Quem Somos de Onde Viemos para Onde Vamos - Helcion Ribeiro

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QUEM SOMOS?

DE ONDE VIEMOS?
PARA ONDE VAMOS?

ORELHA

s trs perguntas que compem o titulo desta obra so fundamentais e inquietam


a humanidade.
Nos ltimos 300 anos, as cincias, sobretudo a cosmologia, a fsica, a
arqueologia, a sociologia, a psicologia, a antropologia, a biologia, alm de outras, tm
trazido respostas sempre mais esclarecedoras e encantadoras. Mas nenhuma dessas
respostas completa.
Afim de esclarecer esta complexa tenso, este livro, organizado em nove
captulos, aborda as questes das origens e evoluo do cosmo, da vida e do ser
humano. Ele tem como objetivo estabelecer um paralelo entre cincia e f, entre
teologia da criao e evoluo, criticando os evolucionismos, sobretudo o criacionismo,
acentuando o que h de vlido e o que no aceitvel nem para cientistas, nem para
cristos. Critica, tambm, as leituras fundamentalistas e sincretizadoras dos textos
bblicos sobre a criao, indicando textos sobre a criao e seu significado e
contextualizando-os nos perodos da vida do povo judeu, marcados pelo tempo do
cativeiro babilnico.
A obra leva em considerao o processo de evoluo, acenando aos significados
humanos da sua animalidade, de sua dimenso biolgica e da corporeidade para chegar
a uma caracterstica to inerente ao ser humano: a relacionalidade. Por fim, utilizando a
escatologia, discorre sobre os grandes temas da consumao do mundo e da fidelidade
de Deus, comprovada na ressurreio de Jesus Cristo.

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)


(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ribeiro, Hlcion
Quem somos? de onde viemos? para onde vamos? :
antropologia teolgica / Hlcion Ribeiro - Petrpolis, RJ :
Vozes, 2007.
ISBN 978-85-326-3519-1
1. Homem (Teologia crist) I. Ttulo.
07-3927

CDD-233

ndices para catlogo sistemtico:


1. Antropologia teolgica : Teologia dogmtica crist 233

Apresentando

Trs perguntas fundamentais inquietam o corao humano: de onde viemos?,


quem somos? e para onde vamos?. Nenhuma resposta completa por si s, ou
melhor: encerrada em si. Nos ltimos 300 anos, as cincias (sobretudo cosmologia,
fsica, arqueologia, sociologia, psicologia, antropologia, biologia, alm de outras) tm
trazido respostas sempre mais esclarecedoras e encantadoras, chegamos at aqui. Com o
salto qualitativo da modernidade - com seus elementos fundamentais: razo, cincia e
tcnica - muitos foram se convencendo que tais respostas so (seriam) suficientes para
aquietar o corao humano - que, todavia continua insatisfeito e continua a se
perguntar... Ao mesmo tempo, milhares de mulheres e homens de f - herdeiros de
grandes tradies religiosas - se sentem questionados por estas perguntas. Tinham (tm)
certeza da inquestionabilidade de sua f. Eles se sentem, agora, atingidos pelos
conhecimentos cientficos e por cientistas, que, enfatizando outras respostas, parecem
querer negar (e/ou negam de fato) suas crenas.
Para muitos, parece pr-se um (falso) dilema: escolher acreditar na cincia ou na
f. Uns, marcados pelas cincias, julgam dever rejeitar os ensinamentos religiosos
(especialmente aprendidos na infncia e s vezes mantidos como ensinamentos
infantis); outros, para salvaguardar a f recebida na infncia, rejeitam as conquistas
cientficas. Muitos ouvem os dois lados e, inconscientemente, consideram to distantes
as duas posturas, a ponto de parecerem conhecimentos to intangveis que parecem nada
dizer sobre as mesmas realidades. Cresce sempre mais o grupo daqueles que so
capazes de - superando as discusses mal colocadas - ouvir o significado tanto das
cincias quanto das tradies religiosas e culturais.
verdade que muitos homens de cincia, por exemplo o fsico Laurence Krauss
(autor de A fsica da jornada nas estrelas), pensam ser pura perda de tempo querer
debater com pessoas de f: elas no esto dispostas a ouvir! pregar para surdos. 1
Para o cosmlogo brasileiro Mario Novello, o fato que o Deus da religio no tem
muito espao dentro da cincia convencional e nem dentro da cosmologia. 2

Marcelo Gleiser. O desafio criacionista. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 23/01/2005, p. 9.

Entrevista concedida a Fred Melo Paiva, Antes de tudo, o nada. O Estado de S. Paulo, Caderno Alis, 17/09/06, Caderno Alis,
p. J4.

verdade que muitos cristos (catequistas, clrigos, pregadores e intelectuais


religiosos) fazem to pouco caso das cincias que contrapem as crenas como se
fossem respostas (superiores) de cincia. Ambos no percebem nem distinguem a a
postura fundamentalista de onde partem. A presuno de uns e de outros s mantm os
incuos radicalismos e oposies inadequadas. E evidente que advogar uma composio
ou complementao entre ambas uma ingenuidade irnica que no pode sequer ser
levada em conta.
A questo cincia e f, sobretudo, desde a modernidade, tem-se apresentado
como tenso entre os grupos - que em geral esto ideologizados de um lado e do outro numa disputa onde no esto ausentes as questes de poder, de interesses e influncias
sociais; quando no - e eis a a questo - por ignorar o significado, o mbito e o limite
de cada parte.
assim que, frequentemente, os homens de cincia, ao discutirem a questo da
f, ou se envolvem com fundamentalistas ou usam seus conceitos aprendidos na
infncia ou ouvidos no dia-a-dia como se fossem verdades dogmticas ou cientficas.
So poucos aqueles que mantm um dilogo ou uma escuta dos especialistas da f. Por
outro lado, os homens de f, seguidamente, ao ouvirem as questes da cincia se
recusam a conversar. Isto por duas razes bsicas: no tm formao suficiente ou
atualizada ou tm medo das (avassaladoras) questes das cincias.
Sem dvida, o confronto imediato dos dois grupos cria uma situao (inslita e
inadequada). Todavia, a questo est em delimitar - racionalmente, e isto pertence
epistemologia - cada campo do saber e seu significado. bvio que o Deus da religio
no tem espao (imediato) dentro da cincia porque a no o lugar dele. O mundo das
cincias um campo bem demarcado, com suas leis e seus pressupostos, a partir dos
quais tudo o mais ou tudo o menos no levado em considerao. correto
cientificamente

reconhecer

preocupao

objetiva,

concreta,

verificvel,

experimental prpria da cincia - que em sua autonomia (razo) - fixou, delimitou seu
campo investigativo. E errado (inadequado, imprprio) exigir da cincia uma inteno
que no lhe pertence. Por outro lado, fechar-se no mundo da cincia por ser um gesto
fundamentalista ou irracional.
Todos os cientistas sabem que, se a cincia explica racional

ou

experimentalmente tantas coisas que eram explicadas pelas religies, ela no explica
(e nem lhe compete explicar) tudo. Os grandes cientistas sabem que sua funo
explicar as regras que regem a realidade, os mecanismos e as consequncias das leis da

natureza etc., por exemplo: como surgiram o universo, a vida e o ser humano. E
diferente a questo sobre por que surgiram o universo, a vida e o ser humano - questo
mais pertinente s culturas e f.
As explicaes da f valem no pela lgica, mas exatamente pela f. E a f tem,
inegavelmente, sua racionalidade e sua razoabilidade, sem ser algo sobre o que se
decide: ou se cr ou no se cr. Crer implica uma racionalidade. O contedo da crena
tem sua razoabilidade. Mas, tanto um quanto o outro aspecto no so meramente
decises ou convenes humanas. A f no mera projeo humana, apesar de tambm
ser uma questo humana. Aqui vale - por ser de mo dupla - o axioma de Carl Sagan: a
ausncia de evidncia no a evidncia da ausncia.
A f tem uma racionalidade - apesar de que esta no nem o critrio essencial
nem exclusivo, pois isto a delimitaria ao exclusivo universo humano, horizontal. Mas
tambm ela no pura irracionalidade (falta de toda e qualquer razo). A arte e o amor,
por exemplo, no so puramente nem racionalidade nem irracionalidade, como tambm
no so meios elementos biolgicos, embora de que se possa cientificamente localizar
no crebro/mente reaes fsico-qumicas produtoras ou inibidoras de sentimentos deste
nvel. Do mesmo modo, a f um logos que se no explica tudo - como se ela fosse
uma enciclopdia de biologia, fsica, economia etc.-, suficiente para descobrir as
razes e o sentido da vida, um lugar seguro que descobre a irracionalidade de Deus,
que amor. No justo, no correto e nem cientfico invocar a Deus para preencher o
nosso conhecimento cientfico. Neste sentido, porm, os cientistas devem ainda, com
muito entusiasmo e pacincia, continuar suas pesquisas para descobrir mistrios ainda
mais profundos, revolucionrios e insuspeitos que esto na obra criada. Tambm no
justo nem racional eliminar Deus s porque, no cabendo nos parmetros cientficos,
no se conhece o significado das coisas e nem a possibilidade de tudo existir com uma
finalidade (teleologia) A surdez no confronto com Deus pode ser tambm uma falta de
racionalidade (logos), apesar de que a adeso acrtica a Deus pode levar ao
fundamentalismo. Deus no precisa ser a explicao de tudo, como tambm cincia
compete explicar - to-somente - o que lhe prprio.
Ao tangenciar as questes comuns, ficam evidenciadas as diferenas de
abordagens e de racionalidade de cada campo. Neste sentido bom lembrar que a
cincia e a f so convidadas a viver dois valores prprios diferenciados, onde a
presuno de um sobre o outro leva a um fundamentalismo irracional. Porm, a busca
comum da verdade pode aproximar os cristos dos cientistas e os cientistas dos cristos.

Sem dvida, um cientista pode ser tambm cristo e, vice-versa, um cristo pode ser
cientista; mas, seria inadequado um cientista cristo ou um cristo cientista, porque neste caso - estar-se-ia sincretizando posies de vida e profisses diversas, ou estar-seia ideologizando posies que (sem ser antagnicas) so bem distintas. Tal fuso s
criaria confuso, levando ao descrdito as duas verdades ou as duas competncias. O
cientista, enquanto tal, busca a verdade atravs de seus mtodos e regras, sem ser
incomodado por ter que respeitar verdades religiosas. Por outro lado, os cristos, por
outros caminhos, fazem sua experincia de f em Deus, sem os condicionamentos
apriorsticos, no caso, da cincia. Deus o mesmo para o mundo da f e para os
cientistas. Ele, porm, alimenta aqueles que creem e lhes abre a f e a esperana de
modo direto; por outras, ele oportuniza a busca e o encontro da verdade mesmo queles
que no creem nele ou que nada sabem sobre Ele sem uma imediata (ou mesmo remota)
preocupao religiosa. Esta afirmao, contudo, no significa dizer que tudo que o
cientista prope seja eticamente bom e justo para a humanidade, ou seja, indiferente
questo de Deus. Apenas se reconhece que o cientista, enquanto tal, no produz uma
cincia crist e o cristo no vive uma f cientfica.
Partindo das trs perguntas de onde viemos?, quem somos? e para onde
vamos?, este ensaio foi organizado em oito captulos. O primeiro captulo - A
situao humana e sua ambiguidade - tem como objetivo lembrar ao leitor que os mais
de 6 bilhes de seres humanos que vivem atualmente sobre o planeta tm uma histria
entre avanos e retrocessos culturais, em que deve valer o ser humano como um
indivduo de personalidade prpria que se identifica num eu. Na verdade, o ser
humano um eu e s porque existe ao lado de todos os outros eus. O captulo dois De onde viemos? Como contar esta histria? - estabelece um paralelo entre cincia e
f, entre teologia da criao e evoluo, criticando os evolucionismos, sobretudo o
criacionismo (esta tendncia ideolgico-poltica de tornar cientfico um texto bblico),
procurando acentuar o que h de vlido e o que no aceitvel nem para os cientistas
nem para os cristos (especialmente catlicos). De onde viemos? - A histria contada
desde a horizontalidade o captulo terceiro, que aborda, de modo amplo, as questes
das origens e evoluo do cosmo, da vida e do ser humano. Procura perceber a evoluo
como um fato aceito - apesar de serem discutveis (inclusive entre os prprios cientistas)
as diversas teorias ou os diversos evolucionismos, que precisam ser conhecidos, ao
menos em suas linhas gerais, pelos que creem, a fim de poder, depois, diferenciar o
porqu e o modo como Deus atua neste processo. Os cristos detectam, a, a grandeza e

o empenho dos cientistas em to grande causa - que mesmo sem saber descobrem
mistrios de Deus ainda no conhecidos.
O captulo quarto - De onde viemos? - Uma histria contada desde a
transcendncia - tem trs objetivos: a) fazer uma crtica s leituras fundamentalistas e
sincretizadoras dos textos bblicos sobre a criao; b) indicar diversos textos do Livro
Sagrado sobre a criao e seu significado, contextualizando-os nos perodos da vida do
povo judeu marcados pelo tempo do cativeiro babilnico - o que determina o sentido
dos textos. Isto importante, inclusive para intelectuais e cientistas poderem
compreender aqueles textos para alm de pr-conceitos superficiais; c) por fim, fazer
uma das possveis leituras da teologia da criao, sobretudo a modo de exemplo de
interpretao dos relatos criacionais apresentados na Bblia, para indicar exatamente o
carter simblico que eles comportam - negando qualquer possibilidade de dar-lhes um
significado cientfico (pretenso do criacionismo).
O captulo quinto - Quem somos ns? - um problema a ser resolvido - leva em
conta o processo de evoluo, acenando aos significados humanos da sua animalidade,
de sua dimenso biolgica e o da corporeidade, para concluir com o que prprio do ser
humano: a relacionalidade.
Todavia, a resposta permanece incompleta, para os cristos. Pois s a partir de
Jesus Cristo - Deus entre ns e homem como ns - que o mistrio do ser humano
passa a ter sentido. S nele se consegue detectar a dignidade nossa. Pois Deus se fez um
de ns e um conosco. Este o desenvolvimento do sexto captulo - Quem somos ns? A resposta s em Jesus Cristo.
Mas, Para onde vamos? A pergunta do captulo stimo exige uma resposta de
f. O futuro humano se concretiza em Deus. Tudo caminha para ele. Porm, nem
sempre esta questo est isenta de tenses. Aparecem messianismos, utopias terrenas,
fatos inexorveis como a morte, explicaes seculares etc. A resposta mais profunda.
E ento, desde a escatologia, o captulo oitavo - Para onde vamos? - A leitura crist
sobre o nosso futuro - procura responder discorrendo sobre os grandes temas da
consumao do mundo e da fidelidade de Deus, comprovada na ressurreio de Jesus
Cristo.
Por fim, o captulo nono - De como antecipamos o futuro evidencia duas
grandes ideias: o lugar dos cristos no mundo em crescimento e o louvor, que nasce no
corao de todo aquele que cr, perante as maravilhas de Deus operadas na criao (e
descobertas tambm pelo conhecimento cientfico).

Este ensaio quer ser uma contribuio para o amadurecimento da f. Em geral,


muitos aprendem, na iniciao crist, estas verdades da f narradas em linguagem
infantil - e quase sempre com uma mentalidade infantil - que na maioria dos casos se
abandona tal aprendizado porque, medida que se vai crescendo nos estudos, novas
vozes surgem cheias de promessas e encantos, sem a mnima correlao com as
questes da f. Em boa parte da catequese infantil, as narraes das origens deixam de
ser simblicas para se tornarem, plasticamente, concretas, materializadas - onde a nfase
no tanto o amor livre e gratuito de Deus, de seu plano e de sua oferta de salvao,
mas um detalhamento quase fsico/material da criao - especialmente do ser humano.
Afora a catequese das crianas, a grande maioria dos cristos no tem tido outras
oportunidades de voltar a estes temas. Alis, a oportunidade surge pelo vis dos estudos,
no fim do ensino fundamental e ensino mdio, talvez tambm na universidade. Alguns
creem at que o criacionismo uma posio definida da Igreja - que na realidade,
desde 1950, com o Papa Pio XII, est aberta questo da evoluo. Em pesquisa recente
do IBGE constatou-se que, de modo geral, o brasileiro acredita no processo da
evoluo, mas tambm acredita na mo de Deus sobre esta histria. Para muitos
cientistas isto soa como contradio. Para ns cristos isto no causa nenhuma
dificuldade, apesar de saber que a grande maioria dos catlicos no consegue relacionar
e distinguir a independncia das duas posies.
Do mesmo modo, em muitos crculos cristos, para falar sobre o simbolismo do
final dos tempos e das coisas ltimas (cu, inferno etc.), alguns se perdem em
detalhes (fantasiosos at) de como ser o nosso futuro e no chegam, durante toda a
vida, a tomar contato com uma reflexo mais madura e adulta do que se cr
particularmente sobre esta realidade to pouco detalhada na revelao, mas cujos
princpios nos esto assegurados na ressurreio do Senhor.
O grande objetivo deste ensaio sair da questo (incua) da dialtica: cincia X
f, sem sincretizar nada, mas distinguindo-as sem as opor, respeitando seus limites e
mostrando suas possibilidades, pois tanto cientistas quanto cristos s tero a ganhar e
amadurecer. Nosso estudo quer atingir, sobretudo, catequistas, estudantes de teologia,
clero, religiosos e cristos em geral, mas tambm pretende ser uma possibilidade de
dilogo com homens e mulheres das cincias e de outros saberes.
Ns cremos, por fim e desde a f crist, que a culminncia de todo o processo
evolutivo est na encarnao de Jesus Cristo. A culminncia da identificao do ser
humano est na filiao adotiva de Deus, por meio de seu Filho. E a culminncia da

consumao est na glria de Deus. Por isto, este ensaio no deixa de ser, ao mesmo
tempo, um estudo de antropologia crist, de cristologia e escatologia.

Captulo 1

A situao humana e sua ambiguidade

Somos mais de seis bilhes de habitantes sobre a face da terra. Quem sabe,
discutivelmente, os nicos seres inteligentes de todo o sistema solar e csmico do
universo! Vivemos apinhados sobre este planeta, que apenas um dos inmeros do
nosso sistema solar. Habitamos em mais ou menos um tero do planeta. Os outros dois
teros so ocupados pelas guas. Nos oceanos, vivem mais de 50% dos seres vivos.
A espcie humana se espalha sobre toda a face da terra, nas plancies, vales,
montanhas, terras frteis, montanhas glaciais, campos, vilas, cidades, florestas e
desertos. H regies densamente povoadas, como a ndia e a China. Em contrapartida,
h extensas regies onde quase no vivem os seres humanos, como na regio
amaznica, nos polos Norte e Sul, e nas regies a oeste da Rssia.

1. A conquista humana at agora

No sculo XX, os seres humanos foram se agrupando mais intensamente. H


cidades onde concentraes humanas atingem mais de 18 milhes de habitantes. Morar
no espao urbano um comportamento de no mais de 10.000 anos - conforme indicam
pesquisas arqueolgicas. O aldeamento mais antigo, at agora descoberto, Jeric.
Antes disto, homens e mulheres se espalhavam pelas savanas e florestas subtropicais.
Foi na frica que se originou a nossa espcie humana, h mais de 100.000 anos. A
partir da, espalhou-se em todas as direes. Os seres humanos chegaram s Amricas
h uns 30 ou 20 mil anos.
Procedemos de uns poucos troncos de origem. No fundo, de um s. Os grupos se
desenvolveram produzindo raas quase puras (branca, negra, amarela, vermelha etc.).
Foram misturando-se, progressivamente, pelas intensas possibilidades de locomoo

nos continentes. Ainda recentemente - h menos de trs sculos - os agrupamentos


humanos clmicos, regionais e nacionais, eram muitos e autocentrados. H hoje uma
evoluo to grande que, neste sentido, se poderia falar, grosso modo, dos orientais e
dos ocidentais como os grandes grupos culturalmente diversificados. Mas, at quando se
poder dizer isto?!
Falamos para nos comunicar, para expressar ideias, sentimentos, desejos. Falar
algo inerente ao ser humano. Ainda existem hoje pouco mais de seis milhares de
idiomas, que os antroplogos agrupam em poucas famlias. Quase a metade delas est
em extino. Nenhum grupo humano, praticamente, vive isolado hoje. Sejam eles
grupos primrios ou complexos, todos conseguem intercambiar suas ideias e seus
valores, numa troca sempre mais amistosa. A dominao social vai sendo substituda
por cdigos e direitos cada vez mais universalizados. Inclusive no campo da
comunicao, crescentemente, h pessoas capazes de se comunicar em diversas lnguas.
Isto tambm sugere a questo da universalizao de uma cultura bsica, mesmo que se
conservem peculiaridades regionais e locais. Elas tambm esto fadadas ao
desaparecimento?!
Certos comportamentos e situaes humanas parecem ser to naturais e at
congnitos. Mas, como no lembrar que h apenas 500 anos os mares comearam a ser
dominados? A alfabetizao e a leitura no so ainda uma conquista universal. Elas s
se popularizaram a partir do sculo XX.
Apesar de atribuir-se aos gregos a inveno da democracia, foi a partir do sculo
XVIII, na Frana e nos EUA, que surgiu o atual modelo pelo apreo cidadania, direito
do voto e (terica) igualdade social. A humanidade est muito longe de aceitar a
cidadania plena da mulher e considerar sua igual dignidade. Mesmo que tenha havido,
neste aspecto, uma significativa evoluo no sculo XX.
A admirvel humanidade capaz de feitos inauditos, como a conquista da lua
e viagens a planetas distantes, cujo tempo previsto chega a doze ou treze anos. Esta
conquista comeou h menos de 50 anos. Apenas h 500 anos, homens europeus
conseguiram aventurar-se para longe de suas costas martimas, iniciando no sculo XVI
os grandes projetos de navegao de Portugal e Espanha. Todavia, no se conseguiu
ainda ir ao centro geogrfico do prprio planeta.
O assombroso desenvolvimento cientfico atual capaz de penetrar ou ler
corpsculos to pequenos, praticamente invisveis, mesmo em sofisticados aparelhos. A
domesticao do urnio to intensa que se pode sustentar no espao naves que singram

o cu, rumo a planetas distantes. A reproduo humana (e animal) at h duas dcadas


era exclusivamente natural. Em espao de to poucas dcadas sofisticou-se to
intensamente que se pode hoje fazer nascer, em laboratrio, gmeos com cinco, dez ou
mais anos de diferena. Mas, ser isto realmente um benefcio humano, mesmo que seja
um grande avano tecnolgico?!
Celulares, computadores, televisores, fibras ticas, energia atmica, laptops,
fornos micro-ondas e outras coisinhas mais so algo muito recente. Entretanto, vo
sendo integrados em grupos culturais to diversificados, como o francs, o africano e o
indgena da Amaznia etc. Tudo isto pressupe fundamentalmente a descoberta da luz
eltrica - inveno de Tomas Edison, no sculo XIX.

2. O dever de continuar progredindo

Sem dvida, h - desde a modernidade - uma exploso cientfica e tecnolgica


to inaudita quanto inimaginvel h alguns sculos. - Mas teremos chegado aos limites
das possibilidades dos eltrons, nutrons, clulas, genes etc.?
Evidentemente os mistrios, as descobertas e as invenes estender-se-o por
onde se tornar presente a vida humana, nos sculos e milnios futuros. Ningum pode
anunciar o fim do mundo no que tange capacidade inventiva tcnico-cientfica
humana. certo, porm, que o campo das cincias e tecnologias dever perder - e isto
ser um bem para a humanidade toda - o carter dogmatista e autossuficiente em que se
move. A experincia humana de dogmatismo e de presuno humana sempre
desumanizante e excludente. A prova disto se evidencia, mais que em outros campos,
especialmente no comportamento histrico das grandes religies. No Ocidente o
cristianismo; no Oriente, o islamismo. Uma postura dialogal mais justa e includente
do que qualquer forma de absolutismo ou fundamentalismo. Isto vale atualmente para as
cincias e para a tecnologia.
Na evoluo humana, a economia - em seus diversos modelos - fez a
humanidade crescer e otimizar o modus vivendi. E patente aos olhos de qualquer um,
que, por causa da racionalidade e da economia - impulsionadas e impulsionadoras da
cincia e a tecnologia -, h um bem- estar humano hodierno muito superior ao tempo,

por exemplo, da chamada descoberta das Amricas (sculo XVI). A humanidade


tornou-se muito mais rica, sobretudo nos ltimos sculos. Basta pensar na habitao, na
superao de doenas e pestes, no conforto, nos meios de comunicao, no acesso a
produtos industrializados.
A nacionalizao (versus tribalizao) e a globalizao (versus regionalismos)
so fatores no s polticos, mas tambm econmicos que vm elevar o padro da vida
humana. O aperfeioamento dos sistemas econmicos uma conquista se se pensar a
vida econmica desde os nmades, desde os coletores de frutas e razes, desde os
caadores etc., at os complexos problemas de bolsas de valores, questes financeiras,
unificao de moedas e mercados etc.
As questes da sade pessoal e pblica e da construo civil, das possibilidades
de locomoo, do acesso educao e cultura e s informaes, da decifrao da
histria humana e da conservao de sua memria so conquistas que aumentam o
patrimnio comum da humanidade. O atual predomnio do econmico-financeiro vem
sendo superado pelo poder econmico-cientfico, especialmente no campo da biologia.
Mais admirvel se torna a humanidade atual quando se pensa na solidariedade
para a superao de problemas comuns como catstrofes ou pestes endmicas (gripe
espanhola, malria, doena de Chagas, Ebola, Aids etc.). Isto continua na superao dos
governos autoritrios e absolutistas; na criao internacional dos direitos humanos
pessoais, sociais e ambientais; na superao da tortura e castigos pblicos irreversveis;
na conscincia da necessidade da superao de guerras (hoje basicamente terrorismos de
estados, sobretudo dos mais prepotentes).
Vo uns 10 mil anos que - desde o Curdisto, da Mesopotmia, da regio dos
Blcs ou da atual Turquia, por exemplo - a agricultura comeou a ser domesticada. No
final do sculo XX, foram desenvolvidas tcnicas de transgenia e clonagem para
qualificao de alimentos. Desde a chamada revoluo verde, a humanidade detm
um patrimnio suficiente para alimentar quase duas vezes a atual populao mundial.
Mas, um tero de toda produo de alimentos est destinada a pequenos animais (ces e
gatos) de estimao. Todavia, milhares de pessoas, por toda parte, morrem de fome
todos os dias.

3. Um retrocesso?!

As admirveis conquistas da humanidade em evoluo esto acompanhadas de


inmeras situaes em que o humano est gravemente comprometido. Sem dvida, h
fatores exgenos vontade humana, como a crescente desertificao (vale lembrar o
Saara africano), desastres ambientais (como os tornados, tsunamis, as chuvas e secas alis, fenmenos sempre presentes na histria). Todavia, a prpria humanidade, que
conquista feitos inauditos, produtora de fenmenos por demais humilhantes, como a
fome e a misria. Estes fatos no so apenas naturais. Pode-se afirmar que eles tambm
so frutos da conivncia e descaso de uns para com os outros. Alguns mais radicais
poderiam at afirmar que fome e misria no so situaes casuais. So decorrncias
conscientes de opes econmicas, polticas e outros poderes.
Apesar de ser fruto de culturas locais, em muitas partes do universo, as minorias
so cerceadas em sua dignidade. O primeiro fato que salta aos olhos a questo da
mulher. Inclusive em pases desenvolvidos. Pense-se na ausncia delas na poltica, nos
centros econmicos e em atividades pblicas. Mais grave e deprimente, sem dvida, a
situao delas em pases subdesenvolvidos. Porm, para alm das situaes regionais e
globais, no se pode ignorar crimes hediondos contra elas. Muitas mulheres so
torturadas ou assassinadas por motivos primrios, quando no por traies e gravidez
indesejadas.
As oportunidades sociais no so de acesso igual a todos os homens e mulheres.
A discriminao humana tambm atinge frequentemente aos negros, ndios,
estrangeiros, pessoas com deficincias e outros mais. Na base destas diferenas esto
questes de herana, nome, nvel poltico- econmico. Perdura, entre muitos povos e
grupos, a ideia de que o crescimento socioeconmico se faz a partir das elites. Mas, so
muitos os que pensam que, a partir dos pobres, podem ser apresentadas pequenas
experincias positivas como programas de promoo humana, capazes de criar mais
benefcios a todo o tecido social. Quase nunca as experincias que privilegiam elites ou
grupos privilegiados so partilhadas com os pobres.
Alis, isto foi experincia sempre buscada e vivida nos dois primeiros milnios
da histria de Israel, como atesta a Bblia judaica.

Recentemente o Prmio Nobel de Economia foi dado a um economista indiano,


cuja experincia fundamental estava ligada a agncias bancrias voltadas a emprstimos
financeiros para mulheres de baixa renda.
Mesmo em que pesem todas as crticas poltica cubana dos ltimos 50 anos,
inegvel o alto processo de socializao da sade e da educao por l.
As questes econmico-financeiras so marcadamente complexas nos tempos
atuais. Mas, elas tambm tm sido fonte permanente de gerao de injustias humanas.
Tal humilhao inclui no s indivduos e grupos, mas tambm naes e, s vezes,
vastas regies continentais. O atual sistema econmico do Ocidente perverso por
natureza. certo que a qualquer pessoa dado perceber suas transformaes. Porm,
ele anti-humano. Suas transformaes o so, sobretudo, para sua prpria manuteno.
Muda para permanecer o mesmo. Adapta-se apenas. E continua perverso por essncia.
O capitalismo e suas variantes tm sido denunciados pelos papas, desde Pio XI. Paulo
VI afirmava sua irreformabilidade intrnseca. Marx e Engels, no Manifesto comunista,
escreveram:

A burguesia no pode existir sem revolucionar constantemente


os meios de produo e com eles o conjunto das relaes da
sociedade [...]. Revoluo permanente nas condies de
produo, distrbios ininterruptos de todas as condies sociais,
permanente incerteza e agitao so o que distingue a era da
burguesia de todas as demais.

De fato, quem pode viver tranquilo, fora do grande capital? A deformao dos
mercados e das condies de concorrncia, a mudana das relaes entre alta tecnologia
e mo-de-obra no qualificada (pensar nos Estados Unidos e na sia), mostram os
dois fatos enunciados: a estratgia da permanente mudana para permanecer e a injusta
desestabilidade que atinge homens e mulheres em toda parte. Sobretudo, so apenados,
pela expanso universal do regime do capital, aqueles que nada ou poucos mais tm
que seus braos para o trabalho.
dedutvel que, como todas as coisas da histria podem ser substitudas,
tambm este sistema - desenvolvido na Idade Moderna - no poder ser sinal do fim do

mundo.3 Surgiro outros sistemas que havero de substitu-lo. Mesmo que no se possa
vislumbrar nada ainda.
Este sistema leva perversidade pela excludncia crescente de pessoas e grupos,
quer em nvel de cidadania quer em nvel sociocultural. No pelo fato de no existir,
no momento, nenhum outro, que se deva conformar com ele. A orientao nica da
economia um indicativo de pobreza para todo o mundo, pela falta de liberdade e
possibilidades.
Grande parte da humanidade mora em habitaes extremamente precrias. Em
algumas delas, falta tudo. Falta em algumas at a proteo contra o sol ou contra a
chuva. A misria de choupanas, palafitas, barracos - em contraste com edifcios to
requintados que se elevam verticalmente ao equivalente a 200 casas - algo to
bablico que clama o bom senso da humanidade. E verdade que nestes edifcios se
mostra toda a capacidade e a inventividade tcnico-cientfica de seus autores, criadores
e patrocinadores.
O instinto da guerra uma particularidade humana. 4 Est ligado violncia
masculina. E por sua vez explicado, por alguns, pela longa fase pr-histrica em que
os homens foram caadores de animais. Mas, a necessidade da caa no explicao
suficiente. A espcie humana predadora quase por natureza, por instinto de
sobrevivncia. Ela mantm o costume de caar e defender-se atacando, de ser socivel e
dominar destruindo, de ser inteligente e cruel torturando e matando... Caar ou ser
caado foi uma relao peculiar e ambivalente desde a revoluo neoltica entre
animais e seres humanos. Este comportamento acompanha a histria. Pelo lado do
homem, ele se transformou em rituais e paixes pela guerra. Por um lado, a guerra
evidenciou-se como um xtase religioso, da a sacralidade dela. Por outro lado,
acentua a vontade de poder pelo poder, includo o poder de humilhar.
inegvel o papel das religies na difuso, organizao e patrocnio de guerras,
at recentemente. As guerras das religies, patrocinadas inicialmente pelas elites,
seguidas pelas castas de guerreiros privilegiados, passaram para grupos, em geral
fundamentalistas. Hoje conhecemos os nacionalismos e interesses econmicos como
fontes de guerra religiosa.
Naes tecnologicamente desenvolvidas comprometem grandes somas de seus
oramentos para manuteno blica. Diz-se que os Estados Unidos empregam quase
3
4

Ver FUKUYAMA, F. O fim do mundo.


Ver EHRENREICH, B. Ritos de sangue.

80% de seus projetos de pesquisa, de modo direto e indireto, na corrida armamentista ou


chamada de segurana nacional. E a volta do ditado latino: si vis pacem, para bellum
(se queres a paz, prepara a guerra). O atual estgio militar e a obsessiva busca de
segurana so comportamentos quase instintivos de grupos humanos primrios. Isto
denota um comportamento no superado na atualidade. Esta incapacidade de buscar
outras formas de relaes sociais inclusive incentiva atos terroristas - de grupos e/ou de
naes.
A sexualidade, quer em sua dimenso pessoal quer na social, tambm tem sido
oportunidade para atos desumanizadores. Na verdade a sexualidade uma fonte vital da
integrao do indivduo consigo mesmo, na famlia e na sociedade. Entrementes
flagelos histricos ou recentes tm criado vtimas na prostituio, na pornografia, no
trfico de mulheres, na pedofilia. Sem dvida, a represso sexual, cultural e religiosa,
at poucos sculos atrs, tambm causa de extremos opostos da libertinagem atual - de
onde decorre aumento de molstias infecto-contagiosas, abortamentos, nascimentos
indesejados e mortes crescentes.
Homossexualidade culturalmente, para ns, um fato novo. E ela tem sido
evidenciada, sobretudo, a partir da mdia e de velados interesses econmicos. E, nesse
sentido, a grande maioria das pessoas vai se defrontando com situaes to inditas, que
as deixam, pessoalmente, impotentes e estupefatas. Nesta questo, a postura das
cincias, das religies, das legislaes e dos estados nacionais, muito controversa. Vai
de radical condenao a um permissivismo quase sem limites. Socialmente ainda falta
clareza humana sobre este fato que no deixa de continuar ferindo, de uma forma ou
outra, pessoas que vivem nesta situao.

4. Na mudana de valores

Os valores sofrem, presentemente, grandes mudanas. Uns desaparecem. Outros


surgem. A uns se lhes atribuem a pecha de conservadores, retrgrados. A outros, de
progressistas e hodiernos. Fundamentalmente, a atual mudana est ligada perda da
hegemonia do cristianismo, no Ocidente. Faz-se uma transio da cultura europeia sobretudo francesa - para a sempre mais expandida cultura americana. Desta surgem

valores (ambguos) como o individualismo (de pessoas e/ou de grupos), o pragmatismo


e o consumismo.
A globalizao da economia vem criando comportamentos to estranhos s
culturas nacionais e regionais, que certas datas festivas so pasteurizadas e se difundem
elas por elas, apenas como fonte de consumo, giro de capital; enfim, de relaes
econmicas. Por exemplo: o novo carter do Natal cristo - que vai perdendo seu
significado religioso e introduzido em culturas completamente estranhas a ele - como
na China, na ndia e pases rabes. No apenas o calendrio civil vai se impondo por
toda parte, mas a data de 1 de janeiro - incio do ano civil ocidental - tornou-se uma
festa universal. No mesmo caminho segue a festa americana Halloween.
A universalizao de certos valores passa tambm pela literatura e artes. Elas so
cada vez mais frequentemente produzidas pela industrializao de best-sellers, do
cinema e da TV - o que obviamente atende aos valores e interesses do grande capital.
Mas, alguns novos comportamentos unem os povos atravs da msica e do
esporte. Tornam mais fraternais as relaes do mundo.
Tais comportamentos, por um lado, abrem possibilidades de compreenso mais
universal entre os povos. Por outro, produzem massificao e empobrecimento cultural,
eliminando profundas intuies de carter local e regional. Isto depe contra situaes
em que toda a comunidade internacional poderia enriquecer-se. Dizia o Papa Joo Paulo
II que o contributo e as riquezas dos pobres e de suas naes ainda no foram aceitos na
mesa comum da famlia humana.
Neste contexto, apareceu, na segunda metade do sculo XX, uma questo que
mexe fundo com toda a humanidade e seus governos. Ao mesmo tempo ser objeto de
preocupao e co-responsabilizao de todos: o meio ambiente.
O ecossistema limitado. S renovvel muito lentamente. Os seres humanos,
especialmente dos ltimos dois sculos, tm devastado e desgastado a natureza. Sua
destruio atual maior que a de milhares de anos passados. As ltimas geraes
humanas devastaram, em pouco tempo, muito mais que todas as anteriores. A
irracionalidade do desenvolvimento moderno e ps-moderno vem explorando o
ecossistema sem suficiente conscincia. Falta a responsabilidade perante o planeta e,
sobretudo, perante as geraes futuras. Assim, o degelo de polos, a acidificao das
chuvas, os desmoronamentos urbanos por ocasies de chuvas, a destruio das matas, a
poluio das guas, a deteriorao da camada de oznio e diminuio da biodiversidade
etc. exigem uma postura nova e global da humanidade. Ela hoje se sustenta em bases

to frgeis quanto a solidariedade frente ao lucro desenfreado e desenvolvimento a


qualquer custo.

5. O ser humano como um "eu"

Vimos at aqui grandezas e misrias da condio humana. Nem tudo so rosas.


Nem tudo so espinhos. Entre os extremos, a humanidade caminha: Caminha para
onde? Haver um norte para a humanidade? Para aonde ela vai? Como analis-la? Com
que parmetros? Quem ou que instituio poder ser a referncia? (Se que pode haver
referncias humanas naturais.) Por acaso, bastariam s instituies internacionais, ou
melhor: mundiais, para ser o critrio do humano? Todavia, seriam elas suficientes?
Exatamente para atender peculiaridades locais, individualidades e sociedades,
como estabelecer critrios e leis vlidos universalmente? Estabelecer orientaes
mnimas - como se props a ONU no Projeto de tica Bsica para Pases Membros teria como resultado um esvaziamento geral das culturas e das religies. A adoo dele
significaria uma prtica igualitria muito superficial. Na realidade, seria apenas mais um
cdigo de tica entre tantos outros.
Somos, na verdade, mais de seis bilhes de pessoas sobre o planeta terra. Alguns
afirmam que a capacidade de suportao da terra seria de mais uns trs a cinco bilhes.
Outros acreditam que j se ultrapassou os limites do possvel. Todavia, o ser humano
no uma massa amorfa. No h dvida, todos os humanos participam retroativamente - da famlia dos primatas superiores, dos animais mamferos, dos seres
vivos que se movem, dos simples seres vivos etc. Os seres humanos pertencem
superfamlia hominoidea, que constituda pelas famlias homindea, pongdea,
hylobatidae. Os gneros dela so o homo, o pan, o pongo e o hylobates - segundo
classificaes atuais da cincia.
Na verdade, o ser humano aparentado com os animais. Este parentesco
oportuniza a alguns um acirrado combate ao antropocentrismo. Querem que o ser
humano seja considerado to-somente a partir da totalidade do ecossistema comum. O
ser humano uma das espcies de vida, apenas. Ela deixaria de ser a referncia,
exclusiva e excludente, para ser apenas uma outra espcie dos seres vivos. O desprezo

pelas outras vidas um mal psicocultural to grande quanto o ignorar o significativo


papel do ser humano como organizador cultural da vida comum sobre o planeta.
Consciente da discusso, a nfase deste estudo se volta para a situao humana.
No se ignora o antropocentrismo anterior. No se quer retom-lo. Volta-se, agora, para
a questo da identidade humana.
Para desenhar a identidade do ser o humano no se pode ignorar mais o conjunto
dos seres vivos: animais, plantas, aves e o prprio planeta. O ser humano um parente,
respectivamente, prximo e distante, de todos os outros seres vivos. Nenhum ser vivo
detm toda a perfeio de vida ou , necessariamente, o pice da evoluo. Cada um
tem sua peculiaridade e que se estabelece pela relao e pelo confronto, pela
coopei'ao e pela disputa, no todo. E desde a que o ser humano tem sua
particularidade. Assemelha-se, sobretudo, aos mamferos superiores. Mas, bvia sua
diferena. E feito da mesma matria csmica. Mas, tem um lugar prprio no universo (e
para alm dele).
Vale recordar uma afirmao de Moltmann:

Homens o so todos os que tm um rosto humano. Sem dvida,


o carter humano supe uma pergunta irresoluta para cada um
deles e para todos em comum. Com o projeto, com o destino e
com o estilo de sua vida, todos e cada um marcha em busca de
uma resposta que os ilumine e convena. 5

Por isto, s possvel caracterizar a identidade do ser humano tendo presente a


sua relao com os animais, as plantas, as aves; enfim, com a vida, com a natureza e o
seu significado teleolgico. (Ver-se- estas questes em captulos posteriores deste
ensaio.)
Porm, preciso ir mais alm... verdade que a nossa situao mostra a
diferena real entre o ser humano pessoal e a realidade social e poltica da humanidade.
Assim identificar, personalizando um ser humano, significa retir-lo da realidade
impessoal e amorfa, para senti-lo com o corao. Todavia, como escrever um livro
sobre o ser humano que seja humano, mas no biogrfico?

MOLTMAMM, J. El hombre, p. 11.

Num outro livro meu6 chamara a ateno para que o fato de que o ser humano
uma ousadia. Cada um e todos os seres humanos so um processo aberto. Sua histria
inconclusa, cheia de trabalho, alegrias, esperanas, angstias, tristezas etc. O humano
um ser real, nico. um corao que bate, pulsa, entre festa e rotina, entre vitrias e
fracassos. Assim, a pretenso de escrever sobre ele no significa seno a vontade de
am-lo profundamente. Um desejo de buscar sua dignidade. Isto prefervel a calar-se e
recolher-se a uma resignao - que se sabe impotente.
O ser humano concretamente Pedro, Maria, Joo, Ana... Ento o ser humano
algum especfico. Algum que tem identidade peculiar por estar situado diante de outro
ser humano, diante de animais, do ecossistema. Ele um mistrio para si. E o
simultaneamente na sua individualidade e no contexto da humanidade. um mistrio
que se explica de modo quase ingnuo ao se perguntar e responder: Eu, quem sou?! Sou eu, oras!
O que pode no parecer tautolgico, na verdade isto: Eu?! - Sou eu! Aquele
que se identifica a si como humano porque sente, ama, odeia, alegra-se, chora, ri,
trabalha, partilha a vida, estabelece amigos, tem famlia, integra-se coletividade,
sonha, pergunta, procura e, por fim, diz: Eu?! - Eu sou eu! Sou eu porque sou nico.
Mas tambm porque sou com os outros e como os outros, inclusive com os animais e
todo o universo.
Sem dvida, no se humano apenas por poder se identificar a si mesmo, isto :
ser detentor de racionalidade auto identificativa. H outros fatores mais que influem
aqui, dos quais os mais elementares so a idade, a sade e a prpria vida de ser humano.
Ele um mistrio para si prprio e para todos que o rodeiam. O poder e o
espanto, o auto desconhecimento e a procura de si, a autoimagem e a auto resposta
levam a uma identificao prpria que s real porque misteriosa e simples
simultaneamente. Mas, a identificao tal que nunca pode ser acabada por causa da
complexidade que a prpria pessoa. Quando diz eu, ela o diz no por considerar-se
uma mnada, um ser fechado sobre si prprio. Eu sou eu porque estou me
relacionando com os outros e com todos os outros.
Isto um mistrio porque um processo tambm. Ento, quem se identifica e
poderia ser identificado em si? Todo ser humano seu mistrio. E como explic-lo?
Com que critrios ou com que autoridade? A condio humana na verdade algo
misterioso e inimaginavelmente maravilhoso. Identificar-se seria, na verdade, desvelar6

RIBEIRO, H. A condio humana e a solidariedade crist.

se. O que quer dizer, ao mesmo tempo: desnudar-se e voltar a cobrir-se com um
justificado e provisrio espanto consigo mesmo. Por isto a identidade de algum
acontece nas suas relaes tanto de assemelhamento quanto de distino. Dizer eu sou
eu! envolve fundamentalmente uma relao e no apenas uma questo ontolgica
amorfa, de qualquer modo, no ecossistema.
Vale a pena lembrar que esta reflexo acima , metodologicamente, patrimnio
da cultura ocidental, com influncias de judasmo, do cristianismo e at mesmo do
islamismo. As concepes sobre o ser humano so radicalmente diversas no mundo
chins, budista, hindu - apesar dos crescentes estudos ocidentais. Mesmo assim, no so
suficientes as tradues daquelas tradies.
Afirmar a pessoa como um ser de relao para buscar sua identidade pessoal no
deixa de ser complexo. Todavia a relacionabilidade da pessoa humana critrio
adequado para evidenciar quem o ser humano e levar em conta tanto sua
individualidade quanto sua socialidade. A relacionabilidade s pode ser compreendida
na totalidade do ser e de suas diversas manifestaes.
A sociedade de consumo identifica Lus, Tereza, Alfredo e Lcia como cartes
de crdito e um cliente. A des-persona-lizao uma criao do mercado, fazendo do
humano um-ser-sem-face e sem-atributos. Tornou-se um consumidor, pagador ou
devedor.
Para saber quem Antnio, Bernadete, Joo e Lcia, preciso tambm perceblos nas suas mltiplas relaes, a comear como membros da sua famlia. Como
pai/me, irmo/, esposo/a, filho/a, tio/a, av/av. Da soma-se sua identidade
processual o fato de ser criana, adolescente, jovem, adulto, idoso - incluindo categorias
como estudante, formado, profissional, solteiro/casado, aposentado etc. preciso somar
ainda todos os aspectos que o incluem em seus diversos grupos sociais.

Captulo 2

De onde viemos?

Como contar esta histria?

Somos, hoje, mais de seis bilhes de seres humanos. Localizados em tempos e


culturas diferentes, milhes de pessoas j viveram antes de ns e milhares,
provavelmente, havero de viver, tambm em outros contextos socioculturais. Apesar
de certas homogeneizaes culturais, na atualidade predominam modos prprios de se
conceber a vida, o ser humano e seus hbitos e costumes. O prprio modo de interpretar
- a hermenutica - pode assumir, como tradicionalmente o foi, uma conotao religiosa.
Por um lado, parece predominar hoje, no mundo ocidental, a interpretao dita
cientfica. Mas, podem existir ainda outras formas ou vises de vida, como a da tica ou
da axiologia ou de culturas diversas. A histria factual das origens contada desde a
cosmologia, passando pela qumica, astrofsica, biologia, cultura, psicologia, entre
outras. As cincias so uma forma nova de contar a histria do universo e do ser
humano. Novas porque filhas da modernidade. Mas, so elas convincentes? Mesmo em
que pesem seus valores realsticos, elas tm uma forma muito diferente de narrar em
relao aos grandes mitos culturais e religiosos (atuais ou antigos). As cincias so uma
resposta concreta aos fatos objetivos e s perguntas da concretude do cosmo e da
humanidade sobre si mesma, dentro de limites por elas mesmas estabelecidos. Outras
grandes formas de narrar as origens esto afetas s culturas e s religies. As narrativas
religiosas e existenciais buscam outro significado da origem, da vida e do destino
humano, diferente das cincias.

