Quem Somos de Onde Viemos para Onde Vamos - Helcion Ribeiro
Quem Somos de Onde Viemos para Onde Vamos - Helcion Ribeiro
Quem Somos de Onde Viemos para Onde Vamos - Helcion Ribeiro
DE ONDE VIEMOS?
PARA ONDE VAMOS?
ORELHA
Ribeiro, Hlcion
Quem somos? de onde viemos? para onde vamos? :
antropologia teolgica / Hlcion Ribeiro - Petrpolis, RJ :
Vozes, 2007.
ISBN 978-85-326-3519-1
1. Homem (Teologia crist) I. Ttulo.
07-3927
CDD-233
Apresentando
Entrevista concedida a Fred Melo Paiva, Antes de tudo, o nada. O Estado de S. Paulo, Caderno Alis, 17/09/06, Caderno Alis,
p. J4.
reconhecer
preocupao
objetiva,
concreta,
verificvel,
experimental prpria da cincia - que em sua autonomia (razo) - fixou, delimitou seu
campo investigativo. E errado (inadequado, imprprio) exigir da cincia uma inteno
que no lhe pertence. Por outro lado, fechar-se no mundo da cincia por ser um gesto
fundamentalista ou irracional.
Todos os cientistas sabem que, se a cincia explica racional
ou
experimentalmente tantas coisas que eram explicadas pelas religies, ela no explica
(e nem lhe compete explicar) tudo. Os grandes cientistas sabem que sua funo
explicar as regras que regem a realidade, os mecanismos e as consequncias das leis da
natureza etc., por exemplo: como surgiram o universo, a vida e o ser humano. E
diferente a questo sobre por que surgiram o universo, a vida e o ser humano - questo
mais pertinente s culturas e f.
As explicaes da f valem no pela lgica, mas exatamente pela f. E a f tem,
inegavelmente, sua racionalidade e sua razoabilidade, sem ser algo sobre o que se
decide: ou se cr ou no se cr. Crer implica uma racionalidade. O contedo da crena
tem sua razoabilidade. Mas, tanto um quanto o outro aspecto no so meramente
decises ou convenes humanas. A f no mera projeo humana, apesar de tambm
ser uma questo humana. Aqui vale - por ser de mo dupla - o axioma de Carl Sagan: a
ausncia de evidncia no a evidncia da ausncia.
A f tem uma racionalidade - apesar de que esta no nem o critrio essencial
nem exclusivo, pois isto a delimitaria ao exclusivo universo humano, horizontal. Mas
tambm ela no pura irracionalidade (falta de toda e qualquer razo). A arte e o amor,
por exemplo, no so puramente nem racionalidade nem irracionalidade, como tambm
no so meios elementos biolgicos, embora de que se possa cientificamente localizar
no crebro/mente reaes fsico-qumicas produtoras ou inibidoras de sentimentos deste
nvel. Do mesmo modo, a f um logos que se no explica tudo - como se ela fosse
uma enciclopdia de biologia, fsica, economia etc.-, suficiente para descobrir as
razes e o sentido da vida, um lugar seguro que descobre a irracionalidade de Deus,
que amor. No justo, no correto e nem cientfico invocar a Deus para preencher o
nosso conhecimento cientfico. Neste sentido, porm, os cientistas devem ainda, com
muito entusiasmo e pacincia, continuar suas pesquisas para descobrir mistrios ainda
mais profundos, revolucionrios e insuspeitos que esto na obra criada. Tambm no
justo nem racional eliminar Deus s porque, no cabendo nos parmetros cientficos,
no se conhece o significado das coisas e nem a possibilidade de tudo existir com uma
finalidade (teleologia) A surdez no confronto com Deus pode ser tambm uma falta de
racionalidade (logos), apesar de que a adeso acrtica a Deus pode levar ao
fundamentalismo. Deus no precisa ser a explicao de tudo, como tambm cincia
compete explicar - to-somente - o que lhe prprio.
Ao tangenciar as questes comuns, ficam evidenciadas as diferenas de
abordagens e de racionalidade de cada campo. Neste sentido bom lembrar que a
cincia e a f so convidadas a viver dois valores prprios diferenciados, onde a
presuno de um sobre o outro leva a um fundamentalismo irracional. Porm, a busca
comum da verdade pode aproximar os cristos dos cientistas e os cientistas dos cristos.
Sem dvida, um cientista pode ser tambm cristo e, vice-versa, um cristo pode ser
cientista; mas, seria inadequado um cientista cristo ou um cristo cientista, porque neste caso - estar-se-ia sincretizando posies de vida e profisses diversas, ou estar-seia ideologizando posies que (sem ser antagnicas) so bem distintas. Tal fuso s
criaria confuso, levando ao descrdito as duas verdades ou as duas competncias. O
cientista, enquanto tal, busca a verdade atravs de seus mtodos e regras, sem ser
incomodado por ter que respeitar verdades religiosas. Por outro lado, os cristos, por
outros caminhos, fazem sua experincia de f em Deus, sem os condicionamentos
apriorsticos, no caso, da cincia. Deus o mesmo para o mundo da f e para os
cientistas. Ele, porm, alimenta aqueles que creem e lhes abre a f e a esperana de
modo direto; por outras, ele oportuniza a busca e o encontro da verdade mesmo queles
que no creem nele ou que nada sabem sobre Ele sem uma imediata (ou mesmo remota)
preocupao religiosa. Esta afirmao, contudo, no significa dizer que tudo que o
cientista prope seja eticamente bom e justo para a humanidade, ou seja, indiferente
questo de Deus. Apenas se reconhece que o cientista, enquanto tal, no produz uma
cincia crist e o cristo no vive uma f cientfica.
Partindo das trs perguntas de onde viemos?, quem somos? e para onde
vamos?, este ensaio foi organizado em oito captulos. O primeiro captulo - A
situao humana e sua ambiguidade - tem como objetivo lembrar ao leitor que os mais
de 6 bilhes de seres humanos que vivem atualmente sobre o planeta tm uma histria
entre avanos e retrocessos culturais, em que deve valer o ser humano como um
indivduo de personalidade prpria que se identifica num eu. Na verdade, o ser
humano um eu e s porque existe ao lado de todos os outros eus. O captulo dois De onde viemos? Como contar esta histria? - estabelece um paralelo entre cincia e
f, entre teologia da criao e evoluo, criticando os evolucionismos, sobretudo o
criacionismo (esta tendncia ideolgico-poltica de tornar cientfico um texto bblico),
procurando acentuar o que h de vlido e o que no aceitvel nem para os cientistas
nem para os cristos (especialmente catlicos). De onde viemos? - A histria contada
desde a horizontalidade o captulo terceiro, que aborda, de modo amplo, as questes
das origens e evoluo do cosmo, da vida e do ser humano. Procura perceber a evoluo
como um fato aceito - apesar de serem discutveis (inclusive entre os prprios cientistas)
as diversas teorias ou os diversos evolucionismos, que precisam ser conhecidos, ao
menos em suas linhas gerais, pelos que creem, a fim de poder, depois, diferenciar o
porqu e o modo como Deus atua neste processo. Os cristos detectam, a, a grandeza e
o empenho dos cientistas em to grande causa - que mesmo sem saber descobrem
mistrios de Deus ainda no conhecidos.
O captulo quarto - De onde viemos? - Uma histria contada desde a
transcendncia - tem trs objetivos: a) fazer uma crtica s leituras fundamentalistas e
sincretizadoras dos textos bblicos sobre a criao; b) indicar diversos textos do Livro
Sagrado sobre a criao e seu significado, contextualizando-os nos perodos da vida do
povo judeu marcados pelo tempo do cativeiro babilnico - o que determina o sentido
dos textos. Isto importante, inclusive para intelectuais e cientistas poderem
compreender aqueles textos para alm de pr-conceitos superficiais; c) por fim, fazer
uma das possveis leituras da teologia da criao, sobretudo a modo de exemplo de
interpretao dos relatos criacionais apresentados na Bblia, para indicar exatamente o
carter simblico que eles comportam - negando qualquer possibilidade de dar-lhes um
significado cientfico (pretenso do criacionismo).
O captulo quinto - Quem somos ns? - um problema a ser resolvido - leva em
conta o processo de evoluo, acenando aos significados humanos da sua animalidade,
de sua dimenso biolgica e o da corporeidade, para concluir com o que prprio do ser
humano: a relacionalidade.
Todavia, a resposta permanece incompleta, para os cristos. Pois s a partir de
Jesus Cristo - Deus entre ns e homem como ns - que o mistrio do ser humano
passa a ter sentido. S nele se consegue detectar a dignidade nossa. Pois Deus se fez um
de ns e um conosco. Este o desenvolvimento do sexto captulo - Quem somos ns? A resposta s em Jesus Cristo.
Mas, Para onde vamos? A pergunta do captulo stimo exige uma resposta de
f. O futuro humano se concretiza em Deus. Tudo caminha para ele. Porm, nem
sempre esta questo est isenta de tenses. Aparecem messianismos, utopias terrenas,
fatos inexorveis como a morte, explicaes seculares etc. A resposta mais profunda.
E ento, desde a escatologia, o captulo oitavo - Para onde vamos? - A leitura crist
sobre o nosso futuro - procura responder discorrendo sobre os grandes temas da
consumao do mundo e da fidelidade de Deus, comprovada na ressurreio de Jesus
Cristo.
Por fim, o captulo nono - De como antecipamos o futuro evidencia duas
grandes ideias: o lugar dos cristos no mundo em crescimento e o louvor, que nasce no
corao de todo aquele que cr, perante as maravilhas de Deus operadas na criao (e
descobertas tambm pelo conhecimento cientfico).
consumao est na glria de Deus. Por isto, este ensaio no deixa de ser, ao mesmo
tempo, um estudo de antropologia crist, de cristologia e escatologia.
Captulo 1
Somos mais de seis bilhes de habitantes sobre a face da terra. Quem sabe,
discutivelmente, os nicos seres inteligentes de todo o sistema solar e csmico do
universo! Vivemos apinhados sobre este planeta, que apenas um dos inmeros do
nosso sistema solar. Habitamos em mais ou menos um tero do planeta. Os outros dois
teros so ocupados pelas guas. Nos oceanos, vivem mais de 50% dos seres vivos.
A espcie humana se espalha sobre toda a face da terra, nas plancies, vales,
montanhas, terras frteis, montanhas glaciais, campos, vilas, cidades, florestas e
desertos. H regies densamente povoadas, como a ndia e a China. Em contrapartida,
h extensas regies onde quase no vivem os seres humanos, como na regio
amaznica, nos polos Norte e Sul, e nas regies a oeste da Rssia.
3. Um retrocesso?!
De fato, quem pode viver tranquilo, fora do grande capital? A deformao dos
mercados e das condies de concorrncia, a mudana das relaes entre alta tecnologia
e mo-de-obra no qualificada (pensar nos Estados Unidos e na sia), mostram os
dois fatos enunciados: a estratgia da permanente mudana para permanecer e a injusta
desestabilidade que atinge homens e mulheres em toda parte. Sobretudo, so apenados,
pela expanso universal do regime do capital, aqueles que nada ou poucos mais tm
que seus braos para o trabalho.
dedutvel que, como todas as coisas da histria podem ser substitudas,
tambm este sistema - desenvolvido na Idade Moderna - no poder ser sinal do fim do
mundo.3 Surgiro outros sistemas que havero de substitu-lo. Mesmo que no se possa
vislumbrar nada ainda.
Este sistema leva perversidade pela excludncia crescente de pessoas e grupos,
quer em nvel de cidadania quer em nvel sociocultural. No pelo fato de no existir,
no momento, nenhum outro, que se deva conformar com ele. A orientao nica da
economia um indicativo de pobreza para todo o mundo, pela falta de liberdade e
possibilidades.
Grande parte da humanidade mora em habitaes extremamente precrias. Em
algumas delas, falta tudo. Falta em algumas at a proteo contra o sol ou contra a
chuva. A misria de choupanas, palafitas, barracos - em contraste com edifcios to
requintados que se elevam verticalmente ao equivalente a 200 casas - algo to
bablico que clama o bom senso da humanidade. E verdade que nestes edifcios se
mostra toda a capacidade e a inventividade tcnico-cientfica de seus autores, criadores
e patrocinadores.
O instinto da guerra uma particularidade humana. 4 Est ligado violncia
masculina. E por sua vez explicado, por alguns, pela longa fase pr-histrica em que
os homens foram caadores de animais. Mas, a necessidade da caa no explicao
suficiente. A espcie humana predadora quase por natureza, por instinto de
sobrevivncia. Ela mantm o costume de caar e defender-se atacando, de ser socivel e
dominar destruindo, de ser inteligente e cruel torturando e matando... Caar ou ser
caado foi uma relao peculiar e ambivalente desde a revoluo neoltica entre
animais e seres humanos. Este comportamento acompanha a histria. Pelo lado do
homem, ele se transformou em rituais e paixes pela guerra. Por um lado, a guerra
evidenciou-se como um xtase religioso, da a sacralidade dela. Por outro lado,
acentua a vontade de poder pelo poder, includo o poder de humilhar.
inegvel o papel das religies na difuso, organizao e patrocnio de guerras,
at recentemente. As guerras das religies, patrocinadas inicialmente pelas elites,
seguidas pelas castas de guerreiros privilegiados, passaram para grupos, em geral
fundamentalistas. Hoje conhecemos os nacionalismos e interesses econmicos como
fontes de guerra religiosa.
Naes tecnologicamente desenvolvidas comprometem grandes somas de seus
oramentos para manuteno blica. Diz-se que os Estados Unidos empregam quase
3
4
4. Na mudana de valores
Num outro livro meu6 chamara a ateno para que o fato de que o ser humano
uma ousadia. Cada um e todos os seres humanos so um processo aberto. Sua histria
inconclusa, cheia de trabalho, alegrias, esperanas, angstias, tristezas etc. O humano
um ser real, nico. um corao que bate, pulsa, entre festa e rotina, entre vitrias e
fracassos. Assim, a pretenso de escrever sobre ele no significa seno a vontade de
am-lo profundamente. Um desejo de buscar sua dignidade. Isto prefervel a calar-se e
recolher-se a uma resignao - que se sabe impotente.
O ser humano concretamente Pedro, Maria, Joo, Ana... Ento o ser humano
algum especfico. Algum que tem identidade peculiar por estar situado diante de outro
ser humano, diante de animais, do ecossistema. Ele um mistrio para si. E o
simultaneamente na sua individualidade e no contexto da humanidade. um mistrio
que se explica de modo quase ingnuo ao se perguntar e responder: Eu, quem sou?! Sou eu, oras!
O que pode no parecer tautolgico, na verdade isto: Eu?! - Sou eu! Aquele
que se identifica a si como humano porque sente, ama, odeia, alegra-se, chora, ri,
trabalha, partilha a vida, estabelece amigos, tem famlia, integra-se coletividade,
sonha, pergunta, procura e, por fim, diz: Eu?! - Eu sou eu! Sou eu porque sou nico.
Mas tambm porque sou com os outros e como os outros, inclusive com os animais e
todo o universo.
Sem dvida, no se humano apenas por poder se identificar a si mesmo, isto :
ser detentor de racionalidade auto identificativa. H outros fatores mais que influem
aqui, dos quais os mais elementares so a idade, a sade e a prpria vida de ser humano.
Ele um mistrio para si prprio e para todos que o rodeiam. O poder e o
espanto, o auto desconhecimento e a procura de si, a autoimagem e a auto resposta
levam a uma identificao prpria que s real porque misteriosa e simples
simultaneamente. Mas, a identificao tal que nunca pode ser acabada por causa da
complexidade que a prpria pessoa. Quando diz eu, ela o diz no por considerar-se
uma mnada, um ser fechado sobre si prprio. Eu sou eu porque estou me
relacionando com os outros e com todos os outros.
Isto um mistrio porque um processo tambm. Ento, quem se identifica e
poderia ser identificado em si? Todo ser humano seu mistrio. E como explic-lo?
Com que critrios ou com que autoridade? A condio humana na verdade algo
misterioso e inimaginavelmente maravilhoso. Identificar-se seria, na verdade, desvelar6
se. O que quer dizer, ao mesmo tempo: desnudar-se e voltar a cobrir-se com um
justificado e provisrio espanto consigo mesmo. Por isto a identidade de algum
acontece nas suas relaes tanto de assemelhamento quanto de distino. Dizer eu sou
eu! envolve fundamentalmente uma relao e no apenas uma questo ontolgica
amorfa, de qualquer modo, no ecossistema.
Vale a pena lembrar que esta reflexo acima , metodologicamente, patrimnio
da cultura ocidental, com influncias de judasmo, do cristianismo e at mesmo do
islamismo. As concepes sobre o ser humano so radicalmente diversas no mundo
chins, budista, hindu - apesar dos crescentes estudos ocidentais. Mesmo assim, no so
suficientes as tradues daquelas tradies.
Afirmar a pessoa como um ser de relao para buscar sua identidade pessoal no
deixa de ser complexo. Todavia a relacionabilidade da pessoa humana critrio
adequado para evidenciar quem o ser humano e levar em conta tanto sua
individualidade quanto sua socialidade. A relacionabilidade s pode ser compreendida
na totalidade do ser e de suas diversas manifestaes.
A sociedade de consumo identifica Lus, Tereza, Alfredo e Lcia como cartes
de crdito e um cliente. A des-persona-lizao uma criao do mercado, fazendo do
humano um-ser-sem-face e sem-atributos. Tornou-se um consumidor, pagador ou
devedor.
Para saber quem Antnio, Bernadete, Joo e Lcia, preciso tambm perceblos nas suas mltiplas relaes, a comear como membros da sua famlia. Como
pai/me, irmo/, esposo/a, filho/a, tio/a, av/av. Da soma-se sua identidade
processual o fato de ser criana, adolescente, jovem, adulto, idoso - incluindo categorias
como estudante, formado, profissional, solteiro/casado, aposentado etc. preciso somar
ainda todos os aspectos que o incluem em seus diversos grupos sociais.
Captulo 2
De onde viemos?
Agora, aqui, se impe uma pergunta: O que nos fez humanos? No basta
estarmos diante de ns prprios para respond-la de modo satisfatrio. A natureza
historicamente tambm foi nos tornando humanos, ao agir sobre todos os seres vivos.
