Maquiavel, Nicolau - O Príncipe (Comentado Napoleão Bonaparte)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 77

APRESENTAÇÃO

Nicolaus Maclavellus, ou Nicoló Macchiavelli foi um gênio. Ou


alguém conhece escritor dos anos 1500 que seja tão atual
quanto ele? Um ex-ministro, poderosíssimo, deste país
confessou, publicamente, que "O Príncipe" era seu livro de
cabeceira. Falo sobre Delfim Netto. O Fernando Henrique,
habituado a dizer bobagens, nunca confessou, mas basta ver
suas atitudes e decisões para verificar que "O Príncipe " é mais
que um livro de cabeceira, é Bíblia. As pessoas, neste país não
lêem, ou o fazem mal. "O príncipe" deve ser analisado com
cuidado. De forma indireta, é um libelo pela democracia e
libertarismo. Prestem atenção, aprenderão muito e quem sabe,
encontrarão o caminho da liberdade. Infelizmente nossos
políticos não entenderam, ou não querem.

Editado por www.ebooksbrasil.cjb.net


“Apoiando por uma cultura mais acessível para todos”

www.ebooksbrasil.cjb.net 1
O PRÍNCIPE

Costumam, o mais das vezes, aqueles que desejam conquistar as graças


de um Príncipe, trazer-lhe aquelas coisas que consideram mais caras ou
nas quais o vejam encontrar deleite, donde se vê amiúde serem a ele
oferecidos cavalos, armas, tecidos de ouro, pedras preciosas e outros
ornamentos semelhantes, dignos de sua grandeza. Desejando eu,
portanto, oferecer-me a Vossa Magnificência com um testemunho
qualquer de minha submissão, não encontrei entre os meus cabedais
coisa a mim mais cara ou que tanto estime, quanto o conhecimento das
ações dos grandes homens apreendido através de uma longa
experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas as
quais tendo, com grande diligência, longamente perscrutado e
examinado e, agora, reduzido a um pequeno volume, envio a Vossa
Magnificência.

E se bem julgue esta obra indigna da presença de Vossa Magnificência,


não menos confio que deva ela ser aceita, considerado que de minha
parte não lhe possa ser feito maior oferecimento senão o dar-lhe a
faculdade de poder, em tempo assaz breve, compreender tudo aquilo
que eu, em tantos anos e com tantos incômodos e perigos, vim a
conhecer. Não ornei este trabalho, nem o enchi de períodos sonoros ou
de palavras pomposas e magníficas, ou de qualquer outra figura de
retórica ou ornamento extrínseco, com os quais muitos costumam
desenvolver e enfeitar suas obras; e isto porque não quero que outra
coisa o valorize, a não ser a variedade da matéria e a gravidade do
assunto a tornarem-no agradável. Nem desejo se considere presunção
se um homem de baixa e ínfima condição ousa discorrer e estabelecer
regras a respeito do governo dos príncipes: assim como aqueles que
desenham a paisagem se colocam nas baixadas para considerar a
natureza dos montes e das altitudes e, para observar aquelas, se situam
em posição elevada sobre os montes, também, para bem conhecer o
caráter do povo, é preciso ser príncipe e, para bem entender o do
príncipe, é preciso ser do povo. Receba, pois, Vossa Magnificência este
pequeno presente com aquele intuito com que o mando; nele, se
diligentemente considerado e lido, encontrará o meu extremo desejo de
que lhe advenha aquela grandeza que a fortuna e as outras suas
qualidades lhe prometem. E se Vossa Magnificência, das culminâncias
em que se encontra, alguma vez volver os olhos para baixo, notará quão
imerecidamente suporto um grande e contínuo infortúnio.

www.ebooksbrasil.cjb.net 2
CAPÍTULO I

DE QUANTAS ESPÉCIES SÃO OS PRINCIPADOS E DE QUE MODOS SE


ADQUIREM

(QUOT SINT GENERA PRINCIPATUUM ET QUIBUS MODIS ACQUIRANTUR)

Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade


sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados. Os
principados são: ou hereditários, quando seu sangue senhorial é nobre
há já longo tempo, ou novos. Os novos podem ser totalmente novos,
como foi Milão com Francisco Sforza, ou o são como membros
acrescidos ao Estado hereditário do príncipe que os adquire, como é o
reino de Nápoles em relação ao rei da Espanha. Estes domínios assim
obtidos estão acostumados, ou a viver submetidos a um príncipe, ou a
ser livres, sendo adquiridos com tropas de outrem ou com as próprias,
bem como pela fortuna ou por virtude.

DOS PRINCIPADOS

(De Principatibus)

CAPÍTULO II

DOS PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS

(DE PRINCIPATIBUS HEREDITARIIS)

Não cogitarei aqui das repúblicas porque delas tratei longamente em


outra oportunidade. Voltarei minha atenção somente para os principados,
irei delineando os princípios descritos e discutirei como devem ser eles
governados e mantidos. Digo, pois, que para a preservação dos Estados
hereditários e afeiçoados à linhagem de seu príncipe, as dificuldades são
assaz menores que nos novos, pois é bastante não preterir os costumes

www.ebooksbrasil.cjb.net 3
dos antepassados e, depois, contemporizar com os acontecimentos
fortuitos, de forma que, se tal príncipe for dotado de ordinária capacidade
sempre se manterá no poder, a menos que uma extraordinária e
excessiva força dele venha a privá-lo; e, uma vez dele destituído, ainda
que temível seja o usurpador, volta a conquistá-lo.

Nós temos na Itália, como exemplo, o Duque de Ferrara que não cedeu
aos assaltos dos venezianos em 1484 nem aos do Papa Júlio em 1510,
apenas por ser antigo naquele domínio. Na verdade, o príncipe natural
tem menores razões e menos necessidade de ofender: donde se conclui
dever ser mais amado e, se não se faz odiar por desbragados vícios, é
lógico e natural seja benquisto de todos. E na antigüidade e continuação
do exercício do poder, apagam-se as lembranças e as causas das
inovações, porque uma mudança sempre deixa lançada a base para a
ereção de outra.

CAPÍTULO III

DOS PRINCIPADOS MISTOS

(DE PRINCIPATIBUS MIXTIS)

Mas é nos principados novos que residem as dificuldades. Em primeiro


lugar, se não é totalmente novo mas sim como membro anexado a um
Estado hereditário (que, em seu conjunto, pode chamar-se "quase
misto"), as suas variações resultam principalmente de uma natural
dificuldade inerente a todos os principados novos: é que os homens, com
satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz com
que lancem mão de armas contra o senhor atual, no que se enganam
porque, pela própria experiência, percebem mais tarde ter piorado a
situação. Isso depende de uma outra necessidade natural e ordinária, a
qual faz com que o novo príncipe sempre precise ofender os novos
súditos com seus soldados e com outras infinitas injúrias que se lançam
sobre a recente conquista; dessa forma, tens como inimigos todos
aqueles que ofendeste com a ocupação daquele principado e não podes
manter como amigos os que te puseram ali, por não poderes satisfazê-
los pela forma por que tinham imaginado, nem aplicar-lhes corretivos
violentos uma vez que estás a eles obrigado; porque sempre, mesmo

www.ebooksbrasil.cjb.net 4
que fortíssimo em exércitos, tem-se necessidade do apoio dos habitantes
para penetrar numa província. Foi por essas razões que Luís XII, rei de
França, ocupou Milão rapidamente e logo depois o perdeu, para tanto
bastando inicialmente as forças de Ludovico, porque aquelas populações
que lhe haviam aberto as portas, reconhecendo o erro de seu pensar
anterior e descrentes daquele bem-estar futuro que haviam imaginado,
não mais podiam suportar os dissabores ocasionados pelo novo príncipe.

Ë bem verdade que, reconquistando posteriormente as regiões


rebeladas, mais dificilmente se as perdem, eis que o senhor, em razão
da rebelião, é menos vacilante em assegurar-se da punição daqueles
que lhe faltaram com a lealdade, em investigar os suspeitos e em reparar
os pontos mais fracos. Assim sendo, se para que a França viesse a
perder Milão pela primeira vez foi suficiente um Duque Ludovico que
fizesse motins nos seus limites, já para perdê-lo pela segunda vez foi
preciso que tivesse contra si o mundo todo e que seus exércitos fossem
desbaratados ou expulsos da Itália, o que resultou das razões logo acima
apontadas. Não obstante, tanto na primeira como na segunda vez, Milão
foi-lhe tomado.

As razões gerais da primeira foram expostas; resta agora falar sobre as


da segunda vez e ver de que remédios dispunha a França e de que
meios poderá valer-se quem venha a encontrar-se em circunstâncias
tais, para poder manter-se na posse da conquista melhor do que o fez
esse país.

Digo, consequentemente, que estes Estados conquistados e anexados a


um Estado antigo, ou são da mesma província e da mesma língua, ou
não o são: Quando o sejam, é sumamente fácil mantê-los sujeitos,
máxime quando não estejam habituados a viver em liberdade, e para
dominá-los seguramente será bastante ter-se extinguido a estirpe do
príncipe que os governava, porque nas outras coisas, conservando-se
suas velhas condições e não existindo alteração de costumes, os
homens passam a viver tranqüilamente, como se viu ter ocorrido com a
Borgonha, a Bretanha, a Gasconha e a Normandia que por tanto tempo
estiveram com a França, isto a despeito da relativa diversidade de
línguas, mas graças à semelhança de costumes facilmente se
acomodaram entre eles. E quem conquista, querendo conservá-los, deve
adotar duas medidas: a primeira, fazer com que a linhagem do antigo
príncipe seja extinta; a outra, aquela de não alterar nem as suas leis nem
os impostos; por tal forma, dentro de mui curto lapso de tempo, o

www.ebooksbrasil.cjb.net 5
território conquistado passa a constituir um corpo todo com o principado
antigo.

Mas, quando se conquistam territórios numa província com língua,


costumes e leis diferentes, aqui surgem as dificuldades e é necessário
haver muito boa sorte e habilidade para mantê-los. E um dos maiores e
mais eficientes remédios seria aquele do conquistador ir habitá-los. Isto
tornaria mais segura e mais duradoura a posse adquirida, como ocorreu
com o Turco da Grécia, que a despeito de ter observado todas as leis
locais, não teria conservado esse território se para aí não tivesse se
transferido. Isso porque, estando no local, pode-se ver nascerem as
desordens e, rapidamente, podem ser elas reprimidas; aí não estando,
delas somente se tem notícia quando já alastradas e não mais passíveis
de solução. Além disso, a província conquistada não é saqueada pelos
lugar-tenentes; os súditos ficam satisfeitos porque o recurso ao príncipe
se torna mais fácil, donde têm mais razões para amá-lo, querendo ser
bons, e para temê-lo, caso queiram agir por forma diversa. Quem do
exterior desejar assaltar aquele Estado, por ele terá maior respeito;
donde, habitando-o, o príncipe somente com muita dificuldade poderá vir
a perdê-lo.

Outro remédio eficaz é instalar colônias num ou dois pontos, que sejam
como grilhões postos àquele Estado, eis que é necessário ou fazer tal ou
aí manter muita tropa. Com as colônias não se despende muito e, sem
grande custo, podem ser instaladas e mantidas, sendo que sua criação
prejudica somente àqueles de quem se tomam os campos e as casas
para cedê-los aos novos habitantes, os quais constituem uma parcela
mínima do Estado conquistado. Ainda, os assim prejudicados, ficando
dispersos e pobres, não podem causar dano algum, enquanto que os
não lesados ficam à parte, amedrontados, devendo aquietar-se ao
pensamento de que não poderão errar para que a eles não ocorra o
mesmo que aconteceu àqueles que foram espoliados. Concluo dizendo
que estas colônias não são onerosas, são mais fiéis, ofendem menos e
os prejudicados não podem causar mal, tornados pobres e dispersos
como já foi dito. Por onde se depreende que os homens devem ser
acarinhados ou eliminados, pois se se vingam das pequenas ofensas,
das graves não podem fazê-lo; daí decorre que a ofensa que se faz ao
homem deve ser tal que não se possa temer vingança. Mas mantendo,
em lugar de colônias, forças militares, gasta-se muito mais, absorvida
toda a arrecadação daquele Estado na guarda aí destacada; dessa
forma, a conquista transforma-se em perda e ofende muito mais por que
danifica todo aquele país com as mudanças do alojamento do exército,

www.ebooksbrasil.cjb.net 6
incômodo esse que todos sentem e que transforma cada habitante em
inimigo: e são inimigos que podem causar dano ao conquistador, pois,
vencidos, ficam em sua própria casa. Sob qualquer ponto de vista essa
guarda armada é inútil, ao passo que a criação de colônias é útil.

Deve, ainda, quem se encontre à frente de uma província diferente, como


foi dito, tornar-se chefe e defensor dos menos fortes, tratando de
enfraquecer os poderosos e cuidando que em hipótese alguma aí
penetre um forasteiro tão forte quanto ele. E sempre surgirá quem seja
chamado por aqueles que na província se sintam descontentes, seja por
excessiva ambição, seja por medo, como viu-se terem os etólios
introduzido na Grécia os romanos que, aliás, em todas as outras
províncias que conquistaram, fizeram-no auxiliados pelos respectivos
habitantes. E a ordem das coisas é que, tão logo um estrangeiro
poderoso penetre numa província, todos aqueles que nela são mais
fracos a ele dêem adesão, movidos pela inveja contra quem se tornou
poderoso sobre eles; tanto assim é que em relação a estes não se torna
necessário grande trabalho para obter seu apoio, pois logo todos eles,
voluntariamente, formam bloco com o seu Estado conquistado. Apenas
deve haver o cuidado de não permitir adquiram eles muito poder e muita
autoridade, podendo o conquistador, facilmente, com suas forças e com
o apoio dos mesmos, abater aqueles que ainda estejam fortes, para
tornar-se senhor absoluto daquela província. E quem não encaminhar
satisfatoriamente esta parte, cedo perderá a sua conquista e, enquanto
puder conservá-la, terá infinitos aborrecimentos e dificuldades.

Os romanos, nas províncias de que se assenhorearam, observaram bem


estes pontos: fundaram colônias, conquistaram a amizade dos menos
prestigiosos, sem lhes aumentar o poder, abateram os mais fortes e não
deixaram que os estrangeiros poderosos adquirissem conceito. Quero
tomar como exemplo apenas a província da Grécia. Os aqueus e os
etólios tornaram-se amigos dos romanos; foi abatido o reino dos
macedônios e daí foi expulso Antíoco; mas nem os méritos dos aqueus e
dos etólios lhes asseguraram permissão para conquistar algum Estado,
nem a persuasão de Felipe logrou fazer com que os romanos se
tornassem seus amigos e não o diminuíssem, nem o poder de Antíoco
conseguiu fazer com que os mesmos o autorizassem a manter seu
domínio naquela província. Isso tudo ocorreu porque os romanos fizeram
nesses casos aquilo que todo príncipe inteligente deve fazer: não
somente vigiar e ter cuidado com as desordens presentes, como também
com as futuras, evitando-as com toda a cautela porque, previstas a
tempo, facilmente se lhes pode opor corretivo; mas, esperando que se

www.ebooksbrasil.cjb.net 7
avizinhem, o remédio não chega a tempo, e o mal já então se tornou
incurável. Ocorre aqui como no caso do tuberculoso, segundo os
médicos: no princípio é fácil a cura e difícil o diagnóstico, mas com o
decorrer do tempo, se a enfermidade não foi conhecida nem tratada,
torna-se fácil o diagnóstico e difícil a cura. Assim também ocorre nos
assuntos do Estado porque, conhecendo com antecedência os males
que o atingem (o que não é dado senão a um homem prudente), a cura é
rápida; mas quando, por não se os ter conhecido logo, vêm eles a
crescer de modo a se tornarem do conhecimento de todos, não mais
existe remédio.

Contudo, os romanos, prevendo as perturbações, sempre as tolheram e


jamais, para fugir à guerra, permitiram que as mesmas seguissem seu
curso, pois sabiam que a guerra não se evita mas apenas se adia em
benefício dos outros; por isso mesmo, promoveram a guerra contra
Felipe e Antíoco na Grécia, para evitar terem de fazê-la na Itália e, no
entanto, podiam ter evitado a luta naquele momento, se o quisessem.
Nem em momento algum lhes agradou aquilo que todos os dias está nos
lábios dos entendidos de nosso tempo, o desejo de gozar do benefício da
contemporização, mas sim apenas aquilo que resultava de sua própria
virtude e prudência: na verdade o tempo lança à frente todas as coisas e
pode transformar o bem em mal e o mal em bem.

Mas voltemos à França e examinemos se ela fez alguma das coisas que
expomos, falando eu de Luís e não de Carlos porque foi daquele que, por
ter mantido mais prolongado domínio na Itália, melhor se viram os
progressos: e vereis como ele fez o contrário que se deve fazer para
conservar um Estado numa província diferente.

O Rei Luís foi conduzido à Itália pela ambição dos venezianos que, por
tal meio, quiseram ganhar o Estado da Lombardia, Não desejo censurar
o partido tomado pelo rei; porque, querendo começar a pôr um pé na
Itália e não tendo amigos nesta província, sendo-lhe, ao contrário,
fechadas todas as portas em razão do comportamento do Rei Carlos, foi
obrigado a servir-se daquelas amizades com que podia contar: e ter-lhe-
ia resultado bem escolhido esse partido, se nos outros manejos não
tivesse cometido erro algum. Conquistada, pois, a Lombardia, o rei
readquiriu prontamente aquela reputação que Carlos perdera: Gênova
cedeu; os florentinos tornaram-se seus amigos; o marquês de Mantua, o
duque de Ferrara, Bentivoglio, a senhora de Forli, o senhor de Faenza,
de Pesaro, de Rimini, de Camerino, de Piombino, os Luqueses, os
Pisanos e os Sieneses, todos foram ao seu encontro para tornarem-se

www.ebooksbrasil.cjb.net 8
seus amigos. Os venezianos puderam considerar então a temeridade da
resolução que haviam adotado, pois que, para conquistar dois tratos de
terra na Lombardia, fizeram o rei tornar-se senhor de dois terços da Itália.

Considere-se agora com quanta facilidade podia o rei manter a sua


reputação na Itália se, observadas as normas já referidas, tivesse
conservado seguros e defendidos todos aqueles seus amigos que, por
serem em grande número, fracos e medrosos uns em relação à Igreja os
outros face aos venezianos, precisavam sempre estar com ele; por meio
deles poderia, facilmente, ter-se assegurado contra os que ainda se
conservavam fortes.

Mas ele, apenas chegado a Milão, fez o contrário, dando auxilio ao papa
Alexandre para que ocupasse a Romanha. Nem percebeu que com essa
deliberação enfraquecia a si próprio, afastando os amigos e aqueles que
se lhe tinham lançado aos braços, enquanto engrandecia a Igreja
acrescentando ao poder espiritual, que lhe dá tanta autoridade, tamanha
força temporal. Cometido um primeiro erro, foi compelido a seguir
praticando outros até que, para pôr fim à ambição de Alexandre e evitar
que este se tornasse senhor da Toscana, teve de vir pessoalmente à
Itália. Não lhe bastou ter tornado grande a Igreja e perder os amigos; por
querer o reino de Nápoles, dividiu-o com o rei da Espanha; sendo
primeiro o árbitro da Itália, aí colocou um companheiro para que os
ambiciosos daquela província e os descontentes com ele mesmo
tivessem onde recorrer e, em vez de deixar naquele reino um soberano a
ele sujeito, tirou-o para, em seu lugar, colocar um outro que pudesse
expulsá-lo dali.

É coisa muito natural e comum o desejo de conquistar e, sempre, quando


os homens podem fazê-lo, serão louvados ou, pelo menos, não serão
censurados; mas quando não têm possibilidade e querem fazê-lo de
qualquer maneira, aqui está o erro e, consequentemente, a censura. Se
a França, pois, podia assaltar Nápoles com suas forças, devia fazê-lo; se
não podia, não devia dividir esse reino. E se a divisão que fez com os
venezianas sobre a Lombardia mereceu desculpa por ter com ela firmado
pé na Itália, aquela merece censura em razão de não ser justificada por
essa necessidade.

Tinha, pois, Luís, cometido estes cinco erros: eliminou os menos fortes;
aumentou na Itália o prestígio de um poderoso; aí colocou um
estrangeiro poderosíssimo; não veio habitar no país; não instalou
colônias.

www.ebooksbrasil.cjb.net 9
Estes erros, contudo, poderiam não ter causado dano enquanto vivo ele
fosse, se não houvesse sido cometido o sexto erro, tomar os territórios
aos venezianos. Na verdade, se não tivesse tornado grande a Igreja nem
introduzido a Espanha na Itália, seria bem razoável e necessário
enfraquecê-los; mas, tomados que foram aqueles partidos, nunca
deveriam consentir na ruína dos mesmos, pois, sendo poderosos, teriam
sempre mantido aquelas à distância da Lombardia, e isso porque os
venezianos jamais iriam consentir em qualquer manobra contra esse
Estado, a menos que eles se tornassem os senhores, da mesma forma
que os outros não iriam querer tomá-lo à França para dá-lo aos
venezianos, ao mesmo tempo que lhes faltava coragem para entrar em
luta com estes e com a França. E se alguém dissesse: o Rei Luís cedeu
a Romanha a Alexandre e o Reino à Espanha para fugir a uma guerra -
respondo com as razões já anteriormente expostas de que - nunca se
deve deixar prosseguir uma crise para escapar a uma guerra, mesmo
porque dela não se foge mas apenas se adia para desvantagem própria.
E se alguns outros alegassem a palavra que o rei havia dado ao Papa,
qual a de realizar para ele aquela conquista em troca da dissolução de
seu casamento e do chapéu cardinalício para o arcebispo de Ruão -
respondo com o que mais adiante se dirá acerca da palavra dos
príncipes e de como se a deve respeitar.

Perdeu, pois, o Rei Luís a Lombardia por não ter respeitado nenhum dos
princípios observados por outros que dominaram províncias e quiseram
conservá-las. Não há aqui milagre algum, mas é sim muito comum e
razoável. E deste assunto falei em Nantes ao arcebispo de Ruão, quando
Valentino, assim popularmente chamado César Bórgia, filho do Papa
Alexandre, ocupava a Romanha: porque, dizendo-me o cardeal de Ruão
que os italianos não entendiam de guerra, retruquei-lhe que os franceses
não entendiam do Estado, pois que, se de tal compreendessem, não
teriam deixado que a Igreja alcançasse tanta grandeza. E por experiência
viu-se que a grandeza da Igreja e da Espanha na Itália foi causada pela
França, e a ruína desta foi acarretada por aquelas.

