Revista Veja - Islamismo
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Revista Veja - Islamismo
Origem
O islamismo foi fundado no ano de 622, na região da Arábia, atual
Arábia Saudita. Seu fundador, o profeta Maomé, reuniu a base da fé
islâmica num conjunto de versos conhecido como Corão - segundo ele,
as escrituras foram reveladas a ele por Deus por intermédio do Anjo
Gabriel.
Profeta Maomé
Maomé nasceu em Meca, no ano de 570. Órfão de pai e mãe, foi criado
pelo tio, membro da tribo dos coraixitas. De acordo com historiadores,
tornou-se conhecido pela sabedoria e compreensão, tanto que servia
de mediador em disputas tribais. Adepto da meditação, ele realizava
um retiro quando afirmou ter recebido a primeira revelação de Deus
através do anjo Gabriel. Na época, ele tinha 40 anos. As revelações
prosseguiram pelos 23 anos restantes da vida do profeta.
A RELIGIÃO ISLÂMICA
Conversão
Não é preciso ter nascido muçulmano ou ser casado com um praticante
da religião. Também não é necessário estudar ou se preparar
especialmente para a conversão. Uma pessoa se torna muçulmana
quando proferir, em árabe e diante de uma testemunha, que "não há
divindade além de Deus, e Mohammad é o Mensageiro de Deus". O
processo de conversão extremamente simples é apontado como um
dos motivos para a rápida expansão do islamismo pelo mundo. A
jornada para a prática completa da fé, contudo, é muito mais
complexa. Nessa tarefa, outros muçulmanos devem ajudar no
ensinamento.
A RELIGIÃO ISLÂMICA
Crenças
A base da fé islâmica é o cumprimento dos desejos de Deus, que é
único e incomparável. A própria palavra Islã quer dizer "rendição", ou
"submissão". Assim, o seguidor da religião islâmica deve obedecer às
escrituras, orar e glorificar apenas seu Deus e ser fiel à mensagem que
Maomé trouxe.
Cinco pilares
Os cinco pilares do islamismo formam a estrutura de vida do seguidor da
religião. São eles:
O Corão
O livro sagrado dos muçulmanos reúne todas as revelações de Deus
feitas ao profeta Maomé através do anjo Gabriel. No Corão estão
instruções para a crença e a conduta do seguidor da religião - não fala
apenas de fé, mas também de aspectos sociais e políticos. Dividido em
114 "suratas" (capítuolos), com vários versículos cada (o número varia
de 3 a 286 versículos), o Corão foi escrito em árabe formal e, com o
tempo, tornou-se de difícil entendimento.
A RELIGIÃO ISLÂMICA
Sharia
É a lei religiosa do islamismo. Como o muçulmano não vê distinção entre
o aspecto religioso e o resto da sua conduta pessoal, a lei islâmica não
trata só de rituais e crenças, mas de todos os aspectos da vida cotidiana.
Apesar de ter passado por um detalhado processo de formatação, a lei
islâmica ainda é aplicada de formas variadas ao redor do mundo - os
países adotam a sharia têm interpretações mais ou menos rigorosas dela.
Mesquitas
As construções reservadas para as orações dos muçulmanos são
chamadas mesquitas, ou "masjids". Os prédios, contudo, não precisam
ser especialmente construídos com esse fim - qualquer local onde a
comunidade muçulmana se reúne para orar é uma mesquita.
A RELIGIÃO ISLÂMICA
Festas e datas
As duas principais festividades do islamismo são o Eid-Al-Adha, que
coincide com a peregrinação anual a Meca, e o Eid-al-Fith, quando se
quebra o jejum do mês do Ramadã. O mês sagrado, aliás, é o principal
período do calendário islâmico.
Grupos
Os muçulmanos estão divididos entre sunitas, o grupo majoritário, e
xiitas, a minoria dentro da religião. Os sunitas formam o tronco
principal da religião, ligado à interpretação mais aceita da história
islâmica, e reúnem cerca de 90% dos muçulmanos no mundo. A
diferença em relação ao Islã xiita é a aceitação à seqüência de califas
da história islâmica. Sem características comuns entre si, os
muçulmanos sunitas incluem praticantes da religião em todas as partes
do mundo e de todas as tendências, dos mais conservadores até os
moderados e seculares.
Oriente Médio
Arábia Saudita
95% de muçulmanos sunitas, 5% de muçulmanos xiitas
Irã
89% de muçulmanos xiitas, 10% de muçulmanos sunitas
Iraque
60% de muçulmanos xiitas, 32% de muçulmanos sunitas
Egito
94% de muçulmanos sunitas
O governo e o sistema judicial são seculares, mas as leis familiares são
baseadas na religião e a atuação de grupos radicais ainda é grande. O
Egito é o local de origem da primeira facção radical do Islã, a
Irmandade Muçulmana, e deu origem também ao grupo Jihad Islâmica.
Depois da execução do presidente Anuar Sadat pelos radicais, em
1981, o governo prendeu e matou milhares de pessoas na repressão
ao extremismo religioso.
Territórios palestinos
90% de muçulmanos
Líbano
41% de muçulmanos xiitas e 27% de muçulmanos sunitas
Jordânia
92% de muçulmanos sunitas
Ásia
Indonésia
88% de muçulmanos
Afeganistão
84% de muçulmanos sunitas, 15% de muçulmanos xiitas
Paquistão
77% de muçulmanos sunitas, 20% de muçulmanos xiitas
Malásia
53% de muçulmanos
África
Nigéria
50% de muçulmanos
Argélia
99% de muçulmanos
Sudão
70% de muçulmanos
Somália
100% de muçulmanos
Europa
Turquia
99,8% de muçulmanos
Kosovo
92% de muçulmanos
Albânia
70% de muçulmanos
Chechênia
maioria de muçulmanos
Desde o fim da União Soviética, a república russa vem sendo palco de violentos
confrontos entre o governo de Moscou e as forças separatistas formadas pelos
radicais islâmicos. No período em que a Rússia retirou suas forças do território, o
islamismo tornou-se religião oficial.
Usbequistão
88% de muçulmanos
Estado secular, viu o islamismo ganhar força nos anos 90. Junto com esse
crescimento, surgiram os grupos radicais contrários ao governo. Depois de uma
série de atentados, as forças do governo reprimiram os radicais. Os grupos, porém,
continuam em atividade.
Estados Unidos
O palco do maior ato de terrorismo islâmico da História tem mais de 6
milhões de muçulmanos e em torno de 2.000 mesquitas. Entre os seguidores
da religião nos EUA, 77,6% são imigrantes, e 22,4%, americanos natos.
Apesar do 11 de setembro de 2001, o islamismo está crescendo: estima-se
que, no ano de 2010, a população muçulmana supere a judaica - apenas o
cristianismo terá mais seguidores.
Índia
Cerca de 12% dos indianos são muçulmanos, formando uma população total
de 120 milhões de pessoas. A constituição do país garante a liberdade
religiosa. Na prática, contudo, os muçulmanos da Índia são alvos freqüentes
de atos de violência - e as facções radicais revidam as agressões. Na última
onda de conflitos entre muçulmanos e os hindus radicais, cerca de 2.000
pessoas morreram.
China
O país mais populoso do mundo tem cerca de 20 milhões de muçulmanos,
cerca de 1,5% da população. A religião está no país desde o século VII. É
oficialmente reconhecida e tolerada no país, que tem mais de 30.000
mesquitas, e os chineses muçulmanos estão concentrados no extremo oeste
do país. Há facções extremistas - uma delas listada como grupo terrorista
pela ONU e pelos EUA.
Brasil
Um dos maiores países católicos do mundo tem uma comunidade islâmica
relativamente grande - e seus números vêm crescendo. Há quarenta anos a
comunidade árabe brasileira tinha uma única mesquita. Atualmente são mais
de 50 templos, espalhados por todo o país e freqüentados por entre 1,5 e 2
milhões de fiéis. Não há atuação de grupos extremistas armados no território
brasileiro.
CONTEXTO
PERSPECTIVAS
POR TRÁS DOS VÉUS: garota olha entre mulheres afegãs com burcas
Por trás dessa situação há uma ironia trágica. A exclusão feminina não
está presente nas fundações do islamismo, mas apenas no edifício que se
erigiu sobre elas. O Corão, livro sagrado dos muçulmanos, contém
versículos dedicados a deixar claro que, aos olhos de Alá, homens e
mulheres são iguais. O mais importante deles é o que está reproduzido
nesta página. Ele mostra que Deus espera a mesma fidelidade de ambos
os sexos, e que a premiará de forma idêntica. O Corão é o mandamento
divino, e não uma interpretação qualquer da vontade de Deus. Como se
explica, então, que idéias tão avançadas tenham se perdido, para dar
lugar a Estados religiosos em que as mulheres têm de viver trancafiadas e
cobertas por véus, em pleno século XXI? As respostas têm de ser
buscadas muito longe, no próprio nascimento do Islã.
Aisha é uma figura central nesses primeiros anos do Islã (cujo calendário
começa a ser contado no ano 622 da era cristã). Inteligente, articulada e
dona de uma memória prodigiosa, ela foi a mais querida e respeitada das
mulheres do profeta - embora todas partilhassem de seus ensinamentos e
apoiassem ativamente sua causa. Eram, aliás, tão assediadas por pessoas
em busca de favores e influência que talvez por isso tenham sido as
primeiras muçulmanas (e, por algum tempo, as únicas) a usar véu e ficar
recolhidas em casa - e, ainda assim, só nos últimos anos da vida de
Maomé. Aisha tinha 18 anos quando Maomé morreu. Nas quase cinco
décadas seguintes de sua vida, ela foi inúmeras vezes consultada em
pontos importantes da religião, da política e também da conduta do
profeta. Isso porque Maomé legou aos muçulmanos o Corão, que é quase
um tratado ético, mas não teve tempo de regulamentar todos os
princípios que deveriam reger o cotidiano dos convertidos. Quando vivo,
podia ser consultado a qualquer momento. Depois de sua morte, tornou-
se tarefa de seus seguidores próximos transferir da memória para a
escrita as palavras e ações do profeta. A intenção era que o conjunto
servisse de guia aos fiéis. Esses "ditados" são os Hadith. Juntos, eles
compõem a tradição maior, a Sunna. Com as complicações surgidas por
causa da sucessão de Maomé, os Hadith tornaram-se uma ferramenta
crucial. Não era difícil que alguém sacasse um deles para resolver um
impasse. E, é claro, não demorou para que muitos fossem forjados. Cerca
de 200 anos depois da morte do profeta, um respeitado historiador do
islamismo, al-Bukhari, contou 7 275 Hadith genuínos, contra quase
600.000 inventados. Mesmo os tidos como verdadeiros merecem algum
escrutínio, argumentam estudiosos como a marroquina Fatima Mernissi.
Fatima investigou a origem dos Hadith que são as pedras angulares para
justificar a inferioridade feminina no Islã. Um deles é o que compara as
mulheres aos cães e jumentos na sua capacidade de perturbar a oração.
Fatima concluiu que o narrador desse Hadith, Abu Hurayra, era um
homem com sérios problemas de identidade sexual e um feroz opositor de
Aisha, que amiúde o repreendia em público por sua mania de inventar
Hadith. Nessa ocasião, ela corrigiu Hurayra, dizendo que o profeta
costumava rezar perto de suas mulheres sem nenhum medo de que elas
o atrapalhassem. Mas sua versão não passou à história. Outro Hadith que
todo muçulmano sabe de cor é o que diz que "aqueles que confiam seus
negócios a uma mulher nunca conhecerão a prosperidade". Segundo
Fatima Mernissi, o surgimento desse Hadith é ainda mais misterioso. Abu
Bakra, seu narrador, lembrou dessa frase do profeta (e pela primeira vez)
mais de vinte anos depois de supostamente ela ter sido dita.
Curiosamente, veio-lhe à memória (assim ele afirmou) no momento em
que Aisha sofreu sua grande derrocada. A viúva do profeta virou o centro
de uma crise quando, ao suspeitar de um golpe, pegou em armas para
intervir numa das etapas da sucessão de Maomé. Na batalha que se
seguiu, perdeu 13.000 de seus soldados e saiu derrotada, em vários
sentidos. Foi, primeiro, criticada por ter se exposto de uma maneira
inconveniente a uma mulher. E, com a perda de prestígio, teve muitos de
seus comentários e correções sobre importantes Hadith suprimidos ou
ignorados - como no caso daquele que fala dos cães e jumentos. Esses
são só alguns exemplos de como a voz feminina, tão valorizada nos
primórdios do Islã, começou a se silenciar.
• Hijab: Traje típico islâmico usado pelas mulheres para "proteger sua
modéstia", como manda o Corão. Seu tamanho varia de acordo com as
tradições regionais
• Iftar: Desjejum
Origens (570-632)
"Islã é a solução"
Lema dos líderes e seguidores da Revolução Islâmica do Irã (1979)
"A turba que se apressa a pôr a culpa no Islã tem, obviamente, razão
num certo sentido. A atitude dos fundamentalistas contraria a lógica
da globalização e, mais cedo ou mais tarde, alguma das partes terá
de ceder. Porém, se a história serve para alguma orientação, quem
vai ceder, no fim, será a religião reacionária, não o progresso
tecnológico. Não existe uma essência do Islã eterna e imutável,
enraizada no Corão, que o condene a uma moralidade medieval."