Distinguiu uns dos outros e os assemelhou simultaneamente. A natureza foi a fonte
primria de nossa existncia. Mas, a cultura que nos humaniza; no a natureza. O
complexo cultural da humanidade envolve a vida com a arte e a simblica, com a
filosofia e a religio, com a poltica e a cincia, com a indstria e a tcnica etc. As seis
primeiras explicam a vida. As duas ltimas (alm de outras) concretizam a vida. Somos
humanos porque a natureza e, sobretudo, a cultura no-lo fizeram assim. Nossa
humanizao cresce pelas contribuies auferidas pela cultura e pela socializao. Isto
se manifesta nas artes, na filosofia, nas cincias, no trabalho etc. Mas tambm - como
milhares de seres humanos creem - nas religies. As religies so uma macro
hermenutica da vida, em sua dimenso cultural. Elas, por serem holsticas, no se
enquadram nos critrios de verdade fixados pela cincia. Tm seu campo, sua
linguagem, seus mtodos, seus princpios prprios. Elas, como as cincias, tm seu
valor desde dentro de seu universo. Nenhuma das duas (cincia e religio) pode
permanecer coerente a partir dos critrios de discusso e verdade estabelecidos pela
outra. Isto no invalida a possibilidade de uma ser crtica da outra. deste modo que se
pode apressar uma concluso: a explicao da vida (origem, realidade, fim) no pode
ser exclusividade da cincia. Mesmo que se reconhea toda a sua importncia. Este
mito moderno tem sua garantia em si prprio (em seus mtodos e princpios). Porm,
tem tambm seus limites. Para uns, o limite exatamente o de estar fechado a qualquer
transcendncia. No porque o transcendente no se enquadra ao controle (verificao,
experimentao, comprovao etc.) que deixaria de ser verdadeiro. Muitas pessoas dos
tempos hodiernos, todavia, creem que cincia e transcendncia no so necessariamente
auto excludentes. Elas, na sua dinmica, se opem, dialogam e/ou reconhecem seus
respectivos campos (limites). No verdade aquilo que algum disse: porque no
cientfica a Bblia no verdadeira. Como tambm no o a contraposio: porque
no bblica a cincia no verdadeira. Generalizando as afirmaes: tanto os livros
sagrados quanto os cientficos contm suas verdades, dentro de seus limites. Em ambos,
o limite est, inclusive, em fatores como tempo/histria, significado, propsito etc. Toda
afirmao feita sempre num determinado momento, com os instrumentos culturais,
filosficos, tcnico-cientficos e lingusticos de ento. A medida da sinceridade de uma
e outra, pode-se descobrir sempre mais a verdade sobre quem somos ns, diante de ns
prprios, diante da natureza e diante do transcendente. Quem professa uma ou outra
deve saber em que contexto se coloca. E deve estar ciente de seus limites. Quem aceita
as teorias cientficas, como afirmao das verdades a respeito de si, da histria (da
evoluo), da facticidade atingido diretamente pela autenticidade de sua prpria
convico. Quem aceita a realidade da transcendncia atingido diretamente pela
autenticidade de sua prpria f, natural ou revelada - no importa. A aproximao do
cientista e do religioso produz no apenas desencontros. Hoje, sempre mais, a interao
delas gera estmulo a novas perguntas que as relaes produzem. Nenhuma das duas
to autnoma ou fechada sobre si mesmo, que, com o passar do tempo, no seja
questionada pela ou por causa da outra. Sempre foi assim na histria. E isto o ser para
melhor compreenso de cada campo.
bilogo John Thomas Scopes, do Tenessi, Estados Unidos. Ele foi denunciado por
ensinar o evolucionismo darwiniano nas escolas pblicas. Foi condenado por
transgresso lei. Mas, s no foi punido por causa de falha tcnica do processo
jurdico. A partir da, autores e editores - norte-americanos - retiraram dos manuais
didticos a teoria da evoluo - comportamento que discretamente perdura. Anda hoje
no basta, na Amrica, a proibio de ensinar as teorias evolucionistas. Em alguns
lugares, pelos anos sessenta, progressivamente e com xito discutvel, grupos de
cristos de direita americana - sobretudo protestante e pentecostal - passaram a lutar
pela obrigatoriedade do ensino do criacionismo em igualdade de condies. A disputa
continua em comunidades locais, sobre a adequao de manter ou no o tema, nos livros
de textos escolares. Em parte da imprensa americana e entre muitos estudiosos e
cientistas, a polmica permanece. A direita poltica a mantm. E visa justificar atitudes,
posies e teorias fundamentalistas em termos religiosos.
A discusso, todavia, no se restringe Amrica. Na Europa, e noutras partes do
mundo, ela se faz presente, sobretudo, entre fundamentalistas - sejam cristos sejam
cientistas - e a mdia. Meios de comunicao encontram neste tema oportunidade
frequente para gerar polmicas - que no so de interesse real, nem honesto. A polmica
maior entre cincia e f, no caso, vem sendo superada pela compreenso e distino do
objeto de cada campo do saber. A questo, em primeiro lugar, deve ser compreendida
dentro das igrejas crists. Dever-se- aprofundar a exegese do texto - que uma questo
interna dos grupos religiosos. Alguns criacionistas menos radicais tentam adequar ideias
bblicas isoladas para fazer ponte com os dados cientficos. Isto, porm, no digno
nem das cincias, nem da Bblia. Por sua vez, muitos cientistas vo compreendendo,
no apenas a autonomia com que pesquisam e trabalham, mas, sobretudo com o
significado e delimitao de seus estudos.
4. A evoluo e a Igreja
A introduo das ideias sobre evoluo (bem alm da teoria darwiniana, pois a
primeira muito mais ampla que a segunda) no seio da Igreja Catlica h tambm
alguns desdobramentos histricos importantes. Foi a partir da segunda metade do sculo
possibilidade diversa das fontes literrias do que chama de catequese dos mistrios do
princpio. Ao grafar a palavra princpio, o Catecismo da Igreja Catlica a coloca
entre aspas, pois que se lhe antecede um at longo comentrio sobre
7
8
9
CCC, 283.
Ibid., 284.
Ibid., 286.
Cf. PETERS, T. & GAYMOND, B. (orgs.). Construindo pontes entre a cincia e a religio.
Cf. CAPRA, F. & STEINND-RA-ST, D. Pertencendo ao universo - Explorao entre as fronteiras da cincia e da espiritualidade.
criatura) e o helenismo (que est atento ao que mais conceituai: o que que feito,
pelo qual feito e para que feito).
12
rodeia. Sente- se, por vezes, no exlio.13 Por outras, sabe que no pode renunciar seu
discurso, pois por ser to peculiar ela sabe que ningum poder substitu-la: seu
discurso prprio e peculiar e omiti-lo prejudicar e empobrecer a prpria humanidade
a carecer desta mensagem.14 E assim que a teologia vai encontrando, no apenas novas
linguagens, novos mtodos, mas, sobretudo, vai superando um conjunto esttico de
verdades sobrenaturais e assumindo o processo histrico da salvao, onde Deus
compreendido como companheiro constante do ser humano, na criao continuada at a
escatologia. A teologia, como todo aquele que cr, encontra a verdade suprema, no no
enunciado teolgico, mas na realidade qual o enunciado prope uma certa expresso
verdadeira, mas limitada fazendo caminho ao caminhar. A cincia, em sua competncia,
se rege por constantes verificveis - que aparecem e podem ser dadas como razo
objetiva dos fenmenos. A teologia, por outro lado, se desenvolve como articulao de
uma resposta pergunta pelo sentido da existncia do universo e do ser humano. A
realidade de ambos a mesma. Mas os olhares so diferentes. A teologia precisa
tambm levar em conta as teis e sensveis provocaes advindas f e reflexo,
desde a ecologia (contra o antropocentrismo), desde as proposies da modernidade
(razo, cincia e tcnica), desde a compreenso formal do mundo e da histria (contra
os espiritualismos). Mas, necessrio igualmente dar nfase escatologia e estrutura
crstica da obra criada, onde se inclui o ser humano. Por tudo isto, importa desde a f
acompanhar tanto as narraes da histria humana - como contam as cincias atuais,
para magnificar a Deus descobrindo, a, seus mistrios de bondade - quanto aprofundar
as narrativas desde a f - como conta nosso livro sagrado, para descobrir Deus mais
intimamente e am-lo mais profundamente amando toda a obra da criao,
principalmente aqueles que ele nos deu como irmos. Como sntese, aqui se pode
afirmar: a Igreja Catlica no concorda com o criacionismo. Mas, diante da evoluo
prope uma reflexo prpria, chamada teologia da criao. No privilegia nenhuma
teoria evolucionista, pois constata a provisoriedade de todas elas. Opta por manter sua
linguagem bblica sobre a criao (os chamados, atualmente, mitos criacionais bblicos)
por encontrar neles o significado de suas grandes afirmaes de f, de compreenso da
razo da existncia humana e do cosmo. No entende a criao como um fato acabado,
mas um processo contnuo (criao contnua). Como corpo, tanto a Igreja quanto a
teologia acreditam ainda - e isto, at o momento, bom - manter sua explicao, mesmo
13
14
que devam, por questes culturais e cientficas, explicar o significado de sua linguagem.
Nas questes pastorais, especialmente de iniciao catequtica da f, ainda h
dificuldades de linguagem e/ou atualizao de muitos catequistas ou autoridades
religiosas - o que no invalida o posicionamento oficial que reconhece a importante
contribuio da cincia - como instrumento para glorificar a Deus - afirmar a criao
como ato livre, gratuito e desejado por Deus.
Captulo 3
De onde viemos?
Somos mais de seis bilhes de pessoas humanas sobre a face da terra. Mesmo
assim, somos apenas uma das milhes de espcies que sobrevivem hoje, numa longa
evoluo. As cincias contam essa histria desde suas teorias asseguradas por si
mesmas horizontalmente - para embasar seus pressupostos cientficos. No caso da
evoluo ou das origens, na verdade, so afirmaes acatadas, ou melhor, deduzidas de
(pequenas) evidncias ou sinais, que, por sua vez, so antecedidas de outras, numa
cadeia, cujo incio uma suposio reconhecida pela comunidade cientfica. 15 Assim, se
fala na questo da origem do cosmo - do big-bang, da teoria das cordas, da teoria da
inflao catica etc.
As cincias contam a histria da evoluo, porm, sem destino, sem causas
causantes. Contam, somente, o que aconteceu (descrio), como aconteceu
(funcionalismo) e por que alguns fatos decorrem de outros (causas remotas adaptativas).
Na sua histria no h propsitos, nem direo. Tudo pode ter sido fruto do acaso ou
necessidade. Se, por um lado, h uma progressividade nas espcies, por outro no se
deixa tambm de constatar vazios e enigmas espera de novas luzes.
importante, para o crente e para a teologia, conhecer esta grande narrativa
ocidental moderna. Sobretudo porque ela tem importncia e validade para ele;
especialmente para o que capaz de reconhecer o lugar da hermenutica cientfica e o
da sua f. No conhecimento da cincia, o crente tambm capaz de perceber a
misteriosa presena do Deus criador. No que ele subordine sua f cincia, mas que
reconhea tambm o legtimo significado desta dentro do plano de Deus. A narrativa
cientfica pode ajudar no aprofundamento da f em Deus ao se perceber processos,
sinais e fatos que, independentemente das interpretaes cientficas, manifestam a ao
15
Apesar de haver contestaes, inclusive em formas de denncias. Ver, por exemplo, Michel Cremo e Richard Thompson. A
histria secreta da raa humana. Edio condensada do livro Arqueologia proibida.
divina na histria. Sem dvida, a histria do cosmo, da vida e do ser humano - tanto em
sua origem quanto em seu desenvolvimento - muito complexa. Exige profundidade de
conhecimento, dedicao em pesquisa, seriedade cientfica, honestidade intelectual.
A vida dos mais de seis bilhes de seres humanos sobre a face da Terra apenas
uma das milhares de espcies de vida. A biodiversidade um patrimnio comum do
planeta. Ela, porm, passa a ser uma questo candente, na atualidade, seja por causa da
eliminao natural seja por causa da eliminao provocada de inmeras espcies,
inclusive como preo do desenvolvimento. Por outro lado, ela problemtica devido
crescente apropriao e controle por foras econmicas e polticas que, querendo
patente-las, reservam seu domnio e querem excluir do usufruto comum milhares de
outras pessoas. O controle exclusivo da vida, por alguns grupos, pode pr em risco a
comunidade dos seres vivos, incluindo os seres humanos - que podero ser excludos da
prpria vida.
Diz-se que se todo o universo conhecido fosse reduzido a uma linha de 8km, a
Terra seria to-somente um gro de areia mal visto a olho nu. E neste planeta vivem seis
bilhes de seres humanos, ao lado de milhares de outras vidas, como as formigas, os
mosquitos, as aves, alm de micrbios invisveis.
Desde que vive a espcie homo sapiens, isto h uns 50 mil anos, o nmero de
indivduos tem aumentado continuamente. No se conhece nenhum perodo digno de
meno em que a populao mundial tenha diminudo. Assim, a Terra poderia ter, no
perodo neoltico, uns 10 milhes de habitantes. Ao tempo do nascimento de Cristo
eram entre 200 a 300 milhes. No comeo da Idade Moderna, por volta de 1650, cerca
de 500 milhes habitavam a Terra.
Nos ltimos 300 anos o crescimento demogrfico tornou-se espantoso. Depois
de 1800 ultrapassou-se o limite de um bilho. Em 1930 chegou-se ao segundo bilho.
Em 1960, a humanidade atingiu a marca de trs bilhes de pessoas 16. O sculo XXI
comeou com mais de seis bilhes... caracterstico nisso a rpida elevao de taxas de
16
Id., p. 24.
SANNA, I. Dallaparte delluomo - La chiesa e i valore umani... p. 13.
Tal histria, em confronto com as culturas (ocidentais) dominantes, criou tenses sobre
as leituras e autocompreenso da humanidade. Especialmente a modernidade, com suas
cincias, discutiu cosmovises anteriores, substituindo-as (quase) dogmaticamente por
novas concepes que pareciam jogar fora a bacia, a gua e a criana. As cincias
fizeram a crtica de tudo o que se pensava e cria at ento.
O ser humano se imaginou, nos ltimos 10 mil anos, como centro e rei do
universo. Fez o sistema solar girar em torno de sua Terra. Mas recentemente descobriu,
atravs de Coprnico, sua iluso: a Terra apenas mais um dos planetas que gira em
torno de outro centro, o sol. O sol um dos milhares de sistemas celestes no universo.
Os seres humanos se acreditavam superiores a toda natureza e pensavam que ela
estava a seu servio. Darwin deu um grande impulso a uma ideia que j vinha sendo
preparada: a evoluo animal. Outros cientistas completaram: o ser humano no seno
fruto da evoluo da vida. Ele filho da Terra e da vida, como o so as plantas, os
pssaros, os ratos, os macacos e os mosquitos. Toda vida um processo de evoluo,
onde uma vida explode da outra. Nenhum ser passou a existir acima ou fora do quadro
evolutivo. Os seres humanos se apresentavam orgulhosos de sua superioridade, mas
foram destitudos dela e irmanados no processo evolutivo, sem superiores nem
inferiores, mas to-somente diferentes.
Num outro aspecto da cultura tradicional, homens e mulheres, a partir de sua
racionalidade e liberdade e de suas crenas, julgavam-se responsveis nicos por todos
os seus atos. Mas, Freud descobriu que eles no se governam a si pela vontade. Esto
sujeitos a uma srie de impulsos inconscientes. Eles se consideravam senhores de todas
as foras internas e se descobriram condicionados por tantos outros fatores, que muitas
vezes estes quase eliminavam a liberdade e a prpria racionalidade humanas. Do alto de
seu pedestal, foram lanados a um cho quase to pobre, que se sentiram humilhados,
em sua presuno anterior.
A humanidade - sobretudo dos pases desenvolvidos e dos ricos - se sentia
orgulhosa de suas conquistas cientficas e tcnicas, capazes de lev-la ao espao
interplanetrio e ao controle cientfico de tantas realidades. Sentiam-se senhores
absolutos do universo. Suas conquistas, na verdade, eram apenas de uma parcela
humana e que o orgulho cedia lugar vergonhosa in-solidariedade. Os fatos
mostravam que homens e mulheres pobres no universo formam um contingente de 2/3
da populao mundial. Quase um bilho passa fome. Seu futuro imediato a morte.
A histria humana no pode ser contada ignorando o cosmo todo e sua evoluo.
O ser humano no algo, algum isolado e/ou indiferente a todas as outras espcies de
vida. Ele participa, no ecossistema, do conjunto da vida, das mais diversas formas de
vida.
Mesmo com suas peculiaridades, ele, por um lado, apenas mais um ser vivo;
por outro, possuidor da razo e da liberdade, capaz de superar os condicionamentos
fsico-materiais, pondo-os a seu servio.
H to pouco tempo o ser humano sentia-se senhor e usufruidor absoluto do
cosmo. E aceleradamente passou a gastar tudo quanto a natureza produzira em milhares
de anos. Parecia-lhe que os recursos naturais eram infinitos. Todavia, um tanto tarde, se
percebe que os recursos so limitados, que as vidas vm sendo ameaadas. Diz-se que,
entre os sculos XVI e XIX, uma espcie era eliminada a cada dez anos. Entre 1850 e
1950, uma por ano. A partir do ano 2000, uma espcie desaparece a cada hora, mesmo
que especialistas digam que existam ainda entre 10 e 100 milhes de espcies. O
prprio planeta, em que vivemos, um macro-organismo vivo, que compe um todo
sideral. O risco de eliminao das espcies e a degradao do planeta pem em perigo
tambm a prpria vida humana.
Isto to real que j h mais de duas dcadas se vem denunciando que a terra
est adoentada e em perigo. Em outros aspectos, so milhares de homens e mulheres
que vm desenvolvendo uma sadia conscincia ecolgica empenhados na proteo
ambiental e no simultneo desenvolvimento sustentvel. 19
Estas quatro grandes humilhaes (o cosmo, o inconsciente, o ecossistema e a
pobreza) fizeram o ser humano reler seu lugar no cosmo, na natureza, no interior de si e
no contexto social. Ele no s no rei e centro, mas por vezes inimigo - real ou
potencial - de todo o universo. No s no est acima dos outros, como, por vezes,
degrada-se a si mesmo nas humilhaes que infringe a seus irmos e sua me/irm
Terra. No s no rei e centro do universo, mas destri sua prpria vida e impede o
crescimento humano20 e de todo o ecossistema. A espcie humana ficou ameaada por
si mesma, aps ter vivido de costas para a natureza, pondo em risco sua prpria
evoluo.
A histria humana no pode ser contada isolada do cosmo. Ela, todavia, pode ser
narrada de muitos modos. Pode-se descrev-la desde a riqueza e a pobreza das naes.
19
Das vitrias e derrotas blicas, do desenvolvimento dos povos, do progresso cientficotecnolgico, da subsistncia dos grupos, do amor e do dio das pessoas, etc. Todos os
relatos tm seu valor, inclusive a histria dos homens e mulheres a partir dos deuses.
H milhares de estudos que contam estas histrias. Todas elas, porm, sem perceber,
historiam a vida do homo sapiens. Na verdade, o ser humano destes ltimos dez mil
anos quando a humanidade adquiriu esta forma atual - foi deixando gravadas nas
grutas,
edificaes,
cemitrios,
cidades,
bibliotecas,
poesia,
artes
etc.,
sua
Este texto no tem a pretenso de ser cientfico. Por isto, e inclusive, so feitas apenas grandes indicaes de fatos e datas insuficientes aos especialistas da antropologia, da fsica, da arqueologia e pesquisadores afins.
Neste sentido, cresceram, desde o sculo XVII at o final do sculo XX, grandes
tenses interpretativas cuja discusso e rigor ultrapassavam as narraes simblicas para se afirmarem questes, na verdade, ligadas aos poderes (religiosos e/ou cientficos)
que se antagonizavam dogmaticamente a fim de poder sobreviver.
Um tanto tardiamente se percebeu que a melhor atitude a autonomia e a
complementaridade entre as duas posturas, guardados os limites de ambas. Tal
percepo leva a(s) religio(es) e a(s) cincia(s) s atitudes de humildade e grandeza,
de beleza e importncia de tudo quanto misteriosamente existe.
O cristianismo catlico admitiu a evoluo a partir da encclica Humani Generis,
do Papa Pio XII, em 1950. Joo Paulo II chegou a afirmar que a evoluo no apenas
uma hiptese, mas um fato.
certo que, em alguns ambientes de cientistas e catlicos, estas polmicas
continuam. Continuam, sobretudo por falta de profundidade de uns e outros ou porque
alguns sabem muito de seu campo e interpretam, quase primariamente, o do outro.
Entretanto, a definio de campos, mtodos e objetivos torna clara a opo e o
significado dos dois universos diferentes entre si, sem ser necessariamente opostos. Ao
cientista compete o campo das origens, atravs de comprovaes e correlaes
concretas. Homens e mulheres de f buscam o significado das origens vinculado ao
sentido do fim ltimo.