Disso se extrai uma regra geral que nunca ou raramente falha: quem é
causa do poderio de alguém arruina-se, por que esse poder resulta ou da
astúcia ou da força e ambas são suspeitas para aquele que se tornou
poderoso.

www.ebooksbrasil.cjb.net 10
CAPÍTULO IV

POR QUE O REINO DE DARIO, OCUPADO POR ALEXANDRE,


NÃO SE REBELOU CONTRA SEUS SUCESSORES APÓS A
MORTE DESTE

(CUR DARII REGNUM QUOD ALEXANDER OCCUPAVERAT A


SUCCESSORIBUS SUIS POST ALEXANDRI MORTEM NON DEFECIT)

Consideradas as dificuldades que devem ser enfrentadas para a


conservação de um Estado recém-conquistado, alguém poderia ficar
pasmo ante o fato de que, tendo se tornado senhor da Ásia em poucos
anos, não apenas havia terminado sua ocupação Alexandre Magno veio
a morrer e, a despeito de parecer razoável que todo aquele Estado
devesse rebelar-se, seus sucessores o conservaram e para tanto não
encontraram outra dificuldade senão aquela que, por ambição pessoal,
nasceu entre eles mesmos. - Argumento: os principados de que se
conserva memória, têm sido governados de duas formas diversas: ou por
um príncipe, sendo todos os demais servos que, como ministros por
graça e concessão sua, ajudam a governar o Estado, ou por um príncipe
e por barões, os quais, não por graça do senhor mas por antigüidade de
sangue, têm aquele grau de ministros. Estes barões têm Estados e
súditos próprios que os reconhecem por senhores e a eles dedicam
natural afeição. Os Estados que são governados por um príncipe e
servos, têm aquele com maior autoridade, porque em toda a sua
província não existe alguém reconhecido como chefe senão ele, e se os
súditos obedecem a algum outro, fazem-no em razão de sua posição de
ministro e oficial, não lhe dedicando o menor amor.

Os exemplos dessas duas espécies de governo são, nos nossos tempos,


o Turco e o rei de França. Toda a monarquia do Turco é dirigida por um
senhor: os outros são seus servos; dividindo o seu reino em sandjaks,
para aí manda diversos administradores e os muda e varia de acordo
com sua própria vontade. Mas o rei de França está em meio a uma
multidão de antigos senhores que, nessa qualidade, são reconhecidos
pelos seus súditos e por eles amados: têm as suas preeminências e não
pode o rei privá-los das mesmas sem perigo para si próprio. Quem tiver
em mira, pois, um e outro desses governos, encontrará dificuldades para
conquistar o Estado Turco, mas, vencido que seja este, encontrará
grande facilidade para conservá-lo, Ao contrário, encontrar-se-á em

www.ebooksbrasil.cjb.net 11
todos os sentidos maior facilidade para ocupar o Estado de França, mas
grande dificuldade para mantê-lo.

As razões da dificuldade em ocupar o reino do Turco decorrem de não


poder o atacante ser chamado por príncipes daquele reino, nem esperar,
com a rebelião dos que rodeiam o soberano, poder ter facilitada a sua
empresa: é o que resulta das razões referidas. Porque, sendo todos
escravos e obrigados, são mais dificilmente corruptíveis e, quando
fossem subornados, pouco de útil poder-se-ia esperar, visto não serem
eles capazes de arrastar o povo atrás de si, pelos motivos já
mencionados. Logo, se alguém assaltar o Estado Turco, deve pensar
que irá encontrá-lo todo unido, convindo contar mais com suas próprias
forças que com as desordens dos outros. Mas, vencido que seja e uma
vez desbaratado em batalha campal de modo que não possa refazer os
exércitos, não se deve recear outra coisa senão a dinastia do príncipe;
uma vez extinta esta, ninguém mais resta que deva ser temido, já que os
demais não gozam de prestígio junto ao povo; e como o vencedor deste
nada podia esperar antes da vitória, depois dela não deve receá-lo.

O contrário ocorre nos reinos como o de França, por que com facilidade
podes invadi-lo em obtendo o apoio de algum barão do reino, pois que
sempre se encontram descontentes e os que desejam fazer inovações.
Estes, pelas razões referidas, podem abrir o acesso àquele Estado e
facilitar a vitória. Esta, depois, se desejares manter-te, arrasta atrás de si
infinitas dificuldades, seja com aqueles que te ajudaram, seja com os que
oprimiste. Não é bastante extinguir a estirpe do príncipe, pois
permanecem aqueles senhores que se tornam chefes das novas
revoluções e, não podendo nem contentá-los nem exterminá-los, perde
aquele Estado tão logo surja a oportunidade.

Ora, se for considerado de que natureza era o governo de Dario, se o


encontrará semelhante ao reino do Turco. Para Alexandre foi necessário
primeiro encurralá-lo e desbaratá-lo em batalha campal sendo que,
depois da vitória, estando morto Dario, aquele Estado tornou-se seguro
para Alexandre pelas razões acima expostas. Seus sucessores, se
tivessem sido unidos, poderiam tê-lo gozado tranqüilamente, pois ali não
surgiram outros tumultos que não os por eles próprios provocados. Mas
quanto aos Estados organizados como o da França, é impossível possuí-
los com tanta tranqüilidade. Dessa circunstância é que nasceram as
freqüentes rebeliões da Espanha, da França e da Grécia contra os
romanos; em decorrência do grande número de principados que havia
naqueles Estados e por todo o tempo em que perdurou a sua memória,

www.ebooksbrasil.cjb.net 12
os romanos estiveram inseguros na posse daqueles domínios. Mas
extinta a lembrança dos principados, com o poder e a constância de sua
autoridade, os romanos tornaram-se dominadores seguros. Puderam
eles, também, combatendo mais tarde em lutas internas, arrastar cada
facção, para o seu lado, parte daquelas províncias, segundo a autoridade
que havia adquirido junto a elas; e essas províncias, por não mais existir
o sangue de seus antigos senhores, não reconheciam senão a soberania
dos romanos. Consideradas, pois, todas estas coisas, ninguém se
maravilhará da facilidade que Alexandre encontrou para conservar o
Estado da Ásia, e das dificuldades que foram arrostadas pelos outros
para manterem o conquistado, como Pirro e muitos outros. Isso não
resultou da muita ou da pouca virtude do vencedor, mas sim da
diversidade de forma do objeto da conquista.

CAPÍTULO V

DE QUE MODO SE DEVAM GOVERNAR AS CIDADES OU


PRINCIPADOS QUE, ANTES DE SEREM OCUPADOS, VIVIAM
COM AS SUAS PRÓPRIAS LEIS

(QUOMODO ADMINISTRANDAE SUNT CIVITATES VEL


PRINCIPATUS, QUI ANTEQUAM OCCUPARENTUR, SUIS LEGIBUS
VIVEBANT)

Quando aqueles Estados que se conquistam, como foi dito, estão


habituados a viver com suas próprias leis e em liberdade, existem três
modos de conservá-los: o primeiro, arruiná-los; o outro, ir habitá-los
pessoalmente; o terceiro, deixá-los viver com suas leis, arrecadando um
tributo e criando em seu interior um governo de poucos, que se
conservam amigos, porque, sendo esse governo criado por aquele
príncipe, sabe que não pode permanecer sem sua amizade e seu poder,
e há que fazer tudo por conservá-los. Querendo preservar uma cidade
habituada a viver livre, mais facilmente que por qualquer outro modo se a
conserva por intermédio de seus cidadãos.

Como exemplos, existem os espartanos e os romanos. Os espartanos


conservaram Atenas e Tebas, nelas criando um governo de poucos;
todavia, perderam-nas. Os romanos, para manterem Cápua, Cartago e

www.ebooksbrasil.cjb.net 13
Numância, destruíram-nas e não as perderam; quiseram conservar a
Grécia quase como o fizeram os espartanos, tornando-a livre e deixando-
lhe suas próprias leis e não o conseguiram: em razão disso, para
conservá-la, foram obrigados a destruir muitas cidades daquela
província.

É que, em verdade, não existe modo seguro para conservar tais


conquistas, senão a destruição. E quem se torne senhor de uma cidade
acostumada a viver livre e não a destrua, espere ser destruído por ela,
porque a mesma sempre encontra, para apoio de sua rebelião, o nome
da liberdade e o de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja
pelo decurso do tempo, seja por benefícios recebidos. Por quanto se faça
e se proveja, se não se dissolvem ou desagregam os habitantes, eles
não esquecem aquele nome nem aquelas instituições, e logo, a cada
incidente, a eles recorrem como fez Pisa cem anos após estar submetida
aos florentinos.

Mas quando as cidades ou as províncias estão acostumadas a viver sob


um príncipe, extinta a dinastia, sendo de um lado afeitas a obedecer e de
outro não tendo o príncipe antigo, dificilmente chegam a acordo para
escolha de um outro príncipe, não sabem, enfim, viver em liberdade:
dessa forma, são mais lerdas para tomar das armas e, com maior
facilidade, pode um príncipe vencê-las e delas apoderar-se. Contudo,
nas repúblicas há mais vida, mais ódio, mais desejo de vingança; não
deixam nem podem deixar esmaecer a lembrança da antiga liberdade:
assim, o caminho mais seguro é destruí-las ou habitá-las pessoalmente.

CAPÍTULO VI

DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS


ARMAS PRÓPRIAS E VIRTUOSAMENTE

(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ARMIS PROPRIIS ET VIRTUTE


ACQUIRUNTUR)

Não se admire alguém se, na exposição que irei fazer a respeito dos
principados completamente novos de príncipe e de Estado, apontar
exemplos de grandes personagens; por que, palmilhando os homens,

www.ebooksbrasil.cjb.net 14
quase sempre, as estradas batidas pelos outros, procedendo nas suas
ações por imitações, não sendo possível seguir fielmente as trilhas
alheias nem alcançar a virtude do que se imita, deve um homem
prudente seguir sempre pelas sendas percorridas pelos que se tornaram
grandes e imitar aqueles que foram excelentes, isto para que, não sendo
possível chegar à virtude destes, pelo menos daí venha a auferir algum
proveito; deve fazer como os arqueiros hábeis que, considerando muito
distante o ponto que desejam atingir e sabendo até onde vai a
capacidade de seu arco, fazem mira bem mais alto que o local visado,
não para alcançar com sua flecha tanta altura, mas para poder com o
auxílio de tão elevada mira atingir o seu alvo.

Digo, pois, que no principado completamente novo, onde exista um novo


príncipe, encontra-se menor ou maior dificuldade para mantê-lo, segundo
seja mais ou menos virtuoso quem o conquiste. E porque o elevar-se de
particular a príncipe pressupõe ou virtude ou boa sorte, parece que uma
ou outra dessas duas razões mitigue em parte muitas dificuldades; não
obstante, tem-se observado, aquele que menos se apoiou na sorte
reteve o poder mais seguramente. Gera ainda facilidade o fato de, por
não possuir outros Estados, ser o príncipe obrigado a vir habitá-lo
pessoalmente.

Para reportar-me àqueles que pela sua própria virtude e não pela sorte
se tornarem príncipes, digo que os maiores são Moisés, Ciro, Rômulo,
Teseu e outros tais. Se bem que de Moisés não se deva cogitar por ter
sido ele mero executor daquilo que lhe era ordenado por Deus, contudo
deve ser admirado somente por aquela graça que o tornava digno de
conversar com o Senhor. Mas consideremos Ciro e os outros que
conquistaram ou fundaram reinos: achareis a todos admiráveis. E se
forem consideradas suas ações e ordens particulares, estas parecerão
não discrepantes daquelas de Moisés que teve tão grande preceptor. E,
examinando as ações e a vida dos mesmos, não se vê que eles tivessem
algo de sorte senão a ocasião, que lhes forneceu meios para poder
adaptar as coisas da forma que melhor lhes aprouve; e, sem aquela
oportunidade, o seu valor pessoal ter-se-ia apagado e sem essa virtude a
ocasião teria surgido em vão.

Era necessário, pois, a Moisés, encontrar o povo de Israel no Egito,


escravizado e oprimido pelos egípcios, a fim de que aquele, para libertar-
se da escravidão, se dispusesse a segui-lo. Convinha que Rômulo não
pudesse ser mantido em Alba, fosse exposto ao nascer, para que se
tornasse rei de Roma e fundador daquela pátria. Era preciso que Ciro

www.ebooksbrasil.cjb.net 15
encontrasse os persas descontentes do império dos medas, e estes
estivessem amolecidos e efeminados pela prolongada paz. Não poderia
Teseu demonstrar sua virtude se não encontrasse os atenienses
dispersos. Essas oportunidades por tanto, fizeram esses homens felizes,
e sua excelente capacidade fez com que aquela ocasião fosse conhecida
de cada um: em conseqüência, sua pátria foi nobilitada e tornou-se
felicíssima.

Os que, por suas virtudes, semelhantes às que aqueles tiveram, tornam-


se príncipes, conquistam o principado com dificuldade, mas com
facilidade o conservam; e os obstáculos que se lhes apresentam no
conquistar o principado, em parte nascem das novas disposições e
sistemas de governo que são forçados a introduzir para fundar o seu
Estado e estabelecer a sua segurança. Deve-se considerar não haver
coisa mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a conseguir, nem mais
perigosa de manejar, que tornar-se chefe e introduzir novas ordens. Isso
porque o introdutor tem por inimigos todos aqueles que obtinham
vantagens com as velhas instituições e encontra fracos defensores
naqueles que das novas ordens se beneficiam. Esta fraqueza nasce,
parte por medo dos adversários que ainda têm as leis conformes a seus
interesses, parte pela incredulidade dos homens: estes, em verdade, não
crêem nas inovações se não as vêem resultar de uma firme experiência.
Donde decorre que a qualquer momento em que os inimigos tenham
oportunidade de atacar, o fazem com calor de sectários, enquanto os
outros defendem fracamente, de forma que ao lado deles se corre sério
perigo.

É necessário, pois, querendo bem expor esta parte, examinar se esses


inovadores se baseiam sobre forças suas próprias ou se dependem de
outros, isto é, se para levar avante sua obra é preciso que roguem, ou se
em realidade podem forçar. No primeiro caso, sempre acabam mal e não
realizam coisa alguma; mas, quando dependem de si mesmos e podem
forçar, então é que raras vezes perigam. Daí resulta que todos os
profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além
dos fatos apontados, a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadi-
los de urna coisa, mas difícil firmá-los nessa persuasão. Convém, assim,
estar preparado para que, quando não acreditarem mais, se possa fazê-
los crer pela força.

Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam conseguido fazer observar por
longo tempo as suas constituições se tivessem estado desarmados;
como ocorreu nos nossos tempos a Frei Girolamo Savonarola que

www.ebooksbrasil.cjb.net 16
fracassou nas suas reformas quando a multidão começou a nele não
mais acreditar, e ele não dispunha de meios para manter firmes aqueles
que haviam crido, nem para fazer com que os descrentes passassem a
crer. Por isso, têm grandes dificuldades no conduzir-se e todos os
perigos estão no seu caminho, convindo que os superem com o valor
pessoal; mas superado que os tenham, quando começam a ser
venerados, extintos aqueles que tinham inveja de sua condição, ficam
poderosos, seguros, honrados, felizes.

A tão altos exemplos, quero acrescentar um menor, mas que bem terá
alguma relação com aqueles e que julgo suficiente para todos os outros
semelhantes: é Hierão de Siracusa. Este, de particular, tornou-se
príncipe de Siracusa; também ele, da sorte somente conheceu a ocasião
porque, sendo os siracusanos oprimidos, o elegeram para seu capitão,
donde mereceu ser feito príncipe. E foi de tanta virtude, mesmo na vida
privada, que quem escreveu a seu respeito, disse:quod nihil illi deerat ad
regnandum praeter regnum.

Extinguiu a velha milícia, organizou a nova, abandonou as antigas


amizades, conquistou novas; e, como teve amizades e soldados seus,
pode, sobre tais fundamentos, erigir as obras que desejou: tanto que
custou-lhe muita fadiga para conquistar e pouca para manter.

CAPÍTULO VII

DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS


ARMAS E FORTUNA DOS OUTROS

(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ALIENIS ARMIS ET FORTUNA


ACQUIRUNTUR)

Aqueles que somente por fortuna se tornam de privados em príncipes,


com pouca fadiga assim se transformam, mas só com muito esforço
assim se mantêm: não encontram nenhuma dificuldade pelo caminho
porque atingem o posto a vôo; mas toda sorte de dificuldades nasce
depois que aí estão. São aqueles aos quais é concedido um Estado, seja
por dinheiro, seja por graça do concedente: como ocorreu a muitos na
Grécia, nas cidades da Jônia e do Helesponto, onde foram feitos

www.ebooksbrasil.cjb.net 17
príncipes por Dario, a fim de que as conservassem para sua segurança e
glória; como eram feitos, ainda, aqueles imperadores que, por corrupção
dos soldados, de privados alcançavam o domínio do Império.

Estes estão simplesmente submetidos à vontade e à fortuna de quem


lhes concedeu o Estado, que são duas coisas grandemente volúveis e
instáveis: e não sabem e não podem manter a sua posição. Não sabem,
porque, se não são homens de grande engenho e virtude, não é razoável
que, tendo vivido sempre em ambiente privado, saibam comandar; não
podem, porque não têm forças que lhes possam ser amigas e fiéis.
Ainda, os Estados que surgem rapidamente, como todas as demais
coisas da natureza que nascem e crescem depressa, não podem ter
raízes e estruturação perfeitas, de forma que a primeira adversidade os
extingue; salvo se aqueles que, como foi dito, assim repentinamente se
tornaram príncipes, forem de tanta virtude que saibam desde logo
preparar-se para conservar aquilo que a fortuna lhes pôs no regaço,
formando posteriormente as bases que os outros estabeleceram antes
de se tornar príncipes.

Destes dois citados modos de vir a ser príncipe, por virtude ou por
fortuna, quero apontar dois exemplos ocorridos nos dias de nossa
memória: estes são Francisco Sforza e César Bórgia. Francisco, pelos
meios devidos e com grande virtude, de privado tornou-se duque de
Milão; e aquilo que com mil esforços tinha conquistado, com pouco
trabalho manteve. Por outro lado, César Bórgia, pelo povo chamado
Duque Valentino, adquiriu o Estado com a fortuna do pai e, juntamente
com aquela, o perdeu; isso não obstante fossem por ele utilizados todos
os meios e feito tudo aquilo que devia ser efetivado por um homem
prudente e virtuoso, para lançar raízes naqueles Estados que as armas e
a fortuna de outrem lhe tinham concedido. Porque, como se disse acima,
quem não lança os alicerces primeiro, com uma grande virtude poderá
estabelecê-los depois, ainda que se façam com aborrecimentos para o
construtor e perigo para o edifício. Se, pois, se considerarem todos os
progressos do duque, ver-se-á ter ele estabelecido grandes alicerces
para o futuro poderio, os quais não julgo supérfluo descrever, pois não
saberia que melhores preceitos do que o exemplo de suas ações poderia
indicar a um príncipe novo; e se as suas disposições não lhe
aproveitaram, não foi por culpa sua, mas sim em resultado de uma
extraordinária e extrema má sorte.

Tinha Alexandre VI, ao querer tornar grande o duque seu filho, muitas
dificuldades presentes e futuras. Primeiro, não via meio de poder fazê-lo

www.ebooksbrasil.cjb.net 18
senhor de algum Estado que não fosse Estado da Igreja; voltando-se
para tomar um destes, sabia que o duque de Milão e os venezianos não
lho permitiriam, porque Faenza e Rimini estavam já sob a proteção dos
venezianos. Via além disto as armas da Itália, e em especial aquelas de
que poderia servir-se, encontrarem-se nas mãos daqueles que deviam
temer a grandeza do Papa; não podia fiar-se, assim, pertencendo todas
elas aos Orsíni e Colonna e seus partidários. Era, pois, necessário que
se perturbasse aquela organização dos Estados italianos e fossem
desarticulados os pertencentes àqueles, para poder assenhorear-se
seguramente de parte dos mesmos. Isso foi-lhe fácil, eis que encontrou
os venezianos que, levados por outras causas, tinham se posto a fazer
com que os franceses retornassem à Itália, ao que não somente não se
opôs, como também tornou mais fácil com a dissolução do primeiro
matrimônio do Rei Luís. Passou, portanto, o rei à Itália com a ajuda dos
venezianos e consentimento de Alexandre: nem bem era chegado a
Milão, já o Papa dele obteve tropas para a conquista da Romanha, a qual
tornou-se possível em razão da reputação do rei. Tendo ocupado a
Romanha e batido os partidários dos Colonna, o duque, querendo manter
a conquista e avançar mais à frente, tinha duas coisas que tal lhe
impediam: uma, as suas tropas que não lhe pareciam fiéis, a outra, a
vontade da França; isto é, temia o duque que lhe falhassem as tropas
dos Orsíni, das quais se valera, não só impedindo-o de conquistar, como
também tomando-lhe o conquistado, bem como receava que o rei não
deixasse de fazer-lhe o mesmo. Dos Orsíni teve prova quando, depois da
tomada de Faenza, assaltando Bolonha, os viu irem friamente a esse
assalto; acerca do rei, conheceu sua disposição quando, tomado o
ducado de Urbino, atacou a Toscana; o rei fê-lo desistir dessa
campanha. Em conseqüência de tal, o duque deliberou não mais
depender das armas e fortuna dos outros. Inicialmente, enfraqueceu as
facções dos Orsíni e dos Colonna em Roma; para tanto, atraiu para junto
de si todos os adeptos dos mesmos, que fossem gentis-homens,
fazendo-os seus gentis-homens, dando-lhes grandes estipêndios e os
honrando. Segundo suas qualidades, com comandos e governos; de
forma que, em poucos meses, a afeição que mantinham pelas facções foi
extinta e voltou-se toda ela para o duque. Depois, esperou a ocasião de
eliminar os Orsíni, dispersos que já estavam os da casa Colonna,
ocasião que lhe surgiu bem e que ele melhor aproveitou; porque, tendo
percebido os Orsíni, tarde porém, que a grandeza do duque e da Igreja
era a sua ruína, organizaram uma conferência em Magione, no Perugino.
Dessa reunião nasceram a rebelião de Urbino, os tumultos da Romanha

www.ebooksbrasil.cjb.net 19
e infinitos perigos para o duque, o qual a todos superou com o auxílio
dos franceses.

E, readquirida a reputação, não confiando na França nem nas outras


tropas estrangeiras, para não as ter fortalecidas, socorreu-se da astúcia.
E tão bem soube dissimular seus sentimentos, que os Orsíni, por
intermédio do Senhor Paulo, reconciliaram-se com ele: para assegurar-
se melhor deste intermediário, o duque não deixou de dispensar-lhe
cortesia de toda natureza, dando-lhe dinheiro, roupas e cavalos; tanto
assim que a simplicidade dos Orsíni levou-os a Sinigalia, às mãos do
duque. Eliminados, pois, estes chefes, transformados os partidários dos
mesmos em amigos seus, tinha o duque lançado muito boas bases para
o seu poderio, possuindo toda a Romanha com o ducado de Urbino,
parecendo-lhe, ainda, ter tornado amiga a Romanha e ganho para si
todas aquelas populações que começavam a experimentar o seu bem-
estar.