Robert Wright, ensaísta e autor de diversos livros (2002)
INFOGRÁFICOS E MAPAS
O mundo é de Alá
02 de junho de 1999
O que se conhece como mundo islâmico é uma área vasta, que vai da
Europa ao Pacífico, no outro lado do planeta. Um único país, o Irã, é
absolutamente teocrático, ou seja, é dirigido pelo clero muçulmano a
partir não de leis votadas em parlamento, e sim das regras do Corão.
Boa parte dos 23 países árabes é governada por presidentes com
preocupações religiosas apenas formais. Ainda que disponham de
poder de decisão equivalente ao dos aiatolás do Irã, Hafez Assad, na
Síria, Hosni Mubarak, no Egito, e Saddam Hussein, no Iraque, se fazem
reeleger periodicamente em simulacros de eleições, mantendo uma
democracia de fachada. O zelo religioso é várias vezes mais intenso
nas monarquias do Golfo Pérsico. Guardiã dos lugares santos, a família
real saudita inventou a polícia da moralidade, que os iranianos
copiariam mais tarde. Mulher que sai de casa sem véu apanha na rua
de chicote. Uma embaixatriz brasileira levou um pontapé no traseiro
num shopping de Riad, capital da Arábia Saudita, porque deixou o véu
sobre cabeça deslizar para cima dos ombros. Adúlteras são executadas
em vários países muçulmanos rígidos, como o Afeganistão. Mesmo o
pai que mata uma filha, por surpreendê-la em relação sexual fora do
casamento, não costuma ser condenado a prisão.
A PERGUNTA
Cabul, antes dos bombardeios: seria o Islã uma barreira
intransponível para o surgimento de uma sociedade rica,
moderna e democrática?
Henry I. Sobel
Farid era um colega egípcio durante meu doutorado nos Estados Unidos.
Sendo profundamente religioso, logo que alugou um apartamento saiu atrás
de uma igreja. Escolheu a mais próxima, que, por acaso, era batista. Quando
estranhei que um muçulmano passasse a freqüentar uma igreja batista,
tranqüilamente retrucou que era o mesmo Deus.
Por sua índole, o impacto dos mandamentos islâmicos afeta muito mais o
funcionamento da família do que a sociedade ou o sistema político. É uma
religião com a tônica de regular a vida pessoal e familiar. Embora em sua
origem e difusão o islã tenha sido um movimento com características
agressivas e fundamentalistas, ele secularizou-se, dando lugar à Idade de
Ouro do Racionalismo Islâmico, enquanto a Europa permanecia mergulhada
nas trevas da Idade Média. Lembremo-nos: no primeiro contato da Europa
com Aristóteles, os livros estavam escritos em árabe e tiveram de ser
traduzidos.
O que aconteceu nas últimas décadas foi o uso político da religião. Em países
como Turquia, Malásia, Marrocos, Tunísia e muitos outros, o islã permaneceu
em seus eixos tradicionais. Contudo, no Irã, Líbia, Sudão, Afeganistão,
Palestina e Argélia, a religião foi usada por líderes políticos, como uma forma
de mobilização fanática. De religião tolerante, virou seita fundamentalista.
De uma fonte de orientação para o comportamento individual, foi
transformada em um grito de guerra, a guerra santa do Jihad. Os
movimentos fundamentalistas islâmicos são movimentos políticos que usam
a religião para recrutar os pobres, os menos educados e os mais vulneráveis.
É uma forma de controle social brandindo a caricatura de uma religião.
O Corão diz o que se deve fazer, o que é aceitável mas não é bom e o que
não se pode fazer. O Corão é literal em seus ensinamentos. O que não diz
que é proibido não pode passar a sê-lo em interpretação de algum fanático.
Segundo as lideranças intelectuais islâmicas, as interpretações intolerantes e
extremadas defendidas pelos fundamentalistas colidem com o espírito do
Corão.
O grande morto era ele mesmo – o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder supremo
da revolução. Geraldine Brooks se tinha enfiado no xador para apresentar as
condolências à viúva, Khadija. Até aquele momento, poucos sabiam da
existência de Khadija. Khomeini nada deixava entrever de sua vida pessoal.
Agora lá estava aquela viúva, ela também, claro, enrolada num xador, do
qual emergia, descreve a jornalista, "o rosto enrugado e amável de uma
vovó". Quando Khadija estendeu a mão a Geraldine, o movimento deslocou-
lhe ligeiramente o véu – e então Geraldine viu... Viu uma réstia de cabelos
encaracolados – brancos na raiz e cor de cenoura mais acima. Espanto. A
senhora Khomeini pintava os cabelos!
Põe o xador, tira o xador, põe o xador, tira o xador. Essa tem sido a sina das
mulheres iranianas, e muçulmanas em geral. Os ventos que sopram na
política acabam por cobri-las ou descobri-las. No tempo do xá Reza Pahlevi,
que tinha por meta a ocidentalização do país, o xador foi proibido. As
mulheres que ousavam desobedecer à ordem se arriscavam a ter as roupas
arrancadas e rasgadas por policiais, além de ser impedidas de subir nos
ônibus e entrar nas lojas. Algumas, inconformadas, nunca mais saíram de
casa. A mulher de Khomeini foi uma delas.
Uma vez, Geraldine Brooks foi convidada a tomar chá, num hotel, com duas
mulheres do Hezbollah, o grupo fundamentalista do Líbano. Quando chegou,
foi recebida por uma mulher com os cabelos oxigenados até a cintura,
vestindo um négligé de seda. Pensou que tivesse batido na porta errada. Não
reconheceu a militante que, dias antes, encontrara na paz de seu xador.
Outra mulher, deitada na cama, vestia uma camisola escarlate com grandes
fendas laterais. Quando a jornalista confessou sua surpresa em encontrá-las
daquele jeito, elas riram. "É assim que ficamos em casa", explicaram,
enquanto encenavam poses sedutoras. "O Islã nos encoraja a ficar lindas
para nossos maridos." Geraldine Brooks deu neste momento um passo a
mais na compreensão dos cabelos pintados da senhora Khomeini.
...
E por falar em mulher... eis a piada que circula na internet. Matar Laden só
trará aborrecimentos aos Estados Unidos. Equivale a canonizar um santo
para multidões de islamitas. Prendê-lo também tem inconvenientes. É
incentivar os seqüestros para obter sua libertação. A solução seria capturá-lo
e levá-lo a um hospital, para uma rápida mudança de sexo. Em seguida, ele
– ou melhor, ela – seria solto em Kandahar, para viver – como mulher –
entre os talibãs.
Em torno do xador (II)
Um pouco mais sobre a mulher como pólo de estranhamento
entre os ocidentais e os muçulmanos
O livro de Geraldine Brooks, fruto dos seis anos que ela passou como
correspondente no Oriente Médio, é uma investigação sobre a condição da
mulher no mundo islâmico, recheada de episódios vividos pela autora. Uma
vez, na Jordânia, ao cobrir uma manifestação contra o aumento dos preços,
teve a surpresa de descobrir que, a esse protesto, somava-se outro: pedia-
se que o rei Hussein se divorciasse da mulher, a americana Noor. Um
beduíno que estava por perto, kaffiyeh à Arafat na cabeça, explicou: "As
pessoas daqui fazem muitas perguntas sobre a rainha. Ela era virgem
quando se casou com o rei? É mesmo muçulmana, como diz? Se é, por que
não cobre os cabelos?" Noutra ocasião, Geraldine Brooks acompanhou a
rainha Noor numa solenidade. A rainha vestia uma saia que lhe cobria os
joelhos. Já a saia de Geraldine era mais curta. No dia seguinte, teve a
surpresa de notar, numa foto de jornal em que aparecia atrás da rainha, que
suas pernas haviam sumido. Um retoque lhes providenciara um par de
pudicas calças.
Na Arábia Saudita de hábitos muito mais estritos, onde nada além de cobrir
o corpo todo é permitido, uma vez a autora foi a uma festa em que, como é
de regra, as mulheres entravam por uma porta, os homens por outra e, uma
vez lá dentro, eles ficavam num ambiente e elas noutro. Como Geraldine
precisava entrevistar um dos homens da festa, sobre tema político, teve
permissão para ir ao ambiente dos homens. Quando voltou, a mulher do
entrevistado piscou e lhe disse: "Você me fez um grande favor. Meu marido
adora falar de política. E falar de política com uma mulher certamente o
deixou excitado. Hoje vou ter uma grande noite de sexo". Em território
palestino, Geraldine fez amizade com uma família de marido, duas mulheres
e catorze filhos. O ambiente poligâmico lembrou-a de uma canção berbere,
cujos pungentes versos celebram a chegada de uma nova esposa a casa: "A
estranha chegou; ela tem seu lugar na nossa casa. / Ela é nova, é linda, bem
como meu marido queria. / As noites não são suficientemente longas para os
jogos deles. / Desde que ela chegou a casa não é mais a mesma. (...) Mas
aceito meu novo destino / Porque meu marido está feliz com sua nova
mulher. / Eu também já fui linda, mas meu tempo passou".
Ainda que a maioria não goste de admitir, porque seria pouco polido, pouco
político, ou ambos, o fato é que existe no mundo muçulmano um sentimento
de raiva contra o sistema global regido por um punhado de potências
ocidentais, sobretudo pelos Estados Unidos.
Fingir, como faz o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, que a guerra contra o
terrorismo não tem nada a ver com o Islã é, no mínimo, ingenuidade.
Tampouco a afirmação do presidente George W. Bush de que o Islã é uma
"religião de amor e misericórdia" reflete a realidade existencial do islamismo
de hoje.
Quase todo muçulmano acha que não teve papel algum na configuração do
sistema mundial em vigor, na fixação de seus valores, na montagem de suas
regras. Fascinados pelo mundo contemporâneo, alguns também se assustam
com ele. E reagem de maneiras diversas.
O EFEITO DOMINÓ
Manifestações foram orquestradas pelos
tradicionais inimigos dos Estados Unidos no
mundo, em especial por ex-comunistas ainda
pesarosos da derrocada da União Soviética, há
dez anos. Em países como a Indonésia, o
antiamericanismo se fundiu com o ressentimento
religioso islâmico. O resultado foram greves
gerais, tumultos de rua e protestos violentos
produzidos por estudantes como o da foto, que
freqüenta a Universidade da Indonésia em
Jacarta
Durante a Guerra Fria, parte do repúdio muçulmano ao mundo moderno
voltou-se contra o bloco soviético, execrado por seu ateísmo. De lá para cá,
os Estados Unidos tornaram-se o alvo principal. Muitos ex-comunistas de
origem muçulmana disfarçam agora seu ódio ao "imperialismo" americano
como atos de "autodefesa cultural do Islã".
A Al Qaeda ("a base") de Laden, como o nome indica, era uma espécie de
quartel-general do movimento armado mundial salafi. A Al Qaeda tinha cerca
de cinqüenta acampamentos grandes e pequenos no Afeganistão. Alguns,
como Badr I, Badr II e Abu Khabab, eram quartéis de grande porte, capazes
de receber milhares de soldados a qualquer momento. O cerne do exército
particular de Laden não deve ter passado de algumas centenas de homens
comandados por seu segundo filho, Mohamed. Mas no passado o saudita fez
uma série de alianças com comandantes irregulares afegãos e com chefes
terroristas de uma dúzia de países árabes e chegou a dispor de uns 20 000
guerreiros no efetivo total. Além disso, a Al Qaeda ainda conta com uma
rede de "células dormentes" em diversos países árabes e ocidentais.
Mesmo que Laden seja morto ou preso, com seus principais homens, o
Ocidente ainda terá dois problemas cruciais. O primeiro é desmontar o polvo.
O segundo é convencer o mundo muçulmano de que o sistema global, com
todas as suas imperfeições, está aberto a todos. É nessa segunda frente que
pode acabar sendo bem mais difícil vencer a guerra.
Amir Taheri
Iraniano, escritor e jornalista, editor da revista
Politique Internationale, publicada em Paris
O islamismo é
uma religião violenta?
Não estou dizendo que o Islã é irrelevante com relação ao que ocorreu em
11 de setembro. De fato, admito em larga medida a tese de Sullivan de que
entender o fundamentalismo contemporâneo como algo distinto das
correntes moderadas do Islã ajuda a esclarecer nossos apuros. Mas digo que
toda essa história de garimpar o Corão à cata de citações incendiárias é, em
essência, inútil. As religiões se desenvolvem e em suas escrituras fundadoras
existe, em geral, ambigüidade bastante para permitir que elas evoluam em
qualquer direção. Se Osama bin Laden fosse cristão e quisesse destruir o
World Trade Center, citaria a reação violenta de Jesus contra os vendilhões
no templo. Se não quisesse destruir o World Trade Center, poderia destacar
o Sermão da Montanha.
A turba que se apressa a pôr a culpa no Islã tem, obviamente, razão num
certo sentido, e o Islã é parte do problema. A atitude dos fundamentalistas
muçulmanos – sua repulsa ao mundo não-islâmico – contraria a lógica da
globalização e, mais cedo ou mais tarde, alguma das partes terá de ceder.
Porém, se a história serve para alguma orientação, quem vai ceder, no fim,
será a religião reacionária, não o progresso tecnológico. Tal como ocorreu no
passado, o efeito será o desenvolvimento de uma fé mais humana e
tolerante. Não existe uma essência do Islã eterna e imutável, enraizada no
Corão, que o condene a uma moralidade medieval.