Mas, a discusso muito mais forte entre cristos evanglicos e cientistas,
sobretudo nos Estados Unidos da Amrica. A a polmica criacionista versus
evolucionismo chega a extrapolar questes religiosas e cientficas para se tornar questo
poltica... fundamentalista - como se viu no captulo anterior.
5. O mistrio da vida
22
de poeira alta na atmosfera, escondendo a luz do sol por vrios meses. Vegetais
primeiro e depois os animais, em massa, foram extintos. Era o fim do perodo cretceo.
Os nichos ocupados pelos grandes rpteis passaram a ser ocupados por outras
espcies de mamferos - menores e mais adaptados nesta reestruturao da biosfera.
Aps a Era dos Rpteis - onde desapareceram os grandes rpteis, sobretudo os
dinossauros, por volta de 65 milhes de anos - comearam a surgir mamferos menores,
primatas de aspecto moderno. Foi a Era dos Mamferos, com um total de 6.000
espcies. Destas, umas 200 espcies originais iniciaram uma radiao adaptativa
incluindo aumento na variao do corpo e ampliao de dieta alimentar.
Os grandes primatas deste perodo s foram descobertos pelos anos 90 do sculo
XX. A partir da os indcios fsseis tm sido encontrados muito frequentemente. O mais
difcil entre os cientistas tem sido estabelecer uma viso consensual sobre evoluo
deles. Contudo, h certa aceitao de que superfamlia hominoidea - que inclui as
espcies viventes e extintas de smios e de seres humanos e de seus ancestrais - provm
da ordem dos primatas, que d origem subordem anthropoidea, que gera a infra ordem
catarrhimi. Nesta superfamlia surgem - como nomes comuns - macacos, smios e seres
humanos. E o fssil mais antigo desta famlia tem uns 200 milhes de anos. O termo
primata indica a ordem principal dos mamferos.
Os hominoides, do perodo mioceno, em geral africanos e eurasiticos, eram
habitantes de florestas tropicais e subtropicais. No longo processo de evoluo destes
homindeos, vo surgir algumas caractersticas sempre mais importantes. Discute-se sua
ordem sequencial, pois uma pode anteceder a outra. So elas: a bipedia (andar sobre os
dois ps para liberar as mos), a terrestralidade (viver no cho, no nas rvores), a
encefalizao (crescimento do crebro) e a cultura (arte de confeccionar e utilizar
ferramentas). Estes elementos vo caracterizar o nosso homo sapiens, mas no so sua
exclusividade. Teriam eles vivido entre 5 e 6 milhes de anos. Deles derivariam gorilas,
australopithecus, orangotangos, chimpanzs e seres humanos.
Os mais antigos homindeos conhecidos so os australopithecus ramidus (da
Etipia, 4,4 milhes de anos), os anamensis (do Qunia, entre 4,2 e 3,9 milhes de
anos), os bahrelghazalil (do Chade, entre 3 e 3,5 milhes de anos).
Os fsseis dos australopithecus afarensis foram encontrados na Etipia,
Tanznia e Qunia, datados entre 2,9 e 3,9 milhes de anos. A este ramo pertencem
Lucy - o mais famoso esqueleto com 40% completo, cuja anatomia combina
caractersticas de smios e seres humanos - e vestgios de mais 13 indivduos. Eles
foram encontrados num nico stio e so conhecidos como Primeira Famlia. Esta
descoberta foi feita, em 1974, por Donald Johanson e sua equipe do Institute of Huvians
Origins (IHO), de Berkeley, junto com Maurice Taieb, um paleontlogo francs.
homo erectus - de onde talvez tenha se originado o homo sapiens. Este ltimo, por sua
vez, seria o antepassado do homo sapiens (arcaico) da Eursia.
Foi da Eursia tambm que teriam se originado os neanderthalenses. Eles
viveram entre uns 150 mil at provavelmente 24 mil anos atrs. Seriam, para alguns
cientistas, um ramo da rvore evolutiva humana. Outros cientistas os consideram como
um subgrupo da espcie: no seriam os antepassados do homem moderno. Teriam
convivido com o atual homo sapiens. Este, por ser mais forte, eliminou os
neanderthalenses, que parece no terem deixado traos na histria dos ltimos 24 mil
anos. Sumiram completamente.
So trs as linhas mais usuais da evidncia no estudo das origens dos seres
humanos modernos: as anatmicas, as genticas e as arqueolgicas. Os estudiosos ainda
tm dificuldade de estabelecer critrios definitivos sobre a combinao delas, seja para
datar, seja para localizar a origem dos seres humanos, os sapiens modernos. As
dificuldades surgem por falta de material fssil constante em cada evidncia e na
relao entre elas. Os estudos so complexos demais. Aceitar ou abandonar um
elemento fssil (gentico, anatmico ou cultural) pode ser motivo de mudana de
interpretao de teorias respeitadas. 23
O homem moderno, anatomicamente falando, pode ser datado entre
200.0 e 60.000 anos. Neste perodo so localizados seres humanos na frica e
Oriente Mdio. Teriam chegado China h 65.000. Na Europa, h 40.000 anos. Nas
Amricas, h 25.000 anos. No Extremo Oriente (Australsia) h aproximadamente
60.000 anos. Sem dvida, pelas evidncias arqueolgicas, o homo sapiens espalhou-se
pela Europa, sia e frica h uns 35 ou 40 mil anos.
As evidncias genticas so muito complexas. Seus estudos comearam h
apenas 25 anos. S em 1987 que se obteve algum resultado palpvel com os estudos
do DNA mitocondrial. Foi ento que se constatou a possibilidade de o homem moderno
ser sucedneo de vrias espcies de sapiens arcaico e homo erectus. Ele seria filho de
uma populao africana de uns 10 mil indivduos. Por sua vez, seria filho de uma nica
mulher. Ela teria vivido aproximadamente h 200.000 anos. conhecida como a Eva
mitocondrial.
Como os seres humanos desenvolveram a capacidade de inteligncia criativa
para alm da sobrevivncia dos seus antepassados primitivos? Os cientistas respondem
23
Veja-se, por exemplo, a contestao de CREMO, M. e THOMPSON, R. A histria secreta da raa humana.
que este salto qualitativo no apenas algo recente, mas tambm algo de difcil
comprovao na histria da evoluo do ser humano.
A capacidade de confeccionar ferramentas, superior a smios, chimpanzs e
outros, segundo vestgios fsseis, deve ser buscada h quase dois milhes de anos. O
crebro dos primeiros homindeos comeou a crescer. Ao lado do aumento do crebro,
foi-se tornando complexa a organizao social, sobretudo no cuidado da famlia. Novos
padres comportamentais demandaram cada vez mais estratgias sociais sofisticadas
como alianas de grupos de subsistncia, posturas inteligentes diante de adversrios do
prprio grupo.
Um outro fator significativo - de difcil comprovao factual - a fala. Contudo,
no desenvolvimento da complexa estrutura da fala produzida no pescoo (laringe e
faringe), aliada a msculos faciais e feixe de nervos do hemisfrio esquerdo do crebro
que se encontra a formatao atual. Desde a atualidade, os paleoneurologistas foram
atuando, retrospectivamente, at o homo rudolfensis e espcies tardias do homo para
constatar os dois padres bsicos da laringe no pescoo: capacidade de engolir e
respirar.
O trato vocal dos seres humanos o nico em todo o mundo animal.
Os elementos da fala - para que se desenvolvessem os seres humanos como
animais sociais e muito depois como seres falantes - esto ligados s estruturas
neurobiolgicas evoludas, necessidade gradual de comunicao - para alm do
gestual -, construo da conscincia - frente aos desafios mentais de situaes internas
e ao contexto social, desde o Paleoltico superior. Este foi um passo gigantesco para um
processo sempre mais acelerado do desenvolvimento do ser humano - crescentemente
distanciado dos animais.
O homo pekinensis (Homem de Pekin, de 500 a 200.000 anos) foi o primeiro a
domesticar o fogo. Com isto, superava-se o pavor que ele inspirava. Mant-lo aceso e
auferir suas possibilidades foi um passo extremamente significativo. Mais ainda foi
criar tcnicas para acend-lo de novo.
Na passagem do Paleoltico Mdio para o Paleoltico Superior - segundo o
historiador Arnold Toynbee - a aventura humana iniciou a revoluo tecnolgica, que
Rousseau chama de progressos quase insensveis dos comeos.
A ltima grande inovao material, antes do homo sapiens que conhecemos,
consistiu em revolucionar quantitativa e qualitativamente instrumentos de pesca, caa,
arte etc. Neste tempo - por causa do ltimo perodo glacial do Hemisfrio Norte,
comeou-se a usar roupa. Certamente foi neste perodo que se controlaram as guas.
Os primeiros vestgios humanos de enterrar os mortos datam de uns 50 mil anos.
Foi um esforo penoso, intil (suprfluo) e inadequado dadas as premncias do tempo.
Todavia, enterrar os mortos tornou-se uma vitria progressiva na valorizao de
sentimentos, na procura de explicaes sobre os poderes que afetam a vida, sobre
fenmenos csmicos assustadores, sobre as calamidades e grandes desgraas, e na busca
de maneiras de evitar situaes malficas (originadas da doena e da morte).
Frente s terrveis foras adversas - e sem poder ignor-las - procurou acomodarse a elas; inclusive, para assegurar a sobrevivncia do indivduo e do grupo. Tentava-se
manipular as foras csmicas. E descobria-se algo invisvel e inacessvel, atravs da
natureza e dos animais. Surgiram as crenas religiosas e as prticas rituais, que
traduzem compromisso na interao homem/natureza, homem/animal, homem/cosmos,
homem/transcendncia. Isto constituiu, com as respectivas crenas, a base das religies
naturais.
A vida dos povos primitivos consistiu em deambular em vastos territrios,
migrando neles constantemente. Isto levou a um distanciamento sempre maior dos
grupos. Este comportamento deu origem a contatos difceis entre eles que viviam sua
rotina ao sabor do ritmo csmico.
A partir de 12 ou 10 mil anos surgem outros dois importantes fatos: a inveno
da agricultura e a domesticao dos animais.
Na virada do nomadismo para o sedentarismo, tambm se inventou e
desenvolveu-se a agricultura - que ser o fato mais marcante, segundo alguns, de toda a
histria da evoluo da humanidade at agora. Ela teria surgido quase simultaneamente
na atual Turquia, no Curdisto, na Mesopotmia e na Palestina, nos Blcs, na sia, na
Europa, no Egito, passando s Amricas.
A domesticao dos animais ps fim ao ciclo letrgico da vida humana.
Conservar viva uma presa, salv-la, cri-la, prover-se dela nos momentos de penria,
no depende mais exclusivamente da caa e da pesca etc. Estavam lanadas as bases
fundamentais para nossa futura vida econmica. Criavam-se assim hbitos grupais de
partilha, troca, clculo, colaborao e relaes de poder poltico de alianas e de
guerras.
O descobrimento da agricultura foi muito importante. Deu origem inicialmente a
um nomadismo circular, aliado ao tempo (estaes, chuvas, clima). Exigiu
pensamentos e artes - que lhe enchem o corao de xtase. E quase capaz de ser deus...
E, por fim, preciso crer que h ainda todo um futuro a ser descoberto e domesticado,
dentro e fora do planeta, dentro e fora do prprio ser humano. A cincia atual comeou
h apenas trs sculos.
Todavia, a marcha triunfal da humanidade no caminha sem uma imensa legio
de excludos e vencidos - precedida de uma minoria de vencedores. Isto o desencadear
da tragdia decorrente do progresso. Viver dos bens produzidos pelos outros e explorlos tornou-se um privilgio intolervel para os demais. A excelncia de resultado do
poder transformador criou a legitimidade abusiva de poderes que perpetuam desmandos
na grande famlia humana.
Ter-se- chegado ao fim da evoluo humana? - Ela prosseguir? Que surpresa a
histria nos reserva? Permaneceremos o grande solitrio? Desapareceremos como
desapareceram os neanderthalenses, h apenas 25 mil anos?24 - Ou logo teremos, de
novo, companheiros que daro seu salto qualitativo, como fizemos ns?
Por mais importantes que sejam estas perguntas, elas apenas abrem
possibilidades de respostas ainda insatisfatrias, seja porque esto afetas aos horizontes
restritos da histria factual, seja porque no tm abertura para a transcendncia. Saber
como o cosmo, a vida, o ser humano caminharam no responde s inquietaes maiores
e mais existenciais. Milhares de homens e mulheres querem tambm saber o
significado, a razo do cosmo, da vida e do ser humano. Qual a grande origem de tudo?
E mais ainda, para onde tudo caminha?
ento que surgem as perguntas e respostas das narraes religiosas como
cosmovises holsticas, baseadas na f e/ou revelao. Milhares de homens e mulheres
encontraram e encontram nelas razes de viver, agir e melhorar o espao em que vivem.
O captulo seguinte apresenta a resposta crist, a partir da grande narrativa criacional
judaica no Antigo Testamento, em perspectiva transcendental, portanto bem diversa mas no contraditria e nem dependente - desta narrao encerrada nos horizontes
humanos que se acabou de contar.
24
Descobertas bem recentes na Gruta de Gorham, em Gibraltar, aproximaram mais ainda esta data para uns 24.000 anos.
Captulo 4
De onde viemos?
A grande maioria dos mais de seis bilhes de homens e mulheres que hoje vivem
sobre a face da terra tem uma forma religiosa de contar a ao criadora de seu(s)
Deus(es) e dos tempos das origens. Assim foi tambm com os milhares e milhares de
seres, que nos ltimos 100.000 anos desta progressiva humanizao chegaram at ns e
assim ser, sem dvida, nos sculos e milnios vindouros.
Homens e mulheres de todos os tempos e lugares tm suas explicaes
cientficas, culturais, religiosas etc. para os mistrios inauditos das origens. A partir do
povo hebreu situado no Oriente Mdio, h 3.000 anos, expandiu-se para a Europa - e da
para as Amricas e frica e continua rumo ao Oriente distante - a explicao judaicocrist das origens do cosmo e do ser humano. No pela razo (cincia ou logos), mas
pela f (religio, mythos e ethos), a explicao bblica tem um novo significado prprio
- sem nenhuma pretenso cientfica - para interpretar as origens criacionais do cosmo e
do ser humano (protologia) desde os critrios da escatologia (consumao do mundo).
o fim que d significado s origens criacionais. por causa da participao definitiva de
todo homem e de toda mulher em Deus, que ns, os crentes, nos voltamos para as
explicaes do incio (protologia) e atribumos o significado do desejo de Deus expresso desde os remotos tempos da oralidade bblica sobre a criao. Deus quer nos
salvar, fazendo-nos participar de sua glria (escatologia), por isso criou o adam, e o
criou homem e mulher.
LEONE, A.G. O conceito judaico da criao do mundo. In: SUZIN, L.C. Mysteriuvi creationis, p. 163.
pensar sua transcendncia. E, por fim, aponta para a consumao final de toda a obra
criada.
A nova teologia da criao prope-se a pensar as origens para dar os
fundamentos da f ao olhar tudo o que existe, existiu ou existir na histria dos homens
e de Deus. A experincia crist j pensa o universo em transformao - incluindo o
ser humano - porque pensa Deus como acontecimento dinmico e escatolgico. Pensa o
universo numa cristologia csmica, porque cr que tudo est vinculado a Jesus Cristo.
Pensa no significado de tudo porque sabe que o Esprito de Deus perpassa toda a criao
desde o incio. Ele a acompanha. Ele a conduz para a consumao. Isto , para a
realizao definitiva do projeto da Trindade.
havia terra a cultivar. No havia ainda planta nenhuma. Tambm nem tinha chovido.
Deus o modelou, com terra ume- decida no manancial que subia do solo e irrigava toda
a terra (Gn 2,6). Depois insuflou nele seu nefesh (flego da vida), fazendo-o um ser vivente.
Esta narrativa continuaria (com uma segunda narrativa) com a criao dos
animais e da mulher. Assim, o homem (designao sexual neutra) no ficar s, numa
msera solido (Gn 2,18) Deus lhe dar como companheira a mulher. Os animais estaro
ao redor deles.
Entre a lealdade e a fraqueza. A partir da - e intimamente ligado -, narra-se uma
primeira histria do pecado, no jardim que Deus criara para o ser humano (2,9-4). O
cenrio da queda descrito em Gn 3, antecedida pela proibio de comer os frutos da
rvore do conhecimento do bem e do mal (3,1-17). A punio dos trs culpados (a
mulher, o homem e a serpente; cf. 3,14-19) quer expressar a culpa do ser humano pelo
prprio sofrimento e o da natureza. O israelita - cuja mulher experimenta as dores do
parto, da dominao machista e cujo trabalho lhe ser pesado - sabe que nada disto
pertencia vontade divina. Tudo ser decorrncia de seu pecado. O sofrimento e o mal
so consequncias da irresponsabilidade humana frente a Deus.
O pecado e o amor de Deus. O texto bblico passa a narrar, ento, a histria
etiolgica de outros pecados. O ser humano se distancia (pela expulso do paraso) de
seu criador e faz crescer suas inimizades - quase sempre mortais para os homens (p.ex.
homicdio de Caim contra Abel - 4,1-16). Esta inclinao humana se prolonga no
pecado dos homens, ao tempo de No, castigados pelo dilvio (6); o pecado perturba as
relaes inter-humanas, fraternais, sociais e econmicas (7-8).
Deus, porque bom, arrepende-se. Absolve o ser humano (8,21). Na bno a
Abrao, ele ir criar um novo incio. Ele ir criar ex nihilo, em Abrao, um povo to
numeroso quanto as estrelas do cu (12,1-8). Ir criar onde no havia nada a no ser
seno velhice e tero seco. Far, desde Abrao, uma nova criao to numerosa como
os gros de areia da praia ou as estrelas do cu.
Em resumo, o javista sabe que o ser humano e a terra boa vm das mos de
Deus. Mas, o ser humano, desde o incio, tornou-se desleal com quem o fez. O javista
conta, ento, a histria de Deus e dos seres humanos com nomes concretos. Ele quer
afirmar que todos os seus coetneos tm parte nesta histria de Deus e dos homens,
desde o incio.
Esta experincia existencial tem 4 ncleos: a) Deus bom; b) mesmo que o ser
humano (ou a comunidade) peque ou tenha experincias amargas, Deus quer salv-lo;
c), pois foi assim que Deus agiu desde o incio; d) assim que continuar agindo.
Narrativa etiolgica. A grande maioria dos biblistas, hoje, afirma que Gn 2,4bss
no tanto narrativa criacional. Mas uma narrativa etiolgica da ao de Deus criador.
Ou seja, a explicao de uma realidade experimentada atualmente, pelo autor da
narrao, como uma realidade original. Com isto, explica-se a experincia dos semitas
sobre a conscincia do bem e do mal, a liberdade criativa ou destruidora, a primazia de
Deus ou do ser humano. Desde o princpio, o ser humano engrandecido e agraciado
por Deus... Mas, produz, por suas aes grupais, societrias e internacionais, a
desavena e a corrupo do corao (assassinato de Cabem, idolatria nos tempos de
No, confuso de deuses em Babel etc.). Apesar do mal humano, Deus, o criador, leva
adiante seu projeto. Um ano aps o dilvio, a terra seca e estril comea de novo (nova
criao) a produzir flores e frutos, graas aliana (bensh) com No. E a (re)criao
consumando-se como salvao. Deus est de novo implicado nas vicissitudes humanas.
Redime, de novo, o ser humano.