E, porque esta parte é digna de ser conhecida e imitada pelos outros,


não desejo omiti-la. Tomada que foi a Romanha, encontrando-a dirigida
por senhores impotentes, os quais mais depressa haviam espoliado os
seus súditos do que os tinham governado, dando-lhes motivo de
desunião ao invés de união, tanto que aquela província era toda ela
cheia de latrocínios, de brigas e de tantas outras causas de insolência, o
duque julgou necessário, para torná-la pacífica e obediente ao poder
real, dar-lhe bom governo. Por isso, aí colocou Ramiro de Orco, homem
cruel e solícito, ao qual deu os mais amplos poderes. Este, em pouco
tempo, tornou-a pacífica e unida, com mui grande reputação. Depois,
entendeu o duque não ser necessária tão excessiva autoridade, e isso
porque não duvidava pudesse vir a mesma a tornar-se odiosa; instalou
um juízo civil no centro da província, com um presidente excelentíssimo,
onde cada cidade tinha o seu advogado. E porque sabia que os
rigorismos passados tinham dado origem a algum ódio, para limpar os
espíritos daquelas populações e conquistá-los completamente, quis
mostrar que, se alguma crueldade havia ocorrido, não nascera dele, mas
sim da triste e cruel natureza do ministro. E, servindo-se da
oportunidade, fez colocarem-no uma manhã, na praça pública de
Casena, cortado em dois pedaços, com um pau e uma faca
ensangüentada ao lado. A ferocidade desse espetáculo fez com que a
população ficasse ao mesmo tempo satisfeita e pasmada.

Mas voltemos ao ponto de partida. Digo que, encontrando-se o duque


bastante forte e relativamente garantido contra os perigos presentes, por

www.ebooksbrasil.cjb.net 20
ter-se armado a seu modo e ter em boa parte dissolvido aquelas tropas
que, próximas, poderiam molestá-lo, restava-lhe, querendo prosseguir
com as conquistas, o temor ao rei de França, porque sabia como tal
proceder não seria suportado pelo mesmo que, tarde, havia se
apercebido de seu erro. Começou, por isso, a procurar novas amizades e
a tergiversar com a França na incursão que os franceses fizeram no
reino de Nápoles, contra os espanhóis que assediavam Gaeta. A sua
intenção era garantir-se contra eles, o que ter-lhe-ia surtido pronto efeito
se Alexandre tivesse continuado vivo.

Esta foi a sua política quanto às coisas presentes.

Mas, quanto às futuras, ele tinha a temer, inicialmente, que um novo


sucessor ao governo da Igreja não fosse seu amigo e procurasse tomar-
lhe aquilo que Alexandre lhe dera; e pensou proceder por quatro modos:
primeiro, extinguir as famílias daqueles senhores que ele tinha espoliado,
para tolher ao Papa aquela oportunidade; segundo, conquistar todos os
gentis-homens de Roma, como foi dito, para poder com eles manter o
Papa tolhido; terceiro, tornar o Colégio mais seu o quanto possível;
quarto, conquistar tanto poder antes que o pai morresse, que pudesse
por si mesmo resistir a um primeiro impacto. Destas quatro coisas, à
morte de Alexandre ele havia realizado três, estando a quarta quase
terminada: porque dos senhores despojados ele matou quantos pode
alcançar e pouquíssimos se salvaram; tinha conseguido o apoio dos
gentis-homens romanos e no Colégio possuía mui grande parte; e,
quanto à nova conquista, resolvera tornar-se senhor da Toscana,
possuía já Perúgia e Piombino e havia tomado a proteção de Pisa.

Como não mais precisasse ter respeito à França (que o desmerecera por
estarem já os franceses despojados do Reino pelos espanhóis, de forma
que cada um deles necessitava comprar a sua amizade), saltaria sobre
Pisa. Depois disso, Lucca e Ciena cederiam prontamente, parte por
inveja dos florentinos, parte por medo; os florentinos não teriam remédio:
o que, se tivesse acontecido (deveria ocorrer no mesmo ano em que
Alexandre morreu), conferir-lhe-ia tantas forças e tanta reputação que ele
ter-se-ia mantido por si mesmo, não mais dependendo da fortuna e das
forças dos outros, mas sim de sua própria potência e virtude. Mas
Alexandre morreu cinco anos depois que ele começara a desembainhar
a espada. Deixou-o apenas com o Estado da Romanha consolidado, com
todos os outros no ar, em meio a dois fortíssimos exércitos inimigos e
doente de morte.

www.ebooksbrasil.cjb.net 21
Havia no duque tanta bravura indômita e tanta virtude, conhecia tão bem
como se conquistam ou se perdem os homens e talmente sólidos eram
os alicerces que assim em tão pouco tempo havia lançado, que, se não
tivesse tido aqueles exércitos sobre si, ou se estivesse são, teria vencido
qualquer dificuldade. E que os seus alicerces fossem bons, viu-se: por
que a Romanha esperou-o mais de um mês; em Roma, ainda que
apenas meio vivo, esteve em segurança e, se bem os Baglioni, Vitelli e
Orsíni viessem a Roma, nada puderam fazer contra ele; se não pode
fazer papa quem queria, pelo menos evitou que o fosse quem ele não
queria. Mas, se por ocasião da morte de Alexandre ele tivesse estado
são, tudo lhe teria sido fácil. Disse-me ele, no dia em que foi eleito Júlio
que havia cogitado de tudo aquilo que podia acontecer morrendo o pai e
para tudo encontrara remédio, mas jamais havia pensado, além da morte
de seu pai, que ele mesmo, também, pudesse estar para morrer.

Relatadas, assim, todas as ações do duque, eu não saberia repreendê-


lo; antes penso que, como o fiz, deva ser proposto à imitação de todos
aqueles que por fortuna e com as armas dos outros subiram ao poder.
Porque, tendo grande ânimo e alta intenção, ele não podia portar-se de
outra for ma; aos seus desígnios, somente se opuseram a brevidade da
vida de Alexandre e a sua enfermidade, Quem, pois, julgar necessário,
no seu principado novo, assegurar-se contra os inimigos, adquirir
amigos, vencer ou pela força ou pela fraude, fazer-se amar e temer pelo
povo, seguir e reverenciar pelos soldados, eliminar aqueles que podem
ou têm razões para ofender, ordenar por novos modos as instituições
antigas, ser severo e grato, magnânimo e liberal, extinguir a milícia infiel,
criar uma nova, manter a amizade dos reis e dos príncipes, de modo que
beneficiem de boa vontade ou ofendam com temor, não poderá encontrar
exemplos mais recentes que as ações do duque.

Somente se pode acusá-lo na criação de Júlio pontífice, onde má foi a


eleição; porque, como foi dito, não podendo fazer um papa de acordo
com seu desejo, ele podia impedir fosse feito quem não quisesse; e não
devia jamais consentir no papado daqueles cardeais que tivessem sido
por ele ofendidos, ou que, tornados papas, viessem a temê-lo. Na
verdade, os homens ofendem ou por medo ou por ódio. Os que ele
ofendera eram, entre outros, San Piero ad Vincula, Colonna, San Giorgio,
Ascânio; todos os outros, tornados papas, tinham por que temê-lo,
exceto o de Ruão e os espanhóis; estes, por afinidade e por obrigações,
aquele pelo poder e por ter ao seu lado o reino da França.
Conseqüentemente, o duque, antes de tudo, devia criar para um
espanhol e, não podendo, devia consentir que fosse eleito o cardeal de

www.ebooksbrasil.cjb.net 22
Ruão e não o de San Piero ad Vincula. E quem acreditar que nas
grandes personagens os novos benefícios façam esquecer as velhas
injúrias, engana-se. Errou, pois, o duque nessa eleição, tornando-se ele
mesmo a causa de sua ruína final.

CAPÍTULO VIII

DOS QUE CHEGARAM AO PRINCIPADO POR MEIO DE CRIMES

(DE HIS QUI PER SCELERA AD PRINCIPATUM PERVENERE)

Mas, porque pode-se tornar príncipe ainda por dois modos que não
podem ser atribuídos totalmente à fortuna ou à virtude, não me parece
acertado pô-los de parte, ainda que de um deles se possa mais
amplamente cogitar em falando das repúblicas. Estes são, ou quando por
qualquer meio criminoso e nefário se ascende ao principado, ou quando
um cidadão privado torna-se príncipe de sua pátria pelo favor de seus
concidadãos. E, falando do primeiro modo, apontarei dois exemplos, um
antigo e outro atual, sem entrar, contudo, no mérito desta parte, pois
penso seja suficiente, a quem de tal necessitar, apenas imitá-los.

Agátocles siciliano, não só de privada mas também de ínfima e abjeta


condição, tornou-se rei de Siracusa. Filho de um oleiro, teve sempre, no
decorrer de sua juventude, vida celerada; todavia, acompanhou seus
atos delituosos de tanto vigor de ânimo e de corpo que, tendo ingressado
na milícia, em razão de atos de maldade, chegou a ser pretor de
Siracusa. Uma vez investido nesse posto, tendo deliberado tornar-se
príncipe e manter pela violência e sem favor dos outros aquilo que por
acordo de todos lhe tinha sido concedido, depois de acerca desse seu
desejo ter estabelecido acordo com Amilcar cartaginês, que se
encontrava em ação com os seus exércitos na Sicilia, reuniu certa manhã
o povo e o senado de Siracusa como se tivesse de deliberar sobre
assuntos pertinentes à República e, a um sinal combinado, fez que seus
soldados matassem todos os senadores e os mais ricos da cidade;
mortos estes, ocupou e manteve o principado daquela cidade sem
qualquer controvérsia civil. E, se bem por duas vezes os cartagineses
tivessem com ele rompido e estabelecido assédio, não só pode defender
a sua cidade como ainda, tendo deixado parte de sua gente na defesa

www.ebooksbrasil.cjb.net 23
contra o cerco, com o restante assaltou a África e em breve tempo
libertou Siracusa do sítio levando os cartagineses a extrema dificuldade:
tiveram de com ele estabelecer acordo e contentar-se com as
possessões da África, deixando a Sicília para Agátocles.

Quem considere, pois, as ações e a vida desse príncipe, não encontrará


coisa, ou pouca achará, que possa atribuir à fortuna: suas ações
resultaram, como acima se disse, não do favor de alguém mas de sua
ascensão na milícia, obtida com mil aborrecimentos e perigos, que lhe
permitiu alcançar o principado e, depois, mantê-lo com tantas decisões
corajosas e arriscadas. Não se pode, ainda, chamar virtude o matar os
seus concidadãos, trair os amigos, ser sem fé, sem piedade, sem
religião; tais modos podem fazer conquistar poder, mas não glória.
Ademais, se se considerar a virtude de Agátocles no entrar e no sair dos
perigos e a grandeza de seu ânimo no suportar e superar as
adversidades, não se achará por que deva ser ele julgado inferior a
qualquer dos mais excelentes capitães; contudo, sua exacerbada
crueldade e desumanidade, com infinitas perversidades, não permitem
seja ele celebrado entre os homens mais ilustres. Não se pode, assim,
atribuir à fortuna ou à virtude aquilo que sem uma e outra foi por ele
conseguido.

Nos nossos tempos, reinando Alexandre VI, Oliverotto de Fermo, tendo


anos antes ficado órfão de pai, foi criado por um tio materno de nome
Giovanni Fogliani; nos primeiros anos de sua juventude, foi encaminhado
à vida militar sob o comando de Paulo Vitelli, a fim de que, tomado
daquela disciplina, atingisse algum excelente posto da milícia. Morto
Paulo, militou sob Vitellozzo, irmão daquele, e em muito pouco tempo,
por ser engenhoso, de físico e ânimo fortes, tornou-se o primeiro homem
de sua milícia. Mas, parecendo-lhe coisa servil o estar sob as ordens de
outrem, com a ajuda de alguns cidadãos de Fermo, aos quais era mais
cara a servidão que a liberdade de sua pátria, e com o favor de
Vitellozzo, pensou ocupar Fermo. E escreveu a Giovanni Fogliani
dizendo que, por ter estado muitos anos fora de casa, desejava ir visitá-lo
e à sua cidade e conhecer o seu patrimônio; e, como não tinha
trabalhado senão para conquistar honras, para que seus concidadãos
vissem como não tinha gasto o tempo em vão, queria chegar com pompa
e acompanhado de cem cavalos de amigos e servidores seus; pedia-lhe,
pois, se servisse ordenar fosse ele recebido pelos cidadãos de Fermo
com todas as honras, o que não somente o dignificaria, mas também a
Fogliani, dado haver sido seu discípulo.

www.ebooksbrasil.cjb.net 24
Não deixou Giovanni de despender esforços em favor de seu sobrinho:
tendo feito com que os moradores de Fermo o recebessem com
honrarias, alojou-o em suas casas. Aí, passados alguns dias e pronto
para ordenar secretamente aquilo que era necessário à sua futura
perfídia, Oliverotto promoveu soleníssimo banquete para o qual convidou
Giovanni Fogliani e todos os principais homens de Fermo. Consumadas
que foram as iguarias e após todos os demais entretenimentos usuais
em semelhantes ocasiões, Oliverotto, com habilidade, abordou certos
assuntos graves, falando da grandeza do Papa Alexandre, de seu filho
César e dos empreendimentos dos mesmos. Tendo Giovanni e os
demais respondido a tais considerações, ele, repentinamente, ergueu-se
dizendo ser aquilo assunto para falar-se em lugar mais secreto,
retirando-se para um cômodo onde Giovanni e todos os outros foram ter
com ele. Nem ainda tinham se assentado, de lugares ocultos saíram
soldados que mataram Giovanni e a todos os demais.

Depois desse homicídio, Oliverotto montou a cavalo, correu a cidade


acompanhado de seus homens e assediou em seu palácio o supremo
magistrado; em conseqüência, por medo, foram obrigados a obedecê-lo
e formar um governo do qual ele se fez príncipe. E, mortos todos aqueles
que, por descontentes, poderiam ofendê-lo, fortaleceu-se com novas
ordens civis e militares de forma que, no período de um ano em que
reteve o principado, não somente esteve forte na cidade de Fermo, como
também se tornou causa de pavor para todas as populações vizinhas.
Teria sido difícil a sua destruição, como difícil foi a de Agátocles, se não
tivesse sido enganado por César Bórgia quando este, em Sinigalia, como
já se disse, aprisionou os Orsíni e os Vitelli. Ai, preso também ele, foi
estrangulado juntamente com Vitellozzo, mestre de suas virtudes e suas
perfídias, um ano após haver cometido o parricídio.

Poderia alguém ficar em dúvida sobre a razão por que Agátocles e algum
outro a ele semelhante, após tantas traições e crueldades, puderam viver
longamente, sem perigo, dentro de sua pátria e, ainda, defender-se dos
inimigos externos sem que os seus concidadãos contra eles tivessem
conspirado, tanto mais notando-se que muitos outros não conseguiram
manter o Estado, mediante a crueldade, nos tempos pacíficos e, muito
menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que isto resulte das
crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se dizer serem
aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem instantaneamente
pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não se insiste mas sim se
as transforma no máximo possível de utilidade para os súditos; mal
usadas são aquelas que, mesmo poucas a princípio, com o decorrer do

www.ebooksbrasil.cjb.net 25
tempo aumentam ao invés de se extinguirem. Aqueles que observam o
primeiro modo de agir, podem remediar sua situação com apoio de Deus
e dos homens, como ocorreu com Agátocles; aos outros torna-se
impossível a continuidade no poder.

Por isso é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador


exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-
as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder,
assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios, Quem
age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre
necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em
seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança
diante das novas e contínuas injúrias. Portanto, as ofensas devem ser
feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam
menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para
que sejam melhor apreciados. Acima de tudo, um príncipe deve viver
com seus súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça
variar: porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não
estarás em tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil
eis que, julgado forçado, não trará gratidão.

CAPÍTULO IX

DO PRINCIPADO CIVIL

(DE PRINCIPATU CIVILI)

Mas passando a outra parte, quando um cidadão privado, não por


perfídia ou outra intolerável violência, porém com o favor de seus
concidadãos, torna-se príncipe de sua pátria, o que se pode chamar
principado civil (para tal se tornar, não é necessária muita virtude ou
muita fortuna, mas antes uma astúcia afortunada) digo que se ascende a
esse principado ou com o favor do povo ou com aquele dos grandes.
Porque em toda cidade se encontram estas duas tendências diversas e
isso resulta do fato de que o povo não quer ser mandado nem oprimido
pelos poderosos e estes desejam governar e oprimir o povo: é destes
dois anseios diversos que nasce nas cidades um dos três efeitos: ou
principado, ou liberdade, ou desordem.

www.ebooksbrasil.cjb.net 26
O principado é constituído ou pelo povo ou pelos grandes, conforme uma
ou outra destas partes tenha oportunidade: vendo os grandes não lhes
ser possível resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre
eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao
seu apetite; o povo, também, vendo não poder resistir aos poderosos,
volta a estima a um cidadão e o faz príncipe para estar defendido com a
autoridade do mesmo. O que chega ao principado com a ajuda dos
grandes se mantém com mais dificuldade daquele que ascende ao posto
com o apoio do povo, pois se encontra príncipe com muitos ao redor a
lhe parecerem seus iguais e, por isso, não pode nem governar nem
manobrar como entender.

Mas aquele que chega ao principado com o favor popular, aí se encontra


só e ao seu derredor não tem ninguém ou são pouquíssimos que não
estejam preparados para obedecer. Além disso, sem injúria aos outros,
não se pode honestamente satisfazer os grandes, mas sim pode-se fazer
bem ao povo, eis que o objetivo deste é mais honesto daquele dos
poderosos, querendo estes oprimir enquanto aquele apenas quer não ser
oprimido. Contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode estar
garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se assegurar
porque são poucos. O pior que pode um príncipe esperar do povo hostil é
ser por ele abandonado; mas dos poderosos inimigos não só deve temer
ser abandonado, como também deve recear que os mesmos se lhe
voltem contra, pois que, havendo neles mais visão e maior astúcia,
contam sempre com tempo para salvar-se e procuram adquirir prestígio
junto àquele que esperam venha a vencer. Ainda, o príncipe tem de
viver, necessariamente, sempre com o mesmo povo, ao passo que pode
bem viver sem aqueles mesmos poderosos, uma vez que pode fazer e
desfazer a cada dia esse seu poderio, dando-lhes ou tirando-lhes
reputação, a seu alvedrio.

E, para melhor esclarecer esta parte, digo que os grandes devem ser
considerados em dois grupos principais: ou procedem por forma a se
obrigarem totalmente à tua fortuna, ou não. Os que se obrigam e não são
rapaces, devem ser considerados e amados. Os que não se obrigam
devem ser encarados de dois modos: se fazem isso por pusilanimidade
ou por natural defeito de espírito, deverás servir-te deles, máxime que
são bons conselheiros, porque na prosperidade isso te honrará e na
adversidade não precisarás temê-los. Mas quando eles, ardilosamente,
não se obrigam por ambição, é sinal que pensam mais em si próprios do
que em ti: desses deve o príncipe guardar-se temendo-os como se

www.ebooksbrasil.cjb.net 27
fossem inimigos declarados, porque sempre, na adversidade, ajudarão a
arruiná-lo.

Deve, pois, alguém que se torne príncipe mediante o favor do povo,


conservá-lo amigo, o que se lhe torna fácil, uma vez que não pede ele
senão não ser oprimido. Mas quem se torne príncipe pelo favor dos
grandes, contra o povo, deve antes de mais nada procurar ganhar este
para si, o que se lhe torna fácil quando assume a proteção do mesmo. E,
por que os homens, quando recebem o bem de quem esperavam
somente o mal, se obrigam mais ao seu benfeitor, torna-se o povo desde
logo mais seu amigo do que se tivesse sido por ele levado ao principado.
O príncipe pode ganhar o povo por muitas maneiras que, por variarem de
acordo com as circunstâncias, delas não se pode estabelecer regra
certa, razão pela qual das mesmas não cogitaremos.

Concluirei apenas que a um príncipe é necessário ter o povo como


amigo, pois, de outro modo, não terá possibilidades na adversidade.
Nabis, príncipe dos espartanos, suportou o assédio de toda a Grécia e de
um exército romano coberto de vitórias, contra eles defendendo sua
pátria e seu Estado; bastou-lhe apenas, sobrevindo o perigo, garantir-se
contra poucos, o que não seria suficiente se tivesse o povo como inimigo.
E não surja alguém para refutar esta minha opinião com aquele provérbio
bastante conhecido de que, quem se apoia no povo firma-se na lama,
porque o mesmo é verdadeiro somente quando um cidadão privado
estabelece bases sobre o povo e imagina que o mesmo vá libertá-lo
quando oprimido pelos inimigos ou pelos magistrados; neste caso seria
possível sentir-se freqüentemente enganado, como os Gracos em Roma
e Messer Giórgio Scali em Florença. Mas sendo um príncipe quem se
apoie no povo, que possa mandar e seja um homem de coragem, que
não esmoreça nas adversidades, não careça de armas e mantenha com
seu valor e suas determinações alentado o povo todo, jamais se sentirá
por ele enganado e constatará ter estabelecido bons fundamentos.

Amiúde esses principados periclitam quando estão para passar da ordem


civil para um governo absoluto, porque esses príncipes ou governam por
si mesmos ou por intermédio dos magistrados. Neste último caso a
situação dos mesmos é mais fraca e perigosa, porque dependem
completamente da vontade dos cidadãos prepostos à magistratura, os
quais, principalmente nos tempos adversos, podem tomar-lhes o Estado
com grande facilidade, ou contrariando suas ordens ou não lhes
prestando obediência. E o príncipe não pode, nas ocasiões de perigo,
assumir em tempo a autoridade absoluta, porque os cidadãos e os

www.ebooksbrasil.cjb.net 28
súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não estão,
naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações, havendo
sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas nas quais
ele possa confiar. Tal príncipe não pode fundar-se naquilo que observa
nas épocas de paz, quando os cidadãos precisam do Estado, porque
então todos correm, todos prometem e cada um quer morrer por ele
enquanto a morte está longe; mas na adversidade, no momento em que
o Estado tem necessidade dos cidadãos, então poucos são encontrados.
E tanto mais é perigosa esta experiência, quanto não se a pode fazer
senão uma vez. Contudo, um príncipe hábil deve pensar na maneira pela
qual possa fazer com que os seus cidadãos sempre e em qualquer
circunstância tenham necessidade do Estado e dele mesmo, e estes,
então, sempre lhe serão fiéis.