Robert Wright
Ensaísta e autor de diversos livros, entre eles
O Animal Moral: Psicologia Evolucionária e o Cotidiano
Os jovens muçulmanos da
Europa podem se integrar à
vida local ou serão sempre
focos de tensão?
Dominique Schnapper
Socióloga, integrante do Conselho Constitucional da França,
estudiosa do fenômeno das migrações
Os provocadores de Cristo
Uma horda de pregadores evangélicos
lança-se à empreitada de converter
muçulmanos no Iraque
Com tanto espaço no planeta, por que as religiões foram nascer todas no
mesmo lugar, amontoadas umas sobre as outras, acotoveladas como em
ônibus cheio? Quer dizer: todas não – as "três grandes religiões
monoteístas", como é costume referir-se à trinca integrada (por ordem de
entrada na história) por judaísmo, cristianismo e islamismo. Se uma tivesse
nascido na Sibéria, outra na Patagônia e outra – uma só ainda vai – no
Oriente Médio, o mundo seria menos conflitado. Mas não. Nasceram todas
naquela congestionada esquina do mundo. Pode-se mesmo dizer que
nasceram – ou, se não nasceram, ganharam força e ressonância – na mesma
cidade, Jerusalém. São as três aparentadas, fincadas nas mesmas raízes
semitas, nascidas na mesma paisagem onde os desertos se alternam
bruscamente com rios generosos e os tipos humanos se distribuem entre
nômades, pastores de ovelhas e mercadores com bancas em sujas vielas. As
origens comuns poderiam ter gerado compreensão e fraternidade entre elas,
ainda mais que, em princípio, o deus é o mesmo. Não. O que há é
hostilidade e tensão, responsáveis por algumas das piores catástrofes da
história humana.
TAHERI - O Irã vive hoje uma versão oriental do nazismo. Toda dissidência é
punida, o povo é arregimentado e, como fazia Hitler, o governo de Khomeini
se dirige aos jovens.
TAHERI - As que não portam o chador são atacadas pelas gangues de jovens
militantes. Eles desfiguram as mulheres com ácido sulfúrico ou com
canivetes e elas podem ser presas por vários meses. O terror é permanente
e as mulheres são os seres mais oprimidos pelo regime de Khomeini.
TAHERI - Khorneim diz que o dever de cada islamita é de "matar e ser morto
por Alá". É assim que ele encoraja os terroristas. Ele diz também que o
primeiro dever de cada diplomata no exterior é a exportação da revolução
islâmica. A Embaixada do Irã em Brasília não existe para fazer diplomacia,
comércio ou intercâmbio cultural. O dever dos diplomatas que lá estão é o de
promover a revolução islâmica. Há quatro meses Khomeim recebeu todos o
diplomatas do Irã na Europa e reafirmou essa orientação.
TAHERI - Eu creio que sim. O comunismo faz parte do mundo moderno. Nós
podemos gostar ou não dele. Nos países desenvolvidos, os comunistas, em
geral, combatem no plano das idéias. Na França, o comunismo não é
exportado pela violência, mas o islamismo é. A implantação do comunismo
nos países subdesenvolvidos é violenta, mas esse combate se dá em tomo
de idéias e sistemas aceitos no século XX. Os comunistas, com freqüência,
negociam politicamente. Com os islamitas não existe acordo possível. Eles
querem dominar e destruir não importa qual sistema de todos os países.
TAHERI- Acho que até o fim do século a República islâmica estará extinta. O
radicalismo dos camicases do regime age nos dois sentidos. Hoje, os livros
islamitas, vendidos a preços irrisórios, sobram nas livrarias. Os cidadãos
comuns freqüentam cada vez menos os locais de peregrinação e os que
perderam as suas casas e seus filhos na guerra começam a associar tal
fatalidade ao regime a que estão submetidos. São 4 milhões de
desabrigados, 1 milhão de mortos e 1 milhão de feridos. Cento e cinqüenta
mil prisioneiros, 3 milhões de exilados e 5 milhões de desempregados que
começam a gerar uma reação em cadeia. Aristóteles diz que a corrupção de
um sistema vem sempre do exagero de seu princípio fundamental. Excesso
de democracia mata a democracia. O comunismo radical acaba asfixiando o
regime comunista. Assim, o exagero islâmico acabará com o regime islamita.
TAHERI - Acho difícil prever a forma do regime político que o povo escolherá
com o fim do islamismo. Espero que seja um governo capaz de fazer o Irã
entrar no século XX antes que ele acabe.
Não peço desculpas
Salman Rushdie - 17 de maio de 95
.........................
William Waack
VEJA - Seu caso não tem sido defendido com unanimidade, não
importa se em círculos de esquerda ou direita. Como o senhor
se sente diante disso?
RUSHDIE - Até agora não temos resposta a essa exigência, que não é
a criação de uma zona livre para mim - algo com que não concordo,
pois seria admitir implicitamente a sentença de morte. O que está
sendo exigido são garantias, de alcance mundial, de que essa sentença
não será executada.
RUSHDIE - No fundo tudo isso pode ser resumido a uma guerra entre
pessoas que encaram uma piada e outras que não conseguem aceitar
brincadeiras. A maioria das pessoas que se sentiram ofendidas nem
sequer leu o livro.
RUSHDIE - Muita gente se sente ofendida por várias coisas, até por
obras de arte. O papa achou ofensiva a nudez das pinturas de
Michelangelo na Capela Sistina, por exemplo. É comum que obras de
arte ofendam pessoas.
VEJA - Como o senhor acha que sua obra será recebida no Brasil,
um país que pertence a uma região e uma cultura com as quais o
senhor nunca teve muito contato?
......................................
Carlos Graieb
O inglês Paul Johnson é um homem sem meias palavras. Enquanto boa parte
dos intelectuais do Ocidente lança mão de eufemismos e procura relativizar a
responsabilidade das nações islâmicas nos atentados terroristas aos Estados
Unidos, Johnson ataca de frente. Nesta entrevista a VEJA, ele defende de
maneira incondicional a posição americana e israelense nos conflitos do
Oriente Médio e afirma que o fundamentalismo não é um traço acidental do
Islã, mas algo inerente a ele. São opiniões que esse ex-aluno da
Universidade de Oxford, hoje com 73 anos, forjou em várias décadas de
trabalho como jornalista e historiador. Católico, monarquista, conservador,
ele é um dos principais colunistas da revista The Spectator, uma das mais
tradicionais da Inglaterra. No campo da pesquisa histórica, Johnson
especializou-se em elaborar grandes sínteses – tijolões com várias centenas
de páginas, no estilo "tudo que você queria saber sobre...". Uma de suas
obras mais recentes, A History of the American People (Uma História do Povo
Americano), de 1999, é uma homenagem do autor inglês ao país que ele
considera "uma realização humana sem paralelos". Ao longo dos anos, o
estudo da religião também ocupou lugar de destaque nas preocupações de
Johnson. Sua bibliografia de dezessete títulos abriga dois volumes irmãos,
História dos Judeus e História do Cristianismo, esse último recém-traduzido
no Brasil. Johnson não descarta a idéia de um dia debruçar-se sobre a
terceira das grandes religiões monoteístas – o islamismo, que ele considera
"ainda mergulhado na Idade Média".
Veja – Ainda que se concorde com essa idéia, daí não decorre
necessariamente que o islamismo incite à violência. É o que muitos
estudiosos têm lembrado nos últimos dias: que a religião muçulmana
prega a paz e a convivência entre os povos.
Johnson – Gore Vidal é um extremista que ninguém mais leva a sério. Ele
sempre vem com essa história, e todo mundo de bom senso o ignora. Não há
perigo de os Estados Unidos se transformarem num Estado policial. Suas
instituições democráticas são fortes demais. E acho que as agências de
investigação vão conquistar mais poderes não por causa de uma conspiração
da elite, mas porque os americanos se deram conta de que suas amplas
liberdades não devem servir para que terroristas, aproveitando-se delas,
possam armar durante dezoito meses seguidos uma enorme operação
assassina como aquela que acabamos de presenciar. As preocupações de
Vidal passam ao largo do debate verdadeiramente importante que está se
desenrolando agora: qual a retaliação adequada para o crime cometido pelos
terroristas e como ela será feita. O país está de acordo em que o ataque foi
um ato de guerra e deverá ser respondido como tal. Também há consenso
sobre a idéia de que uma nação que abriga terroristas é, ela mesma,
terrorista e deve sofrer as conseqüências. A questão é onde, como e quando
as medidas de guerra terão lugar.
Johnson – Sim, essa era uma tragédia anunciada. Espero não soar
arrogante, mas desde o final dos anos 70 venho alertando para os perigos do
terrorismo internacional. Naquela época, organizei, juntamente com o ex-
primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, uma conferência pioneira
sobre o assunto. Tivemos uma rodada de debates em Jerusalém e outra em
Washington, para a qual conseguimos atrair o então secretário de Estado
americano, George Shultz. Foi a primeira vez, creio, que os Estados Unidos
se deram conta de que o terrorismo não era apenas um problema judeu, por
causa dos palestinos, ou inglês, por causa do IRA, mas uma questão que
deveria preocupar a todos. Infelizmente, não deram ao assunto a prioridade
política que, estou certo, ele terá a partir de agora.
Johnson – Eles vão ganhar essa guerra. Não tenho dúvida nenhuma sobre
isso.
Entre dois mundos
Tahar Ben Jelloun - 14 de agosto de 2002
......................
Carlos Graieb
Ben Jelloun – Acho muito difícil. A França, por exemplo, ainda mantém uma
relação de metrópole com países como a Argélia e o Marrocos. Já a Itália não
tem nenhum antecedente nesse campo. Como harmonizar memórias que são
tão diferentes? Os magrebinos têm direito de reclamar muito mais da França
do que podem fazê-lo em relação à Itália ou à Holanda.
Veja – Parece haver uma contradição no que diz respeito ao sexo nos
países árabes. Fala-se muito a respeito da sexualidade, ao mesmo
tempo que sua vivência é problemática.
...............................
Eduardo Salgado
Lewis – Uma guerra longa seria um desastre para todo mundo. Acho que
isso não irá acontecer. O Iraque não é um novo Vietnã. Existe uma demanda
da população para que Saddam desapareça de vez. E outra coisa: não existe
nenhum Vietnã do Norte para ajudá-lo. Saddam não tem apoio externo.
Lewis – Existe, sim. Não digo que queiram uma democracia no estilo
ocidental. Mas um governo mais responsável. Infelizmente, existe uma
grande desilusão com as idéias ocidentais. Nos últimos cinqüenta anos ou
mais, as duas idéias dominantes no Oriente Médio foram nacionalismo e
socialismo, ambas importadas da Europa. Com a independência, se livraram
de governantes estrangeiros e ganharam tiranos locais. Com o socialismo,
viram as promessas de desenvolvimento se transformar em economias
falidas dominadas por elites corruptas. Eles não estão totalmente errados em
culpar o Ocidente. Esses fatos dão força aos argumentos de líderes religiosos
como Osama bin Laden, que defendem a luta contra as idéias do Ocidente.
Há dois grupos. Os que acham que o mal é a modernização no estilo
ocidental e os que dizem que houve modernização de menos. Se os
iraquianos, com a ajuda dos americanos, conseguirem construir um país livre
depois da guerra, poderão incentivar os reformistas em outras partes do
mundo muçulmano a se expressar com mais ênfase. A meu ver, o Irã e o
Afeganistão vão ser os primeiros países a se reformar, seguidos de Malásia,
Indonésia e Tunísia.
Lewis – A democracia tem seus perigos. Não esqueçamos que Adolf Hitler
chegou ao poder na Alemanha por meio de uma eleição. Se a democracia for
introduzida de forma prematura, é possível que tenha vida curta. Uma
eleição livre é o fim de um processo de democratização, não o começo. A
democracia é um remédio forte que tem de ser tomado em doses pequenas
e com cuidado. Não se pode importar a democracia como quem compra um
brinquedo com instruções no estilo monte você mesmo. O Iraque não vai
transformar-se numa Suíça da noite para o dia. Primeiro, terá câmaras
municipais e assembléias legislativas. Talvez parte dos membros eleitos e a
outra parte indicada.
Lewis – Para mim, o petróleo foi uma maldição. Os países ricos em petróleo
ganharam dinheiro muito fácil. Com isso, não viram a necessidade de criar
uma economia diversificada. No Ocidente, tivemos de trabalhar muito para
desenvolver uma economia moderna. Os árabes não tiveram sequer o
trabalho de descobrir o petróleo. Ficaram sentados em cima daquela riqueza
durante milhares de anos. Não inventaram nenhuma forma de utilizá-lo nem
mesmo de extraí-lo. Dessa maneira, aumentaram a dependência de
empresas estrangeiras.
A reinvenção do Islã
Irshad Manji - 1° de dezembro de 2004
......................................
Tânia Menai, de Nova York
"Acredito que é
possível seguir a
ortodoxia do Islã e, ao
mesmo tempo, ser
tolerante com o mundo
moderno"
Irshad – Mil vezes não. Essa é uma das razões pela qual agradeço a Alá
todas as manhãs pela liberdade que tenho nesta parte do mundo. Sou uma
refugiada que veio parar num país onde posso ser uma muçulmana engajada
e explorar todo o meu potencial. Quantas muçulmanas têm esse privilégio?