1. Para interpretar as origens: a questo da hermenutica

Alguns estudiosos - por exemplo: os antroplogos - atribuem, tambm, s


narraes das origens fundadas nas cincias uma qualificao de mito. Elas so os mitos
- modernos ou contemporneos - da razo. As narrativas das origens - religiosas ou
cientficas - so chamadas de mitos. O mito no uma histria qualquer. algo
profundamente significativo que comporta uma explicao global sobre fatos e
realidades mais deduzidos - a partir de experincias e/ou sinais histricos - do que
comprovados tecnicamente. Atualmente, no conjunto da cultura humana - para alm da
experincia emprica, filosfica, mstica, artstica etc. - o ser humano faz (quase
dogmaticamente) a experincia cientfica. A cincia se constri tambm sobre suas
afirmaes, pressupostos e comprovaes. uma forma de leitura da vida e dos fatos,
com base no na f, mas na razo comprobatria. Mas, ser correto descartar todas as
outras possibilidades que so oniabrangentes, totalizantes, mesmo que algumas tenham
se tornado at totalitrias? Ser necessrio ceder lugar quela que, hoje, tanto fascina a
humanidade - sobretudo do Ocidente, intelectualizado e rico, que controla tudo como
poder?! No haveria a a possibilidade de um novo dogmatismo, como o fora, no
passado, o da Igreja Catlica, na Europa e em suas colnias? To certo quanto os
fundamentalismos religiosos, podem existir tambm os fundamentalismos cientficos. A
vida - que a realidade maior - no comporta somente cincias e religies. Ela
explicada, interpretada por uma e outra, alm de outros saberes. No processo do
desenvolvimento, o ser humano pode criar novas hermenuticas mais holsticas, em
forma de rede por exemplo. Apesar da possibilidade real, no se pode desautorizar a
princpio a realidade das hermenuticas humanas. Cada uma delas tem seu contexto, seu
mtodo, seu objetivo e seu interesse. A aceitao de cada uma delas, tambm, revela
pressupostos ideolgicos, que implicam poder (poltico, econmico, entre outros),
persuaso, adeso e, por fim, f. Predomina, neste momento da histria humana, o
critrio cientfico - que tambm instrumento ideolgico, poltico e econmico. Sua
fora, porm, no igual. Diante do ser humano, ele recebido de diversos modos,
inclusive segundo a fora dos poderes - o que, alis, pertencente histria. Grandes
avanos da humanidade surgiram exatamente pela contribuio de grandes
hermenuticas. Elas se tornaram poderosas poltica e socialmente. Criaram bem-estar

social para grupos e povos, o que no impediu de produzir tambm excludncia e


falncia. Exemplos de portada universal no faltam: as grandes descobertas martimas
do sculo XVI, a implantao da lngua portuguesa no Brasil, a islamizao da frica, o
socialismo chins, o protestantismo na Amrica do Norte (diferente da catolizao da
Amrica Meridional), o processo atual de globalizao da economia etc. A
preponderncia excludente (e presunosa) de um macro valor humano (religio, poltica,
cincia, ideologia, etc.) pode ser prejudicial tanto em mdio quanto em longo prazo para
a humanidade. Sem dvida, a humanidade atingiu altos nveis de amadurecimento. O
dilogo e a liberdade se tornam, hoje, fundamentais para todas as pessoas e grupos,
mesmo quando se confrontam com interesses polticos, econmicos. As grandes
hermenuticas sobre a vida humana so limitadas a vrios fatores. E elas se impem de
diversos modos. Por exemplo: qual o significado das pirmides do Egito? - poltico,
econmico, cientfico, religioso? - E claro que, no momento de sua construo, elas
tinham valores to diversos (polticos, religiosos) dos que se imaginaria chegada dos
ltimos sculos. A histria faz mudar o significado (cultural, econmico, turstico) da
produo humana. No bojo da histria da atual cultura humana, parece que a cincia se
impe como fonte (nica) de explicao da vida. Mas, isto no satisfaz a milhares de
pessoas. Elas se sentem em desconforto, sobretudo pelo (dogmtico) fechamento ao
simblico e ao transcendente. O pensamento mtico - desde o homem primitivo - tem
uns quatrocentos mil anos. Seu significado social est ligado, na origem, ao
sepultamento dos mortos, domesticao do fogo, da gua, dos animais e da agricultura
etc. Ele fundamento tanto das artes, das religies, das filosofias, quanto das cincias. E
uma forma de pensar o que transcende ao imediato e busca os fundamentos da vida.
Neste sentido, sua linguagem simblica, pois fornece uma forma de conhecimento e
um modo de integrao social capazes de dar significao real ao mundo presente. A
irracionalidade do mito uma afirmao positiva, cujo contrrio apenas a
racionalidade da cincia, mas jamais a da vida. uma codificao metafrica para dizer
verdades que no se podem dizer diretamente. A linguagem religiosa tambm se vale
destes cdigos, exatamente, por colocar no transcendente - e no no imanente - a fonte
de sua motivao. Tambm a cincia tem uma forma mtica de narrar, mesmo que tenha
sua transcendncia na experincia ou na razo.

2. O lugar das cincias e das religies

Agora, aqui, se impe uma pergunta: O que nos fez humanos? No basta
estarmos diante de ns prprios para respond-la de modo satisfatrio. A natureza
historicamente tambm foi nos tornando humanos, ao agir sobre todos os seres vivos.
Distinguiu uns dos outros e os assemelhou simultaneamente. A natureza foi a fonte
primria de nossa existncia. Mas, a cultura que nos humaniza; no a natureza. O
complexo cultural da humanidade envolve a vida com a arte e a simblica, com a
filosofia e a religio, com a poltica e a cincia, com a indstria e a tcnica etc. As seis
primeiras explicam a vida. As duas ltimas (alm de outras) concretizam a vida. Somos
humanos porque a natureza e, sobretudo, a cultura no-lo fizeram assim. Nossa
humanizao cresce pelas contribuies auferidas pela cultura e pela socializao. Isto
se manifesta nas artes, na filosofia, nas cincias, no trabalho etc. Mas tambm - como
milhares de seres humanos creem - nas religies. As religies so uma macro
hermenutica da vida, em sua dimenso cultural. Elas, por serem holsticas, no se
enquadram nos critrios de verdade fixados pela cincia. Tm seu campo, sua
linguagem, seus mtodos, seus princpios prprios. Elas, como as cincias, tm seu
valor desde dentro de seu universo. Nenhuma das duas (cincia e religio) pode
permanecer coerente a partir dos critrios de discusso e verdade estabelecidos pela
outra. Isto no invalida a possibilidade de uma ser crtica da outra. deste modo que se
pode apressar uma concluso: a explicao da vida (origem, realidade, fim) no pode
ser exclusividade da cincia. Mesmo que se reconhea toda a sua importncia. Este
mito moderno tem sua garantia em si prprio (em seus mtodos e princpios). Porm,
tem tambm seus limites. Para uns, o limite exatamente o de estar fechado a qualquer
transcendncia. No porque o transcendente no se enquadra ao controle (verificao,
experimentao, comprovao etc.) que deixaria de ser verdadeiro. Muitas pessoas dos
tempos hodiernos, todavia, creem que cincia e transcendncia no so necessariamente
auto excludentes. Elas, na sua dinmica, se opem, dialogam e/ou reconhecem seus
respectivos campos (limites). No verdade aquilo que algum disse: porque no
cientfica a Bblia no verdadeira. Como tambm no o a contraposio: porque
no bblica a cincia no verdadeira. Generalizando as afirmaes: tanto os livros
sagrados quanto os cientficos contm suas verdades, dentro de seus limites. Em ambos,

o limite est, inclusive, em fatores como tempo/histria, significado, propsito etc. Toda
afirmao feita sempre num determinado momento, com os instrumentos culturais,
filosficos, tcnico-cientficos e lingusticos de ento. A medida da sinceridade de uma
e outra, pode-se descobrir sempre mais a verdade sobre quem somos ns, diante de ns
prprios, diante da natureza e diante do transcendente. Quem professa uma ou outra
deve saber em que contexto se coloca. E deve estar ciente de seus limites. Quem aceita
as teorias cientficas, como afirmao das verdades a respeito de si, da histria (da
evoluo), da facticidade atingido diretamente pela autenticidade de sua prpria
convico. Quem aceita a realidade da transcendncia atingido diretamente pela
autenticidade de sua prpria f, natural ou revelada - no importa. A aproximao do
cientista e do religioso produz no apenas desencontros. Hoje, sempre mais, a interao
delas gera estmulo a novas perguntas que as relaes produzem. Nenhuma das duas
to autnoma ou fechada sobre si mesmo, que, com o passar do tempo, no seja
questionada pela ou por causa da outra. Sempre foi assim na histria. E isto o ser para
melhor compreenso de cada campo.

3. Criacionismo? Uma histria

A relao entre cincia e religio compreende conflito, indiferena, autonomia e


dilogo. Neste estudo no interessa fazer esta histria. A seguir, quer-se apenas
aproximar mais da questo da evoluo e da criao - no do evolucionismo e
criacionismo, apesar de que no se pode passar ao largo desta questo. Por princpio
aqui se entendem como fatos a evoluo (conceito proveniente das cincias) e criao
(conceito proveniente da f bblica e de algumas religies). Teorias da evoluo
(evolucionismo) e criacionismo so dadas como explicaes do fato. No presente das
cincias deste campo, os autores propem vrias teorias sobre a evoluo; se o fato
aceito pacificamente, tal no acontece com suas explicaes - sobretudo por falta de
dados mais reais e por causa de interesses (fama, dinheiro, patrocnio cientfico) que
pesam sobre seus estudos. J o criacionismo uma ideologia. No cientfico, nem
bblico. Tem uma raiz poltico-religiosa. E se espalha bem mais desde os Estados
Unidos, sobretudo, atravs de grupos cristos recentes - quase todos de origem

fundamentalista. Ele parte de uma interpretao dos primeiros captulos do livro do


Gnesis, como se eles fossem histria factual das origens da humanidade. Este texto,
sabido, pertence primeiramente aos judeus. E eles no lhe atribuem uma fora fundante
para narrar as origens. Valorizam-no, at mesmo, muito menos que os cristos - que o
avocaram a si. Os primeiros cristos interpreta(ra)m os textos da criao (Gn 1 e 2) de
modo muito amplo. Por vezes, at parecem estar se referindo a textos diferentes - tal a
variedade de interpretao. Atribuir a criao a Deus uma ideia do monotesmo nas
vertentes crist, judaica e mulumana. Crer que Deus criou o cu, a terra e tudo quanto
existe do nada no significa necessariamente ser criacionista. Algum pode crer em
Deus criador e nas suas obras criadas sem seguir um fundamentalismo bblico. A Bblia
no um relato cientfico. Eis aqui a diferena. Gn 1 e 2 devem ser lidos como fonte
religiosa de uma revelao da ao de Deus e no uma explicao cientfica. Na esteira
dos judeus, os primeiros cristos os mantinham abertos e sem nenhuma pretenso de ver
neles algo histrico e/ou cientfico. A histrica influncia do helenismo, como razo
instrumental crist, e a falta de uma cosmologia mais adequada oportunizaram uma
interpretao factual dos textos como narraes histricas. Deram-lhe um realismo
cosmolgico, que se prolongou at os clssicos questionamentos da Idade Moderna com
Kepler, Coprnico e Galileu, entre outros. A ideia da evoluo (como hoje ela
entendida) j estava presente no prprio texto bblico, contado como uma histria de
salvao. Na patrstica tambm a ideia est presente. Mas, foi dando espao para as
concepes provenientes da filosofia essencialista e fixista. Desde o Iluminismo, nos
trabalhos de A. Lineu (1707-1778) - conhecido como pesquisador das espcies - de
Lamarca (1744-1829), de G. Mendel (1822-1884) etc., voltou a aparecer - mesmo que
posto sob suspeita. Tornou-se polmica com Charles Darwin e A.R. Walace. Estes
ousaram mais e a atriburam tambm ao ser humano (1859). Em contrapartida, para
defenderem suas tradicionais ideias, surgiram grupos cristos - entre eles a Igreja
Catlica, que depois progressivamente tomou distncia - que se apegaram letra do
texto bblico. O criacionismo assume os textos bblicos como se fossem um fato dado,
de explicao nica e contra a cincia contempornea. Ele afirma a criao instantnea
da vida na terra h menos de dez mil anos, onde macacos e humanos nada tm em
comum, porque o Criador teria feito as coisas e os seres - que existem - tais quais se
apresentam hoje. Desde o sculo XIX, porm, os criacionistas iniciaram uma cruzada
contra bilogos, professores e adeptos da evoluo. Estes comearam a no ser mais
aceitos em suas igrejas. O caso mais clamoroso o da condenao do professor e

bilogo John Thomas Scopes, do Tenessi, Estados Unidos. Ele foi denunciado por
ensinar o evolucionismo darwiniano nas escolas pblicas. Foi condenado por
transgresso lei. Mas, s no foi punido por causa de falha tcnica do processo
jurdico. A partir da, autores e editores - norte-americanos - retiraram dos manuais
didticos a teoria da evoluo - comportamento que discretamente perdura. Anda hoje
no basta, na Amrica, a proibio de ensinar as teorias evolucionistas. Em alguns
lugares, pelos anos sessenta, progressivamente e com xito discutvel, grupos de
cristos de direita americana - sobretudo protestante e pentecostal - passaram a lutar
pela obrigatoriedade do ensino do criacionismo em igualdade de condies. A disputa
continua em comunidades locais, sobre a adequao de manter ou no o tema, nos livros
de textos escolares. Em parte da imprensa americana e entre muitos estudiosos e
cientistas, a polmica permanece. A direita poltica a mantm. E visa justificar atitudes,
posies e teorias fundamentalistas em termos religiosos.
A discusso, todavia, no se restringe Amrica. Na Europa, e noutras partes do
mundo, ela se faz presente, sobretudo, entre fundamentalistas - sejam cristos sejam
cientistas - e a mdia. Meios de comunicao encontram neste tema oportunidade
frequente para gerar polmicas - que no so de interesse real, nem honesto. A polmica
maior entre cincia e f, no caso, vem sendo superada pela compreenso e distino do
objeto de cada campo do saber. A questo, em primeiro lugar, deve ser compreendida
dentro das igrejas crists. Dever-se- aprofundar a exegese do texto - que uma questo
interna dos grupos religiosos. Alguns criacionistas menos radicais tentam adequar ideias
bblicas isoladas para fazer ponte com os dados cientficos. Isto, porm, no digno
nem das cincias, nem da Bblia. Por sua vez, muitos cientistas vo compreendendo,
no apenas a autonomia com que pesquisam e trabalham, mas, sobretudo com o
significado e delimitao de seus estudos.

4. A evoluo e a Igreja

A introduo das ideias sobre evoluo (bem alm da teoria darwiniana, pois a
primeira muito mais ampla que a segunda) no seio da Igreja Catlica h tambm
alguns desdobramentos histricos importantes. Foi a partir da segunda metade do sculo

XX que comearam melhorar as relaes entre f/teologia catlica e cincias naturais.


Elas haviam caminhado entre o distanciamento, a indiferena e o confronto, no sculo
anterior. importante esclarecer tambm que no existe uma postura nica entre os
cristos sobre a evoluo. Tambm no unvoca a hermenutica bblica dos textos. Da
mesma forma, a evoluo comporta muitas teorias evolucionsticas e constri diferentes
abordagens no interno das prprias cincias naturais. A teologia tem uma histria
prpria frente ao tema da origem da vida do cosmos, da terra, da natureza e dos seres
humanos. A partir dos primeiros sculos do cristianismo, os intelectuais - em
continuidade ao pensamento judaico, mas tambm no confronto com o helenismo e
outras teorias surgidas dentro dos prprios grupos cristos - discutem algumas questes
bsicas. Dentre elas, o papel de Cristo na criao. Outros afirmam que a matria no
eterna. Tefilo de Antioquia (177) e, depois, Santo Irineu (205) aprofundaram o
conceito de criao ex nihilo. Sua origem no era o livro do Gnesis, mas o texto de
2Mc 7,22ss. Os Padres queriam realar a bondade do Criador, na relao e diferena
com a obra criada. Ao mesmo tempo, pretendiam manter a ligao dele com ela. Santo
Agostinho acentuou a soberania, a liberdade e a gratuidade de Deus, na criao. Ele
destacou a participao das criaturas na perfeio de Deus e a degradao humana, a
partir da interpretao de Rm 6,6ss. Santo Anselmo ps acento na necessidade do
Criador Sumo Bem e na contingncia do criado. So Boaventura enquadra e reafirma a
criao como parte do conjunto histrico salvfico que envolve uma ligao entre
criao e ressurreio. A doutrina tomista destaca Deus como causa primeira, eficiente e
final da criao. A criao e o conhecimento de Deus podem ser atingidos pela razo
(mas no s). A reforma protestante enfatiza a grandeza de Deus e a contingncia
humana, ressaltando as consequncias do pecado. No Concilio de Trento nasceu o
Tratado De Deo Creante et elevante, centrado em definio dogmtica, sem dilogo
com a cultura do seu tempo. Este tratado tornou-se fundamental para a formao do
clero. A evoluo foi oficialmente aceita como hiptese, na Igreja Catlica, em 1950.
Pio XII, na Encclica Humani Generis, incentivou a pesquisa nesta direo. Mas, o papa
fez uma distino datada: admitiu a possibilidade evolucionista quanto ao corpo, mas
no quanto alma. Joo Paulo II reconheceu, em 1992, que a evoluo muito mais
que uma hiptese, um fato plausvel. Para a Igreja Catlica, a questo das origens tem
uma importncia capital. Porm, o tema mantm ntima ligao com a f na revelao e
na aliana de Deus com seu povo. A Igreja reconhece o lugar nico dos dois primeiros
captulos do Gnesis, destacando no s a inspirao dos autores como tambm a

possibilidade diversa das fontes literrias do que chama de catequese dos mistrios do
princpio. Ao grafar a palavra princpio, o Catecismo da Igreja Catlica a coloca
entre aspas, pois que se lhe antecede um at longo comentrio sobre

as numerosas pesquisas cientficas que enriquecem


magnificamente os conhecimentos sobre a idade e as dimenses
do cosmo, o devir das formas vivas, o aparecimento do homem.
Estas descobertas nos convidam a admirar tanto mais a grandeza
do Criador, a render-lhe graas por todas as suas obras e pela
inteligncia e sabedoria que d aos estudiosos e aos
pesquisadores.7

Ainda continua o Catecismo:

O grande interesse reservado a estas pesquisas fortemente


estimulado por uma questo de outra ordem, e que ultrapassa o
mbito prprio das cincias naturais. No se trata somente de
saber quando e como surgiu materialmente o cosmo, nem
quando o homem apareceu, mas antes de descobrir qual o
sentido de tal origem: se governado pelo acaso, um destino
cego, uma necessidade annima ou por um ser transcendente,
inteligente e bom, chamado Deus. E se o mundo provm da
sabedoria e da bondade de Deus, por que existe o mal? De onde
vem? Quem o responsvel por ele? Haver como libertar-se
dele?8

Mas, a prpria Igreja, em sua doutrina, no exclusivisa a resposta cientfica,


alertando que outras concepes (religiosas e culturas antigas, filosofia etc.) tambm
devem ser consideradas nesta questo. E, neste sentido, a f vem confirmar e iluminar
a razo na compreenso correta desta verdade. 9

7
8
9

CCC, 283.
Ibid., 284.
Ibid., 286.

5. Um paradigma comum entre teologia e cincias: a


evoluo

Todas as religies tm sua forma peculiar de contar as origens das coisas, do


universo e do ser humano. certo, porm, que nenhuma delas tem isto como
pressuposto fundamental e nico. Entendem a questo como uma certa consequncia.
Nenhuma tem origem nas narrativas das origens. De modo geral, em muitas religies, o
presente e/ou o futuro so determinantes para compreender a vida e a si mesmo. Isto
torna possvel a compreenso do que fundamental. O novo modo de interpretar a vida
e tudo o que a cerca, includas as origens, dotou as cincias modernas do Ocidente de
um sucesso tal que parece tornar inteis as explicaes religiosas. As intervenes
cientfica e tcnica, sobretudo no Ocidente, resolveram com mais eficcia certas
situaes que os antigos (e atuais) rituais de oraes. Questes como colheitas,
fenmenos naturais, concepo e fecundao de crianas, avano das infeces e tantos
outros fatos concretos - pensam alguns - so acompanhados com eficincia s pela
cincia. No o so pela f. Ento, precisar-se- ia ainda da crena em Deus e de sua ao
no mundo? Sobretudo quando se concebe e se domestica o universo mecnico, a
evoluo biolgica e a biotecnologia, alm do controle sobre questes econmicas e
polticas? As cincias se modernizam, sobretudo, a partir da rigorosa aplicao do
mtodo e da delimitao do seu objeto. Todavia, em todas elas perduram pressupostos
(filosficos e ticos). Por causa disto, muitos cientistas contemporneos tendem a um
distanciamento das religies. Optam, no raro, por um materialismo militante e ateu,
visando - creem eles - salvaguardar suas cincias. Neste sentido, muitas religies e
teologias foram pegas de surpresa e reagiram de modo diferente. Ou se isolaram ou
criaram conflitos abertamente (fundamentalismo), ou ainda passaram a dialogar de
modo construtivo. A grande maioria das religies est fazendo evoluir sua compreenso
da histria, sem perder o significado de suas crenas. Compreendem elas a
transcendncia e a imanncia de seu mistrio e a simultnea limitao de fatos advindos
das cincias e das linguagens religiosas (dos mitos). Tambm as teologias vo
sendo tomadas por este paradigma evolucionista, trazido pela sociedade ocidental.
Telogos e crentes buscam novas explicaes, sem perderem os significados fundantes
de sua f, de seu(s) deus(es). Os cientistas e homens de f - passados tambm os

perodos de preconceitos e dogmatismos - vo entrando em dilogos capazes de fazer


pontes.10 O mais importante vem sendo o reconhecimento mtuo do campo, mtodos,
regras e pressupostos de cada grupo. Surge uma abordagem crtica, desde uma
epistemologia, capaz de fazer ver o que prprio de cada um e do outro. Mesmo
quando falam da mesma realidade e, sobretudo, buscam a verdade da mesma e nica
realidade - to complexa quanto multifacetada - so capazes de compreender
respeitosamente as diferenas. H novo paradigma da teologia (das religies) e das
cincias - casualmente comum: a evoluo ou dinmica da histria. 11 Ela diferente
da(s) teoria(s) da evoluo (evolucionismos). Por isto, facilitado o dilogo em bases,
mais compreensveis, para ambos os lados. Mas, convm frisar: cada campo do
conhecimento tem seu objeto, mtodo e limites (pressupostos) prprios. Apesar disto,
tanto dentro do campo teolgico (religioso) quanto cientfico h divergncias muito
intensas. Elas incluem at o oportunismo aventureiro. O pluralismo cultural um fato
inconteste e frequente na histria. O que h de novo, nele, a possibilidade maior de
busca de compreenso, tanto das religies quanto das comunidades cientficas. A
crescente presena de outras religies, sobretudo as do Oriente, tambm motiva o desejo
de conhec-las seja pela simples curiosidade ou pelo sincretismo, seja pela busca de
cultura ou de uma compreenso maior da verdade e da histria. Isto posto, pode-se
deduzir a existncia de muitas narraes da criao desde o ponto de vista religioso.
Mas convm logo distinguir: quem diz criao no fala desde a cincia. Fala desde a f.
Narrar a criao - isto no a mais central preocupao das religies - sempre se
servir de elementos que transcendem os aspectos materiais do mundo natural. buscar
o divino como causa primria. separar o criador preexistente do mundo criado. E
pesquisar a prpria fonte de criao. Todas estas dimenses so inviveis para qualquer
cincia. A cincia toma seu objeto desde as dimenses materiais do mundo natural. No
discute causas exteriores aos fatos. Nem reconhece foras estranhas e superiores
materialidade. Tampouco se preocupa com questes teleolgicas. A criao objeto de
piedade, venerao e teologizao no judasmo, no cristianismo, no islamismo, no
hindusmo, e em tantas outras religies. No Ocidente predomina a ideia judaico-crist muito mais pelo corte cristo que judeu, apesar de os textos fundamentais serem os
mesmos. A interpretao tradicional da criao no cristianismo usou duas fontes
principais: a Tor (de tradio abramica e mosaica: somente Deus criador; tudo mais
10
11

Cf. PETERS, T. & GAYMOND, B. (orgs.). Construindo pontes entre a cincia e a religio.
Cf. CAPRA, F. & STEINND-RA-ST, D. Pertencendo ao universo - Explorao entre as fronteiras da cincia e da espiritualidade.

criatura) e o helenismo (que est atento ao que mais conceituai: o que que feito,
pelo qual feito e para que feito).

6. A "teologia da criao" na perspectiva dinmica

Falar sobre a origem fsica do universo/cosmos (conjunto das realidades) e da


natureza (conjunto dos seres vivos onde a vitalidade manifestada) prprio da cincia.
Ela tem um modo de falar de um mundo autossuficiente, autnomo, mas fechado sobre
si mesmo. Na sua interpretao, o mundo se transforma e evolui progressiva e/ou
regressiva- mente por causas internas casuais e de sobrevivncia por adaptao. Guia-se
por princpios cosmolgicos em grande escala. Nestes princpios, o todo est para as
partes como estas esto para o todo. Tudo est submetido ao devir, morrendo,
transformando-se e re-nascendo. Tudo est em movimento. E est ligado numa
mesma cadeia de causalidade (princpio cosmolgico) e casualidade. A interpretao
crist da criao, fundada nas antigas origens do judasmo bblico, evolui tambm. No
que o texto bblico fundante tenha sido alterado. Mas, tanto a Igreja quanto a teologia esta mais rapidamente que aquela - reinterpretam o livro do Gnesis - livro das origens sempre afirmando suas verdades bsicas, na compreenso de seus contemporneos.
Como praticamente os 1.500 anos iniciais do cristianismo foram vividos em tempos sem
os atuais conhecimentos cientficos e, predominantemente, interpretados desde
conceitos dogmticos, no se teve espao cultural e poltico para outros voos. Era
suficiente o tratado manualstico da antropologia teolgica embasado no trip:
criao, pecado e graa, combinado de diversas formas. E este tratado j uma
superao do antigo tratado tridentino De Deo Creante (Sobre o Deus criador).
Muitos autores afirmam que a Igreja e a teologia no viveram a modernidade. Seriamos,
hoje, os ltimos pr-modernos. 12 Todavia, inegvel o atual esforo de superar a
modernidade, mesmo sem passar por ela. A Igreja empreende este esforo, sem destruir
sua tradio bimilenar, ao tentar situar-se frente humanidade. Todavia, com mais
agilidade, a teologia busca nova linguagem, nova compreenso de si e do contexto que a

12

Cf. QUEIRUGA, A.T. Fim do cristianismo pr-modemo, especialmente o eplogo.

rodeia. Sente- se, por vezes, no exlio.13 Por outras, sabe que no pode renunciar seu
discurso, pois por ser to peculiar ela sabe que ningum poder substitu-la: seu
discurso prprio e peculiar e omiti-lo prejudicar e empobrecer a prpria humanidade
a carecer desta mensagem.14 E assim que a teologia vai encontrando, no apenas novas
linguagens, novos mtodos, mas, sobretudo, vai superando um conjunto esttico de
verdades sobrenaturais e assumindo o processo histrico da salvao, onde Deus
compreendido como companheiro constante do ser humano, na criao continuada at a
escatologia. A teologia, como todo aquele que cr, encontra a verdade suprema, no no
enunciado teolgico, mas na realidade qual o enunciado prope uma certa expresso
verdadeira, mas limitada fazendo caminho ao caminhar. A cincia, em sua competncia,
se rege por constantes verificveis - que aparecem e podem ser dadas como razo
objetiva dos fenmenos. A teologia, por outro lado, se desenvolve como articulao de
uma resposta pergunta pelo sentido da existncia do universo e do ser humano. A
realidade de ambos a mesma. Mas os olhares so diferentes. A teologia precisa
tambm levar em conta as teis e sensveis provocaes advindas f e reflexo,
desde a ecologia (contra o antropocentrismo), desde as proposies da modernidade
(razo, cincia e tcnica), desde a compreenso formal do mundo e da histria (contra
os espiritualismos). Mas, necessrio igualmente dar nfase escatologia e estrutura
crstica da obra criada, onde se inclui o ser humano. Por tudo isto, importa desde a f
acompanhar tanto as narraes da histria humana - como contam as cincias atuais,
para magnificar a Deus descobrindo, a, seus mistrios de bondade - quanto aprofundar
as narrativas desde a f - como conta nosso livro sagrado, para descobrir Deus mais
intimamente e am-lo mais profundamente amando toda a obra da criao,
principalmente aqueles que ele nos deu como irmos. Como sntese, aqui se pode
afirmar: a Igreja Catlica no concorda com o criacionismo. Mas, diante da evoluo
prope uma reflexo prpria, chamada teologia da criao. No privilegia nenhuma
teoria evolucionista, pois constata a provisoriedade de todas elas. Opta por manter sua
linguagem bblica sobre a criao (os chamados, atualmente, mitos criacionais bblicos)
por encontrar neles o significado de suas grandes afirmaes de f, de compreenso da
razo da existncia humana e do cosmo. No entende a criao como um fato acabado,
mas um processo contnuo (criao contnua). Como corpo, tanto a Igreja quanto a
teologia acreditam ainda - e isto, at o momento, bom - manter sua explicao, mesmo
13
14

Cf. DUQUOC, C. A teologia no exlio - O desafio da sobrevivncia da teologia na cultura contempornea.


Cf. GESCH, A. O ser humano, especialmente cap. 3.

que devam, por questes culturais e cientficas, explicar o significado de sua linguagem.
Nas questes pastorais, especialmente de iniciao catequtica da f, ainda h
dificuldades de linguagem e/ou atualizao de muitos catequistas ou autoridades
religiosas - o que no invalida o posicionamento oficial que reconhece a importante
contribuio da cincia - como instrumento para glorificar a Deus - afirmar a criao
como ato livre, gratuito e desejado por Deus.

Captulo 3

De onde viemos?

A histria contada desde a horizontalidade

Somos mais de seis bilhes de pessoas humanas sobre a face da terra. Mesmo
assim, somos apenas uma das milhes de espcies que sobrevivem hoje, numa longa
evoluo. As cincias contam essa histria desde suas teorias asseguradas por si
mesmas horizontalmente - para embasar seus pressupostos cientficos. No caso da
evoluo ou das origens, na verdade, so afirmaes acatadas, ou melhor, deduzidas de
(pequenas) evidncias ou sinais, que, por sua vez, so antecedidas de outras, numa
cadeia, cujo incio uma suposio reconhecida pela comunidade cientfica. 15 Assim, se
fala na questo da origem do cosmo - do big-bang, da teoria das cordas, da teoria da
inflao catica etc.
As cincias contam a histria da evoluo, porm, sem destino, sem causas
causantes. Contam, somente, o que aconteceu (descrio), como aconteceu
(funcionalismo) e por que alguns fatos decorrem de outros (causas remotas adaptativas).
Na sua histria no h propsitos, nem direo. Tudo pode ter sido fruto do acaso ou
necessidade. Se, por um lado, h uma progressividade nas espcies, por outro no se
deixa tambm de constatar vazios e enigmas espera de novas luzes.
importante, para o crente e para a teologia, conhecer esta grande narrativa
ocidental moderna. Sobretudo porque ela tem importncia e validade para ele;
especialmente para o que capaz de reconhecer o lugar da hermenutica cientfica e o
da sua f. No conhecimento da cincia, o crente tambm capaz de perceber a
misteriosa presena do Deus criador. No que ele subordine sua f cincia, mas que
reconhea tambm o legtimo significado desta dentro do plano de Deus. A narrativa
cientfica pode ajudar no aprofundamento da f em Deus ao se perceber processos,
sinais e fatos que, independentemente das interpretaes cientficas, manifestam a ao
15

Apesar de haver contestaes, inclusive em formas de denncias. Ver, por exemplo, Michel Cremo e Richard Thompson. A
histria secreta da raa humana. Edio condensada do livro Arqueologia proibida.

divina na histria. Sem dvida, a histria do cosmo, da vida e do ser humano - tanto em
sua origem quanto em seu desenvolvimento - muito complexa. Exige profundidade de
conhecimento, dedicao em pesquisa, seriedade cientfica, honestidade intelectual.

1. O lugar do ser humano no planeta

A vida dos mais de seis bilhes de seres humanos sobre a face da Terra apenas
uma das milhares de espcies de vida. A biodiversidade um patrimnio comum do
planeta. Ela, porm, passa a ser uma questo candente, na atualidade, seja por causa da
eliminao natural seja por causa da eliminao provocada de inmeras espcies,
inclusive como preo do desenvolvimento. Por outro lado, ela problemtica devido
crescente apropriao e controle por foras econmicas e polticas que, querendo
patente-las, reservam seu domnio e querem excluir do usufruto comum milhares de
outras pessoas. O controle exclusivo da vida, por alguns grupos, pode pr em risco a
comunidade dos seres vivos, incluindo os seres humanos - que podero ser excludos da
prpria vida.
Diz-se que se todo o universo conhecido fosse reduzido a uma linha de 8km, a
Terra seria to-somente um gro de areia mal visto a olho nu. E neste planeta vivem seis
bilhes de seres humanos, ao lado de milhares de outras vidas, como as formigas, os
mosquitos, as aves, alm de micrbios invisveis.
Desde que vive a espcie homo sapiens, isto h uns 50 mil anos, o nmero de
indivduos tem aumentado continuamente. No se conhece nenhum perodo digno de
meno em que a populao mundial tenha diminudo. Assim, a Terra poderia ter, no
perodo neoltico, uns 10 milhes de habitantes. Ao tempo do nascimento de Cristo
eram entre 200 a 300 milhes. No comeo da Idade Moderna, por volta de 1650, cerca
de 500 milhes habitavam a Terra.
Nos ltimos 300 anos o crescimento demogrfico tornou-se espantoso. Depois
de 1800 ultrapassou-se o limite de um bilho. Em 1930 chegou-se ao segundo bilho.
Em 1960, a humanidade atingiu a marca de trs bilhes de pessoas 16. O sculo XXI
comeou com mais de seis bilhes... caracterstico nisso a rpida elevao de taxas de
16

Cf. GADAMER-VOGLER. A nova antropologia, vol. 3, p. 24.

crescimento vegetativo. Se, na Antiguidade, o crescimento humano era de dois por


cento em mil anos, hoje, crescemos cerca de 2% ao ano. 17
Estes seis bilhes se apresentam, hoje, de modo to diversificado em suas
culturas, religies, costumes, tica e comportamentos cotidianos, que parecem no
pertencer mesma famlia humana. Muitos comportamentos sequer so exclusividades
humanas, pois so encontrados em outros animais mais ou menos prximos a ns.

O ser humano, dotado de inteligncia e liberdade, vive numa


contnua busca de caminhos melhores para realizar seu projeto
de vida, para melhores condies de sua existncia, para sentir
sempre mais a casa sua no universo criado. O mundo no um
ambiente hostil, um lugar de luta pela sobrevivncia, um espao
ilimitado para registrar sucessos e fracassos, avanos tcnicos e
oscilaes morais. Ele deve tornar-se uma casa acolhedora, onde
o ser humano possa viver em companhia de todas as outras
criaturas. No interior desta casa, ele vive seus afetos, projetos,
seu futuro. Exprime sua sensibilidade religiosa. Neste seu
realizar-se no tempo e no espao ele no parte mais do zero, mas
h pontos de referncia como a tradio cultural de sua nao,
sua pessoa fsica, suas pertenas sociais, polticas e religiosas, e
tambm suas prospeces, como futuro a concretizar com sua
criatividade e de impostar com sua liberdade e fantasia. 18

O aparecimento do ser humano definiu-se h uns quatro milhes de anos, com o


crescimento do crebro, a bipedia, a terrestralidade e a cultura. um processo que
continua, mesmo sofrendo grandes adaptaes. Tem se tornado sempre mais complexo.

2. A histria da evoluo pelas humilhaes do ser


humano

A evoluo um fato expansivo, que de modo imediato no apresenta finalismo,


nem direo. Todavia, cincias arqueolgicas e morfolgicas, sobretudo a partir de
certos stios, conseguiram ir refazendo uma histria retrospectiva da origem humana.
17
18

Id., p. 24.
SANNA, I. Dallaparte delluomo - La chiesa e i valore umani... p. 13.

Tal histria, em confronto com as culturas (ocidentais) dominantes, criou tenses sobre
as leituras e autocompreenso da humanidade. Especialmente a modernidade, com suas
cincias, discutiu cosmovises anteriores, substituindo-as (quase) dogmaticamente por
novas concepes que pareciam jogar fora a bacia, a gua e a criana. As cincias
fizeram a crtica de tudo o que se pensava e cria at ento.
O ser humano se imaginou, nos ltimos 10 mil anos, como centro e rei do
universo. Fez o sistema solar girar em torno de sua Terra. Mas recentemente descobriu,
atravs de Coprnico, sua iluso: a Terra apenas mais um dos planetas que gira em
torno de outro centro, o sol. O sol um dos milhares de sistemas celestes no universo.
Os seres humanos se acreditavam superiores a toda natureza e pensavam que ela
estava a seu servio. Darwin deu um grande impulso a uma ideia que j vinha sendo
preparada: a evoluo animal. Outros cientistas completaram: o ser humano no seno
fruto da evoluo da vida. Ele filho da Terra e da vida, como o so as plantas, os
pssaros, os ratos, os macacos e os mosquitos. Toda vida um processo de evoluo,
onde uma vida explode da outra. Nenhum ser passou a existir acima ou fora do quadro
evolutivo. Os seres humanos se apresentavam orgulhosos de sua superioridade, mas
foram destitudos dela e irmanados no processo evolutivo, sem superiores nem
inferiores, mas to-somente diferentes.
Num outro aspecto da cultura tradicional, homens e mulheres, a partir de sua
racionalidade e liberdade e de suas crenas, julgavam-se responsveis nicos por todos
os seus atos. Mas, Freud descobriu que eles no se governam a si pela vontade. Esto
sujeitos a uma srie de impulsos inconscientes. Eles se consideravam senhores de todas
as foras internas e se descobriram condicionados por tantos outros fatores, que muitas
vezes estes quase eliminavam a liberdade e a prpria racionalidade humanas. Do alto de
seu pedestal, foram lanados a um cho quase to pobre, que se sentiram humilhados,
em sua presuno anterior.
A humanidade - sobretudo dos pases desenvolvidos e dos ricos - se sentia
orgulhosa de suas conquistas cientficas e tcnicas, capazes de lev-la ao espao
interplanetrio e ao controle cientfico de tantas realidades. Sentiam-se senhores
absolutos do universo. Suas conquistas, na verdade, eram apenas de uma parcela
humana e que o orgulho cedia lugar vergonhosa in-solidariedade. Os fatos
mostravam que homens e mulheres pobres no universo formam um contingente de 2/3
da populao mundial. Quase um bilho passa fome. Seu futuro imediato a morte.

A histria humana no pode ser contada ignorando o cosmo todo e sua evoluo.
O ser humano no algo, algum isolado e/ou indiferente a todas as outras espcies de
vida. Ele participa, no ecossistema, do conjunto da vida, das mais diversas formas de
vida.
Mesmo com suas peculiaridades, ele, por um lado, apenas mais um ser vivo;
por outro, possuidor da razo e da liberdade, capaz de superar os condicionamentos
fsico-materiais, pondo-os a seu servio.
H to pouco tempo o ser humano sentia-se senhor e usufruidor absoluto do
cosmo. E aceleradamente passou a gastar tudo quanto a natureza produzira em milhares
de anos. Parecia-lhe que os recursos naturais eram infinitos. Todavia, um tanto tarde, se
percebe que os recursos so limitados, que as vidas vm sendo ameaadas. Diz-se que,
entre os sculos XVI e XIX, uma espcie era eliminada a cada dez anos. Entre 1850 e
1950, uma por ano. A partir do ano 2000, uma espcie desaparece a cada hora, mesmo
que especialistas digam que existam ainda entre 10 e 100 milhes de espcies. O
prprio planeta, em que vivemos, um macro-organismo vivo, que compe um todo
sideral. O risco de eliminao das espcies e a degradao do planeta pem em perigo
tambm a prpria vida humana.
Isto to real que j h mais de duas dcadas se vem denunciando que a terra
est adoentada e em perigo. Em outros aspectos, so milhares de homens e mulheres
que vm desenvolvendo uma sadia conscincia ecolgica empenhados na proteo
ambiental e no simultneo desenvolvimento sustentvel. 19
Estas quatro grandes humilhaes (o cosmo, o inconsciente, o ecossistema e a
pobreza) fizeram o ser humano reler seu lugar no cosmo, na natureza, no interior de si e
no contexto social. Ele no s no rei e centro, mas por vezes inimigo - real ou
potencial - de todo o universo. No s no est acima dos outros, como, por vezes,
degrada-se a si mesmo nas humilhaes que infringe a seus irmos e sua me/irm
Terra. No s no rei e centro do universo, mas destri sua prpria vida e impede o
crescimento humano20 e de todo o ecossistema. A espcie humana ficou ameaada por
si mesma, aps ter vivido de costas para a natureza, pondo em risco sua prpria
evoluo.
A histria humana no pode ser contada isolada do cosmo. Ela, todavia, pode ser
narrada de muitos modos. Pode-se descrev-la desde a riqueza e a pobreza das naes.
19

Ver meu livro: Condio humana e solidariedade crist, especialmente p. 213-236.


SUZIN, L.C. Mysterium creationis, p. 92.

Das vitrias e derrotas blicas, do desenvolvimento dos povos, do progresso cientficotecnolgico, da subsistncia dos grupos, do amor e do dio das pessoas, etc. Todos os
relatos tm seu valor, inclusive a histria dos homens e mulheres a partir dos deuses.
H milhares de estudos que contam estas histrias. Todas elas, porm, sem perceber,
historiam a vida do homo sapiens. Na verdade, o ser humano destes ltimos dez mil
anos quando a humanidade adquiriu esta forma atual - foi deixando gravadas nas
grutas,

edificaes,

cemitrios,

cidades,

bibliotecas,

poesia,

artes

etc.,

sua

autocompreenso e sua vida.

3. Os mistrios das origens

As macronarrativas tradicionais sempre tm como ponto de partida algo ou


algum para alm do incio (histrico) da existncia das coisas. As grandes e antigas
culturas, especialmente na vertente religiosa, atribuam a origem do universo, da vida e
do ser humano ao criadora de Deus(es). Do princpio divino decorriam as realidades
csmicas e humanas. As teorias se sucederam, criando grandes divergncias. 21
Tais histrias ou mitos - tanto os cosmognicos quanto os antropognicos davam razes de viver aos seus povos. As narrativas dos gregos, persas,
mesopotmicos, egpcios, astecas, maias etc., tambm se impunham, sobre seus povos,
como fonte de vitalidade e sentido. Na histria do Ocidente (ltimos quatro milnios),
impuseram-se progressivamente a cosmogonia e antropogonia judaicas conforme os
relatos do Antigo Testamento. A histria da evoluo do ser humano atravs das
cincias , no entanto, hoje, uma das mais fortes e convincentes narrativas. Desde a
modernidade, o Ocidente, por causa da racionalidade, da tcnica e das cincias (que
mostravam evidncias de como a histria caminhou), quis substituir todas as grandes
narraes da histria humana (que visam o sentido e o significado da histria).
Se a questo das origens foi, durante milhares de anos, domnio exclusivo das
religies, progressivamente foi se tornando tambm discurso cientfico. O sentido
simblico e paradigmtico delas foi mudando. Assim, as narrativas bblicas teriam
passado a valer como se fossem afirmaes cientficas.
21

Este texto no tem a pretenso de ser cientfico. Por isto, e inclusive, so feitas apenas grandes indicaes de fatos e datas insuficientes aos especialistas da antropologia, da fsica, da arqueologia e pesquisadores afins.

Neste sentido, cresceram, desde o sculo XVII at o final do sculo XX, grandes
tenses interpretativas cuja discusso e rigor ultrapassavam as narraes simblicas para se afirmarem questes, na verdade, ligadas aos poderes (religiosos e/ou cientficos)
que se antagonizavam dogmaticamente a fim de poder sobreviver.
Um tanto tardiamente se percebeu que a melhor atitude a autonomia e a
complementaridade entre as duas posturas, guardados os limites de ambas. Tal
percepo leva a(s) religio(es) e a(s) cincia(s) s atitudes de humildade e grandeza,
de beleza e importncia de tudo quanto misteriosamente existe.
O cristianismo catlico admitiu a evoluo a partir da encclica Humani Generis,
do Papa Pio XII, em 1950. Joo Paulo II chegou a afirmar que a evoluo no apenas
uma hiptese, mas um fato.
certo que, em alguns ambientes de cientistas e catlicos, estas polmicas
continuam. Continuam, sobretudo por falta de profundidade de uns e outros ou porque
alguns sabem muito de seu campo e interpretam, quase primariamente, o do outro.
Entretanto, a definio de campos, mtodos e objetivos torna clara a opo e o
significado dos dois universos diferentes entre si, sem ser necessariamente opostos. Ao
cientista compete o campo das origens, atravs de comprovaes e correlaes
concretas. Homens e mulheres de f buscam o significado das origens vinculado ao
sentido do fim ltimo.
Mas, a discusso muito mais forte entre cristos evanglicos e cientistas,
sobretudo nos Estados Unidos da Amrica. A a polmica criacionista versus
evolucionismo chega a extrapolar questes religiosas e cientficas para se tornar questo
poltica... fundamentalista - como se viu no captulo anterior.

4. O mistrio das origens do cosmo

O mistrio das trs origens (a origem do universo, da vida e da mente) poderia


ser a sntese de toda a narrativa das origens. Trs grandes cincias estudam estes
fenmenos. A cosmologia se envolve com as questes de como evolui(u) o universo. A
biologia quer descobrir a vida, na complexidade das molculas orgnicas. As cincias
da cognio querem entender a mente como crebro. Os gregos e outros povos antigos a

entendiam como alma herana que os cristos assumiram como patrimnio


(hermenutica e/ou real).
Na atualidade, a afirmao cosmolgica mais divulgada a do big-bang. O
universo ter surgido h quatorze bilhes de anos. Mas esta datao no aceita to
pacificamente. Outras teorias - como a da inflao catica (que envolve a chamada
energia escura), o das supercordas (corpos elementares que vibram em 10 ou 11
dimenses) - do um dinamismo intenso s pesquisas cosmolgica e astrofsica atuais.
Elas levam os cientistas a um chamado perodo de ouro, no s pelas possibilidades
que se abrem, quanto pelas maravilhas que se descobrem.
Os cientistas - polmica parte - vo se concentrando na construo de um
modelo padro de universo, partindo do primeiro milsimo de segundo das origens. Isto
, do momento em que o tempo teve incio. No, porm, sem dificuldades. A descrio
das propriedades fsicas do universo, as noes sobre espao e tempo, os modelos
matemticos, as origens das leis fsicas etc. ainda so limites demasiadamente grandes
para as explicaes definitivas. Todas estas teorias podem partir do momento inicial
(imaginado), sem nada poderem afirmar de um antes deste momento histrico. Isto,
todavia, no desautoriza os cientistas a continuarem seus importantssimos estudos.
Parodiando o astrnomo e divulgador de cincia Carl Sagan (1934-1996): a ausncia de
recursos de interpretao no significa inexistncia dos fatos a serem interpretados.
Da matria primordial ejetada numa contnua expanso surgiram gases, energias
e partculas subatmicas, passando pela formao de tomos, densificando-se em
estrelas, constituindo-se em aglomerados de at mais de seis bilhes de estrelas em cada
um. A Via Lctea, nossa galxia, compreende 200 bilhes de estrelas. Ela existe h 10,
12 bilhes de anos. Suas vizinhas mais prximas so: as duas Nuvens de Magalhes, a
300.000 anos-luz, e Andrmeda, a 1.700.000 anos luz. Um ano-luz corresponde a
10.000 bilhes de quilmetros. A Via Lctea para dar uma volta sobre si mesma
necessita de 200 milhes de anos-luz. Nosso aglomerado de galxias tem 100 sistemas.
Outros podem ter at milhares de galxias. Nossa galxia se move a 600km por
segundo. O sol gira em torno de seu centro. A Terra gira em torno do sol.
Por sua vez, a Terra est h 27.000 anos-luz do centro de nossa galxia. Ela ter
aparecido h cerca de 4,5 ou 5 bilhes de anos, como parte do sistema solar. Seu raio
mede 6.400km. Tem uma circunferncia de 40.000km. Est distante do sol 150 milhes
de km de anos-luz. Por isso a luz solar - que viaja a 300.000km por segundo - demora 8
minutos e alguns segundos para chegar Terra.