O diferencial de Gn 2,4bss. Convm ressaltar grandes diferenas entre os dois
grandes textos criacionais: Gn 2,4bss e Gn 1,1-2,4a. No segundo texto, Deus cria tudo
desde o nada, ou desde o caos, separando os contrrios, embelezando a criao, e,
por fim, criando o ser humano pela fora de sua palavra (faamos o homem...). No
primeiro texto, a ordem inversa: a terra seca e deserta. Ainda no havia chovido e
nem existia o homem para cultiv-la. Ento Deus cria um adam (um ser terrenoso), feito
da adamah (terra), que cultivar o jardim de Deus ou o seu prprio. Cultivar a terra no
ser um castigo. Ser, isto sim, a tarefa daquele que foi criado no jardim (3,22-24). Ele
cuidar do jardim de Deus.
No se encontra a (Gn 2-3) uma representao do pecado original. Nem nas
Escrituras hebraicas faz-se referncia desobedincia. O comentrio sobre o pecado s
vai aparecer nas escrituras gregas (cf. Eclo 40,lss). Os castigos so atribudos (no
singular) ao homem e mulher. No aos psteros (3,16-19).
A histria no Jardim do den mostra a intimidade e a cooperao perdida pelo
distanciamento do ser humano quando comea a querer ser Deus. Da surge o
sofrimento (aspecto etiolgico), que vai crescer sempre. O texto javista (Gn 6,5) acentua
a tendncia humana para o mal. Acentua tambm a vontade de Deus que - arrependido
por t-lo criado (Gn 6,6) - volta a perdo-lo. Mais ainda: volta a abeno-lo depois em
Abrao: atravs de ti, todas as geraes sero abenoadas (12,3).
Deus criador. No fundo, o texto apresenta Jav/Deus agindo na histria,
criando, acompanhando o criado (natureza e ser humano). O objetivo no s o ato
criacional em si, mas a atitude de Deus acompanhando a criao (criao continuada).
Alis, na Bblia, 1) a criao, em si, tem bem poucas citaes, como j se
afirmou. Contudo, elas sempre so apresentadas para louvar a Deus, o criador. O nome
de Jav, El, significa literalmente aquele que traz existncia ou aquele que cria.
O nome um verbo causativo;26 2) os relatos da criao so, em geral, metforas para
se perceber que a ao de Deus - o que acompanha sua obra criacional - e em relao
condio humana manifestam a vontade divina de dar cumprimento salvfico sua obra.
Deus completo e perfeito; sua obra est a caminho do aperfeioamento; 3) deve-se
ver nas metforas da criao, sobretudo, a ao redentora e salvadora de Deus em
relao condio e situao humanas.
Deus acompanha a sua obra desde o incio para dar-lhe cumprimento salvfico.
Portanto, Deus intervm redimindo, para poder salvar, isto , levar plenitude a obra
criada, a fim de que ela participe de sua glria. A criao e a redeno/salvao esto,
pois, em funo da participao do criado na vida de Deus e a vida em plenitude - como
dir Joo (10,10).
1) No jardim de Deus: a criatura da terra. Neste texto javista evidente ainda
destacar que a criatura humana no vem vida por questes de evoluo e/ou causas
biolgicas. A nfase recai sobre a terrenalidade humana. Ela {adam) filha da terra
(adamali). Convm tambm recordar o grande binmio: cu/morada de Deus e
terra/morada dos seres vivos. O ser humano vem da terra. Deus o modela com o barro
da terra, como o oleiro faz seu vaso. O homem feito pelas duas mos de Deus - o
Verbo e o Esprito - donde procedem as outras vidas. O filho da terra (adam) no feito
das coisas do cu. Vai, apenas, receber o hlito de Deus.
O ser humano colocado no jardim de Deus, o den - um lugar utpico a leste
(i.e.: na Mesopotmia). Ele colocado a para cultiv-lo. O jardim, onde Deus mora,
no ser a casa do homem. Sua morada estar fora do jardim, mesmo que
temporariamente o adam habite o jardim do Senhor - onde foram plantadas duas
rvores, a da vida e a do conhecimento do bem e do mal (2,9). Adam pode comer os
frutos de todas as rvores, inclusive da rvore da vida (que lhe dar a imortalidade), mas
no a do conhecimento.
2) Solido e companhia. Convm insistir no carter etiolgico da proibio do
comer dos frutos da rvore do conhecimento. Deles advir a morte (2,17). Esta
proibio seguida do texto que El quer livrar o ser humano da solido (2,19-20). Por
isto convm dar-lhe uma companheira. Os que so iguais aos humanos - tanto em
substncia quanto na origem (animais e pssaros) - desfilam diante do homem. Nenhum
digno dele. Nenhum corresponde a ele. Um fracasso criacional de Deus?! Ser preciso
outra criao/redeno?! Ser necessrio dividir o humano (adam) e criar dois seres
intercomplementares (ish - varo e ishsha - mulher). Antes dessa criao complementar
(2,4b-24), adam a espcie humana indiferenciada, a criatura humana em sentido geral
(que no se confunde nem com um andrgeno nem com um hermafrodita - como ocorre
em muitos mitos de outras religies). Depois (2,25 -3, 24) ser o indivduo diferenciado,
mas como socium. Isto : feito um do outro (carne da minha carne, meu igual). A
identificao sexual - depois da social - s ser efetiva na segunda parte da narrao
(2,24), quando eles voltarem a ser uma s carne, como na origem, enquanto marido e
mulher.
3) Ritual de passagem. Na primeira parte do mito (enquanto estavam nus e no
sentiam vergonha um do outro - Gn 3,24), eles viviam no jardim de Deus. Era Deus
quem trabalhava a. Aps comerem o fruto da rvore do conhecimento, vai haver uma
mudana do status do homem e da mulher: iro para fora do jardim de Deus. O homem
e a mulher devero trabalhar (criar cultura), fora do jardim de Deus, quer dizer: na sua
prpria terra (cf. Gn 3). Tradicionalmente esta atitude foi chamada de queda (p. ex.:
Rm 5,1; ICor 15; ITim 2). Uns a chamaram de desobedincia. Outros de pecado, pecado
original.
Observe-se que, no texto bblico, a primeira referncia bblica ao pecado est no
contexto da morte de Abel (Gn 4,1). A expulso de Ado e Eva do paraso de Deus ser
um rito (dramtico) de passagem. Da vida mtica vida real. Desde a morada de Deus
para a morada do homem. Desde a vida querida por Deus para a vida real!
4) A serpente. Nesta segunda parte do mito, surge uma nova personagem: a
serpente. Ela uma criatura, formada tambm do barro de terra, formada da matria do
cosmo. o mais astuto dos animais. Fala como os humanos e com os humanos. Ela
conhece, sabe.
7.1) No jardim dos seres humanos. Excludo do paraso de Deus, posto na sua
terra (sua realidade), o ser humano, sem perder o hlito divino, mas conservando-o,
dever cultivar o seu jardim. E no jardim dos homens, condividindo o mesmo espao,
tambm estaro os animais - que tm l sua esperteza e astcia, como a serpente. Pelo
conhecimento do bem e do mal, o ser humano se sobrepe aos animais, aos pssaros e
prpria terra - mesmo sendo de idntica natureza. Porm, doravante, a serpente
procurar morder o calcanhar do homem. A serpente no satans, apesar de no
poucas interpretaes neste sentido. Ela simboliza tanto os animais domsticos quanto
os selvagens.
7.2)
27
Ibid., p. 240.
Uns poucos outros enunciados sobre a criao so encontrados ainda nos livros
dos profetas exlicos - apesar de alguns quererem consider-los como interpolaes psexlicas (Am 4,13; 5,8; 9,6; Os 8,14; Is 1,2; Jr 15; 2,2). Alguns salmos tambm podem
ser enumerados, como 19 e 104. Mas o SI 24(25) que, com maior nfase, canta o
Criador: A Jav pertence a Terra e o que a preenche, o mundo e seus habitantes. Pois
fundou-a sobre os mares, firmou-a sobre as correntes de gua (1-2).
O sculo VI aC marcou os israelitas. Neste perodo foi extinta a dinastia
davdica. Foi destrudo o templo. Grande parte do povo foi deportada para a Babilnia,
num exlio de longos anos (587-538 aC). Entre aflio e provao, Israel
experimentado em sua f. Sobretudo o Deutero-Isaas (Is 40-55) criou uma mstica entre
lamento, profecia e certeza de f. Os profetas ao fazerem sua anlise da realidade
querem incentivar a confiana em Jav. Jav Deus nunca inferior aos outros deuses se que eles existem. preciso crer nele, pois foi quem criou o cu e fez a terra.
Crer ter certeza que ele o criador de todos os povos e regies.
Consequentemente, necessrio perceber que a escravido era a execuo do juzo
divino sobre Israel. E, inclusive, necessrio perceber que a libertao poderia vir
atravs de um povo estranho. Esta era a tnica da pregao do profeta. Mas o profeta,
que viveu no final do exlio e viu o retorno dos deportados, encheu-os de esperana:
Alegra- te... no te envergonhes... no te lembrars dos oprbrios da viuvez. Teu
Criador teu esposo, Senhor dos exrcitos seu nome. O Santo de Israel e teu
Redentor, ele chamado Deus de toda a terra (Is 54,4ss).
O SI 74, escrito provavelmente em resposta destruio de Jerusalm, parece
ser uma crtica sutil ao fracasso de Deus em redimir seu povo dos sofrimentos presentes.
Ao mesmo tempo como pr-memria a Jav, que no passado derrotou criadoramente
at o caos (74,12- 17) . Jav agora incitado a levantar-se e defender a causa do povo
(22). Que ele o redima, tal como agira na criao! A criao torna-se paradigma da
redeno. A partir deste conceito, supe-se que Deus possa e, portanto, deva redimir de
novo. Se Deus ouve as aflies de seu povo e o socorre, redime, salva, porque
constantemente age em favor de seu povo, recriando-o a fim de que ele chegue sua
28
Ibid., p. 121-151.
Ibid., p. 249.
Deus faz, cria, pessoalmente o ser humano. Particular ateno deve ser dada
criao do ser humano (Gn 1,25-2,4a). O ser humano tem aqui um papel diferenciador.
Inclusive o autor sacerdotal detm-se a descrever mais detalhada e extensamente sua
origem. Convm desde logo lembrar que na cultura humana este texto mantm uma
ontognese arcaica, s modificada pela modernidade e tragicamente quebrada pelo
darwinismo que quis fazer os humanos descenderem dos macacos. Na verdade tem-se
que afirmar a origem do ser humano dentro da grande cadeia da vida, sem isolar
sequncias.
Algumas observaes se impem: em primeiro lugar o prprio Deus ocupa-se
pessoalmente de sua criao. O texto bblico passa da ordem faa-se para faamos.
E continua faamos algo terrenoso que seja nossa imagem e semelhana. Depois lhe
atribui uma funo diante da natureza (26b). Enquanto a natureza permanece criatura
feita por ordem de Deus, o ser humano feito pelo envolvimento do prprio Deus. Do
barro (da natureza comum com os outros seres), ele feito pessoalmente imagem de
Deus.
A imagem de Deus. Ser a imagem de Deus ser distinto de todas as outras
criaturas - indica o relato sacerdotal. Mas o que vem a ser esta especificao? As
interpretaes possveis so muitas. Sobretudo, porque a expresso do autor no indica
o modo. Pode-se, todavia, por causa do contexto de 1,26-28, entender o ser imagem
como: a) atribuio do domnio e do governo sobre a terra (funo). O ser humano
exerceria, como Deus, a funo de governar ou, ao ser como Deus, poderia dominar? b)
Pode ser que seja imagem de Deus por ser capaz de se relacionar com o prprio Deus e
com as outras criaturas, como Deus mesmo se relaciona.
De qualquer modo, o ser humano distinto de toda criatura, porque semelhante
a Deus e recebeu a ordem de dominar e cultivar a terra de Deus. Ele s pode exercer sua
vontade como a exerce Deus sobre a criao - analogamente ao texto javista, que afirma
que o homem tem o dever de cultivar a terra (produzindo nela cultura). Todo o mito
criacional se constitui em que Deus harmoniza o caos separando os ambientes opostos e
embelezando-os com seus habitantes. O ser humano, sua imagem, no poder agir de
modo diferente e, portanto, produzir sua obra a partir da obra de Deus.
Terra corrompida. Mas, na verdade, logo toda a terra estava corrompida diante
de Deus e cheia de violncia. Toda carne - isto , no caso, os humanos - havia
corrompido sua conduta na terra (6,11-12). - Seria isto uma aluso que o escritor
sagrado do texto atual (o que costurou as duas narraes do incio do livro) faz aos
assassinatos cometidos por Caim e Lamec, ou seria bem mais a violncia de antes do
dilvio? - O nico possvel e certo afirmar que pelo abuso do domnio humano, a terra
est violada e violentada. Est poluda e em desordem.
Deus re-cria atravs das alianas. Como conviver com tal desordem, criada
pelo ser humano? A resposta vir pelo castigo divino do dilvio - do qual Deus vai se
arrepender. Por isto, um ano aps as guas terem destrudo tudo e todos e terem criado o
caos, Deus far as guas baixarem e a terra ficar seca (8,13). No e seus filhos estaro
a salvo, porque ele um homem justo e ntegro (6,9). A nova criao ser possvel em
cima da outra, porque Deus refaz a aliana com homens justos como No, como
ordem/bno: sede fecundos, multiplicai-vos e povoai a terra (9,1).
O embate entre Deus - o que viu que tudo era bom - e corrupo da terra porque os seres da carne viviam de modo perverso - a ocasio de o Documento
Sacerdotal perceber que, desde muito cedo, a maldade irrompeu no mundo. Somente
Deus poder fazer uma aliana com o ser humano (9,8-17), afixando no cu seu sinal,
como smbolo de uma aliana permanente: o arco-ris. Sero os homens capazes de
viver com fidelidade aliana?
A aliana na criao. Mais tarde, chegar Abrao - o idoso marido da mulher de
seio seco. Deus recomear, com ele, seu projeto de um grande povo. Com Moiss, no
Sinai (Ex 24), Deus ter de comear outra vez nova aliana. Dar nova direo aos que
saram da escravido e iro para a Terra Prometida.
O Documento Sacerdotal da Criao do cosmos e do ser humano (Gn 1,1-2,4a)
um hino cltico para louvar o Senhor. No tem como objetivo descrever uma
cosmognese nem uma antropognese.
O caos do dilvio. O escritor sacerdotal - como fizera o javista - exalta a
bondade do Criador benevolente e pontualiza a rebelio humana contra Deus e a
ordem criada. Tambm aqui o autor no est escrevendo a histria das origens. Ele
escreve seu texto ou durante ou logo depois do exlio da Babilnia. Sua experincia era
a de ver o templo de Jerusalm destrudo. V um rei (Joaquim) destitudo e o povo
exilado. V outro rei (Sedecias) assassinado juntamente com sua famlia. Muitos povos
perdem, fora, suas casas. E tambm muitos vo para o exlio. O caos est
reimplantado. Foi-se a harmonia da criao. O povo rebelou-se contra Deus. A terra est
profanada. E o ser humano sempre quebrando a aliana.
Mas Deus capaz de restabelecer sua obra e seu projeto. Ento o escritor se
serve do mito do dilvio. Olhando para o presente e para o passado, se percebe que
Deus capaz de intervir outra vez. Ele capaz de dar sentido ao presente. A rebelio e a
escravido humanas no sero a ltima palavra. preciso crer e pr confiana em Deus.
Ele vai refazer a criao. Vai libertar seu povo.
Criar ou no criar?! - Ao encerrar a anlise de Gn 1,1-2,4b convm citar o
Midrash Rab 8:3-4, ensinado pelo rabino Berraria: Quando o Santo Bendito seja Ele
estava para criar Adam, Ele viu tanto os justos quanto os inquos, que descenderiam
dele. Ento Ele disse: Se Eu cri-lo, inquos nascero, mas se por outro lado eu no o
criar como os justos iro nascer? Ento o que fez o Santo Bendito seja Ele? Ele
desviou o caminho dos inquos de diante de sua viso associando-se qualidade da
graa e ento disse a ela: Faamos o homem a nossa Imagem. 30
A grande maioria dos textos sobre a criao foi produzida a partir do ps-exlio.
quando a f de Israel se afirma no Deus criador. Os textos mais importantes aparecem
em alguns salmos (cf. 98, 100, 113, 145, 149, 150), na literatura Sapiencial (cf. Pr
10,29; J escrito entre o IV e III sculos aC; Eclesiastes, do sculo III; Eclesistico, do
sculo II; Sabedoria, do sculo I aC), na literatura apocalptica (cf. o Trito-Isaas - Is 5666; o Apocalipse de Isaas Is 24,1-2; 7,13) e o segundo Livro dos Macabeus - onde vai
aparecer a expresso ex nihilo.
Os salmos ps-exlicos louvam a jav, o criador do mundo. O israelita, que reza
estes salmos, confia na incomensurvel bondade de Deus, na sua ao salvfica e na
constncia do mundo apesar de sua transitoriedade dos indivduos (vida curta). A
literatura sapiencial vai progressivamente louvando o majestoso Deus Criador; e em
contrapartida analisa a insignificncia da vida - por seu carter passivo e efmero.
A natureza criada e des-divinizada ser, contudo, sinal de sabedoria e da
grandeza de Deus.
Na Apocalptica, vo se entrecruzar protologia e escatologia, para afirmar que
nada da criao estar perdido. Sua integridade ser recuperada num novo cu e numa
nova terra. A onde cada pessoa ter um novo corao.
30
Por fim, deve-se recordar que, paulatinamente, para o povo bblico a f em Jav
- El, o Deus do cu que criou a terra firme, o mar e tudo quanto existe - foi se
tornando to viva e sentida a ponto de identific-lo e diferenci-lo diante de todos os
outros povos. E sua histria - os fatos do ps-exlio - comeou ser contada para trs, at
o comeo mtico do mundo. E por esta razo inclusive que o Pentateuco atual comea
com a narrao do incio da obra salvfica, na criao do mundo e do homem.
A leitura literal e, talvez, ingnua dos textos da criao educou cristos desde
quase o incio do cristianismo. Tal leitura levou a uma cosmognese e a uma
antropognese frente aos desafios (contemporneos) dos mesopotmicos e outros povos,
que perguntavam - e com razo - aos hebreus quem eram eles e quais eram seu(s)
deus(es). Cotejando o poema Enuma Elish - guardadas as propores da inspirao
divina - os autores sagrados escreveram textos transmitidos oralmente.
Na expanso do cristianismo, pelo Imprio Romano - depois entre os novos
povos cristos - a cosmognese e a antropognese bblicas se impuseram no Ocidente,
praticamente eliminando as narrativas pags dos outros povos. A permanncia da
interpretao (da hermenutica) crist tornou-se algo to natural, que passou a parecer
uma explicao factual. Quando a(s) igreja(s) passou(aram) a ser questionada(s) sobretudo pela modernidade - fez(fizeram) de seu texto religioso - num processo de
autodefesa - um documento como se fosse uma explicao no mesmo nvel das cincias.
A(s) igreja(s) - para se defender(em) - preferiu(ram) fechar-se, ignorando novos
conhecimentos e impor sua verdade de f como se fosse cincia. E a partir da, sabe-se
do (triste) desfecho desta histria.
S na primeira metade do sculo XX - mesmo com fortes oposies internas,
mas tambm com a colaborao de telogos e grandes intelectuais cristos - a Igreja
Catlica pode comear a mover-se para compreender melhor o significado do texto
bblico. Ao mesmo tempo, prestando ateno s propostas das cincias, a Igreja foi
conseguindo discernir o que havia de vlido, de propositivo, de dogmtico e de efmero
mltiplos aspectos - e cuja realizao plena se dar no corao do prprio Deus, quando
estiver assemelhado a ele, podendo-o ver face a face; g) o ser humano tem tambm uma
fundamental dimenso de comunidade, por isto um ser capaz de relaes.