CAPÍTULO X

COMO SE DEVEM MEDIR AS FORÇAS DE TODOS OS


PRINCIPADOS

(QUOMODO OMNIUM PRINCIPATUUM VIRES PERPENDI DEBEANT)

Ao examinar as qualidades destes Estados, convém fazer uma outra


consideração, isto é, se um príncipe tem Estado tão grande e forte que
possa, precisando, manter-se por si mesmo, ou então se tem sempre
necessidade da defesa de outrem. Para esclarecer melhor esta parte,
digo julgar como podendo manter-se por si mesmos aqueles que podem,
por abundância de homens e de dinheiro, organizar um exército à altura
do perigo a enfrentar e fazer face a uma batalha contra quem venha
assaltá-lo, assim como julgo necessitados da defesa de outrem os que
não podem defrontar o inimigo em campo aberto, mas são obrigados a
refugiar-se atrás dos muros da cidade, guarnecendo-os. Quanto ao
primeiro caso já foi falado e, futuramente, diremos o que for necessário;
relativamente ao segundo, não se pode aduzir algo mais do que exortar
tais príncipes a fortificarem e a proverem sua cidade, não se
preocupando com o território que a contorna. E quem tiver bem
fortificada sua cidade e, acerca dos outros assuntos, se tenha conduzido
para com os súditos como acima foi dito e abaixo se esclarecerá, será
sempre assaltado com grande temor, porque os homens são sempre

www.ebooksbrasil.cjb.net 29
inimigos dos empreendimentos onde vejam dificuldades, e não se pode
encontrar facilidade para atacar quem tenha sua cidade forte e não seja
odiado pelo povo.

As cidades da Alemanha gozam de grande liberdade, têm pouco território


e obedecem ao imperador quando assim querem, não temendo nem a
este nem a outro poderoso que lhes esteja ao derredor porque são de tal
forma fortificadas que todos pensam dever ser enfadonha e difícil sua
expugnação. Na verdade, todas têm fossos e muros adequados,
possuem artilharia suficiente, conservam sempre nos armazéns públicos
o necessário para beber, comer e arder por um ano; além disso, para
manter a plebe alimentada sem prejuízo do povo, têm sempre, em
comum, por um ano, meios para lhe dar trabalho naquelas atividades que
sejam o nervo e a vida daquelas cidades e das indústrias das quais a
plebe se alimente. Têm em grande conceito os exercícios militares, a
respeito dos quais têm muitas leis de regulamentação.

Um príncipe, pois, que tenha uma cidade forte e não se faça odiar, não
pode ser atacado e, existindo alguém que o assaltasse, retirar-se-ia com
vergonha, eis que as coisas do mundo são assim tão variadas que é
quase impossível alguém pudesse ficar com os exércitos ociosos por um
ano, a assediá-lo. A quem replicasse que, tendo as suas propriedades
fora da cidade e vendo-as a arder, o povo não terá paciência e o longo
assédio e a piedade de si mesmo o farão esquecer o príncipe, eu
responderia que um príncipe poderoso e afoito superará sempre aquelas
dificuldades, ora dando aos súditos esperança de que o mal não será
longo, ora incutindo temor da crueldade do inimigo, ora assegurando-se
com destreza daqueles que lhe pareçam muito temerários. Além disso, é
razoável que o inimigo deva queimar o país apenas chegado, nos
tempos em que o ânimo dos homens está ainda ardente e voluntarioso
na defesa; por isso, o príncipe deve ter pouca dúvida porque, depois de
alguns dias, quando os ânimos estão mais frios, os danos já foram
causados, os males já foram sofridos e não há mais remédio; então, os
súditos vêm se unir ainda mais ao semi príncipe, parecendo-lhes que
este lhes deva obrigação, uma vez que suas casas foram incendiadas e
suas propriedades arruinadas para a defesa do mesmo. E a natureza dos
homens é aquela de obrigar-se tanto pelos benefícios que são feitos
como por aqueles que se recebem. Donde, em se considerando tudo
bem, não será difícil a um príncipe prudente conservar firmes, antes e
depois do cerco, os ânimos de seus cidadãos, desde que não faltem
víveres nem meios de defesa.

www.ebooksbrasil.cjb.net 30
CAPÍTULO XI

DOS PRINCIPADOS ECLESIÁSTICOS

(DE PRINCIPATIBUS ECLESIASTICIS)

Resta-nos somente, agora, falar dos principados eclesiásticos, nos quais


todas as dificuldades existem antes que se os possuam, eis que são
adquiridos ou pela virtude ou pela fortuna, e sem uma e outra se
conservam, porque são sustentados pelas ordens de há muito
estabelecidas na religião; estas tornam-se tão fortes e de tal natureza
que mantêm os seus príncipes sempre no poder, seja qual for o modo
por que procedam e vivam. Só estes possuem Estados e não os
defendem; súditos, e não os governam; os Estados, por serem indefesos,
não lhes são tomados; os súditos, por não serem governados, não se
preocupam, não pensam e nem podem separar-se deles. Somente estes
principados, pois, são seguros e felizes. Mas, sendo eles dirigidos por
razão superior, à qual a mente humana não atinge, deixarei de falar a
seu respeito,mesmo porque, sendo engrandecidos e mantidos por Deus,
seria obra de homem presunçoso e temerário dissertar a seu respeito.
Contudo, se alguém me perguntar donde provém que a Igreja, no poder
temporal, tenha chegado a tanta grandeza, pois que antes de Alexandre
os potentados italianos, e não apenas aqueles que eram ditos
"potentados" mas qualquer barão e senhor, mesmo que sem importância,
pouco valor davam ao poder temporal da Igreja, e agora um rei de
França treme, ela pode expulsá-lo da Itália e ainda logra arruinar os
venezianos, apontarei fatos que, a despeito de conhecidos, não me
parece supérfluo reavivar em parte na memória.

Antes que Carlos, rei da França, invadisse a Itália, esta província


encontrava-se sob o domínio do Papa, dos venezianos, do rei de
Nápoles, do duque de Milão e dos florentinos. Estes potentados tinham
de se haver com dois cuidados principais: um, que nenhum estrangeiro
entrasse na Itália com tropas; o outro, que nenhum deles ocupasse mais
Estado. Aqueles dos quais se tinha mais receio eram o Papa e os
venezianos. Para conter os venezianos tornou-se necessária a união de
todos os demais, como ocorreu na defesa de Ferrara; para deter o Papa,
serviam-se dos barões de Roma, eis que. estando divididos em duas
facções, Orsíni e Colonna, sempre existia motivo de discórdia entre eles
e, estando de arma em punho sob os olhos do pontífice, mantinham o
pontificado fraco e inseguro. Se bem surgisse, vez por outra, um Papa

www.ebooksbrasil.cjb.net 31
animoso, como foi Xisto, nem a sua fortuna nem o seu saber puderam
livrá-lo desses inconvenientes. A brevidade da vida dos pontífices era a
causa dessa situação, porque, nos dez anos que, em média, vivia um
Papa, somente com muita dificuldade podia ele enfraquecer uma das
facções; se, por exemplo, um deles tivesse quase extinguindo os
collonessi surgia um outro, inimigo dos Orsíni, que os fazia ressurgir sem
que tivesse tempo de liquidar os Orsíni. Isto tornava o poder temporal do
Papa pouco considerado na Itália.

Surgiu depois Alexandre VI que, de todos os pontífices que já existiram,


foi o que mostrou o quanto um Papa podia, com o dinheiro e as tropas,
para adquirir maior poder; e fez, com o uso do Duque Valentino como
instrumento e com a oportunidade da invasão dos franceses, todas
aquelas coisas que relatei acima com relação às ações do duque. Se
bem seu intento não fosse o de tornar grande a Igreja mas sim o duque,
não obstante, tudo o que fez reverteu em favor da grandeza da Igreja, a
qual, após a sua morte, extinto o duque, se tornou herdeira de sua obra.
Veio depois o Papa Júlio e encontrou a Igreja grande, possuindo toda a
Romanha, reduzidos à impotência os barões de Roma e, pelas
perseguições de Alexandre, anuladas aquelas facções; encontrou, ainda,
o caminho aberto para acumular dinheiro, o que jamais havia sido feito
antes de Alexandre.

Júlio não só seguiu tais práticas, como as ampliou; pensou em conquistar


Bolonha, extinguir os venezianos e expulsar os franceses da Itália: todos
esses empreendimentos lhe saíram bem, e com tanto maior louvor
quanto realizou tudo isso para engrandecer a Igreja e não para favorecer
algum cidadão particular. Conservou, ainda, os partidos dos Orsíni e dos
Colonna nas mesmas condições em que os encontrara e, se bem entre
eles houvesse algum chefe capaz de fazer mudar a situação, duas
coisas os mantiveram quietos: uma, a grandeza da Igreja, que os
atemorizava; a outra, não terem eles cardeais, os quais são os
causadores dos tumultos entre as facções. Nem em tempo algum ficarão
quietas essas partes, desde que possuam cardeais, pois estes
sustentam os partidos dentro e fora de Roma e os barões são forçados a
defendê-los; assim, da ambição dos prelados, nascem as discórdias e os
tumultos entre os barões. Sua Santidade, o Papa Leão, encontrou o
pontificado potentíssimo e, espera-se, se aqueles que referimos o
fizeram grande pelas armas, este o fará ainda maior e mais venerado
pela bondade e suas outras infinitas virtudes.

www.ebooksbrasil.cjb.net 32
CAPÍTULO XII

DE QUANTAS ESPÉCIES SÃO AS MILÍCIAS, E DOS SOLDADOS


MERCENÁRIOS

(QUOT SINT GENERA MILITIAE ET DE MERCENARIIS MILITIBUS)

Tendo falado detalhadamente de todas as espécies de principados, dos


quais já no início me propus comentar, e consideradas, em alguns
pontos, as causas do bem-estar e do mal-estar dos mesmos, mostrados
que foram os modos pelos quais muitos procuraram adquiri-los e
conservá-los, resta-me agora falar de forma genérica dos meios
ofensivos e defensivos que em cada um dos citados principados possam
ocorrer, Dissemos acima como é necessário a um príncipe ter bons
fundamentos; do contrário, necessariamente, cairá em ruína. Os
principais fundamentos que os Estados têm, tanto os novos como os
velhos ou os mistos, são as boas leis e as boas armas. E, como não
pode haver boas leis onde não existam boas armas e onde existam boas
armas convém que haja boas leis, deixarei de falar das leis e me
reportarei apenas às armas.

Digo, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu


Estado, ou são suas próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou
mistas. As mercenárias e as auxiliares são inúteis e perigosas e, se
alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará
firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas,
infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os inimigos; não têm temor a
Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína, quanto se
transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra, pelos
inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão
que as mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo, o qual não é
suficiente para fazer com que queiram morrer por ti. Querem muito ser
teus soldados enquanto não estás em guerra, mas, quando esta surge,
querem fugir ou ir embora.

Para persuadir de tais coisas não me é necessária muita fadiga, eis que
a atual ruína da Itália não foi causada por outro fator senão o de ter, por
espaço de muitos anos, repousado sobre as armas mercenárias. Elas já
fizeram algo em favor de alguns e pareciam galhardas nas lutas entre si;
mas, quando surgiu o estrangeiro, mostraram-lhe o que eram. Por isso
foi possível a Carlos, rei de França, tomar a Itália com o giz; e quem

www.ebooksbrasil.cjb.net 33
disse que a causa disso foram os nossos pecados, dizia a verdade, se
bem que esses pecados não fossem aqueles que ele julgava, mas sim
esses que eu narrei, e como eram pecados de príncipes, estes sofreram
o castigo.

Quero demonstrar melhor a infeliz qualidade destas tropas. Os capitães


mercenários ou são homens excelentes, ou não: se o forem, não podes
confiar, porque sempre aspirarão à própria grandeza, abatendo a ti que
és o seu patrão, ou oprimindo os outros contra a tua vontade; mas se
não forem grandes chefes, certamente te levarão à ruína. E, se for
respondido que qualquer um que detenha as forças nas mãos fará isso,
mercenário ou não, responderei dizendo como as armas devem ser
usadas por um príncipe ou por uma República. O príncipe deve ir
pessoalmente com as tropas e exercer as atribuições do capitão: a
República deve mandar seus cidadãos e, quando enviar um que não se
revele valente, deve substitui-lo, quando animoso deve detê-lo com as
leis para que não avance além do limite. Por experiência se vêem
príncipes sós e repúblicas armadas fazerem grandes progressos,
enquanto se vêem tropas mercenárias não causarem mais do que danos.
Ainda, uma República armada de tropas próprias se submete ao domínio
de um seu cidadão com muito maior dificuldade do que aquela que esteja
protegida por tropas mercenárias ou auxiliares.

Roma e Esparta foram durante muitos séculos armadas e livres, Os


suíços são armadíssimos e libérrimos, Das armas mercenárias antigas,
podemos citar como exemplo os cartagineses, os quais quase foram
oprimidos por seus soldados mercenários, ao fim da primeira guerra com
os romanos, a despeito de terem por chefes os próprios cidadãos de
Cartago. Felipe da Macedônia foi pelos tebanos feito capitão de sua
gente, depois da morte de Epaminondas, e após a vitória lhes tolheu a
liberdade, Os milaneses, morto o Duque Felipe, assalariaram Francisco
Sforza para combater os venezianos e o mesmo, vencidos os inimigos
em Caravaggio, a estes se uniu para oprimir os milaneses, seus patrões.
Sforza, seu pai, estando a serviço da Rainha Joana de Nápoles, deixou-a
repentinamente desarmada; por isso ela, para não perder o reino, foi
obrigada a lançar-se aos braços do Rei de Aragão.

E se venezianos e florentinos, ao contrário, tiveram aumentado o seu


domínio com essas tropas, e os seus capitães se fizeram príncipes mas
os defenderam, esclareço que os florentinos, neste caso, foram
favorecidos pela sorte, porque dos capitães de valor, aos quais podiam
temer, alguns não venceram ou tiveram de lutar contra antagonistas,

www.ebooksbrasil.cjb.net 34
outros voltaram sua ambição para paragens diversas. Quem não venceu
foi Giovanni Aucut, por isso mesmo não se podendo conhecer de sua
fidelidade, mas todos estarão concordes que, tivesse vencido, os
florentinos estariam à sua mercê. Sforza sempre teve os Braccio contra
si, vigiando-se uns aos outros. Francisco voltou sua ambição para a
Lombardia, Braccio contra a Igreja e o reino de Nápoles. Mas, vejamos o
que ocorreu há pouco tempo. Os florentinos fizeram Paulo Vitelli seu
capitão, homem de muita prudência e que, de vida privada, havia
alcançado mui grande reputação. Se ele conquistasse Pisa, não haveria
quem negasse convir aos florentinos estar sob suas ordens, mesmo
porque, se ele tivesse ficado como soldado de seus inimigos, não teriam
remédio e, tendo-o ao seu lado, deveriam obedecer-lhe.

Os venezianos, se se considerar os seus progressos, ver-se-á terem


operado segura e gloriosamente enquanto fizeram a guerra sozinhos (o
que foi antes de voltarem suas vistas para a terra) sendo que, com o
apoio dos gentis-homens e com a plebe armada, operaram mui
galhardamente; mas, como eles começaram a combater em terra,
abandonaram essa prudência e seguiram os costumes de guerra da
Itália. No princípio de sua expansão terrestre, por não possuírem muito
Estado e por usufruírem alta reputação, não precisavam temer muito
seus capitães; mas, quando ampliaram suas conquistas, o que ocorreu
sob o Carmignola, tiveram a prova desse erro. Por tanto, tendo visto seu
valor quando sob seu comando bateram o duque de Milão e sentindo, de
outra parte, quanto ele esfriara no conduzir a guerra, julgaram não mais
ser possível com ele vencer dada a sua má vontade; e não podendo
licenciá-lo para não perder aquilo que tinham adquirido, para se
garantirem viram-se na contingência de matá-lo, Tiveram depois por seus
capitães Bartolomeu e Bergamo, Roberto de São Severino, Conde de
Pitigliano e outros parecidos, com os quais deviam temer as derrotas e
não suas conquistas, como ocorreu depois em Vailá, onde, num dia,
perderam tudo aquilo que, em oitocentos anos, com tanta fadiga, tinham
conquistado. Na verdade, destas tropas resultam apenas lentas, tardias e
fracas conquistas, mas rápidas e miraculosas perdas. E, como
apresentei estes exemplos da Itália que tem sido por muitos anos
dominada por armas mercenárias, quero analisar essas tropas por forma
mais genérica, a fim de que, vendo a origem e o desenvolvimento das
mesmas, se possa melhor corrigir o erro de seu emprego.

Deveis, pois, saber como, logo que nestes últimos anos o império
começou a ser repelido da Itália e o Papa passou a ter reputação no
poder temporal, a Itália dividiu-se em vários Estados. Na verdade, muitas

www.ebooksbrasil.cjb.net 35
das maiores cidades tomaram das armas contra seus nobres, os quais,
antes favorecidos pelo imperador, as mantinham oprimidas, e a Igreja,
para obter reputação em seu poder temporal, as favorecia em tal; de
muitas outras, os seus cidadãos se tornaram príncipes.

Daí resultar que, tendo a Itália quase toda, chegado a cair nas mãos da
Igreja e de algumas repúblicas, não estando aqueles padres e aqueles
outros cidadãos habituados ao uso das armas, começaram a aliciar
mercenários estrangeiros. O primeiro que deu fama a essa milícia foi
Alberico da Conio, natural da Romanha, sendo que de sua escola de
armas vieram, dentre outros, Braccio e Sforza, nos seus dias os árbitros
da Itália. Depois destes vieram todos os outros que até nossos tempos
têm chefiado essas tropas, e o fim do valor das mesmas foi que a Itália
viu-se percorrida por Carlos, saqueada por Luís, violentada por Fernando
e desonrada pelos suíços.

A ordem que eles observaram inicialmente foi, para dar reputação a si


próprios, tirar o conceito da infantaria, Fizeram isso porque, sendo eles
sem Estado e vivendo da indústria das armas, poucos infantes não lhes
dariam fama e, sendo muitos, não poderiam alimentá-los; assim,
limitaram-se à cavalaria onde, com número suportável, as tropas podiam
ser nutridas e eles honrados. E, afinal, a situação tornou-se tal que, em
um exército de vinte mil soldados, não se encontravam dois mil infantes.
Tinham, além disso, usado todos os meios para afastar de si e de seus
soldados o cansaço e o medo, não se matando nos combates, fazendo-
se prisioneiros uns aos outros e libertando-se depois sem resgate. Não
atacavam as cidades muradas e os das cidades não assaltavam os
acampamentos; não faziam nem estacadas nem fossos, não saíam a
campo no inverno. Todas estas coisas eram permitidas nas suas regras
militares, por eles encontradas para fugir, como foi dito, à fadiga e aos
perigos; foi por isso que arrastaram a Itália à escravidão e à desonra.

www.ebooksbrasil.cjb.net 36
CAPÍTULO XIII

DOS SOLDADOS AUXILIARES, MISTOS E PRÓPRIOS

(DE MILITIBUS AUXILIARIIS, MIXTIS ET PROPRIIS)

As tropas auxiliares, que são as outras forças inúteis, são aquelas que se
apresentam quando chamas um poderoso para que, com seus exércitos,
te venha ajudar e defender, como fez em tempos recentes o Papa Júlio
que, tendo visto na campanha de Ferrara a triste figura de suas tropas
mercenárias, voltou-se para as auxiliares e entrou em acordo com
Fernando, rei da Espanha, no sentido de que este, com sua gente e
armas, viesse ajudá-lo. Estas tropas auxiliares podem ser úteis e boas
para si mesmas, mas, para quem as chame, são quase sempre danosas,
eis que perdendo ficas liquidado, vencendo ficas seu prisioneiro.

E, ainda que destes exemplos estejam cheias as antigas histórias, não


quero abandonar esta recente lição de Júlio II, cuja deliberação de
entregar-se inteiramente às mãos de um estrangeiro, por querer Ferrara,
não podia ter sido mais insensata. Mas a boa sorte fez surgir uma
terceira circunstância, a fim de que não viesse ele a colher o resultado de
sua má decisão; sendo os seus auxiliares derrotados em Ravenna e
surgindo os suíços que, contra a expectativa de Júlio e de outros,
expulsaram os vencedores, o Papa não se tornou prisioneiro nem dos
vencedores, que fugiram, nem de suas tropas auxiliares, por ter vencido
com outras armas que não as delas. Os florentinos, estando
completamente desarmados, levaram dez mil franceses a Pisa para
atacá-la, resolução essa em razão da qual passaram por maior perigo do
que em qualquer tempo de seus próprios trabalhos. O imperador de
Constantinopla, para opor-se a seus vizinhos, concentrou na Grécia dez
mil turcos que, terminada a guerra, não quiseram abandonar o país, o
que constitui o início da sujeição da Grécia aos infiéis.

Assim, aquele que queira não poder vencer, valha-se destas tropas muito
mais perigosas do que as mercenárias, eis que com estas a ruína é
certa, dado que são todas unidas, todas voltadas à obediência a outrem.
As mercenárias, para te prejudicarem após a vitória, contrariamente ao
que ocorre com as mistas, precisam de mais tempo e maior
oportunidade, não só por não constituírem um todo, como também por
terem sido organizadas e pagas por ti; ainda, um terceiro que nelas
tornes chefe, não pode desde logo assumir tanta autoridade que te cause

www.ebooksbrasil.cjb.net 37
dano. Enfim, enquanto nas tropas mercenárias o mais perigoso é a
covardia, nas auxiliares é o valor.

Um príncipe prudente, portanto, sempre tem fugido a essas tropas para


voltar-se às suas próprias forças, preferindo perder com as suas a vencer
com aquelas, eis que, em verdade, não representaria vitória aquela que
fosse conquistada com as armas alheias. Jamais vacilarei em citar como
exemplo César Bórgia e suas ações. Este duque entrou na Romanha
com tropas auxiliares, para aí conduzindo as forças francesas, com elas
tomando Imola e Forli. Mas, depois, não mais lhe parecendo seguras tais
armas, voltou-se para as mercenárias, julgando nelas encontrar menor
perigo; e tomou a seu serviço os Orsini e os Viteili. Posteriormente,
manejando essas forças e achando-as dúbias, infiéis e perigosas,
extinguiu-as e voltou-se para as suas próprias tropas. Pode-se ver
facilmente a diferença que existe entre umas e outras dessas armas,
considerando a modificação da reputação do duque entre quando tinha
apenas os franceses e depois os Orsíni e Vitelli, e quando ele ficou com
soldados seus e sob seu próprio comando: sempre se a encontrará
acrescida, e nem foi suficientemente amado senão quando todos viram
que ele era o senhor absoluto de suas tropas.

