38. Para uma relao das publicaes de Michels, ver Opere di Roberto Michels (1937:39-76). 39. Para uma anlise na linha de uma biografia intelectual de Michels, ver Arthur Mitzman (1987) e David Beetham (1977a, 1977b), tendo este ltimo uma perspectiva mais poltica, procurando dar conta de sua passagem do socialismo ao fascismo. Ver tambm, sobre ele, o verbete de Juan Linz na International encyclopedia of the social sciences (Linz, 1968). Outras informaes, ainda que marcadas por um tom laudatrio, podem ser encontradas em dois textos, um de Paolo Orano (1937), e outro de Carlo Curcio (1937), ambos publicados pela Universidade de Perugia, aps a morte do autor, que se deu em 1936. Para alguns dados sobre o campo intelectual alemo e a passagem de Michels

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por ele, consultar Stuart Hughes (1958). J para um estudo mais detido do mesmo tema, ver Fritz K. Ringer (1990). 40. Ver Meisel (1962:169-83) e Albertoni (1989a:xi-xvi, xxiv-xl, 1990:147-51). James Meisel tem mesmo um livro intitulado Pareto & Mosca. Trata-se de uma coletnea com resenhas e comentrios de diversos autores sobre os dois pensadores, editada nos Estados Unidos em uma srie intitulada Makers of Modern Social Science (Meisel, 1965a). Ver ainda On Mosca and Pareto, de Norberto Bobbio (1972). 41. Finer (1966:53, 65, 79, 85-6); Aron (1982:428). 42. Mosca referia-se ao livro Gli Anciens Rgimes e la democrazia diretta, de 1902, do socialista Giuseppe Rensi (Mosca, 1949a:11). 43. Pareto, em Les systmes socialistes, faz referncia a Mosca em apenas uma das notas do captulo final do livro, Thorie matrialiste de lhistoire, citando a primeira edio dos seus Elementi di scienza politica, de 1896, como um trabalho em que se podia encontrar uma reflexo sobre constituies e o papel social do Exrcito (Pareto, 1965:433, nota 1). Ele no reconhecia, portanto, nenhuma precedncia de Mosca nas teses bsicas contidas no livro. 44. Mongardini (1965:175 e 179-86, 1970:234-7). 45. Para outras cartas em que Pareto referia-se a Mosca e s suas acusaes de plgio, ver Mongardini (1965:175-8). 46. Carta de Vilfredo Pareto a Carlo Placci, 4-1-1904, em Giacalone-Monaco (1957:82). 47. Finer (1966:85-7); Albertoni (1990:18); Bobbio (1991:385); Bottomore (1965:8); Sereno (1962:40); Sartori (1965:126). 48. Ver Albertoni (1990:148), Coser (1971:411-2), Hughes (1958:256-7) e Parry (1969:45). 49. Ver tambm Bobbio (1972:50 e 64, s.d.:128 e 155), Hughes (1958:257-9), Kolegar (1967:354), Meisel (1962:9 e 14) e Mongardini (1965:180). 50. Refere-se ao ttulo italiano do Trait de sociologie gnrale, Trattato di sociologia generale. 51. O isolamento de Pareto, a partir de um determinado momento, passou a ser tal, que nem mesmo os habitantes de Cligny o conheciam. Para se ter um pouco do ar de mistrio em torno de seu nome, ver o relato de Manon Michels Einaudi sobre as visitas que, juntamente com seu pai, Robert Michels, fez ao autor em meados dos anos 10 (Einaudi, 1935). 52. Ver tambm Aron (1982:14), Biaudet (1965:41) e Busino (1966:7). 53. Ver tambm Amoroso (1938:2), Meisel (1962:9) e Schumpeter (1949:150). 54. Prezzolini referia-se ao cargo de revisor de relatrios parlamentares, que Mosca ocupou na Cmara dos Deputados, no incio de sua carreira. 55. Bobbio (1972, 1992, 1995:33-56, s.d.:126-55 e 185-204). 56. Bobbio (1972:52-3 e 73); Meisel (1962:xiii, 1965a:1); Parry (1969:38-41); Salvemini (1945: xv-xvi); Sereno (1962:29).

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57. Mosca visto por muitos comentadores como um precursor do que ficou conhecido como o elitismo democrtico, que se confunde com uma perspectiva poltica pluralista (cf., por exemplo, Bachrach, s.d.:10-1; Bottomore, 1965:55; Diesing, 1982:156; e Parry, 1969:38-41). Segundo esta avaliao, o autor havia sido um crtico no da democracia de maneira geral, mas de sua concepo clssica, escorada no princpio da soberania popular, entendida como governo da maioria. Ora, uma vez que era uma minoria que detinha sempre o poder, o governo do povo era uma impossibilidade lgica. Entretanto, isso no significava que a democracia tambm o fosse. Na verdade, uma viso mais realista da democracia era aquela que localizava o seu esteio no no povo, mas na elite, ou melhor, em uma pluralidade de elites em competio. Para uma caracterizao mais detida da perspectiva elitista democrtica, ver Grynszpan (1994, particularmente o cap. IV). 58. Segundo James Meisel, Gaetano Mosca, at fins dos anos 50, era conhecido pelo pblico acadmico anglo-saxo unicamente como o autor de The ruling class (Meisel, 1962:xiii). Para Ferdinand Kolegar, o ttulo em ingls do livro de Mosca era um eptome de sua teoria, permitindo que os estudiosos de cincias sociais associassem seu nome sua contribuio (Kolegar, 1967:354). Tais observaes, na verdade, podem ser estendidas tambm ao caso brasileiro, em que o conhecimento de Mosca se circunscreve, principalmente, a The ruling class. 59. Utiliza-se aqui uma traduo espanhola, datada de 1992, da edio italiana organizada por Bobbio. 60. Para uma outra viso semelhante, ver Hughes (1965a:159), para quem a segunda edio dos Elementi representava o pice do trabalho de Mosca como pensador poltico. 61. Bobbio deu edio dos Elementi de 1966 o ttulo La classe politica. Segundo ele, seu objetivo era retificar a traduo americana, procurando ser fiel forma como o prprio Mosca nomeou sua doutrina (Bobbio, 1992:39). 62. Livingston optou por acrescentar a The ruling class o subttulo Elementi di scienza politica, em italiano mesmo (cf. Mosca, s.d.). Feitas tantas modificaes no original, a escolha do subttulo, afinal, seria uma forma de acentuar o nexo entre os livros, garantindo a quem lesse a edio americana que estaria efetivamente diante das idias expressas por Mosca. 63. Bobbio tambm procedeu a operaes semelhantes, ao organizar sua edio italiana dos Elementi. Esclarecia ele que havia selecionado captulos, excluindo alguns deles, procurando dar maior relevo e organicidade teoria da classe poltica, sem comprometer a compreenso do pensamento mosquiano (Bobbio, 1992:38-9). 64. Para uma crtica da noo de obra como unidade, ver Foucault (1969:31-43, 1971:18-20). 65. interessante observar que o prprio Bobbio (1992), como j se viu, tinha a traduo americana como referncia, ao organizar a edio de 1966 dos Elementi, visando a corrigir a percepo da doutrina de Mosca que o seu ttulo impunha. 66. Assim se expressa Livingston: Nesta edio traduzida, o termo de Mosca classe poltica regularmente expresso como classe dirigente, mais usual em ingls, com base na licena conferida pelos Elementos (cap. II, 1). No se deve nunca esquecer, claro, que esses dois termos, que so intercambiveis em Mosca, funcionam sujeitos sua definio da classe poltica ou dirigente, como o grupo de pessoas que, de fato, participam diretamente do governo ou o influenciam (Livingston, s.d.:xli).

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67. Assim Albertoni se refere ao perodo em que Mosca, funcionrio da Cmara dos Deputados, viveu em Roma: sem dvida a que o escritor determina o rumo e aperfeioa sua viso geral da poltica e de seus problemas. Faz um grande esforo de teorizao geral utilizando os dados mais contingentes, mas tambm indo adiante deles. E Mosca, que nada tem de provinciano, consegue, no decorrer desse perodo, libertar-se de um certo casusmo excessivamente italiano (s vezes at mesmo excessivamente siciliano), em uma certa medida precioso documento do momento histrico e social, mas que no deixa de ser um freio entravando sua teorizao mais ampla (Albertoni, 1990:55). E no caso da ida de Mosca para Turim, em 1898, Albertoni a ela se refere como um perodo em que o autor cada vez mais se incorporou mentalidade do Norte. Essa experincia, segundo o comentador, foi bastante significativa, pois nela se clarificou seu horizonte poltico (Albertoni, 1990:56). Se a trajetria de Mosca portanto referida, ela o mais para justificar novas tomadas de posio, associadas com uma evoluo crescente. Codificao da doutrina, aqui, significa evoluir intelectualmente no contato com novos ambientes, novas experincias, abandonando o provincianismo ou a barbrie siciliana, pela mentalidade nortista, cosmopolita, civilizada. 68. Esse e outros trabalhos de Bobbio foram reeditados em um livro de 1972, que aqui utilizado. 69. Essa observao vem realar a importncia de se submeter tambm os comentadores e seus textos a uma operao reflexiva, inscrevendo-os em seus espaos de posies. No que toca teoria das elites, o grande nmero de comentadores e a diversidade de campos nos quais se inserem tornam bastante difcil que sejam trabalhados, com a profundidade e a mincia necessrias, nos limites de um livro. Assim, o que se pretende aqui dar apenas algumas indicaes pertinentes nesse sentido. 70. importante ressaltar que no se trata aqui de negar o peso das tradies culturais nacionais na construo do pensamento sobre o social. Pelo contrrio, trata-se de tom-las a srio, e isso que pode nos levar a relativizar o enquadramento de Michels em uma suposta escola italiana das elites. Convm perceber, todavia, que as apropriaes das tradies no so homogneas, nem se mantm uniformes ao longo do tempo, e que as prprias tradies so inventadas (ver, por exemplo, Hobsbawm & Ranger). Mais ainda, no se deve esquecer que, poca de Pareto, de Mosca e mesmo de Michels, a Itlia era uma nao muito recente, tendo sido criada apenas em 1861, a partir da unificao de Estados distintos. 71. Alm das universidades de Milo, Palermo e Roma, o primeiro seminrio foi promovido pela Sociedade Italiana para a Histria Ptria de Palermo (Societ Siciliana per la Storia Patria di Palermo), e seu comit organizador, reunindo representantes daquelas instituies e mais um da Universidade de Pdua e outro da McGill, de Montreal, foi encabeado por Albertoni. Esse comit tornou-se mais tarde o Comit Internacional Gaetano Mosca para o Estudo da Classe Poltica (Ghiringhelli, 1992:13). 72. Albertoni (1990:36-9 e 49-50, 1992:53-60). 73. Atravs do trabalho de Albertoni, Milo se afirmou como um dos principais centros de pesquisa sobre a obra de Mosca (Ghiringhelli, 1992:19). 74. Para outros comentrios nessa mesma linha, ver tambm Coser (1971:407), Finer (1968:450), Goldthorpe (1971:122), Mongardini (1970:244-5) e Rodrigues (1984: 15-6).