5. O mistrio da vida

A origem da vida tambm permanece um mistrio. Alguns cientistas acreditam


que a vida se originou em alguma outra parte (ou partes) do nosso sistema solar ou da
galxia. A busca da presena da vida noutros espaos uma obsesso da pesquisa
hodierna - mesmo que isto no nos seja desimportante. Todavia, mesmo encontrando
vida - que porventura tenha dado origem vida da Terra - nada ainda se poder afirmar
sobre a origem da vida.
O que a vida? Como ela surgiu? Por princpio, dever-se-ia criar uma receita
que misturasse determinados ingredientes importantes nos seres vivos de forma a uma
auto-organizao capaz de reproduzir-se, ter autonomia, adaptar-se e de alimentar-se do
ambiente sua volta (autopoiesis). 22 Mas, os cientistas ainda esto longe de poo
mgica e fantstica.
Gases e poeira csmica foram se resfriando e se densificando, durante um bilho
de anos, dando origem primeira atmosfera da Terra. Nesta sopa de Oparin provavelmente uns 800 milhes de anos depois - j havia vida unicelular. Estas
clulas primitivas teriam surgido em muitos lugares da Terra, mas foram se perdendo.
Triunfou a famlia de uma bactria primitiva que aprendeu produzir albuminas,
ao lado do RNA (cido ribonuclico) primitivo. Ela conseguiu armazenar os seus genes
primitivos na forma estvel do DNA. Proveu-se de substncias energtico-nutritivas da
sopa de Oparin (assim chamada por causa do pioneiro neste campo: Alexander
Oparin), at se esgotar. Tal bactria desenvolveu um cdigo gentico capaz de produzir
albumina. Criou uma sequncia bsica de nucleico-cidos numa sequncia de
aminocido de albumina. E admissvel que todos os seres vivos de hoje provenham
daquela bactria primitiva, sejam microrganismos, plantas, animais, mamferos primatas
e o prprio ser humano. Provavelmente todos detm o mesmo cdigo gentico.
interessante aqui ressaltar que, entre os bilogos, praticamente unnime a
afirmao de que toda a vida procede de uma nica clula primitiva. Isto importante,
sobretudo, para aqueles que muitas vezes entendem (mal) que o atual ser humano
descenderia do macaco.

22

Ver VARELA, F. El fenmeno de la vida, p. 53.

A partir deste comportamento, h uns 3,8 bilhes de anos, as bactrias primitivas


comearam a se utilizar de energia solar para produzir substncia nutritiva a partir de
associaes qumicas mais simples (fotos- sntese). Depois fabricaram hidrognio,
desde a gua. E a se descortinou uma fonte inesgotvel de energia. Vestgios de
produtos fotossintticos, em formao geolgica, so encontrados a 3,8 bilhes de anos
para trs. Tal inovao na natureza gerou um problema: a liberao de um gs reativo e
letal para a vida de ento. Isto se repete, hoje, por ao humana que ejeta gs carbnico
na atmosfera.
A natureza de ento engendrou uma soluo maravilhosa: ofereceu outras
bactrias que passaram a usar o oxignio para a transformao mais completa de
substncias nutritivas. O cido lctico foi reduzindo o cido de carbono e oxignio.
Surgiu um feito maravilhoso: a respirao. Fato que se igualava origem da vida. (Por
causa da respirao, os humanos tornaram-se biologicamente esses mamferos
complexos, com msculos, sentidos e crebro - apesar de o problema ter se mostrado
provisrio.) As clulas, por causa dos desgastes, poderiam contrair, em outras palavras,
doenas como cncer, ataque cardaco, hemorragia cerebral ou morte por
enfraquecimento global (isto , velhice).
Desde a respirao, a vida passou a explodir de forma maravilhosa e
incontrolvel numa complexidade crescente e diversificada, em combinaes sucessivas
e sempre mais sofisticadas. Os seres vivos foram se constituindo em trs grandes
grupos: os protistas (clulas primitivas) que se diferenciam em protfitos (de onde
se originam os vegetais) e os protozorios (de onde surgem os animais). Todos eles em
ltima anlise vivem direta ou indiretamente do sol. A natureza e a vida sobre a terra
sofreram adaptaes, mutaes, mortes, etc. Mas, a vida foi sendo sempre mais
vencedora.
H cerca de 350 milhes de anos, os anfbios saram das guas. Transformaramse em rpteis de colunas vertebradas. Deles surgem grandes rpteis como os surios, os
dinossauros, os diplodocos, os brontossauros e os mamferos.
O asteroide - que caiu na provncia de Yucatan, Mxico, h 65 milhes de anos alterou to profundamente a vida do planeta, a ponto de os dinossauros terem
desaparecido junto com 40% das espcies de vida. O impacto correspondeu exploso
de um bilho de bombas nucleares na Terra - segundo postularam o fsico Luiz Alvarez,
da Universidade da Califrnia, e seus colegas, em 1979. A exploso gerou uma nuvem

de poeira alta na atmosfera, escondendo a luz do sol por vrios meses. Vegetais
primeiro e depois os animais, em massa, foram extintos. Era o fim do perodo cretceo.
Os nichos ocupados pelos grandes rpteis passaram a ser ocupados por outras
espcies de mamferos - menores e mais adaptados nesta reestruturao da biosfera.
Aps a Era dos Rpteis - onde desapareceram os grandes rpteis, sobretudo os
dinossauros, por volta de 65 milhes de anos - comearam a surgir mamferos menores,
primatas de aspecto moderno. Foi a Era dos Mamferos, com um total de 6.000
espcies. Destas, umas 200 espcies originais iniciaram uma radiao adaptativa
incluindo aumento na variao do corpo e ampliao de dieta alimentar.
Os grandes primatas deste perodo s foram descobertos pelos anos 90 do sculo
XX. A partir da os indcios fsseis tm sido encontrados muito frequentemente. O mais
difcil entre os cientistas tem sido estabelecer uma viso consensual sobre evoluo
deles. Contudo, h certa aceitao de que superfamlia hominoidea - que inclui as
espcies viventes e extintas de smios e de seres humanos e de seus ancestrais - provm
da ordem dos primatas, que d origem subordem anthropoidea, que gera a infra ordem
catarrhimi. Nesta superfamlia surgem - como nomes comuns - macacos, smios e seres
humanos. E o fssil mais antigo desta famlia tem uns 200 milhes de anos. O termo
primata indica a ordem principal dos mamferos.
Os hominoides, do perodo mioceno, em geral africanos e eurasiticos, eram
habitantes de florestas tropicais e subtropicais. No longo processo de evoluo destes
homindeos, vo surgir algumas caractersticas sempre mais importantes. Discute-se sua
ordem sequencial, pois uma pode anteceder a outra. So elas: a bipedia (andar sobre os
dois ps para liberar as mos), a terrestralidade (viver no cho, no nas rvores), a
encefalizao (crescimento do crebro) e a cultura (arte de confeccionar e utilizar
ferramentas). Estes elementos vo caracterizar o nosso homo sapiens, mas no so sua
exclusividade. Teriam eles vivido entre 5 e 6 milhes de anos. Deles derivariam gorilas,
australopithecus, orangotangos, chimpanzs e seres humanos.
Os mais antigos homindeos conhecidos so os australopithecus ramidus (da
Etipia, 4,4 milhes de anos), os anamensis (do Qunia, entre 4,2 e 3,9 milhes de
anos), os bahrelghazalil (do Chade, entre 3 e 3,5 milhes de anos).
Os fsseis dos australopithecus afarensis foram encontrados na Etipia,
Tanznia e Qunia, datados entre 2,9 e 3,9 milhes de anos. A este ramo pertencem
Lucy - o mais famoso esqueleto com 40% completo, cuja anatomia combina
caractersticas de smios e seres humanos - e vestgios de mais 13 indivduos. Eles

foram encontrados num nico stio e so conhecidos como Primeira Famlia. Esta
descoberta foi feita, em 1974, por Donald Johanson e sua equipe do Institute of Huvians
Origins (IHO), de Berkeley, junto com Maurice Taieb, um paleontlogo francs.

6. O grande salto para a humanidade (a mente)

Poder-se-ia dizer em sntese: na histria da vida, o ser humano,


retrospectivamente, encontrou como parentes imediatos os australopithecus, os
afarensis, os anamensis, os ramidus. Para trs destes primatas, em comum com os
chimpanzs, esto os mamferos, os rpteis e vegetais sados das guas - alimentados
pelo sol -, os anfbios, organismos phmcelulares, as clulas protistas (bactrias
primatas) - onde teria comeado a vida. Esta certamente uma fora, uma energia nica
e misteriosa, que se manifestou na matria e na histria deste planeta, h mais de trs
bilhes e meio de anos. O planeta tem uns cinco bilhes de anos dentro do universo, que
comeou misteriosamente entre 13 e 15 bilhes de anos.
A ancestralidade do ser humano remonta h uns dois bilhes de anos, onde
viviam algumas das 6.000 espcies de homneos, cuja maioria foi extinta no final do
perodo cretceo. Umas 200 espcies sobreviveram. E elas constituram dois grandes
grupos: australopithecus e homo. A transio entre ambos se deveu ao aumento do
crebro e reduo da robustez dos maxilares e dentes molares e pr-molares dos
ltimos.
A definio homo merece um reparo. Consciente ou inconscientemente, parece
estar ligada ao ser humano. Mas, na verdade, o homo um homindeo de crebro
grande, presumivelmente mais desenvolvido tecnologicamente que os australopithecus.
Pertence famlia dos grandes mamferos. As hipteses sobre a continuidade histrica
da evoluo esto longe de apenas estabelecer consensos. Mais facilmente elas so
respeitadas que aceitas. O homo de que aqui se fala um ancestral ainda muito remoto
do ser humano atual.
Convm lembrar que nosso estudo aqui apenas referencial. Por isto, fazemos
um salto na histria, onde se pressupe passar pelo homo rudolfenses, homo ergaster e

homo erectus - de onde talvez tenha se originado o homo sapiens. Este ltimo, por sua
vez, seria o antepassado do homo sapiens (arcaico) da Eursia.
Foi da Eursia tambm que teriam se originado os neanderthalenses. Eles
viveram entre uns 150 mil at provavelmente 24 mil anos atrs. Seriam, para alguns
cientistas, um ramo da rvore evolutiva humana. Outros cientistas os consideram como
um subgrupo da espcie: no seriam os antepassados do homem moderno. Teriam
convivido com o atual homo sapiens. Este, por ser mais forte, eliminou os
neanderthalenses, que parece no terem deixado traos na histria dos ltimos 24 mil
anos. Sumiram completamente.
So trs as linhas mais usuais da evidncia no estudo das origens dos seres
humanos modernos: as anatmicas, as genticas e as arqueolgicas. Os estudiosos ainda
tm dificuldade de estabelecer critrios definitivos sobre a combinao delas, seja para
datar, seja para localizar a origem dos seres humanos, os sapiens modernos. As
dificuldades surgem por falta de material fssil constante em cada evidncia e na
relao entre elas. Os estudos so complexos demais. Aceitar ou abandonar um
elemento fssil (gentico, anatmico ou cultural) pode ser motivo de mudana de
interpretao de teorias respeitadas. 23
O homem moderno, anatomicamente falando, pode ser datado entre
200.0 e 60.000 anos. Neste perodo so localizados seres humanos na frica e
Oriente Mdio. Teriam chegado China h 65.000. Na Europa, h 40.000 anos. Nas
Amricas, h 25.000 anos. No Extremo Oriente (Australsia) h aproximadamente
60.000 anos. Sem dvida, pelas evidncias arqueolgicas, o homo sapiens espalhou-se
pela Europa, sia e frica h uns 35 ou 40 mil anos.
As evidncias genticas so muito complexas. Seus estudos comearam h
apenas 25 anos. S em 1987 que se obteve algum resultado palpvel com os estudos
do DNA mitocondrial. Foi ento que se constatou a possibilidade de o homem moderno
ser sucedneo de vrias espcies de sapiens arcaico e homo erectus. Ele seria filho de
uma populao africana de uns 10 mil indivduos. Por sua vez, seria filho de uma nica
mulher. Ela teria vivido aproximadamente h 200.000 anos. conhecida como a Eva
mitocondrial.
Como os seres humanos desenvolveram a capacidade de inteligncia criativa
para alm da sobrevivncia dos seus antepassados primitivos? Os cientistas respondem

23

Veja-se, por exemplo, a contestao de CREMO, M. e THOMPSON, R. A histria secreta da raa humana.

que este salto qualitativo no apenas algo recente, mas tambm algo de difcil
comprovao na histria da evoluo do ser humano.
A capacidade de confeccionar ferramentas, superior a smios, chimpanzs e
outros, segundo vestgios fsseis, deve ser buscada h quase dois milhes de anos. O
crebro dos primeiros homindeos comeou a crescer. Ao lado do aumento do crebro,
foi-se tornando complexa a organizao social, sobretudo no cuidado da famlia. Novos
padres comportamentais demandaram cada vez mais estratgias sociais sofisticadas
como alianas de grupos de subsistncia, posturas inteligentes diante de adversrios do
prprio grupo.
Um outro fator significativo - de difcil comprovao factual - a fala. Contudo,
no desenvolvimento da complexa estrutura da fala produzida no pescoo (laringe e
faringe), aliada a msculos faciais e feixe de nervos do hemisfrio esquerdo do crebro
que se encontra a formatao atual. Desde a atualidade, os paleoneurologistas foram
atuando, retrospectivamente, at o homo rudolfensis e espcies tardias do homo para
constatar os dois padres bsicos da laringe no pescoo: capacidade de engolir e
respirar.
O trato vocal dos seres humanos o nico em todo o mundo animal.
Os elementos da fala - para que se desenvolvessem os seres humanos como
animais sociais e muito depois como seres falantes - esto ligados s estruturas
neurobiolgicas evoludas, necessidade gradual de comunicao - para alm do
gestual -, construo da conscincia - frente aos desafios mentais de situaes internas
e ao contexto social, desde o Paleoltico superior. Este foi um passo gigantesco para um
processo sempre mais acelerado do desenvolvimento do ser humano - crescentemente
distanciado dos animais.
O homo pekinensis (Homem de Pekin, de 500 a 200.000 anos) foi o primeiro a
domesticar o fogo. Com isto, superava-se o pavor que ele inspirava. Mant-lo aceso e
auferir suas possibilidades foi um passo extremamente significativo. Mais ainda foi
criar tcnicas para acend-lo de novo.
Na passagem do Paleoltico Mdio para o Paleoltico Superior - segundo o
historiador Arnold Toynbee - a aventura humana iniciou a revoluo tecnolgica, que
Rousseau chama de progressos quase insensveis dos comeos.
A ltima grande inovao material, antes do homo sapiens que conhecemos,
consistiu em revolucionar quantitativa e qualitativamente instrumentos de pesca, caa,

arte etc. Neste tempo - por causa do ltimo perodo glacial do Hemisfrio Norte,
comeou-se a usar roupa. Certamente foi neste perodo que se controlaram as guas.
Os primeiros vestgios humanos de enterrar os mortos datam de uns 50 mil anos.
Foi um esforo penoso, intil (suprfluo) e inadequado dadas as premncias do tempo.
Todavia, enterrar os mortos tornou-se uma vitria progressiva na valorizao de
sentimentos, na procura de explicaes sobre os poderes que afetam a vida, sobre
fenmenos csmicos assustadores, sobre as calamidades e grandes desgraas, e na busca
de maneiras de evitar situaes malficas (originadas da doena e da morte).
Frente s terrveis foras adversas - e sem poder ignor-las - procurou acomodarse a elas; inclusive, para assegurar a sobrevivncia do indivduo e do grupo. Tentava-se
manipular as foras csmicas. E descobria-se algo invisvel e inacessvel, atravs da
natureza e dos animais. Surgiram as crenas religiosas e as prticas rituais, que
traduzem compromisso na interao homem/natureza, homem/animal, homem/cosmos,
homem/transcendncia. Isto constituiu, com as respectivas crenas, a base das religies
naturais.
A vida dos povos primitivos consistiu em deambular em vastos territrios,
migrando neles constantemente. Isto levou a um distanciamento sempre maior dos
grupos. Este comportamento deu origem a contatos difceis entre eles que viviam sua
rotina ao sabor do ritmo csmico.
A partir de 12 ou 10 mil anos surgem outros dois importantes fatos: a inveno
da agricultura e a domesticao dos animais.
Na virada do nomadismo para o sedentarismo, tambm se inventou e
desenvolveu-se a agricultura - que ser o fato mais marcante, segundo alguns, de toda a
histria da evoluo da humanidade at agora. Ela teria surgido quase simultaneamente
na atual Turquia, no Curdisto, na Mesopotmia e na Palestina, nos Blcs, na sia, na
Europa, no Egito, passando s Amricas.
A domesticao dos animais ps fim ao ciclo letrgico da vida humana.
Conservar viva uma presa, salv-la, cri-la, prover-se dela nos momentos de penria,
no depende mais exclusivamente da caa e da pesca etc. Estavam lanadas as bases
fundamentais para nossa futura vida econmica. Criavam-se assim hbitos grupais de
partilha, troca, clculo, colaborao e relaes de poder poltico de alianas e de
guerras.
O descobrimento da agricultura foi muito importante. Deu origem inicialmente a
um nomadismo circular, aliado ao tempo (estaes, chuvas, clima). Exigiu

progressivamente a investigao sistemtica de esforos para obter resultados a prazo


(da semeadura colheita). Organizou-se a ocupao exclusiva de parcelas de terras,
determinadas e distribudas por um chefe. Descobriram-se formas de fertilizao
permanente (excrementos de animais).
Estes fatos e suas consequncias vo levar organizao de aldeamentos. O
mais antigo, provavelmente, Jeric (10.000 a C). Com isto, se tornaram necessrias
novas formas de organizao social, da famlia, do elemento religioso, do cl e, por fim,
do Estado.
Para muitos estudiosos, a inveno da agricultura o fato mais transcendente de
todas as invenes. E a partir da que os passos tecnolgicos da humanidade sero
gigantescos.
Foi em decorrncia dela que, pelos meados do 42 milnio a C domesticou-se o
pntano da Mesopotmia atravs de drenagem e irrigao - ao fundamental para o
domnio humano sobre a natureza. Depois viro as pirmides, a escrita, o estudo dos
astros, as grandes religies (atuais) e culturas com os grandes poemas de Gilgamesch
(2800/ 2600 aC), Enuma Elish, o Cdigo de Hamurabi, textos do Antigo Testamento,
literatura vdica, os livros chineses Yi King e Tao Te King, os textos de Buda,
Confcio, Zaratustra etc.
A passagem base das civilizaes, alm de ser uma histria to recente,
significa a arrancada de uma marcha triunfal da humanidade em direo a grandes
aventuras. Tais fatos passam pela conquista de terras e mares indo desembocar na atual
corrida espacial lua e outros planetas do nosso sistema solai'.

7. Respostas que no satisfazem sempre

O ser humano partira do zero e lanou-se aventura de realizao de seus


sonhos. A razo, a cincia e a tcnica o tm levado nos seus ltimos 20 anos s
situaes jamais imaginadas. Ele se torna capaz de poder manipular seus genes - o que
lhe possibilita alterar voluntria ou artificialmente sua prpria histria biolgica. Pode
devastar e destruir o prprio planeta, com a fora de suas armas. capaz de produzir
artefatos que o levem s distncias extraplanetrias impensveis. E capaz de produzir

pensamentos e artes - que lhe enchem o corao de xtase. E quase capaz de ser deus...
E, por fim, preciso crer que h ainda todo um futuro a ser descoberto e domesticado,
dentro e fora do planeta, dentro e fora do prprio ser humano. A cincia atual comeou
h apenas trs sculos.
Todavia, a marcha triunfal da humanidade no caminha sem uma imensa legio
de excludos e vencidos - precedida de uma minoria de vencedores. Isto o desencadear
da tragdia decorrente do progresso. Viver dos bens produzidos pelos outros e explorlos tornou-se um privilgio intolervel para os demais. A excelncia de resultado do
poder transformador criou a legitimidade abusiva de poderes que perpetuam desmandos
na grande famlia humana.
Ter-se- chegado ao fim da evoluo humana? - Ela prosseguir? Que surpresa a
histria nos reserva? Permaneceremos o grande solitrio? Desapareceremos como
desapareceram os neanderthalenses, h apenas 25 mil anos?24 - Ou logo teremos, de
novo, companheiros que daro seu salto qualitativo, como fizemos ns?
Por mais importantes que sejam estas perguntas, elas apenas abrem
possibilidades de respostas ainda insatisfatrias, seja porque esto afetas aos horizontes
restritos da histria factual, seja porque no tm abertura para a transcendncia. Saber
como o cosmo, a vida, o ser humano caminharam no responde s inquietaes maiores
e mais existenciais. Milhares de homens e mulheres querem tambm saber o
significado, a razo do cosmo, da vida e do ser humano. Qual a grande origem de tudo?
E mais ainda, para onde tudo caminha?
ento que surgem as perguntas e respostas das narraes religiosas como
cosmovises holsticas, baseadas na f e/ou revelao. Milhares de homens e mulheres
encontraram e encontram nelas razes de viver, agir e melhorar o espao em que vivem.
O captulo seguinte apresenta a resposta crist, a partir da grande narrativa criacional
judaica no Antigo Testamento, em perspectiva transcendental, portanto bem diversa mas no contraditria e nem dependente - desta narrao encerrada nos horizontes
humanos que se acabou de contar.

24

Descobertas bem recentes na Gruta de Gorham, em Gibraltar, aproximaram mais ainda esta data para uns 24.000 anos.

Captulo 4

De onde viemos?

Uma histria contada desde a transcendncia

A grande maioria dos mais de seis bilhes de homens e mulheres que hoje vivem
sobre a face da terra tem uma forma religiosa de contar a ao criadora de seu(s)
Deus(es) e dos tempos das origens. Assim foi tambm com os milhares e milhares de
seres, que nos ltimos 100.000 anos desta progressiva humanizao chegaram at ns e
assim ser, sem dvida, nos sculos e milnios vindouros.
Homens e mulheres de todos os tempos e lugares tm suas explicaes
cientficas, culturais, religiosas etc. para os mistrios inauditos das origens. A partir do
povo hebreu situado no Oriente Mdio, h 3.000 anos, expandiu-se para a Europa - e da
para as Amricas e frica e continua rumo ao Oriente distante - a explicao judaicocrist das origens do cosmo e do ser humano. No pela razo (cincia ou logos), mas
pela f (religio, mythos e ethos), a explicao bblica tem um novo significado prprio
- sem nenhuma pretenso cientfica - para interpretar as origens criacionais do cosmo e
do ser humano (protologia) desde os critrios da escatologia (consumao do mundo).
o fim que d significado s origens criacionais. por causa da participao definitiva de
todo homem e de toda mulher em Deus, que ns, os crentes, nos voltamos para as
explicaes do incio (protologia) e atribumos o significado do desejo de Deus expresso desde os remotos tempos da oralidade bblica sobre a criao. Deus quer nos
salvar, fazendo-nos participar de sua glria (escatologia), por isso criou o adam, e o
criou homem e mulher.

1. Para ler a criao, desde a Bblia

Na primeira metade do sculo XX, os catlicos comearam a perceber que a


Bblia no pode ser lida de modo unvoco. um livro, isto , um conjunto de
livrinhos (Bblia), escrito durante mais de mil anos em ocasies muito diferentes.
Apesar de tudo, ela mantm fidelidade Palavra de Deus. A Palavra divina crida
como revelada por Deus, mas recebida conforme a capacidade do escritor sagrado.
Desde a hermenutica bblica, vo-se reconhecendo sempre mais os sentidos dos textos
e seu papel na e para f da comunidade.
Referendada pelo Magistrio catlico - desde Pio XII, em 1950 a conquista
hermenutica torna possvel compreender melhor o significado dos textos sagrados,
inclusive os desafios provenientes das cincias. Por causa da hermenutica pode-se
perceber que o sentido literal dos textos o mais superficial de todos os nveis de
interpretao. Alis, isto tambm vale para o judasmo. 25
Sobre o tema bblico da criao do mundo e do ser humano foram escritos
muitos textos. Alguns deles so dedicados, inclusive, prpria histria da interpretao
do texto.
A fuso dos dois textos da criao. A criao contada biblicamente em vrias
passagens, cujo objetivo midrshico era atualizar a Palavra Sagrada. Mas dois textos se
impuseram na histria. E, para o bem e para o mal, eles foram sincretizados num s e
assim passaram a ser usados na catequese, na teologia e na homiltica.
Tefilo de Antioquia (fim do sculo II) foi quem fundiu, por primeiro, o texto da
criao em sete dias (Gn 1,1-2,4a) com o texto de Gn 2,4b- 25, sincretizando, inclusive,
a origem do ser humano, ao mesmo tempo, feito de barro e imagem de Deus. Esta
postura foi defendida e divulgada pela Escola Antioquena, mas progressivamente foi
universalizada.
A criao do nada. J a criao ex nihilo no est presente nestes textos. Ela s
aparece em 2Mc 7,28, quando da exortao da me macabica ao seu filho mais novo:
Eu te suplico, meu filho, olha o cu, olha a terra, contempla todas as coisas que
existem, e reconhece que Deus as criou do nada e que a humana gerao feita da
mesma maneira.
25

LEONE, A.G. O conceito judaico da criao do mundo. In: SUZIN, L.C. Mysteriuvi creationis, p. 163.

A teologia da criao do nada originariamente foi encontrada no Pastor de


Hermas. Depois foi retomada pelos Padres em geral. A partir do sculo II, tornou-se
uma narrativa catequtica. Desde o fim da Antiguidade tornou clssica para expressar a
criao. A afirmao criao do nada teve significado apologtico frente s grandes
polmicas para afirmar tanto a dependncia da criao em relao ao criador, quanto
para separar a ambos; tanto para evidenciar a bondade e liberdade de Deus quanto a
contingncia da criatura. A afirmao foi mantida pela constituio Dei Filius do
Vaticano I. O concilio devia fazer, com isto, frente s formas modernas de monismo e
de emanentismo. Tornou-se mais incisivo frente ao positivismo materialista, que tomava
fora com as afirmaes do evolucionismo de Darwin. A criao hoje. A teologia
contempornea sobre a criao do universo e do ser humano multifacetada. Mesmo
assim algumas snteses j vo se firmando. Compreendem-se melhor as narrativas
bblicas, no contexto original. Superam-se as questes sobre a evoluo e os
concordismos. Respeitam-se a autonomia e competncia cientficas. H uma grande
contribuio contempornea para superar a falsa leitura evolucionismo X
criacionismo. Tambm superado o choque frente s acusaes advindas das teorias
natalistas (originadas com Th. Malthus) e dos movimentos ecologistas (dcada de
setenta).
A nova teologia da criao. O contributo positivo de novas interpretaes vem
surgindo nas igrejas crists com a nova teologia da criao. A se enfatizam os
princpios originais: a afirmao da ao criadora de Deus para todo existente, sua
interveno pessoal - mesmo que atravs de causas segundas -, a criao continuada, o
resgate da criao na histria salvfica e cristocntrica, o dinamismo da histria cuja
ao culmina na escatologia, a liberdade e a bondade de Deus, a reverncia pelo criado
no-humano (animal e vegetal). Afirma-se o lugar relevante do ser humano no conjunto
da criao, enquanto o antropocentrismo perde sua relevncia.
A teologia da criao - hoje - abandonou o estgio de uma discusso apologtica
frente s cincias. Mantm uma preocupao comum pela preservao da criao.
Reconhece - desde a histria salvfica da humanidade - a transformao das mltiplas
formas de vida. Sua resposta diferenciada holstica. E est em funo do significado
do uni verso e do ser humano enquanto razes da salvao. Isto , importa o plano de
Deus. Integra a criao das obras visveis e invisveis no processo crstico do plano
divino. Enfatiza a filiao divina, a relao e irmandade universal do ser humano. Em
relao vida, no ignora a provisoriedade e os limites do mundo criado. E capaz de

pensar sua transcendncia. E, por fim, aponta para a consumao final de toda a obra
criada.
A nova teologia da criao prope-se a pensar as origens para dar os
fundamentos da f ao olhar tudo o que existe, existiu ou existir na histria dos homens
e de Deus. A experincia crist j pensa o universo em transformao - incluindo o
ser humano - porque pensa Deus como acontecimento dinmico e escatolgico. Pensa o
universo numa cristologia csmica, porque cr que tudo est vinculado a Jesus Cristo.
Pensa no significado de tudo porque sabe que o Esprito de Deus perpassa toda a criao
desde o incio. Ele a acompanha. Ele a conduz para a consumao. Isto , para a
realizao definitiva do projeto da Trindade.

2. Reapropriao da cosmognese e antropognese

A inteno dos textos. No so muitos os textos bblicos sobre a criao. E,


inclusive, foram com frequncia reduzidos e sincretizados, como se afirmou acima. A
criao, em si, um tema secundrio. Isto quer dizer: a Bblia no tem inteno de
escrever sobre a criao em si. Nos textos bblicos, esta nfase sempre recai na dialtica
Deus criador X as coisas (e o ser humano) criadas. Tal relao tem como objetivo no
apenas desdivinizar tudo quanto existe como tambm evidenciar sua diferena com
Deus.
Mas, acima de tudo, os textos bblicos querem falar sobre a benevolncia livre e
gratuita de Deus que tudo cria pela fora de sua Palavra e do seu esprito. A doutrina
bblica no tem motivaes e interesses cosmolgicos - nem cientficos. Seu contexto
sempre teolgico e, especialmente, soteriolgico. A finalidade maior dar testemunho
de f de um povo na ao de Deus, no mundo e dentro do mundo. Esta ao, muitas
vezes, contrasta, de modo imediato, com a in-humanizao do ser humano ou a situao
des-humana que est vivendo (p.ex. exlio na Babilnia). Os textos da criao quase
sempre terminam louvando a Deus. Ou querem celebr-lo em seus cuidados por todas
as criaturas. Colocam nele suas esperanas que crescentemente se transformam em
esperanas de nova criao. Por outro lado, crer que Deus cria salvando e salva
criando. A criao est em funo da salvao, mais corretamente. Enquanto a cincia

descreve como, o qu e de que forma as coisas existem, a teologia se ocupa do porqu


melhor que existam as coisas do que no existam. Quer ressaltar obviamente que Deus
criador. Assim, a Igreja afirma seu ensino maior (sua inteno) expresso no Vaticano I:
Deus age criadoramente, no para aumentar sua bem-aventurana ou para aumentar
sua perfeio. Ele age criadoramente para que todo o universo criado - includo o ser
humano - participe de sua vida. Tambm o Magistrio e a teologia mantm a
perspectiva de que o sentido de tudo est direcionado glria de Deus e consumao
em Cristo. Todos os povos - includas as naes modernas - tm seus relatos dos
comeos e das origens de sua realidade experimentada centrados num acontecimento
simblico. Para Israel, esta histria, a proto-histria, est afirmada, sobretudo nos
perodos pr-exlico, do exlio e ps-exlico e sempre centrada em Deus.

3. O significado da criao no texto mais antigo (Gn


2,4bss)

No se pretende aqui fazer a histria da interpretao dos textos da criao (algo


complexo). A inteno ater-se ao significado teolgico. Antes do exlio da Babilnia,
sculo VI aC, so bem poucos os enunciados sobre a criao no Primeiro Testamento. A
seguir nosso objetivo analisar teologicamente os textos bblicos, comeando com os
mais antigos. E, dentre eles, tambm um dos mais significativos, Gn 2,4ss.
O contexto de Gn 2,4b-3,21. A segunda narrativa da criao, na forma atual,
considerada como o comeo da obra historiogrfica javista. Ela surgiu, provavelmente,
na poca de Davi, Salomo e de outros reis, entre os sculos X e IX aC. Contudo, ela
deve ser considerada em conjunto com os outros textos javistas: partes da histria do
dilvio (Gn 6,8) e a narrativa da Torre de Babel (Gn 11,1-9), nos quais se acena a
diversas narraes sobre o pecado, a queda humana, a punio do ser humano e a
comiserao de Deus. Esta questo exige uma leitura conjunta com a queda (Gn 2-3.
Fato que a teologia e a Igreja isolaram do contexto, dando-lhe uma grande repercusso
como teologia do pecado original).
O ser humano como obra criada. A narrativa comea com a criao do ser
humano (adam). Ele formado por Deus da terra agricultvel (adamah) quando no

havia terra a cultivar. No havia ainda planta nenhuma. Tambm nem tinha chovido.
Deus o modelou, com terra ume- decida no manancial que subia do solo e irrigava toda
a terra (Gn 2,6). Depois insuflou nele seu nefesh (flego da vida), fazendo-o um ser vivente.
Esta narrativa continuaria (com uma segunda narrativa) com a criao dos
animais e da mulher. Assim, o homem (designao sexual neutra) no ficar s, numa
msera solido (Gn 2,18) Deus lhe dar como companheira a mulher. Os animais estaro
ao redor deles.
Entre a lealdade e a fraqueza. A partir da - e intimamente ligado -, narra-se uma
primeira histria do pecado, no jardim que Deus criara para o ser humano (2,9-4). O
cenrio da queda descrito em Gn 3, antecedida pela proibio de comer os frutos da
rvore do conhecimento do bem e do mal (3,1-17). A punio dos trs culpados (a
mulher, o homem e a serpente; cf. 3,14-19) quer expressar a culpa do ser humano pelo
prprio sofrimento e o da natureza. O israelita - cuja mulher experimenta as dores do
parto, da dominao machista e cujo trabalho lhe ser pesado - sabe que nada disto
pertencia vontade divina. Tudo ser decorrncia de seu pecado. O sofrimento e o mal
so consequncias da irresponsabilidade humana frente a Deus.
O pecado e o amor de Deus. O texto bblico passa a narrar, ento, a histria
etiolgica de outros pecados. O ser humano se distancia (pela expulso do paraso) de
seu criador e faz crescer suas inimizades - quase sempre mortais para os homens (p.ex.
homicdio de Caim contra Abel - 4,1-16). Esta inclinao humana se prolonga no
pecado dos homens, ao tempo de No, castigados pelo dilvio (6); o pecado perturba as
relaes inter-humanas, fraternais, sociais e econmicas (7-8).
Deus, porque bom, arrepende-se. Absolve o ser humano (8,21). Na bno a
Abrao, ele ir criar um novo incio. Ele ir criar ex nihilo, em Abrao, um povo to
numeroso quanto as estrelas do cu (12,1-8). Ir criar onde no havia nada a no ser
seno velhice e tero seco. Far, desde Abrao, uma nova criao to numerosa como
os gros de areia da praia ou as estrelas do cu.
Em resumo, o javista sabe que o ser humano e a terra boa vm das mos de
Deus. Mas, o ser humano, desde o incio, tornou-se desleal com quem o fez. O javista
conta, ento, a histria de Deus e dos seres humanos com nomes concretos. Ele quer
afirmar que todos os seus coetneos tm parte nesta histria de Deus e dos homens,
desde o incio.

Esta experincia existencial tem 4 ncleos: a) Deus bom; b) mesmo que o ser
humano (ou a comunidade) peque ou tenha experincias amargas, Deus quer salv-lo;
c), pois foi assim que Deus agiu desde o incio; d) assim que continuar agindo.
Narrativa etiolgica. A grande maioria dos biblistas, hoje, afirma que Gn 2,4bss
no tanto narrativa criacional. Mas uma narrativa etiolgica da ao de Deus criador.
Ou seja, a explicao de uma realidade experimentada atualmente, pelo autor da
narrao, como uma realidade original. Com isto, explica-se a experincia dos semitas
sobre a conscincia do bem e do mal, a liberdade criativa ou destruidora, a primazia de
Deus ou do ser humano. Desde o princpio, o ser humano engrandecido e agraciado
por Deus... Mas, produz, por suas aes grupais, societrias e internacionais, a
desavena e a corrupo do corao (assassinato de Cabem, idolatria nos tempos de
No, confuso de deuses em Babel etc.). Apesar do mal humano, Deus, o criador, leva
adiante seu projeto. Um ano aps o dilvio, a terra seca e estril comea de novo (nova
criao) a produzir flores e frutos, graas aliana (bensh) com No. E a (re)criao
consumando-se como salvao. Deus est de novo implicado nas vicissitudes humanas.
Redime, de novo, o ser humano.
O diferencial de Gn 2,4bss. Convm ressaltar grandes diferenas entre os dois
grandes textos criacionais: Gn 2,4bss e Gn 1,1-2,4a. No segundo texto, Deus cria tudo
desde o nada, ou desde o caos, separando os contrrios, embelezando a criao, e,
por fim, criando o ser humano pela fora de sua palavra (faamos o homem...). No
primeiro texto, a ordem inversa: a terra seca e deserta. Ainda no havia chovido e
nem existia o homem para cultiv-la. Ento Deus cria um adam (um ser terrenoso), feito
da adamah (terra), que cultivar o jardim de Deus ou o seu prprio. Cultivar a terra no
ser um castigo. Ser, isto sim, a tarefa daquele que foi criado no jardim (3,22-24). Ele
cuidar do jardim de Deus.
No se encontra a (Gn 2-3) uma representao do pecado original. Nem nas
Escrituras hebraicas faz-se referncia desobedincia. O comentrio sobre o pecado s
vai aparecer nas escrituras gregas (cf. Eclo 40,lss). Os castigos so atribudos (no
singular) ao homem e mulher. No aos psteros (3,16-19).
A histria no Jardim do den mostra a intimidade e a cooperao perdida pelo
distanciamento do ser humano quando comea a querer ser Deus. Da surge o
sofrimento (aspecto etiolgico), que vai crescer sempre. O texto javista (Gn 6,5) acentua
a tendncia humana para o mal. Acentua tambm a vontade de Deus que - arrependido

por t-lo criado (Gn 6,6) - volta a perdo-lo. Mais ainda: volta a abeno-lo depois em
Abrao: atravs de ti, todas as geraes sero abenoadas (12,3).
Deus criador. No fundo, o texto apresenta Jav/Deus agindo na histria,
criando, acompanhando o criado (natureza e ser humano). O objetivo no s o ato
criacional em si, mas a atitude de Deus acompanhando a criao (criao continuada).
Alis, na Bblia, 1) a criao, em si, tem bem poucas citaes, como j se
afirmou. Contudo, elas sempre so apresentadas para louvar a Deus, o criador. O nome
de Jav, El, significa literalmente aquele que traz existncia ou aquele que cria.
O nome um verbo causativo;26 2) os relatos da criao so, em geral, metforas para
se perceber que a ao de Deus - o que acompanha sua obra criacional - e em relao
condio humana manifestam a vontade divina de dar cumprimento salvfico sua obra.
Deus completo e perfeito; sua obra est a caminho do aperfeioamento; 3) deve-se
ver nas metforas da criao, sobretudo, a ao redentora e salvadora de Deus em
relao condio e situao humanas.
Deus acompanha a sua obra desde o incio para dar-lhe cumprimento salvfico.
Portanto, Deus intervm redimindo, para poder salvar, isto , levar plenitude a obra
criada, a fim de que ela participe de sua glria. A criao e a redeno/salvao esto,
pois, em funo da participao do criado na vida de Deus e a vida em plenitude - como
dir Joo (10,10).
1) No jardim de Deus: a criatura da terra. Neste texto javista evidente ainda
destacar que a criatura humana no vem vida por questes de evoluo e/ou causas
biolgicas. A nfase recai sobre a terrenalidade humana. Ela {adam) filha da terra
(adamali). Convm tambm recordar o grande binmio: cu/morada de Deus e
terra/morada dos seres vivos. O ser humano vem da terra. Deus o modela com o barro
da terra, como o oleiro faz seu vaso. O homem feito pelas duas mos de Deus - o
Verbo e o Esprito - donde procedem as outras vidas. O filho da terra (adam) no feito
das coisas do cu. Vai, apenas, receber o hlito de Deus.
O ser humano colocado no jardim de Deus, o den - um lugar utpico a leste
(i.e.: na Mesopotmia). Ele colocado a para cultiv-lo. O jardim, onde Deus mora,
no ser a casa do homem. Sua morada estar fora do jardim, mesmo que
temporariamente o adam habite o jardim do Senhor - onde foram plantadas duas
rvores, a da vida e a do conhecimento do bem e do mal (2,9). Adam pode comer os

frutos de todas as rvores, inclusive da rvore da vida (que lhe dar a imortalidade), mas
no a do conhecimento.
2) Solido e companhia. Convm insistir no carter etiolgico da proibio do
comer dos frutos da rvore do conhecimento. Deles advir a morte (2,17). Esta
proibio seguida do texto que El quer livrar o ser humano da solido (2,19-20). Por
isto convm dar-lhe uma companheira. Os que so iguais aos humanos - tanto em
substncia quanto na origem (animais e pssaros) - desfilam diante do homem. Nenhum
digno dele. Nenhum corresponde a ele. Um fracasso criacional de Deus?! Ser preciso
outra criao/redeno?! Ser necessrio dividir o humano (adam) e criar dois seres
intercomplementares (ish - varo e ishsha - mulher). Antes dessa criao complementar
(2,4b-24), adam a espcie humana indiferenciada, a criatura humana em sentido geral
(que no se confunde nem com um andrgeno nem com um hermafrodita - como ocorre
em muitos mitos de outras religies). Depois (2,25 -3, 24) ser o indivduo diferenciado,
mas como socium. Isto : feito um do outro (carne da minha carne, meu igual). A
identificao sexual - depois da social - s ser efetiva na segunda parte da narrao
(2,24), quando eles voltarem a ser uma s carne, como na origem, enquanto marido e
mulher.
3) Ritual de passagem. Na primeira parte do mito (enquanto estavam nus e no
sentiam vergonha um do outro - Gn 3,24), eles viviam no jardim de Deus. Era Deus
quem trabalhava a. Aps comerem o fruto da rvore do conhecimento, vai haver uma
mudana do status do homem e da mulher: iro para fora do jardim de Deus. O homem
e a mulher devero trabalhar (criar cultura), fora do jardim de Deus, quer dizer: na sua
prpria terra (cf. Gn 3). Tradicionalmente esta atitude foi chamada de queda (p. ex.:
Rm 5,1; ICor 15; ITim 2). Uns a chamaram de desobedincia. Outros de pecado, pecado
original.
Observe-se que, no texto bblico, a primeira referncia bblica ao pecado est no
contexto da morte de Abel (Gn 4,1). A expulso de Ado e Eva do paraso de Deus ser
um rito (dramtico) de passagem. Da vida mtica vida real. Desde a morada de Deus
para a morada do homem. Desde a vida querida por Deus para a vida real!
4) A serpente. Nesta segunda parte do mito, surge uma nova personagem: a
serpente. Ela uma criatura, formada tambm do barro de terra, formada da matria do
cosmo. o mais astuto dos animais. Fala como os humanos e com os humanos. Ela
conhece, sabe.

Enquanto isto, o par humano est nu - i.e.: no sabe, no conhece, no


distingue entre bem e mal. Comer o fruto poder conhecer, saber e distinguir.
A sabida serpente conhece os segredos de Deus. Fala a verdade para eles:
Deus no quer que os humanos, sendo como deuses, conheam o bem e o mal (3,5) e
por isto venham a morrer. Comendo os frutos, eles sero como deuses. Mas havero de
pagar seu preo - e isto a serpente no diz! No que ela minta; apenas no lhes diz toda
a verdade. Comendo o fruto proibido o casal humano ter a capacidade de criar como
Deus. Inclusive o homem saber como semear sua semente na mulher e criar vida nova.
5) O merisma. O conhecimento do bem e do mal incluir - no s - o
conhecimento da sexualidade. Por isto, muitos biblistas falam dele como um
merisma. Merisma significa uma totalidade expressa por duas partes constitutivas, ou
a diviso de um assunto em partes diversas.
6) O homem criatura e quer ser como Deus. Ser como Deus significa no
poder mais estar no jardim de Deus. necessria a excluso do lugar de Deus. O ser
humano nunca ser Deus, para viver no jardim do Senhor. Aquele habitar e cultivar agora que conhece - o seu jardim: a Terra. Esta mitologizao leva compreenso do
dramatismo que surge entre o homem diante de Deus e o homem diante de seu prprio
conhecimento. Doravante com o seu suor, seu sofrimento e sua autonomia, ele dever
cuidar de si prprio. Ele saber cuidar porque conhece o bem e o mal. Ele , sem
dvida, de Deus, mas no est mais no jardim de Deus. Agora ele est no seu jardim: a
Terra. Conhece o bem e o mal. Que seja o responsvel por seus atos! No seu mundo
real, ele distinto de Deus, mas tambm distinto da terra.
7) Cultura e sexualidade. O merisma sobre o conhecimento do bem e do mal
envolve a criao/cultura. E claro, o aspecto da sexualidade e intimidade sexual
(percebem-se nus. Devem cobrir a genitlia - Gn 3) faz parte do conhecimento e da
cultura. A sexualidade (pro)criativa. O conhecer implica criar - criar como Deus. Aqui
os seres humanos comeam se distinguir de Deus (no vivem no seu jardim) e do
restante da criao (a natureza). Como conhecem o conhecimento de Deus (o bem e o
mal), devem criar sua cultura e nela a diviso do trabalho. O homem vai lavrar a terra e
plantar. A mulher gerar filhos... Isto, porm, tambm ser fonte de sofrimento. O
conhecimento no lhes ser infuso. Ser preciso adequ-lo. E adquiri-lo a duras penas.
Entre fracassos e vitrias, entre desafios e situaes inesperadas, entre criatividade e
improdutividade.

7.1) No jardim dos seres humanos. Excludo do paraso de Deus, posto na sua
terra (sua realidade), o ser humano, sem perder o hlito divino, mas conservando-o,
dever cultivar o seu jardim. E no jardim dos homens, condividindo o mesmo espao,
tambm estaro os animais - que tm l sua esperteza e astcia, como a serpente. Pelo
conhecimento do bem e do mal, o ser humano se sobrepe aos animais, aos pssaros e
prpria terra - mesmo sendo de idntica natureza. Porm, doravante, a serpente
procurar morder o calcanhar do homem. A serpente no satans, apesar de no
poucas interpretaes neste sentido. Ela simboliza tanto os animais domsticos quanto
os selvagens.
7.2)

Os novos inimigos. Apesar de ser igual na criao (como a serpente, o

animal, a terra), o homem tornou-se diferente. Rompeu a harmonia. Humanos e animais


no sero mais iguais. Uns atacaro os outros. Uns fugiro dos outros. No se
reconhecero mais como companheiros. Os homens usaro os animais como presas,
fonte de alimento, roupa, trabalho. Em resumo: homens, animais e natureza passam a
ser inimigos. A harmonia da criao foi rompida e mostrou seu realismo consequente. A
criatura, em consequncia, sofrer - e ela gemer em dores de parto at sua reabilitao
(cf. Rm 8,4-20).
O conhecimento do bem e do mal afetar tambm as relaes inter-humanas e
intergrupais. Surgiro as disputas entre os irmos (Caim/ Abel), entre os homens e os
deuses (episdio de No), entre os povos (torre de Babel) e tudo mais como
enumerado at o final de Gn ll.27
7.3) Sobreviver e morrer. A cultura livra o ser humano de inmeras limitaes.
Ter sido excludo do paraso foi-lhe dificultoso, desvantajoso. Mas, poder criar como
Deus sinal de maturidade e desenvolvimento de autonomia. Isto, porm, no exclui a
luta pela sobrevivncia diante dos outros, diante dos animais e diante de Deus. Atuar
sobre a natureza e sobre tudo quanto existe ao seu redor - preo da excluso da
simblica vida no paraso do den - tambm implica ser controlado pela prpria
natureza. E, por fim - como tudo na natureza, apesar da emancipao -, homens e
mulheres havero de morrer. O conhecimento do bem e do mal lhes deu o poder de criar
como Deus, mas no de ser imorredouros ou eternos como Deus.

27

Ibid., p. 240.

4. A criao nos textos dos profetas e salmos do


exlio

Uns poucos outros enunciados sobre a criao so encontrados ainda nos livros
dos profetas exlicos - apesar de alguns quererem consider-los como interpolaes psexlicas (Am 4,13; 5,8; 9,6; Os 8,14; Is 1,2; Jr 15; 2,2). Alguns salmos tambm podem
ser enumerados, como 19 e 104. Mas o SI 24(25) que, com maior nfase, canta o
Criador: A Jav pertence a Terra e o que a preenche, o mundo e seus habitantes. Pois
fundou-a sobre os mares, firmou-a sobre as correntes de gua (1-2).
O sculo VI aC marcou os israelitas. Neste perodo foi extinta a dinastia
davdica. Foi destrudo o templo. Grande parte do povo foi deportada para a Babilnia,
num exlio de longos anos (587-538 aC). Entre aflio e provao, Israel
experimentado em sua f. Sobretudo o Deutero-Isaas (Is 40-55) criou uma mstica entre
lamento, profecia e certeza de f. Os profetas ao fazerem sua anlise da realidade
querem incentivar a confiana em Jav. Jav Deus nunca inferior aos outros deuses se que eles existem. preciso crer nele, pois foi quem criou o cu e fez a terra.
Crer ter certeza que ele o criador de todos os povos e regies.
Consequentemente, necessrio perceber que a escravido era a execuo do juzo
divino sobre Israel. E, inclusive, necessrio perceber que a libertao poderia vir
atravs de um povo estranho. Esta era a tnica da pregao do profeta. Mas o profeta,
que viveu no final do exlio e viu o retorno dos deportados, encheu-os de esperana:
Alegra- te... no te envergonhes... no te lembrars dos oprbrios da viuvez. Teu
Criador teu esposo, Senhor dos exrcitos seu nome. O Santo de Israel e teu
Redentor, ele chamado Deus de toda a terra (Is 54,4ss).
O SI 74, escrito provavelmente em resposta destruio de Jerusalm, parece
ser uma crtica sutil ao fracasso de Deus em redimir seu povo dos sofrimentos presentes.
Ao mesmo tempo como pr-memria a Jav, que no passado derrotou criadoramente
at o caos (74,12- 17) . Jav agora incitado a levantar-se e defender a causa do povo
(22). Que ele o redima, tal como agira na criao! A criao torna-se paradigma da
redeno. A partir deste conceito, supe-se que Deus possa e, portanto, deva redimir de
novo. Se Deus ouve as aflies de seu povo e o socorre, redime, salva, porque
constantemente age em favor de seu povo, recriando-o a fim de que ele chegue sua

glria.28 Deus redime porque criador de tudo e de todos. Quando a criao


corrompida - por agentes humanos ou naturais - tudo (natureza e humanidade) depende
de um novo ato criador para ser salvo.