Eu não queria abandonar os exemplos italianos e mais recentes;


contudo, não desejo esquecer Hierão de Siracusa, um dos acima
indicados por mim. Este, como já disse, tornado pelos siracusanos chefe
dos exércitos, logo reconheceu não ser útil a tropa mercenária, por
serem seus chefes idênticos aos nossos italianos; parecendo-lhe não
poder conservá-los nem dispensá-los, fez cortar todos eles em pedaços,
passando depois a fazer guerra com tropas suas e não com as de
outrem, Quero, ainda, trazer à lembrança uma alegoria do Velho
Testamento feita a este propósito. Oferecendo-se David a Saul para lutar
com Golias, provocador filisteu, Saul, para encorajá-lo, revestiu-o com
suas próprias armaduras, as quais, uma vez envergadas por David,
foram por ele recusadas: com elas não poderia bem se valer de si
mesmo, preferindo enfrentar o inimigo apenas com sua funda e sua faca.
Enfim, as armas de outrem, ou te caem de cima, ou te pesam ou te
constrangem.

Carlos VII, pai de Luís XI, tendo com sua fortuna e sua virtude libertado a
França dos ingleses, conheceu essa necessidade de armar-se com
forças próprias, e organizou em seu reino, por forma regular, as armas
de cavalaria e de infantaria. Mais tarde, o Rei Luís, seu filho, extinguiu a
infantaria e começou a aliciar os suíços, erro esse que, seguido de

www.ebooksbrasil.cjb.net 38
outros, tornou-se, como realmente agora se vê, a razão dos perigos
daquele reino, Na verdade, dando reputação aos suíços, Luis aviltou
todas as suas tropas, já que extinguiu as forças de infantaria e
subordinou sua cavalaria às milícias de outrem, e a esta, acostumada a
militar com os suíços, pareceu não ser possível vencer sem eles. Daí
decorre que não bastam os franceses contra os suíços e, sem os suíços,
não tentam a luta contra os outros. Os exércitos de França, pois, têm
sido mistos, parte de mercenários e parte de tropas próprias, forças
essas que, juntas, são muitos melhores que as simples auxiliares ou as
meramente mercenárias e muito inferiores ao exército próprio. Basta o
exemplo citado, pois o reino de França seria invencível, se a organização
militar de Carlos tivesse sido desenvolvida ou conservada. Mas a pouca
prudência dos homens muitas vezes começa uma coisa que lhe parece
boa, sem se aperceber do veneno que ela encobre, como já disse acima
a respeito das febres éticas.

Portanto, aquele que num principado não conhece os males logo no


início, não é verdadeiramente sábio, o que é dado a poucos. E, se se
considerar o início da ruína do Império Romano, ver-se-á ter ela
resultado do simples começo de aliciamento dos godos, eis que foi dai
que começaram a declinar as forças do Império Romano e todo aquele
valor que se lhe tirava era atribuído a eles. Concluo, pois, que, sem ter
armas próprias, nenhum principado está seguro; ao contrário, fica ele
totalmente sujeito à sorte, não havendo virtude que o defenda na
adversidade. Foi sempre opinião e sentença dos homens sábios, quod
nihíl sit tam infirmum aut instabile, quam fama potentiae non sua vi nixa.
As forças próprias são aquelas que se constituem de súditos, de
cidadãos ou de criaturas tuas; todas as outras são ou mercenárias ou
auxiliares. O modo de organizar as tropas próprias será fácil de
encontrar, se se analisar a organização dos quatro por mim
mencionados, e se se considerar como Felipe, pai de Alexandre Magno,
e muitas repúblicas e principados, se armaram e organizaram; a essas
organizações eu me reporto inteiramente.

www.ebooksbrasil.cjb.net 39
CAPÍTULO XIV

O QUE COMPETE A UM PRÍNCIPE ACERCA DA MILÍCIA


(TROPA)

(QUOD PRINCIPEM DECEAT CIRCA MILITIAM)

Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento,
nem tomar qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra e a sua
organização e disciplina, pois que é essa a única arte que compete a
quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles
que nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de
condição privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando
os príncipes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o
seu Estado. A primeira causa que te faz perder o governo é negligenciar
dessa arte, enquanto que a razão que te permite conquistá-lo é o ser
professo da mesma.

Francisco Sforza, por estar armado, de cidadão privado que era, tornou-
se duque de Milão; os filhos, para fugir às fadigas das armas, de duques
passaram a simples cidadãos privados. Em verdade, entre outros males
que te acarreta o estares desarmado, ele te torna vil, o que constitui uma
daquelas infâmias de que o príncipe se deve guardar, como abaixo será
exposto. Realmente, entre um príncipe armado e um desarmado, não
existe proporção alguma, e não é razoável que quem esteja armado
obedeça com gosto ao que seja desprovido de armas, nem que o
desarmado se sinta seguro entre servidores armados, eis que, existindo
desdém de parte de um e suspeita do lado do outro, não é possível ajam
bem, estando juntos. Ainda, um príncipe que não entende de tropas,
além dos outros prejuízos referidos, sofre aquele de não poder ser
estimado pelos seus soldados e nem poder neles confiar.

Deve o príncipe, portanto, não desviar um momento sequer o seu


pensamento do exercício da guerra, o que pode fazer por dois modos:
um com a ação, o outro com a mente, Quanto à ação, além de manter
bem organizadas e exercitadas as suas tropas, deve estar sempre em
caçadas para acostumar o corpo às fadigas e, em parte, para conhecer a
natureza dos lugares e saber como surgem os montes, como embocam
os vales, como se estendem as planícies, e aprender a natureza dos rios
e dos pântanos, pondo muita atenção em tudo isso. Esses
conhecimentos são úteis por duas razões: primeiro, aprende-se a

www.ebooksbrasil.cjb.net 40
conhecer o próprio país e pode-se melhor identificar as defesas que ele
oferece; depois, em decorrência do conhecimento e prática daqueles
sítios, com facilidade poderá entender qualquer outra região que venha a
ter de observar, eis que as colinas, os vales, as planícies, os rios e os
pântanos que existem, por exemplo, na Toscana, têm certa semelhança
com os das outras províncias, de forma que, do conhecimento do terreno
de uma província, se pode passar facilmente ao de outras. O príncipe
que seja falto dessa perícia, está desprovido do elemento principal de
que necessita um capitão, pois ela ensina a encontrar o inimigo,
estabelecer os acampamentos, conduzir os exércitos, ordenar as
jornadas, fazer incursões pelas terras com vantagem sobre o inimigo.

Filopémenes, príncipe dos Aqueus, dentre os louvores que lhe foram


endereçados pelos escritores, mereceu também aquele de que, nos
tempos de paz, em outra coisa não pensava senão em torno de guerra e,
quando excursionando pelos campos com os amigos, freqüentemente
parava e com eles argumentava: - Se os inimigos estivessem sobre
aquela colina e nós nos encontrássemos aqui com nosso exército, qual
de nós teria vantagem? Como se poderia atacá-los, mantendo a
formação da tropa? Se quiséssemos nos retirar, como deveríamos
proceder? Se eles se retirassem, como faríamos para persegui-los? - E
propunha-lhes, andando, todos os casos que possam ocorrer em um
exército; ouvia a opinião dos mesmos, dava a sua corroborando-a com
argumentos, de maneira tal que, em razão dessas contínuas cogitações,
jamais poderia, comandando os exércitos, encontrar pela frente algum
imprevisto para o qual não tivesse solução.

Mas, quanto ao exercício da mente, deve o príncipe ler as histórias e


nelas observar as ações dos grandes homens, ver como se conduziram
nas guerras, examinar as causas de suas vitórias e de suas derrotas,
para poder fugir às responsáveis por estas e imitar as causadoras
daquelas; deve fazer, sobretudo, como, em tempos idos, fizeram alguns
grandes homens que imitaram todo aquele que antes deles foi louvado e
glorificado, e sempre tiveram em si os gestos e as ações do mesmo,
como se diz que Alexandre Magno imitava a Aquiles, César a Alexandre,
Cipião a Ciro. Quem lê a vida de Ciro escrita por Xenofonte percebe,
depois, na vida de Cipião, o quanto lhe valeu para a glória aquela
imitação, bem como o quanto na castidade, afabilidade, humanidade e
liberalidade, Cipião se assemelhava àquilo que Xenofonte escreveu de
Ciro. Um príncipe inteligente deve observar essa semelhança de
proceder, nunca ficando ocioso nos tempos de paz, mas sim, com
habilidade, procurar formar cabedal para poder utilizá-lo na adversidade,

www.ebooksbrasil.cjb.net 41
a fim de que, quando mudar a fortuna, se encontre preparado para
resistir.

CAPÍTULO XV

DAQUELAS COISAS PELAS QUAIS OS HOMENS, E


ESPECIALMENTE OS PRÍNCIPES, SÃO LOUVADOS OU
VITUPERADOS

(DE HIS REBUS QUIBUS HOMINES, ET PRAESERTIM PRINCIPES,


LAUDANTUR AUT VITUPERANTUR)

Resta ver agora quais devam ser os modos e o proceder de um príncipe


para com os súditos e os amigos e, por que sei que muitos já escreveram
a respeito, duvido não ser considerado presunçoso escrevendo ainda
sobre o mesmo assunto, máxime quando irei disputar essa matéria à
orientação já por outros dada aos príncipes. Mas, sendo minha intenção
escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais
conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à
imaginação dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e
principados jamais vistos ou conhecidos como tendo realmente existido.
Em verdade, há tanta diferença de como se vive e como se deveria viver,
que aquele que abandone o que se faz por aquilo que se deveria fazer,
aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o de sua preservação,
eis que um homem que queira em todas as suas palavras fazer profissão
de bondade, perder-se-á em meio a tantos que não são bons. Donde é
necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não
ser bom e usar ou não da bondade, segundo a necessidade.

Deixando de parte, assim, os assuntos relativos a um príncipe imaginário


e falando daqueles que são verdadeiros, digo que todos os homens,
máxime os príncipes por situados em posição mais preeminente, quando
analisados, se fazem notar por alguns daqueles atributos que lhes
acarretam ou reprovação ou louvor. Assim é que alguns são havidos
como liberais, alguns miseráveis (usando um termo toscano, porque
"avaro" em nossa língua é ainda aquele que deseja possuir por rapina,
enquanto "miserável" chamamos aquele que se abstém em excesso de
usar o que possui); alguns são tidos como pródigos, alguns rapaces;

www.ebooksbrasil.cjb.net 42
alguns cruéis, alguns piedosos; um fedífrago, o outro fiel; um efeminado
e pusilânime, o outro feroz e animoso; um humano, o outro soberbo; um
lascivo, o outro casto; um simples, o outro astuto; um duro, o outro fácil;
um grave, o outro leviano; um religioso, o outro incrédulo, e assim por
diante.

Sei que cada um confessará que seria sumamente louvável


encontrarem-se em um príncipe, de todos os atributos acima referidos,
apenas aqueles que são considerados bons; mas, desde que não os
podem possuir nem inteiramente observá-los em razão das
contingências humanas não o permitirem, é necessário seja o príncipe
tão prudente que saiba fugir à infâmia daqueles vícios que o fariam
perder o poder, cuidando evitar até mesmo aqueles que não chegariam a
pôr em risco o seu posto; mas, não podendo evitar, é possível tolerá-los,
se bem que com quebra do respeito devido. Ainda, não evite o príncipe
de incorrer na má faina daqueles vícios que, sem eles, difícil se lhe torne
salvar o Estado; pois, se bem considerado for tudo, sempre se
encontrará alguma coisa que, parecendo virtude, praticada acarretará
ruína, e alguma outra que, com aparência de vício, seguida dará origem
à segurança e ao bem-estar.

CAPÍTULO XVI

DA LIBERALIDADE E DA PARCIMÔNIA

(DE LIBERALITATE ET PARSIMONIA)

Começando, pois, com os primeiros dos já referidos atributos, digo que


seria um bem o ser havido como liberal. Contudo, a liberalidade, usada
por forma que se torne conhecida de todos, te prejudica, porque, se
usada virtuosamente e como se a deve usar, ela não se torna conhecida
e não conseguirás tirar de cima de ti a má fama do seu contrário; porém,
querendo manter entre os homens o nome de liberal, é preciso não
esquecer nenhuma espécie de suntuosidade, de forma tal que um
príncipe assim procedendo consumirá em ostentação todas as suas
finanças e terá necessidade de, ao final, se quiser manter o conceito de
liberal, gravar extraordinariamente o povo de impostos, ser duro no fisco
e fazer tudo aquilo de que possa se utilizar para obter dinheiro. Isso

www.ebooksbrasil.cjb.net 43
começará a torná-lo odioso perante o povo e, empobrecendo-o, fá-lo-á
pouco estimado de todos; de forma que, tendo ofendido a muitos e
premiado a poucos com essa sua liberalidade, sente mais intensamente
qualquer revés inicial e periclita face ao primeiro perigo. Percebendo isso
e querendo recuar, o príncipe incorre desde logo na má fama de
miserável.

Um príncipe, pois, não podendo usar essa qualidade de liberal sem


sofrer dano, tornando-a conhecida, deve ser prudente, deve não se
preocupar com a pecha de miserável, eis que, com o decorrer do tempo,
será considerado sempre mais liberal, uma vez vendo o povo que com
sua parcimônia a receita lhe basta, pode defender-se de quem lhe mova
guerra e tem possibilidade de realizar empreendimentos sem gravar o
povo; assim agindo, vem a usar liberalidade para com todos aqueles dos
quais nada tira, que são numerosos, e a empregar miséria para com
todos os outros a quem não dá, que são poucos. Nos nossos tempos não
temos visto grandes realizações senão daqueles que foram havidos por
miseráveis, enquanto vimos os outros serem extintos. O Papa Júlio II,
como utilizou a fama de liberal para atingir ao papado, não pensou
depois em conservá-la, para poder fazer guerra; o atual rei de França fez
tantas guerras sem lançar um tributo extraordinário sobre seus súditos,
somente porque sobrepôs sua parcimônia às despesas supérfluas. O
presente rei de Espanha, se havido como liberal, não teria realizado nem
vencido em tantos empreendimentos.

Portanto, um príncipe deve gastar pouco para não precisar roubar seus
súditos, para poder defender-se, para não ficar pobre e desprezado, para
não ser forçado a tornar-se rapace, não se importando de incorrer na
fama de miserável, porque esse é um daqueles defeitos que o fazem
reinar. E se alguém dissesse que César alcançou o Império pela
liberalidade, sem contar muitos outros que têm sido ou são considerados
liberais e atingiram altíssimos postos, eu responderia: ou tu já és príncipe
ou estás em via de o ser. No primeiro caso, essa liberalidade é
prejudicial, no segundo é bem necessário ser considerado liberal; e
César era um daqueles que queriam ascender ao principado de Roma,
mas se, depois que o alcançou, tivesse vivido e não tivesse usado
comedimento nas despesas, teria destruído o Império. E se alguém
replicasse que houve muitos príncipes, tidos como extremamente
liberais, que realizaram grandes feitos com seus exércitos, responderia:
ou o príncipe gasta do seu, ou de seus súditos, ou de outrem; no primeiro
caso, deve ser parcimonioso; nos outros, não deve deixar de praticar
nenhuma liberalidade.

www.ebooksbrasil.cjb.net 44
E aquele príncipe que vai com os exércitos, que se mantém de
rapinagem, de saques e de resgates, maneja bens de outros, tem
necessidade dessa liberalidade porque, do contrário, não será seguido
pelos soldados. E, daquilo que não é teu nem de súditos teus, podes ser
o mais generoso doador, como o foram Ciro, César e Alexandre, eis que
o despender aquilo que é dos outros não te tira reputação, ao contrário, a
aumenta; somente o gastar o teu é que te prejudica. E não há coisa que
tanto se destrua a si mesma como a liberalidade, pois, enquanto tu a
usas, perdes a faculdade de utilizá-la, tornando-te pobre e desprezado
ou, para fugir à pobreza, rapace e odioso. Dentre todas as coisas de que
um príncipe se deve guardar está o ser desprezado e odiado, e a
liberalidade te conduz a uma e a outra dessas coisas. Portanto, é mais
sabedoria ter a fama de miserável, que dá origem a uma infâmia sem
ódio, do que, por querer o conceito de liberal, ver-se na necessidade de
incorrer no julgamento de rapace, que cria uma má fama com ódio.

CAPÍTULO XVII

DA CRUELDADE E DA PIEDADE; SE É MELHOR SER AMADO


QUE TEMIDO, OU ANTES TEMIDO QUE AMADO

(DE CRUDELITATE ET PIETATE; ET AN SIT MELIUS AMARI QUAM


TIMERI, VEL E CONTRA)

Reportando-me às outras qualidades já referidas, digo que cada príncipe


deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel: não obstante isso,
deve ter o cuidado de não usar mal essa piedade. César Bórgia era
considerado cruel; entretanto, essa sua crueldade tinha recuperado a
Romanha, logrando uní-la e pô-la em paz e em lealdade. O que, se bem
considerado for, mostrará ter sido ele muito mais piedoso do que o povo
florentino, o qual, para fugir à pecha de cruel, deixou que Pistóia fosse
destruída. Um príncipe não deve, pois, temer a má fama de cruel, desde
que por ela mantenha seus súditos unidos e leais, pois que, com mui
poucos exemplos, ele será mais piedoso do que aqueles que, por
excessiva piedade, deixam acontecer as desordens das quais resultam
assassínios ou rapinagens: porque estes costumam prejudicar a
comunidade inteira, enquanto aquelas execuções que emanam do
príncipe atingem apenas um indivíduo. E, dentre todos os príncipes, é ao

www.ebooksbrasil.cjb.net 45
novo que se torna impossível fugir à pecha de cruel, visto serem os
Estados novos cheios de perigos. Diz Virgílio, pela boca de Dido:

Res dura,et regni novitas me talia cogunt


moliri, et late fines custode tueri.

O príncipe, contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar por
si mesmo e proceder por forma equilibrada, com prudência e
humanidade, buscando evitar que a excessiva confiança o torne incauto
e a demasiada desconfiança o faça intolerável.

Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o


contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra;
mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito
mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se
dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do
perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos
teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que,
como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se
avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em
suas palavras, encontrando-se destituído de outros meios de defesa,
está perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela
grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com elas não se pode
contar e, no momento oportuno, não se torna possível utilizá-las. E os
homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do
que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um
vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em
cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor é mantido pelo
receio de castigo que jamais se abandona.

Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer de forma que, se não


conquistar o amor, fuja ao ódio, mesmo porque podem muito bem
coexistir o ser temido e o não ser odiado: isso conseguirá sempre que se
abstenha de tomar os bens e as mulheres de seus cidadãos e de seus
súditos e, em se lhe tornando necessário derramar o sangue de alguém,
faça-o quando existir conveniente justificativa e causa manifesta. Deve,
sobretudo, abster-se dos bens alheios, posto que os homens esquecem
mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio. Além
disso, nunca faltam motivos para justificar as expropriações, e aquele
que começa a viver de rapinagem sempre encontra razões para apossar-
se dos bens alheios, ao passo que as razões para o derramamento de
sangue são mais raras e esgotam-se mais depressa.

www.ebooksbrasil.cjb.net 46
Mas quando o príncipe está à frente de seus exércitos e tem sob seu
comando uma multidão de soldados, então é de todo necessário não se
importar com a fama de cruel, eis que, sem ela, jamais se conservará
exército unido e disposto a alguma empresa. Dentre as admiráveis ações
de Aníbal, menciona-se esta: tendo um exército imenso, constituído de
homens de inúmeras raças, conduzido a batalhar em terras alheias,
nunca surgiu qualquer dissensão entre eles ou contra o príncipe, tanto na
má como na boa fortuna. Isso não pode resultar de outra coisa senão
daquela sua desumana crueldade que, aliada às suas infinitas virtudes, o
tornou sempre venerado e terrível no conceito de seus soldados; sem
aquela crueldade, as virtudes não lhe teriam bastado para surtir tal efeito
e, todavia, escritores nisto pouco ponderados, admiram, de um lado,
essa sua atuação e, de outro, condenam a principal causa da mesma.

Para prova de que, realmente, as outras suas virtudes não seriam


bastantes, pode-se considerar o caso de Cipião, homem dos mais
notáveis não somente nos seus tempos mas também na memória de
todos os fatos conhecidos, cujos exércitos se revoltaram na Espanha em
conseqüência de sua excessiva piedade, pois que havia concedido aos
seus soldados mais liberdades do que convinha à disciplina militar. Tal
fato foi-lhe censurado no Senado por Fábio Máximo, o qual chamou-o de
corruptor da milícia romana. Os locrenses, tendo sido arruinados e
abatidos por um legado de Cipião, não foram por ele vingados, nem a
insolência daquele legado foi reprimida, resultando tudo isso de sua
natureza fácil; tanto assim que, querendo alguém desculpá-lo perante o
Senado, disse haver muitos homens que melhor sabiam não errar do que
corrigir os erros. Essa sua natureza teria com o tempo sacrificado a fama
e a glória de Cipião, tivesse ele perseverado no comando; mas, vivendo
sob o governo do Senado, esta sua prejudicial qualidade não só
desapareceu, como lhe resultou em glória.

Concluo, pois, voltando à questão de ser temido e amado, que um


príncipe sábio, amando os homens como a eles agrada e sendo por eles
temido como deseja, deve apoiar-se naquilo que é seu e não no que é
dos outros; deve apenas empenhar-se em fugir ao ódio, como foi dito.

www.ebooksbrasil.cjb.net 47
CAPÍTULO XVIII

DE QUE MODO OS PRÍNCIPES DEVEM MANTER A FÉ DA


PALAVRA DADA

(QUOMODO FIDES A PRINCIPIBUS SIT SERVANDA)

Quando seja louvável em um príncipe o manter a fé (da palavra dada) e


viver com integridade, e não com astúcia, todos compreendem; contudo,
vê-se nos nossos tempos, pela experiência, alguns príncipes terem
realizado grandes coisas a despeito de terem tido em pouca conta a fé
da palavra dada, sabendo pela astúcia transtornar a inteligência dos
homens; no final, conseguiram superar aqueles que se firmaram sobre a
lealdade.

Deveis saber, então, que existem dois modos de combater: um com as


leis, o outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo, dos
animais; mas, como o primeiro modo muitas vezes não é suficiente,
convém recorrer ao segundo. Portanto, a um príncipe torna-se
necessário saber bem empregar o animal e o homem. Esta matéria,
aliás, foi ensinada aos príncipes, veladamente, pelos antigos escritores,
os quais descrevem como Aquiles e muitos outros príncipes antigos
foram confiados à educação do centauro Quiron. Isso não quer dizer
outra coisa, o ter por preceptor um ser meio animal e meio homem,
senão que um príncipe precisa saber usar uma e outra dessas naturezas:
uma sem a outra não é durável.

Necessitando um príncipe, pois, saber bem empregar o animal, deve


deste tomar como modelos a raposa e o leão, eis que este não se
defende dos laços e aquela não tem defesa contra os lobos. É preciso,
portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os
lobos. Aqueles que agem apenas como o leão, não conhecem a sua arte.
Logo, um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra,
quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando
desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la. Se todos os
homens fossem bons, este preceito seria mau; mas, porque são maus e
não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para que a
cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas
para justificar a sua quebra da palavra. Disto poder-se-ia dar inúmeros
exemplos modernos, mostrar quantas pazes e quantas promessas foram
tornadas írritas e vãs pela infidelidade dos príncipes; e aquele que, com

www.ebooksbrasil.cjb.net 48
mais perfeição, soube agir como a raposa, saiu-se melhor. Mas é
necessário saber bem disfarçar esta qualidade e ser grande simulador e
dissimulador: tão simples são os homens e de tal forma cedem às
necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará
quem se deixe enganar.