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75. Utiliza-se aqui uma reedio do livro de Megaro de 1967. 76. Carta de Gaudens Megaro a Gaetano Mosca, 17-7-1935, em Albertoni (1989b: xix-xxi). A comparao entre Mosca e Pareto terminou sendo feita no livro sobre Mussolini. Dizia Megaro ali que no era a Pareto que se devia atribuir a origem da teoria das elites. A seu ver, o escritor que, vrios anos antes de Pareto, deu a mais brilhante e sistemtica elaborao teoria das minorias como classes governantes foi Gaetano Mosca, em seu trabalho maior Elementi di scienza politica (1896), e mesmo em um trabalho anterior Teorica dei governi e governo parlamentare (1884). J mais do que hora para os estudiosos reconhecerem a precedncia de Mosca sobre Pareto com respeito teoria da classe poltica, como Mosca a chama, ou da elite, nos termos de Pareto (Megaro, 1967:116). 77. Para Gaetano Salvemini, isso era a demonstrao de que havia em Colmbia um forte ncleo de adeptos do fascismo, localizado particularmente no Departamento de Italiano. Na verdade, de todos os professores daquele departamento, o nico que o autor qualificava como um liberal era Livingston (Salvemini, 1969:289; Prezzolini, 1983:264-5 e 269). 78. Mesmo intelectuais liberais, como Walter Lippmann (1955, passim), sustentavam que a centralizao poltica e o fortalecimento do Executivo eram as nicas maneiras de garantir a sobrevivncia das democracias ocidentais em meio aos profundos processos de crise que as assolavam, em um quadro de crescentes tenses militares, como as que se observavam na Europa. 79. Para uma anlise da trajetria de Merriam e dos novos espaos criados pelos cientistas sociais em meio ao processo de reorganizao do Executivo, nos Estados Unidos, ver Karl (1974, 1979:1-36). 80. J em 1952, Renzo Sereno retomou a questo da disputa entre Mosca e Pareto como uma oposio entre democracia e tirania. Agora no se tratava, contudo, de deslegitimar o fascismo. Era nos Estados Unidos mesmo que se observava um contexto de represso, produzido pelo macarthysmo. Transcrevendo uma carta que Mosca lhe tinha enviado ainda em 1938, comentando seu artigo The antiaristotelianism of Gaetano Mosca and its fate, Sereno afirmou: A importncia da controvrsia entre os dois escritores italianos repousa no fato de que o mesmo conceito, como exposto por Mosca e aceito por outros estudiosos como Luigi Einaudi e Antonio De Viti De Marco, tornou-se o centro de uma tentativa real e desesperada de barrar e combater o fascismo, e opor-se tirania com foras morais e intelectuais. Como exposto por Pareto, ele tornou-se o evangelho dos intelectuais fascistas, que encontraram nesse princpio elementos para dar uma roupagem cientfica s muitas improvisaes e expedientes do regime fascista (Sereno, 1952:603-4). 81. Livingston defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Colmbia, no ano de 1910, trabalhando justamente com um poeta italiano pouco conhecido, da entrada do sculo XVII. Em 1911 ele se tornou professor assistente de italiano daquela mesma universidade, ali permanecendo at 1917, quando teve que demitirse por ter se divorciado de sua primeira mulher. Depois de uma rpida passagem pelo Canad, ele se empregou, j no perodo final da I Guerra Mundial, no escritrio de propaganda do governo Wilson, onde acumulou relaes polticas e empresariais que lhe possibilitaram abrir o Foreign Press Service. J em 1923, quando a agncia encerrava suas atividades, Livingston pde ento reingressar na Universidade de Colmbia (Prezzolini, 1983:255). 82. Prezzolini (1983:225-7 e 255); Albertoni (1989b:xi-xix). A traduo dos Elementi di scienza politica s foi concluda em 1933, depois de vrias interrupes e problemas (Albertoni, 1989a:xviii-xix). Tambm a do Trait de sociologie gnrale de-

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morou bastante. diferena do livro de Mosca, no entanto, a traduo do Trait ficou a cargo do prprio Livingston, juntamente com Andrew Bongiorno. 83. Carta de Gaudensc Megaro a Gaetano Mosca, 17-7-1935, em Albertoni (1989b:xix). 84. Para um relato da pesquisa de Hawthorne, ver Roethlisberger & Dickson (1970). Ver tambm Mayo (1959) e Goldthorpe (1971: particularmente 128-30). 85. Segundo Homans, Henderson havia conhecido o Trait de sociologie gnrale atravs de um entomologista, tambm de Harvard, William Morton Wheeler (Homans, 1962:3). Wheeler era um estudioso do que chamava de insetos sociais que, segundo reputava em seu livro Social life among the insects, de 1922, poderiam fornecer chaves importantes para a compreenso das prprias sociedades humanas. Comparando-se estas queles, poder-se-ia perceber que a distncia que os separava no era na verdade to grande. Em um trecho que o aproximava das formulaes de Pareto, Wheeler dizia: Foi dito ou suposto algumas vezes que a sociedade humana uma associao racional, que se deve a uma cooperao inteligente, ou a um contrato entre seus membros, enquanto as sociedades de insetos so associaes meramente fisiolgicas ou instintivas. A segunda parte do argumento correta, mas aquele que procurar apoio para a primeira parte nos trabalhos atuais de socilogos, psiclogos e filsofos ficar desapontado. A tendncia bsica do pensamento moderno segue no sentido de um maior reconhecimento do papel importante e determinante do irracional e do instintivo em nossas vidas no apenas sociais mas tambm individuais (Wheeler, 1922:16). 86. Ver o relato autobiogrfico de Homans em Sentiments and activities (1962: especialmente 1-7). Ver tambm, sobre os seminrios, o crculo paretiano de Harvard e os usos que eram feitos das categorias do autor, Barber (1970), Coser (1971:423-5), Easton (1965:270-94), Heyl (1968) e Russet (1966). Para algumas apropriaes especficas de Pareto por parte do prprio grupo de Harvard, ver Henderson (1967), Homans & Curtis (1934) e Parsons (1965, 1968). Parsons afirmou-se mesmo, nos Estados Unidos, como um conhecedor de Pareto, sendo de sua autoria os verbetes sobre o socilogo da Encyclopaedia of the social sciences (1959) e da International encyclopedia of the social sciences (Parsons & Allais, 1968). Aqui, importante destacar, no era a teoria das elites o objeto central de apropriao, mas sim, principalmente, noes como as de equilbrio e de dependncia mtua dos fenmenos sociais, centrais nas teses de Pareto. 87. Prezzolini foi, no incio da dcada de 20, o representante italiano do Foreign Press Service. Em 1930, por influncia de Livingston, ele se transferiu para os Estados Unidos, sendo nomeado para o Departamento de Italiano da Universidade de Colmbia, onde chegou tambm a dirigir a Casa da Itlia. Ele era um dos professores de Colmbia acusados por Gaetano Salvemini de serem adeptos do fascismo. Na Itlia, no incio do sculo XX, Prezzolini havia se vinculado a outros jovens escritores que ganharam forte expresso e notoriedade por suas crticas democracia, por suas posturas irracionalistas, por sua defesa da guerra, do uso da violncia, como Giovanni Papini, Enrico Corradini e Filippo Marinetti, um dos expoentes do movimento intelectual conhecido como futurismo. Suas vises eram expressas por meio de vrios jornais que foram criados ento, como Leonardo, de Prezzolini e Papini, Il Regno e La Voce, tambm de Prezzolini, que circulou entre 1908 e 1914. Esses jornais enalteciam as teses de autores como Mosca e, principalmente, Pareto, que chegou em algumas ocasies a contribuir com textos para Il Regno, e que tinha ligaes pessoais com Prezzolini (Bobbio, 1995:39-56; Clark, 1993:173-6; Duggan, 1994:177-9; Mangoni, 1995:492-7; Prezzolini, 1983:225-6, 263-9; Salvemini, 1969:28-9).

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88. interessante destacar que Livingston passou a ocupar posio mais elevada na Universidade de Colmbia a partir de 1935, mesmo ano da publicao de The mind and society (Prezzolini, 1983:255). 89. Foi tambm Luigi Einaudi que, em 1934, trouxe de novo tona na Itlia o debate em torno da primazia na elaborao da tese elitista. Ressaltava ele a precedncia de Mosca como forma de reparar o que seria uma injustia cometida contra o autor, que era ofuscado pela grande ateno e nfase dadas a Pareto. Para o seu argumento completo, ver Einaudi (1934). Para uma resposta a ele, ver Mosca e Pareto, artigo de Alfonso de Pietri-Tonelli (1935), um antigo discpulo de Pareto. 90. Beard, fotografia da capa da edio de lanamento de The ruling class, em Albertoni (1989a). 91. O reino da Itlia foi formado em 1861, com a unificao de uma larga parcela de seu territrio. Sua consolidao porm s se deu em 1870, com a incorporao de Roma (Albertoni, 1990:154; Duggan, 1994:117-46; Gooch, 1986; Hearder, 1992:153-97). 92. Albertoni (1974:38, 1990:53); Sereno (1962:29). 93. Trabalha-se aqui com a edio de 1925, que manteve a de 1884 na ntegra, modificando apenas o ttulo o original era Sulla teorica dei governi e sul governo parlamentare. Studi storici e sociali e acrescentando algumas notas novas, diferenciadas das originais. 94. H que se ressaltar a forte presena no pensamento italiano de um elemento historicista, isto , de uma viso de que, produtos de um processo histrico, as naes, suas instituies, suas crenas e suas prticas somente podem ser compreendidas na sua especificidade atravs da histria. Um dos pensadores identificados com essa viso o filsofo, telogo e jurista Giambattista Vico, da passagem do sculo XVII para o XVIII. Mosca, que cita Vico em seus textos, inscreve-se tambm nessa perspectiva. Duas das referncias especiais que ele faz no promio Teorica so justamente a antigos professores seus de histria: Luigi De Brun, ainda do liceu, e Adolf Holm, historiador alemo especialista em Antigidade, que ensinou na Universidade de Palermo de 1877 a 1883 (Mosca, 1925:9; Bersanetti, (1934:544). Sobre o carter eminentemente histrico da reflexo de Mosca, ver tambm Bobbio (s.d.) e Pepe (1950). 95. Clark (1993:34-6); Duggan (1994:152-4); Mitchell (1971:68); Hearder (1992:206); Salvemini (1945:viii-ix). 96. Esse limite foi estendido para trs anos em 1888 (Cammarano, 1995:87; Clark, 1993:37). 97. Risorgimento como foi denominado o movimento de unificao italiano. Seu uso, a princpio, assim como o do prprio termo Itlia, foi mais freqente em alguns crculos literrios pelos quais dAzeglio e outros lderes transitaram. Seu sentido era evocar um passado idealizado de lutas, de autonomia e de glrias, apresentando a unificao como uma antiga e profunda aspirao e conferindo, por essa via, legitimidade sua mobilizao poltica e militar (Duggan, 1994:1-8). 98. O historiador Bruno Tobia (1995:431) estima que somente 2,5% da populao do novo reino tinham o italiano como lngua corrente. 99. Clark (1993:34-8); Duggan (1994:154-5). 100. Cammarano (1995:87); Clark (1993:37).

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101. Clark (1993:36); Hearder (1992:206). 102. Clark (1993:38-9); Duggan (1994:155-6).