Mas, se Deus o fez grande e nobre, contudo, o ser humano no se portou sempre
altura de seu criador. Por querer ser Deus, quando era apenas criatura, o ser humano
comea a pecar, rompendo relaes em nvel de conjugalidade (entre Ado e Eva), de
fraternidade (entre Caim e Abel), entre as tribos/comunidades (os dos tempos de No) e
entre povos/naes (os do tempo da Torre de Babel).
Apesar de seu pecado, em mltiplas direes desde as origens, Deus no
abandona suas criaturas prediletas. Envolve-se com elas, desde antes mesmo de elas
nascerem - antes mesmo de seus pais saberem que elas viriam ao mundo, Ele j as
conhecia no ventre materno. Do nada, ele fez fibra por fibra todo o seu ser. Por amor ao
ser humano, na plenitude dos tempos deu seu prprio Filho a fim de que Ele se fizesse
um de ns e um conosco. Antes que o ser humano o conhecesse, ele j o amava, pois o
pensou, desde toda a eternidade, e o elegeu para ser santo e irrepreensvel a seus olhos.
O significado bblico da criao em momento algum pretende ser uma resposta
da cincia (criacionismo). bem verdade que no decorrer da histria do Ocidente, por
falta de outras narraes, ele preencheu um espao daqueles que centralizaram todo o
significado da vida e do cosmo em Deus. Quando do surgimento da modernidade, com
suas cincias, alguns quiseram contrapor - em nvel de cincia - as afirmaes bblicas,
muitas tenses surgiram. Lenta e progressivamente, as coisas vo se pondo em seus
devidos limites. O cristianismo compreendeu melhor o prprio significado existencial e
salvfico da Bblia. As cincias vo perdendo seu dogmatismo e compreendendo que
sozinhas no explicam todo o significado das origens. Ambas percebem a prpria
competncia, na questo. E os homens e as mulheres de f no precisam mais se
encolher por causa de sua compreenso. Nem os cientistas precisam ter medo de Deus,
para alij-lo de suas vidas. O que no significa um sincretismo novo, mas a
compreenso e o respeito pelo prprio de cada um.
A teologia da criao, fundada na Bblia, compreende de novo e de modo mais
profundo sua verdade de f e o sentido do texto. As cincias conseguem entender a
provisoriedade de suas afirmaes e os princpios mticos de onde partem para
construir as teorias. A evoluo dada como um fato aceito. As teorias explicativas so,
por vezes e sobretudo, sistemas filosficos e, em alguns casos, so rejeitadas pelos
prprios pares. O criacionismo, se por um lado transformado por alguns em teoria
cientfica, por outro lado outros tantos so capazes de ler no a letra mas o significado
da Bblia; e, e neste caso, dentro das igrejas crists h posies divergentes sobretudo
entre aqueles que tambm se envolvem em questes poltico-partidrias e/ou
ideolgicas.
Desde a f catlica - em sua orientao oficial ao contrrio de significativa
parcela de populares - se aceita a teoria da evoluo como ela , isto um fato
horizontal explicado por diversas teorias. Porm, tal fato est enquadrado nos limites
explicativos da prpria cincia, e, humanamente, de modo algum suficiente para
explicar o ser humano ao prprio ser humano.
Assim, retomando o esprito e o significado da Bblia, o ser humano, criado no
e pelo amor de Deus, num processo de desenvolvimento como tambm do cosmo todo:
31
MATTIOTI, A. Dio e Vuomo nella Bibbia di Israele - Teologia delFAntico Testamento, p. 191- 192.
Captulo 5
Somos mais de seis bilhes de humanos que vivem sobre o planeta. Mas, quem
somos ns? A afirmao, que apenas quantitativa, nada diz sobre quem somos. A
inimaginvel quantidade de seres (seis bilhes) poderia ser dita de animais, aves, peixes,
etc. Porm, cada um dos seres um indivduo de uma espcie e enquanto tal repetio
de algo j existente, s diferenciado por ser um outro e no o mesmo. O ser humano
um membro de espcie - precedente de uma gerao anterior e, pela lgica da gerao,
continuar gerando a espcie humana sem deixar de pertencer superfamlia dos
hominoidea (20 milhes de anos), originada dos primatas, por sua vez, originados dos
grandes mamferos, cuja origem, bem mais remota, est na vida surgida h bilhes de
anos.
O ser humano mais do que mero numeral de uma cadeia (espcie) especfica.
Ele se eleva acima da cadeia biolgica de reproduo, onde como humano mais do
que produto e reprodutor. Ele se distingue de todos os outros seres por causa de uma
conscincia evoluda capaz de organizar-se, organizar e transformar o ambiente que o
rodeia. Alis, esta uma capacidade (organizao social, composio de casais, defesa
territorial, ataque/ defesa, padres de comunicao, utenslios de mantimentos diversos
etc.) que tambm pertence a inmeros ancestrais comuns entre homindeos e smios e
dos prprios homindeos mais antigos.
acontecimento natural. Uma s a origem que faz do ser humano mais que objeto. Sua
origem faz ser um algum muito peculiar. Ela o faz ser pessoa. A pessoa no se faz por
si s, e nem feita s por seus pais (ou por fecundao de seus cientistas).
compreensvel que a cincia e seus cientistas entendam o ser humano na sua
animalidade, at como um complexo biofsico manipulvel e evolutivo. Mas, o cdigo
cientfico limita-se - para afirmar sua verdade - na verificabilidade, na experimentao e
nos achados. O objetivo da cincia, no caso, pode ser morfolgico, filogentico ou
arqueolgico.
O alcance da ideia da criao - no s judaico-crist, mas de totalidade dos
povos/cultura - vai muito alm das origens. A ao criadora de Deus dinmica e
contnua. Deus no se limita a fazer a criao primeira, pronta e acabada. Tambm no
se limita - como alguns sugeriram - criao de uma origem que traz potencialmente
todas as possibilidades de seu desdobramento, por causas segundas e no tempo
oportuno, distante de sua ao. Os cristos - e outros povos - professam a constante
presena de Deus em sua obra criando-a, mantendo-a e levando-a a seu termo, mesmo
que por causas segundas ou factuais.
Aqui entram em questo diversos conceitos - que sero retomados
oportunamente. O mais marcante o da histria da salvao, que envolve o tempo. O
tempo considerado em diversas dimenses: o presente (cronolgico), o tempo
escatolgico (i.e., do fim de tudo) e o tempo protolgico (i.e., das origens). A ao
criadora de Deus no se reduz ao seu incio (protologia), mas seu significado est na
consumao da nova criao (escatologia). Outros conceitos que importam ainda so,
por exemplo, o da consumao da criao, o da ressurreio, o de cristificao, o de
teleologia etc.
til lembrar que cincia e teologia so duas leituras radicalmente diferentes
sobre muitos fatos comuns. O olhar de cada uma delas se torna verdadeiro - s vezes
no seguro - a partir de seus pressupostos. As leituras so, sobretudo, diferentes. O que
no quer dizer necessariamente que sejam opostas ou que poderiam s-lo. Por vezes,
elas produzem questionamentos uma outra. Usam at palavras comuns (que s vezes
tm significados diferentes). Obviamente, a grande diferena est na metodologia e nos
pressupostos. Ao reconhecer as distines e limites de cada uma, tanto o cristo quanto
o cientista podem dialogar. Um cristo tanto pode ser cientista, quanto um cientista
pode ser cristo. O Deus que inspira os cristos o mesmo Deus que inspira o cientista mesmo que nem tudo seja inspirao divina.
tradio bblica mantinha uma oralidade viva. Mas, aqui, importa afirmar que a Bblia quando fala sobre o ser humano - somente o entende como o ser humano atual (homo
sapiens sapiens), compreendido dentro dos critrios da cultura semita de seu tempo.
Mesmo em sendo um livro crido como revelado, os cristos nunca imaginaram cobrar
do texto sagrado ideias que s aparecero na cultura humana depois do sculo XVIII do
Ocidente.
Na verdade, o presente humano perde-se na memria do tempo - diferentemente
da literatura sobre ele. A evoluo humana chegou at ns por processos cuja lgica
nem sempre factual e conhecida. Bilogos acreditam que exigncias intelectuais de
uma interao social complexa foram importantes fatores da adaptao natural para a
expanso do crebro dos primatas e, em ltima anlise, dos seres humanos por terem
um crtex cerebral maior. Socializar-se, fazer aliana, explorar o conhecimento da
aliana dos outros foram atitudes fundamentais para o sucesso evolutivo dos animais.
Isto muito mais complexo que aprender a distribuio e a poca do amadurecimento
de recursos alimentares do meio ambiente. A complexidade das relaes sociais
aumenta geometricamente por causa de exigncias de uma comunicao melhor, de
habilidades sociais mais desenvolvidas, de padres de substncia mais complexa, de
tecnologia mais aprimorada.
Ao lado disto, feixes neurais (fascculos arcuatum) na chamada rea da Broca,
que tm influncia sobre as reas do crebro - que controlam os msculos dos lbios,
dos maxilares, da lngua, do palato mole e das cordas vocais - produzem o contedo
(som) e a compreenso da linguagem. Isto se expandiu entre os seres humanos como o
potencial para toda a forma de sons humanos hoje produzidos desde uns 300.000 anos
(origem do homo sapiens arcaico). A fala uma das ltimas aquisies da evoluo dos
hominneos - pois como expressar as conquistas anteriores dos elementos abstratos,
regras sociais, mitos, rituais, organizao econmica e social? Psiclogos envolvidos na
histria da humanidade deixaram de afirmar que a fala fruto de necessidade de
vocalizao e comunicao, para afirm-la como consequncia da construo do
imaginrio mental. Precisou-se da fala mais para contar histrias do que para agir.
H, em comum com os animais, uma histria de muitos comportamentos at
recentemente atribudos exclusivamente aos seres humanos. O famoso livro O macaco
nu - Um estudo do animal humano 32, de Desmond Morris, descreve o ser humano, o
macaco nu, como primata de rapina evoludo, que passou de vegetariano a carnvoro,
32
campo da neurologia. A mente pode ser atingida no crebro pelo processo evolutivo
tanto no nvel filogentico quanto ontogentico; leses cerebrais podem ser curadas pela
ao de frmaco-qumicos ou de cirurgias.
Alguns neurologistas afirmam que decifrar a conscincia descobrir de modo
supremo os alicerces biolgicos da mente. O renomado neurologista Antonio R.
Damsio afirma que:
34
Sem dvida, a pessoa no deve ser considerada como uma fuso de gametas que
comea (?) no instante da fecundao; mas isto no autoriza ningum afirmar que
gametas humanos fundidos, clulas ou embries, no sejam um ser humano
potencialmente total. bvio que os genes humanos no so um ser humano na sua
completude social. Mas como negar que ali no esteja tudo quanto ser mais tarde uma
pessoa humana, bem alm de seu sentido gentico?
A partir dos anatomistas da modernidade comearam a dissecar o corpo como
uma mquina humana, abriram-se conhecimentos novos e inauditos, no campo das
cincias. Desde o aparecimento do livro de Vsale, Humani corporis fabrica, em 1543,
at s pesquisas biotecnolgicas de hoje, as cincias foram interpretando,
progressivamente, o ser humano como corpo - por causa do seu objeto de pesquisa. Da
a transformar a objetividade do corpo humano em homem-corpo-objeto tem sido um
passo. Evidentemente a tecnologia biomdica e as cincias naturais - movidas inclusive
por interesses econmicos e filosficos - vm interpretando o ser humano desde o que
controlvel por sua cincia. A o ser humano - que perde sua unidade - torna-se objeto
(o qu?) de manipulao, para ser compreendido como unidade biolgica, em sua
particularidade gentica.
Esta discusso, h tempos atrs, tomou vulto como questo de natureza e cultura.
Desde a teoria da evoluo se pode inferir a inadequao do tema, pois elementar
compreender que a pessoa foi surgindo desde a animalidade - esta seria vencida pela
capacidade cultural de se superar. Por sua vez, a cultura pressupe o desenvolvimento
da natureza (crebro). O ser humano vem sendo resultado de uma longa evoluo
histrica, que tomou velocidade muito maior desde a domesticao do fogo e da
agricultura, dos animais e da fala. Sem dvida, h no ser humano algo muito maior,
ainda.
Nos tempos hodiernos, a pesquisa biolgica - que nem sempre leva em conta o
humano das pessoas - detm-se no processo genoma, filogentico - o que, certamente,
de grande interesse para a humanidade - mesmo sem exauri-la. A grande maioria dos
biocientistas ou biotecnlogos permanece, inconscientemente, marcada por uma das
duas grandes tradies da concepo de pessoa humana: ou a grega (um composto de
corpo e alma) ou a crist (a pessoa, propriamente dita).
Na histria, as duas muitas vezes se fundiram. Todavia, a concepo greco-latina
(concepo dualista) abriu caminho para a investigao cientfica sobre o corpo. J a
Igreja Catlica usou indistintamente as duas; mas a influncia filosfica helnica
enfatizou a dualidade (muitas vezes o dualismo) do corpo e alma. Isto oportunizou a
modernidade fazer o modelo platnico de corpo culminar na filosofia de Descartes, que
considerou o corpo (res extensa, no pensante) como uma mquina; enquanto o esprito
(coisa-pensante-no-extensa),
se
autonomizava
em
relao
corporeidade.
35
subjetividade. Este seu corpo. Ele seu corpo. Seu corpo tornou-se um dado
arquetpico, no apenas uma matria natural (csmica). Agora a fonte originria, o
princpio e o fim de sua atividade. O corpo humano, como microcosmo, carrega o
universo do qual ele parte tambm. a fonte de experincia do cosmo e no cosmo. E,
simultaneamente, a fonte de experincia de igualdade com os animais e sua distino.
vlido identificar o ser humano pelo seu corpo? - Alis, de que maneira poderse-ia identific-lo sem a corporeidade? - Como corpo, o ser humano existe e est
centrado em si mesmo, estando em comunicao com os outros e com o cosmo.
O corpo densifica o ser humano e lhe d significado. resultado do processo da
vida que superou a natureza material, que superou a animalidade e agora se faz
subjetividade, tanto porque resultou deste longo processo, quanto porque concentra,
desde sua originalidade embrionria, o patrimnio evolutivo da vida humana. Nele, o
ser humano supera o sistema inato dos esquemas comportamentais dos outros animais e
as indigncias da especializao. Nele, reveste-se com sua criatividade e fantasia.
Comparando-se com os animais, o ser humano percebe-se como um ser, que em
vista de sua subjetividade capaz de transcender toda a natureza e a prpria cultura,
concentrando a evoluo mxima da vida - que agora, nele, se torna esprito humano;
isto , a conscincia - que emergiu de todo o universo e nele se densificou - f-lo
responsvel (o que responde) perante a natureza e a histria (cultura), diante de si
mesmo e dos seus pares. A conscincia - resumo densificado da histria do cosmo e da
vida - radica-se no ser humano, na sua corporeidade, porm f-lo perguntar-se, no mais
sobre o que ele ?, mas quem ele ?, por estar situado diante do outro, o qual no
mais um animal diferente, mas um ser humano igual a si.
A identidade peculiar. A identidade humana explicada pela manuteno da
espcie, aumentada e conservada por meio da reproduo gentica. Mas, os mesmos
genes, que explicam a conservao de espcies, participam de algo que lhes maior:
presidem a irredutvel singularidade humana e mais ainda a singularidade do indivduo
humano. assim que, desde a gentica, cada ser singular porque nele se fez um
arranjo nico, no apenas por causa de diferenciadas contribuies biolgicas do pai e
da me (ele ser diferente de seus irmos), mas pelo mecanismo que preside a unio
daquela vida nica e singular do modo absoluto. Se isto marca a individualidade, por
outro lado a faz diferente de todo outro ser humano. O cdigo gentico - que transmite a
herana e informa (d forma) o organismo (corpo) humano pela sua relao com o
ambiente - vai garantir nova vida, no s a grande complexidade de determinaes
5. A hominizao
5.1.
A passagem ao humano
Deste modo, a criao mantida e lhe oportunizada modificar-se para que toda
a obra criada venha a ser a glria de Deus. Assim, a criao no nem algo ao acaso
nem algo predeterminado. No ao acaso porque Deus, alm de direcionar sua obra, a
quer existente como parte da magnificncia da criao. A criao toda feita para
glorificar seu criador - excluda qualquer ideia de pantesmo. No ao predeterminismo
mecnico, porque a vida no se desenvolve nem uniforme nem constantemente; h uma
gratuidade tal que as coisas podem existir e desaparecer 39 sem necessariamente serem
razo para o passo seguinte. Pondo exemplo: o surgimento e o desaparecimento dos
dinossauros e dos neanderthalenses.
37
Obs: no ltimo captulo abordar-se- a questo do agir escatolgico de Deus, fazendo novos cus e nova terra, onde o pressuposto
a antecipao histrica da ressurreio de Jesus, como ressurreio de todos os seres humanos e consumao do universo.
38
Cf. SCHNEIDER, Th. (org.). Manual de Dogmtica, vol. I, p. 196
39
Cf. Catecismo da Igreja Catlica, n. 310.
40
Aqui, sem dvida, valem as belssimas pginas de Santo Irineu sobre a glria de Deus no homem vivo e a glria do homem vivo
em Deus.
Cf. FORTE, B. Eeternit nel tempo - Saggio di antropologia ed tica sacramentale, p. 79.
DURAND, G. Introduo geral biotica - Histria, conceitos e instrumentos... p. 240-245.
sobretudo sua comercializao. Pois o dinheiro coisifica tudo o que ele compra e
coloca um sinal de igualdade entre tudo o que ele coisificou, no por acidente, mas por
essncia.43
3) A particularidade e a complexidade dos casos criam, frequentemente, dilemas
muito difceis. Ento, se deve agir sempre em vista de um bem para o maior nmero de
pessoas: o melhor bem para o ser humano, a soluo tima e mal menor. Decorre da
um compromisso: escolher sempre o caminho mais promissor, mais positivo sempre,
sem se resignar ao mal menor.
Idem, p. 241.
Cf. SANCHES, M. Biotica, cincia e transcendncia, p. 80ss e 98 ss.
45
significado humano ltimo est em Deus. E nele que esto tambm a plenificao e a
plenitude humanas. Verdadeiramente, s em Deus o ser humano encontra sua
identidade. Deus quis, em Jesus Cristo, mostrar sua face humana e s nele o ser humano
consegue definir sua face.
Captulo 6
Somos mais de 6 bilhes de pessoas humanas no mundo atual e, dentre elas, uma
parcela de uns 2 milhes professam a f em Jesus Cristo, atravs de um dos 33.800
grupos - que compem o cristianismo no mundo. Entre eles, se sobressai o cristianismo
catlico quer pelo nmero de adeptos (mais de um bilho) quer por sua fora histrica
no Ocidente. Cada grupo mantm a certeza de sua fidelidade a partir de um aspecto para
compreender o todo que Jesus Cristo ou para vivenciar seus ensinamentos a partir de
um ponto de compreenso.
Os cristos, professando a f em Jesus Cristo, sabem por revelao divina que
Deus tem um plano para todos os seres humanos e para a prpria natureza. Tal plano foi
revelado pelo prprio Jesus s recentemente. H dois mil anos, somente. (Convm
lembrar que muitos povos vivem na Amrica Latina h mais de 15 mil anos.) O plano
salvfico conhecido apenas por esta parcela da humanidade. Mas ele oferta de Deus
para todos e a cada um dos milhares de seres que nasceram antes de Cristo e para os que
ainda havero de participar da humanidade nos tempos vindouros. O papel dos cristos,
neste contexto, o de ser sinal e testemunha do plano universal de Deus.