Não quero deixar de apontar um dos exemplos recentes. Alexandre VI


jamais fez outra coisa, jamais pensou em outra coisa senão enganar os
homens, sempre encontrando ocasião para assim poder agir. Nunca
existiu homem que tivesse maior eficácia em asseverar, que com
maiores juramentos afirmasse uma coisa e que, depois, menos a
observasse; não obstante, os enganos sempre lhe resultaram segundo o
seu desejo, pois bem conhecia este lado do mundo.

A um príncipe, portanto, não é essencial possuir todas as qualidades


acima mencionadas, mas é bem necessário parecer possuí-las. Antes,
ousarei dizer que, possuindo-as e usando-as sempre, elas são danosas,
enquanto que, aparentando possuí-las, são úteis; por exemplo: parecer
piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo realmente, mas estar
com o espírito preparado e disposto de modo que, precisando não sê-lo,
possas e saibas tornar-te o contrário, Deve-se compreender que um
príncipe, e em particular um príncipe novo, não pode praticar todas
aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez
que, freqüentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a
fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. Porém, é
preciso que ele tenha um espírito disposto a voltar-se segundo os ventos
da sorte e as variações dos fatos o determinem e, como acima se disse,
não apartar-se do bem, podendo, mas saber entrar no mal, se
necessário.

Um príncipe, portanto, deve ter muito cuidado em não deixar escapar de


sua boca nada que não seja repleto das cinco qualidades acima
mencionadas, para parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo piedade, todo fé,
todo integridade, todo humanidade, todo religião; e nada existe mais
necessário de ser aparentado do que esta última qualidade. É que os
homens em geral julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, porque a
todos cabe ver mas poucos são capazes de sentir. Todos vêem o que tu
aparentas, poucos sentem aquilo que tu és; e esses poucos não se
atrevem a contrariar a opinião dos muitos que, aliás, estão protegidos
pela majestade do Estado; e, nas ações de todos os homens, em
especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que
importa é o sucesso das mesmas, Procure, pois, um príncipe, vencer e

www.ebooksbrasil.cjb.net 49
manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos
louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos
resultados, e no mundo não existe senão o vulgo; os poucos não podem
existir quando os muitos têm onde se apoiar. Algum príncipe dos tempos
atuais, que não convém nomear, não prega senão a paz e fé, mas de
uma e outra é ferrenho inimigo; uma e outra, se ele as tivesse praticado,
ter-lhe-iam por mais de uma vez tolhido a reputação ou o Estado.

CAPÍTULO XIX

DE COMO SE DEVA EVITAR O SER DESPREZADO E ODIADO

(DE CONTEMPTU ET ODIO FUGIENDO)

Porque falei das mais importantes das qualidades acima mencionadas,


desejo discorrer rapidamente sobre as outras, sob estas generalidades:
que o príncipe pense (como acima se disse em parte) em fugir àquelas
circunstâncias que possam torná-lo odioso e desprezível; sempre que
assim proceder, terá cumprido o que lhe compete e não encontrará
perigo algum nos outros defeitos. Odioso o tornará, acima de tudo, como
já disse, o ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos,
do que se deve abster; e, desde que não se tirem nem os bens nem a
honra à universalidade dos homens, estes vivem felizes e somente se
terá de combater a ambição de poucos, o que se refreia por muitos
modos e com facilidade. Desprezível o torna ser considerado volúvel,
leviano, efeminado, pusilânime, irresoluto, do que um príncipe deve
guardar-se como de um escolho, empenhando-se para que nas suas
ações se reconheça grandeza, coragem, gravidade e fortaleza; com
relação às ações privadas dos súditos, deve querer que a sua sentença
seja irrevogável; deve manter-se em tal conceito que ninguém possa
pensar em enganá-lo ou traí-lo.

O príncipe que dá de si esta opinião é assaz reputado e, contra quem é


reputado, só com muita dificuldade se conspira; dificilmente é atacado,
desde que se considere excelente e seja reverenciado pelos seus. Na
verdade, um príncipe deve ter dois temores: um de ordem interna, de
parte de seus súditos, o outro de natureza externa, de parte dos

www.ebooksbrasil.cjb.net 50
potentados estrangeiros. Destes se defende com boas armas e bons
amigos; e sempre que tenha boas armas terá bons amigos. A situação
interna, desde que ainda não perturbada por uma conspiração, estará
segura sempre que esteja estabilizada a externa; mesmo quando esta se
agite, se o príncipe organizou-se e viveu como eu já disse, desde que
não desanime, resistirá a qualquer impacto, como salientei ter feito o
espartano Nábis.

Mas, a respeito dos súditos, quando os negócios externos não se agitam,


deve-se temer que conspirem secretamente, contra o que o príncipe se
assegura firmemente fugindo de ser odiado ou desprezado e mantendo o
povo com ele satisfeito; isto é de necessidade seja conseguido, como já
acima se falou longamente. Um dos mais poderosos remédios de que um
príncipe pode dispor contra as conspirações é não ser odiado pela
maioria, porque sempre, quem conjura, pensa com a morte do príncipe
satisfazer o povo, mas, quando considera que com isso irá ofendê-lo,
não se anima a tomar semelhante partido, mesmo porque as dificuldades
com que os conspiradores têm de se defrontar são infinitas. Por
experiência vê-se que muitas foram as conspirações mas poucas tiveram
bom fim, pois quem conspira não pode ser sozinho, nem pode ter por
companheiros senão aqueles que acredite estarem descontentes; mas,
logo que tenhas revelado a um descontente a tua intenção, lhe dás
motivo para ficar contente porque, evidentemente, ele pode daí esperar
todas as vantagens; de forma que, vendo o ganho certo de um lado,
sendo o outro dúbio e cheio de perigo, é preciso seja ou extraordi 112
nário amigo teu ou implacável inimigo do príncipe para manter-te a
palavra empenhada.

Para reduzir o assunto a termos breves, digo que do lado do conspirador


não existe senão medo, ciúme, suspeita de castigo que o atordoa; mas,
do lado do príncipe, existe a majestade do principado, as leis, as
barreiras dos amigos e do Estado que o defendem; consequentemente,
somada a tais fatores a benevolência popular, é impossível exista
alguém tão temerário que venha a conspirar. Isso porque, geralmente,
onde um conspirador teme antes da execução do mal, se tiver o povo por
inimigo, deve temer ainda mesmo depois de ocorrido o fato, não podendo
por isso esperar qualquer amparo.

Deste assunto poder-se-ia citar inúmeros exemplos; porém, limito-me a


apenas um, conservado pela recordação de nossos pais. Tendo sido
messer Aníbal Bentivoglio, príncipe em Bolonha e avô do atual messer
Aníbal, morto pelos caneschi que contra ele haviam conspirado, não

www.ebooksbrasil.cjb.net 51
restando de sua família senão messer Giovanni que era ainda criança de
colo, logo após esse homicídio o povo levantou-se e matou todos os
canneschi. Isso resultou da benquerença popular que a casa de
Bentivoglio desfrutava naqueles tempos, benquerença essa tão grande
que, não restando em Bolonha qualquer membro dessa família em
condições de poder governar o Estado após a morte de Anibal e
constando haver em Florença um descendente dos Bentivoglio que se
julgava até então filho de um artífice, os bolonheses foram até essa
cidade e lhe confiaram o governo daquela comunidade, a qual foi por ele
dirigida até que messer Giovanni atingisse a idade conveniente para
governar.

Concluo, portanto, que um príncipe deve dar pouca importância às


conspirações se o povo lhe é benévolo; mas quando este lhe seja
adverso e o tenha em ódio, deve temer tudo e a todos. Os Estados bem
organizados e os príncipes hábeis têm com toda a diligência procurado
não desesperar os grandes e satisfazer o povo conservando-o contente,
mesmo porque este é um dos mais importantes assuntos de que um
príncipe tenha de tratar.

Entre os reinos bem organizados e governados nos nossos tempos está


aquele de França. Nele existem inúmeras boas instituições, das quais
dependem a liberdade e a segu 113 rança do rei; a primeira delas é o
Parlamento com a sua autoridade. Aquele que organizou esse reino,
conhecendo a ambição dos poderosos e a sua insolência, julgando ser
necessário pôr um freio para corrigi-los e, de outra parte, por conhecer o
ódio da maioria contra os grandes com base no medo, desejando
protegê-la mas não querendo fosse este particular cuidado do rei, buscou
dele retirar o peso da odiosidade dos grandes em sendo favorecido o
povo ou deste ao dever apoiar os grandes; por isso, constituiu um
terceiro juiz que fosse aquele que, sem responsabilidade do rei,
contivesse os grandes e amparasse os pequenos. Essa ordem não podia
ser melhor nem mais prudente, nem se pode negar seja a maior razão da
segurança do rei e do reino. Daí pode-se extrair outra conclusão digna de
nota: os príncipes devem atribuir a outrem as coisas odiosas, reservando
para si aquelas de graça. Novamente concluo que um príncipe deve
estimar os grandes, mas não se fazer odiado pelo povo.

Talvez a muitos pudesse parecer, considerando a vida e a morte de


alguns imperadores romanos, fossem elas exemplos contrários à minha
opinião, dado que viveram exemplarmente e demonstraram grandes
virtudes e, sem embargo disso, perderam o Império ou mesmo foram

www.ebooksbrasil.cjb.net 52
mortos pelos seus que contra eles conspiraram. Querendo, portanto,
responder a estas objeções, falarei das qualidades de alguns
imperadores, mostrando as causas de sua ruína, não discrepantes
daquilo que foi por mim aduzido, ao mesmo tempo, porei em
consideração aqueles fatos que são notáveis para quem lê as ações
daqueles tempos. Considero suficiente citar todos os imperadores que se
sucederam no poder, desde Marco o filósofo até Maximino, os quais
foram Marco, seu filho Cômodo, Pertinax, Juliano, Severo, seu filho
Antonino Caracala, Macrino, Heliogábalo, Alexandre e Maximino.

Deve-se notar inicialmente que, enquanto nos outros principados tem-se


de lutar apenas contra a ambição dos grandes e a insolência do povo, os
imperadores romanos encontravam uma terceira dificuldade, aquela de
terem de suportar a crueldade e a ambição dos soldados. Esta terceira
dificuldade era de tal forma séria que se tornou a causa da ruína de
muitos, pois é difícil satisfazer ao mesmo tempo os soldados e o povo:
este amava a paz e, por isso, estimava os príncipes moderados,
enquanto que os soldados amavam o príncipe de ânimo militar, que
fosse insolente, cruel e rapace, querendo que o mesmo exercesse tais
violências contra as populações para poder ter, assim, duplicado soldo e
expansão à sua rapacidade e crueldade.

Tais fatos fizeram com que aqueles imperadores que, por natureza ou
por engenho, não desfrutavam uma grande reputação de forma a poder
manter freados um e outros, sempre se arruinassem; a maioria deles,
principalmente aqueles que como homens novos chegavam ao
principado, conhecida a dificuldade que resultava desses dois
sentimentos diversos, propendiam para satisfazer aos soldados, pouco
se preocupando com o fato de por tal forma ofender o povo. Esse partido
era necessário: porque, não podendo o príncipe deixar de ser odiado por
alguém, deve primeiro buscar não ser odiado por qualquer classe social;
mas, quando não pode conseguir isto, deve empenhar-se em, por todos
os meios, evitar o ódio daquelas classes que são mais poderosas. Por
isso, aqueles imperadores que, por serem novos, tinham necessidade de
favores extraordinários, aderiam antes aos soldados que ao povo, o que,
não obstante, se lhes tornava útil ou não, conforme soubessem ou não
conservar-se reputados entre eles.

Das razões mencionadas, resultou que Marco, Pertinax e Alexandre,


todos eles de vida modesta, amantes da justiça, inimigos da crueldade,
humanos e benignos, tiveram, a partir de Marco, triste fim. Somente
Marco viveu e morreu honradíssimo, visto ter sucedido no império jure

www.ebooksbrasil.cjb.net 53
hereditário não tendo de agradecê-lo nem aos soldados nem ao povo;
depois, sendo dotado de muitas virtudes que o faziam venerando, teve
sempre, enquanto viveu, uma ordem e outra dentro de seus limites, não
sendo jamais odiado ou desprezado. Mas Pertinax, tornado imperador
contra a vontade dos soldados que, acostumados a viver
licenciosamente sob Cômodo, não puderam suportar aquela vida
honesta a que o imperador queria reduzi-los; por isso, tendo Pertinax
criado ódio contra si e a este ódio acrescido o desprezo por ser já velho,
arruinou-se logo no início de sua administração.

Deve-se notar aqui que o ódio se adquire tanto pelas boas como pelas
más ações: como já disse acima, querendo um príncipe conservar o
Estado, freqüentemente é forçado a não ser bom, pois quando aquele
elemento mais forte, povo, soldados ou grandes, de que julgas necessitar
para manter-te, é corrompido, convém que sigas o seu desejo para
satisfazê-lo; então, as boas obras tornam-se tuas inimigas. Mas
passemos a Alexandre, o qual foi de tanta bondade que, entre outros
louvores que lhe são endereçados, existe este de que, em quatorze anos
que conservou o poder, não foi executada qualquer pessoa sem
julgamento; contudo, sendo considerado efeminado e homem que se
deixava governar pela mãe, tornou-se desprezado, o exército conspirou e
ele foi morto.

Falando agora, por outro lado, das qualidades de Cômodo, Severo,


Antonino Caracala e Maximino, os achareis extremamente cruéis e
rapaces: para satisfazer os soldados, não pouparam nenhuma espécie
de injúria que pudesse ser cometida contra o povo; todos, exceto Severo,
tiveram triste fim. É que Severo possuiu tanto valor que, conservando os
soldados como seus amigos, ainda que o povo fosse por ele oprimido,
pode sempre reinar com felicidade, pois aquelas suas virtudes o
tornavam tão admirável no conceito dos soldados e do povo, que este
ficava por assim dizer atônito e aturdido e aqueles reverentes e
satisfeitos. E, porque as ações do mesmo foram grandes e notáveis num
príncipe novo, desejo mostrar de forma breve quão bem soube usar a
ação da raposa e do leão, naturezas essas que, disse acima, devem ser
imitadas pelos príncipes.

Tendo Severo conhecido a ignávia do Imperador Juliano, persuadiu seu


exército, do qual era capitão na Stiavônia, de que era conveniente ir a
Roma para vingar a morte de Pertinax, assassinado pelos soldados
pretorianos; sob este pretexto, sem demonstrar aspirar o Império,
conduziu o exército contra Roma, chegando à Itália antes que fosse

www.ebooksbrasil.cjb.net 54
conhecida sua partida. Estando em Roma, o Senado, por temor, elegeu-
o imperador, sendo morto Juliano. A seguir, restavam a Severo duas
dificuldades para se assenhorear de todo o Estado: uma na Ásia, onde
Pescênio Nigro, chefe dos exércitos asiáticos, se fizera aclamar
imperador; a outra no Poente, onde estava Albino que, por sua vez,
também aspirava ao Império. Porque julgasse perigoso revelar-se inimigo
de ambos, deliberou atacar Nigro e enganar Albino a quem escreveu
que, tendo sido pelo Senado eleito imperador, desejava com ele
compartilhar aquela dignidade; enviou-lhe o título de César e, por
deliberação do Senado, tornou-o seu colega. Albino aceitou tais coisas
como verdadeiras; mas, depois que venceu e matou Nigro, pacificados
os negócios orientais e retornado a Roma, Severo queixou-se ao Senado
de que Albino, pouco reconhecido dos benefícios dele recebidos, tinha
dolosamente procurado matá-lo, razão pela qual via necessidade de ir
punir sua ingratidão. Depois, foi ao seu encontro na França e lhe tolheu o
governo e a vida.

Quem examinar, portanto, minuciosamente as ações deste homem,


achá-lo-á um ferocíssimo leão e uma astuciosíssima raposa, ve-lo-á
temido e reverenciado por todos e não odiado pelos exércitos, não se
admirando que ele, homem novo, tenha podido deter tanto poder; a sua
alta reputação o defendeu sempre daquele ódio que, pelas suas
rapinagens, o povo contra ele poderia ter concebido. Mas Antonino, seu
filho, foi, também ele, homem que possuía excelentes qualidades que o
faziam maravilhoso no conceito do povo e querido pelos soldados; era
um militar que suportava muito bem quaisquer fadigas, desprezava os
alimentos delicados e abominava toda e qualquer frouxidão, o que o
tornava amado por todos os exércitos. Contudo, sua ferocidade e
crueldade foi tanta e tão inaudita, tendo mesmo, depois de inúmeros
assassínios privados, morto grande parte da população de Roma e toda
aquela de Alexandria, que tornou-se extremamente odioso para todo o
mundo: começou a ser temido também por aqueles que o rodeavam, de
forma que foi morto por um centurião em meio ao seu exército.

A propósito do referido, é de notar-se que tais assassinatos, decorrentes


da deliberação de um espírito obstinado, são impossíveis de evitar por
parte dos príncipes, porque todo aquele que não tema morrer pode
golpeá-los. Todavia, o príncipe pouco deve temer, porque tais mortes são
raras. Deve apenas cuidar de não fazer grave injúria a algum daqueles
de que se serve e que tem ao seu derredor no serviço do principado,
como fez Antonino que havia morto vilmente um irmão daquele centurião
e ainda ameaçava este diariamente, enquanto o conservava na sua

www.ebooksbrasil.cjb.net 55
própria guarda; era resolução temerária e capaz de destruí-lo, como
aconteceu.

Passemos a Cômodo, para quem era de grande facilidade manter o


Império por possuí-lo iure hereditario, uma vez que era filho de Marco;
bastava-lhe seguir as pegadas do pai e teria satisfeito os soldados e o
povo. Mas, sendo de espírito cruel e bestial, para poder usar sua
rapacidade contra o povo, passou a cativar os exércitos e torná-los
licenciosos; por outro lado, não mantendo a sua dignidade, descendo
freqüentemente às arenas para combater com os gladiadores, fazendo
outras coisas extremamente vis e pouco dignas da majestade imperial,
tornou-se desprezível no conceito dos soldados. E, sendo odiado por uns
e desprezado por outros, conspiraram contra ele e foi morto.

Resta-nos narrar as qualidades de Maximino. Este foi homem


belicosíssimo e, estando os exércitos enfastiados da moleza de
Alexandre, de quem falei acima, morto este, elegeram-no para o
governo. Maximino não possuiu o poder por muito tempo, pois duas
coisas tornaram-no odiado e desprezado: uma, o ser de condição
extremamente vil, pois já apascentara ovelhas na Trácia" (fato por todos
bastante conhecido e que lhe causava grande depreciação no conceito
geral); a outra, porque, tendo no início de seu principado retardado em ir
a Roma e tomar posse do trono imperial, dera de si impressão de
extremamente cruel, eis que, por intermédio de seus prefeitos, em Roma
e em muitos pontos do Império, praticara numerosas crueldades. De
modo que, agitado todo o mundo pelo desprezo à vileza de seu sangue e
tomado de ódio pelo medo à sua ferocidade, rebelou-se primeiro a África,
depois o Senado com todo o povo de Roma; toda a Itália contra ele
conspirou. A esse movimento juntou-se seu próprio exército que, fazendo
campanha em Aquiléia e encontrando dificuldade no assédio, aborrecido
de sua crueldade, temendo menos por vê-lo com tantos inimigos, matou-
o.

Não quero falar nem de Heliogábalo, nem de Macrino, nem de Juliano,


os quais, por serem inteiramente desprezíveis, se extinguiram logo;
passarei, pois, à conclusão deste assunto. Assim, digo que os príncipes
de nossos tempos têm a menos, nos seus governos, esta dificuldade de
satisfazer extraordinariamente aos soldados, eis que, não obstante se
deva ter para com os mesmos alguma consideração, isso se resolve
logo, pois nenhum destes príncipes tem um exército que seja inveterado
com os governos e administrações das províncias, como eram os
exércitos do Império Romano. Porém, se então era necessário mais, aos

www.ebooksbrasil.cjb.net 56
soldados do que ao povo, isso decorria de que os soldados podiam mais
que aquele; agora é necessário a todos os príncipes, exceto ao Turco e
ao Sultão satisfazer mais ao povo que aos militares, porque aquele pode
mais que estes.

Faço exceção do Turco em razão de ter ele sempre, em torno de si, doze
mil infantes e quinze mil soldados de cavalaria, dos quais dependem a
segurança e o poderio do seu reino; e é necessário que, postergada
qualquer outra consideração, esse senhor os conserve amigos. E deveis
notar que este Estado do Sultão é diverso de todos os outros
principados: ele é semelhante ao pontificado cristão, a que não se pode
chamar nem principado hereditário nem principado novo, posto que não
são filhos do príncipe velho que herdam e se tornam senhores, mas sim
aquele eleito para o posto pelos que têm autoridade. E, sendo esta uma
instituição antiga, não se pode chamar de principado novo, dado que
nela não existem algumas das dificuldades que se encontram nos novos:
se bem o príncipe seja novo, as instituições desse Estado são velhas e
ordenadas a recebê-lo como se fosse seu senhor hereditário.

Retornemos, porém, ao nosso assunto. Digo que todo aquele que


considere o acima exposto verá o ódio ou o desprezo ter sido a causa da
ruína dos imperadores citados e saberá, ainda, porque procedendo uma
parte deles de um modo e a outra parte por forma contrária, em qualquer
um desses modos de agir alguns deles tiveram fim feliz, enquanto os
outros terminaram infelizes. A Pertinax e Alexandre, por serem príncipes
novos, foi inútil e prejudicial querer imitar Marco que se encontrava no
principado iure hereditario; igualmente, a Caracala, Cômodo e Maximino
foi pernicioso o imitar Severo, por não possuírem tanta virtude que fosse
bastante para que pudessem seguir suas pegadas. Portanto, um príncipe
novo, num principado novo, não pode imitar as ações de Marco e
tampouco é necessário seguir as de Severo; deve tomar de Severo
aquelas qualidades que forem necessárias para fundar seu Estado, e de
Marco aquelas que forem convenientes e gloriosas para conservar um
governo já estabelecido e firme.

www.ebooksbrasil.cjb.net 57
CAPÍTULO XX

SE AS FORTALEZAS E MUITAS OUTRAS COISAS QUE A CADA


DIA SÃO FEITAS PELOS PRÍNCIPES SÃO ÚTEIS OU NÃO

(AN ARCES ET MULTA ALIA QUAE COTIDIE A PRINCIPIBUS FIUNT


UTILIA AN INUTILIA SINT)

Para conservar seguramente o Estado, alguns príncipes desarmaram os


seus súditos, outros mantiveram divididas as terras submetidas, alguns
nutriram inimizades contra si mesmos, outros dedicaram-se a conquistar
o apoio daqueles que lhes eram suspeitos no início de seu governo,
alguns construíram fortalezas, outros as arruinaram e destruíram. E, se
bem não seja possível estabelecer determinado juízo sobre todas essas
coisas sem entrar nas particularidades de cada um dos Estados onde
devesse ser tomada alguma dessas deliberações, falarei de maneira
genérica, compatível com o assunto.