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103. Mosca iniciou seus estudos universitrios em 1877, mesmo ano portanto em que foi criada a lei de obrigatoriedade do ensino elementar. 104. Os bigrafos de Mosca no informam sobre a escolaridade de seu pai nem sobre o perodo exato em que esteve frente da secretaria geral da municipalidade de Palermo, limitando-se a afirmar que se tratou de um espao de tempo longo. 105. Sola (1982:17); Clark (1993:58). 106. Ainda que com diferenas de uma regio para outra, esse movimento no se limitou Itlia. Ele foi tambm analisado no caso francs, por Christophe Charle em seu estudo sobre as elites da Repblica, entre 1880 e 1900. Principalmente nessas duas dcadas que, segundo o autor, se assistiu ao nascimento da meritocracia na Frana, em particular no que tocava seleo para o servio pblico. Na esfera universitria, o princpio j vinha operando h algum tempo (Charle, 1987:36-53). 107. Segundo o historiador Christopher Duggan (1994:154), havia uma carncia de professores na Itlia, especialmente nas regies mais remotas, o que se explicaria pelo quadro de baixos salrios. A situao, de acordo com Martin Clark (1993:36-7), era mais grave no caso dos professores primrios, que algumas vezes recebiam at cargos nas municipalidades como compensao. 108. Clark (1993:39); Duggan (1994:156-7); Socrate (1995:376). 109. Em geral, um juiz iniciava sua carreira como pretore em alguma cidade pequena. Ele no tinha estabilidade e sua ascenso se fazia mediante promoo a juiz de tribunal ou de corte de apelao. Para que isso ocorresse, contudo, era necessrio o aval do ministro da Justia, que geralmente levava em conta pedidos e cartas de recomendao de deputados e chefes polticos locais. Promovido, no entanto, um juiz podia ainda ser demitido durante seus trs primeiros anos e, mesmo depois disso, ficava sujeito a transferncias, o que operava como um mecanismo de presso e de favorecimento. De fato, transferncias de juzes pareciam ser comuns nos momentos de mudana de governo (Cammarano, 1995:13-4; Clark, 1993:54). 110. Duggan (1994:156); Socrate (1995:382-4). 111. Medicina era, na Itlia, o curso superior mais procurado depois de direito. Ele concentrava cerca de 30% dos estudantes universitrios no incio da dcada de 1880 (Clark, 1993:39). 112. O conflito entre as faculdades superiores e a inferior era de fato uma disputa por jurisdio, por competncia e, principalmente, por legitimidade, que se apresentava como uma discusso em torno da verdade. Ele advinha do fato de que, voltada para todas as reas do saber humano, a faculdade de filosofia podia se debruar mesmo sobre temas afetos s faculdades superiores, submetendo-os a exame crtico, o que desencadearia, em contrapartida, reaes destas (Kant, 1935:28-9). 113. Cammarano (1995:29); Duggan (1994:156); Montroni (1995:367). Para alguns, os vnculos estreitos entre o direito e a poltica poderiam ser considerados um trusmo, dado que as relaes entre os homens inclusive as polticas devem ser

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reguladas juridicamente, e que o prprio Estado deve se assentar sobre uma ossatura legal, que a Constituio. Na verdade, o que cabe, em vez de tomar tais vnculos como dados, confirmando a sua trivialidade, reforando a sua naturalizao, produzir uma anlise fina que os tome por objeto, buscando ver como so construdos socialmente e, assim tambm, impostos como evidncia. 114. Em uma posio prxima do historicismo alemo, Mosca, em sua tese, conclua que a constituio das naes era uma fatalidade. Para ele, a humanidade, se diferenciava de forma inexorvel, constituindo grupos distintos, com idias, sentimentos e instituies singulares, seguindo cada um seu prprio curso histrico, seu prprio processo evolutivo (apud Delle Piane, 1949:5). 115. Ver Cammarano (1995:3-4), Clark (1993:55-6), Coser (1971:414), Duggan (1994:133-5), Hughes (1965b:46-8), Gooch (1986:20-40), Hearder (1992:200), Milza & Bernstein (1980:12-3) e Salomone (1945:10). 116. Nesse aspecto, Mosca no se encontrava em uma posio isolada, solitria. Vrios outros autores chamavam a ateno, naquele mesmo momento, para a incompletude e as dificuldades que se observavam para um real processo de unificao e de construo nacionais (cf. Mangoni, 1995). 117. Albertoni (1990:54); DAddio (1993:334-6). 118. Ver Karady (1976:281, 298-9) e Weisz (1979:86-9). 119. Tambm Arthur Livingston observa que a influncia de Messedaglia havia sido fundamental para as primeiras elaboraes da teoria da classe dirigente de Mosca (Livingston, s.d.:ix). 120. Os vnculos originais entre as cincias sociais e o direito no foram uma exclusividade italiana. Para perceb-lo, basta lembrar que Max Weber foi formado em direito (Bendix, 1960:25-6; Gerth & Mills, 1974:21-2). No Brasil, boa parte dos cursos jurdicos universitrios no incio do sculo XX recebia o nome de faculdades de direito e cincias sociais. Mesmo na Frana, onde a sociologia universitria se afirmou nas faculdades de letras, sob o influxo da filosofia, na qual Durkheim foi treinado, havia, como j se viu, uma quantidade considervel de cadeiras identificadas como cincias sociais, ministradas nos cursos de direito. A prpria sociologia, alis, era ensinada aos alunos de direito, o que suscitou um aceso debate sobre ser ou no a faculdade de letras o lugar mais adequado para a cadeira. Destaque-se, ainda, o fato de que um bom nmero dos chamados durkheimianos era formado justamente em direito (Karady, 1976:278-9; 1979:50-4; Weisz, 1979:88-9; Vogt, 1983:177-86; Ortiz, 1989:21). 121. Stephen Turner e Regis Factor (1994) procuram mostrar, por exemplo, como veio da cincia do direito alem a base das categorias sociolgicas de Weber. 122. Diz o socilogo, retomando a distino das faculdades de Kant: A oposio estabelecida por Kant entre as duas categorias de faculdades, as primeiras submetidas a uma ordem temporal qual servem, as segundas livres de todos os regulamentos e de todos os limites mundanos, encontra a sua realizao, bem como a sua limitao, na relao entre as disciplinas jurdicas e as cincias sociais que, ao introduzirem a liberdade, a irresponsabilidade caracterstica das faculdades temporalmente inferiores no espao reservado das faculdades superiores, vm pouco a pouco disputar com aquelas o monoplio do pensamento e do discurso legtimo sobre o mundo social: de um lado, uma cincia de ordem e de poder, que visa racionalizao, em um duplo sentido, da ordem estabelecida; de outro, uma cincia da ordem e do poder, que visa no a colocar em ordem as coisas pblicas, mas a pens-las como tais, a pensar a ordem social e o Estado es-

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tabelecidos, pela comparao histrica ou pela variao imaginria, como um caso particular no universo de possibilidades realizadas ou realizveis (Bourdieu, 1984:96). 123. Em Durkheim isso era particularmente claro. Do autor ver, por exemplo, (1975). Para os usos polticos da sociologia durkheimiana na Frana, na III Repblica, ver Castel (1995:276-8). Ver tambm, para o lugar da poltica na reflexo de Durkheim, Lacroix (1981). 124. No so plausveis as observaes de alguns comentadores como Mario Delle Piane, por exemplo, de que a opo de Mosca pelo direito havia sido resultado da inexistncia de cursos mais prximos aos seus interesses. Diz Delle Piane: Na falta, na Itlia de ento, de ctedras de cincia poltica, era lgico que ele se voltasse para o direito constitucional, das disciplinas jurdicas a mais prxima de qualquer outra do seu interesse (Delle Piane, 1949:7). Apenas ao final de sua carreira, e em condies polticas adversas, que Mosca, como se destacar adiante, buscou reservar um lugar especfico para si, vinculando-se a uma nova cadeira. Ver nele esse intento desde sempre, contudo, como se sua vida fosse a tentativa gradual de realizao de um projeto primordial, ler a sua trajetria do fim para o incio, projetando seu desfecho nas origens. Na verdade, interessante observar que nas universidades italianas, ainda hoje, cursos de cincia poltica so ministrados em institutos de direito. E mesmo fora da Itlia, evidente a persistncia de fortes vnculos entre as duas disciplinas. 125. Sobre a epistemologia de Mosca, ver Bobbio (s.d.) e Fisichella (1991). 126. importante atentar para a sinonmia, a indiferenciao entre cincia poltica e sociologia, o que se deve sua no-institucionalizao e reconhecimento at ali enquanto disciplinas autnomas. O prprio Durkheim, em seus escritos de fins da dcada de 1880 e incio da de 1890, oscilava entre a qualificao de seus estudos, alm de sociologia, como cincia social, tanto no singular como no plural, estatstica moral e mesmo cincia poltica (Lacroix, 1976:213). 127. O professor extraordinrio, diferena do ordinrio, no era efetivo no cargo e seus ganhos, de modo geral, eram inferiores. Iniciava-se a carreira como extraordinrio, o que representava uma dificuldade para aqueles que no tinham uma alta origem social, que no podiam contar com o apoio econmico familiar ou com outra fonte de renda. 128. As prefeituras na Itlia no eram, ento, cargos eletivos. Elas eram preenchidas por indicao do ministro do Interior, ao qual seus ocupantes ficavam diretamente subordinados. Desse modo, os prefeitos se afirmavam como representantes locais do poder central na verdade, em boa parte, eles nem mesmo eram originrios das prprias regies que administravam , defendendo seus interesses e trabalhando pela sua vitria e reconduo nos processos eleitorais, quer atravs da promessa de recompensas, coletivas ou individuais, quer atravs da presso, da ameaa, da violncia (cf. Cammarano, 1995:8; Clark, 1993:60-1; Duggan, 1994:141; Gooch, 1986:33; Hughes, 1965b:53; Milza & Berstein, 1980:17-8; Salvemini, 1945:xii-xiii). 129. Mosca escrevia em um momento, como j se viu, em que se disseminava e fortalecia o debate sobre a adoo do sufrgio universal. Alm disso, a Itlia havia passado, recentemente, em 1882, por uma reforma que havia triplicado o seu eleitorado. Ainda assim, era bastante reduzido o nmero daqueles que decidiam as eleies. At 1882, os eleitores tinham que ser do sexo masculino, letrados, maio-

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res de 25 anos e pagar um mnimo anual de 40,00 liras em impostos diretos. Com a reforma, o limite de idade caiu para 21 anos e a exigncia de imposto anual foi reduzida para 19,80 liras. Por outro lado, foram mantidos a exclusividade do voto para os homens e o critrio da alfabetizao. Mas os que comprovassem terem completado um perodo de dois anos de estudos em uma escola elementar ficavam isentos do discriminador censitrio. Com isso o eleitorado, que era de 621.896 pessoas, ou 2,2% da populao, passou a somar 2.049.461, ou 6,9% da populao, o que correspondia a cerca de 25% da populao masculina acima de 21 anos. Se for somada a esses dados a informao de que a absteno eleitoral era em geral superior a 40%, poder-se- perceber que continuava diminuto o nmero dos que pesavam nos pleitos, como Mosca acentuava (Cammarano, 1995:63-4; Hearder, 1992:205; Salvemini, 1945:viii-x). 130. Ver Hughes (1965a:51), Milza & Bernstein (1980:12-3) e Salvemini (1945:xiii). 131. Cammarano (1995:18-28); Clark (1993:61-6); Coser (1971:415-6); Duggan (1994: 158-61); Hearder (1992:204-12); Hughes (1965a:50-5); Salomone (1945:14-5); Salvemini (1945:x-xiv). 132. Para essa questo e para um arrolamento de outros nomes associados crtica ao liberalismo e ao Parlamento, ver Clark (1993:65), Duggan (1994:164), Hughes (1965b:55), Mangoni (1995:453-60) e Salomone (1945:14-5). 133. Em um texto de 1886, intitulado Studi ausiliari di diritto costituzionale, Mosca procurava diferenciar-se dos estudos correntes de direito constitucional, simples comentrios de cartas existentes, segundo ele. No havia, na acepo do autor, diferenas entre a cincia das constituies, conforme se referia, e a cincia poltica. Ambas deveriam estudar as leis reguladoras do ordenamento poltico das distintas sociedades humanas, a partir de uma comparao histrica (apud Bobbio, 1992:10. Ver tambm Pepe, 1950:48). 134. Ver Barbagallo (1995:6-9), Cammarano (1995:107), Clark (1993:65) e Mangoni (1995:453-5). Sobre as teses de Orlando, ver Tessitore (1988:117-89). Para uma breve comparao entre as reflexes de Orlando e de Mosca, ver Fioravanti (1982). 135. Albertoni (1974:38-96); Sola (1982:20-3). 136. Trata-se do ano de 1882, quando terminou o Curso Complementar de Poltica e Administrao na Universidade de Roma. 137. Albertoni (1990:54); Delle Piane (1949:7-8); Sola (1982:20-1). 138. Gerth & Mills (1974:15-23); Bendix (1960:25-6); Pollak (s.d.:3, 9-12). 139. Charle (1987, particularmente o cap. I e p. 226-7). 140. Albertoni (1974:39, 1990:54-5); Delle Piane (1968:504); Mongardini (1980a:77-8, nota 5); Sola (1982:22). 141. Segundo Mario Delle Piane, o prprio Mosca acentuava ser seu emprego na Cmara um posto de observao privilegiado para um jovem como ele, ansioso por entender as realidades da poltica (Delle Piane, 1968:504). 142. Livingston (s.d.:xiii); Sola (1982:23). 143. Delle Piane (1949:11-4, 1968:505); Albertoni (1990:56 e 223).