Ao mesmo tempo, aos cristos so dados critrios do alto (a revelao de Deus)
de quem so eles e todos os outros seres humanos; seja os que j existiram, seja os que
viro a existir. Esse privilgio dom livre e gratuito de Deus. Porm, no exclusivo
dos cristos. A gratuidade de escolha do doador e a inclusividade de todos os seres
humanos na causa comum tm sua origem antes da criao do mundo. Est num tempo
fora do tempo. Isto pertence f crist, revelado biblicamente.
Santo Agostinho: inquieto est o meu corao, enquanto no repousar em ti, Senhor.
No permanecendo em si (experincia), que o ser humano encontra a resposta. O
autoconhecimento surge da sensao do divino acima do humano. Mas a experincia
que leva o ser para fora de si, na verdade o traz para dentro de si. E a comparao
dever ser feita com as prprias experincias.
A resposta definitiva. Os cristos creem encontrar a resposta a partir de Jesus
Cristo. O Jesus de Nazar to verdadeiramente Deus quanto homem histrico. Filho
da promessa a Abrao descendente de Davi, nascido de mulher, nasceu na plenitude do
tempo (cf. G14,4). O Filho de Deus, isto , Deus mesmo feito homem, nasceu como
um dos nossos. Nele, a comunidade crente reconheceu Deus entre ns, Deus-conosco,
feito nossa carne. Porque na carne humana havia a possibilidade de Deus tornar-se um
de ns, o Verbo eterno fez-se um de ns a fim de nos elevar at Deus. Isto porque Ele
queria realizar, de modo definitivo, a condio querida por Deus desde toda a
eternidade, para todos. Os seres humanos devero atingir sua realizao mxima, sendo
a glria do prprio Deus. Podero viver diante de sua face.
Viver definitivamente em Deus no ser privilgio humano. A natureza tambm
haver de participar - a seu modo (cf. Rm 8,18-22) - de nova vida, quando Deus criar
tudo, de novo, quer dizer, quando Ele fizer novos os cus e nova a terra. As criaturas
invisveis (anjos, por exemplo), professadas na f crist, j vem a Deus face a face.
Foram criadas, numa histria prpria, dentro da economia de Deus.
O Deus nascido numa noite da histria dos homens tornou-se a luz humana para
todos. Agora, Ele como um de ns e nos fala abertamente. Ele falara anteriormente, de
muitos modos, pelos patriarcas, pelos profetas, pelos sbios de todos os povos e,
inclusive, pela prpria natureza (as teofanias). Por volta de 8-6 aC, isto , na plenitude
dos tempos (cf. G14,4), o Verbo se fez carne (Jo 1,10) para que pudssemos ver e
participar da glria divina.
O revelador do ser humano. E desde ento, e s a partir da, que comeou a
ficar claro quem o ser humano. O Deus historicizado tornou-se nosso revelador desde
a nossa prpria carne, isto , desde a nossa prpria realidade. E Ele falou conosco, no
s em nossa lngua - capacidade de compreenso - mas tambm na gramtica de Deus.
Quer dizer, por sua knose (divino) e por sua vida, morte e ressurreio (humano), falou
conosco.
Deus que poderia manifestar de muitos modos seu plano, falou por seu prprio
Filho, feito um de ns. Sem dvida, a distncia entre Deus e o ser humano infinita.
Mas Deus superou a distncia estando como humano entre ns. Ele no elevou nenhum
humano sua condio: pois impossvel! Mas desceu em nosso meio para indicar-nos
que somos feitos sua imagem. Somos desde j seus filhos adotados em seu Filho
nico. Para que ns nos revestssemos de Deus, como diz Santo Irineu, era necessrio
que Deus se vestisse de nossa carne. Foi assim que Ele se fez nosso irmo, a fim de nos
fazer filhos de seu Pai - no na igual natureza, mas na igual participao.
Jesus Deus como expresso humana. Mesmo que Deus no se reduza a ser
Jesus na terra, Ele permanece Deus. Tendo assumido a condio histrica e
transformando-se em humano, Ele Deus-conosco e para-ns. Porm, Jesus humano
como todos os seres humanos. Para ser tal, o Verbo se humilhou, fazendo-se um de ns,
sem ter considerado isto indigno de sua grandeza (cf. Fl. 2,6). Assumiu nossa carne
histrica (i.e., admica) para que pudssemos ter - pela ressurreio - a carne gloriosa
do Filho de Deus. Deste modo, o homem admico se tornar crstico na consumao:
eis o que o Verbo quis nos revelar! Ele, sendo Deus, fez-se humano como ns. Revelouse em nossa carne como um de ns, para revelar-nos quem seremos em plenitude.
H, porm, um outro e mais fundamental aspecto: nele revelou-se a plenitude do
ser humano. Como disse K. Barth, citado por Lus Ladaria: Jesus o homem tal como
Deus quer e criou.47 Sem dvida, aqui se deve compreender a humanidade de Jesus em
sua totalidade: desde a encarnao, passando pelo nascimento, vida, morte e sua
culminncia: ressurreio.
Deste modo, j se pode compreender o que dito em Jo 3,2: o que seremos
ainda no se manifestou. Portanto, no podemos nos conhecer de modo definitivo...
seno em Cristo. Em outras palavras: ainda no podemos saber definitivamente quem
o ser humano. O ser humano que conhecemos no vive ainda sua plenitude, sua
totalidade.
O ser humano definitivo. S em Jesus ressuscitado podemos saber quem somos e
quem seremos. Dito isto, preciso reafirmar:
O mistrio do homem s se revela no mistrio de Cristo, que por sua vez est
implicado no mistrio do Pai. Estes trs mistrios - o do Pai, o de Cristo e o do homem se inter-relacionam. Sua afirmao e pice esto em Cristo. Cristo se torna assim
mediador dos homens diante de Deus e mediador de Deus diante dos homens. Participa
simultaneamente do mistrio Pai e do mistrio do ser humano - resguardada a sua
misteriosidade de homem/Deus ou Deus/homem. Ele foi todo para Deus (pro Deo) e
todo para ns (pro nobis), mas conosco e como um de ns. E por isto que s nele
verdadeiramente podemos saber quem somos, e, paralelamente, quem ele e quem
Deus. Saber quem o ser humano implica, ento, saber primeiramente quem Cristo.
(Consequentemente toda antropologia , antes de tudo, uma cristologia. E toda
cristologia antropologia, como j disse Rahner. Apesar de toda antropologia ser
tambm uma teologia e vice-versa; pois no se pode falar do homem sem ter Deus; nem
pode se falar de Deus sem ser humano.) 48
Ainda de Barth vale a afirmao: O ser humano ontologicamente determinado
pelo fato de que, entre todos os homens, um dentre eles o homem Jesus (KD. III/2,
158). E o Concilio Vaticano II ensina:
Bendito Deus e pai de Jesus Cristo que nos abenoou com todas
as bnos espirituais, como tambm nos elegeu nele antes da
fundao do mundo, para sermos filhos de adoo por Jesus
Cristo... para louvar a glria de sua graa... descobrindo-nos o
mistrio de sua graa... de congregar em Cristo todas as coisas
na dispensao da plenitude dos tempos, tanto as que esto nos
cus como as que esto na terra; nele, digo, em quem tambm
fomos feitos herana havendo sido predestinados... a fim de
sermos o louvor de sua glria... e tendo nele sido criado, fostes
selado com o Esprito Santo da promessa. O qual penhor de
nossa herana, para redeno da promessa adquirida, para o
louvor de sua glria.
49
50
Ver KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, Th. (org.). Manual de dogmtica p. 369ss
Cf. CIC, n. 302, 310.
20,16). Foi aberto ao dilogo, mas tambm foi exigente e radical (3,19-22; 8, 31-36;
6,58; 8,41-47; 17,16). Salvou o ser humano, pelo amor (13,1; 15,13). Foi verdadeiro
sinal e concretude de salvao (1,1-18; 8,12; 12,49-50; 14,6; 1,14).
E mais: desde o Evangelho de Joo, Jesus o nico caminho de salvao (14,211), nica porta (10,7-10), a fonte de vida (6,35; 11,25; 14,6). o grande libertador da
morte (4,47; 6,49), das trevas (3,19; 8,19; 9,5), do juzo (3,17-19; 5,24; 12,47-48), da lei
(1,16-17.45; 6,32). Revelou-se como o revelador do Pai (3,34; 8,28-29; 12,49-50; 14,510; 3,16-17; 14,6).
Mas quem Jesus para o outro ser humano? Aqui, como exemplificao, a
resposta tomada do Evangelho de Lucas: Jesus quem se faz irmo, quem se comisera
diante do doente, do aleijado, do cego, do leproso, do necessitado (4,38-39; 4,40).
quem considera o ser humano como irmo, apesar da fora do mal (4,31-36; 4,41),
quem valoriza a todos. a presena salvadora e misericordiosa de Deus entre os
homens que nunca tinham visto coisa igual.
Desde que Deus se fez um de ns - para nos mostrar quem somos - o ser humano
adquiriu uma dignidade maior.
No captulo anterior, indicou-se a dignidade baseada num conjunto de fatores,
como individualizao, irrepetibilidade, autonomia, subjetividade e vulnerabilidade
peculiares - combinadas em propores e estgios de vida prprios. Agora a dignidade
humana se fundamenta no prprio Deus encarnado - o que atribui a todos uma igualdade
sem distines (entre os seres humanos nem todos so considerados iguais). A revelao
de Deus vem acompanhada do apreo pelo ser humano, sobretudo na defesa dos
rfos, vivas, estrangeiros (cf. Tg 1,27), dos doentes, pobres, cegos e prisioneiros
(cf. Lc 4,18ss; Mt 25,37ss) e lhes confere dignidade porque todos tm a mesma origem
e destino comuns.
A dignidade no um valor, mas o fundamento dos valores, afirmou Henrique
Dussel. Tal fundamentao est na prpria existncia do ser humano por ser humano,
i.e., ser de Deus. Assim, a prpria sociedade deve respeitar e fazer respeitar todas as
pessoas, seja lutando pelo reconhecimento da dignidade de cada um, seja pela produo
de leis que visam o bem de todos, seja pelo grito contra as excluses, seja pela
indignao diante da negao ou prejuzo da vida, seja pelo empenho nas relaes
democratizadas.
Mas aqueles que professam a f em Jesus Cristo se sentem mais ainda
envolvidos neste reconhecimento por causa da gratuidade divina em criar os seres
humanos como seus filhos, por causa da interdependncia comum de todos fundada na
fraternidade crist. Todos passaro a ser irmos e perfeitos no prprio Cristo.
A construo e a re-construo da dignidade tornam-se tarefa de todos os
cristos para o bem de todos os seres humanos sem distino.
A grandeza do ser humano vai ainda alm da sua dignidade humana, por causa
do amor que Deus lhe dedica. Deus amou tanto o mundo, que lhe deu seu prprio filho,
nascido de mulher (G1 4,4). Se o Verbo o filho unignito do Pai, se sua Palavra
para os seres humanos de todos os tempos, se Ele seu Filho dileto, ento ao d-lo,
humanidade toda, como se a Trindade mesma se doasse a ns.
Isto, porm, ainda no tudo. A autodoao da Trindade no s se fez pela ao
do Filho, gerado ab aeternum; faz-se tambm pelo nascimento/criao na carne da
mulher: quer dizer, na histria (no tempo) e na prpria humanidade. O Filho do
Altssimo torna-se filho tambm da criatura: Deus contou com a delicadeza e
concordncia de quem criara. Elevou uma de nossas mulheres - a mais bendita e cheia
de graa a seus olhos - condio de parceria sua, para que, nela e por ela, o Filho
divino agora nascesse filho do homem. Em Maria, a humanidade elevada condio
de Theotokos (me de Deus). Grande deve ser a humanidade toda, pois Deus pediu
licena (o sim) de Maria para entrar na humanidade admica e se fazer um de ns. A
dignidade terrena foi elevada condio divina, dignidade divina. A humanidade toda
se tornou receptculo de Deus. E nisto foi mais ainda dignificado: Deus doou-se sua
criatura, fez sua a carne dela e passou a morar com ela. Deus-conosco um dos nossos e
nos deu uma dignidade inaudita.
O amor divino provocou o ser humano e encontrou eco neste corao, nesta
carne que o prprio Deus criara para que tambm ela se tornasse sua carne. A
solidariedade de Deus desceu a tal ponto de encontrar, na carne virgem (nova), o espao
para introduzir-se entre ns, a fim de elevar todos, por amor, dignidade e grandeza
de v-lo face a face, como seu semelhante.
Desde a encarnao e a vinda do Verbo, os crentes de todos os tempos incluindo os mais de dois bilhes de homens e mulheres atuais - passaram a crer no
plano do Pai, por Ele revelado, e a encontraram no s o seu significado escatolgico
mas tambm sua dignidade maior j nesta histria. Certos de que caminham - na
provisoriedade (in statu viae) - rumo plenitude do Reino os cristos, pela graa divina,
vo antecipando a passagem do primeiro e velho Ado (homem natural, cada um de
ns) para o verdadeiro e definitivo Ado.
Esta passagem tem, concomitantemente, uma dimenso eclesial - que a Igreja
faz desabrochar tambm nos sacramentos, como encontro com Deus. Porm, como se
afirmou no incio deste captulo, esta plenitude para todos os filhos e filhas de Deus. O
proprium dos cristos , conhecendo este desgnio salvador, se tornarem
corresponsveis no anncio do Evangelho (boa notcia para todos) e os implantadores
do Reino de Deus antecipado na histria.
Crendo e aceitando Jesus como o nico Senhor, e recebendo seu batismo, o
crente pode antecipar escatologicamente a nova criatura. Pelo batismo, morre o velho
Ado e surge o novo. Neste sentido, a tenso entre histria e escatologia manifesta-se no
corao de humanidade e de cada batizado como a luta tica entre Ado e Cristo, entre o
homem terrestre e o homem celeste. Se, como diz Lutero, a f faz a pessoa, ento desde a correspondncia graa - o ser humano busca aperfeioar a prpria vida,
cristificando-se progressivamente. A relao com o segundo Ado implica a liberdade,
que - como diz Kaspers - alcana a plenitude na obedincia e na disponibilidade para o
amor. Jesus nos revela que Deus amor (1Jo 4,8). Ao mesmo tempo, nos ensina que a
lei fundamental da perfeio humana, e, portanto, da transformao nossa e do mundo,
o mandamento novo do amor. Aos que acreditam na caridade divina certifica estar
aberto o caminho do amor para todos os homens e no ser intil o esforo para a
instaurao da fraternidade universal (GS 38). A base desta transformao efetiva esto
a morte definitiva do velho Ado e a vitria radical (ressurreio) no novo Ado. O
definitivo aqui pertence escatologia, consumao dos tempos.
Mas a antecipao na histria se produz pelos novos comportamentos humanos
ticos dos crentes, pelos sacramentos desde o batismo. Ser nova criatura em Cristo ,
pois, no apenas uma antecipao possvel, como igualmente um desejo do Senhor:
preciso nascer de novo... nascer da gua e do Esprito (Jo 3,7.5) e viver como tal, pois
Deus j nos elevou dignidade de filhos e filhas seus.
Captulo 7
Somos mais de seis bilhes de pessoas que caminham para o futuro. Mas qual
futuro? Onde? Quando? Como?
H no ser humano uma tendncia fundamental psicorracional de abertura para o
futuro e para o alm, que inclui tambm o transcendente. A prpria vida csmica
desenvolveu esta perspectiva. E o ser humano a capitaliza em seu prprio benefcio. Ela
se concretiza nos sonhos e utopias, nas esperanas e nas conquistas, desde o fracasso at
o desejo de felicidade. Em algumas partes do mundo cultural ela fomentada, sobretudo
desde a inveno da televiso, em fantasias de conquistas espaciais, com a fuga em
naves siderais para outros planetas. Os vencedores sempre hasteiam a bandeira de seu
pas. Ou ento criam mocinhos, cowboys sempre vencedores contra inimigos cruis.
Isto se faz desde programas infantis, com desenhos animados, at a fico de guerras
intergalcticas. Tal dado cultural localizado. Mas exaustivamente exportado e
percorre o mundo atual, fomentando sonhos, que povos antigos e/ou de outras culturas
mantinham nos contos e narrativas mticos, que realavam valores humanos.
A humanidade caminha... Num processo evolutivo, como evolutivamente
caminhou entre tecnologia (da rudimentar mais sofisticada) e sabedoria.
Para onde vamos? A inquietante questo permanente para o ser
faber.
Modernidade
(ltimos
300
anos)
apresentou
um
desenvolvimento to grande, que parece quase dizer: imaginar fazer ou, no mnimo,
poder fazer. Uma determinao tecnocrtica parece caracterizar o homo faber e se
impe, pois quem no a acompanha poder perder foras diante do outro (concorrente
pessoal, grupai ou racional). O predomnio tcnico - que se torna filho do domnio
econmico e militar - vai se transformando em controle/escravido, escapando das mos
do prprio ser humano. Assim desde a eletricidade aos computadores, do controle do
tomo s suas exequibilidades, tudo vai se adiantando, obrigando o ser humano buscar
mais tecnologia, sob pena de ficar superado.
Eugenia? Desde a Modernidade, a tecnologia tornou-se uma religio de
salvao - fora da qual no h futuro. Estabeleceu uma escatologia ambgua: no
mais o ser humano quem dirige o desenvolvimento. Pelo contrrio, dirigido por ele.
Assim, desde a tcnica (tecnologia e tecnocracia), caminhamos para um futuro no mais
utpico, mas possvel - no mnimo superando as limitaes atuais. Caminhamos para a
eugenia possvel, graas manipulao gentica, estabelecendo novo modelo de ser
humano. Isto por acaso queria dizer: para nosso futuro, no apenas brincaremos de
Deus; mas tambm determinaremos e controlaremos a continuidade da evoluo que,
at agora, estava entregue natureza? Podemos prolongar artificialmente a vida,
selecionar genes, criar homnculos para determinadas tarefas e, por fim, preparar
seres capazes de fugir para outros planetas habitveis? A tecnologia biolgica pode
responder (j) para onde vamos... Talvez ela no pudesse responder se este o caminho
desejvel para a humanidade.
Ecossistema. A questo ambiental tem proposto, de modo alarmista, o problema
de nosso futuro. Somos todos dependentes deste nico ecossistema. O seu futuro,
Desaparecimento das espcies. Ningum - nem seres humanos nem animais tem necessariamente o futuro assegurado. Milhares de espcies j desapareceram ao
longo da histria csmica e outras havero de desaparecer. Surgiro novos seres at o
Desde o contexto social, pode-se pens-la como fatalidade, necessidade, bem/ mal ou
realidade intransponvel - que inclusive, por fim, torna-se uma questo econmica. H
duas certezas fundamentais: a morte a mais radical interrupo da vida e todos
morrem por causa da natural finitude - inclusive gentica. Diante destas certezas, alguns
tm buscado uma ligao de conhecimentos (pretensamente) cientficos (medicina,
psicologia, parapsicologia etc.) com antigas convices religiosas e existncias de vidas
passadas ou futuras.