Quero desafiar todos os muçulmanos que vivem no Ocidente a usufruir essa
liberdade preciosa.
Veja – O que esses muçulmanos podem fazer?
Irshad – Diferentemente da Bíblia, o Corão não diz que Adão foi criado
antes de Eva. Portanto, não há base para alegar a superioridade masculina.
Na verdade, o Corão manda honrar a figura da mãe. O problema é que
apenas algumas linhas adiante dá uma guinada com a afirmação de que os
homens foram criados superiores às mulheres. Impressionam as
interpretações de uma determinada passagem, na qual se lê: "As mulheres
são seus campos. Vá a elas e faça o que quiser". Alguns acadêmicos vêem aí
uma comparação positiva, visto que os campos precisam ser cultivados. Ou
seja, precisam do esperma masculino para se desenvolver em algo vibrante
e robusto, e também de amor. Mas isso só diz respeito ao campo. E quanto
ao "faça o que quiser"? Não será um modo de estabelecer um poder
desproporcional? É curioso que são exatamente as passagens negativas
existentes no Corão que influenciam as leis no mundo muçulmano.
Veja – Muitos muçulmanos acham que a senhora não deve ser levada
a sério por ser homossexual. Como a senhora lida com essa questão?
Irshad – O Corão é ambíguo, e quem quiser segui-lo à risca terá de
escolher a qual passagem dar ênfase. É verdade que alguns trechos
corânicos condenam o homossexualismo. Ao mesmo tempo, o livro sagrado
diz que tudo o que Alá criou é excelente – e nada do que Ele criou foi em
vão. Se devemos acreditar no Corão, como os muçulmanos podem conciliar
esses ensinamentos com a condenação ao homossexualismo? Posso estar
errada, mas pergunto aos meus críticos: como eles sabem que estão certos?
Não estou pedindo que aceitem ou aprovem minha orientação sexual. Foi
Deus quem me criou. Apenas Ele irá me aprovar, ou não. Peço, somente,
que haja espaço para debater esses assuntos.
Veja – Seu livro está sendo traduzido para o árabe. Alguma editora
se dispôs a publicá-lo?
.............................
José Eduardo Barella
Veja – O que senhor diz aos fiéis e aos amigos não-islâmicos de sua
comunidade quando ocorre um atentado como o de Londres, cuja
autoria foi atribuída a seguidores do Islã?
Abdouni – A religião islâmica é o conjunto de leis criado por Deus para ser
seguido pelos homens. Ela permite que nós possamos respeitar o próximo,
preservar o universo no qual vivemos e proteger nossos espíritos e mentes
para alcançar a felicidade. A vida do ser humano, porém, não se restringe ao
tempo em que ele passa no templo religioso. A lei islâmica deve acompanhá-
lo em todos os momentos e lugares para impedir que ele cometa erros. Por
isso, o Islã também se define como um sistema político, econômico, social,
educacional, jurídico e familiar. É um código de vida completo, de fonte
divina, que não pode ser dividido. As regras que vão definir todos esses
sistemas foram estabelecidas por Deus, e não pelo homem. Como Deus é
perfeito e o homem não, a maior conquista dos muçulmanos é que a religião
possa reger todas as esferas de sua vida.
Abdouni – Essas ações não são preceitos islâmicos, já que se segue o Islã
por meio da convicção, e não da imposição. Porém, sabemos o que acontece
quando a mulher tira a roupa e se expõe, principalmente no mundo
ocidental: ela é desrespeitada de forma inaceitável. Estatísticas mostram que
nos Estados Unidos ocorre um estupro a cada seis minutos. A exposição da
mulher acaba facilitando esse tipo de crime. É claro que o homem também
deve se preservar. O Corão diz que a obrigação de evitar a cobiça e o
adultério deve ser de ambos os sexos.
Veja – Nos países que seguem a lei islâmica ao pé da letra, o
testemunho das mulheres vale menos que o dos homens nos
tribunais e a parte delas na herança também é menor. Essas
disposições do Corão também não podem ser consideradas
modernas...
Abdouni – Não há país que pratique o Islã de maneira perfeita. Mas existem
alguns países que respeitam os preceitos mais amplos da religião, no que se
refere à tolerância, à justiça social, ao desenvolvimento econômico e
tecnológico. Nesse grupo eu destacaria a Malásia, a Indonésia e Sharjah, um
dos Emirados Árabes Unidos.
REPORTAGENS
As chamas do Islã
21 de fevereiro de 1979
Como seria de esperar, uma explosão de júbilo tomou conta da cidade mas a
comemoração foi breve. Em poucas horas espalharam-se rumores de que a
saída de cena das Forças Armadas não passara de um blefe dos comandos
militares. Não era verdade - mas, no caos da revolução ainda quente, as
multidões enfureceram-se e lançaram-se a uma louca escalada de
violências. De Dashan Tadeh a massa humana dirigiu-se contra o Palácio
Golestan, uma ex-residência do xá, atualmente destinada a hóspedes de
Estado. Depois, investiu contra o escritório do primeiro-ministro Bakhtiar,
que, àquela altura, estava desaparecido. A casa de Bakhtiar também foi
saqueada, como a sede da missão comercial de Israel, a sede da missão
militar americana - já abandonada - e o prédio onde funciona a Câmara
Baixa do Parlamento.
À maneira da Revolução Francesa de 1789, não faltou nem mesmo um
apoteótico assédio à maior prisão iraniana, a de Jamshidiyeh, em Teerã. De
um só golpe, nada menos de 11.000 presos, muitos deles criminosos
comuns, ganharam a liberdade. Mas a massa queria, também, acertar
contas com alguns membros do antigo regime ali encarcerados por
corrupção. Suas presas mais desejadas: o ex-primeiro-ministro Amir Abbas
Hovejda, que ocupou o posto por treze anos, e o ex-chefe da odiada polícia
política, a Savak, general Nematollah Nassiri.
Mas, ao mesmo tempo que estendia seu domínio sobre o país, a rebelião
começava a escapar, na semana passada, ao controle de seu patrono
Khomeini - o líder religioso de 78 anos que, contando apenas com sua
ascendência sobre as massas, conduziu a revolta do exílio em Neauphle-le-
Château, França, a 4.500 quilômetros de Teerã. Com a tomada de quartéis e
arsenais ao longo do fim de semana retrasado, cerca de 140.000 armas
teriam caído nas mãos dos rebeldes. E, apesar dos apelos de Khomeini para
que a população os entregasse à "guarda islâmica", pouco mais de 10.000
haviam sido recuperados até sexta-feira passada.
Como tudo isso foi possível? Mas a revolução tem ainda outros pontos
intrigantes. Como explicar que, em apenas um ano, um levante popular
tenha derrubado um governo sedimentado em 37 anos de existência e
apoiado em um dos mais poderosos e bem armados exércitos do planeta?
TRANSTORNOS - Durante a revolta dos últimos meses, esta rede foi ainda
acrescida com a participação dos bawaris, os comerciantes tradicionais que
existem em todas as cidades iranianas. Muito ligados ao clero, eles recolhem
dízimos sobre seus ganhos. Por tradição, nomeiam líderes comunitários para
organizar as procissões religiosas - e existem mais de 5.000 só em Teerã. É
compreensível, assim, que milhões de iranianos tenham se reunido com
tanta freqüência nos últimos meses para clamar pelo fim da monarquia. E se
entende, também, como a rebelião obteve tantos recursos materiais. Mas
por que a insatisfação com o regime teria chegado só agora ao ponto de
ebulição?
Entre outras coisas, os fedayin, estimulados pelas armas que detêm, querem
a criação de um "exército popular" para substituir as atuais Forças Armadas.
Pleiteiam também a transformação do conselho de representantes eleitos
das comissões de greve em um "conselho revolucionário" - o que
eqüivaleria, na prática, a um soviete. E querem nada mais nada menos que
o controle das grandes instituições nacionalizadas, como a Companhia
Nacional de Petróleo e a Rádio e Televisão Nacional.
Ao mesmo tempo que lida com a economia e duela com a esquerda armada,
o novo primeiro-ministro Mehdi Bazargan terá que começar a construir as
instituições da "república islâmica" pretendida. Por enquanto, tudo que se
sabe é que Bazargan pretende convocar um plebiscito popular sobre o
abandono formal da monarquia, eleições para uma Assembléia Constituinte
e, no futuro, para um novo Parlamento. Mas como funcionará o país neste
período de transição? Será realmente a nova "república islâmica" uma
tentativa de copiar o sistema que vigorava na Arábia sob Maomé ou o califa
Omar, 1.300 anos atrás? É pouco provável que o governo agora empossado
pretenda realmente abolir todos os elementos de modernização da vida
iraniana - mesmo porque tal empreitada seria simplesmente inviável. Mas os
passos concretos a serem dados nas próximas semanas permanecem
marcados pela mais absoluta incerteza.
"ESTADOS-CLIENTES" - Esta falta de definições é particularmente grave
no campo das relações internacionais. Constata-se, de imediato, que o
ocidente perdeu um de seus mais importantes peões no Oriente Médio. Com
seus 2.600 quilômetros de fronteira com a União Soviética, o Irã era uma
base ideal para os sofisticadíssimos aparelhos americanos de
acompanhamento eletrônico das atividades militares e espaciais soviéticas.
Mais que isso, o Irã tem sido uma fonte vital de petróleo para todo o mundo
ocidental. E, para completar, empenhava-se de bom grado na missão de
"policiar" o estratégico golfo Pérsico.
"De repente", conta o coronel Eichler, "percebi que a linha dos caminhões
estava flutuando." No jargão militar, isso significa que a fila de veículos
perdeu o alinhamento, coisa inesperada num desfile exaustivamente
ensaiado. A surpresa foi ainda maior quando o primeiro caminhão da fila
mais próxima à tribuna parou, avançou mais alguns metros e parou
definitivamente diante das autoridades. Segundo outro depoimento, o
presidente pensou que o comando de assassinos vinha-lhe apresentar
armas. A cena já se havia repetido algumas vezes durante o desfile. "Assim",
lembra o general Mahmoud El Masri, comandante da Guarda Republicana,
"quando eles se aproximaram, o presidente levantou-se naturalmente para
fazer continência." Seja como for, tudo indica que Sadat não usou o instinto
militar que levou seus dois vizinhos de tribuna, o ministro de Defesa, general
Abu Ghazala, e o vice-presidente Hosni Mubarak, a se lançarem ao chão ao
primeiro disparo. O ataque foi rápido e decisivo. Primeiro, um tenente
robusto e dois soldados saltaram do caminhão parado, e correram em
direção à tribuna de honra, lançando três granadas e disparando suas
metralhadoras Kalashnikov. Um quarto soldado, a bordo do veículo, abriu
fogo diretamente sobre Sadat. Talvez tenham sido estes tiros que o feriram
primeiro.
Assim como a junta médica batalhou com valentia para manter vivo Anuar
Sadat, Begin lutará com igual vigor para conservar viva a política do Rais
assassinado. Primeiro a chegar no Cairo, o líder israelense também foi o
primeiro chefe de Estado a conversar com Mubarak. Os dois se abraçaram e
Begin perguntou como fora o atentado. "Aconteceu tão de repente...",
murmurou Mubarak. Dos dois, era o israelense quem parecia mais órfão de
Sadat. Com razão: enquanto sua sobrevivência política está irremediavelmente
atrelada aos acordos de Camp David, a identidade política de Mubarak, para se
afirmar, poderá exigir rumos novos.
A espada do profeta
10 de março de 1993
Embaixatriz brasileira
é agredida em Riad
VARAS E SPRAY - Os mutauas são agentes voluntários, com salários pagos pelo
Estado e poderes amplos e difusos. Suas armas são varas finas e tubos de spray,
que usam para molestar as mulheres que saem às ruas sem a abaia. Entre suas
atribuições estão a vistoria das lojas (os comerciantes devem fechar as portas cinco
vezes ao dia, para rezar voltados para a cidade sagrada de Meca) e a detenção de
cidadãos, sauditas ou estrangeiros, flagrados com bebidas alcoólicas ou material
pornográfico. As mulheres sauditas são o alvo mais vigiado: além de se cobrir
inteiramente, elas não podem sair sozinhas, dirigir ou conversar com homens que
não sejam parentes.
Escritora condenada à
morte pede socorro
Pode não haver outro caminho para Taslima Nasrin. Formada em Medicina, ela
trabalhou vários anos como ginecologista numa clínica estatal em Daca. Seus problemas
iniciaram-se em 1990, quando começou a se destacar por artigos, publicados em jornais
feministas, nos quais denunciava a posição subalterna da mulher no mundo
muçulmano. Algumas de suas posições eram surpreendentes. Taslima, que já foi casada
três vezes, chegou a defender o direito de as bengalesas terem quatro maridos
simultaneamente. Nada mais justo, argumentava, uma vez que o Corão autoriza os
homems a manter quatro esposas. Ela foi ainda a primeira escritora muçulmana a usar
a palavra "vagina" num poema erótico. Seu livro mais recente, Vergonha, do ano
passado, denuncia a perseguição religiosa à minoria hindu em Bangladesh, um assunto
tabu em seu país. O livro vendeu 60.000 exemplares antes de ser proibido pelo
governo.