5. O significado da criao em Gn 1,1-2,4

O documento sacerdotal da criao. O texto da criao mais conhecido, sem


dvida, Documento Sacerdotal, elaborado no fim do exlio. Enquanto o texto do
Dutero-Isaas voltava-se para a leitura do sofrimento presente com os olhos na
escatologia, este documento proclama a estabilidade da histria. Mesmo que ocorram
mudanas, no est comprometido o todo. Gn 1-2,4a uma grande profisso de f, que
desde a liturgia (sabtica) vai corroborar a f de Israel. Se antes - no se pode afirmar
peremptoriamente - a criao no era explcita, s-lo- doravante.
Provavelmente este texto no procedente de uma tradio s. A composio
uniu as narrativas preexistentes da criao do cosmo e do ser humano, em paralelo e
contraposio a mitos cosmognicos de outros povos, como dos babilnicos, dos
mesopotmicos, por exemplo. Mas certo que revela o amadurecimento de Israel. O
povo vive neste momento uma nova e profunda sensibilidade cultural de fundo
sapiencial e apocalptico: Deus fiel, cumpre suas promessas.
A narrativa sacerdotal da criao - como a javista - no pode ser lida como texto
fechado. Desta proto-histria fazem parte Gn 5,1-32; 6,1-9.29; 10,1-32; 11,10-26 e no
se pode esquecer a ao contempornea dos profetas.
O interesse da narrao, em si, no cosmognico nem antropognico. Ele
organizado como uma grande montagem, baseado no nmero sete, para introduzir a
histria da salvao - que factualmente comear com Abrao. Como foi dito antes,
aqui tambm vale: para explicar o presente recorre-se ao passado virtual, com
projees para o futuro. O presente como , mas ser consumado na bondade de Deus.
Afinal acabado cada estgio, Deus ver que tudo era bom (Isto no Gn repetido sete
vezes - cf. SI 136).

28

Ibid., p. 121-151.

Um hino litrgico. A ao do Gn 1-2,4a est marcada por uma inovao


litrgica. A centralidade no ser mais a festa do passado (a Pscoa anual). Antes, ser o
shabbat (o dia do descanso do Senhor). O cenrio o de uma terra informe e vazia,
quando Deus se dispe a criar. Nota-se que tambm aqui o toa va hou (traduz-se como:
no princpio era o caos) no respalda a tradio do ex nihilo - da doutrina da patrstica
grega em confronto com a gnose. A estrutura do texto tem a finalidade de organizar o
tempo e o espao.29
Os seis dias da criao. Os seis dias esto divididos em dois blocos, cada um
com quatro atos criacionais (dois no terceiro e no sexto dias respectivamente). A
classificao pelo espao definida pelo quarto dia. Nos primeiros trs dias, Deus, por
sua palavra, separa os opostos (luz e trevas, terras e cu, terra seca e rios), fazendo o
ambiente que ser ocupado por seus habitantes criados nos outros trs dias posteriores,
na mesma ordem e proporo. Assim, luz e trevas/noite e dia (1,3-5) sero o espao
onde habitaro as luzes do firmamento (sol, lua, estrelas; 14 - 17). Nas guas dos cus e
da terra (6-8) habitaro os pssaros, monstros marinhos e peixes (20-23). Depois as
terras firmes (9-10) para nela habitarem os animais (24-25); posteriormente brotaro as
plantas e as rvores (11-13) enquanto no sexto dia aparecero primeiro os animais. E
por ltimo, o ser humano (26-31).
O sbado. A organizao do tempo em sete dias celebra a vida cuja culminncia
est no carter sagrado do sbado. A metfora sacerdotal absorve o sbado, considerado
sagrado - cuja origem desconhecida, mas observada no Israel Antigo. O sbado uma
prerrogativa para o descanso do Criador. E smbolo da Aliana no Sinai (Ex 31,12-17).
Ele se tornar dia de festa para o povo. Ser um tempo sem ao, sem trabalho servil.
Ele ser um dia de bno, onde homens e natureza estaro face a face com Deus. No
sbado, sem trabalho nem criao, ter-se- tempo para o irmo (a fraternidade e
convivialidade), para a natureza (admirao, cuidado e respeitoso repouso), para Deus
(gratuidade e gratido). O sbado, sem trabalho e com repouso, acena,
escatologicamente, consumao da natureza em Deus. Deus quem d o sentido final
da obra criada.
O texto apresenta uma estrutura repetitiva com refros como de uma cano:
Deus disse que se faa/seja feito... e assim se fez. Deus viu que tudo era bom.
Houve uma tarde e uma manh. A ao bsica de Deus dividir, chamar, organizar e
abenoar. Tudo feito, por amor, livre e benevolente, de Deus.
29

Ibid., p. 249.

Deus faz, cria, pessoalmente o ser humano. Particular ateno deve ser dada
criao do ser humano (Gn 1,25-2,4a). O ser humano tem aqui um papel diferenciador.
Inclusive o autor sacerdotal detm-se a descrever mais detalhada e extensamente sua
origem. Convm desde logo lembrar que na cultura humana este texto mantm uma
ontognese arcaica, s modificada pela modernidade e tragicamente quebrada pelo
darwinismo que quis fazer os humanos descenderem dos macacos. Na verdade tem-se
que afirmar a origem do ser humano dentro da grande cadeia da vida, sem isolar
sequncias.
Algumas observaes se impem: em primeiro lugar o prprio Deus ocupa-se
pessoalmente de sua criao. O texto bblico passa da ordem faa-se para faamos.
E continua faamos algo terrenoso que seja nossa imagem e semelhana. Depois lhe
atribui uma funo diante da natureza (26b). Enquanto a natureza permanece criatura
feita por ordem de Deus, o ser humano feito pelo envolvimento do prprio Deus. Do
barro (da natureza comum com os outros seres), ele feito pessoalmente imagem de
Deus.
A imagem de Deus. Ser a imagem de Deus ser distinto de todas as outras
criaturas - indica o relato sacerdotal. Mas o que vem a ser esta especificao? As
interpretaes possveis so muitas. Sobretudo, porque a expresso do autor no indica
o modo. Pode-se, todavia, por causa do contexto de 1,26-28, entender o ser imagem
como: a) atribuio do domnio e do governo sobre a terra (funo). O ser humano
exerceria, como Deus, a funo de governar ou, ao ser como Deus, poderia dominar? b)
Pode ser que seja imagem de Deus por ser capaz de se relacionar com o prprio Deus e
com as outras criaturas, como Deus mesmo se relaciona.
De qualquer modo, o ser humano distinto de toda criatura, porque semelhante
a Deus e recebeu a ordem de dominar e cultivar a terra de Deus. Ele s pode exercer sua
vontade como a exerce Deus sobre a criao - analogamente ao texto javista, que afirma
que o homem tem o dever de cultivar a terra (produzindo nela cultura). Todo o mito
criacional se constitui em que Deus harmoniza o caos separando os ambientes opostos e
embelezando-os com seus habitantes. O ser humano, sua imagem, no poder agir de
modo diferente e, portanto, produzir sua obra a partir da obra de Deus.
Terra corrompida. Mas, na verdade, logo toda a terra estava corrompida diante
de Deus e cheia de violncia. Toda carne - isto , no caso, os humanos - havia
corrompido sua conduta na terra (6,11-12). - Seria isto uma aluso que o escritor
sagrado do texto atual (o que costurou as duas narraes do incio do livro) faz aos

assassinatos cometidos por Caim e Lamec, ou seria bem mais a violncia de antes do
dilvio? - O nico possvel e certo afirmar que pelo abuso do domnio humano, a terra
est violada e violentada. Est poluda e em desordem.
Deus re-cria atravs das alianas. Como conviver com tal desordem, criada
pelo ser humano? A resposta vir pelo castigo divino do dilvio - do qual Deus vai se
arrepender. Por isto, um ano aps as guas terem destrudo tudo e todos e terem criado o
caos, Deus far as guas baixarem e a terra ficar seca (8,13). No e seus filhos estaro
a salvo, porque ele um homem justo e ntegro (6,9). A nova criao ser possvel em
cima da outra, porque Deus refaz a aliana com homens justos como No, como
ordem/bno: sede fecundos, multiplicai-vos e povoai a terra (9,1).
O embate entre Deus - o que viu que tudo era bom - e corrupo da terra porque os seres da carne viviam de modo perverso - a ocasio de o Documento
Sacerdotal perceber que, desde muito cedo, a maldade irrompeu no mundo. Somente
Deus poder fazer uma aliana com o ser humano (9,8-17), afixando no cu seu sinal,
como smbolo de uma aliana permanente: o arco-ris. Sero os homens capazes de
viver com fidelidade aliana?
A aliana na criao. Mais tarde, chegar Abrao - o idoso marido da mulher de
seio seco. Deus recomear, com ele, seu projeto de um grande povo. Com Moiss, no
Sinai (Ex 24), Deus ter de comear outra vez nova aliana. Dar nova direo aos que
saram da escravido e iro para a Terra Prometida.
O Documento Sacerdotal da Criao do cosmos e do ser humano (Gn 1,1-2,4a)
um hino cltico para louvar o Senhor. No tem como objetivo descrever uma
cosmognese nem uma antropognese.
O caos do dilvio. O escritor sacerdotal - como fizera o javista - exalta a
bondade do Criador benevolente e pontualiza a rebelio humana contra Deus e a
ordem criada. Tambm aqui o autor no est escrevendo a histria das origens. Ele
escreve seu texto ou durante ou logo depois do exlio da Babilnia. Sua experincia era
a de ver o templo de Jerusalm destrudo. V um rei (Joaquim) destitudo e o povo
exilado. V outro rei (Sedecias) assassinado juntamente com sua famlia. Muitos povos
perdem, fora, suas casas. E tambm muitos vo para o exlio. O caos est
reimplantado. Foi-se a harmonia da criao. O povo rebelou-se contra Deus. A terra est
profanada. E o ser humano sempre quebrando a aliana.
Mas Deus capaz de restabelecer sua obra e seu projeto. Ento o escritor se
serve do mito do dilvio. Olhando para o presente e para o passado, se percebe que

Deus capaz de intervir outra vez. Ele capaz de dar sentido ao presente. A rebelio e a
escravido humanas no sero a ltima palavra. preciso crer e pr confiana em Deus.
Ele vai refazer a criao. Vai libertar seu povo.
Criar ou no criar?! - Ao encerrar a anlise de Gn 1,1-2,4b convm citar o
Midrash Rab 8:3-4, ensinado pelo rabino Berraria: Quando o Santo Bendito seja Ele
estava para criar Adam, Ele viu tanto os justos quanto os inquos, que descenderiam
dele. Ento Ele disse: Se Eu cri-lo, inquos nascero, mas se por outro lado eu no o
criar como os justos iro nascer? Ento o que fez o Santo Bendito seja Ele? Ele
desviou o caminho dos inquos de diante de sua viso associando-se qualidade da
graa e ento disse a ela: Faamos o homem a nossa Imagem. 30

6. Os textos recentes: os ps-exlicos

A grande maioria dos textos sobre a criao foi produzida a partir do ps-exlio.
quando a f de Israel se afirma no Deus criador. Os textos mais importantes aparecem
em alguns salmos (cf. 98, 100, 113, 145, 149, 150), na literatura Sapiencial (cf. Pr
10,29; J escrito entre o IV e III sculos aC; Eclesiastes, do sculo III; Eclesistico, do
sculo II; Sabedoria, do sculo I aC), na literatura apocalptica (cf. o Trito-Isaas - Is 5666; o Apocalipse de Isaas Is 24,1-2; 7,13) e o segundo Livro dos Macabeus - onde vai
aparecer a expresso ex nihilo.
Os salmos ps-exlicos louvam a jav, o criador do mundo. O israelita, que reza
estes salmos, confia na incomensurvel bondade de Deus, na sua ao salvfica e na
constncia do mundo apesar de sua transitoriedade dos indivduos (vida curta). A
literatura sapiencial vai progressivamente louvando o majestoso Deus Criador; e em
contrapartida analisa a insignificncia da vida - por seu carter passivo e efmero.
A natureza criada e des-divinizada ser, contudo, sinal de sabedoria e da
grandeza de Deus.
Na Apocalptica, vo se entrecruzar protologia e escatologia, para afirmar que
nada da criao estar perdido. Sua integridade ser recuperada num novo cu e numa
nova terra. A onde cada pessoa ter um novo corao.
30

Apud LEONE, A.G. O conceito judaico da criao, p. 163

Por fim, deve-se recordar que, paulatinamente, para o povo bblico a f em Jav
- El, o Deus do cu que criou a terra firme, o mar e tudo quanto existe - foi se
tornando to viva e sentida a ponto de identific-lo e diferenci-lo diante de todos os
outros povos. E sua histria - os fatos do ps-exlio - comeou ser contada para trs, at
o comeo mtico do mundo. E por esta razo inclusive que o Pentateuco atual comea
com a narrao do incio da obra salvfica, na criao do mundo e do homem.

7. O significado bblico da criao

A leitura literal e, talvez, ingnua dos textos da criao educou cristos desde
quase o incio do cristianismo. Tal leitura levou a uma cosmognese e a uma
antropognese frente aos desafios (contemporneos) dos mesopotmicos e outros povos,
que perguntavam - e com razo - aos hebreus quem eram eles e quais eram seu(s)
deus(es). Cotejando o poema Enuma Elish - guardadas as propores da inspirao
divina - os autores sagrados escreveram textos transmitidos oralmente.
Na expanso do cristianismo, pelo Imprio Romano - depois entre os novos
povos cristos - a cosmognese e a antropognese bblicas se impuseram no Ocidente,
praticamente eliminando as narrativas pags dos outros povos. A permanncia da
interpretao (da hermenutica) crist tornou-se algo to natural, que passou a parecer
uma explicao factual. Quando a(s) igreja(s) passou(aram) a ser questionada(s) sobretudo pela modernidade - fez(fizeram) de seu texto religioso - num processo de
autodefesa - um documento como se fosse uma explicao no mesmo nvel das cincias.
A(s) igreja(s) - para se defender(em) - preferiu(ram) fechar-se, ignorando novos
conhecimentos e impor sua verdade de f como se fosse cincia. E a partir da, sabe-se
do (triste) desfecho desta histria.
S na primeira metade do sculo XX - mesmo com fortes oposies internas,
mas tambm com a colaborao de telogos e grandes intelectuais cristos - a Igreja
Catlica pode comear a mover-se para compreender melhor o significado do texto
bblico. Ao mesmo tempo, prestando ateno s propostas das cincias, a Igreja foi
conseguindo discernir o que havia de vlido, de propositivo, de dogmtico e de efmero

nas descobertas cientficas, a fim de posicionar-se e aceitar a evoluo (histria das


origens), sem deixar de apresentar sua teologia da criao, embasada na Bblia.
Cada vez mais tranquilas, a teologia e a cultura catlica conseguem dialogar,
neste ponto, com as cincias, a fim de louvar a Deus, por tantas e to grandes
descobertas da ao de Deus no cosmo e na realidade do ser humano. Em tudo isto, os
cristos encontram o profundo e misterioso desgnio divino na caminhada histrica da
salvao, que culminar no louvor eterno ao Pai, o criador, que agiu, por causas
segundas, para levar plenitude sua obra de amor.
Muitos so os exegetas e telogos atuais que se propem a descrever o
significado dos fundamentos da criao. Criam uma centena de novas e estimulantes
explicaes, favorecidas pelos prprios textos normativos da Bblia, exatamente por
terem eles o exato (moderno) sentido de mito religioso - que vem acrescido pela fora
da revelao para os que creem. So textos atuais que continuam cumprindo a funo
dos textos fundantes de louvar e exaltar a livre, gratuita e amorosa deciso de Deus
criador em partilhar, com os homens e as mulheres de todos os tempos, o seu imenso
amor.
Em resumo: a Bblia no tem inteno de narrar a origem do cosmo e do ser
humano. O semita, porque tem uma viso centrada em Deus, atribui tudo ao Criador. E,
como tal, narra a ao de Deus, para louvar o prprio Deus, enfatizando que tudo quanto
existe criao de Deus. Dele procedem todas as coisas. Ele as fez, por um grande
amor, a fim de que tudo quanto viesse existir na histria e no cosmo participasse de seu
amor gratuito, livre e benevolente. Deus no era obrigado a criar. A criao no lhe era
necessria. Tampouco ele carecia de glria para que lhe fosse tributado um louvor. A
criao, para o israelita - e hoje para o crente -, uma projeo do mistrio da salvao
de Deus, para fora de si mesmo.
Assim, em relao ao ser humano pode-se dizer que a inteno da Bblia
afirmar: a) a criaturidade humana - motivo de profunda alegria por saber-se portador de
to nobre origem; b) o ser humano no Deus, mas um ser criado por Deus, que o elege
com um socium especial, fazendo-o seu lugar-tenente e capaz de se relacionar com seu
criador; c) um interlocutor de Deus, respondendo sempre que Deus fala com ele como
a um companheiro; d) ele tem uma dignidade especial por provir no s da terra - como
todas as outras criaturas mas ter recebido de Deus seu sopro e sua imagem; e) Deus o
criou como um ser muito bom, a ponto de o Criador sempre querer acompanhar esta
sua criatura, estabelecendo com ela alianas; f) ele um ser total e integrado, em seus

mltiplos aspectos - e cuja realizao plena se dar no corao do prprio Deus, quando
estiver assemelhado a ele, podendo-o ver face a face; g) o ser humano tem tambm uma
fundamental dimenso de comunidade, por isto um ser capaz de relaes.
Mas, se Deus o fez grande e nobre, contudo, o ser humano no se portou sempre
altura de seu criador. Por querer ser Deus, quando era apenas criatura, o ser humano
comea a pecar, rompendo relaes em nvel de conjugalidade (entre Ado e Eva), de
fraternidade (entre Caim e Abel), entre as tribos/comunidades (os dos tempos de No) e
entre povos/naes (os do tempo da Torre de Babel).
Apesar de seu pecado, em mltiplas direes desde as origens, Deus no
abandona suas criaturas prediletas. Envolve-se com elas, desde antes mesmo de elas
nascerem - antes mesmo de seus pais saberem que elas viriam ao mundo, Ele j as
conhecia no ventre materno. Do nada, ele fez fibra por fibra todo o seu ser. Por amor ao
ser humano, na plenitude dos tempos deu seu prprio Filho a fim de que Ele se fizesse
um de ns e um conosco. Antes que o ser humano o conhecesse, ele j o amava, pois o
pensou, desde toda a eternidade, e o elegeu para ser santo e irrepreensvel a seus olhos.
O significado bblico da criao em momento algum pretende ser uma resposta
da cincia (criacionismo). bem verdade que no decorrer da histria do Ocidente, por
falta de outras narraes, ele preencheu um espao daqueles que centralizaram todo o
significado da vida e do cosmo em Deus. Quando do surgimento da modernidade, com
suas cincias, alguns quiseram contrapor - em nvel de cincia - as afirmaes bblicas,
muitas tenses surgiram. Lenta e progressivamente, as coisas vo se pondo em seus
devidos limites. O cristianismo compreendeu melhor o prprio significado existencial e
salvfico da Bblia. As cincias vo perdendo seu dogmatismo e compreendendo que
sozinhas no explicam todo o significado das origens. Ambas percebem a prpria
competncia, na questo. E os homens e as mulheres de f no precisam mais se
encolher por causa de sua compreenso. Nem os cientistas precisam ter medo de Deus,
para alij-lo de suas vidas. O que no significa um sincretismo novo, mas a
compreenso e o respeito pelo prprio de cada um.
A teologia da criao, fundada na Bblia, compreende de novo e de modo mais
profundo sua verdade de f e o sentido do texto. As cincias conseguem entender a
provisoriedade de suas afirmaes e os princpios mticos de onde partem para
construir as teorias. A evoluo dada como um fato aceito. As teorias explicativas so,
por vezes e sobretudo, sistemas filosficos e, em alguns casos, so rejeitadas pelos
prprios pares. O criacionismo, se por um lado transformado por alguns em teoria

cientfica, por outro lado outros tantos so capazes de ler no a letra mas o significado
da Bblia; e, e neste caso, dentro das igrejas crists h posies divergentes sobretudo
entre aqueles que tambm se envolvem em questes poltico-partidrias e/ou
ideolgicas.
Desde a f catlica - em sua orientao oficial ao contrrio de significativa
parcela de populares - se aceita a teoria da evoluo como ela , isto um fato
horizontal explicado por diversas teorias. Porm, tal fato est enquadrado nos limites
explicativos da prpria cincia, e, humanamente, de modo algum suficiente para
explicar o ser humano ao prprio ser humano.
Assim, retomando o esprito e o significado da Bblia, o ser humano, criado no
e pelo amor de Deus, num processo de desenvolvimento como tambm do cosmo todo:

no um deus e nem se confunde com o mundo; pode julgar e


observar o cosmo todo e diferente dos animais, isto , pensa,
pergunta, constri e organiza a sociedade. Assim entre os seres
humanos, ele o nico, seja como indivduo seja como
sociedade. Tem uma histria, uma sucesso de fatos e
acontecimentos que so realizaes suas, e que, em vista da
sucessividade do tempo, representa progresso, seja para a ordem
cultural, seja para a econmica, e no pode ser para ele motivo
de vangloria ou de orgulho. Ele nico entre todos os seres por
ter uma histria peculiar. Entende a histria como controle e
dinamizao de todos os elementos mediante os quais ele cria
para si um modo melhor de existir e viver. Ao lado da
divindade, tambm ele criador, estando capacitado para
produzir novas formas e novas condies de vida, de atuar sobre
o mundo da matria e dos animais a tal ponto de sentir-se
dono deles [...]. Portanto, luz da histria, daquilo que
capaz e pode fazer, o ser humano se encontra sempre a um passo
de crer que exatamente na histria, por causa de suas
capacidades, ele pode realizar, por si s, suas aspiraes e
desejos. Ele est, em outras palavras, a um passo da ideia, da
tentao de sentir-se grande, capaz, auto- suficiente e, portanto,

tambm livre de crer na existncia de um Deus, o qual, com sua


onipotente sabedoria e bondade, dirige o mundo que, mediante
seus prprios atributos infinitos, criou. 31

31

MATTIOTI, A. Dio e Vuomo nella Bibbia di Israele - Teologia delFAntico Testamento, p. 191- 192.

Captulo 5

Quem somos ns?

Um problema a ser resolvido!

Somos mais de seis bilhes de humanos que vivem sobre o planeta. Mas, quem
somos ns? A afirmao, que apenas quantitativa, nada diz sobre quem somos. A
inimaginvel quantidade de seres (seis bilhes) poderia ser dita de animais, aves, peixes,
etc. Porm, cada um dos seres um indivduo de uma espcie e enquanto tal repetio
de algo j existente, s diferenciado por ser um outro e no o mesmo. O ser humano
um membro de espcie - precedente de uma gerao anterior e, pela lgica da gerao,
continuar gerando a espcie humana sem deixar de pertencer superfamlia dos
hominoidea (20 milhes de anos), originada dos primatas, por sua vez, originados dos
grandes mamferos, cuja origem, bem mais remota, est na vida surgida h bilhes de
anos.
O ser humano mais do que mero numeral de uma cadeia (espcie) especfica.
Ele se eleva acima da cadeia biolgica de reproduo, onde como humano mais do
que produto e reprodutor. Ele se distingue de todos os outros seres por causa de uma
conscincia evoluda capaz de organizar-se, organizar e transformar o ambiente que o
rodeia. Alis, esta uma capacidade (organizao social, composio de casais, defesa
territorial, ataque/ defesa, padres de comunicao, utenslios de mantimentos diversos
etc.) que tambm pertence a inmeros ancestrais comuns entre homindeos e smios e
dos prprios homindeos mais antigos.

1. Ainda, o lugar da cincia e da f

O ser humano, no grande contexto da transformao de vida - sem deixar de ser


parte de toda a natureza -, biologicamente, deu um salto qualitativo diferenciador,
quando, h uns cinco bilhes de anos, passou a congregar evolutivamente, em si, trs
qualidades inter-relacionadas: o crebro, a inteligncia e a conscincia, que mais tarde
seriam somados fala, arte e religiosidade. O mistrio de sua humanidade atual
(homo sapiens) permanece uma incgnita. s cincias cabe uma tarefa de explicao
sobre a facticidade da transformao e adaptao de todos os seres, includos os
humanos. E a o ser humano permanece considerado em seus aspectos de objeto, por
isto quantificvel.
De outro lado, porm, o ser humano, visto de modo holstico, algo mais, muito
mais sutil. Cada ser humano uma pessoa. algum, no s totalmente novo, singular,
irrepetvel. algum dotado de valor absoluto, querido em Deus por si mesmo, sendo
muito mais que um mero filho do ecossistema.
Sem deixar de ser correto ou verdadeiro, o cdigo da evoluo, nem por isto
detm a verdade toda e/ou sua nica e suficiente interpretao. O complexo biolgico
evoludo, que o ser humano, algo maior que isto - sem deixar de ser esse objeto (o
qu), que prprio da considerao do campo cientfico. O ser humano - lido pelos
cdigos religiosos, particularmente pelo cristo - uma realidade nova que transcende a
sua animalidade, cujo princpio o constitui pessoa (quem?). O mito ou a narrao
bblica da criao o chama de imagem de Deus - no para alien-lo da natureza, mas
exatamente para localiz-lo no contexto da vida em transformao como algum
diferenciado, por novas propriedades.
A Bblia sinaliza o ser humano como imagem de Deus, apesar de no descrever
o significado de algum ser imagem de Deus.
Compete teologia, em sua dinmica, apresentar sempre mais as razes
suficientes para que o ser humano se perceba - para alm do objeto - a pessoa que
como imagem de Deus. Um ser humano muito mais que algo reproduzido por seus
antepassados ou pela natureza. Ele detm um outro co-princpio (espiritual). Ele no
surge de quaisquer estruturas intramundanas ou csmicas. Tem um outro comeo que o
torna absoluto, nico, livre e pessoal; caso contrrio seria o mero resultado de um

acontecimento natural. Uma s a origem que faz do ser humano mais que objeto. Sua
origem faz ser um algum muito peculiar. Ela o faz ser pessoa. A pessoa no se faz por
si s, e nem feita s por seus pais (ou por fecundao de seus cientistas).
compreensvel que a cincia e seus cientistas entendam o ser humano na sua
animalidade, at como um complexo biofsico manipulvel e evolutivo. Mas, o cdigo
cientfico limita-se - para afirmar sua verdade - na verificabilidade, na experimentao e
nos achados. O objetivo da cincia, no caso, pode ser morfolgico, filogentico ou
arqueolgico.
O alcance da ideia da criao - no s judaico-crist, mas de totalidade dos
povos/cultura - vai muito alm das origens. A ao criadora de Deus dinmica e
contnua. Deus no se limita a fazer a criao primeira, pronta e acabada. Tambm no
se limita - como alguns sugeriram - criao de uma origem que traz potencialmente
todas as possibilidades de seu desdobramento, por causas segundas e no tempo
oportuno, distante de sua ao. Os cristos - e outros povos - professam a constante
presena de Deus em sua obra criando-a, mantendo-a e levando-a a seu termo, mesmo
que por causas segundas ou factuais.
Aqui entram em questo diversos conceitos - que sero retomados
oportunamente. O mais marcante o da histria da salvao, que envolve o tempo. O
tempo considerado em diversas dimenses: o presente (cronolgico), o tempo
escatolgico (i.e., do fim de tudo) e o tempo protolgico (i.e., das origens). A ao
criadora de Deus no se reduz ao seu incio (protologia), mas seu significado est na
consumao da nova criao (escatologia). Outros conceitos que importam ainda so,
por exemplo, o da consumao da criao, o da ressurreio, o de cristificao, o de
teleologia etc.
til lembrar que cincia e teologia so duas leituras radicalmente diferentes
sobre muitos fatos comuns. O olhar de cada uma delas se torna verdadeiro - s vezes
no seguro - a partir de seus pressupostos. As leituras so, sobretudo, diferentes. O que
no quer dizer necessariamente que sejam opostas ou que poderiam s-lo. Por vezes,
elas produzem questionamentos uma outra. Usam at palavras comuns (que s vezes
tm significados diferentes). Obviamente, a grande diferena est na metodologia e nos
pressupostos. Ao reconhecer as distines e limites de cada uma, tanto o cristo quanto
o cientista podem dialogar. Um cristo tanto pode ser cientista, quanto um cientista
pode ser cristo. O Deus que inspira os cristos o mesmo Deus que inspira o cientista mesmo que nem tudo seja inspirao divina.

Colocados estes limites, possvel perceber uma questo de fundo: a relao


entre natureza e cultura. Essa discusso longa e interminvel, se no for intermediada
pela epistemologia ou filosofia das cincias. As cincias - ao se adequarem ao material
bsico de pesquisa - transformam tudo em objeto, inclusive o ser humano. S tornando
a realidade como objeto que podem estud-la, mesmo quando a situam no tempo e no
espao. Assim, para as cincias, o ser humano um objeto, que responde a sua
pergunta: o que ? Ento sua pergunta pode ser: o que o homem, em sua origem e
em seu presente? Poder-se-ia tambm fazer a pergunta sobre o futuro deste ser objeto,
mas quem pode assegurar a resposta?
O ser humano , atualmente, o ltimo mamfero de uma grande rvore
genealgica que espalha muitos galhos. um mamfero fruto da evoluo e pode ser
definido pela sua fisicalidade. Pode-se fazer sua histria, como o fazem os
pesquisadores da morfologia, dos fentipos e da arqueologia. Podem fazer tambm
desde outras cincias, humanas inclusive (do que se falar frente). Suas definies
sero sempre definies situadas. Portanto, suas concepes sero sempre relacionais pois estaro no contexto de seus saberes. Seus saberes tambm no so reducionistas
(conceito preconceituoso, porque eles querem afirmar apenas o que lhes compete). A
humildade tambm uma virtude educada do cientista, quanto deve ser do telogo ou
do crente em geral. Ao extrapolar seu campo - e, pior ainda, afirmar um dogmatismo -,
telogos, filsofos, cientistas e outros mais, provavelmente, estaro opinando como
leigos quaisquer e estaro, ento, sendo reducionistas.
As cincias da evoluo humana ainda no concluram seus estudos. Mantm
muitos vazios no continuum de seus estudos - o que no os desqualifica. Desde Pio XII,
o Magistrio da Igreja Catlica os incentiva a continuarem suas pesquisas em constante
dilogo com outros saberes.

2. O significado da animalidade do ser humano

Os estudos contemporneos sobre a evoluo e ancestralidade biolgica do ser


humano oportunizam a conhec-lo muito. Por outro lado, til recordar que o texto
bblico s comeou a ser escrito, em Israel, pelos sculos XI-X aC. Bem antes, a

tradio bblica mantinha uma oralidade viva. Mas, aqui, importa afirmar que a Bblia quando fala sobre o ser humano - somente o entende como o ser humano atual (homo
sapiens sapiens), compreendido dentro dos critrios da cultura semita de seu tempo.
Mesmo em sendo um livro crido como revelado, os cristos nunca imaginaram cobrar
do texto sagrado ideias que s aparecero na cultura humana depois do sculo XVIII do
Ocidente.
Na verdade, o presente humano perde-se na memria do tempo - diferentemente
da literatura sobre ele. A evoluo humana chegou at ns por processos cuja lgica
nem sempre factual e conhecida. Bilogos acreditam que exigncias intelectuais de
uma interao social complexa foram importantes fatores da adaptao natural para a
expanso do crebro dos primatas e, em ltima anlise, dos seres humanos por terem
um crtex cerebral maior. Socializar-se, fazer aliana, explorar o conhecimento da
aliana dos outros foram atitudes fundamentais para o sucesso evolutivo dos animais.
Isto muito mais complexo que aprender a distribuio e a poca do amadurecimento
de recursos alimentares do meio ambiente. A complexidade das relaes sociais
aumenta geometricamente por causa de exigncias de uma comunicao melhor, de
habilidades sociais mais desenvolvidas, de padres de substncia mais complexa, de
tecnologia mais aprimorada.
Ao lado disto, feixes neurais (fascculos arcuatum) na chamada rea da Broca,
que tm influncia sobre as reas do crebro - que controlam os msculos dos lbios,
dos maxilares, da lngua, do palato mole e das cordas vocais - produzem o contedo
(som) e a compreenso da linguagem. Isto se expandiu entre os seres humanos como o
potencial para toda a forma de sons humanos hoje produzidos desde uns 300.000 anos
(origem do homo sapiens arcaico). A fala uma das ltimas aquisies da evoluo dos
hominneos - pois como expressar as conquistas anteriores dos elementos abstratos,
regras sociais, mitos, rituais, organizao econmica e social? Psiclogos envolvidos na
histria da humanidade deixaram de afirmar que a fala fruto de necessidade de
vocalizao e comunicao, para afirm-la como consequncia da construo do
imaginrio mental. Precisou-se da fala mais para contar histrias do que para agir.
H, em comum com os animais, uma histria de muitos comportamentos at
recentemente atribudos exclusivamente aos seres humanos. O famoso livro O macaco
nu - Um estudo do animal humano 32, de Desmond Morris, descreve o ser humano, o
macaco nu, como primata de rapina evoludo, que passou de vegetariano a carnvoro,
32

MORRIS, D. O macaco nu - Um estudo do animal humano.

membro de uma comunidade requintadamente civilizada, que passa pelos estgios


sexuais similares aos grandes primatas, desde a formao de pares at a famlia. O
animal humano destaca-se dos outros animais pela longa infncia - onde o mais
dependente de todos. Detm um forte instinto explorador; sua natureza agressiva deve
ser buscada numa distante ancestralidade. Como os animais, ns carregamos tambm o
instinto de hierarquia s costas, defendemos a territorialidade, cuidamos da sade e da
casa, mantemos laos de cooperao e solidariedade, convivemos com outros animais,
mas somos oportunistas comportamentais, apesar das regras (proibidas) dos grupos,
construmos nossas casas e cuidamos de espaos.
No s desde a zoologia, mas tambm de outras cincias da natureza social como a sociobiologia, a etologia - somos o que somos, por sermos filhos da natureza,
tendo em comum, inclusive, comportamentos e reaes similares - apesar da cultura que
nos diferencia. Comparar o ser humano aos animais e buscar a a identidade comum no
novidade. No seu livro Sobre a origem da linguagem, em 1770, J.G. Herder afirmava:

Todo animal tem ciclo ao qual pertence desde seu nascimento,


em seguida entra nele, nele permanece por toda a vida e morre...
O ser humano no tem esse tipo de esfera uniforme e restrito, no
qual no h apenas uma direo: o mundo dos negcios e as
determinaes se estendem em torno dele... A natureza foi para
ele a mais dura madrasta, j que para cada um dos insetos foi
mais prdigo: nu e despojado, dbil e indigente, apoucado e
inerme, e o que constitui o cume de sua misria, privado de
todas as direes da vida. Nasceu com uma capacidade sensorial
to dispersa e debilitada, com algumas faculdades to
indeterminadas, com algumas pulses to divididas...

Foi comum em tempos passados estudar-se o ser humano como independente do


cosmo e dos animais. Grupos h, na atualidade, que fazem o caminho inverso, e no do
ao ser humano outro lugar que o de animais deficitrios, autmatos e dependentes de
seus instintos e pulses bsicas, pouco acima de outros animais - que por vezes so at
mais capazes na sobrevivncia e adaptao. Considerado desde estas cincias, no h
um lugar prprio - alm de presuno - ou como j dizia Nietzsche o ser humano um
animal indeterminado. O animal humano pobre de instintos, no tem um meio
ambiente fixo, seno a esfera vital que se move. S penosamente vai se adaptando a ela.

Identifica-se miticamente com animais-totmicos. Por natureza biolgica, um ser


deficitrio.
Neste contexto, a pergunta sempre o que o homem?
A comparao com os animais o nivela por baixo. Tanto a pergunta quanto a
resposta tm uma importncia radical para o conhecimento mtuo, para o
autoconhecimento humano - mesmo que no seja o nico acesso para o mistrio que o
ser humano representa. Os paralelismos morfolgicos, funcionais e genticos
registrados, no patrimnio comum, precisam ser levados mais a srio, pois eles revelam
vinculaes e assemelhamentos como nunca se percebera. No basta criticamente
denunciar pressupostos filosficos dos autores de tais teorias, preferindo a cegueira dos
fatos. A natureza objetiva e, para muitos cientistas, a fronteira entre os animais e
humanos desaparece medida que se vai descobrindo - cientificamente - uma srie de
capacidades e atitudes tradicionalmente reservadas ao ser humano, como vimos
(comportamento simblico, noo de territrio, hierarquia, socialidade etc.).
A aptido para produzir cultura, comunicao, inclusive um cogito simiesco (cf.
pesquisas atuais deste campo), no pode ser entendida como exclusividade do humano
(pois ela pode ser explicada por causas da natureza), mas dentro de um contnuo (sem
compartimentos estanques que separam fsica, natureza, cultura). E aquilo que se
chamou de natureza humana - diz Jacques Monod - pode ser descrito em termos nometafsicos, pois dela se pode fazer uma descrio objetiva em termos exclusivamente
bioqumicos.33
Tambm desde a sociobiologia - cincia que pretende preencher a brecha ou
evitar a lacuna entre as duas culturas (biologia e sociologia) - faz a denncia do desafio
proposto pelo antropocentrismo egosta, frente ao irreal e transformvel abismo entre
homens e animais.
Cresce a compreenso de que no h diferena substancial entre comportamento
de seres animais e humanos. Nossas condutas so compartilhadas e organizadas por
genes de carter mamfero, e ainda, mais especificamente, primatas. Para E.O. Wilson,
ainda, o naturalismo cientfico dever alterar os alicerces das cincias humanas,
incluindo as ticas e religiosas. E o autor pe exemplo na existncia de uma ndole
instintiva gentica capaz de criar comportamentos que desde o ponto de vista humano
seriam ticos (p.ex. o tabu do incesto, a questo do altrusmo e da transcendncia. O
altrusmo primeiramente seria uma forma sofisticada de egosmo gentico para 33

MONOD, J. 0 acaso e a necessidade, p. 9.

inclusive - estabelecer timas condies de fixao e expanso. A transcendncia , na


verdade, uma qualidade do altrusmo que se funda na vantagem gentica, capaz de
aumentar bem-estar e segurana).
Estas explicaes provocam de modo imediato mil questionamentos. E a
liberdade, o livre-arbtrio, a criatividade, a tecnologia e a execuo de nossos planos
etc.? As teorizaes, desde a comparao dos seres animais e humanos, continuam - e
crescem - em nosso tempo, sujeitando no apenas a superioridade, e a diferena, mas
enfatizando a semelhana - onde se pode avaliar, medir, testar, pesquisar, experimentar,
demonstrar a natureza em sua objetividade. Os fatores e as consequncias biogenticas
so evidentes por si s. Eles no tm uma teleologia, mas se regem pela realidade dos
fatos - mesmo quando estes so casuais e/ou se tornam necessrios.

3. O significado biolgico do ser humano

Cincias da conscincia. Surgem desde outras cincias, outras explicaes, pois


nenhuma delas suficiente para todos os conhecimentos. E questes candentes vo se
refletir na questo da interioridade humana - produtora de cultura e do esprito
humano, o que superaria a natureza. Surgem ento, desde estas cincias, questes que
vo pesquisar o crebro, para responder s questes da mente - que por sua vez
corresponderia questo da conscincia, por fim do proprium do humano. A surgem
cincias como a psicologia e a neurologia. Novamente, o ser humano transformado em
objeto. posto no laboratrio cientfico, de onde surgiria a explicao do que o
humano.
As cincias do comportamento querem responder simultaneamente sobre a
passagem do primata ao humano e o que distingue um do outro, a partir da mente. A
mente no seria a conduta, nas o princpio interno da conduta. Os estados mentais
podem produzir efeitos fsicos, como afeto, dor, desejos, projetos, deliberao, juzos,
xtase etc., porque tm um carter real. A neurologia atual capaz de localizar, no
crebro, os processos mentais que podem ser abordados cientificamente. Ento surge
quase espontaneamente a equao: mente = crebro x crebro = realidade fsica;
portanto, mente e seus processos e eventos so realidades objetivas - que pertencem ao

campo da neurologia. A mente pode ser atingida no crebro pelo processo evolutivo
tanto no nvel filogentico quanto ontogentico; leses cerebrais podem ser curadas pela
ao de frmaco-qumicos ou de cirurgias.
Alguns neurologistas afirmam que decifrar a conscincia descobrir de modo
supremo os alicerces biolgicos da mente. O renomado neurologista Antonio R.
Damsio afirma que:

Em suma, a conscincia central um fenmeno biolgico


simples; possui apenas um nvel de organizao, estvel no
decorrer da vida do organismo, no exclusivamente humana e
no depende da memria convencional, da memria
operacional, do raciocnio ou da linguagem. Por outro lado, a
conscincia ampliada um fenmeno biolgico complexo, conta
com vrios nveis de organizao e evolui no decorrer da vida
do organismo. Embora eu acredite que, em nveis simples, ela
tambm est presente em alguns no-humanos, a conscincia
ampliada s atinge um nvel mais elevado nos seres humanos.
Ela depende da memria convencional e da memria
operacional. Quando atinge seu pice humano, tambm
intensificada pela linguagem. 34

Ainda para o neurologista, tica e direito, cincia e tecnologia, arte e compaixo


so pices da biologia, em que a conscincia apenas um elemento intermedirio. As
emoes, que dependem de mecanismos cerebrais estabelecidos de modo inato,
assentados em um longo perodo evolutivo, so processos determinados biologicamente.
Elas podem estar em organismos to simples (unicelulares) quanto nos complexos. De
forma idntica, na formao de nossa conscincia e de nosso self (personalidade, eu) h
uma notvel imbricao de funes biolgicas nas estruturas (humanas e de outros
animais), determinados pelo crtex e tronco cerebral, neocrtex, hipotlamo e outros
nervos mais - sem o que nunca poderamos construir nossa identidade, nem nossa
autocompreenso. No processo das emoes aos sentimentos, sobre os prprios
sentimentos, encontramos a conscincia ou inconscincia. A conscincia serve para
ampliar o alcance da mente e, por esta, melhorar a vida daquele que a tem. Certos seres
vivos, desprovidos de conscincia, so capazes de regular a homeostase. E os que tm
conscincia aumentam a vantagem por ser ela uma evoluo aprimorada capaz de

34

DAMSIO, A. O mistrio da conscincia, p. 34.

estabelecer uma ligao eficaz entre mecanismo biolgico de regulao da vida do


indivduo e o mecanismo biolgico de seu pensamento.
Biotica. O desafio, talvez no maior, mas o mais clamoroso nos tempos atuais,
vem, por outro lado, da biotica. Muitos se perguntam quando comea existir o ser
humano? E a, sobretudo, os geneticistas entram em ao. A questo no se pe tanto
dentro da evoluo nem na questo do crebro/mente/conscincia. A pergunta que se
faz : embrio uma pessoa humana ou quando se torna humano um embrio?
Se se define uma pessoa pelo exerccio da razo, ento, uma criancinha ou um
mentecapto no ser pessoa. Assim o embrio humano no passa de um material
biolgico no distinto de embries de outras espcies. Para alguns, o embrio pode at
ser considerado como portador de natureza humana, mas ainda no uma pessoa
humana. O genoma humano faz o ser pertencer espcie, mas no a faz ser pessoa.
Alguns pensadores sustentam que nem todos os seres humanos so, automaticamente,
pessoas humanas. Pois, no interior da espcie, h pessoas e no pessoas: uns ainda no
so, mas certamente o sero; outros no so mais, apesar de j terem sido; e, finalmente,
alguns que nunca sero.
Esta discusso muito mais profunda do que parece ser. Nela volta a questo: o
ser humano um qu? ou um quem? Sem dvida, difcil demais definir a pessoa
humana. Alis, fora das filosofias e especialmente da cultura grega, do judeu, do
cristianismo, a definio confusa e tardia; inclusive entre estas culturas no h um
consenso apesar de aproximaes. Todavia, convm ressaltar, nas cincias naturais especialmente nas biolgicas -, se, desconhece a questo do quem a pessoa? E por
no ter um vocabulrio tcnico, elas apenas se servem de critrios de vida e de animais
para estabelecer uma similaridade com os seres humanos.

4. O significado de corpo do ser humano

Sem dvida, a pessoa no deve ser considerada como uma fuso de gametas que
comea (?) no instante da fecundao; mas isto no autoriza ningum afirmar que
gametas humanos fundidos, clulas ou embries, no sejam um ser humano
potencialmente total. bvio que os genes humanos no so um ser humano na sua

completude social. Mas como negar que ali no esteja tudo quanto ser mais tarde uma
pessoa humana, bem alm de seu sentido gentico?
A partir dos anatomistas da modernidade comearam a dissecar o corpo como
uma mquina humana, abriram-se conhecimentos novos e inauditos, no campo das
cincias. Desde o aparecimento do livro de Vsale, Humani corporis fabrica, em 1543,
at s pesquisas biotecnolgicas de hoje, as cincias foram interpretando,
progressivamente, o ser humano como corpo - por causa do seu objeto de pesquisa. Da
a transformar a objetividade do corpo humano em homem-corpo-objeto tem sido um
passo. Evidentemente a tecnologia biomdica e as cincias naturais - movidas inclusive
por interesses econmicos e filosficos - vm interpretando o ser humano desde o que
controlvel por sua cincia. A o ser humano - que perde sua unidade - torna-se objeto
(o qu?) de manipulao, para ser compreendido como unidade biolgica, em sua
particularidade gentica.
Esta discusso, h tempos atrs, tomou vulto como questo de natureza e cultura.
Desde a teoria da evoluo se pode inferir a inadequao do tema, pois elementar
compreender que a pessoa foi surgindo desde a animalidade - esta seria vencida pela
capacidade cultural de se superar. Por sua vez, a cultura pressupe o desenvolvimento
da natureza (crebro). O ser humano vem sendo resultado de uma longa evoluo
histrica, que tomou velocidade muito maior desde a domesticao do fogo e da
agricultura, dos animais e da fala. Sem dvida, h no ser humano algo muito maior,
ainda.
Nos tempos hodiernos, a pesquisa biolgica - que nem sempre leva em conta o
humano das pessoas - detm-se no processo genoma, filogentico - o que, certamente,
de grande interesse para a humanidade - mesmo sem exauri-la. A grande maioria dos
biocientistas ou biotecnlogos permanece, inconscientemente, marcada por uma das
duas grandes tradies da concepo de pessoa humana: ou a grega (um composto de
corpo e alma) ou a crist (a pessoa, propriamente dita).
Na histria, as duas muitas vezes se fundiram. Todavia, a concepo greco-latina
(concepo dualista) abriu caminho para a investigao cientfica sobre o corpo. J a
Igreja Catlica usou indistintamente as duas; mas a influncia filosfica helnica
enfatizou a dualidade (muitas vezes o dualismo) do corpo e alma. Isto oportunizou a
modernidade fazer o modelo platnico de corpo culminar na filosofia de Descartes, que
considerou o corpo (res extensa, no pensante) como uma mquina; enquanto o esprito
(coisa-pensante-no-extensa),

se

autonomizava

em

relao

corporeidade.