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144. Dizia Mosca: A verdade que a doutrina democrtica embora tenha prestado inegveis servios civilizao e, encarnando-se no sistema representativo, cujo modelo foi buscado na Inglaterra, contribuiu para a realizao de importantssimas melhorias na defesa jurdica, obtidas em virtude de um regime de livre discusso que foi aplicado em diversas partes da Europa agora que se chegou s suas ltimas dedues lgicas e que querem levar at as ltimas consequncias os princpios nos quais est fundada, produz a desorganizao e a decadncia nos pases em que prevalece. E necessrio que seja assim, porque a dita doutrina, sob aparncias pseudocientficas, em essncia completamente apriorstica. De fato, as suas premissas no so em nada justificadas pelos fatos, j que, nas sociedades humanas, a igualdade absoluta jamais existiu e o poder poltico nunca foi e nunca ser baseado no consenso explcito da maioria. Ele foi e ser sempre exercitado por aquela minoria organizada que disps e dispor dos meios, variveis segundo a poca, para impor a sua supremacia s multides (Mosca, 1923:329-30). 145. H que se ressaltar que a questo das relaes entre os poderes laico e religioso na Itlia era ainda particularmente central, visto que havia pouco mais de 20 anos que Roma havia sido incorporada ao reino, com relativa perda para o papa. Diante do que foi considerado uma usurpao, os catlicos foram orientados por Pio IX no sentido de uma retirada da poltica, abstendo-se de votar e de serem candidatos. Esse quadro foi se revertendo aos poucos mas, ainda em 1904, Giolitti era obrigado a declarar que Estado e Igreja montavam-se sobre duas linhas paralelas, que no deveriam nunca se encontrar (Salomone, 1945:34-6). Sobre a Igreja, os catlicos e sua relao com o Estado e a poltica na Itlia, ver Rossi (1995). 146. Para Arthur Livingston, a primeira edio dos Elementi, da mesma forma que a Teorica, estava marcada por preconceitos nacionais, regionais e mesmo partidrios (Livingston, s.d.:xxxiv). 147. Hearder (1992:204); Milza & Bernstein (1980:18-9); Hughes (1965b:51-3); Albertoni (1990:88); Salvemini (1945:x-xii); Farneti (1978:107-9). Na avaliao de William Salomone, historiador talo-americano da Universidade de Nova York, interessado em compreender o que havia possibilitado a ascenso do fascismo, as diferenas partidrias praticamente tinham desaparecido na Itlia, durante um largo perodo, a partir de 1876, com a ascenso de Depretis e das prticas enfeixadas no transformismo: 18 de maro de 1876 marcou, de fato, uma data revolucionria na vida parlamentar italiana, uma vez que, dali por diante, a luta parlamentar deixou de ser possvel na Itlia por falta de divises partidrias. Dali at o surgimento da chamada estrema sinistra (socialistas, radicais e republicanos) no final do sculo, o Parlamento italiano tornou-se um campo para contendas entre faces e cliques, camarilhas e interesses organizados, cujas rusgas e escaramuas passavam longe da realidade poltica. Idias e programas deixaram de ser armas na disputa pelo poder nacional responsvel, tornando-se meros instrumentos de transaes oportunistas, empregos e influncia, eleies e posies. Ainda em sua infncia, o sistema italiano dava sinais de degenerao. Os homens se afastavam dessa confuso e, em larga medida, buscavam refgio em oposies estreis, admoestaes escandalizadas e violentas invectivas. Mais diversificadas, a atividade parlamentar e a vida poltica do pas estavam apenas mais confusas e, na ausncia de divises polticas reais baseadas em princpios, passaram, nas palavras do historiador do liberalismo [citando The history of European liberalism], a um processo de reduo uniformidade monocromtica do p (Salomone, 1945:14-5). 148. Hearder (1992:208-9); Albertoni (1990:7); Salomone (1945:43-7); Hughes (1965b:53-4). O Partido Socialista Italiano remonta a 1892, quando da ruptura com os anarquistas e da vitria da corrente que, tendo frente o jornalista Filippo Turati, percebia na participao parlamentar uma das possveis e importantes vias de trans-

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formao da sociedade. At o incio do sculo XX, entretanto, o PSI permaneceu minoritrio e persistiam no seu interior disputas em torno da nfase na ao direta e revolucionria, ou na via legal. Os eventos de maio de 1898, a represso que se abateu sobre a esquerda em geral, pesaram para o reforo da corrente legalista e para a adoo de uma prtica de alianas com outros partidos, republicanos e tambm radicais, que se inseriam em uma vertente democrtica crist, dando origem ao que, no Parlamento, ficou conhecido como a extrema esquerda, estrema sinistra, em uma linha de oposio ao governo (Salomone, 1945:43-7; Milza & Bernstein, 1980:31-2). Para uma histria do socialismo na Itlia, de fins do sculo XIX ao incio do sculo XX, ver DeglInnocenti (1995). 149. Apud Bobbio (1992:18). Ver tambm Delle Piane (1968:505). 150. Jensen (1982); Mongardini (1980b:16); Sola (1982:22-3, 1994:96). 151. No se tome esse ponto como evidncia de que Mosca tivesse um perfeito controle racional sobre suas opes e os efeitos destas. Nem se veja aqui uma contradio insupervel entre seu discurso meritocrtico, impessoal, e suas prticas personalizantes. Na verdade, embora aparentemente discrepantes, podem estar ambos referidos a um mesmo padro cultural. Os autores que estudaram a patronagem e as relaes pessoais em sociedades com traos fortemente hierarquizantes, como a italiana e mesmo a brasileira, observaram que nelas operam dois esquemas de classificao e de orientao prtica no mundo social: um marcado pela pessoalidade e o outro pela impessoalidade. O primeiro permite, por meio do parentesco, do compadrio, da amizade e da patronagem, contornar as dificuldades, o desamparo e as angstias geradas pelo segundo, pela individualizao e pela submisso a leis impessoais. A partir deles, dois padres morais e ticos so gerados, coexistindo nos agentes, permitindo que, ao mesmo tempo em que no se meam esforos ou recursos no favorecimento de parentes, amigos e clientes, at mesmo burlando a lei e fugindo s regras, exijam-se imparcialidade e o rgido cumprimento da lei para os inimigos e os desconhecidos (cf. Kenny, 1968:158, 1977:359; Land, 1977:xxiv; Matta, 1980:19-20; Stirling, 1968:51). 152. Ver tambm Albertoni (1990:56) e Hearder (1992:199). 153. Lombroso era um dos principais nomes do pensamento social italiano, tendo se afirmado por uma via distinta da do direito, ainda que em estreita relao com ele. O autor promovia uma confluncia entre a medicina legal e a psiquiatria, buscando explicar o comportamento delituoso (Mangoni, 1995:460-7). 154. James Meisel refere-se a Luigi Einaudi como um amigo de Mosca por toda a vida. Einaudi tornou-se presidente da Itlia aps a II Guerra Mundial, tendo sido fundamental para o acesso de Meisel s fontes que informaram sua reflexo sobre Mosca (Meisel, 1962:xiv). 155. Albertoni (1990:56); Delle Piane (1968:505). 156. Albertoni (1990:223-4); Delle Piane (1949:17-39). 157. Albertoni (1990:56-61); Delle Piane (1949:70-2). 158. Bobbio (1972:21, 1992:31-4, 1995:45, s.d.:195-6); Delle Piane (1968:505); Pepe (1950:57). 159. Albertoni (1990:57); Delle Piane (1949:29-30). Para uma histra da Universidade Bocconi, ver Cattini et alii (1992). 160. Delle Piane (1949:33); Mongardini (1980a:148, nota 1).

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161. Christophe Charle mostra como na Frana, no mesmo perodo, observou-se um movimento contrrio no sentido de um crescente desengajamento universitrio da poltica partidria. No lugar desta fortaleceu-se, em algum nvel, a participao na poltica universitria (Charle, 1987:410-23). 162. preciso no perder de vista o fato de que, no sendo remunerado, o cargo de deputado era exercido por quem dispunha de outras fontes de rendimento (cf. Cammarano, 1995:5). 163. Cabe acentuar que um tal controle sobre um eleitorado restrito era um dos elementos que permitiam que alguns deputados se dedicassem de forma contnua a atividades universitrias, mesmo distantes, sem que precisassem interromp-las com constantes visitas a suas bases, a fim de mant-las cativas. 164. Se Giolitti procurava se apresentar como um liberal democrata, isso se deve ao fato de que igualdade no era, necessariamente, sinnimo de liberalismo. Por isso mesmo, pensadores como Mosca, crticos da noo de igualdade, podiam se fazer presentes no Partido Liberal. 165. Albertoni (1974:39, 1990:116); Delle Piane (1968:506); Salvemini (1945:ix). 166. Mosca, j durante seu primeiro mandato como deputado, voltou-se diversas vezes para o problema colonial italiano, abordando-o tanto em suas intervenes na Cmara quanto em seus artigos no Corriere della Sera e na Tribuna (Albertoni, 1990:112-3). 167. Albertoni (1990:224); Delle Piane (1949:42-72). 168. Para uma anlise especfica da relao entre as idias de Mosca e as teses socialistas, ver DellErba (1991). 169. Mosca no apenas amplia o escopo de seu conceito como tambm o complexifica, abandonando a viso bipolar que dividia a sociedade entre dirigentes e dirigidos para introduzir um terceiro elemento, um elemento intermedirio, ou um estrato mdio da classe dirigente, uma subdiviso dela. Esse estrato que, alm de abranger os vrios nveis burocrticos, fazia a mediao entre as camadas superiores e a massa, enquadrando e dirigindo a sua ao, seria fundamental para qualquer organizao poltica, segundo o autor. Ele no somente garantia a operacionalidade do sistema poltico como, em funo de seu grau de moralidade, inteligncia e especializao, pesava de modo decisivo para sua a consistncia, estabilidade, durabilidade (Mosca, 1923:412). 170. Refere-se Mosca a Ordre social et ses bases naturelles, de Otto Ammon, datado de 1898; Conscience et volont sociale, de Giacomo Novikof, de 1897, e Gli anciennes rgimes e la democrazia diretta, de Giuseppe Rensi, de 1902. De Pareto, o autor cita Les systmes socialistes e o Trait de sociologie gnrale (Mosca, 1923:338, nota 1). 171. Dizia Mosca, sobre o contexto poltico do ps-guerra: Infelizmente, os resultados morais e econmicos da longa guerra perturbaram, neste momento difcil, o correto funcionamento das instituies que estavam em vigor at 1914; como vimos, essas instituies requeriam, e requerem, como condio necessria para manter ntegra a sua vitalidade a continuao daquele perodo de paz relativa e de prosperidade geral que o mundo gozou nos ltimos decnios do sculo passado e na primeira dcada deste sculo. A guerra no criou, mas sim tornou mais virulentos e ativos os germes de dissoluo que o regime representativo, como qualquer outro, continha e contm. Hoje, a ao desses germes ameaa a sua existncia antes que as foras reparadoras que agem no seio de toda sociedade,