O sentido cristo. A Modernidade criticou o cristianismo - e por extenso outras
religies - pondo em xeque suas afirmaes tambm em torno da morte. E bem verdade
que muitos cristos mantm um sentimentalismo desesperador diante da morte e do
alm, imprprios da f crist, num sentido puramente horizontal, como se uma
pedagogia (infantil) substitusse o significado da f. Isto inclusive oportunizou aos
mestres da suspeita porem em xeque a f crist e a esperana em Deus, a partir de
princpios rgidos do secularismo (Feuerbach), dos diversos atesmos militantes [o
materialismo dialtico (Marx e Engels), o espiritualismo decadente, por falta de porvir
ou pelo mal-estar de iluso perdida (Freud), a morte de Deus, o significado do superhomem, o eterno retorno do niilismo (Nietzsche), a absurdidade da vida (Sartre e
Camus)].
3. A f na consumao
conseguiu dar uma estrutura teolgica a esta problemtica, que trata do fim e do
cumprimento (consumao) da criao e da histria (individual e csmica) da salvao.
Consumao aqui significa atingir a totalidade do sentido e da razo de toda obra
criada e de cada uma de suas partes, na plenitude interior e durvel de seu ser - que
estar capacitada a participar da vida de Deus. Por outras, a consumao tem a ver com
a. realizao plena do plano de Deus. Ele quer que tudo e todos sejam elevados
estatura de Cristo para serem entregues ao Pai. A realizao destas coisas ltimas
(eschat) contm um mistrio divino, do que ns nos aproximamos por iniciativa do
prprio Deus. Contudo, Ele no-lo re-vela atravs de smbolos apocalpticos e
messinicos. Dado que tais realidades no podem ser descritas - no se pode fazer
reportagem sobre elas -, cr-se que traro em seu bojo uma inaudita inovao de
Deus. Ele far novas todas as coisas num processo de continuidade descontnua. Nosso
mundo atual ser libertado de toda fragilidade e condicionalmente de tempo e esforo,
para atingir sua plenitude inaudita em Deus.
Na teologia patrstica. A escatologia e a consumao do cosmo e dos seres
humanos quase no sofreram contestaes fora do cristianismo at a entrada da
Modernidade. Nos sculos II e III, no interior do cristianismo, surgiram afirmaes da
Igreja para combater a gnose e seu espiritualismo desencarnado, o prazo do julgamento
e das penas do inferno. Ainda no primeiro milnio apareceram muitas ideias
milenaristas que continuam se atualizando nos tempos.
O smbolo niceno-constantinopolitano (481 dC) conjugou a vinda de Cristo, em
sua glria, ao anuncio do juzo (e de novo vir em sua glria para julgar vivos e
mortos), pospondo a vinda definitiva e gloriosa de Deus na parusia, no final dos
tempos [mesmo que os cristos continuem a orar Maranatha (vem, Senhor Jesus), a
expresso era entendida como profisso de f: maranatha (o Senhor vem)].
As escatologias medieval e moderna. A partir do sculo III, sobretudo com
Orgenes, passa-se a acentuar uma escatologia individualista: O Senhor vir para
ressurreio, dos mortas, no mais para a consumao do mundo. Progressivamente a
escatologia foi se tornando uma questo pessoal, no mais coletiva - como era a
pregao dos profetas, a nfase de Jesus e de Paulo.
Frente individualizao intimista de salvao (ressurreio) foram surgindo os
milenarismos; quer dizer, a instaurao de um reino terrestre e messinico antes do fim
do mundo, para instaurar um reino de justia e paz.
LAY, Michael van. Reconhecer os sinais dos tempos. In: BLANK, Renold J. Escatologia do mundo - O projeto csmico de Deus.
Escatologia II..., p. 91.
signos de espao e tempo. Eles pertencem ao mistrio e no histria, por isto mais
razovel falar deles por uma teologia negativa que uma afirmativa.
3) Todos os enunciados escatolgicos devem ser tomados em sentido figurado,
como imagens que extrapolam o significado imediato das palavras. Em certo sentido, as
escatologias no so ficcionais, nem reportagens jornalsticas documentveis.
J os enunciados de Greshake sobre afirmaes centrais da escatologia
enfatizam:
1) O cumprimento escatolgico se refere ao ser humano como indivduo e
como membro da comunidade. O fim da humanidade um ato de solidariedade.
2) A efetividade da salvao (separando quem no ser salvo, se esta
possibilidade real vier acontecer) no atinge apenas a alma bem-aventurada, mas um
envolvimento e desenvolvimento progressivo e harmonioso de toda a criao e do ser
humano, em sua globalidade, em Deus.
3) Deus mesmo quem realiza a consumao ou plenitude do homem, mesmo
levando em conta a liberdade humana, capaz de recus-lo. Ele disps tudo para a
salvao do homem e esta a sua vontade e sua glria; apesar da condenao ser uma
possibilidade inseparvel da liberdade humana.
4) O potencial da salvao passa pela existncia e pela histria, mas no se
esgota a. A plenitude da criao s se d em Deus e por Deus, o que leva a humanidade
a participar de sua vida trinitria.
Aqui se deve afirmar que o interesse escatolgico est se deslocando da
consumao do mundo (sobretudo de carter individualstico) para a ressurreio de
Jesus - pois Ele a primcia da vida nova. Ao mesmo tempo, esta ressurreio responde,
criativamente, a uma escatologia pessoal, coletiva e csmica. Isto porque ela pertence
revelao e esperana crists. Assim a esperana das promessas de Deus se cumpre
plenamente em Cristo - novo Ado (2Cor 1,20). Pois ela se constitui, simultaneamente,
numa continuidade descontnua e numa descontinuidade contnua. No primeiro caso,
por se referir a quem conhecemos: Jesus, o que se fez um de ns - mesmo que nossa
carne tenha se magnificado para t-lo recebido na plenitude dos tempos. No caso de
descontinuidade contnua, o porque Deus far uma criao radicalmente nova
naqueles e para aqueles cujo olho algum viu, ouvido algum ouviu, homem algum
imaginou: isto preparou Deus para os que o amam (ICor 2,9). Alis, para aqueles a
quem Ele amou primeiro, chamando-os a esta altssima vocao de serem seus filhos
(1Jo 3,1), no Filho.
Para onde vamos? Qual o futuro do ser humano? Para o indivduo humano, a
nica resposta concreta parece ser a morte; isto : este grande silncio de sua
ausncia. Para a comunidade humana, a resposta acontece na substituio dos
indivduos; enquanto para o cosmo se nada acontecer - tudo continuar caminhando
lentamente para um fim em alguns bilhares de anos. Desde as cincias, porm, surgem
afirmaes sobre um fim tanto de possibilidades catastrficas (big crush, coliso de
planetas, autodestruio atmica) quanto de continuidade da evoluo, com a
possibilidade de a vida transferir-se para outros mundos extragalcticos, enquanto o
planeta e o sistema solar poderiam - em bilhes de anos - esfriar e morrer. Ou ainda, a
expanso do universo pode continuar ao infinito.
Em resumo: a morte do indivduo, da espcie e do universo aponta para um
grande silncio csmico, antecedida por perguntas sem respostas. A f crist no se
posiciona assim. Ela cheia de esperana e confiana em Deus. O problema do nosso
futuro comum a transformao da histria e do cosmos em Deus. O anseio de Santo
Agostinho (inquieto est meu corao enquanto no repousa em ti, meu Senhor)
uma aspirao esperante de todo ser humano. O cristo professa a f no Deus que
mantm a vida num processo de criao e providncia constantes. Da mesma forma, cr
na ao criadora livre e gratuita de Deus. Por isto, cr na ressurreio dos mortos e vida
eterna. A f responde ao de onde viemos, quem somos e para onde vamos. E s ela d
esta certeza - sem se ater ao como isto acontece.
Os cristos - como tantos outros homens e mulheres da histria - j se
posicionaram, muitas vezes, sobre estas questes das origens da histria e do fim. Ao
mesmo tempo, se posicionaram em uma to grande diversidade de interpretaes quase
impossvel de cont-las.
1) Catastrofismos e alienaes. Sobre o destino do homem e do universo, no
meio dos cristos, as posies variam desde respostas messinicas at s vises
apocalpticas, desde questes ingnuas at aos moralismos, desde os visionrios at os
niilistas. Com uma frequncia maior no sculo passado apareceram as profecias
marianas de cunho apocalptico-milenarista, sejam as mais conhecidas (Ftima/Portugal,
Medjugorje/Iugoslvia, Ahita /Japo), sejam outras mais localizadas e passageiras. As
Captulo 8
2. Os fundamentos da f
H no corao humano uma esperana para alm do que se espera. Este sonho
move (moveu) de modo pluridirecional o ser humano. Desde as religies em geral, a
direo transcendente. O judasmo f-la coincidir sempre com o momento de sua
histria. E por isso ele sempre esteve ligado aliana (bno) de Jav que se
concretizava na posse da terra, na prole e no gado - especialmente na terra, pois ser
dono dela significava ser livre e nunca escravo. A perda da terra sempre esteve ligada
primeiramente ao abandono (in-fide-lidade) a Jav e consequentemente castigo do
exlio. No ter filhos era certeza da no proteo divina porque a gerao se acabaria ali.
O gado era smbolo da estabilidade econmica e possibilidade de usufruto da vida.
Mais tarde, a salvao significou a espera e a chegada do Messias - aquele que
re-constituiria o povo, governando-o na justia e na santidade, defendendo os pobres
e restituindo a graa/bno de Jav. A espera messinica, muitas vezes, tornou-se
apocalptica. A decepo com Jesus, como messias, facilmente explicada no apenas
por saber-se quem Ele era ou quem eram seus familiares; mas ela foi especialmente
frustrante e, em diferentes formas de decepo, para os zelotas, para os fariseus, para os
sacerdotes, para o povo em geral e, at, para os saduceus, que no precisavam mais do
messias poltico.
O messianismo de Jesus, no entanto, foi entendido e aceito a partir de novas
relaes estabelecidas com os pobres (anawin), aleijados, cegos, coxos, prostitutas,
ladres, enfim com os excludos para que quem ele se tornara a esperana de Deus. O
messianismo de Jesus implicou aceitar aqueles que - seguindo-o em grupo ou no - se
deixavam tocar pela nova mensagem do Reino, cujos valores implicavam ser irmo e
Confisso sinodal de Wrzburgo Unsere Hoffnung [Nossa esperana, (1975)], I, 6. cit. por Franz-Josef Nocke. In:
SCHNEIDER, T. Manual de dogmtica, vol. II, p. 371.
a) Os cristos - essa presena quantitativa to grande no tempo presente deveriam ser sal, luz e fermento no mundo. Jesus os convidou para isto. Muitos pensam
que todos os homens e mulheres da Terra deveriam ser membros da Igreja de Jesus.
Tericos discutem, com seus arrazoados, se a inteno de Jesus: ide por todo o mundo,
batizai e fazei discpulos (cf. Mt 28,15-16) a ordem de que todos se tornem
discpulos para se constiturem como membros dos grupos cristos, i.e., como igreja
crist. Alguns telogos pensam que as igrejas devam ser constitudas de grupos
minoritrios que do o sabor que fermentam ou iluminam cristmente o mundo.
b) Alguns cristos - protestantes e catlicos - se tornaram precursores da
renovao da linguagem e da. compreenso da escatologia, no incio do sculo XX.
Dois so significativos: R. Bultmann e T. Chardin.
b.l) O luterano Rudolf Bultmann (1884-1976) negando a interpretao temporal
ou histrica das mensagens escatolgicas da Bblia, afirma a linguagem mticoexistencial, que age no aqui-e-agora do crente:
56
BULTMANN, R. Geshichte und Escathologie, p. 184, aqui citado por Franz-Josef Nocke. In: SCHNE1DER. Manual de
dogmtica, vol. II, p. 364.
c.4) Na sia, frica, nos meios pobres dos pases desenvolvidos, mas sobretudo
a partir da Amrica Latina, muitos cristos dos tempos atuais propuseram uma reflexo
teolgica de libertao. Dados os imensos universos da pobreza, da discriminao das
minorias, do degrado ambiental, da excluso de diversos tipos, como crer na presena
do Reino de justia e de fraternidade? Desde a indignao tica e da certeza da presena
57
do Reino de Jesus j entre ns, no se poderia ser conivente com a continuidade de tudo
quanto atenta dignidade dos filhos e filhas de Deus, porque inclusive atinge o prprio
Deus.
Mesmo que influenciados - sobretudo na Amrica Latina - pelas novas ideias de
libertao, da construo de uma sociedade mais equnime e da busca revolucionria de
novos modelos sociais - muitos cristos passaram a animar os pobres a se tornarem coconstrutores, ou melhor, os prprios construtores de uma sociedade igualitria, fraterna
e digna para todos, a comear embaixo o processo novo. Os pobres deveriam ser os
protagonistas de aes numa sociedade a ser transformada. A esperana escatolgica
deveria tornar-se histrica. Crescimento e Reino de Deus poderiam - apesar de suas
distines - crescerem juntos na histria. A superao das injustias e das exploraes
poderia ser o apressamento do Reino de Deus, na histria.
A nfase na luta sociotransformadora, desde os pobres, no estaria desonerada
da f, antes pelo contrrio. A f que daria o suporte luta. A luta salvfica, porm, no
se esgotaria nas relaes intramundanas; pois se a fome, a misria, a excluso de to
grandes massas evidenciam o pecado deste e neste continente que nasceu cristo, a luta
histrica salvfica se prolongar at a eternidade, em que o vencedor final aquele que
h dois mil anos fora crucificado pelos homens.
Sem dvida, esta prtica pastoral e a teologia da libertao despertam a Igreja
(catlica e parte da evanglica) para um compromisso social - que telogos e hierarcas
europeus no aquilataram a importncia desta teologia milenarista, pois, ao tempo,
estavam por demais empenhados ora em questes tericas, ora em ortodoxia. A TdL foi
no s a traduo do Concilio Vaticano II para a Amrica Setentrional - como muitos
afirmam - mas tambm uma chamada (mal ouvida) Igreja universal sobre as questes
prticas da atuao de Jesus e de sua parbola sobre o julgamento final (cf. Mt 25,3845).
Alguns distinguem o Reino de Jesus - j antecipado, na histria, por valores
morais que implicam ser reino de justia, amor e da paz, reino de santidade e graa,
reino de verdade e de amor (cf. prefcio de Cristo, Rei do universo) - e o Reino de
Deus. O primeiro est ligado desde a encarnao at a ressurreio e glorificao do
Verbo que se torna Senhor e juiz universal da criao. O segundo a consumao do
primeiro no Pai, tornando-se definitivo e acabado, como universal glria de Deus. O
primeiro explode dentro do segundo; o primeiro promessa e caminho. O segundo
58
4. A escatologia comunitria
catlica oferecendo perspectivas inalcanveis razo dos fiis, ensina que Deus, sendo
uno, subsiste em trs pessoas, cada uma delas vivendo de tal maneira para as outras, que
constituda por esta relao. lcito deduzir que as pessoas humanas, enquanto foram
criadas imagem de Deus, uno e eterno e reformadas em sua semelhana, nos do certa
imitao dele. Certamente o ser humano, ao ser na terra a nica criatura querida por si
mesma, possui este mesmo modo de referncia aos demais, de modo que no se pode
encontrar a si seno se doando ao outro. 59
Noutro lugar, o Concilio Vaticano II insiste na vontade salvfica universal de
Deus, sendo claro ao falar dos que ainda no receberam o Evangelho se ordenam por
diversos modos ao povo de Deus... o Salvador quer que todos se salvem (cf. ITm 2,4)
(LG 16). A salvao divina, pois, vem oferecida no s na Igreja, mas a todos os
homens em todas as situaes e nas situaes seculares, inclusive aos ateus (que negam
a Deus); pois estes que no ficam excludos da salvao, s por isto. Todos os seres
humanos esto sob a graa de Cristo.60
Caminhamos para Deus. Ele quem d a direo e Cristo o caminho que nos
leva a Ele. Hoje somos mais de seis bilhes. Os de ontem e desde as primeiras horas da
humanidade so milhares de milhares. Sero bilhes os que faro a caminhada amanh e
depois. Na consumao de tudo, Deus transformar os seres humanos (e a natureza
toda) levando-os perfeio. E ento ver que toda a sua criao era boa, muito boa
(cf. Gn 1,32). Mas, mais do que isto. preciso recordar que desde toda a eternidade, em
Cristo, por Ele e para Ele, tudo e todos foram eleitos: as coisas visveis e as invisveis
(Ef 1,3-13). As coisas e os seres humanos foram criados na histria. Por isto, eles no
foram criados por Deus nem perfeitos nem imperfeitos, mas a caminho da perfeio, in
statu viae.61 Isto quer dizer: caminhamos no Caminho, que Cristo. Ainda usando
uma ideia da patrstica, caminhamos da imagem - que somos desde a origem - para a
semelhana - que seremos no fim. Nossa transformao se consumar na capacidade de
ver a Deus, glorific-lo e ser sua glria.
Aqui de novo certas linguagens devem ser pensadas e relativizadas, como se
comentou anteriormente. Ns somos um corpo pessoal, aberto a diversas dimenses
(histrica, psquica, social, emocional, csmica, espiritual, etc.). Os gregos pensaram o
ser humano com um conjunto de corpo e alma. Desde o incio do cristianismo, muitos
59
60
61
A Epstola aos Hebreus tambm um hino a homens e mulheres que foram fiis
a Deus pela f. Todavia, numa leitura mais ampla, pode- se perceber que, se pela f eles
atingiram as promessas, porque atrs de tudo estava o Deus fiel que cumpria para eles
o que eles atingiam pela f. Tal cumprimento obtido pela f daqueles homens e
mulheres santos no era, seno, cumprimentos parciais e graduais do que ser a
plenitude salvfica. por isto que eles esto referidos a Cristo (cf. Hb 4,2), porque
tambm isto promessa do Deus fiel. E mesmo assim, esta nuvem de testemunhos (cf.
indica sua consumao, ainda que provisria na histria, atravs de seus gestos
concretos de cura, perdo e restaurao da dignidade dos excludos.
Convm ressaltar aqui dois aspectos: a fidelidade de Jesus ao Pai e a fidelidade
do Pai a Jesus.
a) Jesus foi fiel ao Pai durante toda a sua vida. Fez da vontade do Pai sua prpria
vontade. Colocou-se inteiramente a servio de Deus, de seu Reino, curando a muitos,
expulsando demnios, restituindo-lhes confiana e dignidade. Deixou-se absorver todo
pelo servio/misso do Pai. Sobretudo Lucas, em seu evangelho, mostra um Jesus
bondoso e misericordioso como imagem visvel do Deus invisvel. Viveu do Pai, pelo
Pai e para o Pai. Realizou, em sua pessoa, gestos do senhorio e da bondade do Pai,
perdoando, salvando, reintegrando. De modo pessoal, percebeu-se e reivindicou para si
a misso de ser revelador do Pai, com quem Ele se sentia unido, a ponto de (nos ltimos
dias de vida, segundo Joo) afirmar que Ele e o Pai so um. Ao mesmo tempo, Ele se
compreendeu como portador escatolgico da salvao.
Na sua ntima relao com o Pai (Abb) encontrou a fonte de sua pretenso
missionria (sobre o Reino e seu messianismo) e seu agir at o fim (faa-se a tua
vontade, no a minha - Mt 26,39) como um homem livre. Foi fiel a Deus at o fim -pro
Deo. Por causa de Deus, foi fiel ao ser humano de modo mais radical possvel, a ponto
de em sua humanidade ter-se descoberto a prpria divindade - pro nobis. Fiel aos
homens; mas, sobretudo, foi fiel aos pobres e aos pecadores. Em prol da multido (Mt
26,28), por vs (Lc 22 20), ou mais simplesmente por todos, Ele deu sua vida num
gesto de mais profunda solidariedade.
c) A fidelidade de Jesus, respondeu o Deus fiel. Deus no apenas acompanhou
os passos terrenos de seu Filho nico feito filho da carne humana. Mas o dotou de
capacidades to humanas que Ele realmente foi, entre ns, um dos nossos em tudo,
exceto o pecado. A fidelidade de Deus a Jesus - e por extenso, fidelidade sua
promessa, segundo as Escrituras, desde Ado e No, passando por Abrao e os
patriarcas, reis e profetas, homens e mulheres justos - foi de extremo amor, doao at
o sofrimento na cruz de seu Filho. A fidelidade de Deus, na morte de seu Filho,
manifestou toda grandeza de seu amor salvfico, a ponto de fazer dela o instrumento da
redeno definitiva. Deus fiel no deixar Jesus vencido pela morte. Antes, far dele o
vencedor dela.