Exemplificando, como se dissesse: no sou o meu corpo; eu existo porque penso,


ou melhor: penso porque existo.
Tal postura deu campo investigao cientfica, mecnica, do corpo. Nesta
ruptura do ser humano, fez-se do corpo uma parte material, objetiva, que por fim se
tornou fonte de compreenso do prprio ser humano. A corporeidade do ser humano
sua realidade; todavia, a materialidade foi assumida como se fosse o prprio ser
humano. Foi a que se comeou a abandonar a viso integrada e unitiva do ser humano.
Todavia, muitos telogos - com suas razes e ao contrrio dos cientistas identificam o ser humano tambm pelo seu corpo. Desde as concepes teolgicas, o
corpo, teologicamente falando, no sua fisicalidade, no se reduz conscincia, ou a
questo mente/crebro. Sua origem personalstica no se limita ao grande processo da
evoluo, tanto menos s questes da filogenia ou de genoma. Tampouco a questo
natureza e cultura suficiente para caracterizar o ser humano. O ser humano
identificado plenamente por seu corpo. Mas, o corpo no s sua fisicalidade - como j
se disse acima. O corpo revela o humano que se . E se muito mais que o corpo. Mas
nada disto significa que o ser humano no seja um sistema biolgico marcado no longo
processo de hominizao.
Aprofundemos esta vertente biolgica do corpo, conscientes de que isto no
tudo no humano. E noutra parte deste estudo enfocar-se-o os aspectos que mostram o
ser humano como tal.

Uma vez que o homem uma parte do cosmo, do qual no pode


ser separado, sua identidade deve aparecer, sem negar o devir
csmico e biolgico. Efetivamente, o homem aparece no curso
da progresso da vida, como qualquer outro ser vivo, assume a
diversidade dos elementos que o constituem, porque carrega em
si um princpio de unidade que ultrapassa o tempo e regula as
mudanas de energia. E mister que se manifeste a especificidade
do homem pela maneira como ele realiza sua unidade vitoriosa
sobre a entropia.35

Desde a biologia, pode-se assegurar a igualdade hegemnica, entre seres


humanos e muitos animais, com 30.000 genes iguais. Mas, diferena - que no apenas
biolgica - faz com que as espcies conservem e transmitam de gerao em gerao sua

35

MALDAM, J.M. Cristo para o universo - F crist e cosmologia moderna, p. 91.

peculiaridade. Algum, brincando, disse que, se fosse implantado no tero de um


orangotango fmea, um vulo humano fecundado jamais nasceria um orangotango e
vice-versa. O cdigo gentico no permitiria a adaptao ao outro nicho biolgico. Sem
dvida, teoricamente (?!), os cientistas podem modificar clulas embrionrias - o que a
natureza no faz a no ser por saltos irreversveis (transmutao ou deformao gentica
individual).
As combinaes ontogenticas, somadas aos desafios culturais do meio
ambiente com o desenvolvimento do prprio crebro e da para a mente, deram origem
ao nosso atual homem moderno (homo sapiens sapiens).
Mas, ter sido somente isto?! Ou isto ser tudo. Permanece o misterioso
resultado da conscincia e da passagem ao humano propriamente dito. Eis um n
grdio! Porm, no se poderia aqui dar mais um passo? - O salto, ou a modificao,
necessariamente biolgico? - Afirmar radicalmente que a biologia j esgotou suas
possibilidades um risco. Mas tambm um risco deixar a explicao apenas no campo
da biologia e de cincias afins. A origem da conscincia (do que faz o humano
propriamente humano) participa do grande enigma juntamente com as questes da
origem da vida e do cosmo. Todavia, h ainda possibilidades de se aproximar das
questes naturais para compreender a humanizao dos hominoides. Uma delas est em
buscar tambm as diferenas.
As desvantagens. O que distingue seres humanos e animais (mamferos
superiores e aves), mesmo com suas centenas de semelhanas, qui esto, em primeiro
lugar, as desvantagens do ser humano. Na natureza, ele um dos animais mais frgeis.
Sofreu, no processo evolutivo, de adaptao e des-especializao. Como afirmou Edgar
Morin,36 a fragilidade humana a marca de uma disponibilidade, enquanto os outros
animais - que logo aps o nascimento vo se autonomizando dos pais, vo se adaptando
ao ecossistema, comeam a prover sua manuteno, amadurecem socialmente de modo
sofrido, adquirem rapidamente uma aprendizagem por imitao etc. E assim continuam
procedendo, por geraes, sem modificaes de hbitos, sem variaes numa mesma
populao, sem individualizao significativa, sem diversificao ou transmisso de
comportamentos adquiridos.
O ser humano , em seus primeiros anos de vida (at 7, 10 anos), extremamente
diferente, frgil e impotente. No sabe defender-se sozinho. O aprendizado por imitao
lhe insuficiente. No possui regras inatas de adaptao ao meio. Dever aprender com
36

MORIN, E. Le paradigme perdu: la nature humaine.

os outros a adequao vida, fsica e social. Cada criana, na verdade, viver no s


todo o processo csmico e biolgico de evoluo, mas tambm o processo de
humanidade para adequar-se convivncia sociocultural. Desde as funes mais
elementares at as mais complexas, tudo ser aprendido, pessoalmente, para que ela
adquira sua autonomia. Em cada indivduo, a humanidade viver e crescer e, ainda, em
certo sentido, re-comeara.
As vantagens. no processo de aprendizagem, de adequao criativa, de
adaptao social, de reflexo pessoal etc., que cada um crescer sem legar
geneticamente aos descendentes tais aquisies - apesar de elas irem se tornando
patrimnio comum e alguns falarem em gentica cultural. A fragilidade inata e a
ausncia de programao sero compensadas pela educao recebida e aprendizagem
conquistada. Socialmente, os seres humanos diferem dos outros grandes mamferos por
suas contingncias; mas tambm pela capacidade de organizao do espao, do tempo e
da individualidade personalizada, que vo adquirindo sua identidade humana.
Enquanto o animal uma unidade orgnica, com funes inatas e repetitivas, o
ser humano tambm unidade orgnica, desprotegida, desadaptada e no autocentrada.
na individualidade - no na espcie -, pelo adquirido - no pelo inato - que o ser
humano apresenta sua humanidade pessoal. Como a vida, em geral, foi se tornando
vitoriosa em cada salto mais complexo, e a partir de determinados momentos,
sobretudo nos animais superiores, ela foi agregando tambm natureza e cultura. Assim,
agora, num misterioso salto qualitativo de humanizao, o crebro humano
(biologia/natureza) - que interage no tempo e no espao, e consigo prprio (cultura) oportuniza as superaes das contingncias bioqumicas, reorganiza com riqueza o que
faltava em si e em seu meio, interage com os outros. Aqui, num novo e inaudito salto ainda desconhecido o ser humano define suas diferenas com os animais. Emerge na
evoluo da vida, distinguindo, separando, autonomizando-se, personificando-se ao
superar a natureza, ao produzir cultura e ao tornar-se senhor de si, de seus
sentimentos/emoes e reaes at recnditas. Ele supera a natureza, cria a cultura e se
apossa de si, sem dicotomias. Uma unidade natural habitada, indivisamente, por uma
subjetividade, inseparvel de seu agir, falar, pensar, interferir na prpria vida, criar e
perceber significados.
A identidade pelo corpo. A diferena se faz no tempo de seu corpo. No corpo
infantil o ser humano se mostrava totalmente dependente e limitado. J no corpo
amadurecido, adulto, ele atividade, relao, transformao, percepo, compreenso e

subjetividade. Este seu corpo. Ele seu corpo. Seu corpo tornou-se um dado
arquetpico, no apenas uma matria natural (csmica). Agora a fonte originria, o
princpio e o fim de sua atividade. O corpo humano, como microcosmo, carrega o
universo do qual ele parte tambm. a fonte de experincia do cosmo e no cosmo. E,
simultaneamente, a fonte de experincia de igualdade com os animais e sua distino.
vlido identificar o ser humano pelo seu corpo? - Alis, de que maneira poderse-ia identific-lo sem a corporeidade? - Como corpo, o ser humano existe e est
centrado em si mesmo, estando em comunicao com os outros e com o cosmo.
O corpo densifica o ser humano e lhe d significado. resultado do processo da
vida que superou a natureza material, que superou a animalidade e agora se faz
subjetividade, tanto porque resultou deste longo processo, quanto porque concentra,
desde sua originalidade embrionria, o patrimnio evolutivo da vida humana. Nele, o
ser humano supera o sistema inato dos esquemas comportamentais dos outros animais e
as indigncias da especializao. Nele, reveste-se com sua criatividade e fantasia.
Comparando-se com os animais, o ser humano percebe-se como um ser, que em
vista de sua subjetividade capaz de transcender toda a natureza e a prpria cultura,
concentrando a evoluo mxima da vida - que agora, nele, se torna esprito humano;
isto , a conscincia - que emergiu de todo o universo e nele se densificou - f-lo
responsvel (o que responde) perante a natureza e a histria (cultura), diante de si
mesmo e dos seus pares. A conscincia - resumo densificado da histria do cosmo e da
vida - radica-se no ser humano, na sua corporeidade, porm f-lo perguntar-se, no mais
sobre o que ele ?, mas quem ele ?, por estar situado diante do outro, o qual no
mais um animal diferente, mas um ser humano igual a si.
A identidade peculiar. A identidade humana explicada pela manuteno da
espcie, aumentada e conservada por meio da reproduo gentica. Mas, os mesmos
genes, que explicam a conservao de espcies, participam de algo que lhes maior:
presidem a irredutvel singularidade humana e mais ainda a singularidade do indivduo
humano. assim que, desde a gentica, cada ser singular porque nele se fez um
arranjo nico, no apenas por causa de diferenciadas contribuies biolgicas do pai e
da me (ele ser diferente de seus irmos), mas pelo mecanismo que preside a unio
daquela vida nica e singular do modo absoluto. Se isto marca a individualidade, por
outro lado a faz diferente de todo outro ser humano. O cdigo gentico - que transmite a
herana e informa (d forma) o organismo (corpo) humano pela sua relao com o
ambiente - vai garantir nova vida, no s a grande complexidade de determinaes

genticas e epigentica, mas especialmente a peculiar individualidade que se torna nica


pela estruturao do psiquismo.
H aqui um paradoxo: a) o cdigo gentico de um novo ser est todo
concentrado ali - o que o torna nico e particular, ao ponto de nada mais deter (salvo a
morte) o processo do desenvolvimento daquele que im-potente-mente dever esperar
no s os nove meses para nascer, mas tambm ter todas as carncias e dependncias
do incio da vida; b) contudo, no final da vida, apresentar o mesmo cdigo, agora
marcado, no pela potencializao mas pela atualizao, que a vida psquica, tica,
social, cultural etc. lhe dotou. Quer dizer: no cdigo gentico estava, j desde o
momento inicial, toda humanidade daquele que se explicitaria como humano em
distintas fases de sua vida pessoal. O ser, que nasceu dependente e incapaz, est pronto
e completo - desde o arranjo inaudito de seu comeo - como ser humano total. Na
histria, ele foi se mostrando gradativamente quem ele era: humano em cada momento
de sua histria. Sua humanidade apenas ia se atualizando, ia se mostrando. Assim, o ser
humano, bem mais que um sistema biolgico que se organiza, um quem (pessoa)
que se revela no correr da histria.
Nisto tudo, nesta identidade individual, nica e intransfervel, j est sua
dignidade (antes mesmo de ser necessrio apelar transcendncia), que ir sendo
explicitada sempre mais por novos elementos intrnsecos realizao plena do ser
humano com conscincia de si, portador de conscincia moral, de liberdade, de
socialidade, de razes de viver e de finalidade de vida.

5. A hominizao

At aqui h um aparente naturalismo. Todavia duas novas questes se impem


duramente: a passagem do animal ao humano (5.1.) e a situao do indivduo frente ao
outro ser humano (5.2).

5.1.

A passagem ao humano

Certamente todo conhecimento, inclusive teolgico, fragmentado. Quem


poder ter a viso de totalidade e suas implicaes de um s modo de compreender a
realidade? A abordagem acima - desde a cerebralizao e individualizao - no
responde de modo suficiente sobre quem o ser humano enquanto diferente dos
animais. Mas, certo: a fronteira entre ambos vai bem alm da natureza que se
transforma, misteriosamente, em crebro/mente e autoconscincia. A compreenso da
evoluo do ser humano, desde a cincia, um exerccio retroativo, do presente para o
passado. A complexidade do ser humano percebida retrospectivamente no tempo.
Sempre h um novo que se diferencia do estado posterior.
A situao atual decorre de situaes anteriores que se modificaram. Algumas
variveis da transformao podem ser identificadas em fatores como clima,
alimentao, ecossistema e alterao gentica etc. Porm, so elas suficientes para
explicar todas as mudanas complexivas?
Voltam aqui as questes de acaso e direo da vida (finalismo ou teleologia). As
cincias no conseguem encontrar os nexos histricos em fatos, mas estabelecem
apenas, desde seus achados morfolgicos, filogenticos, arqueolgicos, uma
continuidade descontnua, uma organizao desorganizada. Ao mesmo tempo, no
podem e nem lhes permitido superar o fosso metafsico - inclusive teolgico e de
outros sabe- res - onde o mais importante no saber o como do curso do universo, mas
seu porqu, sua finalidade.
Aqui, a teologia traz seu contributo peculiar, sem ignorar a evoluo em sua
objetividade (como fato e como objeto de estudo). O conceito de ao criadora de Deus
- que no novo, pois inmeros Padres da Igreja apresentavam j esta ideia, que depois
foi sendo hegemonicamente substituda (mas no eliminada) pela ontologizao do
ato criacional - , na verdade, a compreenso de uma criao contnua. Isto : Deus age
criadoramente sempre. A cosmognese e antropognese so dinmicas porque Deus
acompanha criativamente sua obra.
A cincia consegue afirmar-se apenas pela deduo, que nem sempre factual.
Muitas vezes relacionai e casual (no causai). A teologia, usando o conceito de criao

contnua, quer expressar a ao divina como origem, preservao e desenvolvimento da


obra criada.
O criado no necessrio. gratuito. Para que permanea no tempo e evolua,
Deus o acompanha no de forma mecnica, mas pela sua graa. Neste sentido teologicamente falando, no se podem aceitar concepes filosficas como: a) Deus
criou tudo - um algo indefinido - com todas as potencialidades para um
autodesenvolvimento (como uma densidade material mxima e volume mnimo); b) ele
colocou no incio causas seminais que iriam se explicitando no processo evolutivo
(criao por meio mecnico de causas segundas).
A criao contnua implica perceber, simultaneamente, o Deus criador,
providente e consumador de todas as coisas, no como um demiurgo fatalista, que
permite sua obra ir adquirindo possibilidades materiais, e at, ao acaso, para atingir o
fim por ele desejado - sobretudo porque fez surgir o novo por meio da ativao das
foras criaturais prprias.37
Deus - afirmam Dorothea Satler e Theodor Schneider -

moderadamente ativo em todos os tempos, capacitando o ente


contingente por ele mantido na existncia, para um
autodesenvolvimento, cujo resultado algo inderivavelmente
novo, no atingvel pelas foras criaturais. 38

Deste modo, a criao mantida e lhe oportunizada modificar-se para que toda
a obra criada venha a ser a glria de Deus. Assim, a criao no nem algo ao acaso
nem algo predeterminado. No ao acaso porque Deus, alm de direcionar sua obra, a
quer existente como parte da magnificncia da criao. A criao toda feita para
glorificar seu criador - excluda qualquer ideia de pantesmo. No ao predeterminismo
mecnico, porque a vida no se desenvolve nem uniforme nem constantemente; h uma
gratuidade tal que as coisas podem existir e desaparecer 39 sem necessariamente serem
razo para o passo seguinte. Pondo exemplo: o surgimento e o desaparecimento dos
dinossauros e dos neanderthalenses.

37

Obs: no ltimo captulo abordar-se- a questo do agir escatolgico de Deus, fazendo novos cus e nova terra, onde o pressuposto
a antecipao histrica da ressurreio de Jesus, como ressurreio de todos os seres humanos e consumao do universo.
38
Cf. SCHNEIDER, Th. (org.). Manual de Dogmtica, vol. I, p. 196
39
Cf. Catecismo da Igreja Catlica, n. 310.

A criao glorifica o Criador desde o incio (e at a consumao),


independentemente de presena do ser humano. Dando subsistncia realidade criada e
fazendo-a recriar-se de modo surpreendentemente novo, Deus acompanha sua obra
conduzindo-a do simples ao complexo, sem necessidade unidirecional. Neste contexto,
o fazer de Deus que d vida matria (clulas unicelulares). ele quem d a
transcendncia ao ser humano, conservando-o na e como a natureza. Assim, o ser
humano, desde sua complexidade csmica, torna-se pessoa para alm da matria.
A autopoisis (auto-organizao) do universo e da vida explode no ser humano
como autogerenciamento porque Deus o quer - e o quer por si mesmo,
independentemente da atuao das causas segundas. Neste sentido, no so necessrios
nem o antropocentrismo, nem mesmo a percepo do ser humano como pice da
cosmognese. Mas, preciso perceber sua existncia como uma expresso querida por
Deus mesmo para manifestar nele sua glria, sendo Ele prprio a glria humana. 40
Desde a cincia, possvel afirmar a casualidade da existncia humana por causa
de sua dependncia de inmeras condies, pela dificuldade de perceber os saltos
qualitativos que a vida proporcionou, pela possibilidade de no vir a ser o que no era
etc. Esta possibilidade de compreenso (cientfica) real. Mas no suficiente para
quem cr em Deus e em sua ao criadora - que continuamente sustentada e levada a
termo, livre e graciosamente, por Deus.
A obra divina, comeada cosmogonicamente, explode como vida - enquanto
graa salvfica e criadora inclusive num ser animal que se transcende at a possibilidade
de umproprium humanum, com quem Deus mesmo capaz de relacionar-se e dialogar.
Explode tambm na formao de cada vida humana capacitada para a relao com a
transcendncia - a que buscou um socium da natureza, mas no um igual natureza. Por
isto, Deus completou a criao fazendo surgir, nela e dela prpria, o ser humano, em
quem ps seu hlito divino.
A possibilidade humana um ato de gratuidade divina, desde a obra criada para que nela Deus visse que tudo era bom e pudesse existir como seu socium, que
fosse amado por si mesmo e fosse como coroamento definitivo, capaz de conter, como
criatura humana, o prprio Verbo criador, agora encarnado.

40

Aqui, sem dvida, valem as belssimas pginas de Santo Irineu sobre a glria de Deus no homem vivo e a glria do homem vivo
em Deus.

5.2. A individualidade frente ao outro

Uma vez localizado o significado da passagem do animal a humano, como a


ao particular de Deus, a outra varivel se impe: o auto- reconhecimento humano
frente ao outro.
A autopercepo do ser humano, enquanto tal, no se d mais na relao
vertical, para baixo, como com os outros animais. Ela se realiza na horizontalidade: com
seus iguais. E isto acontece to-somente medida que o ser humano se converte ao seu
prximo - como um igual, numa comunho inter-humana. Para qualificar esta relao de
igual com o prximo, aplica-se o conceito de pessoa.
Convm, mesmo que rapidamente, recordar o conceito de pessoa, que, como j
se afirmou, desconhecido das cincias naturais, biolgicas e, qui, de algumas
cincias humanas. Por outro lado, preciso ter presente que os conceitos de homem e de
pessoa nem sempre se equivalem.
O conceito de pessoa prprio do cristianismo e tem sua fundamentao maior
na discusso teolgica sobre o Deus Trino dos grandes Conclios Cristolgicos, entre os
sculos IV e VIII. A expresso no bblica e totalmente estranha ao pensamento
filosfico grego. Para os cristos, que se confrontavam com a questo trinitria, surge o
termo pessoa. S assim puderam manter a unidade interna da natureza divina (Trindade
imanente; i. : Deus em si), que se realiza trinitariamente na comunho/relao com
outro (Trindade econmica; i. : as trs pessoas: Pai, Filho e Esprito Santo).
Por natureza, Deus uno, mas sua manifestao - ao para fora de si - algo
pessoal que se torna manifesto diante de si e do outro, por uma relao prpria. Quer
dizer: tambm a ao econmica de Deus uma relao. Deus se torna pessoa (trino)
porque Pai, Filho e Esprito Santo. Seu ser se manifesta na relacionalidade, ou seja,
tambm em Deus a relao que torna pessoa.
O conceito de pessoa, na f crist, tambm atribudo a certos anjos - por sua
atuao especial (personalizada), como Miguel, Rafael.
Ao ser humano, considerado como imagem de Deus, foi atribudo o conceito de
pessoa tambm por causa de sua relao com seu igual. O ser humano pessoa por estar
aberto ao outro e s se realiza no relacionar-se com seu semelhante, como igual. A

caracterstica insuprimvel do ser pessoal sua vocao ao dilogo, comunho, ao coenvolvimento.41


O conceito de pessoa humana - que o cristianismo desenvolveu mais
intensamente - um conceito cultural, que impregnou o Ocidente plural, apesar de
crescentemente estar sendo contestado (ver adiante). Entretanto um conceito
importante, capaz de estabelecer fundamentos da dignidade humana seja a partir da
concepo de que todo homem imagem de Deus (criado por Deus), seja fundado na
peculiaridade que o faz um ser nico entre os seres vivos e, ao mesmo tempo, distinto
dos outros - como se viu pginas atrs. O conceito dado de pessoa, geralmente, no
supe suas transformaes e seus estgios de vida.
D-se por pessoa aquele que capaz de relacionar-se com o outro; quer dizer,
que considerando um outro como igual a si (univocidade), sabe-se tambm diferente
(alteridade), por isto capaz de reconhecer, em si e no outro, princpios nticos j
existentes ou que se tornaro explcitos, e que s deixaro de existir pela morte. A
relacionalidade, neste conceito, significa: poder relacionar-se de modo real ou potencial
e estabelecer uma relao simultnea de igualdade (eu sou como ele) e diferenciao (eu
no sou ele). Toma-se conscincia de que se idntico (na espcie, na individualidade,
na filognese), porque cada um diferente do outro (ontognese, personalidade, situado
na histria).
A relacionalidade - factual ou potencial - de comunicar-se com o outro e de
comparar-se com seu igual para evidenciar a diferena estabelece alguns princpios
ticos teis de universalizao, de humanidade e de bem-estar, bem lembradas por Guy
Durand em sua Introduo geral biotica, histria, conceitos e instrumentos, 42 em
parte baseados em Kant:
1) Querer, ao mesmo tempo, que meu agir possa tornar-se uma lei universal. Isto
: que minha ao tica possa ser generalizada sem que a humanidade desaparea; ao
mesmo tempo, que ela possa ser generalizada sem condies em todos os casos
semelhantes.
2) Agir de modo tal que a humanidade, tanto em si prpria quanto em qualquer
outra pessoa, seja sempre um fim e nunca unicamente um meio. Isto : respeitar a
liberdade do outro, do mesmo modo que respeito a minha; reconhecer a alteridade, que
se torna reciprocidade, ao infinito; rejeitar a coisificao do ser (corpo) humano,
41
42

Cf. FORTE, B. Eeternit nel tempo - Saggio di antropologia ed tica sacramentale, p. 79.
DURAND, G. Introduo geral biotica - Histria, conceitos e instrumentos... p. 240-245.

sobretudo sua comercializao. Pois o dinheiro coisifica tudo o que ele compra e
coloca um sinal de igualdade entre tudo o que ele coisificou, no por acidente, mas por
essncia.43
3) A particularidade e a complexidade dos casos criam, frequentemente, dilemas
muito difceis. Ento, se deve agir sempre em vista de um bem para o maior nmero de
pessoas: o melhor bem para o ser humano, a soluo tima e mal menor. Decorre da
um compromisso: escolher sempre o caminho mais promissor, mais positivo sempre,
sem se resignar ao mal menor.

6. A pessoa como relao

Afirmou-se acima que compreender a pessoa como relacionalidade supe-se


perceb-la j como autnoma, adulta, j capaz de relaes. A afirmao foi
complementada com uma questo tica: a de considerar o outro, que me distinto,
como um igual portador de direitos (e deve- res). A conjugao destes dois elementos
impe a compreenso do ser relacionai da prpria pessoa em sua existncia e sua
aceitao.44 Estes elementos nticos (existncia e aceitao) vo fundamentar o
significado da pessoa na totalidade como relao, pois ela no ficar ao alvitre dos que
consideram a impossibilidade das relaes de um embrio ou de algum - sobretudo em
fase terminal de vida - que tenha perdido uma srie de capacidades.
Pessoa como relao (os animais tambm se relacionam) implica perceber no
apenas individuao e similaridade, mas acolher o outro como prximo (isto os animais
no so capazes). E relacionando-me com o outro que me reconheo e o reconheo
como pessoa. Se pessoa - subsistente em si mesma (nica e irrepetvel) e relacionai
(abertura ao outro e subjetividade) - por natureza ntica, no natureza csmica, no por
cultura ou pelo exerccio de determinadas capacidades e aes (como querem algumas
antropologias). Deste modo, pessoa se pela existncia antes mesmo do seu agir. E a
existncia que vai determinar a e no seu agir. Isto implica ao menos trs questes
vitais: a do embrio - ainda incapaz de agir a do incapaz ou incapacitado e a dos papis
sociais. As duas primeiras j foram comentadas acima. A terceira se relaciona aos mitos
43
44

Idem, p. 241.
Cf. SANCHES, M. Biotica, cincia e transcendncia, p. 80ss e 98 ss.

modernos, movidos pelas ideologias: a) do processo da mudana da compreenso do


homo faber e b) do niilismo e da auto-realizao.
a) Diante das grandes transformaes econmicas e do desenvolvimento, parece
que o ser humano tornar-se-ia pessoa medida que participa, como ator, desta mudana
- caso contrrio no-pessoa. A nova conscincia de si, a f na capacidade de criar e
modificar, a esperana de ser senhor da sua prpria evoluo (destino) o levam a
considerar-se centro de si mesmo, autnomo (diante de Deus) e independente (da
evoluo csmica). A auto-exaltao da decorrente evidencia que uns so vencedores,
e, portanto, so mais humanos que os outros humanos - os excludos que no tm fora
para se impor diante do mundo novo.
O mito do progresso faz crer na possibilidade de o ser humano qualificar-se
geneticamente e eliminar, como membro da famlia humana, todos quantos no
auferirem das possibilidades superiores no mais dependentes da natureza. Por um lado,
o novo homo faber tornar-se-ia o autor da nova criao, ou seja: o responsvel pela
continuidade da evoluo; enquanto primeiro homo faber passaria a ser um homem de
atributos, vitimado pela ideologia de sociologias ou de suas funes sociais. 45 Ele
seria humano por ser faber e dele se esperar que seja capaz de fazer... Fazer certas
coisas. Por isto ele seria: pedreiro, agricultor, professor, mdico, operrio, enfim
produtor de alguma coisa lucrativa.
A modernidade separou o ser humano de sua funo social e de sua
subjetividade e o v como fabricante de tarefas num mundo de atributos sem relao
com ele. A grande promessa da modernidade acentuou a distino entre os seres
humanos, des-humanizando assim uns e outros, simultaneamente, pois ambos se
tornaram refns de seu prprio mecanismo social.
b)

O consumismo, o mito do progresso ilimitado, do valor do indivduo, do

pragmatismo utilitarista, as possibilidades tecnolgicas criaram a perspectiva de que a


auto-realizao humana est dentro de si mesmo e do cosmo que o cerca. A crescente e
desesperada busca de felicidade tem levado o ser humano a perceber-se como um
insacivel e eterno insatisfeito, onde a pergunta sobre o sentido de seu existir/ser aponta
para o vazio, para o nada. O ser humano fechou horizontes da histria, da humanidade e
da transcendncia. Nisto, tornou-se um solitrio, sem esperana e sem relaes
significativas.

45

Cf. MOLTMANN, J. El hombre, p. 121.

A relacionalidade, que deve caracteriz-lo, perde sua adequao no tempo


moderno, porm no no significado de sua existncia. A tendncia a realizar-se sozinho
o levou ao niilismo - o que o des-organiza. Mas, no diante desse homem assim
situado que se compreende quem o prprio ser humano nem o que prprio do
humano. O ser humano se faz diante da natureza - da qual se diferencia sempre mais;
faz-se diante do outro - considerado como prximo, como se disse acima. Ao ver-se no
outro, cada ser humano se descobre como irmo (igual) e como companheiro
(diferente).46
Isto nem sempre foi assim. Diante do outro, muitas vezes quis-se encobrir o
irmo como infra-humano. Foi assim que procederam os europeus na colonizao das
Amricas, e na relao de compra e venda de negros africanos escravizados. O brbaro
o outro, o que inimigo. O diferente pode ser tomado como inferior.
No basta perceber o outro. necessrio identific-lo como prximo, para sentilo como humano. Perceber nele aes, sentimentos, angstias, esperana, tristezas,
alegrias, pulses, como as minhas. O outro me est prximo porque tem em comum a
histria e a individualidade, a utopia e criatividade. O outro como prximo ser Maria,
Pedro, Clara ou Joo que ama, chora, sofre, trabalha, reproduz-se, sonha. Todos e cada
um vivem uma subjetividade semelhante.
Diante do outro - como prximo -, o ser humano busca qualificar a prpria vida
e a do outro, pois intui o destino comum. Se diante do outro como prximo o ser
humano amadurece progressivamente, no se pode ignorar que, tambm diante do
semelhante, algum pode des-humanizar-se como inimigo, concorrente, dominador e
carrasco.
Mas, o sentido do humano se esgotaria na horizontalidade da natureza (que o
tem como um objeto) ou da humanidade (que o tem como pessoa)?! Dos povos
primitivos aos contemporneos, a resposta sobre o humano nunca partiu da natureza
(cosmicidade, animalidade), nem do confronto com o outro, prximo ou no. Apenas no
mundo moderno - sempre mais autnomo e secular - que o ser humano tem negado
sua identidade compreendida a partir da transcendncia.
para alm de si mesmo, em Deus mesmo, que se foi encontrando
historicamente a razo, a identidade, do ser humano. As religies - mais que conjunto de
ritos, oferendas e expiaes - foram respostas s inquietaes do corao humano. O

significado humano ltimo est em Deus. E nele que esto tambm a plenificao e a
plenitude humanas. Verdadeiramente, s em Deus o ser humano encontra sua
identidade. Deus quis, em Jesus Cristo, mostrar sua face humana e s nele o ser humano
consegue definir sua face.

Captulo 6

Quem somos ns?

A resposta s em Jesus Cristo

Somos mais de 6 bilhes de pessoas humanas no mundo atual e, dentre elas, uma
parcela de uns 2 milhes professam a f em Jesus Cristo, atravs de um dos 33.800
grupos - que compem o cristianismo no mundo. Entre eles, se sobressai o cristianismo
catlico quer pelo nmero de adeptos (mais de um bilho) quer por sua fora histrica
no Ocidente. Cada grupo mantm a certeza de sua fidelidade a partir de um aspecto para
compreender o todo que Jesus Cristo ou para vivenciar seus ensinamentos a partir de
um ponto de compreenso.
Os cristos, professando a f em Jesus Cristo, sabem por revelao divina que
Deus tem um plano para todos os seres humanos e para a prpria natureza. Tal plano foi
revelado pelo prprio Jesus s recentemente. H dois mil anos, somente. (Convm
lembrar que muitos povos vivem na Amrica Latina h mais de 15 mil anos.) O plano
salvfico conhecido apenas por esta parcela da humanidade. Mas ele oferta de Deus
para todos e a cada um dos milhares de seres que nasceram antes de Cristo e para os que
ainda havero de participar da humanidade nos tempos vindouros. O papel dos cristos,
neste contexto, o de ser sinal e testemunha do plano universal de Deus.
Ao mesmo tempo, aos cristos so dados critrios do alto (a revelao de Deus)
de quem so eles e todos os outros seres humanos; seja os que j existiram, seja os que
viro a existir. Esse privilgio dom livre e gratuito de Deus. Porm, no exclusivo
dos cristos. A gratuidade de escolha do doador e a inclusividade de todos os seres
humanos na causa comum tm sua origem antes da criao do mundo. Est num tempo
fora do tempo. Isto pertence f crist, revelado biblicamente.

1. Jesus Cristo, revelador da identidade humana

Respostas insuficientes. Nos captulos 3 e 4 deste livro, fez-se meno s duas


grandes narrativas ocidentais (a cientfica e a vtero-testamentria) da cosmognese e da
antropognese. Para os cristos, ambas so insuficientes, mesmo reconhecendo nelas
magnitudes diferentes. A narrativa cientfica, apesar de sua racionalidade e at por causa
dela, no d o sentido das coisas. Por outro lado, ainda mantm certa provisoriedade e
no tem uma aceitao universal. A narrativa judaica - mesmo que assumida e
priorizada na histria religiosa do Ocidente - no d conta da facticidade da evoluo.
As vrias maneiras de pensar a realidade e seu sentido ganham firmeza e
concretude medida que intercambiam explicaes, sem serem dogmticas ou
fundamentalistas - procedam de onde procederem.
Nosso ensaio mostrou at agora que a pergunta sobre quem o ser humano foi
respondida muitas vezes pelo o que o ser humano, tanto no processo evolutivo
quanto na narrativa da criao. Mas a resposta mostrou-se insuficiente no tocante ao ser
humano comparado natureza tanto quanto em relao aos animais e a outros seres
humanos. Tambm uma antropologia religiosa no basta para dizer quem ele . Na
comparao com o divino saber-se- que o humano o no-divino, em sua interioridade
e terrenalidade. Mesmo sendo totalmente distante das concepes biolgicas,
psicossociais e culturais, a antropologia religiosa insuficiente em si por no ter como
fonte de partida seno a prpria experincia religiosa humana. Esta, em geral, nascida
das grandes interrogaes, quando no desde o sofrimento e morte. No fundo, a
experincia no a resposta. somente a experincia (angustiante) da prpria pergunta.
Ou como j dizia Santo Agostinho, nas Confisses:

Que mistrio terrvel, meu Deus, que multiplicidade profunda e


infinita! E isto alma, e isto sou eu mesmo? Que sou, pois,
Deus meu? Que classe de ser eu sou? - Uma vida to variada e
multiforme e sobre maneira imensa! (Livro X, 17,26).

O prprio Agostinho confirma tornei-me uma questo para mim mesmo.


Converti-me para mim mesmo em campo de fadiga (Livro X, 16,25). A pergunta
voltada para o alto, na verdade, est voltada para o prprio ser humano. E como conclui

Santo Agostinho: inquieto est o meu corao, enquanto no repousar em ti, Senhor.
No permanecendo em si (experincia), que o ser humano encontra a resposta. O
autoconhecimento surge da sensao do divino acima do humano. Mas a experincia
que leva o ser para fora de si, na verdade o traz para dentro de si. E a comparao
dever ser feita com as prprias experincias.
A resposta definitiva. Os cristos creem encontrar a resposta a partir de Jesus
Cristo. O Jesus de Nazar to verdadeiramente Deus quanto homem histrico. Filho
da promessa a Abrao descendente de Davi, nascido de mulher, nasceu na plenitude do
tempo (cf. G14,4). O Filho de Deus, isto , Deus mesmo feito homem, nasceu como
um dos nossos. Nele, a comunidade crente reconheceu Deus entre ns, Deus-conosco,
feito nossa carne. Porque na carne humana havia a possibilidade de Deus tornar-se um
de ns, o Verbo eterno fez-se um de ns a fim de nos elevar at Deus. Isto porque Ele
queria realizar, de modo definitivo, a condio querida por Deus desde toda a
eternidade, para todos. Os seres humanos devero atingir sua realizao mxima, sendo
a glria do prprio Deus. Podero viver diante de sua face.
Viver definitivamente em Deus no ser privilgio humano. A natureza tambm
haver de participar - a seu modo (cf. Rm 8,18-22) - de nova vida, quando Deus criar
tudo, de novo, quer dizer, quando Ele fizer novos os cus e nova a terra. As criaturas
invisveis (anjos, por exemplo), professadas na f crist, j vem a Deus face a face.
Foram criadas, numa histria prpria, dentro da economia de Deus.
O Deus nascido numa noite da histria dos homens tornou-se a luz humana para
todos. Agora, Ele como um de ns e nos fala abertamente. Ele falara anteriormente, de
muitos modos, pelos patriarcas, pelos profetas, pelos sbios de todos os povos e,
inclusive, pela prpria natureza (as teofanias). Por volta de 8-6 aC, isto , na plenitude
dos tempos (cf. G14,4), o Verbo se fez carne (Jo 1,10) para que pudssemos ver e
participar da glria divina.
O revelador do ser humano. E desde ento, e s a partir da, que comeou a
ficar claro quem o ser humano. O Deus historicizado tornou-se nosso revelador desde
a nossa prpria carne, isto , desde a nossa prpria realidade. E Ele falou conosco, no
s em nossa lngua - capacidade de compreenso - mas tambm na gramtica de Deus.
Quer dizer, por sua knose (divino) e por sua vida, morte e ressurreio (humano), falou
conosco.
Deus que poderia manifestar de muitos modos seu plano, falou por seu prprio
Filho, feito um de ns. Sem dvida, a distncia entre Deus e o ser humano infinita.

Mas Deus superou a distncia estando como humano entre ns. Ele no elevou nenhum
humano sua condio: pois impossvel! Mas desceu em nosso meio para indicar-nos
que somos feitos sua imagem. Somos desde j seus filhos adotados em seu Filho
nico. Para que ns nos revestssemos de Deus, como diz Santo Irineu, era necessrio
que Deus se vestisse de nossa carne. Foi assim que Ele se fez nosso irmo, a fim de nos
fazer filhos de seu Pai - no na igual natureza, mas na igual participao.
Jesus Deus como expresso humana. Mesmo que Deus no se reduza a ser
Jesus na terra, Ele permanece Deus. Tendo assumido a condio histrica e
transformando-se em humano, Ele Deus-conosco e para-ns. Porm, Jesus humano
como todos os seres humanos. Para ser tal, o Verbo se humilhou, fazendo-se um de ns,
sem ter considerado isto indigno de sua grandeza (cf. Fl. 2,6). Assumiu nossa carne
histrica (i.e., admica) para que pudssemos ter - pela ressurreio - a carne gloriosa
do Filho de Deus. Deste modo, o homem admico se tornar crstico na consumao:
eis o que o Verbo quis nos revelar! Ele, sendo Deus, fez-se humano como ns. Revelouse em nossa carne como um de ns, para revelar-nos quem seremos em plenitude.
H, porm, um outro e mais fundamental aspecto: nele revelou-se a plenitude do
ser humano. Como disse K. Barth, citado por Lus Ladaria: Jesus o homem tal como
Deus quer e criou.47 Sem dvida, aqui se deve compreender a humanidade de Jesus em
sua totalidade: desde a encarnao, passando pelo nascimento, vida, morte e sua
culminncia: ressurreio.
Deste modo, j se pode compreender o que dito em Jo 3,2: o que seremos
ainda no se manifestou. Portanto, no podemos nos conhecer de modo definitivo...
seno em Cristo. Em outras palavras: ainda no podemos saber definitivamente quem
o ser humano. O ser humano que conhecemos no vive ainda sua plenitude, sua
totalidade.
O ser humano definitivo. S em Jesus ressuscitado podemos saber quem somos e
quem seremos. Dito isto, preciso reafirmar:

na verdade, o mistrio do homem s se torna claro


verdadeiramente no mistrio do Verbo encarnado... Novo Ado
na mesma revelao do mistrio do Pai, Cristo manifesta
plenamente o homem ao prprio homem e lhe descobre sua
altssima vocao (GS 22a).

O mistrio do homem s se revela no mistrio de Cristo, que por sua vez est
implicado no mistrio do Pai. Estes trs mistrios - o do Pai, o de Cristo e o do homem se inter-relacionam. Sua afirmao e pice esto em Cristo. Cristo se torna assim
mediador dos homens diante de Deus e mediador de Deus diante dos homens. Participa
simultaneamente do mistrio Pai e do mistrio do ser humano - resguardada a sua
misteriosidade de homem/Deus ou Deus/homem. Ele foi todo para Deus (pro Deo) e
todo para ns (pro nobis), mas conosco e como um de ns. E por isto que s nele
verdadeiramente podemos saber quem somos, e, paralelamente, quem ele e quem
Deus. Saber quem o ser humano implica, ento, saber primeiramente quem Cristo.
(Consequentemente toda antropologia , antes de tudo, uma cristologia. E toda
cristologia antropologia, como j disse Rahner. Apesar de toda antropologia ser
tambm uma teologia e vice-versa; pois no se pode falar do homem sem ter Deus; nem
pode se falar de Deus sem ser humano.) 48
Ainda de Barth vale a afirmao: O ser humano ontologicamente determinado
pelo fato de que, entre todos os homens, um dentre eles o homem Jesus (KD. III/2,
158). E o Concilio Vaticano II ensina:

o Filho de Deus uniu-se de certo modo a todo homem.


Trabalhou com mos humanas. Pensou com inteligncia
humana, agiu como vontade humana, amou com o corao
humano. Nascido da virgem Maria tornou-se verdadeiramente
um de ns, semelhante a ns em tudo, exceto no pecado (GS
22a).

Por sua morte e ressurreio, foi glorificado e estabelecido primognito de toda


criao (ou de toda criatura). A primogenitura de Cristo est no apenas em Ele ser o
mais digno de todos, o mais eminente. Est sobretudo em ter, por sua ressurreio,
inaugurado a humanidade nova - sendo Ele o primognito e verdadeiro Ado.
s em face do Cristo ressuscitado que verdadeiramente se pode encontrar a
autntica face do ser humano. Esta face futura - j possuda como penhor - realidade
escatolgica de Cristo diante de Deus. Por isto, s em Deus - mais propriamente em
Jesus Cristo - que o ser humano saber quem Ele .

Enquanto histrico, o ser humano um mistrio para si mesmo, o homo


absconditus - como o chamou J. Moltmann. Se assim , torna-se necessrio explicar
melhor a estrutura crstica do ser humano, isto , conhecer Cristo para conhecer o ser
humano. E conhecer Cristo conhec-lo desde o plano da economia salvfica a ns
revelado.

Pela revelao divina quis Deus manifestar-se e comunicar-se a


si mesmo e os decretos eternos de sua vontade acerca da
salvao dos homens, a saber, para fazer participar os bens
divinos, que superam inteiramente a capacidade da mente
humana (DV 6).

Esta afirmao conciliar vai ao encontro das afirmaes de Ef 1,3- 14:

Bendito Deus e pai de Jesus Cristo que nos abenoou com todas
as bnos espirituais, como tambm nos elegeu nele antes da
fundao do mundo, para sermos filhos de adoo por Jesus
Cristo... para louvar a glria de sua graa... descobrindo-nos o
mistrio de sua graa... de congregar em Cristo todas as coisas
na dispensao da plenitude dos tempos, tanto as que esto nos
cus como as que esto na terra; nele, digo, em quem tambm
fomos feitos herana havendo sido predestinados... a fim de
sermos o louvor de sua glria... e tendo nele sido criado, fostes
selado com o Esprito Santo da promessa. O qual penhor de
nossa herana, para redeno da promessa adquirida, para o
louvor de sua glria.

2. Criados para sermos salvos por Cristo

O cristianismo no uma afirmao que, em primeiro lugar, se volta para as


origens (mesmo que teolgicas), para a criao divina. Antes, sua preocupao est
centrada em Cristo, o crucificado/ressuscitado, em vista do resultado final da histria da
salvao. Ningum comea uma ao seno em vista de seu objetivo final. Assim
tambm o plano de Deus para o ser humano e a criao toda. Tudo que existe e que foi
feito est relacionado com a finalidade ltima.

Em linguagem teolgica se diz: tudo tem orientao escatolgica, tudo caminha


para a consumao em Cristo. Por isto, mesmo as narrativas do incio (criao), das
alianas, do mistrio de Cristo e de toda a histria se ordenam para a escatologia. E o
fim que d sentido ao presente e ao passado. O cristianismo , pois, uma religio que cr
em Jesus Cristo, porque, tendo tudo partido dele, para Ele se dirigem todas as coisas at
serem apresentadas ao Pai.
Em resumo: dado que o significado est no fim (consumao escatolgica), toda
a histria deve ser vista a partir de Cristo, que far o universo e o ser humano serem
bons e muito bons aos olhos de Deus [Deus ver que tudo era bom (cf. Gn 1,1-2,4a),
como o refro da narrativa sacerdotal, cujo significado quer enfatizar a bondade final da
obra criada].
A Trindade decidiu, no tempo ab aeternum, criar tudo quanto existe. Antes,
porm de criar - o texto efesino que enfatiza - elegeu o ser humano para ser perfeito,
santo e irrepreensvel a seus olhos, para ser sua glria. Porque tudo foi feito em Cristo,
por Ele e para Ele.
Todas as coisas subsistem nele [...] Aprouve a Deus habitar nele toda plenitude
[...] que Ele reconciliasse todas as coisas do cu e da terra (Cl 1,16.19-20) e ainda: Ele
a imagem do Deus invisvel, o primognito de toda criao (1,15). E ICor 8,6b
confirma: [...] Jesus Cristo - pelo qual todas as coisas so feitas e pelo qual ns
existimos.
Antes de criar, Deus j desejava levar tudo plenitude por meio de Cristo. A
salvao, portanto, precede a criao. As coisas e o ser humano existem porque seriam
salvos em Cristo/Verbo. Em funo da salvao em Cristo que tudo - homens e coisas
- haveria de ser criado. Salvar a funo de Cristo, na Trindade econmica. para
salvar tudo, isto , para levar a criao sua plenitude, que Ele Verbo criador do Pai.
Pode-se resumir assim: desde antes da criao, o Verbo indicado para ser
salvador do que se vai criar. Somos eleitos nele e destinados a sermos, por meio dele,
santos em funo da glria de Deus; sendo Ele prprio o primognito da criao, porque
gerado por Deus antes de tudo. Ele sustenta tudo e todos com o seu poder (detm o
primado). Por outro lado, aos que Deus conheceu de antemo, Ele predestinou a ser
conforme a imagem de seu Filho, a fim de ser Ele, o primognito dentre muitos irmos
(Rm 8,29). Nesse sentido, o ser humano (como j afirmara Gn 1,26) a imagem de
Deus. Agora, fica claro que somos irmos de Jesus - a imagem visvel do Deus

invisvel. Somos, como humanos, a imagem de Jesus, trazendo a imagem do homem


terrestre para um dia levarmos a imagem do homem celeste (cf. ICor 15,45).
O prprio Verbo eterno assumiu, na histria, a imagem do homem terrestre para
nos mostrar a imagem do homem celeste - que Ele como o primognito dos vivos e
dos mortos.

3. O velho Ado e o novo Ado

Aqui tambm importante o conceito de Ado. Esta considerao encontrada


em diversas epstolas paulinas, como Rm 5; ICor 15; F1 2. Ado todo homem, a
humanidade toda formada da natureza terrestre (adamah), uma imagem de Deus (que
no se conhece por si). Em termos cosmolgicos o ser humano da histria. filho de
um grande processo em transformao que, como irmo de outros grandes mamferos,
distingue-se deles progressivamente ao receber o especial sopro divino, que o fez ser
humano.
Ado um homem comum, que caminha nas ruas e praas das cidades, que
trabalha o trigo e faz o po, cria a tecnologia. o homem primitivo, o contemporneo
ou o vindouro. O primeiro Ado o ser humano da realidade histrica. A primeira
realidade, o primeiro status de Ado ser real e existente. Ado o homem concreto
que Deus quis na histria, que evoluiu num processo de milhares de anos at hoje.
O verdadeiro, o novo e definitivo Ado, porm, Cristo - o que na ordem da
criao/evoluo apareceu s mais tarde e apareceu como homem terrestre. Para poder
ser visto, tornou-se humano. E como humano, no sentido histrico, Jesus tambm foi
admico (em tudo igual aos homens); por outro lado, o Ado original pensado por
Deus como homem perfeito (perfeito aos olhos de Deus), modelo, arqutipo e
primognito.
Se na histria Cristo apareceu como um ser igual aos outros, pela ressurreio
revelou sua identidade original (arch) e sua primogenitura aparece, agora, como o
homem celeste. Tornou-se o primeiro ressuscitado - termos escatolgicos. Na histria
(crnos), assumiu a carne admica - como a dos irmos pela ressurreio, transformou-a

em carne celeste (pneumtica, ressuscitada) e por isto chamado tambm primognito


dos mortos.
Na inteno divina, Cristo era o primeiro, o modelo, o novo, o original; porm,
na ordem criada/evoluo foi segundo, como afirma Santo Irineu. O que apareceu
primeiro foi admico (o ser humano histrico) exatamente por no poder ainda ser
elevado plenitude escatolgica. Por isto, tambm nasceu historicamente no-novo,
isto , nem perfeito e nem imperfeito, mas a caminho da perfeio (original) de Cristo.
Nasceu imagem daquele que seria verdadeiro Ado em plenitude pela ressurreio.
Morre, em Cristo, o velho Ado; ressuscita em Cristo o novo o homem (novo
Ado). Todo Ado, feito da adamah e da histria, dever caminhar para o verdadeiro
Ado e nele cristificar-se. Isto : em Cristo ser ressuscitado. E da estar capacitado de
ver a Deus face a face, sendo, enfim a glria a Deus.
At aqui foi deixada de lado a questo do pecado, de Ado pecador, por se
entender que a primeira realidade do ser humano no a questo (nem csmica, nem
religiosa) do ser pecador, mas de estar a caminho da perfeio querida por Deus, desde
o incio do processo de salvao. Esta questo ser abordada oportunamente num outro
estudo nosso.
A primeira funo histrico-csmica de Cristo a salvao de todos, desde antes
da criao. Em outras palavras, Deus, em seu plano inicial para fazer existir a criao,
projetou a felicidade de todos e de tudo. O tal plano inclui a salvao universal. Isto se
desenvolveu, na histria, pela eleio do povo judeu que - aderindo a Deus de todo o
corao e com todas as suas foras e ao prximo como a si mesmo - deveria ser
exemplo de aliana para todos os povos. O cristo cr que a eleio passou aos que
aderiram a Cristo e o aceitam como Senhor...
Todavia, h uma eleio primordial: desde antes da criao, Deus nos escolheu
(isto , todos os seres humanos) para sermos santos e perfeitos aos seus olhos. A
santidade e a perfeio dos homens e mulheres pneumatificados, porque ressuscitados,
acontecer s no fim, quando ento Deus ver que sua criao , realmente, boa e muito
boa!
certo que muitos cristos afirmavam a existncia de uma perfeio no paraso
das origens. A teria havido uma queda fatal (pecado original), capaz de transformar
todo o plano de salvao. O Pai (diz-se, sobretudo, no segundo milnio) para corrigir
seu plano e salvar o ser humano, necessitou enviar o Filho para a redeno humana.
Cristo torna-se o salvador de nossos pecados morrendo, na cruz, por ns.