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cuja vitalidade no tenha se esgotado, tenham podido elaborar os elementos necessrios para a criao de um novo tipo de organizao poltica, mais elevado do que aquele at agora em vigor (Mosca, 1923:501). 172. Hughes (1965b:59-63); De Felice (1978:312); Duggan (1994:198-204); Hearder (1992: 221-2); Milza & Bernstein (1980:64-71); Tasca (1967:37-47). 173. O Partido Popular Italiano era uma agremiao catlica, criada em 1919 e chefiada por um clrigo, Don Luigi Sturzo, que se dirigia principalmente ao campesinato. O Partido Liberal era aquele ao qual Mosca se filiava, e o Nacionalista, por sua vez, era formado, entre outros, por intelectuais, jornalistas e profissionais liberais, advogados em especial, que se colocavam direita do espao poltico, fortes crticos da democracia e do sistema parlamentar. Quanto a Giovanni Gentile, tratava-se de um filsofo siciliano identificado com o idealismo, vertente de pensamento que se constituiu em uma das fortes bases dos argumentos antidemocrticos na Itlia. Gentile foi colaborador do peridico La Critica, de Benedetto Croce, de quem se afastou quando este passou oposio ao fascismo, diante do endurecimento do regime (cf. Clark, 1993:150-3, 173 e 210; Duggan, 1994:157, 177-8 e 195). 174. Clark (1993:222); Duggan (1994:205-8); Hearder (1992:221-7); Hughes (1965b:59-74); Milza & Bernstein (1980:55-123). 175. Refere-se Mosca a Vittorio Emanuele Orlando, Francesco Nitti e Luigi Facta, que governaram a Itlia nos anos conturbados de 1919 a 1922, antecedendo Mussolini. 176. Milza & Bernstein (1980:139-287); Albertoni (1990:60). 177. Albertoni (1974:39); Clark (1993:224-8); De Felice (1978:311-2); Duggan (1994:209); Milza & Bernstein (1980:133-7 e 205); Hearder (1992:228-9); Hughes (1965b:99-100). 178. Em algum nvel, essa mesma angstia expressa por um outro importante ator da poltica italiana no perodo, Gaetano Salvemini, identificado, porm, com uma postura de esquerda. Morando nos Estados Unidos, em 1945 ele fazia uma espcie de mea culpa, reelaborando sua viso do perodo Giolitti: Revendo a obra do cruzado nestes 30 anos, descubro que no tenho nada a lamentar. Devo reconhecer, contudo, que teria sido mais sbio se minhas crticas ao sistema de Giolitti tivessem sido mais moderadas. Meu conhecimento dos homens que sucederam Giolitti na Itlia, bem como dos pases nos quais vivi nos ltimos 20 anos, me convenceu de que se Giolitti no era o melhor, tambm no era pior do que muitos polticos no italianos, alm de ser certamente menos repreensvel do que os polticos italianos que a ele se seguiram. Enquanto ns, cruzados italianos, o atacvamos da esquerda acusando-o de ser e ele o era um corruptor da democracia italiana em formao, outros o abalroavam pela direita, julgando-o democrtico em excesso para o seu gosto. Nossas crticas, assim, contriburam para direcionar a vida pblica italiana no sentido no de formas de democracia menos imperfeitas, mas sim da vitria dos grupos militaristas, nacionalistas e reacionrios, que consideravam mesmo a democracia de Giolitti muito perfeita. freqente que aquele que busca o melhor no apenas fracasse, mas tambm desemboque no pior. Diz-se que no outro mundo ns iremos para o inferno, o purgatrio ou o paraso. Neste mundo, contudo, no h paraso. Se, ao procurar um paraso impossvel, desdenharmos o purgatrio, terminaremos, com certeza, no inferno. Se me fosse possvel retornar Itlia entre 1900 e 1914, com a experincia que adquiri nos ltimos 30 anos, eu no omitiria nenhuma das censuras ao sistema de Giolitti, mas seria mais indulgente e desconfiaria mais daqueles que sentiam prazer em minhas crticas porque queriam conduzir a Itlia na direo oposta que eu visualizava para ela (Salvemini, 1945:xv).

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179. Ver Albertoni (1990:130), Delle Piane (1968:504) e Sola (1994:97). Mosca interrompeu sua colaborao para o La Tribuna ainda em 1921. No caso do Corriere della Sera, entretanto, isso s se deu em 1925, quando as antigas direes e redaes dos grandes jornais foram substitudas por novas, indicadas pelos fascistas (Albertoni, 1974:39; Milza & Bernstein, 1980:205). 180. Albertoni (1990:18); Bobbio (1972:13); Delle Piane (1968:505); Meisel (1962:vii). 181. DAddio (1993, passim). Ver tambm Albertoni (1990:58-61), Delle Piane (1968: 506) e Meisel (1962:425). 182. Mesmo antes da publicao de The ruling class, no entanto, a Encyclopaedia of the social sciences, no incio dos anos 30, j contava com quatro verbetes de sua autoria: sobre Giuseppe Giusti, Maquiavel, Alessandro Manzoni e sobre a mfia. Tambm a revista Social Forces chegou a publicar, em 1935, um artigo referente a um dos captulos dos Elementi, Church, sects and parties (Albertoni, 1990:225-6). 183. As anlises dos fracassos de Mosca aqui desenvolvidas tm, como um de seus referenciais, o estudo dos investimentos e das estratgias de um outro ator, ainda que radicalmente distinto e de um contexto diverso. Trata-se da reflexo de Norbert Elias sobre Mozart. Elias (1995) demonstra que o fracasso de Mozart deveuse, em larga medida, sua tentativa de afirmar-se enquanto msico independente em um contexto em que o reconhecimento social passava, necessariamente, pela inscrio subordinada rede de interdependncia de uma corte. Seu infortnio foi portanto determinado pela defasagem entre sua estratgia e as condies sociais de possibilidade de sua realizao. 184. O av paterno de Pareto, o marqus Giovanni Benedetto Pareto, chegou a receber de Napoleo I o ttulo de baro do imprio, em 1811 (Bousquet, 1956:592). 185. Gooch (1986:1-6); Hearder (1992:153-70); Salomone (1945:3-6). Ver tambm Hobsbawm (1977a:151-2, 1977b:105-6, 1990, passim). Exilado, Raffaele Pareto passou a descrer que a Itlia pudesse efetivamente vir a libertar-se do domnio austraco. Isso ajudaria a compreender o fato de ter registrado seu filho como Wilfrid Fritz Damas Pareto, nome que Vilfredo utilizou at pelo menos o perodo em que colou grau na universidade, como observa seu bigrafo Tommaso Giacalone-Monaco. Acrescente-se em reforo disso o fato de que a primeira lngua de Vilfredo Pareto foi o francs, vindo o italiano apenas posteriormente, em particular aps o retorno de Raffaele Itlia com a famlia (Giacalone-Monaco, 1966:97, 101-2). 186. Bousquet (1956:592-5); Giacalone-Monaco (1966:98-103); Pantaleoni (1924:9). Raffaele Pareto referido pelos bigrafos de Vilfredo, em geral, como engenheiro. Ele atuava, porm, na rea da agronomia, que no demandava diploma universitrio, constituindo-se em uma das especializaes oferecidas pelos institutos tcnicos (Clark, 1993:38). Foi em 1861, j de volta Itlia, que ele recebeu do rei Vittorio Emmanuele II, pelos projetos que desenvolveu na Frana e pelos trabalhos que publicou, o ttulo honoris causa de ingegnere laureato (Giacalone-Monaco, 1966:97). 187. O investimento escolar em Vilfredo era visto por seu pai como uma questo de honra. Dizia este em uma carta a um irmo, em 1864 que, mesmo que no viesse a ter muito dinheiro, Vilfredo, formado, poderia ao menos manter a reputao dos Pareto de serem homens de talento (apud Giacalone-Monaco, 1966:103).

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188. diferena de Damaso, Raffaele no seguiu o padro de alianas matrimoniais caracterstico da nobreza italiana que, de acordo com o historiador Giovanni Montroni (1995:355), era marcadamente endogmico. 189. Bousquet (1956:593); Giacalone-Monaco (1966:98-9, 1968:256, nota 9). Os descendentes da aristocracia italiana encaminhavam-se predominantemente para as altas funes pblicas, a diplomacia em particular, alm do Exrcito e da Marinha. Eram apenas os setores da baixa nobreza que dirigiam seus filhos para as profisses (Montroni, 1995:357-75). 190. Para outros trabalhos publicados por Raffaele Pareto, ver Bousquet (1956: 595). 191. Bousquet (1956:595-7); Giacalone-Monaco (1966:98-101, 1967:733-4, 1968:256); Sereno (1962:40). 192. Aron (1982:451); Rodrigues (1984:12); Borkenau (1941:1); Finer (1966:9, 1968:441); Busino (1966:15-6); Coser (1971:402). 193. Pareto tinha duas irms (Giacalone-Monaco, 1966:97). 194. Busino (1966:9-12); Bobbio (1972:67); Bousquet (1928:205-6); Finer (1966:9); Parsons & Allais (1968:411). 195. Aron (1982:451); Finer (1966:9); Rodrigues (1984:18). 196. Joseph Lopreato procura indicar pontos de semelhana entre a sociologia de Pareto e o funcionalismo, em particular pela vertente de Robert K. Merton. O que os diferenciaria, segundo o autor, seria o fato de que, enquanto o socilogo americano operava com um modelo orgnico, Pareto o fazia, basicamente, a partir de uma perspectiva mecnica, fsica (Lopreato, 1964:639). 197. Giacalone-Monaco (1963:541); Pantaleoni (1924:10); Rosa (1984a:447, nota 6). 198. Bousquet (1956:600); Cammarano (1995:22-65); Clark (1993:27); Duggan (1994: 42-51); Giacalone-Monaco (1966:104); Hearder (1992:81, 97 e 100). 199. Norbert Elias, em A sociedade de corte, descreve como, do sculo XVII para o XVIII, o centro de sociabilidade e de vida cultural representado pela corte e objetivado pelo palcio do monarca passou de certo modo por um processo de fisso. Na verdade, assistiu-se a uma gradual descentralizao, a uma diversificao, que correspondeu, ao mesmo tempo, a um afastamento do ncleo da aristocracia. Por esse processo se operou, a princpio, um deslocamento para o que seriam os hotls, ou residncias dos aristocratas de corte que no pertenciam categoria de prncipes, e da para as residncias da alta burguesia, dando origem ao que ficou conhecido como civilizao de salo (Elias, 1987:53-4). 200. Uma das fortes caractersticas dos trabalhos de Pareto a constante e extensa citao de textos clssicos, conferindo-lhes a marca de erudio. 201. em A cincia como vocao que Weber distingue o diletante do especialista, associando a este caractersticas como a do rigor, do trabalho e da dedicao primordial e sistemtica cincia (Weber, 1974b:160-3). Mosca, como vimos, trabalha com essa mesma terminologia na Teorica. Para ele, a afirmao de uma cincia acarretava um processo de diferenciao social, atravs do qual se constitua um grupo de especialistas que controlava um mtodo de trabalho, um con-

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junto de procedimentos prprios, considerados legtimos e verdadeiros, e inacessveis aos homens comuns. Outra distino interessante aquela que faz Kant, em Le conflit des facults, entre intelectuais independentes e corporativos. Enquanto estes viviam dos ganhos e se submetiam aos princpios avaliadores e atribuidores de notoriedade e prestgio da universidade, aqueles permaneciam de fora, praticando a cincia como amadores, individualmente ou agrupados em associaes livres, como as academias. Assim se refere Kant aos intelectuais independentes: dedicando-se a apenas uma parte do grande conjunto da cincia, eles formam certas corporaes livres (chamadas academias ou tambm sociedades doutas) que so como os atelis; ou ento vivem de algum modo em um estado de natureza da cincia, cada um se dedicando por si mesmo, por fora de toda prescrio e de todo regulamento pblico, ao crescimento e difuso da cincia, como amadores [os grifos so de Kant] (Kant, 1935:14). Ainda que a caracterizao de intelectual independente se aplique bem a um momento da trajetria de Pareto, a dade diletante e especialista parece mais adequada. Afinal, como se ver, mesmo quando inserido nos quadros de uma corporao para usar o termo de Kant universitria, Pareto manteve uma atuao em grande parte independente. 202. A existncia e a importncia das academias no eram um fenmeno exclusivo da Itlia, sendo observado em outros pases, com caractersticas bsicas semelhantes o que no significa identidade , principalmente a partir do sculo XVII, conferindo a seus membros, alm do reconhecimento, vrios privilgios. Para alguns dados sobre a Acadmie Franaise durante o Iluminismo, por exemplo, ver Peter Gay (1977:79-83). 203. A importncia da prtica de atividades aparentemente desinteressadas como recurso de distino, como reforo da crena na diferena essencial de um setor de elite, foi acentuada por Monique de Saint Martin para o caso da nobreza francesa de hoje (1992:158-61). Tambm Elias, ainda que voltado, claro, para um outro contexto, permite-nos perceb-lo quando observa que o que levava o corteso corte e a submeter-se etiqueta era no uma racionalidade econmica capitalista, mas a busca de reconhecimento, de prestgio, a necessidade de identificao e de diferenciao em relao ao restante da sociedade (Elias, 1987:74-5). 204. Amoroso (1938:1); Borkenau (1941:3-13); Finer (1966:9-10, 1968:441); Goldhtorpe (1971:121); Sereno (1962:40); Coser (1971:403-18); Hughes (1958:62); Bousquet (1928:16-7). 205. Bousquet (1953:217-8); Dalla Volta (1924:142-3); Pantaleoni (1924:11); Rosa (1984a:11-3, notas 8-12). Mais do que lugares de estudo e debate, algumas sociedades constituam-se em espaos de tomadas de posio polticas, identificando-se com grupos e posturas especficos. Assim, a Societ Adamo Smith era associada a um liberalismo ortodoxo, defendido, em grande parte, por setores financeiros vinculados direita toscana, atravs do peridico LEconomista. A ela se opunha a Associazione per il Progresso degli Studi Economici, de Milo, que editava o Giornale degli Economisti, e que defendia a interveno do Estado na economia como forma de promover o desenvolvimento industrial (Cammarano, 1995:63; Pantaleoni, 1924:11; Pescosolido, 1995:280-1; Tobia, 1995:451). 206. Barone (1995:305-6); Cafagna (1971:18-22); Clark (1993:23-7); Pescosolido (1995:319). 207. mais uma vez Elias que pode vir em nosso auxlio, ao observar que, para a aristocracia, a perda da honra podia significar, acima de tudo, a excluso do crculo da corte. Com isso, era a prpria identidade pessoal que ficava atingida, na