RECOMPENSA - A gota d'água que desencadeou a fúria dos fundamentalistas foi uma
entrevista que ela concedeu em maio a um jornal indiano em que teria proposto revisão
radical do Corão. Taslima negou (disse que pediu mudanças apenas na lei islâmica),
mas o estrago estava feito. Pouco depois, dois líderes religiosos bengaleses anunciaram
a sentença de morte contra ela. A recompensa pela sua execução foi fixada em 4.000
dólares, soma considerável no país, que é um dos mais miseráveis do planeta. Sob
pressão dos fundamentalistas, que têm saído às ruas todos os dias para exigir o
enforcamento da escritora, o governo desenterrou uma lei do Código Penal até então
em desuso para condená-la a dois anos de prisão, por ter "ofendido deliberadamente os
sentimentos dos muçulmanos". Ao tomar conhecimento da oferta de asilo da União
Européia, o governo bengalês saiu-se com uma pérola de cinismo: disse que, antes, ela
teria de se apresentar e cumprir a pena de prisão.
A escalada do Islã
9 de fevereiro de 1994
O Corão, o livro sagrado do islamismo, manda que todo muçulmano com posses
e saúde faça pelo menos uma vez na vida uma peregrinação a Meca, a cidade
onde nasceu o profeta Maomé, na Arábia Saudita. Tudo é metodicamente
previsto: a duração do ritual (seis dias), a data (o último mês do calendário
muçulmano) e as orações que devem ser feitas (uma para cada dia de
peregrinação). Mesmo esse meticuloso planejamento não conseguiu impedir a
tragédia de terça-feira passada, quando em pleno haj, como é chamada a
peregrinação, um incêndio tomou conta de um acampamento com milhares de
tendas na Planície de Mina, pegada a Meca. Cinco horas de pandemônio depois,
343 peregrinos estavam mortos e 1.290 lotavam doze hospitais da área.
Encostados nos muros Hoje, grande parte dos argelinos vive no pior dos
mundos. O pouco de paternalismo social do passado, herança do período
socialista, acabou-se. O aumento de atividade em certos setores da
economia, promovido pelas medidas liberalizantes impostas quando o
governo se viu obrigado a cumprir o ritual dos falidos e passar o chapéu no
FMI, tem produzido poucos benefícios para a maioria da população. Fora
alguns oásis de relativa prosperidade, onde é possível fazer compras no
shopping de Riad-El-Feth, na Baía de Argel, ou dançar o raï, o popular ritmo
do norte da África, no Triângulo, a discoteca da moda, sem temor de ser
degolado na saída, a realidade argelina é a de um país apenas alguns
degraus acima dos mais pobres do planeta, agravada pelo clima de terror.
Desde 1994, quando o governo começou a cortar despesas, investimentos e
subsídios para fazer o ajuste econômico, o preço dos alimentos subiu sem
contrapartida salarial. O PIB per capita (1.200 dólares) caiu para a metade
do que foi há cinco anos. O desemprego, na faixa dos 30%, está em
ascensão. Sem perspectivas, os jovens passam os dias sem fazer nada – seu
apelido é hittistas, literalmente "os que ficam encostados nos muros". Na
família do funcionário público Rachid (sobrenome omitido a pedido), que
mora em Bab-el-Oued, um bairro popular no coração de Argel, a rotina diária
é marcada pelo medo dos atentados e pelo desencanto com o futuro. Hakim,
de 18 anos, um dos filhos, foi reprovado no colégio, mas não se preocupa.
"Com ou sem diploma, sei que não vou mesmo conseguir emprego", disse a
VEJA. Yasmina e Hayat, as duas filhas adolescentes, nunca saem à noite, e
de dia, por segurança, só vão para a rua com o hidjab, o lenço que cobre os
cabelos das muçulmanas devotas – nos bairros mais pobres, as "patrulhas
islâmicas" perseguem e espancam as mulheres flagradas de cabeça
descoberta. Houve caso de garotas mortas por mostrar os cabelos.
No vilarejo de Sidi-Iousef, as crianças não vão à escola e os adultos não trabalham. Aqui, o
empenho de todos, 24 horas por dia, é conseguir sobreviver. Em setembro passado, um
bando armado invadiu o lugar de casas pobres e ruas de terra e matou mais de setenta
pessoas, muitas mulheres e crianças, bebês inclusive, a maioria degolada. Uns dizem que
foram terroristas do famigerado Grupo Islâmico Armado, GIA, que tem como tática de
guerra chacinar civis. Outros, que foram soldados do Exército disfarçados, numa incursão
destinada a aumentar a conta de barbáries do terror islâmico. Dos habitantes de Sidi-Iousef,
um quase subúrbio de Argel, a capital da Argélia, quem pôde foi morar em outro lugar. Os
que ficaram vivem com medo, pois o pesadelo está longe de acabar - Sidi-Iousef fica bem
ao lado de um bosque ocupado há dois anos pelo bando do emir Athmane Khélifi, um
chefete terrorista. Hamid, 32 anos, rosto cansado, funcionário público que, por segurança,
omite o sobrenome, conta: "Há um mês, seis homens armados, com uniforme de guardas-
florestais, entraram na minha casa e degolaram minha mãe, meu irmão e meu sobrinho.
Depois, seqüestraram minha irmã de 15 anos". Compreensivelmente, os sobreviventes não
confiam em ninguém e mantêm vigilância contínua. Cada noite agrupam as mulheres e
crianças em um lugar diferente e montam guarda em guaritas improvisadas sobre casas em
construção, armados com umas poucas espingardas de caça cedidas pelo Exército.
Até a revolução dos aiatolás, o Irã era um dos países líderes do futebol no
Oriente Médio. Campeã por três vezes da Copa da Ásia, a seleção
praticamente fez sua despedida dos campos internacionais na Copa da
Argentina, em 1978, sua única participação em um Mundial de futebol até
agora. Um ano depois, com o regime dos aiatolás no poder, o futebol foi
proibido. A exemplo de outros valores culturais introduzidos pelos
colonizadores ingleses no início do século, o futebol passou a ser considerado
atividade fútil e sinal de decadência ocidental. Em matéria de esporte, os
fundamentalistas permitiam apenas a luta clássica.
De volta às ruas
Se fosse uma partida de futebol, poderia ser definida como uma vitória suada. Pela
primeira vez, os rigorosos aiatolás que controlam o poder no Irã cederam espaço na
queda-de-braço com a vertente mais moderada. Na quarta-feira passada, o aiatolá Ali
Khamenei mandou libertar o prefeito de Teerã, Gholam-Hossein Karbaschi, símbolo de
uma versão menos severa da revolução islâmica. Na noite anterior, centenas de
estudantes tinham saído às ruas da capital para protestar contra a prisão e Khamenei,
líder espiritual e autoridade máxima do regime, temendo a eclosão de distúrbios mais
graves, mandou soltar o prefeito.
A tensão foi aliviada por pouco tempo: Karbaschi deve ir a julgamento público, com
direito a transmissão pela rádio estatal, no início de maio. A acusação formal é
corrupção, mas por trás disso está sendo travada uma disputa de poder entre o clero
ultraconservador e o presidente Mohammed Khatami, um moderado que venceu as
eleições no ano passado com a promessa implícita de abrir o regime. A maioria dos
iranianos quer mudanças. Mas até arrebatar o controle da bola dos conservadores,
muita coisa ainda vai rolar nesse campo
Prazer extirpado
10 de junho de 1998
Fauziya Kassindja:
fuga e asilo político
nos Estados Unidos
Nenhum país mais bem talhado que o Afeganistão, paupérrimo, arruinado por décadas
de guerra civil e perdido num canto obscuro da Ásia, para bater a porta na cara do
mundo moderno. Nem para eles é assim tão fácil. Chega a ser surreal a força da cultura
de massa ocidental (bem, reconheçamos, americana) em países onde as mulheres não
podem mostrar o rosto. Arquiinimigo dos Estados Unidos, o Irã dos aiatolás demonstra
o mesmíssimo apetite do resto do mundo por Titanic, um megassucesso no país, com a
particularidade de só poder ser visto em fitas contrabandeadas.
Quem hoje anda pelas ruas de Teerã vê cenas inimagináveis até poucos anos atrás:
casais de namorados de mãos dadas, antenas parabólicas e gente de gravata. Se
tanta coisa banida pela revolução islâmica em 1979 voltou ao cotidiano da capital
iraniana, é porque o presidente Mohammed Khatami vem bancando uma queda-de-
braço, lenta e gradual, contra os aiatolás de linha dura. Há dois anos, Khatami, um
clérigo apenas moderado, catalisou a insatisfação dos iranianos com o fanatismo do
regime e se elegeu presidente, com 70% dos votos. A preferência popular por uma
sociedade mais arejada foi confirmada três semanas atrás, com a vitória
esmagadora dos candidatos moderados na disputa pelas Câmaras Municipais. Na
semana passada, o presidente deu um novo passo em direção à luz, tornando-se a
mais alta autoridade iraniana a visitar a Europa desde a queda do xá Reza Pahlevi.
A viagem à Itália foi muito mais que um simples gesto diplomático. Significou a
reabertura do diálogo com o Ocidente, encerrado, havia vinte anos, com uma
declaração de guerra santa. Uma das bases ideológicas do fundamentalismo
muçulmano era varrer do Oriente Médio qualquer resquício de influência dos
"cruzados" e "adoradores da cruz", termos usados para os ocidentais cristãos. A
importância do encontro de Khatami com o papa João Paulo II, na quinta-feira, e de
sua proposta de um "diálogo entre civilizações" deve ser entendida contra esse
pano de fundo. Representa uma guinada fenomenal, comparável à dada por Mikhail
Gorbachev quando começou a sacudir as bases dogmáticas e esclerosadas do
comunismo. Mais do que Gorbachev, o presidente iraniano precisa se mover com
cautela redobrada. Ele não tem cacife institucional para escancarar o regime.
Apesar do peso político conquistado com o apoio da opinião pública, as Forças
Armadas, a polícia e as leis estão nas mãos do aiatolá conservador Ali Khamenei,
líder espiritual da república islâmica.
A política externa está igualmente nas mãos do clero inimigo das reformas. É por
isso que o passo em direção ao diálogo internacional tem significado notável. A
popularidade de Khatami deve-se à promessa de instaurar o estado de direito no
Irã, uma nação onde os dogmas do clero xiita dão as cartas. Respira-se melhor no
país. A imprensa já pode discutir mais livremente certos assuntos, e mesmo as
antenas parabólicas — porta de entrada da influência estrangeira — são toleradas.
Nada garante, por enquanto, o sucesso. A linha dura islâmica anda cada dia mais
agressiva. Milícias espancam até líderes religiosos se estes discordam de seu
sermão. O maior esforço de Khatami tem sido convencer o alto clero de que a
sobrevivência do regime depende de ampliar a abertura, tanto interna quanto
externa. Foi com esse argumento que conseguiu que o serviço secreto, controlado
pela linha dura, responsabilizasse os próprios arapongas por uma série recente de
assassinatos de intelectuais liberais. Tudo ainda pode dar errado, mas o Irã nunca
esteve tão perto de se tornar um país decente.
No jardim de Alá
21 de setembro de 1999
Ainda que se tenha pouco interesse pelos países islâmicos, vale a pena
ler Naipaul. Numa época em que os escritores são desleixados com as
palavras, ele é de um rigor obstinado. Na preparação de Entre os Fiéis
e Além da Fé, seu método foi o mesmo (embora só atinja a perfeição
no segundo livro): a cada viagem ele entrevistava pessoas e recolhia
suas histórias. Ao escrever, deixava que cada personagem falasse com
a própria voz. Seu papel era o de "administrador da narrativa", o de
buscar o termo preciso, que não falsificasse a realidade observada ou o
depoimento colhido. Além disso, Naipaul lutou para suspender os
próprios julgamentos. "Este é um livro sobre gente", escreve ele no
prefácio de Além da Fé. "Não é um livro de opinião." É uma tarefa
difícil. Muitos duvidam de que seja possível. Em seu esforço, porém,
Naipaul certamente obteve uma conquista literária. Seus dois livros
não se encaixam em nenhuma descrição usual. Não são jornalismo
político nem narrativas tradicionais de viagem. Formam um gênero à
parte, ainda sem nome – reconhecível apenas pela marca inconfundível
do autor.
Imperialismo intransigente
"A crueldade do fundamentalismo islâmico consiste em
permitir a apenas um povo – os árabes, o povo original
do Profeta – ter um passado, lugares sagrados, locais
de peregrinação e cultos à terra. Esses lugares
sagrados árabes têm de ser necessariamente os
lugares sagrados de todos os povos convertidos. Os
povos convertidos precisam se despojar de seu
passado; nada se exige dos povos convertidos, senão a
fé mais pura (se é que algo assim possa ser
alcançado), o islã, a submissão. É o imperialismo mais
intransigente que existe."