Este teologmeno - do segundo milnio, especialmente a partir de Santo


Anselmo - tornou-se to hegemnico que fez a questo soteriolgica parecer reduzida
questo do pecado. A afirmao baseada na Bblia (morte como sacrifcio ou redeno)
e na teologia (morte como satisfao ou mrito), sem perder o valor, no esgota a
questo e se torna de difcil compreenso existencial para os prprios cristos da
atualidade, especialmente para aqueles que acompanham o caminhar da cultura
humana...49 O aspecto negativo da salvao salvar do pecado. Mas isto no tudo.
Salvar tambm tem o aspecto positivo de levar plenitude humana.
Em outros termos - tambm como no passado - poder-se-ia perguntar: mesmo
que no houvesse pecado, Deus teria se encarnado? A resposta predominante do
segundo milnio foi ligar a encarnao redeno. Mas o Concilio Vaticano II (GS)
voltou a uma teologia mais original (arcaica: de raiz) e consoante com a patrstica: Deus
se fez um de ns para nos mostrar quem somos. A imagem de Deus invisvel tornou-se
visvel no Filho encarnado. A partir disso, quem o v, v o Pai (cf. Jo 14, 8). Ver o Filho
encarnado na histria , tambm, ver sua imagem no ser humano. O Filho - o Ado
original - se torna visvel na carne dos irmos (os ades da histria) e sua misso
(inclusive admica) levar todos a verem Deus face a face. Este um fato futuro que
no se manifestou ainda plenamente, deixando-nos apenas entrever o que seremos (cf.
Jo 14, 23). Somos o ado histrico, mas Cristo revelou que seremos como Ele :
homens celestes. O ser humano histrico chamado vida filial em Deus.
Como isto acontecer? A primeira etapa desta vida filial realizada na carne, na
vida terrena, em estado de caminhada (in statu viae) - como prefere afirmar o
Catecismo da Igreja Catlica - rumo a uma perfeio ltima a ser atingida, para a qual
Deus nos destinou.50 Este novo salto qualitativo da evoluo uma ao
transcendental, que passa pela mesma ao de Deus realizada em Jesus, vencendo a
morte e ressuscitando-o.
A perspectiva da f crist sobre a morte radicalmente diferente de centenas de
experincias humanas - lgubres, tristes, desesperadas e desesperadoras. O cristo sabe
que na morte morre o homem mortal (o primeiro Ado) e ressuscita o homem celeste (o
segundo Ado. Cf. ICor 15). A ressurreio, ao contrrio da histria, faz o ser humano
aparecer na sua definitividade.

49
50

Ver KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, Th. (org.). Manual de dogmtica p. 369ss
Cf. CIC, n. 302, 310.

A ressurreio de Jesus j essa garantia. Primeiro, Ele; depois os que o


seguem. A morte sujeio do velho Ado e de suas coisas para que o ser humano
venha ser libertado. Isto : vivificado em Cristo (ICor 15,22), a fim de que Deus seja
tudo em todas as coisas (ICor 15,28). Ento a morte/ressurreio revela o que seremos
ns em Cristo - o que tem poder sobre toda a carne e o que dar carne a vida eterna
(cf. Jo 17,2).
Ressuscitar/ser-ressuscitado, particularmente no Evangelho de Joo, vai estar
ligado a verbos importantes como: ver a Deus, conhec-lo tal qual Ele , participar
de sua glria, ser santificado na verdade, estar em Deus, ser glorificado, alm de
outros. O novo Ado quer que os seus irmos admicos possam tambm estar com o
Pai, atravs dele. Devero ser um com Ele (natureza humana realizada), como ele um
como Pai (natureza divina). Tero em si mesmos a alegria completa, a santidade na
verdade. Sero perfeitos na unidade e amados com o amor que o Pai tem por seu Filho.
E Joo acrescenta mais tarde: vede que grande amor o Pai nos concedeu: sermos seus
filhos (1Jo 3,lss) - E por isto que o mundo no conhece o ser humano. Conhec-lo na
verdade conhecer desde a perspectiva de Deus - que nos conhece a partir de seu
Filho, o Verbo encarnado/ressuscitado.
Por isto, Jesus Cristo no revela apenas quem somos na e para a histria. Mas
revela que desde j somos filhos de Deus. Mas isto no se manifestou ainda, e quando
Ele se manifestar em sua glria haveremos de ser semelhante a Ele. Assim como Ele ,
ns o seremos (1Jo 1,2), inclusive como filhos de Deus (cf. 1Jo 3,1).

4. Fundamento cristo da dignidade humana

Quando o Concilio Vaticano II ensina que s Cristo revela verdadeiramente o


homem ao prprio homem este o sentido: somos filhos de Deus e o veremos em
plenitude diante dele. Foi para isto que o Pai nos chamou vida, primeiro como Ado
(que envelhece na histria horizontal); depois como membros do novo Ado (assim se
atingir a estatura de Cristo e participar de sua glria em consumao).
O ensino da Gaudium et Spes sobre quem somos a revelao de nossa
totalidade. Ela transcende a histria: somos filhos de Deus que, na origem e

provisoriamente, assumimos sua imagem (Ado terrestre) para nos tornamos


semelhantes a Ele no fim (Ado celeste). E isto porque fomos eleitos e somos chamados
a viver nele, por Ele e para Ele.
Se o significado radical do ser humano transcende histria, convm lembrar
que desde sua imanncia (a histria) que vamos conhecendo o mistrio de quem
somos.
Isto aconteceu pela encarnao do Verbo. Ele se fez carne no seio de Maria. Isto
, da humanidade. Ele o princpio sem princpio. Foi gerado em Deus antes dos
sculos, mas fez-se um dos nossos, na nossa carne, poucos anos antes desta era crist,
comeada h dois mil anos. [Cur tam sero? (Por que to tarde?) Esta uma pergunta to
permanente quanto irrespondvel].
Nasceu de Maria, a esposa de Jos, da linhagem de Davi, cujo pai foi um arameu
errante. Esse Jesus, limitado pela e em nossa histria, morreu pregado na cruz, pelo ano
trinta do reinado de Csar Augusto. E o unignito do Pai, de quem a imagem visvel.
Ele - o Alfa e mega, o Cordeiro Santo do Apocalipse - viveu entre ns. Viveu
anonimamente entre os seus, trabalhou com eles e percorreu as estradas da Palestina, s
margens do Jordo e do Mar da Galileia. Julgado por homens de seu tempo, foi morto,
crucificado e sepultado; mas Deus, julgando o julgamento humano, o ressuscitou-o e o
constituiu Senhor e juiz dos vivos e mortos. Ele - o mesmo que os cus no podem
conter - Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.
Mas ainda convm perguntar: quem foi esse homem? - Foi aquele que passou
pelo mundo fazendo o bem, alm de ter feito bem todas as coisas (cf. Mc 7,37). Foi
confundido com o Messias que Israel esperava. Tambm confundido com Joo Batista,
com Elias ou alguns dos profetas. Foi Ele o mestre (rabi, raboni), o filho de Davi, o
Cristo. Para Joo Evangelista, Ele foi um homem em sentido prprio: veio ao mundo
(3,19), estava no mundo (17,3). Tornou-se a nossa carne (1,14), um puro homem
(9,16), que deu livremente sua vida por ns (15,3), que morreu na cruz. Entregou ao
discpulo amado sua prpria me (19,27). Foi crucificado entre dois ladres (19,18).
Ressuscitado, chamou de irmos aos que o seguiam (20,17). Perguntou trs vezes a
Pedro se o amava e deu-lhe uma misso especial (21,15-17).
Ainda para o Evangelista Joo, esse Jesus foi um homem envolto no mistrio (cf.
1,26; 8,14; 7,12. 40.43; 6,42; 8,25; 14,30; 13,33). Pertencia ao mundo divino (cf. 3,2;
8,42; 3,31; 6,33.38; 1,14; 17,20-26). Foi algum que veio salvar o prprio homem (cf.
3,17; 10,10; 12,47; 11,25; 4,42; 16,33; 14,2-3). E salvou chamando pelo nome (cf. 10,3;

20,16). Foi aberto ao dilogo, mas tambm foi exigente e radical (3,19-22; 8, 31-36;
6,58; 8,41-47; 17,16). Salvou o ser humano, pelo amor (13,1; 15,13). Foi verdadeiro
sinal e concretude de salvao (1,1-18; 8,12; 12,49-50; 14,6; 1,14).
E mais: desde o Evangelho de Joo, Jesus o nico caminho de salvao (14,211), nica porta (10,7-10), a fonte de vida (6,35; 11,25; 14,6). o grande libertador da
morte (4,47; 6,49), das trevas (3,19; 8,19; 9,5), do juzo (3,17-19; 5,24; 12,47-48), da lei
(1,16-17.45; 6,32). Revelou-se como o revelador do Pai (3,34; 8,28-29; 12,49-50; 14,510; 3,16-17; 14,6).
Mas quem Jesus para o outro ser humano? Aqui, como exemplificao, a
resposta tomada do Evangelho de Lucas: Jesus quem se faz irmo, quem se comisera
diante do doente, do aleijado, do cego, do leproso, do necessitado (4,38-39; 4,40).
quem considera o ser humano como irmo, apesar da fora do mal (4,31-36; 4,41),
quem valoriza a todos. a presena salvadora e misericordiosa de Deus entre os
homens que nunca tinham visto coisa igual.

5. Nossa dignidade: Deus se fez um de ns

Desde que Deus se fez um de ns - para nos mostrar quem somos - o ser humano
adquiriu uma dignidade maior.
No captulo anterior, indicou-se a dignidade baseada num conjunto de fatores,
como individualizao, irrepetibilidade, autonomia, subjetividade e vulnerabilidade
peculiares - combinadas em propores e estgios de vida prprios. Agora a dignidade
humana se fundamenta no prprio Deus encarnado - o que atribui a todos uma igualdade
sem distines (entre os seres humanos nem todos so considerados iguais). A revelao
de Deus vem acompanhada do apreo pelo ser humano, sobretudo na defesa dos
rfos, vivas, estrangeiros (cf. Tg 1,27), dos doentes, pobres, cegos e prisioneiros
(cf. Lc 4,18ss; Mt 25,37ss) e lhes confere dignidade porque todos tm a mesma origem
e destino comuns.
A dignidade no um valor, mas o fundamento dos valores, afirmou Henrique
Dussel. Tal fundamentao est na prpria existncia do ser humano por ser humano,
i.e., ser de Deus. Assim, a prpria sociedade deve respeitar e fazer respeitar todas as

pessoas, seja lutando pelo reconhecimento da dignidade de cada um, seja pela produo
de leis que visam o bem de todos, seja pelo grito contra as excluses, seja pela
indignao diante da negao ou prejuzo da vida, seja pelo empenho nas relaes
democratizadas.
Mas aqueles que professam a f em Jesus Cristo se sentem mais ainda
envolvidos neste reconhecimento por causa da gratuidade divina em criar os seres
humanos como seus filhos, por causa da interdependncia comum de todos fundada na
fraternidade crist. Todos passaro a ser irmos e perfeitos no prprio Cristo.
A construo e a re-construo da dignidade tornam-se tarefa de todos os
cristos para o bem de todos os seres humanos sem distino.
A grandeza do ser humano vai ainda alm da sua dignidade humana, por causa
do amor que Deus lhe dedica. Deus amou tanto o mundo, que lhe deu seu prprio filho,
nascido de mulher (G1 4,4). Se o Verbo o filho unignito do Pai, se sua Palavra
para os seres humanos de todos os tempos, se Ele seu Filho dileto, ento ao d-lo,
humanidade toda, como se a Trindade mesma se doasse a ns.
Isto, porm, ainda no tudo. A autodoao da Trindade no s se fez pela ao
do Filho, gerado ab aeternum; faz-se tambm pelo nascimento/criao na carne da
mulher: quer dizer, na histria (no tempo) e na prpria humanidade. O Filho do
Altssimo torna-se filho tambm da criatura: Deus contou com a delicadeza e
concordncia de quem criara. Elevou uma de nossas mulheres - a mais bendita e cheia
de graa a seus olhos - condio de parceria sua, para que, nela e por ela, o Filho
divino agora nascesse filho do homem. Em Maria, a humanidade elevada condio
de Theotokos (me de Deus). Grande deve ser a humanidade toda, pois Deus pediu
licena (o sim) de Maria para entrar na humanidade admica e se fazer um de ns. A
dignidade terrena foi elevada condio divina, dignidade divina. A humanidade toda
se tornou receptculo de Deus. E nisto foi mais ainda dignificado: Deus doou-se sua
criatura, fez sua a carne dela e passou a morar com ela. Deus-conosco um dos nossos e
nos deu uma dignidade inaudita.
O amor divino provocou o ser humano e encontrou eco neste corao, nesta
carne que o prprio Deus criara para que tambm ela se tornasse sua carne. A
solidariedade de Deus desceu a tal ponto de encontrar, na carne virgem (nova), o espao
para introduzir-se entre ns, a fim de elevar todos, por amor, dignidade e grandeza
de v-lo face a face, como seu semelhante.

Desde a encarnao e a vinda do Verbo, os crentes de todos os tempos incluindo os mais de dois bilhes de homens e mulheres atuais - passaram a crer no
plano do Pai, por Ele revelado, e a encontraram no s o seu significado escatolgico
mas tambm sua dignidade maior j nesta histria. Certos de que caminham - na
provisoriedade (in statu viae) - rumo plenitude do Reino os cristos, pela graa divina,
vo antecipando a passagem do primeiro e velho Ado (homem natural, cada um de
ns) para o verdadeiro e definitivo Ado.
Esta passagem tem, concomitantemente, uma dimenso eclesial - que a Igreja
faz desabrochar tambm nos sacramentos, como encontro com Deus. Porm, como se
afirmou no incio deste captulo, esta plenitude para todos os filhos e filhas de Deus. O
proprium dos cristos , conhecendo este desgnio salvador, se tornarem
corresponsveis no anncio do Evangelho (boa notcia para todos) e os implantadores
do Reino de Deus antecipado na histria.
Crendo e aceitando Jesus como o nico Senhor, e recebendo seu batismo, o
crente pode antecipar escatologicamente a nova criatura. Pelo batismo, morre o velho
Ado e surge o novo. Neste sentido, a tenso entre histria e escatologia manifesta-se no
corao de humanidade e de cada batizado como a luta tica entre Ado e Cristo, entre o
homem terrestre e o homem celeste. Se, como diz Lutero, a f faz a pessoa, ento desde a correspondncia graa - o ser humano busca aperfeioar a prpria vida,
cristificando-se progressivamente. A relao com o segundo Ado implica a liberdade,
que - como diz Kaspers - alcana a plenitude na obedincia e na disponibilidade para o
amor. Jesus nos revela que Deus amor (1Jo 4,8). Ao mesmo tempo, nos ensina que a
lei fundamental da perfeio humana, e, portanto, da transformao nossa e do mundo,
o mandamento novo do amor. Aos que acreditam na caridade divina certifica estar
aberto o caminho do amor para todos os homens e no ser intil o esforo para a
instaurao da fraternidade universal (GS 38). A base desta transformao efetiva esto
a morte definitiva do velho Ado e a vitria radical (ressurreio) no novo Ado. O
definitivo aqui pertence escatologia, consumao dos tempos.
Mas a antecipao na histria se produz pelos novos comportamentos humanos
ticos dos crentes, pelos sacramentos desde o batismo. Ser nova criatura em Cristo ,
pois, no apenas uma antecipao possvel, como igualmente um desejo do Senhor:
preciso nascer de novo... nascer da gua e do Esprito (Jo 3,7.5) e viver como tal, pois
Deus j nos elevou dignidade de filhos e filhas seus.

A encarnao do Verbo - que desencadeou um processo inaudito na histria - e a


revelao, pelo prprio Verbo, do mistrio de salvao de Deus, so foras
convocatrias que unem homens e mulheres em Igreja (assembleia de convocados), para
que seus membros, aderindo ao novo modo de viver (viver em Cristo), possam
testemunh-lo e expandi-lo, a fim de que - na liberdade - todos conheam Jesus e o
professem como o Senhor, deixem-se batizar em seu nome e se tornem seus discpulos
(isto : homens novos). Esta Boa-Nova de Jesus supe para uns a eclesificao do
mundo, enquanto para outros significa reconhecer que todos fomos criados em Cristo,
vivemos dele e, nele, haveremos de ser transformados para sermos a glria de Deus.
Sabemos, enfim, quem somos ns porque o Verbo se fez um de ns. Por sua
ressurreio, revelou-nos quem seremos ns definitivamente. Por conceder-nos a
dignidade de filhos e filhas de Deus/Pai possibilitou- nos participar da vida divina como
seus semelhantes, dado que j carregamos sua imagem em ns.

Captulo 7

Para onde vamos?

Somos mais de seis bilhes de pessoas que caminham para o futuro. Mas qual
futuro? Onde? Quando? Como?
H no ser humano uma tendncia fundamental psicorracional de abertura para o
futuro e para o alm, que inclui tambm o transcendente. A prpria vida csmica
desenvolveu esta perspectiva. E o ser humano a capitaliza em seu prprio benefcio. Ela
se concretiza nos sonhos e utopias, nas esperanas e nas conquistas, desde o fracasso at
o desejo de felicidade. Em algumas partes do mundo cultural ela fomentada, sobretudo
desde a inveno da televiso, em fantasias de conquistas espaciais, com a fuga em
naves siderais para outros planetas. Os vencedores sempre hasteiam a bandeira de seu
pas. Ou ento criam mocinhos, cowboys sempre vencedores contra inimigos cruis.
Isto se faz desde programas infantis, com desenhos animados, at a fico de guerras
intergalcticas. Tal dado cultural localizado. Mas exaustivamente exportado e
percorre o mundo atual, fomentando sonhos, que povos antigos e/ou de outras culturas
mantinham nos contos e narrativas mticos, que realavam valores humanos.
A humanidade caminha... Num processo evolutivo, como evolutivamente
caminhou entre tecnologia (da rudimentar mais sofisticada) e sabedoria.
Para onde vamos? A inquietante questo permanente para o ser

1. Nossas inquietantes respostas

A pergunta sobre o futuro comum tem respostas to diversificadas quanto s de


carter pessoal. As respostas sobre o destino da humanidade, em geral, variam do
catastrofismo ao entusiasmo, entremeados pelo desnimo ou, em certos contextos,
substitudos pela negao prtica do sentido, como o pragmatismo ou niilismo. Um
certo entusiasmo frente ao futuro nasce, por foras do desenvolvimento tecnolgico, que
gera poder, mas nem sempre fraternidade.
Homo

faber.

Modernidade

(ltimos

300

anos)

apresentou

um

desenvolvimento to grande, que parece quase dizer: imaginar fazer ou, no mnimo,
poder fazer. Uma determinao tecnocrtica parece caracterizar o homo faber e se
impe, pois quem no a acompanha poder perder foras diante do outro (concorrente
pessoal, grupai ou racional). O predomnio tcnico - que se torna filho do domnio
econmico e militar - vai se transformando em controle/escravido, escapando das mos
do prprio ser humano. Assim desde a eletricidade aos computadores, do controle do
tomo s suas exequibilidades, tudo vai se adiantando, obrigando o ser humano buscar
mais tecnologia, sob pena de ficar superado.
Eugenia? Desde a Modernidade, a tecnologia tornou-se uma religio de
salvao - fora da qual no h futuro. Estabeleceu uma escatologia ambgua: no
mais o ser humano quem dirige o desenvolvimento. Pelo contrrio, dirigido por ele.
Assim, desde a tcnica (tecnologia e tecnocracia), caminhamos para um futuro no mais
utpico, mas possvel - no mnimo superando as limitaes atuais. Caminhamos para a
eugenia possvel, graas manipulao gentica, estabelecendo novo modelo de ser
humano. Isto por acaso queria dizer: para nosso futuro, no apenas brincaremos de
Deus; mas tambm determinaremos e controlaremos a continuidade da evoluo que,
at agora, estava entregue natureza? Podemos prolongar artificialmente a vida,
selecionar genes, criar homnculos para determinadas tarefas e, por fim, preparar
seres capazes de fugir para outros planetas habitveis? A tecnologia biolgica pode
responder (j) para onde vamos... Talvez ela no pudesse responder se este o caminho
desejvel para a humanidade.
Ecossistema. A questo ambiental tem proposto, de modo alarmista, o problema
de nosso futuro. Somos todos dependentes deste nico ecossistema. O seu futuro,

consequentemente, nosso futuro. A degradao do meio ambiente, o apressamento da


diminuio da biodiversidade, a explorao de recursos naturais - ao contrrio da
tecnologia tm sido to intensos que se impe quase a pergunta: tem futuro o ser
humano?
certo que, nos ltimos cem anos, a humanidade tornou-se mais rica, mais
sadia, graas ao desenvolvimento cientfico-tecnolgico. Tambm certo que os seres
humanos nunca tinham visto to grande evoluo em questes primrias, como
alfabetizao, superao de epidemias e pandemias (mesmo surgindo novas crises),
melhoria habitacional, conforto decorrente da energia eltrica, direitos civis, respeito s
minorias, acesso s informaes, crescente superao da misria natural e
potencializao da misria produzida.
A ambiguidade. Como interpretar tudo isto diante do futuro? - Para onde vamos?
Este horizonte (tecnificado) aponta nosso futuro?
A ambiguidade aqui parece, outra vez, como companheira da humanidade. E
certo que crescentemente se tem superado, em larga escala, comportamentos e pulses
quase irracionais, como a tortura, a guerra e outras barbries. E certo que ainda
perduram limitaes nacionalistas e religiosas que vo sendo superadas para concrdia
dos povos, por exemplo, atravs do esporte. E certo que o futuro humano vem sendo
tecido pela destribalizaro e pela unio dos povos. Mas impossvel negar que, por
causa do aumento demogrfico e da m distribuio de renda, nunca tantos homens e
mulheres passaram tanta fome, concomitantemente. Para estes mesmos, parece que o
futuro a morte: pois a concentrao econmica e a tcnica alimentar esto detidas na
mo de poucos. Os recursos naturais so recursos de toda a humanidade; porm, a
diviso poltica e econmica estabelece entraves e reservas, que podero ser uma
bomba para o futuro humano - como, por exemplo, os recursos hdricos to fartos na
Amaznia e to escassos na frica e logo mais insuficientes na China. Os bens de
consumo se tornam sempre mais sofisticados e prazerosos, todavia o acesso a eles torna
perigoso o futuro comum, por ao menos dois motivos: o desperdcio coletivo e a ira dos
excludos.
Expanso demogrfica. O futuro da humanidade passa tambm por inmeras
outras questes, como poluio ambiental, irracionalidade do uso de recursos, gerao e
concentrao de riqueza, acesso de direitos bsicos, saneamento urbano. Ainda entre
outros motivos de questionamento do futuro imediato de humanidade, est a expanso
demogrfica.

Qual a capacidade do planeta para oportunizar vida (conveniente) aos seres


humanos? Somos hoje mais de seis bilhes. Nesta questo h muito alarmismo desde
que as primeiras inquietaes de Thomas Robert Malthus (1798), que na passagem do
sc. XVII para o XVIII deixaram a humanidade em estado de alarme. O malthusianismo
no se confirmou; todavia no deixa de ser um alerta. certo que, desde 1800 a
humanidade vive materialmente melhor, por causa da industrializao, do
desenvolvimento da cincia e da tcnica. O aumento populacional no se rege pela lei
da progresso geomtrica versus o progresso aritmtico dos alimentos. A populao
mundial aumentou tambm pela eliminao da morte infantil, pelo aumento da
longevidade e diminuio de mortalidade, polticas demogrficas e outros recursos.
Todavia, o planeta Terra dispe de limitadas possibilidades de proviso na
biosfera. E diante da evoluo demogrfica universal - mesmo com as possibilidades
atuais de crescimento - convm ter presente a histria do passado em vista do futuro. No
perodo neoltico (10 mil anos antes de Cristo), a Terra poderia ter tido uns 10 milhes
de habitantes. No tempo de Cristo a populao estaria entre 200 e 300 milhes. No
comeo da Idade Moderna (mais ou menos 1650), eram 600 milhes e a taxa de
crescimento era de 4%. S depois de 1800 atingiu um bilho. Em 1930 chegou-se aos
dois bilhes; em trinta anos (1960) cresceu mais um bilho, com uma taxa de
crescimento de 1,9%. Nos ltimos 40 anos a populao do mundo ultrapassou a seis
bilhes. Na Antiguidade a populao humana cresceu 2% em mil anos; hoje ela cresce
2% ao ano. Qual o nosso futuro? bvio que a conscincia e a necessidade de um
controle demogrfico se impem em nvel mundial. Todavia, h outras questes, como
a moral, a economia, as ideologias, e interesses vrios, a serem ponderadas tambm.
Algumas podem ser lidas em entrelinhas do primeiro captulo - por mais lgubres que
possam parecer.

2. O futuro, entre nascimentos e mortes

Desaparecimento das espcies. Ningum - nem seres humanos nem animais tem necessariamente o futuro assegurado. Milhares de espcies j desapareceram ao
longo da histria csmica e outras havero de desaparecer. Surgiro novos seres at o

dia em que a vida se tornar impossvel no planeta, e depois no sistema solar. A


cosmologia, a astronomia, a fsica e outras cincias revelam tanto a expanso em
espaos inimaginveis do universo quanto o seu fim em termos de tempo. Pressupondose a constncia das leis naturais, observadas at agora e analisadas pelas cincias, o sol,
em alguns bilhes de anos, poder fazer a terra derreter-se e ele prprio esfriar-se aos
poucos at tornar-se uma estrela morta. Desapareceram, sem descendncia, os
dinossauros. H menos de 24 mil anos desapareceram os neandertalenses - seres to
prximos dos seres humanos - que muitos os consideram humanos. Os neandertalenses
simplesmente desapareceram da histria csmica. Muitas outras espcies tm
desaparecido. E por que o atual ser humano no poderia desaparecer, por extino ou
destruindo-se a si mesmo?
Qual o futuro do ser humano? Ele prprio poder determinar sua evoluo... E
tambm por que no sua prpria destruio csmica? O ser humano, como espcie, a
partir de si mesmo, no tem nenhuma garantia de permanncia ou eliminao da
histria. Desde a cosmologia e antropologia, percebe-se que tudo temporal: portanto,
limitado e contingente; no necessariamente sempre idntico (aspecto evolutivo); pode
se alterar, tornando-se diferente das realidades anteriores. Aqui, todo o mistrio da vida
explode desde sua auto-organizao (autopoisis), auto-reproduo, autonomia. Mas
tambm tudo pode desaparecer em favor de outra vida; ou em favor de nenhuma.
As mortes. Se trgico e incerto o futuro das espcies e da vida, mais trgico
ainda o futuro pessoal do indivduo humano. Seu futuro?... A morte! O
desaparecimento natural de uma espcie ou sua transformao em geral lento; 51
diferentemente o desaparecimento do indivduo. Com o evoluir de sua vida, o ser
humano tambm vai caminhando para o fim. E o ser humano o nico existente que
sabe que caminha para a morte. Tem-na como clara conscincia do futuro humano.
outra a questo de querer aceit-la com realismo.
A sociedade contempornea e a grande maioria das pessoas tentam afastar esta
questo. Todavia, desde esta mesma questo que a vida passa a ter sentido. Como
dizia Nietzsche, a quem tem um porqu para viver, pouco falta para suportar viver.
Para o ser humano a pergunta sobre o sentido pode no ser consciente, mas clara em
situaes mais comezinhas, assim, por exemplo: a vida uma s, a juventude no
regressa, preciso planejar e realizar nossos sonhos, o tempo passa e as horas
correm, a morte uma certeza absoluta.
51

Cf. CIC, 310.

Os sentidos da vida. Para vencer a morte necessrio descobrir seu sentido e


explorar o sentido da vida - o que de modo algum vai prolong-la. Mas certo que esta
conquista dar significado ao viver e ao morrer. O sonho de no morrer uma
propenso natural do ser humano. Na atualidade isto se faz presente ao recorrer
medicina, qualidade de vida, busca da eterna juventude, indstria cosmtica, ao
afastar a morte humana para os hospitais (inclusive no caso dos animais e aves queridos,
para clnicas veterinrias), ao prazer, aos investimentos etc. Tudo isto tem sentido
existencial, sem, porm, esconder o fato inexorvel da morte. Entretanto, importante
buscar e defender a vida.
Anseio de sobrevivncia ou imortalidade. O anseio por viver no est apenas em
esconder a morte, mas tambm na explcita vontade de ultrapass-la. assim que
muitos vo sonhando com uma caduca imortalizao da vida como projeo no s em
biotecnologias (clonagem, congelamento de genes e de corpos inteiros etc.), mas
tambm 110 desejo de continuar vivendo em seus filhos, em suas obras, na memria
dos que ficam. O desejo de no morrer ou de, mesmo morto, manter-se junto dos seus,
acompanha o ser humano desde os tempos mais primitivos, inclusive como as primeiras
expresses religiosas da humanidade. Sepultar os mortos, mas considerando sua
presena pairando sobre as comunidades para orientar os vivos, oferecer-lhes
alimentos (costume chins), sepult-los com seus objetos pessoais, construir
monumentos (pirmides, mausolus ou simples tmulos), comunicar-se com eles, orar a
eles e por eles - tudo isto - se torna um concreto desejo de sobreviver e vencer a morte.
Desde tempos antigos, muitos creem na imortalidade da alma. [A alma seria
considerada uma substncia indestrutvel, nica, superior ao corpo por lhe sobreviver
como parte de um eu imortal ou da natureza csmica (quando pensamento mtico) ou
como uma grande energia do universo (mundo pensado como natureza).] Outros grupos
- e eles crescem nestes tempos atuais - creem em metempsicose ou reencarnao.
Tambm estes - como os anteriores - des-humanizaram seus defuntos por despersona-liz-los (eles estavam nesta carne humana, mas podero no ser mais
humanos numa outra encarnao, ou estes que agora estavam humanos teriam sido ou
podero ser outros seres anmicos).
Aqui, o sentido da morte (e da vida) comea a ultrapassar as fronteiras da cincia
e da facticidade. Inclusive, as linguagens se tornam diferentes. Desde as cincias, a
morte o fim da individualidade. E no s remetida a uma grande solido, como
tambm ela naturalizada como um fato lgico da espcie e de todas as formas de vida.

Desde o contexto social, pode-se pens-la como fatalidade, necessidade, bem/ mal ou
realidade intransponvel - que inclusive, por fim, torna-se uma questo econmica. H
duas certezas fundamentais: a morte a mais radical interrupo da vida e todos
morrem por causa da natural finitude - inclusive gentica. Diante destas certezas, alguns
tm buscado uma ligao de conhecimentos (pretensamente) cientficos (medicina,
psicologia, parapsicologia etc.) com antigas convices religiosas e existncias de vidas
passadas ou futuras.
O sentido cristo. A Modernidade criticou o cristianismo - e por extenso outras
religies - pondo em xeque suas afirmaes tambm em torno da morte. E bem verdade
que muitos cristos mantm um sentimentalismo desesperador diante da morte e do
alm, imprprios da f crist, num sentido puramente horizontal, como se uma
pedagogia (infantil) substitusse o significado da f. Isto inclusive oportunizou aos
mestres da suspeita porem em xeque a f crist e a esperana em Deus, a partir de
princpios rgidos do secularismo (Feuerbach), dos diversos atesmos militantes [o
materialismo dialtico (Marx e Engels), o espiritualismo decadente, por falta de porvir
ou pelo mal-estar de iluso perdida (Freud), a morte de Deus, o significado do superhomem, o eterno retorno do niilismo (Nietzsche), a absurdidade da vida (Sartre e
Camus)].

3. A f na consumao

A f, diante da perspectiva do fim do cosmo (universo) e do ser humano, no s


no avaliza tais perspectivas pessimistas; mas, ao contrrio abre outras perspectivas,
com a linguagem que lhe prpria. A questo no tanta da continuidade da evoluo
ou do fim da vida (uma catstrofe universal, um big crush ou equivalente). Ela fala do
futuro como uma grande e radical transformao. A f crist se afirma na ideia de
consumao da criao como futuro do cosmo e do ser humano. As possibilidades que o
cosmo e a vida desenvolveram em bilhes de anos conclamam os cristos ao xtase
diante do j existente, mas abrem-lhes s possibilidades da nova criao, j prevista
pelos profetas e patriarcas do Primeiro Testamento e nas sucessivas alianas como nas

promessas de fidelidade de Deus e perspectivas crists da ressurreio como ato


inaudito da evoluo de todo o criado.
Visto a partir do ser humano e da natureza, quem pode ter a certeza do amanh?
Quem pode responder para onde, para que futuro caminha a humanidade com seus mais
de seis bilhes de habitantes? Visto a partir da natureza e do ser humano, pode-se
afirmar que as mortes e a extino, de milhares de seres vivos, incluindo os bilhes de
pessoas humanas que j deixaram de existir, consistem, no mnimo, no desaparecimento
para sempre de nossos horizontes.
Mas isto no assim desde a f crist. Entretanto, tal desaparecimento, incluindo
o dos humanos, seria sem futuro? Ou o futuro deles seria apenas a reintegrao csmica
como adubo da transformao da matria, numa espcie de crculo vicioso - ou com um
pouco mais de boa vontade: numa espcie de crculo espiral? Se a especulao sobre o
futuro (e o passado) do cosmo apresenta pouco interesse para a maioria dos homens,
contudo, a f crist - que fala num nvel diferente - cr numa, realidade transformadora
que se consumar em Deus.
Para onde vamos? - Certamente o futuro dos seres vivos e seres humanos que
nos antecederam, o nosso futuro e o futuro dos que viro, um s. A consumao em
Deus, por meio de Cristo - o primognito de toda a criao. Este - segundo a f crist o significado do futuro da histria da criao visvel. No presente dizemos: creio na
ressurreio dos mortos e na vida eterna - como consequncia da afirmao de f.
Evidentemente, Deus nos d razes para crer naquilo que haveremos de ser e viver. O
tema da esperana na vida futura, teologicamente, estudado sob o ttulo de escatologia.

4. A escatologia, enquanto compreenso teolgica e a


consumao da histria

O sentido. H alguns anos, na catequese se falava de novssimos (as coisas


ltimas ou futuras: morte juzo, inferno, purgatrio, paraso). Hoje se recupera a palavra
e seu significado maior como escatologia (eschaton: as coisas ltimas), mesmo que a
palavra tenha aparecido no sculo XVII. Foi depois de Schleiermacher que melhor se

conseguiu dar uma estrutura teolgica a esta problemtica, que trata do fim e do
cumprimento (consumao) da criao e da histria (individual e csmica) da salvao.
Consumao aqui significa atingir a totalidade do sentido e da razo de toda obra
criada e de cada uma de suas partes, na plenitude interior e durvel de seu ser - que
estar capacitada a participar da vida de Deus. Por outras, a consumao tem a ver com
a. realizao plena do plano de Deus. Ele quer que tudo e todos sejam elevados
estatura de Cristo para serem entregues ao Pai. A realizao destas coisas ltimas
(eschat) contm um mistrio divino, do que ns nos aproximamos por iniciativa do
prprio Deus. Contudo, Ele no-lo re-vela atravs de smbolos apocalpticos e
messinicos. Dado que tais realidades no podem ser descritas - no se pode fazer
reportagem sobre elas -, cr-se que traro em seu bojo uma inaudita inovao de
Deus. Ele far novas todas as coisas num processo de continuidade descontnua. Nosso
mundo atual ser libertado de toda fragilidade e condicionalmente de tempo e esforo,
para atingir sua plenitude inaudita em Deus.
Na teologia patrstica. A escatologia e a consumao do cosmo e dos seres
humanos quase no sofreram contestaes fora do cristianismo at a entrada da
Modernidade. Nos sculos II e III, no interior do cristianismo, surgiram afirmaes da
Igreja para combater a gnose e seu espiritualismo desencarnado, o prazo do julgamento
e das penas do inferno. Ainda no primeiro milnio apareceram muitas ideias
milenaristas que continuam se atualizando nos tempos.
O smbolo niceno-constantinopolitano (481 dC) conjugou a vinda de Cristo, em
sua glria, ao anuncio do juzo (e de novo vir em sua glria para julgar vivos e
mortos), pospondo a vinda definitiva e gloriosa de Deus na parusia, no final dos
tempos [mesmo que os cristos continuem a orar Maranatha (vem, Senhor Jesus), a
expresso era entendida como profisso de f: maranatha (o Senhor vem)].
As escatologias medieval e moderna. A partir do sculo III, sobretudo com
Orgenes, passa-se a acentuar uma escatologia individualista: O Senhor vir para
ressurreio, dos mortas, no mais para a consumao do mundo. Progressivamente a
escatologia foi se tornando uma questo pessoal, no mais coletiva - como era a
pregao dos profetas, a nfase de Jesus e de Paulo.
Frente individualizao intimista de salvao (ressurreio) foram surgindo os
milenarismos; quer dizer, a instaurao de um reino terrestre e messinico antes do fim
do mundo, para instaurar um reino de justia e paz.

Pode-se resumir assim: o interesse patrstico foi se fixando, sobre o fim do


mundo, o juzo final e a ressurreio dos mortos.
As escatologias medieval e moderna. A partir dos sc. XIII-XIV. a nfase foi
sendo sobre a morte, o juzo, o purgatrio, o inferno e o cu. Sem abandonar de todo o
enfoque coletivo, a nfase recaa sobre o individual, isto at o incio do sc. XX,
levando a um desinteresse generalizado dos cristos sobre os compromissos sodais e o
progresso cientfico e social. O discurso escatolgico centrou-se nas coisas do alm e do
fim do mundo, da imortalidade da alma, da santidade para fora do mundo, desviando a
ateno de aspectos histricos e comunitrios.
Tanto a dimenso csmica quanto a coletiva apareceu na histria como questes,
a rigor, no escatolgicas. Os messianismos histricos e as ideias de fim do mundo
iminente assumiram conotaes seculariza- das, mesmo que tenham alimentado
milhares de cristos em todos os tempos.
A Modernidade props suas escatologias intra-histricas e secularizada e
condenou, como alienadas e alienantes, as perspectivas crists, desinteressando-se delas.
A escatologia na atualidade. Desde o incio do sculo XX - para os protestantes
primeiro e depois para os catlicos - a escatologia foi tomando novos rumos,
fontalizando-se mais na Bblia, afastando de construtos fantasiosos que criara superando
os individualismos e, inclusive, eliminando as justificativas apocalptico-milenaristas
pessimistas. A renovao dos estudos da escatologia enfatiza novas tendncias no s a
partir de seu prprio objeto e sim, sobretudo, da centralidade cristolgica.
particularmente da ressurreio de Jesus - como novidade j presente, mas no herdada
ainda (movimento j, mas ainda no). A renovao dos estudos da escatologia est
ligada diretamente s novas impostaes exegtico-bblicas, estudos patrsticos,
Cristolgicos, antropolgicos, da teologia da histria, etc.
Gisbert Greshake resumiu bem a nova hermenutica escatolgica em trs
princpios e quatro enunciados centrais. 52 Os princpios so:
l) As afirmaes escatolgicas se referem ao cumprimento do prometido por
Deus e esperado pelo homem: o fim de toda a criao para o qual a histria se
encaminha:
2) Como a esperana visa consumao individual e universal junto de Deus,
em Deus e com Deus, todos os contedos escatolgicos se referem s pessoas e no a
52

LAY, Michael van. Reconhecer os sinais dos tempos. In: BLANK, Renold J. Escatologia do mundo - O projeto csmico de Deus.
Escatologia II..., p. 91.

signos de espao e tempo. Eles pertencem ao mistrio e no histria, por isto mais
razovel falar deles por uma teologia negativa que uma afirmativa.
3) Todos os enunciados escatolgicos devem ser tomados em sentido figurado,
como imagens que extrapolam o significado imediato das palavras. Em certo sentido, as
escatologias no so ficcionais, nem reportagens jornalsticas documentveis.
J os enunciados de Greshake sobre afirmaes centrais da escatologia
enfatizam:
1) O cumprimento escatolgico se refere ao ser humano como indivduo e
como membro da comunidade. O fim da humanidade um ato de solidariedade.
2) A efetividade da salvao (separando quem no ser salvo, se esta
possibilidade real vier acontecer) no atinge apenas a alma bem-aventurada, mas um
envolvimento e desenvolvimento progressivo e harmonioso de toda a criao e do ser
humano, em sua globalidade, em Deus.
3) Deus mesmo quem realiza a consumao ou plenitude do homem, mesmo
levando em conta a liberdade humana, capaz de recus-lo. Ele disps tudo para a
salvao do homem e esta a sua vontade e sua glria; apesar da condenao ser uma
possibilidade inseparvel da liberdade humana.
4) O potencial da salvao passa pela existncia e pela histria, mas no se
esgota a. A plenitude da criao s se d em Deus e por Deus, o que leva a humanidade
a participar de sua vida trinitria.
Aqui se deve afirmar que o interesse escatolgico est se deslocando da
consumao do mundo (sobretudo de carter individualstico) para a ressurreio de
Jesus - pois Ele a primcia da vida nova. Ao mesmo tempo, esta ressurreio responde,
criativamente, a uma escatologia pessoal, coletiva e csmica. Isto porque ela pertence
revelao e esperana crists. Assim a esperana das promessas de Deus se cumpre
plenamente em Cristo - novo Ado (2Cor 1,20). Pois ela se constitui, simultaneamente,
numa continuidade descontnua e numa descontinuidade contnua. No primeiro caso,
por se referir a quem conhecemos: Jesus, o que se fez um de ns - mesmo que nossa
carne tenha se magnificado para t-lo recebido na plenitude dos tempos. No caso de
descontinuidade contnua, o porque Deus far uma criao radicalmente nova
naqueles e para aqueles cujo olho algum viu, ouvido algum ouviu, homem algum
imaginou: isto preparou Deus para os que o amam (ICor 2,9). Alis, para aqueles a
quem Ele amou primeiro, chamando-os a esta altssima vocao de serem seus filhos
(1Jo 3,1), no Filho.

5. As escatologias seculares e religiosas

Para onde vamos? Qual o futuro do ser humano? Para o indivduo humano, a
nica resposta concreta parece ser a morte; isto : este grande silncio de sua
ausncia. Para a comunidade humana, a resposta acontece na substituio dos
indivduos; enquanto para o cosmo se nada acontecer - tudo continuar caminhando
lentamente para um fim em alguns bilhares de anos. Desde as cincias, porm, surgem
afirmaes sobre um fim tanto de possibilidades catastrficas (big crush, coliso de
planetas, autodestruio atmica) quanto de continuidade da evoluo, com a
possibilidade de a vida transferir-se para outros mundos extragalcticos, enquanto o
planeta e o sistema solar poderiam - em bilhes de anos - esfriar e morrer. Ou ainda, a
expanso do universo pode continuar ao infinito.
Em resumo: a morte do indivduo, da espcie e do universo aponta para um
grande silncio csmico, antecedida por perguntas sem respostas. A f crist no se
posiciona assim. Ela cheia de esperana e confiana em Deus. O problema do nosso
futuro comum a transformao da histria e do cosmos em Deus. O anseio de Santo
Agostinho (inquieto est meu corao enquanto no repousa em ti, meu Senhor)
uma aspirao esperante de todo ser humano. O cristo professa a f no Deus que
mantm a vida num processo de criao e providncia constantes. Da mesma forma, cr
na ao criadora livre e gratuita de Deus. Por isto, cr na ressurreio dos mortos e vida
eterna. A f responde ao de onde viemos, quem somos e para onde vamos. E s ela d
esta certeza - sem se ater ao como isto acontece.
Os cristos - como tantos outros homens e mulheres da histria - j se
posicionaram, muitas vezes, sobre estas questes das origens da histria e do fim. Ao
mesmo tempo, se posicionaram em uma to grande diversidade de interpretaes quase
impossvel de cont-las.
1) Catastrofismos e alienaes. Sobre o destino do homem e do universo, no
meio dos cristos, as posies variam desde respostas messinicas at s vises
apocalpticas, desde questes ingnuas at aos moralismos, desde os visionrios at os
niilistas. Com uma frequncia maior no sculo passado apareceram as profecias
marianas de cunho apocalptico-milenarista, sejam as mais conhecidas (Ftima/Portugal,
Medjugorje/Iugoslvia, Ahita /Japo), sejam outras mais localizadas e passageiras. As

referncias ao Anticristo e aos sinais catastrficos do fim do mundo aparecem em


muitos movimentos atuais, como neopentecostalismo, Nova Era e reaes imediatistas
(superficiais) frente s grandes catstrofes climticas, ecolgicas (tsunamis), s disputas
blicas com seu avano cientfico (bomba atmica, armas bacteriolgicas, manipulao
gentica etc.) e at religiosas (frente grande mudana de valores atuais). (Como no
lembrar que a Aids foi considerada castigo de Deus antes do fim do mundo?)
A desconfiana, a insatisfao e, sobretudo, a incerteza humana frente ao futuro,
normalmente, produzem discursos alienados e alienantes - como sintetiza um artigo de
Michel van Lay, citado por R. Blank:

Ainda na sua forma mais aperfeioada (a f no alm), vista do


enfoque sociotico, produz consequncias psquicas e sociais
catastrficas. No passado abusou-se dela de maneira notria
para seduzir homens explorados e oprimidos a resignar-se a seu
destino miservel e esperar vida melhor num mundo melhor
depois da morte... Ainda hoje, a f no julgamento divino sobre
este mundo corrompido; a convico imperturbvel de que Deus
salvar isso tudo... produz no indivduo e na massa uma letargia
poltica. Ela gera aquela teimosia e pacincia pequeno-burguesa
que se interessam s pelo bem-estar pessoal e ficam insensveis
ao bem e ao mal da sociedade e do mundo como um todo. E
uma atitude sempre prestigiada pelos dominadores de todos os
tempos.