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medida em que o afastamento da corte representava tambm a perda dos parmetros de distino em relao s multides. Era freqente por isso mesmo, na concluso do autor, que o nobre preferisse perder sua vida a perder sua honra (Elias, 1987:70). 208. Os primeiros governos da esquerda, Depretis e Crispi, promoveram uma poltica de expanso italiana na frica, colonizando territrios, estabelecendo protetorados. Nem sempre bem-sucedida, essa investida resultou em perdas humanas significativas, como a morte de toda uma fora italiana na batalha de Dogali, na Etipia. Sem pretender entrar em maiores explicaes, o que importante destacar que a poltica colonialista se constituiu em um dos principais alvos dos opositores da esquerda, o que pesou de forma decisiva para as duas quedas de Crispi, em 1891 e em 1896 (Hearder, 1992:205-7). 209. Coser (1971:414-6); Finer (1966:10); Hughes (1958:63). 210. Pareto defendia, ento, um liberalismo nos moldes do que havia marcado o governo do conde Cavour (Mongardini, 1970:200-1). 211. Segundo Finer, Pareto publicou cerca de 167 artigos, a maioria de crtica ao governo italiano, entre 1889 e 1893 (Finer, 1966:10). 212. Sobre as idias bsicas de Walras, e sua novidade diante das teorias econmicas ento dominantes, ver, por exemplo, Schumpeter, que a ele se refere, na Histria da anlise econmica, da seguinte forma: Entretanto, no que respeita economia pura, Walras , na minha opinio, o maior de todos os economistas. Seu sistema de equilbrio econmico, unindo a qualidade de sua criao revolucionria com a qualidade de sntese clssica, a nica obra de um economista que pode ser comparada com as realizaes da fsica terica (...) A obra de Walras o marco principal no caminho seguido pela economia rumo ao status de uma cincia exata e, embora hoje obsoleta, constitui o alicerce de boa parte do melhor trabalho terico contemporneo (Schumpeter, 1964:100). Do mesmo autor, ver tambm (1952:74-9; 1967), particularmente o cap. IV. 213. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 7-11-1892, em Rosa (1984a:312). 214. poca em que contribuiu para o Giornale degli Economisti, Pareto o identificava como um peridico que defendia as idias liberais. Um de seus diretores era Maffeo Pantaleoni, que foi quem convidou o autor para que escrevesse uma coluna bimensal na revista. Pareto iniciou sua colaborao em 1893, mantendo-a at 1897, quando Pantaleoni foi substitudo por Antonio De Viti De Marco, que tinha reservas quanto ao contedo crtico dos artigos do autor e que se identificava mais com uma vertente liberal prxima de Mosca (Mongardini, 1970:189-91). 215. Escrevendo a Pantaleoni, em abril de 1892, a respeito da aceitao de um artigo seu em Pall Mall Gazette, Pareto dizia: Tambm na Inglaterra estou ficando conhecido (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 16-4-1892, em Rosa, 1984a:208). 216. Um dos economistas franceses que mais polemizaram com Pareto foi Maurice Block, que atacava a economia matemtica por seu hermetismo, comparando seus praticantes aos sbios da Idade Mdia que expunham as cincias em latim (Block apud Rosa, 1984a:246-7, nota 7). 217. Amoroso (1938:1); Aron (1982:451); Biaudet (1965:44); Borkenau (1941:3-6); Bousquet (1928:18-9, 1964:ix e x); Busino (1966:12-3); Coser (1971:403-4, 418-9); Finer (1966:10, 1968:441); Goldthorpe (1971:122); Hughes (1958:63); Rodrigues (1984:14-5); Sereno (1962:40-1).

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218. Ver tambm, a esse respeito, Busino (1963:267). 219. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 22-5-1893, em Rosa (1984a:372). Refere-se Pareto a um artigo de crtica s polticas econmicas italianas, que publicou na Revue des Deux Mondes, em outubro de 1891, e que foi alvo de violentas reaes em seu pas. Esse artigo, entre outros, foi um dos elementos geradores das represlias do governo italiano contra Pareto, que passou a ser visto como um denegridor da imagem do seu pas no exterior (Rosa, 1984a:134-8). 220. Em 3 de novembro de 1892, j prximo aposentadoria de Walras, Pantaleoni escrevia a ele insistindo no nome de Pareto, argumentando ser este o mais habilitado para dar continuidade ao trabalho de construo, de afirmao da economia matemtica e de ruptura com a economia poltica tradicional: Eu gostaria tambm de pedir-lhe, se depender do senhor, para impedir que a sua cadeira caia nas mos de um economista que no saiba os primeiros conceitos de matemtica e pertena ainda antiga escola e, em geral, eu ficaria satisfeito de saber de que modo a academia pretende preencher as cadeiras vagas, porque eu tenho insistido junto ao marqus Pareto para que decida apresentar-se ao concurso, se concurso houver. Ele o homem que, melhor do que qualquer um, continuar a sua tradio, e uma vez que o mestre j est fatigado, bom que seja substitudo por um aluno digno (apud Busino, 1963:263). 221. Sereno (1962:41); Schumpeter (1964, 97-8, 103-4, 111). 222. Para um estudo da novidade representada pelas descobertas de Newton, que se afirmaram e foram reconhecidas como uma verdadeira revoluo cientfica, ver I. Bernard Cohen (1985). 223. Para uma anlise da incorporao do paradigma da fsica newtoniana reflexo social, a partir do sculo XVIII, ou do Iluminismo, ver Ernst Cassirer (1992, principalmente os caps. I e V). Ver tambm Peter Gay (1977, em particular os caps. 3 e 4). 224. Ver carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 11-5-1893, em Rosa (1984a:370). importante perceber que, para alm da pertinncia da leitura matemtica, o que se jogava era a imposio de uma construo distinta da economia, com questes, hipteses, processos de demonstrao e tambm especialistas portadores de competncias diferentes das tradicionais, que assim seriam deslocadas. Este, sem dvida, um ponto interessante de anlise, mas que escapa aos limites deste livro. 225. Lana-se mo aqui, de forma livre, da trade sada, voz e lealdade, utilizada por Albert O. Hirschman para analisar formas possveis de comportamento dos agentes, principalmente mas no unicamente, no mercado econmico, em relao a empresas, instituies, organizaes de maneira geral, responsveis pela oferta de bens e servios consumidos. Assim, por exemplo, uma deteriorao na qualidade dos bens ou servios poderia simplesmente levar seus consumidores ao seu abandono, o que configuraria a sada, ou a empreenderem alguma forma de protesto, que constituiria a voz, a vocalizao do descontentamento, ou mesmo a manterem-se fiis, leais. claro, porm, que na formulao do autor essas relaes so bem mais complexas, no sendo exclusivas nem necessariamente definitivas, alm de se refletirem, igualmente, em reaes das prprias empresas, instituies, organizaes (Hirschman, 1970). 226. Pareto referia-se venda da prpria edio sua, uma vez que uma traduo italiana do livro s seria publicada pela primeira vez em 1942 (Busino, 1964:xxix).

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227. Para um arrolamento geral das primeiras resenhas ao Cours dconomie politique, bem como para algumas das reaes de Pareto a elas, ver Busino (1964:xxii-xxx). Fica bastante claro por ali que o livro, mesmo circunscrito a um pblico restrito, teve uma rpida difuso, ainda mais se levarmos em conta que se tratava do final do sculo XIX, quando as possibilidades e a velocidade de distribuio eram razoavelmente limitadas. Podemos encontrar comentrios datados ainda de 1896, mesmo ano da edio do primeiro tomo, em publicaes francesas, italianas e tambm americanas, correspondendo ao espectro de penetrao de Pareto. Isso indica, claro, a existncia de um nvel considervel, tanto de integrao no mercado editorial europeu, ou ao menos de algumas regies da Europa, quanto de inter-relao e circulao de intelectuais. Por outro lado, o que tambm chama a ateno o interesse e o acesso americanos, naquele momento, produo intelectual europia. Isso guarda relao com o fato de que, tendo em vista o estgio de estruturao das universidades nos Estados Unidos, era comum que professores, ou aspirantes a professores, americanos fossem fazer seus doutorados na Europa. O prprio Irving Fisher um exemplo. Diretor da Yale Review, ele era professor de matemtica e de economia poltica naquela universidade, tendo estudado em Berlim e em Paris nos anos de 1893 e 1894, quando manteve contato pessoal com Pareto (Giacalone-Monaco, 1959:193; Rosa, 1984a:284, nota 3). 228. Pareto expressava ento a viso de que a cincia era una, indivisa, o que justificava a possibilidade de que tanto a natureza quanto a sociedade fossem tratadas segundo os mesmos parmetros. Se havia compartimentalizao, esclarecia ele, devia ser creditada no realidade objetiva, mas ao esprito humano: a imperfeio do esprito humano que multiplica as divises das cincias, que separa a astronomia da fsica ou da qumica, as cincias naturais das cincias sociais. Na sua essncia, a cincia una: ela no outra coisa que no a verdade (Pareto, 1964:II, p. 396). 229. Em uma resposta a A. Napoleoni Colajani, que o criticava por ter dividido o livro em pargrafos, Pareto dizia: o melhor sistema para livros cientficos. preciso entender que eu no quis fazer um livro de literatura econmica (apud Busino, 1964:xxii). O emprego estigmatizante do termo literatura ganha maior sentido quando se observa que, como mostra Wolf Lepenies, as cincias sociais afirmaram-se enquanto disciplinas cientficas em grande parte concorrendo e marcando a sua distino em relao literatura, o que fizeram aproximando-se dos modelos das cincias naturais. 230. A edio do Cours dconomie politique com a qual trabalhei divide-se em dois tomos. Dessa forma, os algarismos romanos, que precedem as especificaes de pginas nas referncias, indicam os tomos nos quais se localizam. 231. Deve-se atentar para o fato de que aqui o termo aristocracia utilizado por oposio ao de classe inferior. Dessa forma, o sentido que a ele atribui Pareto o de classe superior em geral, no se confundindo com nenhum grupo social especfico, de nenhum perodo ou sistema determinados. Na verdade, em textos posteriores, como se ver, o termo seria acionado como sinnimo de elite. Perceb-lo, porm, no significa desconhecer que, ainda que se procurasse atribuir-lhe um carter geral e neutro, o termo empregado pudesse ter como referente, como efetivamente tinha, um grupo concreto. Tratava-se da aristocracia de fato, grupo do qual provinha o prprio Pareto. 232. A concluso a que chega Pareto, diante disso, que o modo possvel de se elevar a renda mnima, melhorando a situao das classes pobres, era no o das