Extraído de Além da Fé
Cerco ao pária
24 de novembro de 1999
Por que, então, muitos outros autores não seguem os passos daqueles
que se mudaram para o Ocidente? Por que Mahfouz, apesar das
ameaças e da fama que desfruta, continua vivendo no mesmo bairro
onde sempre morou? "Ao contrário do que se pensa, o
fundamentalismo e o autoritarismo não são traços imanentes de nossa
cultura", acredita o filósofo Mohammed Abed al-Jabri. "Ambos são
produto de uma distorção." Considerado o mais importante pensador
marroquino da atualidade, Al-Jabri é autor de um best-seller no
Oriente, Introdução à Crítica da Razão Árabe, lançado no Brasil pela
editora Unesp. Seu principal objetivo é reviver o que chama de
vertentes racionalistas da cultura árabe. "O pensamento árabe
contemporâneo pode recuperar e reutilizar os ensinamentos racionais e
liberais de sua própria tradição – a luta contra o feudalismo e o
misticismo, a vontade de instaurar uma Cidade da razão e da justiça",
escreve ele. Esse projeto está inscrito nas obras que acabam de sair no
Brasil. Vale a pena conferir.
Desafio aos mulás
23 de fevereiro de 2000
A História mostra que turbante não combina com democracia. Ainda mais
quando se trata do Irã, a terra dos aiatolás e das mulheres cobertas de
preto. Mas há certas nuances. A república islâmica costuma realizar eleições
razoavelmente limpas (sobretudo se comparadas às da maioria de seus
vizinhos) e respeita a vontade das urnas de modo inusitado para um Estado
teocrático. Na sexta-feira passada, os iranianos depositaram seus votos
numa eleição com feições plebiscitárias. Escolhiam-se os deputados do
Majlis, o Parlamento, mas o pano de fundo era a definição do sentido do
pêndulo na disputa entre reformistas e o clero linha-dura sobre o destino da
revolução islâmica. A questão está na ordem do dia desde a espetacular
vitória do reformista Mohammed Khatami, em 1997. Quando se tinha como
certa a eleição de um presidente alinhado com o conservadorismo oficial, os
iranianos, sobretudo os jovens e as mulheres, viraram a mesa e elegeram
Khatami, cuja promessa era aliviar o peso do fanatismo xiita no dia-a-dia da
população. Só nesta semana, quando forem contados os votos das províncias
mais remotas e feitas as complexas contas da representação proporcional, é
que se saberá o tamanho da bancada reformista. Todas as estimativas eram,
às vésperas do pleito, de uma grande manifestação popular por mudanças.
O clero vai permitir tudo isso? O certo é que os turbantes negros já não
representam a verdadeira cara do país. Dois terços da população têm menos
de 30 anos e pouco se lembram do movimento revolucionário que, em 1979,
apeou o xá Reza Pahlevi e colocou o país de costas para o mundo. Mesmo
sem conhecer outra realidade, os jovens estão ansiosos por uma vida de
maior liberdade e abertura para o exterior. Nas universidades e nas ruas, o
regime islâmico tem sido enfrentado com pequenas transgressões, como o
uso de batom e unhas pintadas — e também ruidosas manifestações. Em
julho, depois que a polícia religiosa invadiu a universidade de Teerã e
espancou os alunos, os protestos estudantis chegaram perto de se
transformar num levante popular. Às sextas-feiras, dia de folga no Irã,
centenas de pessoas saem de Teerã em direção às montanhas, onde podem
usufruir um pouco mais de liberdade. Algo como andar de mãos dadas com
alguém do sexo oposto, ouvir música americana e dançar — necessidades
básicas de um jovem em qualquer país.
Confira como mudou a natureza dos conflitos nos últimos 500 anos, período em que se
consolidou o domínio da civilização cristã e ocidental no mundo
ENTRE MONARQUIAS
Quando, a partir de 1500, a cultura ocidental começa a se impor no mundo,
os conflitos se dão, basicamente, entre príncipes, imperadores e monarcas
que tentam expandir seu poder, seu comércio, suas fronteiras. Essa situação
perdurará até a Revolução Francesa, em 1789
ENTRE NAÇÕES
A partir da Revolução Francesa, consolida-se a idéia de Estado-nação e as
guerras passam a adquirir caráter nacional, de expansão territorial de uma
nação e seu povo. Essa característica se manterá até a Revolução Russa, em
1917
ENTRE IDEOLOGIAS
Com a criação da União Soviética, surge uma superpotência comunista, que
rivalizará com o mundo capitalista, liderado pelos EUA. A disputa ideológica
passa a ser o fio condutor dos conflitos - uma situação que só mudará com a
queda do Muro de Berlim, em 1989
ENTRE CIVILIZAÇÕES
Com o fim da Guerra Fria e o triunfo do império americano, os conflitos
perdem sua matriz ideológica e ganham tons cultural e religioso, de
rivalidade entre Ocidente e Oriente, entre cristãos e islâmicos. Para alguns
estudiosos, é a fase do conflito entre civilizações
O que querem os fundamentalistas
10 de outubro de 2001
O modelo a ser seguido é o que vigorou no tempo dos quatro califas, como
são chamados os primeiros sucessores diretos do profeta Maomé. Esse
passado idílico, um ideal comum às correntes messiânicas de várias religiões,
obviamente está mais na imaginação dos fundamentalistas. Na verdade, três
dos quatro califas foram assassinados nas violentas disputas sucessórias – a
morte do último deles, Ali, produziu a mais conhecida corrente minoritária da
religião muçulmana, os xiitas. "Eles dizem que houve um momento na
História em que a comunidade social e seus líderes foram perfeitos. Tudo,
evidentemente, é uma interpretação muito pessoal do que apresentam como
uma verdade eterna", explica o estudioso das religiões Martin E. Marty, da
Universidade de Chicago. "No fundo, todas as religiões querem ser
absolutamente puras e se consideram o único instrumento de Deus. Nesse
anseio, os fundamentalistas se isolam, erguem barreiras psicológicas para se
manter a distância. Dessa forma, o mundo fica dividido em dois: os seus
seguidores e seus inimigos."
Por trás dessa situação há uma ironia trágica. A exclusão feminina não está
presente nas fundações do islamismo, mas apenas no edifício que se erigiu
sobre elas. O Corão, livro sagrado dos muçulmanos, contém versículos
dedicados a deixar claro que, aos olhos de Alá, homens e mulheres são iguais. O
mais importante deles é o que está reproduzido nesta página. Ele mostra que
Deus espera a mesma fidelidade de ambos os sexos, e que a premiará de forma
idêntica. Segundo o dogma islâmico, o Corão é o conjunto de revelações que o
profeta Maomé recebeu diretamente de Deus, no século VII. É o mandamento
divino, e não uma interpretação qualquer de Sua vontade. Como se explica,
então, que idéias tão avançadas tenham se perdido, para dar lugar a Estados
religiosos em que as mulheres têm de viver trancafiadas e cobertas por véus,
em pleno século XXI? As respostas têm de ser buscadas muito longe, no próprio
nascimento do Islã.
Quando tinha 25 anos, Maomé se casou com Khadidja, uma viúva rica que o
empregara para supervisionar sua caravana de comércio entre a cidade de
Meca, na atual Arábia Saudita, e a Síria. A própria Khadidja, de 40 anos, propôs
as núpcias, num arranjo que não era assim tão incomum. Naquela época, a
Arábia era uma das poucas regiões do Oriente Médio em que o casamento
comandado pelo marido ainda convivia com outros tipos de união. Acredita-se
que havia até mulheres que tinham vários maridos – e muitas viviam com
considerável autonomia pessoal e financeira. Era o caso de Khadidja, uma
negociante experiente. Alguns anos depois de seu casamento, Maomé começou
a receber o que seriam revelações de Deus. Julgando-se louco, procurou o
conselho da esposa. Ela dispersou suas dúvidas e, para provar sua confiança no
marido, converteu-se à nova religião. O primeiro muçulmano foi, assim, uma
mulher. Quando Khadidja morreu, Maomé entrou em vários casamentos
simultâneos. A mais célebre de suas esposas é Aisha, que tinha 9 anos na
ocasião das bodas. Segundo alguns relatos, ela brincava no quintal quando foi
chamada para dentro de casa. Lá, encontrou o noivo e foi posta sobre seus
joelhos. Os pais da menina se retiraram, e o casamento teria se consumado ali,
na casa paterna.
Aisha é uma figura central nesses primeiros anos do Islã (cujo calendário
começa a ser contado no ano 622 da era cristã). Inteligente, articulada e dona
de uma memória prodigiosa, ela foi a mais querida e respeitada das mulheres
do profeta – embora todas partilhassem de seus ensinamentos e apoiassem
ativamente sua causa. Eram, aliás, tão assediadas por pessoas em busca de
favores e influência que talvez por isso tenham sido as primeiras muçulmanas
(e, por algum tempo, as únicas) a usar véu e ficar recolhidas em casa – e, ainda
assim, só nos últimos anos da vida de Maomé. Aisha tinha 18 anos quando
Maomé morreu. Nas quase cinco décadas seguintes de sua vida, ela foi
inúmeras vezes consultada em pontos importantes da religião, da política e
também da conduta do profeta. Isso porque Maomé legou aos muçulmanos o
Corão, que é quase um tratado ético, mas não teve tempo de regulamentar
todos os princípios que deveriam reger o cotidiano dos convertidos. Quando
vivo, podia ser consultado a qualquer momento. Depois de sua morte, tornou-se
tarefa de seus seguidores próximos transferir da memória para a escrita as
palavras e ações do profeta. A intenção era que o conjunto servisse de guia aos
fiéis. Esses "ditados" são os Hadith. Juntos, eles compõem a tradição maior, a
Sunna. Com as complicações surgidas por causa da sucessão de Maomé, os
Hadith tornaram-se uma ferramenta crucial. Não era difícil que alguém sacasse
um deles para resolver um impasse. E, é claro, não demorou para que muitos
fossem forjados. Cerca de 200 anos depois da morte do profeta, um respeitado
historiador do islamismo, al-Bukhari, contou 7 275 Hadith genuínos, contra
quase 600.000 inventados. Mesmo os tidos como verdadeiros merecem algum
escrutínio, argumentam estudiosos como a marroquina Fatima Mernissi.
Fatima investigou a origem dos Hadith que são as pedras angulares para
justificar a inferioridade feminina no Islã. Um deles é o que compara as
mulheres aos cães e jumentos na sua capacidade de perturbar a oração. Fatima
concluiu que o narrador desse Hadith, Abu Hurayra, era um homem com sérios
problemas de identidade sexual e um feroz opositor de Aisha, que amiúde o
repreendia em público por sua mania de inventar Hadith. Nessa ocasião, ela
corrigiu Hurayra, dizendo que o profeta costumava rezar perto de suas mulheres
sem nenhum medo de que elas o atrapalhassem. Mas sua versão não passou à
história. Outro Hadith que todo muçulmano sabe de cor é o que diz que "aqueles
que confiam seus negócios a uma mulher nunca conhecerão a prosperidade".
Segundo Fatima Mernissi, o surgimento desse Hadith é ainda mais misterioso.
Abu Bakra, seu narrador, lembrou dessa frase do profeta (e pela primeira vez)
mais de vinte anos depois de supostamente ela ter sido dita. Curiosamente,
veio-lhe à memória (assim ele afirmou) no momento em que Aisha sofreu sua
grande derrocada. A viúva do profeta virou o centro de uma crise quando, ao
suspeitar de um golpe, pegou em armas para intervir numa das etapas da
sucessão de Maomé. Na batalha que se seguiu, perdeu 13.000 de seus soldados
e saiu derrotada, em vários sentidos. Foi, primeiro, criticada por ter se exposto
de uma maneira inconveniente a uma mulher. E, com a perda de prestígio, teve
muitos de seus comentários e correções sobre importantes Hadith suprimidos ou
ignorados – como no caso daquele que fala dos cães e jumentos. Esses são só
alguns exemplos de como a voz feminina, tão valorizada nos primórdios do Islã,
começou a se silenciar.
A pesquisadora Leila Ahmed tem mais explicações para a opressão das mulheres
no Islã. Os muçulmanos, diz ela, costumavam manter os hábitos das regiões
onde se firmavam, desde que esses estivessem em sintonia com seu
pensamento. O restante era descartado. Na Arábia, por exemplo, eliminaram as
outras formas de casamento para que prevalecesse apenas o patriarcal. Quando
conquistaram a região que hoje abarca o Irã e o Iraque, assimilaram a prática
de formar haréns, o uso disseminado do véu para as mulheres e,
principalmente, os mecanismos de repressão feminina que eram uma
característica marcante dos povos locais. Foi nesse ambiente altamente
misógino que, nos séculos seguintes, o direito islâmico foi elaborado. Separado
em escolas que diferem em vários pontos, mas se apresentam como sendo
timbres diversos de uma só voz, esse direito é dado como absoluto e imutável.
Seus princípios não podem ser questionados nem relativizados à luz de traços
culturais. Por isso são, até hoje, um instrumento útil para calar as mulheres em
países nos quais vigora o regime teocrático. Um dado complicador é que as
muçulmanas têm até hoje um conhecimento muito vago da lei divina. Aderem
ao fundamentalismo atraídas pelos ideais de pureza da religião e, quando ele é
instaurado, são surpreendidas por seus rigores – a exemplo do que ocorreu no
Irã dos aiatolás.
A igualdade no Corão
DEVERES E PUNIÇÕES
Como a lei limitou a vida das muçulmanas no Irã, país quase "liberal" perto do Afeganistão
dominado pelo Talibã
Em público, as mulheres devem cobrir-se dos pés à cabeça, sob pena de chibata ou prisão.