2) Milenarismo. Frente ao futuro, o ser humano mantm uma inquietao


constante, desde o tempo das cavernas. Suas respostas so muitas e variadas (desde os
iniciais sepultamentos dos mortos e incio de religies at as fices cientficas).
Sobretudo, no Ocidente cristo, este posicionamento tem uma histria marcante, que
pode ser sintetizada na expresso milenarismo.
Nos milenarismos ocidentais esto sincretizadas ideias sobre-o-Rei- no de Deus
e seu acontecer (na histria e no escathon), fundadas no Apocalipse de So Joo - e
retroativamente na apocalptica de Daniel e dos profetas. Os primeiros cristos, ao
tempo de So Paulo, viveram espera iminente da parusia. 53 Sucedeu a isto um perodo
crescente de milenarismo cristo. Os primeiros comentrios j se encontram na Epstola
de Barnab em textos de Justino e Santo Irineu. Eusbio de Cesaria interpreta as
conquistas crists no Sacro Imprio da era constantiniana como a vitria sobre a besta,
53

CESARIA, E. de. Histria Eclesistica, 10,4.

preanunciada em Ap 2054. Posteriormente, os governos imperialistas do Ocidente - at


hoje (veja-se a atual inspirao norte-americana fundamentalista) - mantiveram esta
interpretao (mesmo que secularizada) de antecipar o Reino cie Deus.
Alguns grandes milenarismos religiosos podem ser recordados aqui: as cruzadas
medievais, o sebastianismo, a concepo das idades do mundo de Joaquim de Fiore
(1130-1202) e os inmeros grupos religiosos fundamentalistas com tendncias
milenaristas como os Adventistas do Stimo Dia e Mrmons, a Igreja dos Santos dos
ltimos dias.
Sonhos polticos mundiais - concretizados em certos regimes, como o
comunismo e/ou pretenses imperiais promessas cientficas e reaes culturais (ex.:
Projeto Genoma, clulas embrionrias, ecologismo) podem ser verses secularizadas de
milenarismos messinicos presentes na atualidade, quase sempre acompanhados de
angstias e expectativas onde h uma antropologia desenfocada da grande relao
homem-Deus. E exatamente a que surgem estes milenarismos e messianismos - que
querem interpretar o pensamento de Deus. Mas o problema, ento, no saber quem
Deus ou quem o ser humano. Mas a relao entre os dois.
As grandes utopias dos sculos XIX e XX (comunismo, capitalismo, liberalismo
etc.) ruram, criando uma sndrome de falncia, que apresenta uma outra face,
sintetizada em smbolos da atual cultura americana: pragmatismo, individualismo e
consumismo. O pragmatismo se revela em aproveitar e valorizar o que til, agora. O
individualismo coloca, no centro das preocupaes, os interesses pessoais e regionais;
objetos, pessoas, as coisas e valores esto em funo disto. O consumismo uma
decorrncia do poder ter acesso irrestrito aos bens, sem se importar com a solidariedade
ou com o futuro comum da humanidade.
3) Os milenarismos cristos. Os milenarismos (religiosos e secularizados)
acompanham o ser humano, por causa especialmente de seus medos e angstias diante
do futuro. A vontade de antecip-lo, apressando a histria, uma posio humana
psicossocial que transparece, consciente ou inconscientemente, nas vitrias de todos os
tipos (blicas, esportivas, cientficas etc.). Num contexto maior, preciso tambm ter
presente que intrinsecamente o cristianismo uma religio no s messinica, mas
tambm apocalptica (abrandado?!) e milenarista em dois aspectos ao menos: a
promessa de Deus e a realizao humana que inclusive pede (exige, espera) justia
para com todos os injustiados da Terra (voltaremos ao tema).
54

ALFARO, J. De la question dei hombre a la question de Dios..., p. 255-270.

Os cristos so frequentemente crticos dos milenarismos. Especialmente


apocalpticos - dos quais muitas vezes no estiveram ou esto isentos. Sabem que
nenhum projeto humano suficiente para abarcar o Reino de Deus, o novo cu e a
nova terra (cf. Ap 21). Por isto, nenhuma idolatria lhes permitida. Mesmo que, em
alguns lugares ou tempos, homens da Igreja apoiem ou sejam coniventes com projetos
polticos histricos (pondo exemplos recentes: apoio ao sandinismo, os processos
revolucionrios na frica e na Colmbia, a posio de Pio XII na 2- Guerra Mundial).
Em contrapartida, foram tambm muitos cristos que assumiram bandeiras de
desidolatrizao de projetos polticos messinicos (pondo exemplos recentes: o exemplo
do sindicalista cristo Valessa na Polnia, a iniciativa dos luteranos na queda do Muro
de Berlim, a reao das Mes-da-Praa-de-Maio na Argentina, a resistncia s recentes
ditaduras latino-americanas).
Os cristos vivem da expectativa messinica do Reino de Deus que se efetivar
no encontro parusaco com Cristo para a consumao do cosmos; isto : quando os
homens e mulheres de todos os tempos puderem ver Deus face a face como a seus
filhos. Porm os cristos tm uma afirmao clara de Jesus: O Reino de Deus j est
entre vs.
4) A esperana crist. O ser humano, porm, vive de utopias, pois elas so o
fundamento da esperana esperante. Para telogo espanhol Juan Alfaro,

Tudo quanto fazemos no seno o resultado das coisas pelas


quais lutamos, individual ou coletivamente, para conquistar.
Esperamos sempre pelas possibilidades do que h de vir a partir
das decises e aes do ser humano no mundo. Nossas
esperanas podem at ultrapassar a histria, mas se elas no se
concretizarem na histria frustraro a humanidade...

A partir da esperana esperante, os que creem em Deus esperam


algo que ultrapassa todas as geraes e, ao mesmo tempo, as
une. E uma esperana ilimitada que se sabe jamais se tornar
uma realizao histrica. Ela meta-histrica. E se torna real
exatamente porque uma esperana que - transcendendo a
histria e sendo comum a todas as geraes - se torna
fundamentalmente humana porque se constitui numa
solidariedade comum da esperana, que vir de fora da histria,
como um gesto vindo livre, gratuito e imerecido, por provir s
de Deus. Esperamos esperando o que Deus quer conceder a

todos, ou seja: o objeto da esperana esperante o prprio Deus,


o que transcende a histria e o absoluto final, onde ns
atingiremos a plenitude de quem somos e de quem somos
chamados a ser.
A utopia uma questo antropolgica porque faz parte intrnseca da abertura do
ser humano ao outro e s suas relaes, inclusive transcendentais. uma questo,
simultaneamente, teolgica, pois, se est a, porque foi posta por Deus, no corao
humano, o que chama o ser humano a ser aquilo que ele ainda no .
Tanto a esperana esperante e a utopia quanto consumao do mundo no so
realidades fechadas sobre si mesmas. Elas tm em comum um questionamento sobre a
forma da convivncia humana presente e futura. O futuro escatolgico passa pelas
utopias humanas. Ele as ultrapassa por no se fixar nelas. Quem sabe, por no se
reconhecer em nenhuma delas. O futuro escatolgico passa pelas esperanas esperantes.
Porm, necessariamente, as ultrapassa. Deus garantiu que nenhum olho viu, nenhum
ouvido ouviu, nenhum ser humano experimentou o que Ele prepara para o novo cu e a
nova terra que Ele criar. O futuro escatolgico tem sua histria antecipada na histria
humana atravs do smbolo maior: Jesus Cristo encarnado (na criao), revelador do ser
humano (na histria) e ressuscitado (o futuro escatolgico para todos). O futuro
escatolgico - porque uma questo de Deus - tem sua realidade para alm da criao,
por ser um fato da ordem do Reino de Deus, das coisas ltimas - que mesmo entrevistas,
esperadas, sonhadas, no se concretizam, seno por vislumbres, na histria.

Captulo 8

Para onde vamos?

A leitura crist sobre nosso futuro

Os seis bilhes de seres humanos e os homens e mulheres de todos os tempos


sempre se fazem as mesmas perguntas existenciais e profundas: para onde vamos?,
qual o nosso futuro? So perguntas concretas de todos os tempos, implicam a
compreenso do cosmo e de pessoas humanas concretas. Teologicamente falando,
significa perguntar-se pela consumao ou escatologia do cosmo e do mundo do qual
fazemos parte. Isto implica tambm perguntar-se no apenas pelo valor dela, mas da
ao humana. Pois inegvel que a maneira de compreendermos nosso futuro
determina nossos atos no presente.

1. As respostas teolgicas atuais

Ns ignoramos o tempo da consumao da terra e da


humanidade e desconhecemos a maneira da transformao do
universo. Passa certamente a figura deste mundo deformada pelo
pecado. Mas cremos que Deus prepara uma morada nova e nova
terra... Contudo, a esperana de uma nova terra longe de atenuar,
deve antes impulsionar a solicitude pelo aperfeioamento desta
terra. [...] No intil o esforo para instaurar a fraternidade
universal... (Cristo) j opera pela virtude de seu Esprito nos
coraes humanos; no somente desperta o desejo da vida
futura, mas por isso mesmo anima, purifica e fortalece tambm
aquelas aspiraes generosas com as quais a famlia humana se
esfora para tornar mais humana a sua prpria existncia e
submeter a terra inteira a este fim (GS 39).

Para os fiis, pacfico que a atividade humana individual e


coletiva, ou aquele empenho gigantesco no qual os homens se
esforam, no decorrer dos sculos, para melhorarem as suas
condies de vida, considerado em si mesmo, corresponde ao
plano de Deus [...] e isto diz respeito tambm aos trabalhos
inteiramente cotidianos [...], as vitrias do gnero humano so
um sinal da magnitude de Deus e fruto de seu inefvel desgnio
(GS 34).

Desde o incio da histria da salvao Deus escolheu homens


no como indivduos somente, mas como membros de uma
comunidade. Revelando seu plano, Deus chamou estes eleitos de
seu povo... Essa ndole comunitria, por obra de Jesus Cristo
aperfeioada e consumada. O prprio Verbo encarnado quis
participar da comunidade humana... na sua pregao claramente
ordenou que os filhos de Deus se tratassem mutuamente como
irmos (GS 32).

Sendo Deus Pai, o princpio e o fim de todas as coisas, somos


todos chamados a ser irmos. E por isso, destinados nica e
mesma vocao, humana e divina, sem violncia e sem dolo,
podemos e devemos cooperar para a construo de um mundo
de paz verdadeira (GS 92).

De acordo com a experincia dos sculos, a Sagrada Escritura


ensina famlia humana que o progresso um grande bem para
o homem, traz consigo ao mesmo tempo uma tentao enorme...
o mundo j no lugar de fraternidade verdadeira... (GS 37).

O ser humano, desde o incio da histria, abusou da prpria


liberdade... olhando o seu corao, descobre-se tambm
inclinado para o mal e mergulhado em mltiplos males que no
podem provir do seu Criador que bom. [...] Por isto, o homem
est dividido em si mesmo. Por esta razo, toda a atividade
humana, individual ou coletiva, apresenta-se entre o bem e o
mal, entre a luz e as trevas. Bem mais ainda. O homem se
encontra incapaz, por si mesmo, de debelar eficazmente os
ataques do mal, e assim cada um se sente como que carregado
de cadeias [...]. O pecado, porm, diminuiu o prprio homem,
impedindo-o de conseguir a plenitude (GS 13).

A histria dos homens e do cosmo, porque contm germens do Reino de Deus,


vive uma tenso dinmica e dialtica, crescendo e desaparecendo simultaneamente em
tempos e lugares diferentes. O Reino de Deus, tambm por sua dinmica e dialtica,
est tanto entre cristos e outros religiosos quanto entre todos os outros homens e
mulheres. Tanto as realidades profanas quanto a da f originam-se do mesmo Deus,
como afirmam os Conclios Vaticano I (De T. Cath. 3) e Vaticano II (GS 36).

2. Os fundamentos da f

H no corao humano uma esperana para alm do que se espera. Este sonho
move (moveu) de modo pluridirecional o ser humano. Desde as religies em geral, a
direo transcendente. O judasmo f-la coincidir sempre com o momento de sua
histria. E por isso ele sempre esteve ligado aliana (bno) de Jav que se
concretizava na posse da terra, na prole e no gado - especialmente na terra, pois ser
dono dela significava ser livre e nunca escravo. A perda da terra sempre esteve ligada
primeiramente ao abandono (in-fide-lidade) a Jav e consequentemente castigo do
exlio. No ter filhos era certeza da no proteo divina porque a gerao se acabaria ali.
O gado era smbolo da estabilidade econmica e possibilidade de usufruto da vida.
Mais tarde, a salvao significou a espera e a chegada do Messias - aquele que
re-constituiria o povo, governando-o na justia e na santidade, defendendo os pobres
e restituindo a graa/bno de Jav. A espera messinica, muitas vezes, tornou-se
apocalptica. A decepo com Jesus, como messias, facilmente explicada no apenas
por saber-se quem Ele era ou quem eram seus familiares; mas ela foi especialmente
frustrante e, em diferentes formas de decepo, para os zelotas, para os fariseus, para os
sacerdotes, para o povo em geral e, at, para os saduceus, que no precisavam mais do
messias poltico.
O messianismo de Jesus, no entanto, foi entendido e aceito a partir de novas
relaes estabelecidas com os pobres (anawin), aleijados, cegos, coxos, prostitutas,
ladres, enfim com os excludos para que quem ele se tornara a esperana de Deus. O
messianismo de Jesus implicou aceitar aqueles que - seguindo-o em grupo ou no - se
deixavam tocar pela nova mensagem do Reino, cujos valores implicavam ser irmo e

prximo, simples e prudente, misericordioso e justo, bom e santo, verdadeiro e fiel,


convertidos e justificados, capazes de perceber a Deus que inclusive ressuscita o justo
da morte. O messianismo de Jesus implicava situaes novas como a indicada nos
discursos, nas parbolas, nas situaes de cura e, sobretudo, na aceitao global de sua
pessoa como smbolo e realidade do Reino de Deus.
A nova linguagem da escatologia messinica de Jesus usa termos e ideias como:
banquete, vida, campo, pastagens, lrios do campo, rede cheia de peixes, tesouro de
coisas novas e antigas, luz etc. forte a linguagem dos smbolos messinicos de Jesus:
curas, multiplicao de pes, perdes, misericrdia, acolhimento, banquetear-se e
repartir o po, ser companheiro, mestre, pastor, profeta, exegeta, imagem visvel do
Deus invisvel, confiana radical em Deus e amor ao prximo, a ponto de dar a vida por
Deus e por eles; ser todo de Deus e todo dos irmos; e para isto pedir de novo a glria
que tinha antes, entregar-se nas mos do Pai e ser constitudo primognito da criao,
vencedor da morte e juiz dos vivos e dos mortos. Esta uma linguagem messinicoescatolgica, que supera os existencialismos e as ontologizaes, pois pertence ao
quadro das coisas de Deus, que dizem respeito aos seres humanos.
Os cristos, desde o comeo - por falta de sinais concretos do Reino, foram
passando da pregao de Jesus para a pregao sobre Jesus e a incluram
retroativamente, uma srie de elementos religiosos. Passaram a articular o cristianismo
ora como religio, ora como vida e seguimento de Jesus. Quanto ao processo salvfico
do Reino, por incapacidade de repetir curas e milagres, de suprir certas aspiraes
humanas imediatas e concretas, os cristos foram espiritualizando a salvao, e, ao
mesmo tempo, foram temporalizando-a em comportamentos ticos e sacramentais como
sinais antecipatrios do Reino.
Na verdade - e isto, por um lado, positivo -, os cristos no sabem,
objetivamente falando, dizer ou descrever o Reino de Deus. Muitas vezes, na tentativa
de traduzi-lo, usaram linguagens descritivas e simblicas como coisificao daquilo que
objetivamente inaudito (nenhum ouvido ouviu), inimaginvel (nenhum ser humano
pode imagin-la) e invisvel (ningum ainda viu), mas permanece ansiosamente
desejado pelos seres humanos e pela natureza (Rm 8,19-22). A nica linguagem para
anunci-lo a simblica, cheia de metforas e figuras prprias da f, capaz de se
transfigurar em outras, e, transcendendo- se, se ampliar ou modificar-se sem perder a
continuidade da promessa e da histria da esperana em Deus.

Muitos cristos tm dificuldade de compreender a linguagem escatolgica de


Jesus porque suas igrejas (convm lembrar os 33.800 grupos que compem o
cristianismo) se fecham em cumprimento de comportamentos ritualsticos, morais e/ou
espiritualistas, enfatizam mitos, amam o poder e a glria do mundo, seus hierarcas
perdem as funes de servos para serem mestres e senhores humanos, muitos grupos se
isolam do mundo para buscar aperfeioamentos individualistas, outros preferem
posturas intimistas ou sociocaritativas etc.
Muitos cristos aderem pessoalmente a Jesus e - guardadas as posies de tempo
e contexto - tendem a agir como Ele agiu, amar como Ele amou, estar-com-os-outros
como Ele esteve entre os seus, pr em prtica o que Ele ensinou, dar a vida pelas causas
da justia como Ele deu a sua. Muitos cristos se tornaram desapegados como Ele, para
ser livres como Ele; outros se pem disposio dos excludos e marginalizados como
Ele fez. Tais cristos se agrupam para ouvir sua palavra, conhecer a vontade de Deus, e
p-las em prtica como Ele fez. Ainda, por sua causa e seguimento, muitos derramaram
seu sangue pela causa de Deus, ou fizeram do seu dia-a-dia o espao da profunda
comunho com o Pai. Mas,

ns cristos esperamos pelo novo homem, pelo novo cu e a


nova terra na consumao do Reino de Deus. Desse Reino
podemos falar somente em figuras e parbolas, assim como
esto relatadas e testemunhadas no Antigo e no Novo
Testamento de nossa esperana, especialmente por Jesus
mesmo. Essas figuras e parbolas da grande paz dos homens e
da natureza na presena de Deus, na comunho de mesa do amor
da ptria e do Pai, do reino de liberdade, da reconciliao e da
justia, das lgrimas enxugadas, do riso dos filhos de Deus todas elas so exatas e insubstituveis. No podemos traduzi-las
simplesmente na verdade, somente podemos proteg-las,
permanecer fiis a elas e resistir dissoluo delas na linguagem
carente dos mistrios de nossos conceitos e argumentaes que,
sem dvida, fala a nossas necessidades e de nossos planos, no,
porm, a nosso anseio e de nossas esperanas. 55

A linguagem escatolgica na atualidade tem claramente a vontade de continuar


as mensagens das antigas linguagens bblicas (proftico- messinica ou apocalptica).
Querem preservar o sentido, sem jamais descrever com exatido o que Deus nos reserva

Confisso sinodal de Wrzburgo Unsere Hoffnung [Nossa esperana, (1975)], I, 6. cit. por Franz-Josef Nocke. In:
SCHNEIDER, T. Manual de dogmtica, vol. II, p. 371.

no futuro. As imagens da linguagem bblica da esperana, por outro lado, querem


exprimir experincias contextuais e esperanas localizadas - para as quais valem a
pedagogia midrshica dos velhos mestres de Israel, que sempre querem dizer de forma
nova aquilo que ficou velho. Ainda de outro modo, as profecias - mesmo que em funo
de circunstncias histricas - mantm sua atualidade porque o profeta, usando
linguagem simblica, quer preveni-los, encoraj-los e incit-los a um comportamento
correspondente, a fim de torn-los co-participantes da histria rumo a sua
definitividade.
E, por ltimo, o futuro se faz presente messianicamente em Jesus, o anunciador e
iniciador do Reino cuja consumao universal e csmica passa pela sua ressurreio enquanto os homens e mulheres aguardam, na esperana esperante, a parusia e a
consumao/recapituladora em Cristo. A, estar cristificado e, ento, tudo ser entregue
ao Pai, consumando-se seu Plano original.

3. As grandes explicaes da teologia

a) Os cristos - essa presena quantitativa to grande no tempo presente deveriam ser sal, luz e fermento no mundo. Jesus os convidou para isto. Muitos pensam
que todos os homens e mulheres da Terra deveriam ser membros da Igreja de Jesus.
Tericos discutem, com seus arrazoados, se a inteno de Jesus: ide por todo o mundo,
batizai e fazei discpulos (cf. Mt 28,15-16) a ordem de que todos se tornem
discpulos para se constiturem como membros dos grupos cristos, i.e., como igreja
crist. Alguns telogos pensam que as igrejas devam ser constitudas de grupos
minoritrios que do o sabor que fermentam ou iluminam cristmente o mundo.
b) Alguns cristos - protestantes e catlicos - se tornaram precursores da
renovao da linguagem e da. compreenso da escatologia, no incio do sculo XX.
Dois so significativos: R. Bultmann e T. Chardin.
b.l) O luterano Rudolf Bultmann (1884-1976) negando a interpretao temporal
ou histrica das mensagens escatolgicas da Bblia, afirma a linguagem mticoexistencial, que age no aqui-e-agora do crente:

O sentido da histria se encontra em cada momento atual de tua


vida, e tu no podes v-lo como expectador, mas somente as
tuas decises responsveis. Em todo momento jaz a
possibilidade de ser o momento escatolgico. Tu tens o poder de
despert-lo.56

A vinda de Cristo se torna no um ponto do futuro, mas a chegada


transformadora, libertadora de indivduo. Todo momento pode se tornar momento
salvfico, porm independente da dimenso histrica (final) da escatologia.
b. 2) O jesuta Teilhard de Chardin (1881-1955) - preocupado em lanar pontes
entre cincia e f, evoluo e criao - se defronta com o tema da consumao do
mundo. E desde uma perspectiva evolucionista/ dinmica, descreve o cosmo, da
geognese (origem da Terra), num processo de complexidade ascensional - chamado
cristificao - nele insere a origem da vida (biognese) e da conscincia/esprito
(noognese). a que surgem os seres humanos. A histria csmico-humana continua
em direo a Cristo, em quem e para quem foram criadas todas as coisas (cf. Cl 1,16),
at consumir-se em Deus, o que ser tudo em todos (cf. ICor 15,28). A noognese
desemboca na cristognese, como imenso processo de cristificao, para abrir-se
finalmente deificao. A histria, para Teilhard, cristicamente escatolgica desde o
incio: a criao evolutiva. E dela e nela que vai surgir o ser humano, de quem nasce
Cristo, o que dirige e acompanha - por um processo de amorizao - o ser humano e o
universo at a vida eterna.
c) Desde as provocaes de Feuerbach, outros pensadores cristos, marxistas ou
descrentes, abordaram o tema. Entre eles: Maurice Blondel, Ernest Bloch; mais
ultimamente Moltmann, Metz, Rahner.
c.l) Jrgen Moltmann (1926) um telogo evanglico sistemtico que escreveu
muito neste sentido e sua Teologia da esperana (1968) tornou-se um clssico. Sua
escatologia est fundada, sobretudo, nas promessas bblicas de Deus fiel: o Senhor
conduz, como prometera, este mundo no decurso da histria, rumo finalidade ltima.
Mas em Cristo ressuscitado h uma antecipao da parusia. No ressuscitado manifestase algo surpreendemente e novo que sinal e garantia como predio da realidade
futura.

56

BULTMANN, R. Geshichte und Escathologie, p. 184, aqui citado por Franz-Josef Nocke. In: SCHNE1DER. Manual de
dogmtica, vol. II, p. 364.

Numa segunda fase, Moltmann passou a valorizar a cruz e o sofrimento,


mostrando no crucificado o reverso da esperana: a esperana pascal no ilumina
apenas para frente, para o novo desconhecido da histria, por ela iniciado; mas, ao
mesmo tempo, para trs, para os cemitrios da histria, e, no meio deles, principalmente
para o nico Crucificado.
c.2) Para o catlico Johan Baptista Metz (1928) a escatologia deve ser. abordada
em termos polticos, no em termos escatolgicos, pois a esperana crtico-criadora
que a rege refere-se essencialmente ao mundo enquanto sociedade e s foras
transformadoras dentro dela. A cidade de Deus prometida uma grandeza a ser acabada
e est distante; porm tarefa dos cristos, comprometidos no Reino da paz universal e
da justia. Posteriormente, o autor - por causa das decepes socioculturais na
construo da histria - fez evoluir seu pensamento.
c.3) O marcante telogo alemo Karl Rahner (1904-1984) chamou a ateno
para a docta ignorantia futuri (sbia ignorncia sobre o futuro) enfatizando a o papel
crtico da teologia, inclusive frente absolutizao de qualquer projeto intramundano.
Ele teorizou sobre uma dinmica dialtica e que ao mesmo tempo distingue, sem separar
o crescimento do Reino de Deus e crescimento do mundo.
Franz-Josef Nocke resume assim o pensamento de Rahner:

Seria o mundo que o prprio homem cria, to-somente o


material de uma comprovao moral, que em si permanece
indiferente, e seria o mundo simplesmente deixado para trs
quando vem o definitivo Reino de Deus? [...] Ou entraria o
prprio [...] mundo, ainda que transformado de modo
incompreensvel, no verdadeiro eschaton? [...] Somos ns
mesmos os autores definitivos? [...] acaso a prpria histria
fsico-material, ainda que atravs da morte e da radical
transformao, entrar nesse definitivo? 57

c.4) Na sia, frica, nos meios pobres dos pases desenvolvidos, mas sobretudo
a partir da Amrica Latina, muitos cristos dos tempos atuais propuseram uma reflexo
teolgica de libertao. Dados os imensos universos da pobreza, da discriminao das
minorias, do degrado ambiental, da excluso de diversos tipos, como crer na presena
do Reino de justia e de fraternidade? Desde a indignao tica e da certeza da presena

57

Franz-Joseph Nocke. In: SCHNEIDER, Th. Op. cit., p. 367.

do Reino de Jesus j entre ns, no se poderia ser conivente com a continuidade de tudo
quanto atenta dignidade dos filhos e filhas de Deus, porque inclusive atinge o prprio
Deus.
Mesmo que influenciados - sobretudo na Amrica Latina - pelas novas ideias de
libertao, da construo de uma sociedade mais equnime e da busca revolucionria de
novos modelos sociais - muitos cristos passaram a animar os pobres a se tornarem coconstrutores, ou melhor, os prprios construtores de uma sociedade igualitria, fraterna
e digna para todos, a comear embaixo o processo novo. Os pobres deveriam ser os
protagonistas de aes numa sociedade a ser transformada. A esperana escatolgica
deveria tornar-se histrica. Crescimento e Reino de Deus poderiam - apesar de suas
distines - crescerem juntos na histria. A superao das injustias e das exploraes
poderia ser o apressamento do Reino de Deus, na histria.
A nfase na luta sociotransformadora, desde os pobres, no estaria desonerada
da f, antes pelo contrrio. A f que daria o suporte luta. A luta salvfica, porm, no
se esgotaria nas relaes intramundanas; pois se a fome, a misria, a excluso de to
grandes massas evidenciam o pecado deste e neste continente que nasceu cristo, a luta
histrica salvfica se prolongar at a eternidade, em que o vencedor final aquele que
h dois mil anos fora crucificado pelos homens.
Sem dvida, esta prtica pastoral e a teologia da libertao despertam a Igreja
(catlica e parte da evanglica) para um compromisso social - que telogos e hierarcas
europeus no aquilataram a importncia desta teologia milenarista, pois, ao tempo,
estavam por demais empenhados ora em questes tericas, ora em ortodoxia. A TdL foi
no s a traduo do Concilio Vaticano II para a Amrica Setentrional - como muitos
afirmam - mas tambm uma chamada (mal ouvida) Igreja universal sobre as questes
prticas da atuao de Jesus e de sua parbola sobre o julgamento final (cf. Mt 25,3845).
Alguns distinguem o Reino de Jesus - j antecipado, na histria, por valores
morais que implicam ser reino de justia, amor e da paz, reino de santidade e graa,
reino de verdade e de amor (cf. prefcio de Cristo, Rei do universo) - e o Reino de
Deus. O primeiro est ligado desde a encarnao at a ressurreio e glorificao do
Verbo que se torna Senhor e juiz universal da criao. O segundo a consumao do
primeiro no Pai, tornando-se definitivo e acabado, como universal glria de Deus. O
primeiro explode dentro do segundo; o primeiro promessa e caminho. O segundo

definitividade. Outros autores fazem-nos coincidir, certos de que ns nos


encaminhamos por este caminho - que Cristo - para a glria de Deus.
Para onde vamos? - E a resposta nica esta: - para o Reino que Deus preparou
de antemo para todos seus filhos e filhas.
Desde antes da Modernidade (para alguns desde Orgenes), vinha se enfatizando
a dimenso individual da salvao. Ricas teologias (algumas somadas espiritualidade
e mstica) conseguiram fundamentar a f pessoal nas coisas ltimas (novssima ou
eschat) de modo a inspirarem uma caminhada crist serena e divina.
Mas foi sobretudo a partir da Idade Mdia que as questes de morte, juzo e
purgatrio, inferno e paraso, assumiram uma preocupao individualista por demais
imaginativa, cheia de aterrorizamento com almas penadas, sofrendo rigores nos
tridentes de demnios (machos) sempre satisfeitos e realizados diante de suas vtimas;
ou de almas to cndidas quanto transparentes em seus enlevados olhares para Deus; ou,
ainda, de almas sofredoras no fogo do purgatrio - por no terem sido aprovadas ainda
definitivamente para a felicidade. Tudo isto era antecedido pelo rigoroso juzo de Deus,
capaz de detectar os pensamentos mais recnditos de qualquer conscincia.
obvio que a Igreja Catlica tenta desvencilhar-se destas espiritualidades e
msticas, inclusive pondo no olvido determinadas vises do inferno e do purgatrio
reveladas por alguns de seus santos (revelao particular); do mesmo modo no so
mais incentivadas as figuras tipo juzo final da Capela Sistina. A teologia, a catequese, a
espiritualidade e a homiltica se perderam nas figuras e esqueceram a sua significao
simblica. Os smbolos foram como que tornados retratos. Comentrios relativos
simblica bblica sobre as coisas ltimas evidenciam o distanciamento da atual
exegese bblico-teolgica. O mesmo se diz sobre as questes na espiritualidade
homiltica, catequese etc. A Comisso Internacional de Teologia, rgo ligado
Sagrada Congregao da Doutrina da F, tem insistido no s em separar
smbolos/significados de representaes e imaginaes, pedindo que sempre mais se
abstenha de dar asas imaginao do que minimamente se sabe. 58

58

Cf. Comisso Internacional de Teologia. A esperana crist na ressurreio.

4. A escatologia comunitria

O grande sentido da histria, para os cristos, estar no contexto salvfico de


Deus, mesmo que as duas histrias ( tradicional tambm falar das duas cidades
agostinianas) no se identifiquem, mas convivam ora se entrecruzando, ora caminhando
prximas, ora tomando grandes distncias uma da outra. No encaminhamento da
histria da salvao, muitos cristos comeam a superar a ideia das realidades do
alm (juzo, cu, inferno) em sua conotao intimista ou individualista. A prpria
Igreja Catlica tem insistido numa escatologia universal, comunitria - como se acenou
acima. Deus quer que todos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da
verdade (AG 7), porque

todos os povos, com efeito, constituem uma s comunidade.


Tm uma origem comum, uma vez que Deus fez todo o gnero
humano habitar a face da terra. Tm igualmente um nico fim
comum, Deus, cuja Providncia, testemunhos de bondade e
planos de salvao, abarcaram a todos, at que os eleitos se
renam na Trindade Santa, que ser iluminada pelo esplendor de
Deus e em cuja luz caminharo os povos (N.AE. 1).

A Deus aprouve [...] santificar e salvar os homens no


individualmente, excluindo qualquer conexo mtua, mas
constitu-los um povo que reconhecesse a verdade e o servisse
santamente (GS 32; cf. LG 9).

A perspectiva comunitria est fundada, salva e consumada solidariamente pelo


Verbo, que quis participar da comunidade humana (cf. GS 32). A dimenso comunitria
do ser humano e sua vocao so enfatizadas na GS (24), tanto na sua origem quanto
histria e finalizao. Para dar fundamento a esta ideia fora apresentado na
Congregao Geral um texto, depois substitudo pelo atual:
Deus que vigia, sobretudo, com cuidado paternal, quis que todos os homens
constitussem uma nica famlia e se tratassem entre si com nimo fraterno. Pois todos
criados imagem de Deus [...] so chamados a um nico e mesmo fim. Por isto, o amor
a Deus e ao prximo o mximo e primeiro mandamento. Mais ainda, a doutrina

catlica oferecendo perspectivas inalcanveis razo dos fiis, ensina que Deus, sendo
uno, subsiste em trs pessoas, cada uma delas vivendo de tal maneira para as outras, que
constituda por esta relao. lcito deduzir que as pessoas humanas, enquanto foram
criadas imagem de Deus, uno e eterno e reformadas em sua semelhana, nos do certa
imitao dele. Certamente o ser humano, ao ser na terra a nica criatura querida por si
mesma, possui este mesmo modo de referncia aos demais, de modo que no se pode
encontrar a si seno se doando ao outro. 59
Noutro lugar, o Concilio Vaticano II insiste na vontade salvfica universal de
Deus, sendo claro ao falar dos que ainda no receberam o Evangelho se ordenam por
diversos modos ao povo de Deus... o Salvador quer que todos se salvem (cf. ITm 2,4)
(LG 16). A salvao divina, pois, vem oferecida no s na Igreja, mas a todos os
homens em todas as situaes e nas situaes seculares, inclusive aos ateus (que negam
a Deus); pois estes que no ficam excludos da salvao, s por isto. Todos os seres
humanos esto sob a graa de Cristo.60
Caminhamos para Deus. Ele quem d a direo e Cristo o caminho que nos
leva a Ele. Hoje somos mais de seis bilhes. Os de ontem e desde as primeiras horas da
humanidade so milhares de milhares. Sero bilhes os que faro a caminhada amanh e
depois. Na consumao de tudo, Deus transformar os seres humanos (e a natureza
toda) levando-os perfeio. E ento ver que toda a sua criao era boa, muito boa
(cf. Gn 1,32). Mas, mais do que isto. preciso recordar que desde toda a eternidade, em
Cristo, por Ele e para Ele, tudo e todos foram eleitos: as coisas visveis e as invisveis
(Ef 1,3-13). As coisas e os seres humanos foram criados na histria. Por isto, eles no
foram criados por Deus nem perfeitos nem imperfeitos, mas a caminho da perfeio, in
statu viae.61 Isto quer dizer: caminhamos no Caminho, que Cristo. Ainda usando
uma ideia da patrstica, caminhamos da imagem - que somos desde a origem - para a
semelhana - que seremos no fim. Nossa transformao se consumar na capacidade de
ver a Deus, glorific-lo e ser sua glria.
Aqui de novo certas linguagens devem ser pensadas e relativizadas, como se
comentou anteriormente. Ns somos um corpo pessoal, aberto a diversas dimenses
(histrica, psquica, social, emocional, csmica, espiritual, etc.). Os gregos pensaram o
ser humano com um conjunto de corpo e alma. Desde o incio do cristianismo, muitos

59
60
61

Cf. Act. Syn. Vat. II, IV-VI, p. 446, n. 24.


Cf. LG 16.
cf. CIC, n. 310.

tentaram adaptar esta linguagem, e falavam do dualismo (corpo e alma.) Outros


preferiam usar a expresso unidade de corpo e alma (unidade dual).
A linguagem bblica descreve o ser humano, como totalidade, por suas
dimenses de nefesh, basar, ruah. No NT, h outras antropologias - porm, nunca
dualistas - que ressaltam o pneuma, soma, sarx, psich. Na histria tambm foi herdada
dos gregos uma linguagem sobre imortalidade da alma, os cristos a transformaram
dando-lhe outro significado - como Paulo transformara em uma linguagem nova
conceitos antigos como Ado, velho Ado, novo Ado, corpo sarx e corpo
pneumatificado. Por causa do mistrio trinitrio, a teologia crist cunhou a expresso
pessoa (ser de relaes).
Tudo isto dito a propsito de enunciados sobre o ser humano, para afirmar a
relatividade deles e realar que so Joo, Laura, Giovane, Tereza, os que na verdade
estaro diante de Deus como sua glria e seu louvor. Eles sero o resultado de um longo
processo da evoluo csmica, que s recentemente e por ao pessoal e criadora de
Deus na unidade de um espermatozoide paterno e um vulo materno comeou a existir
um novo ser amado e querido por Deus em Cristo desde toda a eternidade.
Este Lus, Andr, Mara e outros mais, foram mantidos normalmente - nove
meses no seio materno at seu nascimento. A vida deu-lhes crescentemente
possibilidades de autonomia, desenvolvimento, cidadania jurdica, atuao social e
poltica etc. at enfrentar a questo histrico-transcendental da morte para poderem
ressurgir assemelhados a Deus (em que forma?! - quem o sabe?) e poderem viver
eternamente diante dele.
De forma anloga, a linguagem sobre todo o processo csmico [big- bang, eras
(hadrnica, leptnica, radioativa, estelar), transformao, exploses, saltos unicelulares,
acaso, adaptao antropognese, princpio antrpico, ser vivo, pulses, cultura,
identidade gentica, catstrofes, homem de neanderthal, homo ergatus, sapiens etc.]
quer revelar uma leitura sobre fatos maiores e que teologicamente visam uma
finalizao criatural em Deus.
Tambm aqui, convm reafirmar; usamos linguagens tcnicas ou simblicas
para expressar realidades maiores a partir de ligaes dedutivas de descobertas, com
certa organicidade, que apresentam uma lgica morfolgica, filogentica e
arqueolgica. Se a linguagem das cincias da evoluo csmica e antropolgica mostra
a transformao, pode-se perguntar (como se fez em pginas anteriores) qual o futuro do

universo, do mundo: Continuar existindo? At quando? Em que direo? Ser limitada


esta vida?

5. Por que cremos na feliz consumao?

Tanto na questo do ser humano quanto do mundo, os cristos pensam na


consumao em Cristo. Convm notar tambm que o alcance dos enunciados supera e
no se condiciona a ela, seno na medida em que pode transfigurar-se em outra,
ultrapassar-se a si mesmo, ampliar seus horizontes sem, contudo, perder a continuidade
da histria da esperana, fundada nas promessas.
Um antropocentrismo milenar acentuou que tudo foi criado para culminar no ser
humano. Estamos h to poucos milhares de anos do surgimento do ser humano e no
podemos prever outros saltos na natureza. Seria ousado, pois, negar o finalismo da
criao no ser humano? Ou poder-se-ia, respeitando outras lgicas (de Deus), perceber o
caminhar peculiar do humano ao lado de todas as outras obras criadas? A f crist
professa que Deus quis o ser humano por ele mesmo. Isto, entrementes, no significa
que tudo deva ter sido centrado no ser humano. Assim, sem contradizer a f crist,
pode-se pensar (imaginar) em significados prprios que Deus deu a cada coisa; sem
perder sua inter-relacionalidade. A nfase no enunciado sobre o ser humano no precisa
coincidir ou exigir uma perda de importncia do mundo extra-huma- no. A tradicional e
intensiva afirmao sobre a salvao no quer negar o significado do cosmo diante de
Deus; quer apenas ressaltar quem o ser humano a ser salvo. Quanto ao mais, pouco
sabemos pela revelao.
Consumao? Mas o que se entende por esta promessa de Deus na conduo da
criao de tudo e todos? - Apenas, sintetizando, tudo quanto j se descreveu, vale
acentuar tanto o processo, o movimento para o qual tudo se dirige, quanto o atingir
plenitude, realizao como apogeu da histria da salvao.
A expresso no stimo dia Deus descansou (Gn 2,3) muito estudada na
exegese e na teologia como concluso da sua obra criacional, dia da festa do Criador
com sua criatura. O stimo dia, dia de descanso, como figura parusaca do tempo
eterno e glorificante na presena de Deus.

A consumao vem a ser no um acontecimento fenomnico catastrfico, mas a


transformao definitiva em Cristo e por Cristo para a glria, para a definitividade onde
Deus estar todo em todas as coisas e todas as coisas estaro em Deus (pan-en-tesmo).
A estar completa e definitiva a criao histrica das coisas visveis integradas s
invisveis.
Que mais se deve dizer sobre a consumao? A prpria realidade to- somente
fundada na revelao, por sua vez feita em promessas. Quase todos so pontos obscuros
- do que quase nada sabemos. O pouco - mas suficiente na f - antecipado na
ressurreio de Jesus, que traz para dentro da histria o bastante para assegurar a
fidelidade de Deus e a garantia do nosso futuro. Na ressurreio de Jesus,
escatologicamente, est antecipada a realidade do ser humano e do prprio universo.
Afinal, ao se encarnar, no elevou Ele a criao santidade de Deus? E ao ressuscitar,
no elevou a histria plenitude de Deus, antecipando o futuro de seus irmos e do
cosmo?
Para onde vamos? Para Deus. Para viver eterna e definitivamente em Deus!
Deus ser o nosso ambiente definitivo, querido por Ele mesmo antes da criao do
mundo. o amor consolidado por Jesus - aquele que antes da criao fora constitudo
iniciador, salvador e consumador da criao, o que a apresentar, no fim dos tempos, no
sbado definitivo do Pai.

5.1.Porque Deus fiel sua palavra

O fim exitoso da consumao no depende do ser humano e nem de sua histria.


A consumao obra gratuita e livre de Deus, como o foram a criao inicial e a criao
contnua na histria.
O fim exitoso sermos a glria de Deus. Mas como afirmar esta certeza? Os
cristos pem sua esperana esperante na grande promessa de Deus. E sabem, pela f e
pela experincia, que Deus fiel.
A Bblia o livro dos cristos para compreender auto-revelao divina e de seu
plano salvador - que inclui suas alianas criadoras e/ou recriadoras, manuteno de seu
plano (a histria do povo de Israel e dos primeiros cristos) e a indicao do futuro da

humanidade e do universo. Ao mesmo tempo em que a Bblia revela, mostra tambm o


cumprimento do plano divino, posto em ao desde o princpio - mas frequentemente
violado pela infidelidade aliana de Deus com seu povo.
Israel, na escravido, o descobre como um Deus fiel. Ele via e ouvia seus
clamores e descia para salv-lo, libertando-o no apenas dos faras, mas sobretudo
dando-lhes a possibilidade de voltarem a ser livres a ponto de poder de novo ter uma
terra prpria. E o prprio Deus recordava a seu povo: Conhecers que o Senhor, teu
Deus, quem Deus, o Deus verdadeiro; Ele guarda sua aliana e sua fidelidade dura
mil anos em favor dos que o amam e guardam seus mandamentos (Dt 7,9; cf. Rm
8,23). Israel sempre perceber - sobretudo quando vive na idolatria - como Deus fiel.
Especialmente a partir da conscincia de seu pecado, saber que Deus fiel,
benevolente e solidrio. Faz parte do credo fundamental do povo esta f: O Senhor teu
Deus conservar aliana contigo e a fidelidade que jurou a teus pais. Ele te amar,
abenoar e multiplicar, e abenoar o fruto do teu seio e fruto de teu solo... (Dt 7,1213).
A fidelidade de Deus desde as promessas aos pais, aos patriarcas, a comear com
Abrao, Isaac, Jac, consistia em dar ao povo - alm de uma grande multido - a terra
de Cana (Dt 1,8.35; 6,10; 8,1; 10,11; etc.). Isto porque Ele os amava, os elegeu e ligouse a eles (Dt 10,15) em aliana (7,12) comprometendo toda sua descendncia e
renovando-a pessoalmente a cada gerao. O Deus fiel aos patriarcas (Dt 4,31; Mq
7,20), dinastia de Davi (2Sm 7,28-29; lRs 8,26) fiel em todos os seus caminhos (SI
24,10) e garantia para todas as ocasies (cf. SI 90). O Deus fiel no falha mesmo nas
calamidades que oprimem seu povo ou na hora de seus filhos deverem receber a
punio pelos seus erros (SI 87).
A fidelidade uma qualidade inerente ao prprio Deus. Nele no h injustia.
Ele sempre reto e justo, como uma rocha (Dt 32,4; SI 16,32). Ele no muda
absolutamente em sua palavra (cf. Ml 3,6). No um homem para que minta, nem um
filho de Ado para que se retrate. Acaso ele fala para depois no agir? (Nm 23,19).
Na prestao de contas que os chefes das famlias dos levitas apresentaram ao
sacerdote, a Josu e a outros chefes (Nm 21), declaram: O Senhor deu a Israel toda a
terra que prometera dar a seus pais; tomaram posse dela e nela se estabeleceram
(21,43). Quando j envelhecido e no final de seus dias, Josu recordar a seu povo:

Reconhecei com todo o vosso corao e todo o vosso ser que


no ficou sem nenhum efeito, nenhuma palavra de todas as
palavras que o Senhor, vosso Deus, dissera a vosso respeito.
Tudo vos sucedeu. No houve nenhuma dessas palavras que
tenha ficado sem efeito (Js 23,14; cf. 21,45).

Deus fiel na palavra empenhada a Abrao [dar-lhe uma descendncia to


numerosa quanto as estrelas do cu (cf. Gn 18,18), nela sero abenoadas todas as
naes da terra (23,18)]. Mantm a fidelidade na gerao continuada em Davi, de quem
nascer o Messias - anunciado pelos profetas e esperado em Israel, de modo especial
pelos anawin (pobres).
evidente que na maioria das vezes o cumprimento desta palavra se apresenta
provisrio ou parcial, o que no invalida a promessa divina. por isto que toca a Israel
estar sempre atento ao Senhor e sua obra para interpretar e perceber o significado atual
da Palavra Salvadora de Deus.
O contedo final da promessa que coroa a promessa a Abrao o envio histrico
de Jesus como salvador. Neste Jesus, torna-se definitiva a palavra do Pai e seu
cumprimento se torna um Evangelho (boa notcia para todos). O Deus da glria - que
o Deus dos vivos, de Abrao, de Isaac, de Jac, de Elias e dos outros profetas - mostra
agora seu Filho, o crucificado-ressuscitado, como o que veio plenificar os tempos (cf.
G1 4,4) e levar a criao, especialmente o ser humano - querido por Ele mesmo -
plenitude. S Deus pode realizar suas promessas, desde antes dos tempos eternos (Tt
1,2).
Exatamente aqui, neste comportamento, vai surgir o radical impasse entre
cristos e judeus. Estes no perceberam que fora Jesus, o Nazareu, homem que Deus
tinha acreditado junto de vs, operando por Ele milagres, prodgios e sinais no meio de
vs, como sabeis, esse homem, segundo o plano bem-determinado por Deus (At 2,22).
Como disse Pedro, no segundo discurso no Sindrio:

O Deus de Abrao, de Isaac, de Jac, o Deus de nossos pais,


glorificou seu servo Jesus que vs interrogastes e rejeitastes na
presena de Pilatos que estava decidido a solt-lo. Vs
rejeitastes o Santo e Justo, reclamastes para vs o agraciamento
de um assassino. Mas, o Prncipe da Vida que vs haveis
matado, Deus o ressuscitou dos mortos - disso ns somos
testemunhas (At 3,13-15).

E, com Joo, no terceiro discurso, completou: Ele a pedra que vs os


construtores tnheis rejeitado e que se tomou a pedra angular. No h nenhuma salvao
a no ser nele, pois no h sob o cu nenhum outro nome oferecido aos homens que seja
necessrio nossa salvao (At 4,11-13).
Esse Jesus ressuscitado tornou-se, escatologicamente, o cumprimento penltimo
da palavra fiel e amorosa de Deus. Por delicadeza divina e apreo aos homens e
mulheres - que nele se tornaram filhos de Deus - o Pai, ressuscitando-o, f-lo aparecer e
ser visto durante muitos dias a diversos irmos e irms. Uma s vez, Ele se fez ver por
mais de quinhentos irmos. A ressurreio de Jesus desde a histria (ato penltimo),
antecipa a consumao definitiva (ato ltimo, plenitude definitiva da salvao de Deus).
A fidelidade de Deus a possibilidade de homens e mulheres de todos os povos, de
todas as raas, lnguas, naes e tempos participarem da vida divina. Pois a razo de ser
e existir de todas as obras criadas serem a glria de Deus e o glorificarem, mesmo que
Ele no necessite de tal glorificao. A criao, a histria e a consumao so
graciosidades divinas da maravilhosa fidelidade de Deus, a fim de que o amor
pericortico (intratrinitrio) comporte a extroverso de Deus e toda vida se torne vida
plena em Deus, que amor.

O Deus fiel, nestes ltimos tempos, falou-nos a ns, pelo seu


Filho, a quem estabeleceu herdeiro de tudo, por quem
igualmente criou os mundos. Este Filho o esplendor da glria
do Pai e a expresso de seu ser e sustenta o universo pelo poder
de sua palavra. Ele, depois de ter consumado a purificao dos
pecados assentou-se direita da Majestade nas alturas,
tornando-se superior aos anjos, e herdou um nome bem diferente
do deles (Hb 1,2-4).

A Epstola aos Hebreus tambm um hino a homens e mulheres que foram fiis
a Deus pela f. Todavia, numa leitura mais ampla, pode- se perceber que, se pela f eles
atingiram as promessas, porque atrs de tudo estava o Deus fiel que cumpria para eles
o que eles atingiam pela f. Tal cumprimento obtido pela f daqueles homens e
mulheres santos no era, seno, cumprimentos parciais e graduais do que ser a
plenitude salvfica. por isto que eles esto referidos a Cristo (cf. Hb 4,2), porque
tambm isto promessa do Deus fiel. E mesmo assim, esta nuvem de testemunhos (cf.

Hb 11,39-12,1), - constatando a fidelidade (parcial e progressiva) de Deus e estando


referidas a Cristo - espera a consumao.