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medidas redistributivas, mas sim o da intensificao da produo de riqueza, em uma taxa superior do crescimento da populao (Pareto, 1964:II, p. 408). 233. Retomo aqui os termos de Elias em sua reflexo sobre os efeitos da transposio, de modo acrtico, dos modelos de pensamento de um domnio cientfico a outro. Diz Elias: Nas cincias fsicas, o que pressupe um alto grau de distanciamento no apenas o desenvolvimento e a utilizao de um mtodo especfico de resoluo de problemas e de verificao das teorias, mas, acima de tudo, a maneira de colocar problemas e de construir teorias. Transposto para as cincias sociais, no raro que esse mtodo seja utilizado para explorar problemas e teorias estabelecidos e examinados sob a influncia de um forte engajamento. A utilizao de um mtodo que se assemelha quele desenvolvido nas cincias fsicas tambm d s cincias sociais o verniz de um alto grau de distanciamento e objetividade que falta, na verdade, queles que utilizam esse mtodo. Ele permite, freqentemente, contornar, sem enfrentar, as dificuldades resultantes do dilema que se coloca de maneira especfica aos especialistas das cincias do homem. Em boa parte dos casos, ele cria uma fachada de distanciamento por detrs da qual se dissimula uma tomada de posio claramente engajada (Elias, 1993:113). 234. Biaudet (1965:44); Busino (1963:278); Coser (1971:419). 235. Biaudet (1965:44); Coser (1971:419-20). 236. Tal era a percepo do prprio Pareto que, por isso mesmo, recusava-se a reeditar o Cours dconomie politique. Schumpeter assim se refere ao fato: Mas seus primeiros trabalhos, como Considerazioni sui principi fondamentali delleconomia politica pura (Giornale degli Economisti, 1892-3), nunca foram alm dos marcos lanados por Walras. Isso verdade tambm, e enfaticamente, para o seu Cours. Alguns economistas que respeitaram Pareto, mas que no foram estritamente paretianos, prestaram-lhe a dbia honra de chamar o Cours de sua obra-prima. (...) Mas Pareto estava certo em recusar-se a autorizar uma nova edio. Afinal, enquanto teoria pura, no havia nele nada que fosse especificamente paretiano. Foi apenas a partir de 1897 que Pareto alou vo prprio (Schumpeter, 1949:157). 237. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 2-4-1896, em Rosa (1984a:430-1). 238. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 30-4-1896, em Rosa (1984a:441). 239. Aron (1982:452); Biaudet (1965:45); Borkenau (1941:6); Coser (1971:405); Finer (1966:12, 1968:442); Giacalone-Monaco (1966:98-9, 1968:256, nota 9); Parsons & Allais (1968:399); Stark (1963:105-6). Ao abandonar seu emprego na Societ delle Ferriere Italiane, em 1889, e na medida em que percebia o malogro de seu projeto poltico, Pareto se atirou aos estudos de forma voraz, a eles se dedicando integralmente. Sua esposa costumava dizer, segundo Bousquet, que para atrair a ateno do marido precisava aprender a miar com os gatos (Bousquet, 1964:x). Para o processo de separao de Pareto e Alexandra Bakounine, ver tambm GiacaloneMonaco (1959). 240. As citaes doena cardaca, referida por Pareto como uma espada de Dmocles pairando ameaadoramente sobre sua cabea, lembrando-o da possibilidade da morte iminente, foram uma constante na correspondncia do autor com Pantaleoni, a partir do incio dos anos 1900 (cf. Rosa, 1984b, passim). 241. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 26-10-1907, em Rosa (1984b:70). 242. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 10-12-1916, em Rosa (1984b:199).

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243. Em uma carta ao amigo Pantaleoni em 1900, Pareto afirmava que, no passado, buscava corrigir os males do coxo. Agora, no entanto, zombava de seu defeito (apud Coser, 1971:405). 244. Escrevendo a Maffeo Pantaleoni em maro de 1907, Pareto dizia que o pensamento de todos os homens era, ento, regulado pelo que entendia ser uma religio humanitria. Qualquer um que contra ela se levantasse era visto como um monstro, do mesmo modo que o era algum que, na Idade Mdia, se atrevia a questionar a divindade de Jesus Cristo. E era dessa forma mesmo que Pareto se colocava, opondo-se quela religio: Sei perfeitamente que ofendo a religio humanitria, mas o fao deliberadamente, exatamente porque no sigo nem esta nem qualquer outra religio. (...) Posso estar enganado e voc pode considerar falsa a minha teoria, mas antes voc deve entend-la precisamente como ela . Na minha opinio, os fatos demonstram que o erro maior do sculo XIX foi acreditar que fosse possvel governar sem a fora; a esse erro capital, outros se seguiram, entre os quais o sufrgio universal, a instruo obrigatria, o conceito de igualdade entre os cidados etc. Por isso acho que todo acontecimento que mantenha a iluso de que se pode governar sem retificar esses erros contribua, em ltima anlise, para favorecer a dissoluo social (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 7-3-1907, em Rosa, 1984b:17-9). Pareto, portanto, havia rompido com suas antigas posies, abandonado suas prprias crenas humanitrias, democrticas: Eu tambm, infelizmente, acreditei nessas mentiras, mas agora ganhei juzo e me lamento apenas ter perdido tantos anos da minha vida intelectual por causa dessas fbulas. Se, quando eu tinha 25 anos, me chegasse um livro como o meu Manuale, ou a Sociologia, que estou escrevendo, acho que teria entendido e que no teria perdido tanto tempo (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 8-5-1908, em Rosa, 1984b:94). 245. Pareto, em meados dos anos 10, se definiu por vezes como um derrotista (Einaudi, 1935:345). 246. Ainda que permanecesse predominantemente vinculado economia poltica, Pareto comeou a ministrar alguns cursos de sociologia j em fins dos anos 1890. Essa proporo, no entanto, foi aos poucos se invertendo, tornandose ele responsvel, a partir de 1900, por cursos de sociologia poltica e de histria das doutrinas econmicas e sociais (Biaudet, 1965:45; Busino, 1966:22-3; Finer, 1966:20). 247. Do mesmo modo que no Cours dconomie politique, os algarismos romanos que antecedem as pginas, nas citaes de Les systmes socialistes, indicam os tomos do livro aos quais elas se referem. 248. Trabalho aqui com uma terceira edio em francs, datada de 1965, que uma reproduo da primeira. A segunda edio, de 1926, foi sensivelmente modificada (Pareto, 1965). 249. Pareto era sem dvida um autor obsessivo. De modo caracterstico, ele sempre retomava, em cada um dos seus livros, seus temas e teses centrais, desenvolvendo-os exausto e acrescentando novos argumentos ou desdobramentos lgicos que os trabalhos anteriores no haviam contemplado, emprestando-lhes um aspecto bastante repetitivo. 250. Aron (1982:452); Bousquet (1928:103); Busino (1966:18); Finer (1966:20).

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251. Sobre a crena da nobreza na sua diferena essencial em relao aos no-nobres, ver Saint Martin (1992). 252. preciso levar em conta que, enquanto Les systmes socialistes era escrito, a Itlia passava por um perodo de mobilizaes camponesas e operrias, e tanto na Frana quanto na Alemanha os socialistas ganhavam terreno e o movimento sindical dava sinais de fora. 253. O prprio Mosca teria enviado a Pareto um exemplar da primeira edio dos Elementi, ainda em 1896, a pedido de Maffeo Pantaleoni (Sereno, 1952:605). 254. Trabalho aqui com a quarta edio francesa do livro, datada de 1966. 255. Ele manteve essa atividade at por volta da I Guerra Mundial (Einaudi, 1935:344). 256. Borkenau (1941:6); Finer (1966:12-24, 1968:440). 257. Pareto o faz, particularmente no stimo captulo do livro, La population (Pareto, 1966b:380-434). 258. J em Les systmes socialistes, Pareto expressava pontos de vista semelhantes. Ali, dizia ele que toda aristocracia que era tomada por sentimentos humanitrios e que se negava a defender, a lutar por suas posies empregando a fora, dava sinais claros de decadncia. No lhe restava, portanto, outra coisa a fazer seno ceder lugar a outra elite que reunisse as qualidades viris que lhe faltavam. Enganava-se ela, porm, e profundamente, se acreditava que lhe seriam aplicados os mesmos princpios humanitrios que proclamava (Pareto, 1965:I, p. 37-40). 259. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 2-4-1907, em Rosa (1984b:26-7). 260. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 13-10-1907, em Rosa (1984b:68). 261. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 26-10-1907, em Rosa (1984b:70). 262. importante destacar que Maurice Millioud, que assumia ento a cadeira de sociologia em Lausanne, era oriundo no do direito, mas sim da filosofia, disciplina que lecionava naquela universidade desde 1892 (Rosa, 1984b:130, nota 9). 263. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 2-2-1909, em Rosa (1984b:130). 264. Ver carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 15-3-1907, em Rosa (1984b:25). 265. O Trait foi publicado primeiramente em 1916, na Itlia. Entre 1917 e 1919 que foi lanada a edio em francs, em Lausanne e em Paris. A edio com a qual se trabalha aqui francesa e datada de 1933. 266. De acordo com Pareto, os indivduos eram classificados socialmente atravs de etiquetas. Algumas delas, como as de mdico, advogado ou engenheiro, eram adquiridas por meio de exames formais. Outras, como no caso dos msicos e dos literatos, o eram com base em demonstraes de talento. Outras, ainda, podiam ser herdadas, enquadrando-se aqui as decorrentes da riqueza (Pareto, 1933:1.298-9). 267. Em uma carta a Pantaleoni datada de 1921, Pareto comparava a sua sociologia s grandes descobertas da fsica, particularmente a teoria da relatividade. Essa identificao com as teses de Einstein devia-se, por um lado, ao carter relativista de algumas de suas prprias formulaes e, por outro, reviravolta que

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acreditava estar produzindo nas cincias sociais. O meu Trattato di sociologia uma tentativa, muito imperfeita, de introduzir nas cincias sociais aquela relatividade que, de modo muito mais perfeito, ora introduzida nas cincias fsicas. Do absoluto metafsico, vai-se gradativamente em direco relatividade experimental. Um passo enorme foi dado por Galileu, Coprnico, Newton; outro dado agora por Einstein. Quem sabe, dentro de um sculo, se algum exemplar da Sociologia escapar das mandbulas dos ratos, um pesquisador descobrir que no incio do sculo XX existiu um autor que quis introduzir o princpio da relatividade nas cincias sociais (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 22-5-1921, em Rosa, 1984b:283). 268. Pareto traava um paralelo entre a adoo de determinadas polticas, justificadas com o argumento de que propiciariam o progresso, trariam benefcios significativos humanidade, teriam um alto sentido democrtico, e passagens do Antigo Testamento em que, dando ordens ao seu povo atravs de Moiss, Deus acrescentava de tempos em tempos, a fim de refor-las, garantir o seu cumprimento, a afirmao: Eu sou o Eterno, vosso Deus. Do mesmo modo que na religio, os argumentos legitimadores na poltica, expresses como democracia, soberania popular e progresso, nada mais eram do que derivaes, formas de levar os homens ao por meio dos sentimentos que provocavam (Pareto, 1933:802). Na verdade, seguia Pareto, o culto ao Estado e ao deus povo havia parcialmente substitudo, nas sociedades modernas, o culto da religio crist. Por serem cultos, porm, guardavam ambos estreitas semelhanas: No se v qual a diferena fundamental entre as festas de um santo catlico e as festas do bicentenrio de Rousseau, para as quais o Estado francs reservou 30.000 francos em seu oramento (Pareto, 1933:1.043). 269. Uma das crticas geralmente feitas a Pareto a de que ele no procurava dar conta da origem dos resduos, tomando-os como dados. De fato, explic-los no era uma preocupao sua, at porque no a considerava uma tarefa fundamental, muito pelo contrrio. psicologia que, a seu ver, cabia explicar a origem dos resduos. Para ele, era bastante descobrir a sua existncia e caracteriz-los, analisando tambm suas combinaes possveis e a forma como pesavam sobre as aes humanas. Essa recusa de uma busca das origens de alguns dos elementos centrais de sua reflexo, mesmo no caso da economia poltica, era apresentada por Pareto como uma iseno lgica, racional, decorrente de sua viso da cincia, portanto, j desde antes do Trait. Assim, respondendo a Adrien Naville, que criticava o seu Cours dconomie politique por tambm no perquirir a genealogia dos desejos que informavam as aes econmicas, Pareto dizia: um fato comprovado que as cincias naturais no fizeram progressos a no ser quando tomaram por base princpios secundrios, ao invs de tentarem descobrir a essncia das coisas. Foi assim que se constituiu a astronomia moderna, que estuda os efeitos da gravidade, sem decidir o que essa gravidade. A economia poltica pura tem, portanto, um grande interesse em invadir o menos possvel o domnio da psicologia [os grifos so de Pareto] (apud Busino, 1964:xxiv). 270. Com sua perspectiva essencialista, Pareto percebia os grupos sociais como dados, pr-formados, deles emergindo os indivduos excepcionais que conformavam a elite. 271. Pareto irritava-se quando o esforo de objetivao, que impiedosamente dirigia aos demais cientistas sociais, era exercitado em relao a suas prprias reflexes, e tanto mais quanto isso era feito por outros pensadores italianos. Assim, em 1907, ele escrevia a Pantaleoni acerca de uma polmica etimolgica gerada pelo seu emprego do termo ofelimidade: Disse, tornei a dizer, repeti saciedade, que no se deve brigar por termos, que a etimologia no tem nada a ver com a