O rosto pode ficar à mostra
Não podem participar de atividades sociais com homens solteiros ou que não sejam
parentes
Podem praticar alguns esportes, como futebol ou tênis, desde que vestidas com o xador, e
nunca na presença de homens
MASSA DE MANOBRA
Hordas de pobres proclamam fé em Laden, e não estão sozinhos: ricos e instruídos do
mundo islâmico também apóiam
Adivinhe de onde partiram as frases abaixo, ditas nos últimos dias por
pessoas consultadas por jornalistas estrangeiros:
"Osama bin Laden já foi chamado de consciência do Islã. Ele diz e faz o que
muitos muçulmanos gostariam de dizer e fazer, mas não podem. Nós
gostamos disso, concordamos com ele".
"Tem gente que acha que ele é um herói, o muçulmano ideal, o epítome do
que um árabe deve ser".
Pelos termos empregados, é evidente que não se trata das massas que têm
protestado diariamente nas ruas empoeiradas das cidades paquistanesas,
pisoteando bandeiras americanas com suas sandálias gastas. Esses pobres
pés-sujos, gente ignorante e fanatizada por seus líderes religiosos,
identificados pela proximidade territorial e pela etnia com os vizinhos
afegãos do Talibã, não usam esse tipo de vocabulário. As declarações acima
foram feitas por cidadãos instruídos da Arábia Saudita – respectivamente,
um advogado de multinacional com dez anos de estudos nos Estados Unidos,
um professor universitário e um jornalista, homens que provavelmente se
dariam muito mal se Osama bin Laden implantasse a versão de autoritarismo
teocrático que prega para seu país natal, mais fundamentalista ainda do que
o sistema em vigor. São opiniões de apenas três pessoas – mas elas
refletem o pensamento de milhões e milhões de muçulmanos. "A
esmagadora maioria da sociedade saudita apóia Laden", disse a VEJA Saad
al-Fagih, dirigente do Movimento por uma Reforma Islâmica na Arábia, um
grupo de oposição à família real saudita com sede em Londres. Osama bin
Laden nasceu na Arábia Saudita e está rompido com as autoridades locais
porque se opõe à presença de americanos numa base militar que os EUA
instalaram no país desde os tempos da Guerra do Golfo.
TERRENO FÉRTIL
Rodeados de símbolos americanos, policiais e manifestante paquistanês: ódio aos EUA dita escolhas
irracionais
Não é de estranhar que, com uma opinião pública assim, mesmo num regime
autocrático como o saudita, os poderosos tenham receio de apoiar muito
abertamente os Estados Unidos. "Numa democracia ocidental, quem perde o
contato com o povo perde a eleição. Numa monarquia, perde a cabeça",
filosofou o príncipe Bandar bin Sultan, o eterno embaixador saudita nos EUA.
Na Palestina, o semblante lívido de Yasser Arafat é um retrato da aposta
arriscadíssima que fez: mesmo ao preço de atrair a antipatia das massas
palestinas, ele tem procurado distanciar-se ao máximo de Laden. Arafat, um
ex-chefe terrorista que durante algum tempo não pôde pisar em solo
americano, chegou a mandar a polícia palestina baixar o cassetete nos
manifestantes que saíram às ruas de Gaza para dar apoio a Laden. Arafat,
mesmo com seu passado ultra-radical, é um homem experiente e flexível.
Tem bom trânsito entre as autoridades do Ocidente e parece entender
perfeitamente o que significaria para a causa palestina ter suas aspirações
confundidas com as do grupo terrorista de Osama bin Laden. Por isso, quer
distância do saudita.
BATALHA DA PROPAGANDA
A agitação na Indonésia e o protesto, bem controlado, no Egito:
"Laden não é tão ruim, tem cara boa"
Entra aí outro golpe de astúcia de Laden. Após enviar seus seqüestradores
suicidas aos massacres em território americano, ele próprio seqüestrou a
causa palestina. Depois de sair vitorioso em sua causa inicial – a luta contra
os soviéticos que haviam invadido o Afeganistão –, Laden passou a se
dedicar, de maneira cada vez mais radical, a outra bandeira: expulsar os
americanos instalados em território saudita desde a guerra contra Saddam
Hussein. Os documentos, as declarações de guerra santa e os próprios
ataques terroristas praticados pela Al Qaeda tinham todos, basicamente,
esse objetivo. A questão palestina era mencionada de passagem, no meio de
uma lista de queixas abrangente. De repente, no vídeo divulgado há uma
semana, logo depois de iniciados os bombardeios no Afeganistão, lá estava
Laden, transformado em paladino dos palestinos e das criancinhas iraquianas
vitimadas pelo embargo americano, outra causa para a qual nunca deu
importância.
O ISLÃ NA CHINA
Uigures em Xinjiang: a China pode contar com o silêncio
americano na repressão ao separatismo muçulmano na
província
A província é uma das mais pobres da China, mas passa por um período de
acelerado desenvolvimento com a extração de petróleo e o cultivo do
algodão. No entanto os chineses ficam com os melhores empregos e os
uigures estão cada vez mais pobres. Xinjiang é um lugar estratégico devido a
suas riquezas. Corresponde a 15% do território e concentra um terço das
reservas de petróleo da China. O dia em que o Uzbequistão, o Turcomenistão
e o Casaquistão decidirem exportar petróleo para a China, a província será o
corredor natural para os dutos. O resultado da opressão foi que o movimento
separatista ganhou impulso na última década. Muitos separatistas entraram
em contato com grupos extremistas muçulmanos nos países vizinhos. Outros
foram lutar contra os russos na Chechênia. Uns 200 ou 300 acabaram nos
campos de treinamento da Al Qaeda, a organização terrorista de Osama bin
Laden. Na semana passada, pelo menos quinze deles foram mortos pelos
bombardeios americanos nas trincheiras do Talibã perto de Kandahar.
MISÉRIA EM MASSA
As nações islâmicas tiveram nas duas últimas décadas
as mais altas taxas de natalidade do mundo. Em alguns
países, a maioria da população é miserável e tem entre
16 e 30 anos: terreno fértil para o fanatismo
"A história voltou das férias", como expressou o articulista George F. Will,
da revista semanal americana Newsweek. Nunca, até onde a memória
alcança, uma civilização foi tão escrutinada como a muçulmana está
sendo nos dias atuais. Uma cultura e uma fé que viviam relegadas à
periferia do mundo dito civilizado despertam agora um interesse voraz em
pessoas que até outro dia dispunham de pouquíssimas referências sobre o
universo islâmico. Os governos das nações poderosas também estão
ávidos por entender e agir de forma a evitar uma explosão nas
sociedades dos turbantes que elegeram como seu herói o terrorista
Osama bin Laden e como bandeira a guerra santa aos valores ocidentais.
Na semana passada, o presidente americano George Bush visitou a China
e obteve do rival asiático um inédito "apoio irrestrito" à luta contra o
terrorismo. Pela primeira vez, o governo de Israel cedeu às pressões
internacionais lideradas pelos americanos e começou a retirar seus
tanques da Cisjordânia, que ocupara para vingar o assassinato de um
ministro por militantes palestinos. A idéia de criar um Estado palestino
saiu em poucos dias da classificação de inaceitável para a de inevitável.
Alegando que sua luta perdeu apoio internacional depois dos atentados
aos Estados Unidos, o grupo terrorista IRA, movimento revolucionário da
Irlanda do Norte, começou, na semana passada, a depor suas armas. É
disso que se trata: as engrenagens da História estão se movendo diante
dos olhos de uma geração.
Não se trata da adesão repentina a uma visão caridosa dos países e dos
povos que foram deixados para trás na corrida da modernização e do
bem-estar. Tampouco se está diante da rendição à idéia de que o
terrorismo é produto direto da miséria dos países islâmicos. O ódio ao
Ocidente, a seus liberalismos e ao esbanjamento material é, sem dúvida,
um ingrediente da insatisfação popular no mundo islâmico. Mas o ato
terrorista em si é um crime complexo, frio e calculista. É o resultado de
uma ideologia fascista, em geral amparada logisticamente por governos
criminosos. Fossem a miséria e a opressão o alvo do terrorismo islâmico,
o mais razoável seria que ele se tivesse abatido sobre Saddam Hussein, o
ditador do Iraque, ou a família real da Arábia Saudita. Saddam já matou
mais muçulmanos dissidentes que a intervenção americana no Oriente. A
monarquia saudita concentra entre seus familiares 40% do PIB do país
que governa com poderes ditatoriais, uma apropriação de riqueza
indecente que se repete em vários países muçulmanos, como no
sultanato asiático de Brunei, onde tudo o que se produz pertence à casa
governante. A mudança de mentalidade que parece estar em curso nas
lideranças dos países ricos visa a aliviar as tensões que não justificam o
terrorismo diretamente, mas acabam por insuflá-lo. "É urgente começar a
ouvir os países pobres, os não-ocidentais. É preciso evitar um novo
apartheid a todo custo", disse Samuel Huntington, o famoso professor de
Harvard e autor da tese do "choque das civilizações".
LUZ DO SOL
Centenas de mulheres sem a burca se reuniram
em Cabul, na terça-feira passada, e exigiram o
direito de trabalhar. Muitas delas ousaram exibir
unhas pintadas
Esse bloqueio visa a evitar a exibição de mulheres nuas, debates sobre o Islã
e críticas à família real. É censura. É também um negócio que atraiu
fabricantes de software de todo o mundo, alguns se oferecendo para
trabalhar de graça. A empresa vencedora deverá faturar 8 milhões de
dólares por ano. O dinheiro é o de menos. O ganhador da concorrência
conquistará uma vitrine para se exibir a dezenas de outros países e a
milhares de entidades que desejam controlar, em níveis variados, o que as
pessoas podem ou não acessar.
A tecnologia de controle pode ter um bom uso, aplicada, por exemplo, como
filtro para material criminoso. O Exército americano já usa esquema
parecido. Na Alemanha, há mercado para qualquer coisa que controle
propaganda nazista. "Esse é um ramo excelente de negócios", define Geoff
Haggart, vice-presidente da Websense, uma das empresas de softwares
desse tipo.
A derrota do terror
12 de dezembro de 2001
TALIBÃ HUMILHADO
Derrotados na batalha de Mazar-e-Sharif, no norte do
Afeganistão, 3 350 talibãs se amontoam num presídio da
Aliança do Norte: anistia não beneficiará estrangeiros
recrutados por Laden
AMIGO DO REI
Hamid Karzai, chefe de clã e ligado ao rei exilado: no comando de um governo provisório
Osama bin Laden apareceu por volta da meia-noite, acompanhado de um
tradutor e vários guarda-costas. Entrou apoiado numa bengala e usava um
turbante. Sobre a túnica, vestia uma jaqueta camuflada. Sentou-se próximo
de um rifle Kalashnikov. "Ele pertencia a um russo que matei", disse Laden.
Como era de esperar, começou a discursar sobre as injustiças cometidas
contra os muçulmanos e sobre como seu país, a Arábia Saudita, prejudicava
o islamismo por ser leal aos Estados Unidos. Com uma tosse fraca e
intermitente, falava enquanto tomava chá. Disse que os Estados Unidos
eram responsáveis pela morte de palestinos, libaneses e iraquianos, entre
outros cidadãos do mundo árabe. Por isso, declarara guerra santa aos
americanos. A seguir, veio a descrição de seu ideal de globalização: a
restauração de um grande califado do porte do que fora, um dia, o Império
Otomano, desfeito depois da I Guerra.
Bergen conta que Laden surpreendeu a todos quando admitiu que árabes
ligados a seu grupo terrorista estavam envolvidos na morte de tropas
americanas na Somália, em 1993. Com a graça de Alá, Laden disse,
muçulmanos na Somália cooperaram com alguns guerreiros árabes no
combate que matou dezoito soldados americanos. Depois da entrevista, o
líder saudita serviu gentilmente à equipe uma xícara de chá e posou de
forma muito simpática para fotos. Tendo herdado do pai empreiteiro uma
fortuna apreciável, Laden resolveu abandonar a vida de ricaço na Arábia
Saudita e aos 22 anos foi para o Afeganistão lutar contra os soviéticos que
invadiram o país em 1979. A notícia de que ele estava na região e os relatos
a seu respeito provocaram uma avalanche de jovens entusiasmados com a
causa. Ele era descrito como um herói que abandonou os palácios e o estilo
de vida luxuoso de Jidá para juntar-se aos miseráveis afegãos. Foi daí que
surgiu a Al Qaeda, que depois se ramificou por dezenas de países. Logo após
a guerra no Afeganistão contra a União Soviética, Laden disse: "Essa guerra
acabou com o mito de que as superpotências eram invencíveis. Isso
aconteceu não só na minha cabeça como na de todos os muçulmanos". E
continuou: "Nós achamos que os Estados Unidos são ainda mais fracos que a
União Soviética". Deve ter mudado de idéia.