Jamais existiu um príncipe novo que desarmasse os seus súditos, mas,


antes, sempre que os encontrou desarmados, armou-os; isto porque,
armando-os, essas armas passam a ser tuas, tornam fiéis aqueles que te
são suspeitos, os que eram fiéis assim se conservam e de súditos
tornam-se teus partidários. E, porque não se pode armar todos os
súditos, beneficiados aqueles que armas, com os outros podes tratar
mais seguramente; essa diversidade de tratamento que reconhecem em
seu favor os torna obrigados para contigo e os outros desculpar-te-ão,
julgando ser necessário tenham aqueles mais recompensas por estarem
sujeitos a maiores perigos e maiores obrigações. Mas quando os
desarmas, começas a ofendê-los, mostras deles duvidar, ou por vileza ou
por desconfiança uma ou outra destas opiniões concebe ódio contra ti. E,
por não poderes ficar desarmado, torna-se necessário que te voltes à
milícia mercenária, que é daquela qualidade que já foi dita e, quando
fosse boa, não poderia sê-lo por forma a defender-te dos inimigos
poderosos e dos súditos suspeitos.

Porém, como disse, um príncipe novo num principado também novo,


sempre organizou as forças armadas e destes exemplos a história está
repleta. Mas, quando um príncipe conquista um novo Estado que, como
membro, se agrega ao antigo, então é necessário desarmar o
conquistado, salvo aqueles que, nele, foram teus partidários na
conquista; estes mesmos, com o tempo e a oportunidade, devem ser

www.ebooksbrasil.cjb.net 58
tornados amolecidos e efeminados, procedendo-se de modo que as
armas fiquem somente em poder de teus próprios soldados, daqueles
que, no Estado antigo, estavam junto de ti.

Os nossos antepassados e aqueles que eram considerados entendidos


costumavam dizer que Pistóia precisava ser mantida pela divisão do
povo e Pisa pelas fortalezas; e, por isso mesmo, em algumas regiões por
eles conquistadas, mantinham as discórdias entre os partidos para
dominá-las mais facilmente. Isto, naqueles tempos em que a Itália
apresentava certo equilíbrio, devia ser útil. Mas não creio se possa
admitir tal como preceito hodierno, eis que não acredito pudessem as
divisões, alguma vez, acarretar qualquer benefício; ao contrário, quando
o inimigo se avizinha, as cidades divididas, necessariamente, perdem-se
logo, eis que sempre a parte mais fraca aderirá às forças externas e a
outra não poderá resistir.

Os venezianos, levados pelas razões acima mencionadas segundo


acredito, incentivavam as facções guelfas e gibelinas nas cidades a eles
submetidas; e, se bem nunca as deixassem chegar à luta, alimentavam
entre elas essas divergências para que, ocupados os cidadãos naquelas
suas diferenças, não se unissem contra eles. Isso, como se viu, não lhes
aproveitou porque, derrotados em Vailá, logo algumas daquelas cidades
passaram a se insurgir e lhes tomaram todo o Estado. Tais atitudes
revelam fraqueza do príncipe, eis que em um principado poderoso jamais
serão permitidas semelhantes divisões, úteis somente em tempo de paz,
eis que por elas pode-se mais facilmente manejar os súditos; mas,
sobrevindo a guerra, tal sistema demonstra sua falácia.

Sem dúvida alguma, os príncipes se tornam grandes quando superam as


dificuldades e as oposições que lhes são antepostas; porém a fortuna,
principalmente quando quer tornar grande um príncipe novo, que tem
mais necessidade de adquirir reputação do que um hereditário, o faz
nascer dos inimigos e determina que lhe sejam opostos embaraços, a fim
de que ele tenha oportunidade de superá-los e, assim, possa subir mais
alto pela escada que os inimigos lhe oferecem, Por isso, muitos pensam
que um príncipe hábil deve, quando tenha ocasião, incentivar com
astúcia alguma inimizade para, eliminada esta, continuar a ascensão de
sua grandeza.

Os príncipes, particularmente aqueles que são novos, têm encontrado


mais lealdade e maior utilidade nos homens que no início de seu governo
foram considerados suspeitos, do que nos que inicialmente eram seus

www.ebooksbrasil.cjb.net 59
confidentes. Pandolfo Petrucci, príncipe de Siena, dirigia o seu Estado
mais com aqueles que lhe foram suspeitos do que com os que não o
foram. Mas deste assunto não é possível falar em caráter genérico, pois
o mesmo varia segundo cada caso. Somente direi isto: os homens que
no início de um principado haviam sido inimigos, sendo de condição que
para manter-se precisam de apoio, o príncipe poderá sempre com
grande facilidade vir a conquistá-los; e eles tanto mais são forçados a
servi-lo com lealdade, quanto reconheçam ser-lhes necessário cancelar
com obras aquela má opinião que, a seu respeito, se fazia. Assim, o
príncipe deles obtém sempre maior utilidade do que daqueles que,
servindo-o com excessiva segurança, descuram de seus interesses.

Já que o assunto torna oportuno, não quero deixar de recordar aos


príncipes que tomaram um Estado novo pelo favor de alguns dos
habitantes do mesmo deverem considerar bem qual a razão que
determinou assim agissem os que o favoreceram; se a mesma não é
afeição natural em relação a eles mas sim, se o apoio decorreu do fato
dos mesmos não estarem satisfeitos com o Estado anterior, só com
fadiga e grande dificuldade se poderá conservá-los amigos, dado que é
quase impossível possam vir a ser contentados. E, considerando bem os
exemplos que se extraem das coisas antigas e modernas, em razão
disso, ver-se-á ser muito mais fácil ao príncipe tornar amigos aqueles
homens que se contentavam com o regime antigo e, portanto, eram seus
inimigos, que aqueles que, por descontentes, fizeram-se seus amigos e o
favoreceram na conquista.

Tem sido costume dos príncipes, para poder manter seu Estado mais
seguramente, edificar fortalezas que sejam a brida e o freio postos aos
que desejassem enfrentá-los, bem como um refúgio seguro contra um
ataque de surpresa. Eu louvo esse proceder, porque usado desde
tempos remotos; não obstante messer Nicoló Vitelli, nos tempos atuais,
destruiu duas fortalezas na Cidade de Castelo para, assim, conservar o
Estado. Guido Ubaldo, Duque de Urbino, tendo retornado ao seu domínio
de que havia sido expulso por César Bórgia, destruiu desde os alicerces
todas as fortalezas daquela província, por entender que sem aquelas
seria mais difícil perder novamente seu Estado. Os Bentivoglio,
retornados a Bolonha, usaram igual expediente. Portanto, as fortalezas
são úteis ou não, segundo os tempos; se te fazem bem por um lado,
prejudicam-te por outro. Pode-se explicar esta afirmativa pela forma a
seguir exposta.

www.ebooksbrasil.cjb.net 60
O príncipe que tiver mais temor de seu povo do que dos estrangeiros,
deve construir as fortalezas; mas aquele que sentir mais medo dos
estrangeiros que de seu povo, deve abandoná-las. O castelo de Milão,
edificado por Francisco Sforza, fez e fará mais guerra à casa dos Sforza
do que qualquer outra desordem naquele Estado. Por isso, a melhor
fortaleza que possa existir é o não ser odiado pelo povo: mesmo que
tenham fortificações elas de nada valem se o povo te odeia, eis que a
este, quando tome das armas, nunca faltam estrangeiros que o
socorram. Nos nossos tempos vê-se que as fortalezas não têm sido
proveitosas a príncipe algum, senão à Condessa de Forli quando foi
morto o Conde Girolamo, seu esposo, eis que a mesma, refugiando-se
numa fortificação, pode fugir ao ímpeto popular, esperar pelo socorro de
Milão e recuperar o Estado; ademais, as circunstâncias eram tais que o
estrangeiro não podia socorrer o povo. Depois, também para ela pouco
valeram as fortalezas quando César Bórgia a atacou e o povo, seu
inimigo, aliou-se ao estrangeiro. Portanto, teria sido mais seguro para
ela, quer então, quer antes, não ser odiada pelo povo do que possuir
fortalezas. Consideradas assim todas estas questões, louvarei tanto os
que fizerem como os que não fizerem as fortalezas e censurarei aquele
que, fiando-se nas fortificações, venha a subestimar o fato de ser odiado
pelo povo.

CAPÍTULO XXI

O QUE CONVÉM A UM PRÍNCIPE PARA SER ESTIMADO

(QUOD PRINCIPEM DECEAT UT EGREGIUS HABEATUR)

Nada faz estimar tanto um príncipe como as grandes empresas e o dar


de si raros exemplos. Temos, nos nossos tempos, Fernando de Aragão,
atual rei de Espanha. A este pode-se chamar, quase, príncipe novo,
porque de um rei fraco tornou-se, por fama e por glória, o primeiro rei dos
cristãos; e, se considerardes suas ações, as achareis todas grandiosas e
algumas mesmo extraordinárias. No começo de seu reinado, assaltou
Granada e esse empreendimento foi o fundamento de seu Estado.
Primeiro ele o fez isoladamente, sem luta com outros Estados e sem
receio de ser impedido de tal; manteve ocupadas nesse empreendimento
as atenções dos barões de Castela que, pensando na guerra, não

www.ebooksbrasil.cjb.net 61
cogitavam de inovações e ele, por esse meio, adquiria reputação e
autoridade sobre os mesmos sem que de tal se apercebessem. Pode
manter exércitos com dinheiro da Igreja e do povo e, com tão longa
campanha, estabeleceu a organização de sua milícia que, depois, tanto o
honrou. Além disto, para poder encetar maiores empreendimentos,
servindo-se sempre da religião, dedicou-se a uma piedosa crueldade
expulsando e livrando seu reino dos marranos, ação de que não pode
haver exemplo mais miserável nem mais raro. Sob essa mesma capa,
atacou a África, fez a campanha da Itália e, ultimamente, assaltou a
França; assim, sempre fez e urdiu grandes empreendimentos, os quais
em todo o tempo mantiveram suspensos e admirados os ânimos dos
súditos, ocupados em esperar o êxito dessas guerras. Essas suas ações
nasceram umas das outras, pelo que, entre elas, não houve tempo para
que os homens pudessem agir contra ele.

Muito apraz a um príncipe dar de si exemplos raros na forma de


comportar-se com os súditos, semelhantes àqueles que são narrados de
messer Barnabò de Milão, quando surge a oportunidade de alguém ter
realizado alguma coisa extraordinária de bem ou de mal na vida civil,
obtendo meio de premiá-lo ou puni-lo por forma que seja bastante
comentada, Acima de tudo, um príncipe deve empenhar-se em dar de si,
com cada ação, conceito de grande homem e de inteligência
extraordinária.

Um príncipe é estimado, ainda, quando verdadeiro amigo e vero inimigo,


isto é, quando sem qualquer consideração se revela em favor de um,
contra outro. Esta atitude é sempre mais útil do que ficar neutro, eis que,
se dois poderosos vizinhos teus entrarem em luta, ou são de qualidade
que vencendo um deles tenhas a temer o vencedor, ou não. Em qualquer
um destes dois casos será sempre mais útil o definir-te e fazer guerra
digna, porque no primeiro caso se não te definires serás sempre presa
do que vencer, com prazer e satisfação do que foi vencido, e não terás
razão ou coisa alguma que te defenda nem quem te receba. O vencedor
não quer amigos suspeitos ou que não o ajudem nas adversidades;
quem perde não te recebe por não teres querido correr a sua sorte de
armas em punho.

Antíoco invadiu a Grécia a chamado dos etólios para expulsar os


romanos. Enviou embaixadores aos aqueus, amigos dos romanos, para
concitá-los a ficarem neutros, enquanto os romanos os persuadiam a
tomar armas ao seu lado. Esta matéria veio à deliberação do congresso
dos aqueus, onde o legado de Antíoco os induzia à neutralidade; a isto, o

www.ebooksbrasil.cjb.net 62
representante romano respondeu: Quod autem isti dicunt non
interponendi vos bello, nihil magis alienum rebus vestris est; sine gratia,
sine dignitate, praemium victoris eritis.

Sempre acontecerá que aquele que não é amigo procurará tua


neutralidade e aquele que é amigo pedirá que te definas com as armas.
Os príncipes irresolutos, para fugir aos perigos presentes, seguem na
maioria das vezes o caminho da neutralidade e, geralmente, caem em
ruína. Mas, quando o príncipe se define galhardamente em favor de uma
das partes, se aquele a quem aderes vence, mesmo que seja tão
poderoso que venhas a ficar á sua discrição, ele tem obrigação para
contigo e está ligado a ti pela amizade; e os homens nunca são tão
desonestos que, com tamanha prova de ingratidão, possas vir a ser
oprimido.

Além disso, as vitórias nunca são tão brilhantes que o vencedor não deva
ter qualquer consideração, principalmente para com o que é justo. Mas,
se aquele a quem aderes perder, serás amparado por ele e, enquanto
puder, ajudar-te-á e ficarás associado a uma fortuna que poderá
ressurgir. No segundo caso, quando aqueles que lutam são de classe
que não devas temer o vencedor, ainda maior prudência é aderir, pois
causas a ruína de um com a ajuda de quem deveria salvá-lo, se fosse
sábio; vencendo, fica à tua mercê, e é impossível não vença com o teu
auxílio.

Note-se aqui que um príncipe deve ter a cautela de jamais fazer aliança
com um mais poderoso que ele para atacar os outros, senão quando a
necessidade o compelir, como se disse acima, porque, vencendo, torna-
se seu prisioneiro; e os príncipes devem fugir o quanto possam de ficar à
discrição dos outros. Os venezianos aliaram-se à França contra o duque
de Milão, podendo ter evitado essa aliança de que resultou a sua ruína.
Mas, quando não se pode evitá-la (como aconteceu aos florentinos
quando o Papa e a Espanha levaram seus exércitos a atacar a
Lombardia), então deverá o príncipe aderir pelas razões acima expostas.
Nem julgue algum Estado poder adotar sempre partidos seguros,
devendo antes pensar ser obrigado a tomar, freqüentemente, partidos
duvidosos; vê-se na ordem das coisas que nunca se procura fugir a um
inconveniente sem incorrer em outro e a prudência consiste em saber
conhecer a natureza desses inconvenientes e tomar como bom o menos
prejudicial.

www.ebooksbrasil.cjb.net 63
Deve, ainda, um príncipe mostrar-se amante das virtudes, dando
oportunidade aos homens virtuosos e honrando os melhores numa arte.
Ao mesmo tempo, deve animar os seus cidadãos a exercer
pacificamente as suas atividades no comércio, na agricultura e em
qualquer outra ocupação, de forma que o agricultor não tema ornar as
suas propriedades por receio de que as mesmas lhe sejam tomadas,
enquanto o comerciante não deixe de exercer o seu comércio por medo
das taxas; deve, além disso, instituir prêmios para os que quiserem
realizar tais coisas e os que pensarem em por qualquer forma
engrandecer a sua cidade ou o seu Estado. Ademais, deve, nas épocas
convenientes do ano, distrair o povo com festas e espetáculos. E, porque
toda cidade está dividida em corporações de artes ou grupos sociais,
deve cuidar dessas corporações e desses grupos, reunir-se com eles
algumas vezes, dar de si prova de humanidade e munificência, mantendo
sempre firme, não obstante, a majestade de sua dignidade, eis que esta
não deve faltar em coisa alguma.

CAPÍTULO XXII

DOS SECRETÁRIOS QUE OS PRÍNCIPES TÊM JUNTO DE SI

(DE HIS QUOS A SECRETIS PRINCIPES HABENT)

Não é de pouca importância para um príncipe a escolha dos ministros, os


quais são bons ou não, segundo a prudência daquele. E a primeira
conjetura que se faz da inteligência de um senhor, resulta da observação
dos homens que o cercam; quando são capazes e fiéis, sempre se pode
reputá-lo sábio, porque soube reconhecê-los competentes e conservá-
los. Mas, quando não são assim, sempre se pode fazer mau juízo do
príncipe, porque o primeiro erro por ele cometido reside nessa escolha,
Não houve ninguém que, conhecendo messer Antônio de Venafro como
ministro de Pandolfo Petruci, príncipe de Siena, deixasse de julgar este
senhor como extremamente valoroso pelo fato de ter aquele por ministro.
E, porque são de três espécies as inteligências, uma que entende as
coisas por si, a outra que discerne o que os outros entendem e a terceira
que não entende nem por si nem por intermédio dos outros, a primeira
excelente, a segunda muito boa e a terceira inútil, estavam todos acordes
que se Pandolfo não se classificava no primeiro grau, estava,

www.ebooksbrasil.cjb.net 64
necessariamente, no segundo; porque, toda vez que alguém tem a
capacidade de conhecer o bem e o mal que uma pessoa faça ou diga,
mesmo que por si não tenha capacidade para solucionar os problemas,
discerne as más e as boas obras do ministro, exalta estas e corrige
aquelas, e o ministro não pode esperar enganá-lo, pelo que se conserva
bom.

Mas, para que um príncipe possa conhecer o ministro, existe um método


que não falha. Quando vires o ministro pensar mais em si do que em ti, e
que em todas as ações procura o seu interesse próprio, podes concluir
que este jamais será um bom ministro e nele nunca poderás confiar;
aquele que tem o Estado de outrem em suas mãos não deve pensar
nunca em si, mas sim e sempre no príncipe, não lhe recordando nunca
coisa que não seja da sua competência. Por outro lado, o príncipe, para
conservá-lo bom ministro, deve pensar nele, honrando-o, fazendo-o rico,
obrigando-se-lhe, fazendo-o participar das honrarias e cargos, a fim de
que veja que não pode ficar sem sua proteção, e que as muitas honras
não o façam desejar mais honras, as muitas riquezas não o façam
desejar maiores riquezas e os muitos cargos o façam temer as
mudanças. Quando, pois, os ministros, e os príncipes com relação
àqueles, estão assim preparados, podem confiar um no outro; quando
não for assim, o fim será sempre danoso ou para um ou para o outro.

CAPÍTULO XXIII

COMO SE AFASTAM OS ADULADORES

(QUOMODO ADULATORES SINT FUGIENDI)

Não quero deixar de tratar de um ponto importante, de um erro do qual


os príncipes só com muita dificuldade se defendem, se não são de
extrema prudência ou se não fazem boa escolha. Refiro-me aos
aduladores, dos quais as cortes estão repletas, dado que os homens se
comprazem tanto nas suas coisas próprias e de tal modo se iludem, que
com dificuldade se defendem desta peste e, querendo defender-se, há o
perigo de tornar-se menosprezado. Não há outro meio de guardar-se da
adulação, a não ser fazendo com que os homens entendam que não te

www.ebooksbrasil.cjb.net 65
ofendem dizendo a verdade; mas, quando todos podem dizer-te a
verdade, passam a faltar-te com a reverência.

Portanto, um príncipe prudente deve proceder por uma terceira maneira,


escolhendo em seu Estado homens sábios e somente a eles deve dar a
liberdade de falar-lhe a verdade daquilo que ele pergunte e nada mais.
Deve consultá-los sobre todos os assuntos e ouvir as suas opiniões;
depois, de liberar por si, a seu modo, e, com estes conselhos e com cada
um deles, portar-se de forma que todos compreendam que quanto mais
livremente falarem, tanto mais facilmente serão aceitas suas opiniões.
Fora aqueles, não querer ouvir ninguém, seguir a deliberação adotada e
ser obstinado nas suas decisões. Quem procede por outra forma, ou é
precipitado pelos aduladores, ou muda freqüentemente de opinião pela
variedade dos pareceres; daí resulta a sua desestima.

Quero, a este propósito, aduzir um exemplo atual. Pe. Lucas, homem do


atual Imperador Maximiliano, falando de Sua Majestade, disse que ele
não se aconselhava com ninguém e não fazia nada a seu modo; isso
resultava de ter costume contrário ao acima exposto. Porque o Imperador
é homem discreto, não comunica a ninguém os seus desígnios, não pede
parecer; mas, como ao serem postos em prática começam a ser
conhecidos e descobertos, começam, a ser contrariados por aqueles que
o cercam, e ele, como é homem de opinião fraca, os desfaz. Dai resulta
que as coisas que faz num dia são destruídas no outro e que não se
entenda nunca o que ele quer ou o que deseja fazer, não podendo
pessoa alguma basear-se em suas deliberações.

Um príncipe, portanto, deve aconselhar-se sempre, mas quando ele


queira e não quando os outros desejem; antes, deve tolher a todos o
desejo de aconselhar-lhe alguma coisa sem que ele venha a pedir. Mas
deve ser grande perguntador e, depois, acerca das coisas perguntadas,
paciente ouvinte da verdade; antes, notando que alguém por algum
respeito não lhe diga a verdade, deve mostrar aborrecimento. Há muitos
que entendem que o príncipe que dá de si opinião de prudente, seja
assim considerado não pela sua natureza, mas pelos bons conselhos
que o rodeiam, porém, sem dúvida alguma, estão enganados, eis que
esta é uma regra geral que nunca falha: um príncipe que não seja sábio
por si mesmo, não pode ser bem aconselhado, a menos que por acaso
confiasse em um só que de todo o governasse e fosse homem de
extrema prudência. Este caso poderia bem acontecer, mas duraria
pouco, porque aquele que efetivamente governasse, em pouco tempo lhe
tomaria o Estado; mas, aconselhando-se com mais de um, um príncipe

www.ebooksbrasil.cjb.net 66
que não seja sábio, não terá nunca os conselhos uniformes e não saberá
por si mesmo harmonizá-los. Cada conselheiro pensará por si e ele não
saberá corrigi-los nem inteirar-se do assunto. E não é possível encontrar
conselheiros diferentes, porque os homens sempre serão maus se por
uma necessidade não forem tornados bons. Consequentemente se
conclui que os bons conselhos, venham de onde vierem, devem nascer
da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe resultar dos
bons conselhos.