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cincia, que necessrio apenas evitar os equvocos. E no que o ilustre Scialoja e o no menos ilustre Valenti, que na Itlia so reputados doutores da cincia, enquanto me tm na conta de um asno, fazem pesquisas sobre a etimologia da ofelimidade! E j que o asno no ouvido, no se pode fazer outra coisa seno continuar zurrando, porque de outra maneira muitos (ou melhor, todos) acreditariam que entre ele e aqueles valentes cientistas h verdadeiramente uma questo etimolgica; (...) Ora, o dito asno tem uma teoria segundo a qual, para dar-lhe uma forma paradoxal que melhor a faa entender, uma denominao tanto mais cientfica quanto pior for etimologicamente. Porque de tal modo se evita que, em vez de estudar diretamente a coisa, se estude o seu nome. Por isso, se no fosse para no cair no ridculo, era melhor chamar a ofelimidade de cocoroc; afinal, era de se esperar que nos deixassem em paz com a etimologia [os grifos so de Pareto] (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, em Rosa, 1984b:55-6). interessante observar que, dos dois cientistas sociais italianos citados por Pareto, o primeiro, Antonio Scialoja, era um antigo adversrio seu. Scialoja havia pertencido, na dcada de 1870, Scuola di Padova, que defendia propostas econmicas de cunho estatistas, e contra a qual se colocava a Societ Adamo Smith, qual se filiava Pareto (cf. Rosa, 1984a:40-1, nota 6). 272. Assim se referia Pareto: Do ponto de vista de fundo, as diferenas residem, principalmente, nas propores de fora e de consentimento; do ponto de vista de forma, nas maneiras pelas quais se emprega a fora e se obtm o consentimento (Pareto, 1933:1.438). 273. Foram mantidos os termos tal como empregados por Pareto, sem traduzi-los, a fim de no imputar a eles sentidos no previstos pela utilizao do prprio autor. A categoria especulador, por exemplo, tem para ns, entre outros, um contedo negativo que, no entanto, o autor a ela no atribua. 274. Em outubro de 1907, Pareto escrevia a Pantaleoni: Em termos cientficos, foi para mim uma sorte que o meu pas me tenha rejeitado, que os seus magnatas me tenham desprezado. Acabei de passar agora um ms na Itlia e percebi que, se ali vivesse, dificilmente deixaria de ceder tentao de ocupar-me praticamente da vida social, o que certamente me faria recair nos antigos erros (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 26-10-1907, em Rosa, 1984b:70). E em janeiro de 1917, pouco aps a publicao italiana do Trait, o autor dizia ao amigo: Tambm o gato, que um animal muito independente, acaricia quem o acaricia, e seria possvel acontecer, embora de forma insconciente, que eu me deixasse enredar por vnculos semelhantes nas minhas pesquisas experimentais. A histria da cincia demonstra, porm, e de modo extremamente correto, que quem pretende chegar descoberta da verdade experimental deve, em primeiro lugar, libertar-se dos vnculos dos prprios sentimentos, quaisquer que sejam eles. Pude escrever a Sociologia porque vivia solitrio em Cligny, longe da Itlia; e teria escrito essa obra ainda melhor se tivesse podido viver na Lua, longe da Terra (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 9-11917, em Rosa, 1984b:205-7). 275. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 9-1-1917, em Rosa (1984b:204-5). 276. Rosa (1984b:207, nota 3); Einaudi (1935:344-5). Ver tambm cartas de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 15-9-1917 e 3-12-1917, em Rosa (1984b:218-23). 277. Ver cartas de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 11 e 17-8-1922, em Rosa (1984b:308-11).

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278. Para um quadro geral da poltica italiana em fins da dcada de 10 e incio da de 20, com a ascenso do fascismo, ver Clark (1993:203-29), Duggan (1994:189-210), Hearder (1992:212-30), Hughes (1965b:55-64), Milza & Bernstein (1980:11-106) e Tasca (1967). 279. A informao de que Mussolini se havia matriculado em seus cursos do prprio Pareto, em uma carta a um amigo. Esclarecia o autor, entretanto, que no o havia conhecido pessoalmente (carta de Vilfredo Pareto a Carlo Placci, 51-1923, em Giacalone-Monaco, 1957:105). Sobre a teoria das elites de Pareto, por seu turno, assim escrevia Mussolini, em um artigo publicado em abril de 1908, aps, portanto, a publicao do Manuel dconomie politique: Lembram-se da teoria das elites de Vilfredo Pareto? provvel que se trate da concepo sociolgica mais genial dos tempos modernos, que a histria uma sucesso de elites dominantes [os grifos so de Mussolini] (apud Sternhell, Sznajder & Ashri, 1989:352). 280. Amoroso (1938:2-3); Borkenau (1941:7-10); Bousquet (1928:21); Coser (1971:407); Finer (1966:28); Rodrigues (1984:15-6); Schumpeter (1949:147); Sternhell, Sznajder & Ashri (1989:352). Pantaleoni escrevia a Pareto, em dezembro de 1922, que Mussolini tinha uma verdadeira fixao pela idia de nome-lo para o Senado (carta de Maffeo Pantaleoni a Vilfredo Pareto, 15-12-1922, em Rosa, 1984b:389). 281. Falando do carter paradoxal, contraditrio de Pareto, Manon Michels Einaudi, que o conheceu ainda em meados dos anos 10, dizia que o seu extremado rancor, a sua crtica impiedosa em relao Itlia, revelava o profundo vnculo afetivo que tinha com seu pas. Mais ainda, observava ela que, embora se enervasse bastante com qualquer forma de adulao, cegava-se o autor, constantemente, com a adulao de seus alunos e seguidores (Einaudi, 1935:346). 282. No caso especfico de sua nomeao para o Senado, que j se examinava em 1922, Pareto resistiu bastante, alegando que no teria condies, por sua idade e por seu estado de sade, que no lhe permitiam sair de Cligny, de exercer efetivamente o cargo. Entretanto, esclarecia ele ao amigo Pantaleoni, que tambm havia sido nomeado senador: Poderia ter dito um no seco, bem seco. Talvez tenha errado por no ter feito isso, mas me repugnava, por outro lado, ser descorts com quem me tratava com tanta cortesia. Por isso e para demonstrar que no recusava por falta de ateno ao doador, eu disse que aceitaria um cargo honorfico, mas sem pagamento (sobre isso no transijo). ridculo um senador do Fiume que mora em Cligny, mas no ridculo um estudioso que, qualquer que seja a sua nacionalidade e o seu domiclio, faz o seu trabalho, que dar o que pode dar pelo seu pas (carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 23-12-1922, em Rosa, 1984b:318-9). 283. Carta de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 7-6-1921, em Rosa (1984b:285). 284. Cartas de Vilfredo Pareto a Maffeo Pantaleoni, 29-10-1922 e 30-10-1922, em Rosa (1984b:315-6). 285. Referia-se Pareto segunda edio italiana do Trait de sociologie genrale. 286. Carta de Vilfredo Pareto a Carlo Placci, 5-1-1923, em Giacalone-Monaco, (1957:105). O que cita Pareto um trecho do pargrafo de abertura do captulo final de O prncipe. O que ali se diz, de modo completo, : Consideradas, pois, todas as coisas j expostas, pensando comigo mesmo se no momento presente, na Itlia, corriam tempos capazes de honrar um prncipe novo e se havia matria que assegurasse a algum, prudente e valoroso, a oportunidade de nela introduzir nova organizao que a ele desse honras e fizesse bem a todo o povo, quer me parecer concorrerem tantas circunstncias favorveis a um prncipe

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novo que no sei qual o tempo que poderia ser mais adequado para isto. E se, como j disse, para se conhecer a virtude de Moiss foi necessrio que o povo de Israel estivesse escravizado no Egito, para conhecer a grandeza do nimo de Ciro, que os persas fossem oprimidos pelos medas, e o valor de Teseu, que os atenienses estivessem dispersos, tambm no presente, querendo conhecer a virtude de um esprito italiano, seria necessrio que a Itlia se reduzisse ao ponto em que se encontra no momento, que ela fosse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida do que os persas, mais desunida do que os atenienses, sem chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse suportado runa de toda sorte (Maquiavel, 1976:143-4). 287. Carta de Vilfredo Pareto a Carlo Placci, 1-7-1923, em Giacalone-Monaco (1957: 108-9). 288. interessante o verbete de Pareto da Enciclopedia Italiana di Scienza, Lettere ed Arti, lanada em 1934, em pleno perodo fascista, e marcada por um carter apologtico. O verbete, escrito pelo economista Luigi Amoroso, discpulo e amigo de Pareto, foi tambm publicado pela revista americana Econometrica, j em 1938. O trecho abaixo, extrado e traduzido da publicao americana, embora longo, bastante significativo e vale a pena ser seguido: Uma das ironias da vida que Vilfredo Pareto, que recusou todo credo, toda filosofia, o artfice que, primeiro e de forma mais corajosa, levantou das runas do dogma democrtico o edifcio da nova f e da nova filosofia, antidemocrtica, anti-humanitria, antiprogressista, antievolucionista. Isso porque, ao tomar como fundamento a crtica das derivaes, ou seja, dos argumentos lgicos e pseudolgicos com os quais a cidade socialista-democrtica justificava a sua f determinista, laica e internacionalista, ele reinstitua uma importncia para os valores religiosos e patriticos, para os princpios da responsabilidade individual e da liberdade de escolha; princpios que a sabedoria dos tempos erigiu enquanto fundamento de toda a vida civil. Tal posio to mais digna de nota quanto a educao de Pareto foi conduzida em bases racionalistas e democrticas, quando o racionalismo e a democracia ou, melhor dizendo, o esprito racionalista e democrtico dominava as conscincias de forma indisputada. Antes que uma revoluo espiritual se observasse nas multides, observou-se nele, sem que fosse resultado de algum desejo definido seu; e eu diria mesmo que se observou apesar dele. Um sinal potente do gnio ao qual nenhuma fora externa pode resistir. Assim como a fraqueza da carne atrasou mas no pde impedir o triunfo da vocao de Santo Agostinho, a educao racionalista atrasou mas no impediu o florescimento do misticismo de Pareto. Por esta razo o fascismo, tendo se tornado vitorioso, exaltou-o em vida e glorifica a sua memria, como a de um confessor da sua f (Amoroso, 1938:20-1).

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