Pobres, fracos e ignorantes
31 de julho de 2002
Nem sempre foi assim, claro. Lewis traça a história do Oriente Médio
demonstrando que, por cerca de 1.000 anos, os muçulmanos
mantiveram a supremacia econômica, militar, científica e cultural sobre
o resto da humanidade. Daí a pergunta: O que deu errado? Como o
Ocidente conseguiu alcançá-los e deixá-los para trás? Onde eles
falharam? Lewis aponta para a incapacidade do mundo muçulmano de
separar religião e Estado. Faltou-lhes algo como a Reforma Protestante
ou a Revolução Francesa. A promiscuidade entre religião e Estado
gerou um sistema monolítico, avesso às contraposições, que os
impediu de desenvolver conceitos como democracia, emancipação
feminina, liberdade de imprensa ou música sinfônica, em que cada
instrumento segue a própria partitura para estabelecer uma harmonia
de conjunto.
Não que o Ocidente não tenha tido culpas. O colonialismo europeu e,
mais tarde, o imperialismo americano e o soviético provocaram uma
infinidade de desastres entre os muçulmanos. Mas Lewis prefere
inverter a questão, observando que eles só foram conquistados pelo
Ocidente porque já haviam entrado em decadência. A cultura ocidental
foi mal assimilada pelo mundo islâmico. Uma idéia como o
nacionalismo, por exemplo, só produziu aberrações como monarquias
absolutistas e ditaduras militares. A frustração e o ressentimento
causados pelo fracasso das idéias ocidentais insuflou o
fundamentalismo religioso, com sua falsa promessa de um retorno a
um passado glorioso em que os muçulmanos dominavam o mundo. É
exatamente o que pretendiam fazer os talibãs no Afeganistão: imitar a
vida dos tempos do profeta Maomé. Mais ou menos como se nós,
brasileiros, reintroduzíssemos os costumes dos tupinambás.
Contrastes turcos: modelo em desfile de moda, na semana passada, e mulheres religiosas em Istambul
FÉ E VIOLÊNCIA
Ativistas do grupo terrorista Hamas em manifestação na
Faixa de Gaza: só os moderados podem segurar os radicais
Com os olhos azuis faiscantes sob o sol do deserto, Peter O'Toole (Lawrence)
vira-se para Ali (Omar Sharif) e diz: "Enquanto o povo árabe continuar
lutando tribo contra tribo, será sempre um povo tolo, ganancioso, bárbaro e
cruel". A fala é do filme Lawrence da Arábia, de 1962, quando ainda se podia
fazer abordagens romanceadas da história dos conflitos no Oriente Médio.
Agora, o que existe são o rancor e o desencanto dos árabes com a
modernidade do Ocidente e o medo do terrorismo nas capitais ocidentais.
Graças à influência do Ocidente, as tribos árabes não mais se dizimam em
lutas fratricidas no meio do deserto, genocídios particulares cujas dimensões
nunca foram esclarecidas mas que ainda sobrevivem na tradição oral dos
árabes. Atualmente, as tribos vivem sob bandeiras das nações criadas pela
França e pela Inglaterra, potências emergentes ao final da I Guerra Mundial
(1914-1918). Vivem, sobretudo, sob o manto religioso do islamismo. Nos
últimos anos, assistiu-se nessa região à chegada ao poder das vertentes
fundamentalistas do islamismo. Para essas correntes radicais, não existem
governos nem fronteiras. O desenrolar da guerra no Iraque e o que vai
ocorrer depois no país de Saddam Hussein serão pontos decisivos para o
frágil equilíbrio em que vivem hoje dezenas de países de população
muçulmana.
O mundo islâmico se concentra numa faixa quase contínua que vai da África
aos confins da Ásia. Ao todo, os muçulmanos são 1,2 bilhão de pessoas e
representam 20% da humanidade. A diversidade religiosa, étnica e política
nesses países é gigantesca. Mas em todos observa-se um padrão
preocupante. O número de pessoas que desconfiam das intenções do
Ocidente, em especial dos Estados Unidos, cresce ano a ano. "De modo
geral, há uma lenta mas inexorável migração de corações e mentes dos
povos islâmicos para posições de rancor contra o Ocidente", diz Daniel Pipes,
em seu livro Militant Islam Reaches America (O Islã Militante Chega à
América). De acordo com Pipes, atualmente um de cada dez muçulmanos
aderiu a alguma vertente fanática em seu país. Os terroristas, como se sabe,
são recrutados entre os fanáticos. Conclui-se que o exército potencial do
terror no mundo islâmico teria, com base na avaliação de Pipes, 120 milhões
de cabeças. Obviamente, esse cálculo não deve ser tomado pelo seu lado
matemático, mas apenas como termômetro do sentimento antiocidental que
se pode colher hoje nas ruas dos principais países islâmicos. Pelo que se vê,
a febre é alta. Na Síria, no Paquistão, na Faixa de Gaza, a ação militar
ocidental americana dos últimos dias produziu violentas manifestações de
rua. Mas os analistas concordam que não há perigo imediato de erupções
revolucionárias com força suficiente para mudar o equilíbrio de forças na
região. O que existe é o aumento da má vontade contra os Estados Unidos.
NÃO À GUERRA
Partido religioso do Paquistão reúne 100 000 em
protesto: um Iraque moderado no pós-guerra pode
pôr água na fervura dos fundamentalistas
REVOLTA
Sírios queimam bandeira britânica: raiva e caos nos
países vizinhos ao Iraque preocupam líderes do
Oriente
UM RESUMO DO ISLÃ
ECONOMIA
Apenas oito das 48 nações islâmicas têm renda per capita superior à brasileira (3 400 dólares)
DEMOCRACIA
Com exceção da Turquia, nenhum governo islâmico seria reconhecido como democrata pelos padrões
ocidentais. Eles são governados por teocracias, monarquias absolutas, ditaduras de partido único e
presidentes perpétuos
PETRÓLEO
Dois terços das reservas mundiais de petróleo estão situados em países islâmicos, a maioria no Golfo
Pérsico
ÁRABES
Apenas 15% dos muçulmanos são árabes. A Indonésia, na Ásia, é o maior entre os países islâmicos e
responde por 17% da população muçulmana
AS DUAS CORRENTES
O ramo principal do Islã é o sunita, com 1 bilhão de fiéis e dividido em várias vertentes. Os xiitas, uma
dissidência do século VII, têm 120 milhões de seguidores. São maioria no Irã, Iraque e Barein
SHARIA
É a lei sagrada do Islã datada do século VII que contém regras para o sistema judiciário, para a guerra e
sobre como devem ser as relações entre homens e mulheres
Os moderados são
a chave da paz
16 de abril de 2003
"Os Estados Unidos não podem perder a chance aberta com o sucesso da
campanha militar no Iraque. É preciso deixar claro que a invasão foi um caso
único. Se os países vizinhos se sentirem ameaçados, a pequena chama dos
moderados pode se apagar e o incêndio radical dominar a cena", disse a VEJA
Abdulwahab Alkebsi. Os defensores da idéia de que vale a pena semear
democracia no deserto alertam para os perigos. O mais evidente deles é o fato
de que naturalmente os políticos com ligações com o clero islâmico serão, pelo
menos no primeiro momento, os mais populares. Há possibilidade também de
que os radicais sejam os mais votados e até que cheguem ao poder pelo voto.
Na Argélia, em 1992, os militares deram um golpe preventivo assim que as
pesquisas não deixavam mais dúvidas de que os fundamentalistas chegariam ao
poder nas eleições gerais daquele ano. O que fazer nesses casos? Esse é um
ponto crucial, pois, se os eleitores dos países árabes suspeitarem que a
democracia só vale quando forem eleitos políticos com simpatia pelo Ocidente,
todo o processo ficará desmoralizado. Especialistas como Alkebsi e Eddin
Ibrahim acreditam que esses riscos precisam ser enfrentados. "A democracia é
um fenômeno novo até mesmo no Ocidente e nunca atingiu a perfeição. No
Oriente Médio é preciso ir pelo método da tentativa e erro, e, nesse caso, quem
tem de exercitar mais a paciência são os Estados Unidos. É provável que eles
vejam seus adversários serem os primeiros a se eleger nos países que se
liberalizarem", alerta Ibrahim.
O que têm em comum o líder egípcio Hosni Mubarak e o líbio Muamar Kadafi?
Que traços unem Saddam Hussein ao presidente sírio, Bashar Assad, ou ao rei
Abdullah, da Jordânia? São todos árabes. Falam a mesma língua, têm uma
origem étnica igual. São todos também fruto de intervenções estrangeiras na
região. Seus países foram criados por potências ocidentais ou seus regimes
foram sustentados por algum interesse externo. Todos eles, em algum
momento, alimentaram o desejo de unir todos os árabes sob uma mesma
bandeira. Esse foi o sonho que acabou sendo a desgraça de Saddam. Ao
escolher os Estados Unidos como inimigo, o regime de Saddam Hussein
esperava unir todos os árabes em torno de Bagdá. Agora a etapa militar está
concluída no Iraque. A Síria aparece no horizonte como a próxima grande
encrenca na região. Os analistas dizem que, nem de longe, os sírios oferecem o
mesmo perigo que Saddam. A razão é simples. Damasco não levantou a
bandeira expansionista, além de sua influência histórica no Líbano, e tampouco
é vista como uma capital capaz de unir os árabes numa cruzada popular contra
o Ocidente. Além disso, seu presidente, Bashar Assad, um médico com
aparência de treinador de futebol do interior do Brasil, não encarna o perfil do
líder carismático, com poder de arrastar as massas árabes.
Mas existe um único povo árabe? Atualmente cerca de 350 milhões de pessoas
falam o idioma árabe. Elas se espalham desde o Oceano Atlântico até o Iraque.
Em comum têm o idioma, que, fora alguns dialetos locais, é mais ou menos o
mesmo. Qualquer cidadão nessa extensa faixa de terra entende sem muito
esforço as gravações de Osama bin Laden levadas ao ar pela televisão Al Jazira.
Um jornal líbio pode ser lido sem maior esforço no Egito, na Jordânia e na Síria.
Do ponto de vista étnico, os povos que falam árabe são descendentes de uma
mesma pequena população que habitou a Península Arábica há milhares de
anos. São os chamados povos semitas, dos quais descende também boa parte
dos judeus israelenses. Uma pesquisa comparativa de DNA feita pelo americano
Luigi Luca Cavalli-Sforza, da Universidade Stanford, determinou que a unidade
genética entre os povos semitas, judeus e árabes é marcante, confirmando a
tese de que eles têm antepassados comuns.
Unidos pela origem genética, os árabes nunca souberam transformar essa raiz
comum em algum tipo de organização supranacional. Nos quase seis séculos em
que estiveram submetidos ao Império Otomano, eles viveram em tribos. Essa
existência nômade, de povo perseguido, apagou nos árabes os vestígios da
exuberância de seu próprio império. A religião islâmica, que é um forte fator de
união, ainda não conseguiu superar suas divergências internas. "Se for o caso,
um xiita do sul do Iraque se alia facilmente com um xiita do Irã ou da Jordânia
contra um sunita de Bagdá", diz o professor Manolo Florentino, historiador da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os analistas ocidentais dizem que, se for
preciso classificar as variáveis da sociedade árabe por seu poder agregador, a
religião seria a força principal. Em seguida viriam as lealdades tribais e, em
terceiro, o arabismo, a identidade árabe acima das fronteiras nacionais. "Para
montar seu quebra-cabeça no Iraque, o general Garner terá de criar em todos
os iraquianos um sentimento nacional", disse na semana passada o estudioso
inglês Bernard Lewis. Vai ser um desafio e tanto. Egito, Marrocos, Argélia e Líbia
conseguiram despertar em seus cidadãos uma identidade nacional forte. São
países que foram unificados por regimes populistas autoritários e que
produziram líderes carismáticos, como Gamal Abdel Nasser, no Egito. Nos países
da Península Arábica e do Oriente Médio as raízes tribais têm mais força que a
nacionalidade. "Nesses países, os líderes locais só conseguiram firmar-se sobre
o tribalismo usando o arabismo internacional como plataforma", escreveu o
professor Albert Hourani, morto em 1993, que deixou uma obra formidável,
Uma História dos Povos Árabes. Certamente essa não será uma opção para o
general Garner.
Fanatismo marcado a fogo
25 de junho de 2003
uters uters
AP
ROMA PARIS
O atentado foi devastador: o carro-bomba que explodiu ao lado da mesquita de Ali, o local
mais sagrado dos muçulmanos xiitas, na sexta-feira passada, matou pelo menos oitenta
pessoas e feriu 100. Entre os mortos está o aiatolá Mohammed Bakir Al-Hakim, líder do
Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque, a maior organização política dos
xiitas, que representam 60% da população daquele país. Centenas de pessoas estavam no
complexo, que abriga a tumba de Ali, sobrinho do profeta Maomé e fundador do ramo xiita
do Islã, na cidade de Najaf. A bomba foi acionada por controle remoto e danificou a entrada
principal da mesquita. A pergunta óbvia nessas ocasiões é: a quem interessa a morte de Al-
Hakim? Exilado no vizinho Irã, durante duas décadas, ele liderou uma guerra de guerrilhas
contra o regime de Saddam Hussein. Voltou ao Iraque depois da queda do ditador e se
mostrava moderado e disposto a negociar com os americanos. Os mulás xiitas estão em
guerra aberta uns com os outros e vários já foram mortos. Mas é difícil imaginar que algum
deles tivesse a ousadia de dinamitar a mesquita de Ali.
70 CHIBATADAS: condenada por comemorar fim de ano com SARA MUSTAFÁ: morta pelo pai
homens porque namorava um não-
muçulmano
IRÃ: mulher navega na internet para concluir estudo universitário