5.2.Porque Jesus fie! a Deus e Deus fiel a Jesus

A promessa vai se efetivar de modo definitivo em Cristo, aquele que o


iniciador da f e a conduz realizao (Hb 12,2). Jesus o desfecho da revelao, e,
sobretudo, da concretizao salvfica de Deus em relao humanidade e ao cosmo
todo. Deus o tem como Filho muito amado, no qual ps todo o seu bem-querer (cf.
Mc 1,11; Mt 1,17; Lc 4,22).
Convm recordar que a histria de Jesus comea com sua anunciao a Maria
(Lc 1,26-88) e a Jos (Mt 1,18-25) e termina com seu sepultamento. Jesus um judeu,
que est ligado a Deus, como todo o seu povo eleito.
Por outro lado, Ele s compreendido como concretizador da fidelidade de Deus
humanidade toda. O Jesus, em quem cremos, homem e Deus. Como Deus, existe
desde todo o sempre; quer dizer: preexiste a toda criao. Historicamente, uniu sua
existncia eterna humanidade, na plenitude do tempo, fazendo-se nossa carne atravs
da carne de Maria.
Na histria factual e humana, Deus tornou-se Jesus e Jesus, concretamente era
Deus entre ns. Ele, na verdade, veio dar cumprimento a todas expectativas salvficas
do Antigo Testamento. As promessas de salvao do Antigo Testamento no passam
exclusivamente por questes de terra, propriedade, filhos. Tambm a salvao se d
pela vida e comunho com Deus, o que age redentivamente em libertaes corporal,
social, poltica e econmica.
A salvao inclui viver sob o poder de Deus e ser perdoado de seus pecados.
Todavia uma experincia escatolgica irrompeu na histria e se voltou esperanosa para
um Messias que capaz de reconstruir a nao, ou restabelecer o valor do Templo ou,
por fim, efetivar as promessas ainda no cumpridas que levaro ao verdadeiro shalom.
Quanto mais prximo ao tempo de Jesus, maior a esperana no Messias ou Filho de
Deus como uma figura escatolgica individual. Jesus, progressivamente, transformou
sua vida pblica num servio escatolgico presencializao do Reino entre ns e

indica sua consumao, ainda que provisria na histria, atravs de seus gestos
concretos de cura, perdo e restaurao da dignidade dos excludos.
Convm ressaltar aqui dois aspectos: a fidelidade de Jesus ao Pai e a fidelidade
do Pai a Jesus.
a) Jesus foi fiel ao Pai durante toda a sua vida. Fez da vontade do Pai sua prpria
vontade. Colocou-se inteiramente a servio de Deus, de seu Reino, curando a muitos,
expulsando demnios, restituindo-lhes confiana e dignidade. Deixou-se absorver todo
pelo servio/misso do Pai. Sobretudo Lucas, em seu evangelho, mostra um Jesus
bondoso e misericordioso como imagem visvel do Deus invisvel. Viveu do Pai, pelo
Pai e para o Pai. Realizou, em sua pessoa, gestos do senhorio e da bondade do Pai,
perdoando, salvando, reintegrando. De modo pessoal, percebeu-se e reivindicou para si
a misso de ser revelador do Pai, com quem Ele se sentia unido, a ponto de (nos ltimos
dias de vida, segundo Joo) afirmar que Ele e o Pai so um. Ao mesmo tempo, Ele se
compreendeu como portador escatolgico da salvao.
Na sua ntima relao com o Pai (Abb) encontrou a fonte de sua pretenso
missionria (sobre o Reino e seu messianismo) e seu agir at o fim (faa-se a tua
vontade, no a minha - Mt 26,39) como um homem livre. Foi fiel a Deus at o fim -pro
Deo. Por causa de Deus, foi fiel ao ser humano de modo mais radical possvel, a ponto
de em sua humanidade ter-se descoberto a prpria divindade - pro nobis. Fiel aos
homens; mas, sobretudo, foi fiel aos pobres e aos pecadores. Em prol da multido (Mt
26,28), por vs (Lc 22 20), ou mais simplesmente por todos, Ele deu sua vida num
gesto de mais profunda solidariedade.
c) A fidelidade de Jesus, respondeu o Deus fiel. Deus no apenas acompanhou
os passos terrenos de seu Filho nico feito filho da carne humana. Mas o dotou de
capacidades to humanas que Ele realmente foi, entre ns, um dos nossos em tudo,
exceto o pecado. A fidelidade de Deus a Jesus - e por extenso, fidelidade sua
promessa, segundo as Escrituras, desde Ado e No, passando por Abrao e os
patriarcas, reis e profetas, homens e mulheres justos - foi de extremo amor, doao at
o sofrimento na cruz de seu Filho. A fidelidade de Deus, na morte de seu Filho,
manifestou toda grandeza de seu amor salvfico, a ponto de fazer dela o instrumento da
redeno definitiva. Deus fiel no deixar Jesus vencido pela morte. Antes, far dele o
vencedor dela.
Na morte do Filho, Deus derrotar a prpria morte. O ltimo inimigo de seu
Filho e de todos os seus filhos adotivos era a morte. Na ressurreio de Jesus, Deus

supera a morte e a destri transformando sua vitria em gesto de salvao, a ser


estendido a todos os homens e mulheres.
Na fidelidade ao Filho, Deus manifesta sua fidelidade humanidade at o
extremo mximo. (Algum poderia perguntar: por que o Deus, fiel a seu Verbo e
humanidade, no poderia derrotar, mesmo na consumao final, tambm o mal e a
inveno/criao humana do inferno eterno? - se que assim !).
Na morte de Jesus, toda a fidelidade de Deus se manifesta como aquele que
conduz a bom termo seu plano. E eis a ressurreio do Filho na carne, e eis o poder
salvfico de Deus recriando tudo por amor, desde a morte e ressurreio de seu Filho. O
Deus gerador da vida, autor de toda a criao, ressuscita Jesus como primcias dos que
morreram. Ele no se detm diante de nenhum poder. E segundo as promessas das
Escrituras, agora - no Filho - completa finalmente a criao. E Deus viu que tudo era
bom, muito bom (Gn 1,31).
A ressurreio de Jesus um ato escatolgico de Deus que faz culminar a
criao, dando sentido histria, e antecipa escatologicamente a plenitude humana e a
consumao da histria. Pela ressurreio de Jesus, o Deus dos vivos completa a criao
do ser humano possibilitando-lhe o que no possvel por conta do prprio ser humano.
E mais, Deus vivifica seu Filho, porque o torna capaz de coloc-lo diante de si. O Jesus
histrico, agora ressuscitado, v a Deus face a face. Deus tambm v, no crucificado, o
ressuscitado como sua obra completa, vitoriosa e definitiva. Ressuscitar Jesus, para o
Pai, faz-lo participar de sua glria. Agora, o Jesus ressuscitado participa da glria
divina, antecipando o futuro de todos os seus irmos e irms. Agora, Cristo
Ressuscitado dentre os mortos, no morre mais (cf. At 13,34; Hb 7,24ss; Ap l,l7ss). E
nele homens e mulheres encontram a certeza de seu futuro.
Na ressurreio de Jesus, Deus empenha toda sua fidelidade ao Filho e
extensivamente aos filhos adotivos.
Em Cristo, todos que morreram em Ado recebero a vida; mas cada um em sua
ordem: em primeiro lugar, as primcias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo
por ocasio de sua vinda; em seguida vir o fim, quando Ele entregar a realeza a Deus
Pai, depois de ter destrudo toda autoridade, todo poder (ICor 15,22-27).
Sem dvida, so duas situaes diversas: a ressurreio e as aparies do
ressuscitado. Estas ltimas pertencem delicadeza de Deus em nos mostrar seu Filho
Ressuscitado, vencedor da morte. Mas ambas tm dimenses escatolgicas. As
aparies do ressuscitado garantem aos apstolos, aos discpulos e a outros mais 500

irmos numa s vez (ICor 15,6) que Jesus vive, sem um retorno biolgico. Agora o
crucificado- ressuscitado, que j participa da vida de Deus, deixa-se ver, faz-se ver pelos
irmos para anunciar-lhes a vitria de Deus. Seu anncio garante que, nele, os filhos
podero ver a Deus, isto : participar da vida de Deus, assemelhados ao prprio Deus.
Os apstolos, atravs de Joo Evangelista, podem afirmar:

O que era desde o princpio, o que ouvimos, o que vimos com


nossos olhos, o que contemplamos e nossas mos tocaram do
Verbo da Vida - pois a vida se manifestou e ns vimos e damos
testemunho e vos anunciamos a vida eterna que estava voltada
para o Pai e se manifestou a ns - o que vimos e ouvimos ns
vo-lo anunciamos tambm a vs, para que vs tambm estejais
conosco (1Jo 1,1-3).

O prprio Jesus se auto-revela aos discpulos de Emas, explicando quem Ele


era e que, pela morte, entraria na glria, segundo as Escrituras (Lc 24,27).
Os apstolos e toda a comunidade crente primitiva descobriram no ressuscitado
a manifestao da fidelidade e do poder salvfico de Deus, que leva ao cumprimento a
consumao de sua obra. E desde o comeo, pelo grito aramaico-protocristo
maranatha (vem, Senhor Jesus! ICor 16,22; Ap 22,20), expressaram sua f naquele
Jesus que estivera com eles e agora estava elevado e exaltado junto ao Pai (Fl 2,9; At
2,32), constitudo Mestre/Messias/Senhor/Filho de Deus (cf. At 2,36; Rm 1,4; 10,9).
A ressurreio de Jesus estabeleceu nova e inaudita forma de relao. Diante de
Deus, um corpo histrico, um fragmento do cosmo, entrou na comunho divina. O
corpo do ressuscitado, parte da terra, natureza humana - que sem perder nem
confundir sua natureza -, parte em Deus.
Mas o significado mais fundamental das aparies do ressuscitado foi o
chamado a ser testemunhas do cumprimento das promessas e a renovao da promessa
de uma presena permanente e at o fim dos tempos com a comunidade. A experincia
pascal que suscitou a f e foi feita na f deu s testemunhas apostlicas originrias a
responsabilidade imediata de testemunhar e transmitir a f naquele que havia vivido
com eles e que agora estava glorificado por Deus.
Aqui a experincia tem ao menos quatro significados: a) Jesus foi acolhido por
Deus, pois sua ao foi convalidada e exaltada; b) Ele agora tem parte no poder e na
ao de Deus; c) nele esto cumpridas j todas as promessas de Deus, que fiel, mesmo

que ainda no se usufrua delas ainda; d) o que aconteceu com Jesus garantido para
todos.

6. O papel do ressuscitado no cosmo

Cristo o primognito de toda criao (Cl 1,15) e primcia dos que morreram.
Na histria, Ele assumiu a realidade admica. Pela encarnao evidenciou sua
primogenitura: foi gerado antes de toda criao. Pela ressurreio, foi constitudo em
dignidade primeira sobre os mortos. Por um ou pelo outro vis, Ele nosso irmo.
Ado! Mesmo que se diga e creia que o Primeiro Ado, aquele que veio depois era
originalmente o novo, o primeiro. Ele, sendo de condio divina, no se apegou
ciosamente aos seus privilgios. Mas humilhando-se assumiu nossa histria limitada.
Fez-se carne e viveu como os irmos. Sua ressurreio, particularmente, revelou a
primogenitura universal: isto , dentre todos o mais digno, o mais eminente e o que
pode se apresentar como imagem visvel total de Deus criador. E Ele tambm o que
primeiro atingiu a plenitude da criao e tornou-se homem perfeito, acabado.
Como homem assemelhado a Deus, o glorifica como unignito e como irmo de
muitos irmos. Ele nos precedeu na ordem da inteno e na ordem da glorificao. Foi
exemplar no fazer a vontade do Pai. Deu a Deus o que era de Deus. Apresentou-se a
Deus como oferta de suave odor. Nele, fez de todos os seres humanos seus irmos e
seus co- herdeiros.
Na fora do seu Esprito tornou toda a humanidade um novo ser, uma nova
criatura. Assumiu em si a condio humana toda e ir recapitul-la toda na
consumao. Enquanto isso, quis que fosse constituda como Igreja a nova comunidade
fraternal que se constitui sob seu nome. Nela, Ele quer que todos se tratem como irmos
e irms, imitando-o em seu amor: ningum tem amor maior do que aquele que d a
vida pelos seus amigos (Jo 15,13). Ele - que procurou o batismo de Joo, que
frequentou as sinagogas e o Templo, que andou pelos caminhos e mares da Galileia, que
esteve com os samaritanos, que ceava com os amigos, que foi crucificado em Jerusalm
- Ele mesmo, agora ressuscitado pelo Pai, foi constitudo Senhor e Juiz de seus irmos e
irms.

E sem dvida, tendo presente tambm sua cruz, ser o bom samaritano de todos
diante da majestade de Deus. Esse Jesus nos revelou o Pai e deu a conhecer a altssima
vocao do ser humano (= ser filho de Deus). Ele, homem perfeito, por sua morte
livremente assumida, mereceu-nos o perdo dos pecados, reconciliando-nos com Deus e
restituiu-nos o que em ns estava dividido pela dramtica luta entre o bem e o mal, entre
luz e trevas.
Esse Jesus, to fiel a Deus, mostrou a fidelidade humana ao Pai, em nome de
toda a criatura. Mostrou a toda criatura a fidelidade de Deus, dando a vida por ns. E
este Jesus o homem perfeito, assim manifesto pela ressurreio. Por ela, foi-nos
revelado quem somos e revelada nossa vocao csmica: viver em Deus.
pela ressurreio do crucificado, como se afirmou anteriormente, que a criao
atinge seu ponto final. Pela ressurreio de Jesus est aberto o caminho para todo ser
humano tambm ser ressuscitado, ou, por outras palavras, ser salvo, ver a Deus, estar
em Deus. Isto tem um significado ainda maior: a ressurreio de Jesus uma recriao,
uma i-nova-o criacional de Deus sobre o homem admico transformando- o em
homem pneumatizado, cristificado, ou seja, humano em plenitude consumada. Nesta
ao radical (arch) de Deus est prevista a ressurreio de todos os irmos e irms de
Jesus, a quem o Pai desde toda a eternidade quer salvar.

Isto vale no somente para os cristos, mas para todos os


homens de boa vontade, em cujos coraes opera de modo
invisvel. Com efeito, Cristo tendo morrido por todos (e
ressuscitado como primcias - acrscimo meu) e sendo uma soa
vocao ltima do ser humano, isto divina, devemos admitir
que o Esprito Santo oferece a todos a possibilidade, em certo
modo s conhecido por Deus, de se associarem a este mistrio
pascal (GS 22).

A ressurreio de Jesus j a garantia da nossa ressurreio. Mas bem mais que


isto: uma garantia escatolgica j introduzida na histria. Ns sabemos para onde
caminhamos. Os mais de seis bilhes de homens que vivem hoje, somados aos milhares
do passado e agregados aos bilhes que ho de vir, caminham todos para a consumao
ou plenitude de tudo. Jesus ressuscitado sinaliza esta consumao na e para a glria de
Deus. Nele est escatologicamente realizado o futuro do ser humano e do universo.

Mas, isto ainda no tudo! Ele no apenas o antecipado escatologicamente.


Tudo ser realizado por Ele. O Primognito dos que morreram e ressuscitaram ser a
nica possibilidade de todos ressuscitarem, universalmente. nele e por Ele que o Pai
quer levar, plenitude da vida, seus filhos e filhas, nascidos no tempo.
O ressuscitado, neste sentido, tem a misso precpua de ser o consumador da
criao. Este papel csmico teve incio antes da criao: ele foi constitudo salvador do
que se haveria de criar. Ele seria a porta, o caminho, a luz, por onde a obra criada
passaria para sua finalizao. Tudo foi criado para Ele; em funo do seu papel no plano
salvfico de Deus. Ele, o ressuscitado, direita do Pai, para onde se dirige tudo:

A nossa cidade est no cu, de onde esperamos ansiosamente


como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurar o nosso
corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso pela
fora que lhe d poder de submeter a si todas as coisas (F1 3,2021).

A inovao, decorrente da ressurreio de Jesus enquanto homem, indica a


transfigurao escatolgica, a glorificao da carne admica em nova e definitiva
criao. A resplandecer a imagem de Deus na carne ressuscitada, porque ser igual a
de Jesus. Isto vivemos em promessa e garantia, por causa de Cristo. Mas tambm
vivemos, pela f, este processo desde j orientado e atrado por Cristo. Jesus age na
histria da salvao - no na do desenvolvimento tcnico, cientfico, que de
competncia humano-histrica - para encaminhar o processo de consumao. S pela
plenificao de tudo em Cristo que se poder mostrar a riqueza oculta, hoje, nesta
ao de Jesus.
Jesus o Verbo, e o Verbo era Deus desde o incio dos tempos. O Verbo, porm,
habitou entre ns, fazendo-se um de ns em tudo.
Se por um lado Deus a modo humano, presente entre ns, por outro lado,
porque perfeito em igualdade com o Pai. Mas h aqui um terceiro aspecto: de ponte
(pontfice). Na manifestao da imagem divina no humano Jesus e na igualdade
(imagem) de Jesus diante do Pai, est o ser humano para quem o Pai e o Filho se
mostram como originais, como ponte. Neste sinal, o Pai vendo seu Filho, sua imagem
visibilizada para os homens, v-se tambm a si mesmo como relao. Ao ver o Filho, o

Pai v aqueles todos de quem Ele (Jesus) se fez irmo. E na carne ressuscitada do Filho
est irmanada toda carne ressuscitada, que o Pai ver.
O Filho Salvador ento leva contnua e permanentemente, para o corao da
Trindade, toda carne que vai ressuscitando - e isto at o fim dos tempos. Como j dizia
Santo Atansio: a integrao, a renovao do homem em Deus, por Cristo, consiste em
ser vivificado pelo Esprito. Marcados pelo selo do Esprito nos tornamos partcipes da
natureza divina, juntamente com toda a criao que participa do Verbo encarnado, no
Esprito Santo (Ep. Ad. Ser. III, 3).
A ao csmica de Cristo j atuao histrica, por meio do seu Esprito.
Sabemos que sua completude se dar quando o Verbo humanado apresentar-se ao Pai
para entregar-lhe tudo e todos. Este ato final - conhecido como parusia - ser a
transformao salvfica, onde Deus criar o novo cu e a nova terra (Ap 20,22) como
Reino eterno e universal, reino de verdade e vida, reino de santidade e graa, reino de
justia, de amor e de paz (prefcio da festa de Cristo Rei). A comear o banquete sem
fim, onde o Noivo, o Cordeiro, receber toda a honra, toda a glria. A o Pai ser tudo
em todos, e comea a festa sem fim. A se compreender, em toda a sua extenso, a
afirmao: Deus amor (1Jo 4,16). Pois Deus far tudo e todos participarem de sua
vida.
Hans Urs von Baltazar resumiu toda a magnalia final de Deus assim: Deus a
Coisa Derradeira da criatura. Como ganho, Ele o cu; como perdido, o inferno;
como examinador, o juiz; como purificador, purgatrio. Ele aquele no qual o finito
morre e pelo qual ressuscita para Ele e nele. Ele, porm, o na maneira como se voltou
para o mundo, a saber, em seu Filho Jesus Cristo, que a revelao de Deus e, desse
modo, o resumo das Coisas Derradeiras. 62

62

Cit. por Franz-Josef Nocke. In: SCHNEIDER, T. Manual de dogmtica, vol. II, p. 424.

Captulo 9

De como antecipamos o futuro

Somos mais de seis bilhes de pessoas no jardim dos homens, no mundo de


hoje, que caminhamos para o jardim de Deus. Todavia, ignoramos todos por quanto
tempo iremos caminhar. Ningum sabe quando tudo acabar. certo que no podemos
adotar critrios alarmistas de fim do mundo. Eles de vez em quando esto por a. Como
cristos, no isto que nos interessa. Nossa preocupao outra. Ns nos ocupamos
com o conceito e critrios da consumao da terra e da humanidade. Inclusive,
desconhecemos como se dar esta transformao. Cremos que, sem depender das
naturais transformaes csmicas, passaro os cus, terras e homens que hoje vivem.
Deus prepara um novo futuro para tudo e todos. A sero satisfeitos todos os anseios
humanos (cf. GS 39). Temos esta certeza! S Deus prepara o nosso futuro. Assim todos
atingiro o futuro, a plenitude. Tudo ser consumado em Cristo ressuscitado, imagem
visvel de Deus. Por meio dele, a humanidade poder ver a prpria face divina e
permanecer para sempre com Deus.

1. Cristos para atuar no mundo


Contudo, como adverte a GS,

a esperana de uma nova terra, longe de atenuai', antes deve


impulsionar a solicitude pelo aperfeioamento desta terra. Nela
cresce o corpo da nova famlia humana, que j pode apresentar
algum esboo do novo sculo. Por isso, ainda que o progresso
terreno deva ser cuidadosamente distinguido do aumento do
Reino de Cristo, contudo de grande interesse para o Reino de
Deus, na medida em que pode contribuir para organizar a
sociedade humana (39b).

Os cristos vivem imersos no mundo que os rodeia da mesma forma que todos
os outros homens e mulheres. Porque aderem f, dada como um dom por Deus, eles
esto em meio aos outros de uma forma peculiar. Detm o conhecimento do plano
salvfico de Deus. Sentem-se convocados a dar sua contribuio social, cultural,
poltica, econmica e religiosa, nesta histria compreendendo-a como a histria de sua
salvao. Sem dvida a diversidade dos quase trinta e quatro mil grupos cristos
oportuniza contribuies diferentes e, muitas vezes, heterogneas dentro de seus
prprios grupos.
Os cristos tm, como fonte comum e testemunha da inspirao de sua f e de
seus atos, Jesus Cristo. E, desde a Bblia, interpretam o significado de Deus, de Jesus
Cristo e de sua prpria presena no mundo. Tais interpretaes tambm so to
variveis, que quase parece pertencerem eles a grupos diferentes. Assim o so tambm
as aes que decorrem da f, no campo social, poltico, cultural, tico, etc. Certa
diversidade tanto pode ser uma riqueza pluriforme quanto atestar uma (in)diferena
incomum. E certo, todavia, que todos se inspiram na Bblia. Seus comportamentos so
marcados a partir dos textos (quase) comuns do Novo Testamento. Valores evanglicos
geram, em sentido amplo, a identidade crist. Todos podem ouvir a vontade expressa
por Paulo Apstolo:

que chegueis a conhecer plenamente a vontade de Deus com


toda a sabedoria e com o discernimento da luz do Esprito. Pois
deveis levar uma vida digna do Senhor para lhe serdes
agradveis em tudo. Deveis produzir frutos em toda boa obra e
crescer no conhecimento de Deus, animados com muita fora,
pelo poder de sua glria, de sua pacincia e constncia, com
alegria (Cl l,9b-l 1).

Pelo batismo, os cristos se tornam novas criaturas. Por isto se esforam para
ser sal, fermento e luz em meio a todos os outros homens e mulheres como discpulos
do Senhor. Ao mesmo tempo so testemunhas do que creem. E se tornam coconstrutores do mundo de Deus. Esto no mundo sem serem do mundo. So uma
presena sacramental (fundada no batismo). Agem em nome de Cristo, diante do qual
devem dobrar-se todos os joelhos.
Nas mais diversas situaes histricas (familiares, profissionais etc.) se esforam
como irmos entre si e entre os outros, para a glria de Deus. Testemunham o grande

amor com que Deus ama a todos e quer salvar a todos. Sentem-se herdeiros de Deus. E
sabem que a herana divina comum a toda a humanidade.
Conhecem as orientaes de Cristo, especialmente as bem-aventuranas, a
parbola do juzo final. Reconhecem a centralidade dos mandamentos: amar a Deus de
todo o corao e ao prximo como a si mesmo. Incluem aqui um particular amor aos
inimigos. O amor o que caracteriza e tipifica o cristianismo. Realizam seus cultos e
sacrifcios. Mas sabem que depois do sacrifcio de Cristo - sacerdote e vtima nica - o
culto e sacrifcio verdadeiros so os do corao, no dos ritos. Tm seus templos e
espaos sagrados. Porm eles mesmos sabem que so o templo vivo de Deus.
Repartem o po entre si. Mas sabem que quem disser amar a Deus, esquecendo de seu
irmo, mentiroso (cf. 1Jo 4,20). Escutam a Palavra de Deus para p-la em prtica...
Assim so os cristos.
deste modo que progressivamente eles tm como prioridade o ser humano, ao
invs das coisas. No as desprezam, porm. Mas nem delas e nem de alguns dos seus
fazem dolos ou objetos de adorao. A presena de Deus percebida, sobretudo diante
dos pobres, excludos e pequeninos. A presena crist dos seguidores de Jesus, sem
exclusivismos ou hegemonias, um servio prestado ao desenvolvimento da nica
famlia de Deus. Esta famlia composta de tantos povos, naes, tribos e grupos. Em
cada uma delas, os cristos ho de ver a imagem do prprio Deus. Por encontrarem
Deus em cada pessoa, eles encontram como irmos e companheiros de caminhada para
Deus todos os homens e mulheres da histria.

2. A luta dialtica dos cristos

O erro. Desde a histria factual, porm e por diversas vezes, os cristos


chegaram a opor-se uns contra outros, isto tanto como pessoa quanto como grupos em
perspectivas nacionalistas, regionais ou econmicas. Eles deveriam ser testemunhas
sacramentais da Trindade Divina, mas tornaram-se fonte de dio, divises e pecado.
Romperam a vontade de Deus de fazer de todos um s povo.
Tambm, por meio dos cristos, o mal cresceu sobre a face da terra. Tornam,
deste modo, incertas a paz e a integridade tanto do corao humano quando da prpria

natureza. O mistrio da iniquidade, que vem desde as origens e se arvora nas estruturas,
deveria ser extirpado pela vontade de Deus. Pela fraqueza dos cristos, parece, contudo,
que o mal se perpetua. E, ento, que Deus se torna o crtico dos cristos. Nem sempre
eles atuaram como agentes permanentes da graa e da reconciliao. Deus se torna
crtico dos grupos cristos e dos cristos individualmente, medida que eles se tornam
usufruidores dos bens comuns e no servos capazes de lavar os ps comuns.
A vocao escatolgica e transcendente do cristianismo e dos cristos nem
sempre tm coincidido na histria. Muitos deixam, por vezes, interesses e preocupaes
falarem mais alto. Chegam at privatizar sua f - que por essncia comunitria.
O acerto. Mas, a luta dos cristos - seja como for e para alm de seus erros -
portadora de um sentido latente, mais profundo e ltimo da realidade que vivemos.
por isto tambm que eles - apesar de tudo - continuam perseverantes na busca de sinais
precursores de Deus, e de seu Cristo, como setas indicativas de uma evoluo crstica
(consciente ou no). Esto certos da bondade fundamental da vida. Esto certos das
possibilidades da superao das misrias e excluses.
Desde a paixo e a morte de Jesus, so capazes de lembrarem a ressurreio dele
como fundamento da f. E, portanto, no desanimam. Lutam para mudar o significado
da no-vida dos vencidos e humilhados, dos famintos e despossudos. Esto certos de
que o Consumador de todas as coisas se pe ao lado deles, qual Cireneu ou bom
samaritano para sanar, ainda na histria, as feridas humanas. So milhares os cristos
que todos os dias assumem solidariamente as dores dos irmos (cf. Mt 25,38ss).
Querem tornar o mundo mais fraterno e mais humano. por isto que todos os grupos,
olhando para o Crucificado/Ressuscitado, so capazes de indicar e reverenciar, entre os
seus, aqueles que mais se assemelha(ra)m a Cristo. Ele se torna fonte de inspirao e
imitao para eles.
Os cristos so uns dois bilhes. Vivem, sobretudo, no Ocidente branco. E
encontram como companheiros milhares de outros homens e mulheres, religiosos ou
no, no Ocidente ou no Oriente. Esses outros tambm buscam a construo de uma
sociedade melhor, mais justa e mais fraterna. So milhares os homens e mulheres que
no conhecem de modo explcito a Cristo. Mas, so tambm eles capazes de viver e
buscar compaixo, misericrdia, bondade, justia, fraternidade, respeito dignidade e
liberdade. Valores que os abrem transcendncia que Deus lhes dotou. So os mesmos
valores que os cristos vivem sob o amoroso poder de Deus. Deus quer que todos os

homens e mulheres da Terra sejam seus filhos e filhas, por isto os elegeu desde toda
eternidade em Cristo (cf. Ef l,3s).
Homens e mulheres por toda parte, ao lado ou no dos cristos, so capazes de
repartir o po. De vestir os nus. De visitar os doentes e presos. De praticar a justia e a
piedade. Eles tambm ajudam a construir, j na terra, um mundo cristificado. Talvez
suas organizaes, religiosas ou no, e eles prprios, em sua religiosidade ou no,
compreendem que Deus continua se revelando de muitas formas pelos profetas, pelos
sbios, pelos santos, pelas pessoas de bem, e, tambm, pelos miserveis e excludos.
Os cristos creem que eles havero de se encontrar com Cristo que os convidar
a entrar, como benditos, no Reino que o Pai lhes prepara. Aqui tambm importante
lembrar: prostitutas e ladres podem preceder a muitos justos de quaisquer grupos
cristos ou religiosos. Quem sabe o Reino de Deus se tornar fonte de escndalo para
muitos que dizem Santo, Santo, Santo... L podem estar os condenados da terra,
mas os poderosos, se que para eles h algum lugar, onde estaro?
Todavia, aqui convm calar, pois este julgamento pertence a Deus e no aos
pobres mortais...!
Deus quer salvar a todos. Por isto, os criou e os elegeu em Cristo. Deste modo,
Deus no obrigado a perguntar a ningum: por acaso no posso fazer o que eu quero
com o que meu? (Mt 20,16).

3. Os cristos no mundo em crescimento para


Deus

O universo todo cresce para Deus. O crescimento do mundo, com seu


desenvolvimento, cincia e tecnologia, no necessariamente um crescimento como
processo de salvao operado por Deus. Tambm no um necessrio crescimento em
funo das mais humanas aspiraes. Os cristos se envolvem com o crescimento do
mundo, durante suas histrias pessoais. Os valores, porm, que eles mais procuram so
os da humanizao de todas as relaes, mediante o amor e o servio. Isto para eles se
constitui em critrio definitivo de realizao na histria e preparao para o encontro
com Deus.

assim que os cristos se encontram envolvidos no mundo. Em todo e qualquer


setor da atividade humana, eles se envolvem profundamente para que tudo se torne mais
humano. H quem acuse a humanidade de no ter se desenvolvido mais em suas
prprias relaes desde que a tecnologia nos vem dominando. Helmut Thielicke diz que
humanamente ns no estamos altura de nossa capacidade tcnica. Diante da
tecnologia e da cincia, nossa constituio humana tem uma existncia lastimosa.
Enquanto a cincia e o progresso criaram uma escatologia intra-histrica, parece que
cresce a angstia vital - a angstia do ser humano frente a si mesmo e a suas
possibilidades.63
A resposta crist da humanizao se traduz na expresso das virtudes teologais
de f, de esperana, de caridade e de outras virtudes, como justia, sabedoria,
fraternidade, misericrdia, compaixo. S o amor capaz de romper o crculo
horizontalista do voluntarismo, do cientificismo e do tecnicismo. S a esperana capaz
de renovar as relaes de dominao, servido. S a f cria possibilidades reais de fazer
deste um mundo possvel para todos. A humanizao do mundo, com fome, precisa do
amor humano, que gera po e misericrdia. Isto antes mesmo do amor cristo. Caso
contrrio, pode desenvolver-se e crescer - por causa da ganncia de uns poucos - o
nmero de famintos no mundo, a angstia vital e a existncia lastimosa.
O desenvolvimento cientfico e tecnolgico tem, na sua ambiguidade, a
possibilidade de dividir crescentemente as pessoas. Umas so as que tm acesso e so
beneficiadas por ele. Outras as que no usufruem do progresso geral. Tal diviso no
tem justificativa humana.
Frente a isto, os cristos podem e devem ser uma conscincia crtica. Priorizam a
real dignidade de cada irmo/irm. Frente constante violao dos direitos humanos, h
grupos de todas as espcies para denunciar a insegurana comum. Os agressores podem
progressivamente atingir a todos. Diante disto, os cristos tm a misso de defenderem
aqueles que esto sendo diminudos. Os que vo perdendo o prprio sentido da vida. Os
cristos no se renem primeiramente para dar sentido a um novo discurso, uma nova
teoria, um novo conhecimento. A misso permanente deles dignificar a vida, em nome
e em lugar de Deus, a exemplo de Jesus Cristo.
A nsia pela emancipao do mundo-adulto, pela autossuficincia, vem se
tornando um ensejo individualista, segregador. Atravs de leis contra estrangeiros (em
geral pobres e em busca de trabalho), da construo de novos muros (parece que a
63

THIELICKE, Helmut. Esencia dei hombre... especialmente o cap. 7: El hombre e la tcnica.

humanidade no aprende as lies!), os cristos podem oferecer rostos de irmos.


Podem evidenciar todas as conquistas como um grande patrimnio para toda a famlia
humana. Diante das buscas de identidade, de liberdade, do culto ao econmico e ao
corpo, os cristos apresentam a fraternal simplicidade. Esta atitude capaz de reunir
mesa comum homens e mulheres que buscam integridade prpria, a dos outros e a da
natureza.
Contra o sonho da imortalidade histrica e da eliminao da igualdade, os
cristos,

neste

mundo

dividido,

indicam

caminho

fundado

pelo

Crucificado/Ressuscitado. O caminho de Jesus garantia e certeza de que a vida eterna


o futuro comum de todos os seres humanos. Mas, a justia e a fraternidade devem ser
experimentadas aqui, agora, fazendo de povos divididos um s povo, o Povo de Deus.
Os cristos mantm frente s questes de sua origem, de sua identidade e de seu
futuro horizontes histrico-escatolgicos. Estes so uma certeza inamovvel dada apenas
por Deus - aquele que, na histria, sempre foi fiel no cumprimento de suas promessas.
Porm, a certeza explode na fidelidade de Jesus Cristo - o que amou o Pai e os irmos
at o extremo da morte. Ele foi ressuscitado para ser o incio dos tempos novos, do
mundo novo. A ressurreio uma realidade que o Pai inovou na carne humana de seu
Filho, aproveitando toda a matria csmica e introduzindo-a pneumatificada no seio da
Trindade.
Diante disto, os cristos - em momentos diversos da histria - usa(ra)m
enunciados diversos para manter a f. Esto certos de que o mundo, a histria e a
humanidade so conduzidos por Deus. Tudo parte de um projeto salvfico feito antes da
criao do mundo, sabem que este projeto ser levado a termo pelo prprio Deus, em
Cristo. Tudo quanto vivido na histria dos homens e do cosmos - sejam as doenas, as
angstias, as fraquezas, bem como as conquistas, as alegrias e as esperanas - pertence a
este misterioso projeto divino. A transformao de tudo culminar no Corpo de Cristo, o
ressuscitado e consumador da histria. E Ele quem vir reunir as coisas que esto nos
cus e as coisas que esto na terra (Ef 1,10). Pois Ele o alfa e o mega, o primeiro e o
ltimo, o comeo e o fim (Ap 22,13).
Deus conta, na dinmica do projeto divino, com a participao de seus filhos e
filhas. Quer criar condies de justia e participao, de fraternidade e misericrdia, de
paz e acolhimento, de reconciliao e converso entre todos os homens e mulheres da
Terra. Tudo quanto os filhos de Deus puderem antecipar do Reino de Deus, atravs de
seu Cristo, se transformar em ao humano-divina. Jesus Cristo tambm participa desta

ao. Tambm ele quer a libertao integral dos homens, especialmente a dos pobres e
excludos. A salvao de Deus vai acontecendo, de modo antecipado, medida que
forem superadas e ultrapassadas todas as situaes de morte. Neste sentido, Jesus foi
mestre ao recuperar famintos, doentes, explorados, excludos, oprimidos, desanimados e
at mortos. Ele no apenas produziu libertao e vida nas situaes de morte. Insistiu
que seus discpulos o seguissem, fazendo como ele fazia. Afinal, os discpulos podero
fazer coisas maiores que o mestre, como ele afirmou.

4. A histria como educadora para Deus

De forma misteriosa, Deus usa a colaborao humana. Por ela, Ele quer
presencializar e potencializar seu Reino na nossa histria. E Ele realiza seu gesto
salvfico sem necessitar ou estar condicionado ao humana. Seu gesto pura
gratuidade e iniciativa divina. Todavia, Ele pode e quer contar com o empenho humano.
Ao agir, como Jesus agiu na implantao do Reino, os homens e mulheres de
todos os tempos - includos os que no o conhecem explicitamente - tornam-se parceiros
de Deus. Eles se tornam companheiros uns dos outros e de Jesus, na histria, como
aprendizes, como educandos, que se preparam para o grande e definitivo encontro
parusaco. Antes, porm, eles se encontram construindo esta histria. Mesmo que seja
Deus quem venha dar a ela o acabamento conforme seu plano.
O carter dialtico dos valores e antivalores da histria evidencia as foras que
Deus busca progressiva e processualmente, educando homens e mulheres. Eles vivem
em experincias de libertao localizadas ou estruturais. E iro se acostumando para
poder viver no reino de plenitude que Deus prometeu. Nele, o prprio Deus ser a razo
de ser, porque Ele amor. No grande encontro final, tudo culminar como entrega que o
Verbo Crucificado/Ressuscitado far dos seus ao Pai.
Os homens e as mulheres se educam e experimentam a histria de Deus em sua
histria horizontal. E o fazem atravs de gestos libertrios e libertadores, de amor e
solidariedade, de justia e fraternidade. Isto os torna capazes - pela ao do Esprito - de
poder ver a Deus.

a transcendncia dos fatos libertrios e libertadores nas dimenses histricosociais que se tornam significativas para a converso ao Reino j prximo (cf. Lc 1,15).
Por isto nada, ningum e nenhuma instituio da histria so suficientes, por si s, como
indicaes do Reino. No o foram no passado e no o sero no futuro. S o prprio
Jesus a exceo porque Ele mesmo presencializou o Reino em sua pessoa. Podem os
homens idolatrar sua poltica, seus poderes, seu dinheiro, sua religio, seus semelhantes
etc. Porm nada sinal certo para aquilo que Deus quer contar no novo cu e na nova
terra - onde no mais haver gemido, choro ou dor (Ap 21,4).
Afirmar isto, contudo, no justifica nenhuma alienao nem descompromisso
com a histria. A realidade , para o ser humano, o nico laboratrio possvel e querido
por Deus. nela que a humanidade se prepara na f - na esperana e na caridade - para
viver o que Deus ir nos conceder. A histria a escola de Deus para que o homem, na
fora do Esprito, se eduque para poder v-lo. A histria o lugar radical onde o ser
humano vai cada dia se assemelhando mais a Cristo, a imagem visvel do Deus
invisvel, pela fora do Esprito Santo.
Por isto, o ser humano no pode ser seno co-criador com Deus. Na histria, ele
vai se capacitando, tambm por amor, ao criar das coisas existentes outras coisas que a
seus olhos parecero novas. Provavelmente aos olhos de Deus elas eram instrumentais
oportunos para o crescimento e responsabilidade de todos para com todos. Pondo
exemplos: as dimenses ldicas das vidas manipuladas em laboratrios, a
internacionalizao de instituies culturais e laborais, o trabalho das ONGs, as buscas
espaciais, o trabalho cotidiano e as alegrias dirias no lar da famlia, a misericrdia e a
compaixo das grandes e pequenas religies, a superao de fronteiras polticas e
econmicas, a construo da paz, a pesquisa e cura de doenas, os gestos pequenos e
grandes de solidariedade e defesa do ecossistema, etc. Tudo isto pertence escola da
vida. Deus prepara, hoje, o futuro de seus companheiros.
A histria o laboratrio onde o ser humano - de todas as vilas e povoados, de
todos os sertes e cidades - vai aprendendo a viver como irmo universal. Nela descobre
a igual dignidade de todos. Ela o tempo do amadurecimento de cada etapa da vida
pessoal e social. onde cada um e todos aprendem as relaes que os fazem
amadurecer. Ento, a criana se tornar madura como criana. O jovem como jovem. O
adulto como adulto. E o que pode chegar velhice viver a sabedoria. E com a
maturidade prpria de seu estgio (idade) vivido que algum ir comparecer diante de
Deus, para viver com ele para sempre.

A histria , pois, o laboratrio de Deus para o ser humano. A imitao de Deus,


ele organiza uma harmonia justa da sociedade contra todo o caos e morte. As utopias do
ser humano so experincias e aprendizagem que o capacitam a viver no Reino de Deus.
Na sua histria, Jesus cresceu em idade, sabedoria e graa (cf. Lc 2,52).
Aprendeu tambm e tornou-se Mestre. Foi a partir de seu aprendizado diante de Deus e
dos homens que, por suas atitudes, salvava curando os cegos. Salvava libertando os
cativos, purificando os leprosos, proclamando o ano da graa. A escola do leigo Jesus,
na histria e frente histria, fonte de aprendizagem laboratorial para todos os que
querem segui-lo. Ela tambm o lugar de todas as religies e dos quase quarenta mil
grupos cristos aprenderem que s Deus Deus. Nela se aprende que os verdadeiros
adoradores adoram a Deus em esprito e verdade no mais em Jerusalm ou Garizin (cf.
Jo 4,21). Nela se aprende que os mestres da Lei podem pr pesados fardos nos ombros
dos fiis sem moverem um dedo sequer (cf. Mt 23,4). Ou que tenham transformado o
templo num covil de ladres (cf. Jo 21,13) ou que so malditos os injustiadores. O
ensino de Jesus diferente e se torna indispensvel, neste caso, o amor ao prximo,
incluindo o amor aos inimigos.
na histria que homens e mulheres aprendem a discernir os sinais dos tempos
e a presena de Deus. Nela se capacitam para viver com o Deus supremo e majestoso
que paira acima dos cus, mas se faz pequeno e visvel como um irmo a servio dos
irmos. Nela, milhares de homens e mulheres - at atravs de seus grupos religiosos aprendem a fazer o bem graciosa e gratuitamente. E o fazem no amor e s por amor mesmo ignorando que Deus amor.
A histria foi a escola de Ado e Eva, de No - na sua simblica. Mas, a escola
real onde cresceram na f Abrao, Moiss, Davi, Jos e sua esposa Maria, o prprio
Jesus e cada Joo, Antnio, Lurdes e Tais que vivem hoje porque Deus os chamou
existncia.

5. Agora, o louvor

Diante de tudo isto que resta a dizer seno louvar a glria de Deus? Como no
bendiz-lo por palavras e atitudes ex corde? Cada Joo, Marli, Silvio, Tereza foi

chamado a participar da vida. muito melhor viver que no viver. E se eles foram
chamados a viver, no sentido de poderem alcanar a vida plena (cf. Jo 10,10). Vida
que s ser completa ao verem e conviverem com o prprio dador da vida - vida
completa porque homens e mulheres tornar-se-o semelhantes a Deus, vendo-o face a
face como amigo.
Passam os homens e as mulheres na histria. Uns encerram nela seu caminhar
aos trs anos. Outros, aos vinte. Outros ainda aos oitenta ou aos noventa anos. Cada um
completa este ciclo da nica vida num momento s sabido por Deus. E ele chamar seus
filhos e filhas naquele momento de amor, esperando receb-los na maturidade daquela
idade. Eles levaro como nica bagagem o aprendizado que os tornou mais humanos e
mais capazes de amar. Mesmo que tenham sido presidentes, advogados, mdicos,
donas-de-casa, faxineiras, professoras, trabalhadores braais ou de escritrios, reis ou
papas. Tambm os nascituros que no completaram sua entrada na histria social,
pessoas com deficincias, de raas diferentes, de religies diferentes, sero recebidos, a
seu tempo, pelo Pai. Ele lhes deu oportunidades prprias de se educarem para o amor.
Tudo quanto aqui vem sendo valorizado - seja em contas bancrias, posses,
ttulos, status, etc. - ou tenha sido precrio na histria, como a fome, a misria, a dor, o
desemprego, a angstia etc. - seja em sade, dignidade, direitos, trabalho, cultura perder sua fora porque Deus transforma isto em nudez e s sobrar ou a
vergonha/dio ou o amor (cf. Gn). Na verdade tudo passa. S no passa o amor (cf.
2Cor 13,13). E pelo amor de Deus, o amor humano ser subsumido no prprio Deus,
pois Ele amor.
por isto que o viver na histria torna-se um aprendizado para a eternidade. E
por isto que a salvao de Deus atingir todos os homens e mulheres de todos os
lugares, de todos os tempos, de todas as fs, de todas as culturas. O amor divino
universaliza a salvao. Ao mesmo tempo, cada homem ou mulher ser personalizado.
Cada um ser, na verdade, diante de Deus, este Pedro, esta Marlene, este Yan, esta Jlia,
que se tornam irmos e irms deste Jesus, o Filho nico do Pai.
O amor o critrio para a educao e o crescimento na histria. A histria , na
verdade, o laboratrio, a escola, onde todos nos preparamos para viver na e da glria de
Deus, que todo e s amor.
o amor que por amor criou o universo desde sua origem na poeira csmica.
Por amor, Ele, Deus, acompanhou os milhares anos-luz at surgirem as grandes galxias
siderais, os planetas todos e nossa Terra. Por amor, Ele acompanhou a passagem da

matria para a vida primeira. Foi por amor que Ele acompanhou a complexifio dos
grandes mamferos. E eles se transformaram nos primatas. Foi por amor e especial
interveno que Deus fez surgir a espcie humana, em continuidade da natureza
csmica somada ao seu sopro especial (ruah). Inclusive foi por amor que acompanhou o
surgimento de seu Filho Jesus, no seio daquela Maria, esposa de Jos, da descendncia
davdica, que era descendncia de Abrao - o pai de uma multido incontvel. por
amor que continua acompanhando o surgimento pessoal de cada Elisa, Carlos, Ana ou
Fabrcio.
por amor que, nele, subsistem todas as coisas. E todas elas se encaminham
para a grande consumao, atingindo a plenitude pessoal e social. por amor que o ser
humano ser definitivamente a glria de Deus. E poder v-lo face a face. Isto :
participar do seu amor.
Diante de to grande amor como no se extasiar? Como no ficar estupefato
diante de toda a obra criada e mantida em milhares e milhares de sculos? Como no se
admirar diante do ser humano que Deus quis como portador de sua imagem, para que
um dia fosse sua semelhana tambm? Mas, sobretudo, como no se desdobrar em
louvores e ao de graas por Deus ter oportunizado a seu Filho tornar-se admico em
nossa carne, como nosso irmo? Mas, mais ainda; como no magnificar Deus-amor, que
reconheceu seu Filho pregado na cruz e o ressuscitou? No foi o Pai que lhe devolveu a
glria que ele tinha desde antes da criao do mundo? J no era ele, desde ento, o
Salvador que levaria tudo e todos consumao como obra divina? Como no glorificar
o Pai de Nosso Senhor Jesus que, nele e por ele, se tornou nosso Pai?
ento que brota, espontnea e naturalmente, o salmo 8 feito cano:

Senhor, meu Deus, quando eu maravilhado,


Fico a pensar nas obras de tuas mos...
Ento minha alma canta a ti, Senhor:
Quo grande s tu! Quo grande s tu!

da que decorre o desejo imenso expresso no Salmo 41 (42) transformado em


canto:

A minha alma tem sede de Deus.


Do Deus vivo, anseio sem par.
Quando irei ao encontro de Deus?
E verei tua face, Senhor?

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SOBRE O AUTOR

Hlcion Ribeiro licenciado em Pedagogia e


Filosofia, mestre e doutor em Teologia e ps-doutor
em Antropologia Teolgica. Professor de Teologia
Sistemtica na PUC do Paran e proco na Parquia
Sagrados Coraes de Jesus e Maria (Curitiba), o
autor d cursos e palestras em instituies de ensino
e eclesisticas, possuindo diversos artigos e livros
publicados, entre eles destacamos: A condio
humana e a solidariedade crist.

CONTRA CAPA

Milhares de mulheres e homens de f, herdeiros de grandes tradies religiosas,


tm certeza da inquestionabilidade de sua f, mas sentem-se, agora, atingidos pelos
conhecimentos cientficos e por cientistas que, enfatizando outras respostas, parecem
querer negar suas crenas.
O grande objetivo deste livro sair da questo da dialtica cincia x f,
distinguindo-as sem op-las, respeitando seus limites e mostrando suas possibilidades,
pois, dessa forma, tanto cientistas quanto cristos s tero a ganhar e amadurecer.
Este estudo quer servir, sobretudo, aos estudantes de teologia, ao clero e aos
religiosos em geral, sendo, ainda, uma possibilidade de dilogo com homens e mulheres
das cincias e outros saberes.

EDITORA VOZES

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