CAPÍTULO XXIV

POR QUE OS PRÍNCIPES DA ITÁLIA PERDERAM SEUS


ESTADOS

(CUR ITALIAE PRINCIPES REGNUM AMISERUNT)

As coisas já referidas, observadas prudentemente, fazem um príncipe


novo parecer antigo e logo o tornam mais seguro e mais firme no Estado
do que se aí fosse um príncipe antigo. Porque um príncipe novo é muito
mais observado nas suas ações do que um hereditário; e, quando estas
são reconhecidas como virtuosas, atraem mais fortemente os homens e
os ligam a si muito mais que a tradição do sangue. Porque os homens
são levados muito mais pelas coisas presentes do que pelas passadas e,
quando nas presentes encontram o bem, ficam satisfeitos e nada mais
procuram. Antes, assumirão toda sua defesa, desde que não falte à
palavra nas outras coisas. Assim, terá a dupla glória de ter dado início a
um principado novo e de tê-lo ornado e fortalecido com boas leis, boas
armas e bons exemplos; por outro lado, aquele que, tendo nascido
príncipe, veio a perder o Estado por sua pouca prudência, terá duplicada
a sua vergonha.

E, se se consideraram aqueles senhores que, na Itália, perderam seus


Estados nos nossos tempos, como o rei de Nápoles, o duque de Milão e
outros, achar-se-á neles, primeiro um defeito comum quanto às armas,
pelas razões que já foram expostas; depois, ver-se-á que alguns deles,
ou tiveram a inimizade do povo, ou, tendo o povo por amigo, não
souberam garantir-se contra os grandes, eis que sem estes defeitos não
se perdem os Estados que tenham tanta força que possam levar a
campo um exército. Felipe da Macedônia, não o pai de Alexandre, mas o
que foi vencido por Tito Quinto, tinha um Estado não muito extenso, em

www.ebooksbrasil.cjb.net 67
comparação com a grandeza dos romanos e da Grécia que o assaltaram;
não obstante, por ser homem de espírito militar, que sabia ter o povo
como amigo e garantir-se contra os grandes, sustentou por muitos anos
a guerra contra aqueles; e se, afinal, perdeu o domínio de algumas
cidades, restou-lhe todavia o reino.

Portanto, estes nossos príncipes que tinham permanecido muitos anos


em seus principados para depois perdê-los, não podem acusar a sorte,
mas sim a sua própria ignávia, pois, não tendo nunca, nos tempos
pacíficos, pensado que estes poderiam mudar (o que é defeito comum
dos homens na bonança não se preocupar com a tempestade) quando
chegaram os tempos adversos preocuparam-se em fugir e não em
defender-se, esperando que as populações, cansadas da insolência dos
vencedores, os chamassem de volta. Esse partido é bom quando os
outros falham, mas é muito mau o ter abandonado os outros remédios
por esse, pois não irás cair apenas por acreditar encontrar quem te
levante; isso não acontece ou, se acontecer, não será para tua
segurança, dado que aquela defesa torna-se vil se não depender de ti.
As defesas somente são boas, certas e duradouras quando dependem
de ti próprio e da tua virtude.

CAPÍTULO XXV

DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE


QUE MODO SE LHE DEVA RESISTIR

(QUANTUM FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT, ET QUOMODO


ILLI SIT OCCURREN DUM)

Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do
mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os
homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma
alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas,
mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita
nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e
que se observa todos os dias, independente de qualquer conjetura
humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor
dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto,

www.ebooksbrasil.cjb.net 68
julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas
ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase.
Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam,
alagam as planícies, destróem as árvores e os edifícios, carregam terra
de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu
ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra,
isso não impedia que os homens, quando a época era de calma,
tomassem providências com anteparos e diques, de modo que,
crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto
não fosse tão desenfreado nem tão danoso.

Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio


onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em
direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques e anteparos
para contê-la, E, se considerardes a Itália, que é a sede destas variações
e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma região sem diques e
sem qualquer anteparo, eis que se protegida por convenientes forças
militares, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esse
transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez, ou não
teria ocorrido. Penso que isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer
acerca da oposição que se pode antepor à sorte em geral.

Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por que se vê um príncipe


hoje em franco e feliz progresso e amanhã em ruína, sem que tenha
mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso resulta, segundo creio,
primeiro das razões que foram longamente expostas mais atrás, isto é,
que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruina-se segundo as
variações desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que acomode o seu modo
de proceder com a natureza dos tempos, da mesma forma que penso
seja infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em choque com o
momento que atravessa.

Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que os conduz ao fim que
cada um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas, procedem por formas
diversas: um com cautela, o outro com ímpeto, um com violência, o outro
com astúcia, um com paciência e o outro por forma contrária; e cada um,
por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo.

Vê-se, ainda, de dois indivíduos cautos, um alcançar o seu objetivo, o


outro não, e da mesma maneira, dois deles alcançarem igualmente fim
feliz com duas tendências diversas, sendo, por exemplo, um cauteloso e
o outro impetuoso; isso resulta apenas da natureza dos tempos que se

www.ebooksbrasil.cjb.net 69
adaptam ou não ao proceder dos mesmos. Daí decorre aquilo que eu
disse, isto é, que dois indivíduos agindo por formas diversas podem
alcançar o mesmo efeito, ao passo que de dois que operem igualmente,
um alcança o seu fim e o outro não.

Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém


se orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se
apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a
felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se
arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder. Nem é possível
encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja
porque não pode se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja
ainda porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um
caminho, não se consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o
homem cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe
fazê-lo e, em conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse de
natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não
se modificaria.

O Papa Júlio II, em todas as suas coisas procedeu impetuosamente e


encontrou tanto os tempos como as circunstâncias coincidentes com
aquele seu modo de proceder, pelo que sempre alcançou feliz êxito.
Considerai a primeira campanha que encetou contra Bolonha, sendo
ainda vivo messer Giovanni Bentivoglio. Os venezianos estavam
descontentes; o rei da Espanha, nas mesmas condições; com a França
ainda discutia tal empresa. Isso não obstante, com ferocidade e ímpeto,
deu início pessoalmente àquela expedição que, uma vez iniciada, fez
com que ficassem suspensos e parados tanto a Espanha como os
venezianos, estes por medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o
reino de Nápoles, de outra parte, arrastou consigo o rei de França
porque, vendo-o esse rei em campanha e desejando torná-lo seu amigo
para aviltar os venezianos, julgou não poder negar-lhe a sua gente sem
injuriá-lo por forma manifesta.

Realizou Júlio, portanto, com seu movimento impetuoso, aquilo que


jamais outro pontífice, com toda a humana prudência, teria feito, pois se
ele, para partir de Roma, tivesse esperado estar com todos os planos
estabelecidos e todas as coisas assentadas, como qualquer outro Papa
teria feito, nunca teria obtido êxito, eis que o rei de França teria
apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam incutido mil receios.
Desejo omitir as outras suas ações, todas semelhantes e todas com feliz
êxito, sendo que a brevidade da vida não o deixou experimentar o

www.ebooksbrasil.cjb.net 70
contrário, dado que se tivessem sobrevindo tempos em que se tornasse
necessário agir com cautelas, surgiria a sua ruína, pois jamais ele teria
desviado daquele modo de proceder a que a natureza o inclinava.

Concluo, pois, que variando a sorte e permanecendo os homens


obstinados nos seus modos de agir, serão felizes enquanto aquela e
estes sejam concordes e infelizes quando surgir a discordância.
Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a
fortuna é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo
dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por estes
do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como
mulher, sempre é amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais
afoitos e com maior audácia a dominam.

CAPÍTULO XXVI

EXORTAÇÃO PARA PROCURAR TOMAR A ITÁLIA E LIBERTÁ-


LA DAS MÃOS DOS BÁRBAROS

(EXHORTATIO AD CAPESSENDAM ITALIAM IN LIBERTATEMQUE A


BARBARIS VINDICANDAM)

Consideradas pois, todas as coisas já expostas, pensando comigo


mesmo se no momento presente, na Itália, corriam tempos capazes de
honrar um príncipe novo e se havia matéria que assegurasse a alguém,
prudente e valoroso, a oportunidade de nela introduzir nova organização
que a ele desse honra e fizesse bem a todo o povo, quer me parecer
concorrerem tantas circunstâncias favoráveis a um príncipe novo que
não sei qual o tempo que poderia ser mais adequado para isto. E se,
como já disse, para se conhecer a virtude de Moisés foi necessário que o
povo de Israel estivesse escravizado no Egito, para conhecer a grandeza
do ânimo de Ciro, que os persas fossem oprimidos pelos medas, e o
valor de Teseu, que os atenienses estivessem dispersos, também no
presente, querendo conhecer a virtude de um espírito italiano, seria
necessário que a Itália se reduzisse ao ponto em que se encontra no
momento, que ela fosse mais escravizada do que os hebreus, mais
oprimida do que os persas, mais desunida do que os atenienses, sem

www.ebooksbrasil.cjb.net 71
chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse
suportado ruína de toda sorte.

Se bem tenha surgido, até aqui, certo vislumbre de esperança em


relação a algum príncipe, parecendo poder ser julgado como dirigido por
Deus para redenção da Itália, contudo foi visto depois como, no apogeu
de suas ações, foi abandonado pela sorte. De modo que, tornada sem
vida, espera ela por aquele que cure as suas feridas e ponha fim aos
saques da Lombardia, às mortandades no Reino de Nápoles e na
Toscana, e a cure daquelas suas chagas já de há muito enfistuladas. Vê-
se como ela implora a Deus lhe envie alguém que a redima dessas
crueldades e insolências bárbaras. Vê-se, ainda, toda ela pronta e
disposta a seguir uma bandeira, desde que haja quem a empunhe.

Nem se vê no presente em quem possa ela confiar a não ser na vossa


ilustre casa, a qual, com a sua fortuna e virtude, favorecida por Deus e
pela Igreja, da qual é agora príncipe, poderá tornar-se chefe desta
redenção. Isso não será muito difícil, se procurardes seguir as ações e a
vida dos acima indicados. E, se bem aqueles homens sejam raros e
maravilhosos, sem dúvida foram homens, todos eles tiveram menor
ocasião que a presente: porque os empreendimentos dos mesmos não
foram mais justos nem mais fáceis do que este, nem foi Deus mais amigo
deles do que de vós. É de grande justiça o que digo: iustum enim est
bellum quibus necessarium, et pia arma ubi nulla nisi in armis spes est.
Aqui há uma grande disposição, e onde esta existe não pode haver
grande dificuldade, desde que se imite o modo de agir daqueles que
apontei como exemplo. Além disso, aqui se vêem acontecimentos
extraordinários emanados de Deus: o mar se abriu, uma nuvem revelou o
caminho, a pedra verteu água, aqui choveu o maná; todas as coisas
concorreram para a vossa grandeza. O restante deve ser feito por vós.
Deus não quer fazer tudo, para não nos tolher o livre arbítrio e parte
daquela glória que compete a nós. E não é de admirar se algum dos já
citados italianos não tenha podido fazer aquilo que se pode esperar faça
a vossa ilustre casa, e se, em tantas revoluções da Itália e em tantas
manobras de guerra, parecer sempre que nesta a virtude militar esteja
extinta. Isso resulta de que as suas antigas instituições não eram boas e
não houve quem soubesse encontrar outras; e nenhuma coisa faz tanta
honra a um príncipe novo, quanto as novas leis e os novos regulamentos
por ele elaborados. Estes, quando são bem fundados e em si encerrem
grandeza, tornam o príncipe digno de reverência e admiração; na Itália
não faltam motivos para introduzir-se qualquer reforma. Aqui existe
grande valor no povo, enquanto ele falta nos chefes. Observei nos duelos

www.ebooksbrasil.cjb.net 72
e nos combates individuais o quanto os italianos são superiores na força,
na destreza ou no engenho. Mas, quando se passa para os exércitos,
não comparecem. E tudo resulta da fraqueza dos chefes, porque aqueles
que sabem não são obedecidos, e todos julgam saber, não tendo surgido
até agora alguém que tenha sabido se sobressair pela virtude ou pela
fortuna de forma a que os outros cedam. Daí decorre que, em tanto
tempo, em tantas guerras feitas nos últimos vinte anos, sempre que se
formou um exército inteiramente italiano o mesmo deu mau exemplo, do
que dão prova Taro, depois Alexandria, Cápua, Gênova, Vailá, Bolonha,
Mestri.

Querendo, pois, a vossa ilustre casa seguir aqueles homens excelentes e


redimir suas províncias, é necessário, antes de toda e qualquer outra
coisa, como verdadeiro fundamento de qualquer empreendimento,
prover-se de tropas próprias, pois não se pode conseguir outras mais
fiéis e mais seguras, nem melhores soldados. E, ainda que cada um
deles seja bom, todos juntos tornar-se-ão ainda melhores, quando se
virem comandados pelo seu príncipe e por este honrados e mantidos. É
necessário, portanto, preparar esses exércitos, para poder, com a virtude
itálica, defender-se dos estrangeiros.

E, se bem as infantarias suíças e espanholas sejam consideradas


terríveis, em ambas existem defeitos, pelo que um terceiro tipo de
infantaria poderia não somente opor-se-lhes, mas confiar em superá-las.
Porque os espanhóis não podem enfrentar a cavalaria e os suíços
deverão ter medo dos infantes, quando no combate os encontrarem
obstinados como eles. Já se viu, e vê-se ainda, os espanhóis não
poderem enfrentar uma cavalaria francesa e os suíços serem derrotados
por uma infantaria espanhola. E, se bem deste último caso não se tenha
tido plena prova, contudo viu-se uma amostra na campanha de Ravena,
quando as infantarias espanholas se defrontaram com os batalhões
alemães, que têm a mesma organização dos suíços; aí os espanhóis,
com a agilidade do corpo e auxílio dos seus pequenos escudos, haviam-
se colocado debaixo dos chuços alemães e estavam certos de feri-los e
matá-los sem que os mesmos tal pudessem impedir; realmente, não
fosse a cavalaria que os atacou, teriam morto todos os inimigos. Pode-
se, pois, conhecido o defeito de uma e de outra dessas infantarias,
organizar uma diferente, que resista à cavalaria e não tenha medo dos
infantes, o que dará qualidade superior aos exércitos e imporá a
mudança de táticas. Estas são daquelas coisas que, reformadas, dão
reputação e grandeza a um príncipe novo.

www.ebooksbrasil.cjb.net 73
Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália
conheça, depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir
com que amor ele seria recebido em todas aquelas províncias que têm
sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com
que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se
lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe
oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos repugna este
bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência
com aquele ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as
causas justas, a fim de que, sob sua insígnia, esta pátria seja nobilitada e
sob seus auspícios se verifique aquele dito de Petrarca:

Virtude contra Furor


Tomará Armas; e Faça o Combater Curto
Que o Antigo Valor
Nos Itálicos Corações Ainda não é Morto.

CARTA DE MACHIAVELLI A FRANCESCO VETTORI, EM ROMA

(RELATIVA À OBRA IL PRÍNCIPE)

Magnifico oratori Florentino Francisco Vectori apud Summum Pontificem


et benefactori suo.

Romae,

Magnífico embaixador. Tardias jamais foram as graças divinas. Digo isto


porque me parecia não ter perdido mas sim estar esmaecida a vossa
graça, tendo estado vós muito tempo sem escrever-me; estava em
dúvida de onde pudesse vir a razão de tal. E dava pouca importância a
todas as causas que vinham à minha mente, salvo quando pensava que
tivésseis retraído de escrever-me, porque vos tivesse sido escrito que eu
não fosse bom guardião de vossas cartas; e eu sabia que, afora Filippo e
Pagolo, outros, de minha parte, não as tinham visto. Readquiri essa
graça pela vossa última de 23 do mês passado, pelo que fico

www.ebooksbrasil.cjb.net 74
contentíssimo ao ver quão ordenada e calmamente exerceis essa função
pública, e eu vos concito a continuar assim, porque quem deixa as suas
comodidades pelas comodidades dos outros, perde as suas e destes não
recebe gratidão. Desde que a fortuna quer dispor todas as coisas, é
preciso deixá-la fazer, ficar quieto e não lhe criar embaraço, esperando
que o tempo lhe permita fazer alguma coisa pelos homens; então, será
bem suportardes maiores fadigas, zelar melhor das coisas, e a mim
convirá partir da vilas e dizer: eis-me aqui. Não posso, portanto,
desejando render-vos iguais graças, dizer nesta minha carta outra coisa
que não aquilo que seja a minha vida, e se julgardes tal que valha trocá-
la com a vossa, ficarei contente em mudá-la.

Aqui estou, na vila; depois que ocorreram aqueles meus últimos casos,
não estive, somando todos, vinte dias em Florença. Até aqui tenho
apanhado tordos à mão. Levantava-me antes do amanhecer, preparava
a armadilha, ia-me além com um feixe de gaiolas ao ombro, que até
parecia o Getas quando o mesmo voltava do porto com os livros de
Anfitrião; apanhava no mínimo dois e no máximo seis tordos. E, assim,
passei todo o mês de setembro. Depois esse passatempo, ainda que
desprezível e estranho, veio a faltar com desgosto meu. Dir-vos-ei qual a
minha vida agora. Levanto-me de manhã com o sol e vou a um meu
bosque que mandei cortar, onde fico duas horas a examinar o trabalho
do dia anterior e a passar o tempo com aqueles cortadores que estão
sempre às voltas com algum aborrecimento entre si ou com os vizinhos.
Acerca deste bosque eu teria a dizer-vos mil belas coisas que me
aconteceram, bem como de Frosino de Panzano e dos outros que
queriam desta lenha. Frosino, principalmente, mandou buscar certa
quantidade sem dizer-me nada e, na ocasião do pagamento, queria reter
dez liras que disse ter ganho de mim, há quatro anos, num jogo de cricca
em casa de Antônio Guicciardini. Comecei a fazer o diabo: queria acusar
o carroceiro, que fora ali mandado por ele, como ladrão. Enfim Giovanni
Machiaveili interveio e nos pôs de acordo. Batista Guicciardini, Filippo
Ginori, Tommaso dei Bene e alguns outros cidadãos, quando aqueles
maus ventos sopravam, cada um me adquiriu uma ruma de lenha.
Prometi a todos e mandei uma a Tommaso, a qual chegou a Florença
pela metade, porque, para empilhá-la, ali estavam ele, a mulher, as
criadas e os filhos, os quais pareciam o Gabburra quando na quinta-feira,
com seus rapazes, abate um boi. De modo que, visto em quem eu
depositava o meu ganho, disse aos outros que não tinha mais lenha;
todos se encolerizaram e agastaram comigo, especialmente Batista, que
inclui esta entre as demais desgraças de Prato.

www.ebooksbrasil.cjb.net 75
Saindo do bosque, vou a uma fonte e, daqui, ao meu viveiro de tordos.
Levo um livro comigo, ou Dante ou Petrarca, ou um desses poetas
menores, Tíbulo, Ovidio e semelhantes; leio aquelas suas amorosas
paixões, e aqueles seus amores lembram-me os meus; deleito-me algum
tempo nestes pensamentos. Depois, vou pela estrada até à hospedaria;
falo com os que passam, pergunto notícias das suas cidades, ouço
muitas coisas e noto vários gostos e fantasias dos homens. Enquanto
isso, chega a hora do almoço, quando com a minha família como aqueles
alimentos que esta pobre vila e este pequeno patrimônio comportam.
Terminado o almoço, retorno à hospedaria; aqui, geralmente, estão o
estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com estes eu
me rebaixo o dia todo jogando cricca, trichtach, e, depois, daí nas cem
mil contendas e infinitos acintes com palavras injuriosas; a maioria das
vezes se disputa uma insignificância e, contudo, somos ouvidos gritar por
São Casciano. Assim, envolvido entre estes piolhos, cubro o cérebro de
bolor e desabafo a malignidade de minha sorte, ficando contente se me
encontrásseis nesta estrada para ver se essa malignidade se
envergonha.

Chegada a noite, retorno para casa e entro no meu escritório; na porta,


dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas dignas de
rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas antigas
cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente,
nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o qual eu nasci;
não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões de
suas ações. Eles por sua humanidade, me respondem, e eu não sinto
durante quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as aflições, não temo
a pobreza, não me amedronta a morte: eu me integro inteiramente neles.
E, porque Dante disse não haver ciência sem que seja retido o que foi
apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua conversação, fiz capital, e
compus um opúsculo De Principatibus, onde me aprofundo o quanto
posso nas cogitações deste assunto, discutindo o que é principado, de
que espécies são, como são adquiridos, como se mantêm, porque são
perdidos. Se alguma vez vos agradou alguma fantasia minha, esta não
vos deveria desagradar; e um príncipe, principalmente um príncipe novo,
deveria aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico à magnificência de
Juliano. Filippo Casavecchia o viu e vos poderá relatar mais ou menos
como é e das conversas que tive com ele, se bem que freqüentemente
eu aumente e corrija o texto.

Vós desejaríeis, magnífico embaixador, que eu deixasse esta vida e


fosse gozar convosco a vossa. Eu o farei de qualquer maneira; mas o

www.ebooksbrasil.cjb.net 76
que me retém por ora são certos negócios que dentro de seis semanas
terei ultimado. O que me deixa ficar em dúvida é que estão ai aqueles
Soderini, aos quais eu seria forçado, estando aí, a visitar e a falar.
Receio que ao meu retorno, pensando apear em casa, viesse a
desmontar no Bargiello, eis que, se bem este Estado" tenha mui sólidas
bases e grande segurança, ele é novo e, por isso, cheio de suspeitas;
nem faltam sabidos que, para aparecer, como Pagolo Bertini, meteriam
outros na prisão e deixariam a meu cargo os aborrecimentos. Peço-vos
me tranqüilizeis deste receio e, depois, dentro do tempo mencionado, irei
visitar-vos de qualquer modo.

Discuti com Filippo sobre esse meu opúsculo, se convinha dá-lo ou não
e, sendo acertado dá-lo, se era mais conveniente que eu o levasse ou
que o mandasse. Não me fazia dá-lo o receio de que Juliano não o lesse
e que esse Ardinghelli se honrasse com esse meu último trabalho. Por
outro lado, dá-lo satisfaria a necessidade que me oprime, porque estou
em ruína e não posso permanecer assim por muito tempo, sem que me
torne desprezível por pobreza, isso além do desejo que teria de que
esses senhores Medici passassem a utilizar-me, se tivesse de começar a
fazer-me rolar uma pedra; porque, se depois não conseguisse ganhar o
seu favor, lamentar-me-ia de mim mesmo, eis que, quando fosse lido o
opúsculo, ver-se-ia que os quinze anos que estive no estudo da arte do
Estado, não os dormi nem brinquei, devendo todo homem achar
agradável servir-se de alguém que, a custas de outros, fosse cheio de
experiência. E da minha fidelidade não se deveria duvidar porque, tendo
sempre observado a lealdade, não devo aprender agora a rompê-la;
quem foi fiel e bom durante quarenta e três anos, que eu os tenho, não
deve poder mudar sua natureza; da minha lealdade e bondade é
testemunho a minha pobreza.

Desejaria, pois, que vós ainda me escrevêsseis aquilo que sobre este
assunto vos pareça. A vós me recomendo. Seja feliz.

10 de Dezembro de 1513
NICOLÓ MACHIAVELLI
Florença.

www.ebooksbrasil.cjb.net 77

Você também pode gostar