Na morte do Filho, Deus derrotar a prpria morte. O ltimo inimigo de seu
Filho e de todos os seus filhos adotivos era a morte. Na ressurreio de Jesus, Deus
irmos numa s vez (ICor 15,6) que Jesus vive, sem um retorno biolgico. Agora o
crucificado- ressuscitado, que j participa da vida de Deus, deixa-se ver, faz-se ver pelos
irmos para anunciar-lhes a vitria de Deus. Seu anncio garante que, nele, os filhos
podero ver a Deus, isto : participar da vida de Deus, assemelhados ao prprio Deus.
Os apstolos, atravs de Joo Evangelista, podem afirmar:
que ainda no se usufrua delas ainda; d) o que aconteceu com Jesus garantido para
todos.
Cristo o primognito de toda criao (Cl 1,15) e primcia dos que morreram.
Na histria, Ele assumiu a realidade admica. Pela encarnao evidenciou sua
primogenitura: foi gerado antes de toda criao. Pela ressurreio, foi constitudo em
dignidade primeira sobre os mortos. Por um ou pelo outro vis, Ele nosso irmo.
Ado! Mesmo que se diga e creia que o Primeiro Ado, aquele que veio depois era
originalmente o novo, o primeiro. Ele, sendo de condio divina, no se apegou
ciosamente aos seus privilgios. Mas humilhando-se assumiu nossa histria limitada.
Fez-se carne e viveu como os irmos. Sua ressurreio, particularmente, revelou a
primogenitura universal: isto , dentre todos o mais digno, o mais eminente e o que
pode se apresentar como imagem visvel total de Deus criador. E Ele tambm o que
primeiro atingiu a plenitude da criao e tornou-se homem perfeito, acabado.
Como homem assemelhado a Deus, o glorifica como unignito e como irmo de
muitos irmos. Ele nos precedeu na ordem da inteno e na ordem da glorificao. Foi
exemplar no fazer a vontade do Pai. Deu a Deus o que era de Deus. Apresentou-se a
Deus como oferta de suave odor. Nele, fez de todos os seres humanos seus irmos e
seus co- herdeiros.
Na fora do seu Esprito tornou toda a humanidade um novo ser, uma nova
criatura. Assumiu em si a condio humana toda e ir recapitul-la toda na
consumao. Enquanto isso, quis que fosse constituda como Igreja a nova comunidade
fraternal que se constitui sob seu nome. Nela, Ele quer que todos se tratem como irmos
e irms, imitando-o em seu amor: ningum tem amor maior do que aquele que d a
vida pelos seus amigos (Jo 15,13). Ele - que procurou o batismo de Joo, que
frequentou as sinagogas e o Templo, que andou pelos caminhos e mares da Galileia, que
esteve com os samaritanos, que ceava com os amigos, que foi crucificado em Jerusalm
- Ele mesmo, agora ressuscitado pelo Pai, foi constitudo Senhor e Juiz de seus irmos e
irms.
E sem dvida, tendo presente tambm sua cruz, ser o bom samaritano de todos
diante da majestade de Deus. Esse Jesus nos revelou o Pai e deu a conhecer a altssima
vocao do ser humano (= ser filho de Deus). Ele, homem perfeito, por sua morte
livremente assumida, mereceu-nos o perdo dos pecados, reconciliando-nos com Deus e
restituiu-nos o que em ns estava dividido pela dramtica luta entre o bem e o mal, entre
luz e trevas.
Esse Jesus, to fiel a Deus, mostrou a fidelidade humana ao Pai, em nome de
toda a criatura. Mostrou a toda criatura a fidelidade de Deus, dando a vida por ns. E
este Jesus o homem perfeito, assim manifesto pela ressurreio. Por ela, foi-nos
revelado quem somos e revelada nossa vocao csmica: viver em Deus.
pela ressurreio do crucificado, como se afirmou anteriormente, que a criao
atinge seu ponto final. Pela ressurreio de Jesus est aberto o caminho para todo ser
humano tambm ser ressuscitado, ou, por outras palavras, ser salvo, ver a Deus, estar
em Deus. Isto tem um significado ainda maior: a ressurreio de Jesus uma recriao,
uma i-nova-o criacional de Deus sobre o homem admico transformando- o em
homem pneumatizado, cristificado, ou seja, humano em plenitude consumada. Nesta
ao radical (arch) de Deus est prevista a ressurreio de todos os irmos e irms de
Jesus, a quem o Pai desde toda a eternidade quer salvar.
Pai v aqueles todos de quem Ele (Jesus) se fez irmo. E na carne ressuscitada do Filho
est irmanada toda carne ressuscitada, que o Pai ver.
O Filho Salvador ento leva contnua e permanentemente, para o corao da
Trindade, toda carne que vai ressuscitando - e isto at o fim dos tempos. Como j dizia
Santo Atansio: a integrao, a renovao do homem em Deus, por Cristo, consiste em
ser vivificado pelo Esprito. Marcados pelo selo do Esprito nos tornamos partcipes da
natureza divina, juntamente com toda a criao que participa do Verbo encarnado, no
Esprito Santo (Ep. Ad. Ser. III, 3).
A ao csmica de Cristo j atuao histrica, por meio do seu Esprito.
Sabemos que sua completude se dar quando o Verbo humanado apresentar-se ao Pai
para entregar-lhe tudo e todos. Este ato final - conhecido como parusia - ser a
transformao salvfica, onde Deus criar o novo cu e a nova terra (Ap 20,22) como
Reino eterno e universal, reino de verdade e vida, reino de santidade e graa, reino de
justia, de amor e de paz (prefcio da festa de Cristo Rei). A comear o banquete sem
fim, onde o Noivo, o Cordeiro, receber toda a honra, toda a glria. A o Pai ser tudo
em todos, e comea a festa sem fim. A se compreender, em toda a sua extenso, a
afirmao: Deus amor (1Jo 4,16). Pois Deus far tudo e todos participarem de sua
vida.
Hans Urs von Baltazar resumiu toda a magnalia final de Deus assim: Deus a
Coisa Derradeira da criatura. Como ganho, Ele o cu; como perdido, o inferno;
como examinador, o juiz; como purificador, purgatrio. Ele aquele no qual o finito
morre e pelo qual ressuscita para Ele e nele. Ele, porm, o na maneira como se voltou
para o mundo, a saber, em seu Filho Jesus Cristo, que a revelao de Deus e, desse
modo, o resumo das Coisas Derradeiras. 62
62
Cit. por Franz-Josef Nocke. In: SCHNEIDER, T. Manual de dogmtica, vol. II, p. 424.
Captulo 9
Os cristos vivem imersos no mundo que os rodeia da mesma forma que todos
os outros homens e mulheres. Porque aderem f, dada como um dom por Deus, eles
esto em meio aos outros de uma forma peculiar. Detm o conhecimento do plano
salvfico de Deus. Sentem-se convocados a dar sua contribuio social, cultural,
poltica, econmica e religiosa, nesta histria compreendendo-a como a histria de sua
salvao. Sem dvida a diversidade dos quase trinta e quatro mil grupos cristos
oportuniza contribuies diferentes e, muitas vezes, heterogneas dentro de seus
prprios grupos.
Os cristos tm, como fonte comum e testemunha da inspirao de sua f e de
seus atos, Jesus Cristo. E, desde a Bblia, interpretam o significado de Deus, de Jesus
Cristo e de sua prpria presena no mundo. Tais interpretaes tambm so to
variveis, que quase parece pertencerem eles a grupos diferentes. Assim o so tambm
as aes que decorrem da f, no campo social, poltico, cultural, tico, etc. Certa
diversidade tanto pode ser uma riqueza pluriforme quanto atestar uma (in)diferena
incomum. E certo, todavia, que todos se inspiram na Bblia. Seus comportamentos so
marcados a partir dos textos (quase) comuns do Novo Testamento. Valores evanglicos
geram, em sentido amplo, a identidade crist. Todos podem ouvir a vontade expressa
por Paulo Apstolo:
Pelo batismo, os cristos se tornam novas criaturas. Por isto se esforam para
ser sal, fermento e luz em meio a todos os outros homens e mulheres como discpulos
do Senhor. Ao mesmo tempo so testemunhas do que creem. E se tornam coconstrutores do mundo de Deus. Esto no mundo sem serem do mundo. So uma
presena sacramental (fundada no batismo). Agem em nome de Cristo, diante do qual
devem dobrar-se todos os joelhos.
Nas mais diversas situaes histricas (familiares, profissionais etc.) se esforam
como irmos entre si e entre os outros, para a glria de Deus. Testemunham o grande
amor com que Deus ama a todos e quer salvar a todos. Sentem-se herdeiros de Deus. E
sabem que a herana divina comum a toda a humanidade.
Conhecem as orientaes de Cristo, especialmente as bem-aventuranas, a
parbola do juzo final. Reconhecem a centralidade dos mandamentos: amar a Deus de
todo o corao e ao prximo como a si mesmo. Incluem aqui um particular amor aos
inimigos. O amor o que caracteriza e tipifica o cristianismo. Realizam seus cultos e
sacrifcios. Mas sabem que depois do sacrifcio de Cristo - sacerdote e vtima nica - o
culto e sacrifcio verdadeiros so os do corao, no dos ritos. Tm seus templos e
espaos sagrados. Porm eles mesmos sabem que so o templo vivo de Deus.
Repartem o po entre si. Mas sabem que quem disser amar a Deus, esquecendo de seu
irmo, mentiroso (cf. 1Jo 4,20). Escutam a Palavra de Deus para p-la em prtica...
Assim so os cristos.
deste modo que progressivamente eles tm como prioridade o ser humano, ao
invs das coisas. No as desprezam, porm. Mas nem delas e nem de alguns dos seus
fazem dolos ou objetos de adorao. A presena de Deus percebida, sobretudo diante
dos pobres, excludos e pequeninos. A presena crist dos seguidores de Jesus, sem
exclusivismos ou hegemonias, um servio prestado ao desenvolvimento da nica
famlia de Deus. Esta famlia composta de tantos povos, naes, tribos e grupos. Em
cada uma delas, os cristos ho de ver a imagem do prprio Deus. Por encontrarem
Deus em cada pessoa, eles encontram como irmos e companheiros de caminhada para
Deus todos os homens e mulheres da histria.
natureza. O mistrio da iniquidade, que vem desde as origens e se arvora nas estruturas,
deveria ser extirpado pela vontade de Deus. Pela fraqueza dos cristos, parece, contudo,
que o mal se perpetua. E, ento, que Deus se torna o crtico dos cristos. Nem sempre
eles atuaram como agentes permanentes da graa e da reconciliao. Deus se torna
crtico dos grupos cristos e dos cristos individualmente, medida que eles se tornam
usufruidores dos bens comuns e no servos capazes de lavar os ps comuns.
A vocao escatolgica e transcendente do cristianismo e dos cristos nem
sempre tm coincidido na histria. Muitos deixam, por vezes, interesses e preocupaes
falarem mais alto. Chegam at privatizar sua f - que por essncia comunitria.
O acerto. Mas, a luta dos cristos - seja como for e para alm de seus erros -
portadora de um sentido latente, mais profundo e ltimo da realidade que vivemos.
por isto tambm que eles - apesar de tudo - continuam perseverantes na busca de sinais
precursores de Deus, e de seu Cristo, como setas indicativas de uma evoluo crstica
(consciente ou no). Esto certos da bondade fundamental da vida. Esto certos das
possibilidades da superao das misrias e excluses.
Desde a paixo e a morte de Jesus, so capazes de lembrarem a ressurreio dele
como fundamento da f. E, portanto, no desanimam. Lutam para mudar o significado
da no-vida dos vencidos e humilhados, dos famintos e despossudos. Esto certos de
que o Consumador de todas as coisas se pe ao lado deles, qual Cireneu ou bom
samaritano para sanar, ainda na histria, as feridas humanas. So milhares os cristos
que todos os dias assumem solidariamente as dores dos irmos (cf. Mt 25,38ss).
Querem tornar o mundo mais fraterno e mais humano. por isto que todos os grupos,
olhando para o Crucificado/Ressuscitado, so capazes de indicar e reverenciar, entre os
seus, aqueles que mais se assemelha(ra)m a Cristo. Ele se torna fonte de inspirao e
imitao para eles.
Os cristos so uns dois bilhes. Vivem, sobretudo, no Ocidente branco. E
encontram como companheiros milhares de outros homens e mulheres, religiosos ou
no, no Ocidente ou no Oriente. Esses outros tambm buscam a construo de uma
sociedade melhor, mais justa e mais fraterna. So milhares os homens e mulheres que
no conhecem de modo explcito a Cristo. Mas, so tambm eles capazes de viver e
buscar compaixo, misericrdia, bondade, justia, fraternidade, respeito dignidade e
liberdade. Valores que os abrem transcendncia que Deus lhes dotou. So os mesmos
valores que os cristos vivem sob o amoroso poder de Deus. Deus quer que todos os
homens e mulheres da Terra sejam seus filhos e filhas, por isto os elegeu desde toda
eternidade em Cristo (cf. Ef l,3s).
Homens e mulheres por toda parte, ao lado ou no dos cristos, so capazes de
repartir o po. De vestir os nus. De visitar os doentes e presos. De praticar a justia e a
piedade. Eles tambm ajudam a construir, j na terra, um mundo cristificado. Talvez
suas organizaes, religiosas ou no, e eles prprios, em sua religiosidade ou no,
compreendem que Deus continua se revelando de muitas formas pelos profetas, pelos
sbios, pelos santos, pelas pessoas de bem, e, tambm, pelos miserveis e excludos.
Os cristos creem que eles havero de se encontrar com Cristo que os convidar
a entrar, como benditos, no Reino que o Pai lhes prepara. Aqui tambm importante
lembrar: prostitutas e ladres podem preceder a muitos justos de quaisquer grupos
cristos ou religiosos. Quem sabe o Reino de Deus se tornar fonte de escndalo para
muitos que dizem Santo, Santo, Santo... L podem estar os condenados da terra,
mas os poderosos, se que para eles h algum lugar, onde estaro?
Todavia, aqui convm calar, pois este julgamento pertence a Deus e no aos
pobres mortais...!
Deus quer salvar a todos. Por isto, os criou e os elegeu em Cristo. Deste modo,
Deus no obrigado a perguntar a ningum: por acaso no posso fazer o que eu quero
com o que meu? (Mt 20,16).
neste
mundo
dividido,
indicam
caminho
fundado
pelo
ao. Tambm ele quer a libertao integral dos homens, especialmente a dos pobres e
excludos. A salvao de Deus vai acontecendo, de modo antecipado, medida que
forem superadas e ultrapassadas todas as situaes de morte. Neste sentido, Jesus foi
mestre ao recuperar famintos, doentes, explorados, excludos, oprimidos, desanimados e
at mortos. Ele no apenas produziu libertao e vida nas situaes de morte. Insistiu
que seus discpulos o seguissem, fazendo como ele fazia. Afinal, os discpulos podero
fazer coisas maiores que o mestre, como ele afirmou.
De forma misteriosa, Deus usa a colaborao humana. Por ela, Ele quer
presencializar e potencializar seu Reino na nossa histria. E Ele realiza seu gesto
salvfico sem necessitar ou estar condicionado ao humana. Seu gesto pura
gratuidade e iniciativa divina. Todavia, Ele pode e quer contar com o empenho humano.
Ao agir, como Jesus agiu na implantao do Reino, os homens e mulheres de
todos os tempos - includos os que no o conhecem explicitamente - tornam-se parceiros
de Deus. Eles se tornam companheiros uns dos outros e de Jesus, na histria, como
aprendizes, como educandos, que se preparam para o grande e definitivo encontro
parusaco. Antes, porm, eles se encontram construindo esta histria. Mesmo que seja
Deus quem venha dar a ela o acabamento conforme seu plano.
O carter dialtico dos valores e antivalores da histria evidencia as foras que
Deus busca progressiva e processualmente, educando homens e mulheres. Eles vivem
em experincias de libertao localizadas ou estruturais. E iro se acostumando para
poder viver no reino de plenitude que Deus prometeu. Nele, o prprio Deus ser a razo
de ser, porque Ele amor. No grande encontro final, tudo culminar como entrega que o
Verbo Crucificado/Ressuscitado far dos seus ao Pai.
Os homens e as mulheres se educam e experimentam a histria de Deus em sua
histria horizontal. E o fazem atravs de gestos libertrios e libertadores, de amor e
solidariedade, de justia e fraternidade. Isto os torna capazes - pela ao do Esprito - de
poder ver a Deus.
a transcendncia dos fatos libertrios e libertadores nas dimenses histricosociais que se tornam significativas para a converso ao Reino j prximo (cf. Lc 1,15).
Por isto nada, ningum e nenhuma instituio da histria so suficientes, por si s, como
indicaes do Reino. No o foram no passado e no o sero no futuro. S o prprio
Jesus a exceo porque Ele mesmo presencializou o Reino em sua pessoa. Podem os
homens idolatrar sua poltica, seus poderes, seu dinheiro, sua religio, seus semelhantes
etc. Porm nada sinal certo para aquilo que Deus quer contar no novo cu e na nova
terra - onde no mais haver gemido, choro ou dor (Ap 21,4).
Afirmar isto, contudo, no justifica nenhuma alienao nem descompromisso
com a histria. A realidade , para o ser humano, o nico laboratrio possvel e querido
por Deus. nela que a humanidade se prepara na f - na esperana e na caridade - para
viver o que Deus ir nos conceder. A histria a escola de Deus para que o homem, na
fora do Esprito, se eduque para poder v-lo. A histria o lugar radical onde o ser
humano vai cada dia se assemelhando mais a Cristo, a imagem visvel do Deus
invisvel, pela fora do Esprito Santo.
Por isto, o ser humano no pode ser seno co-criador com Deus. Na histria, ele
vai se capacitando, tambm por amor, ao criar das coisas existentes outras coisas que a
seus olhos parecero novas. Provavelmente aos olhos de Deus elas eram instrumentais
oportunos para o crescimento e responsabilidade de todos para com todos. Pondo
exemplos: as dimenses ldicas das vidas manipuladas em laboratrios, a
internacionalizao de instituies culturais e laborais, o trabalho das ONGs, as buscas
espaciais, o trabalho cotidiano e as alegrias dirias no lar da famlia, a misericrdia e a
compaixo das grandes e pequenas religies, a superao de fronteiras polticas e
econmicas, a construo da paz, a pesquisa e cura de doenas, os gestos pequenos e
grandes de solidariedade e defesa do ecossistema, etc. Tudo isto pertence escola da
vida. Deus prepara, hoje, o futuro de seus companheiros.
A histria o laboratrio onde o ser humano - de todas as vilas e povoados, de
todos os sertes e cidades - vai aprendendo a viver como irmo universal. Nela descobre
a igual dignidade de todos. Ela o tempo do amadurecimento de cada etapa da vida
pessoal e social. onde cada um e todos aprendem as relaes que os fazem
amadurecer. Ento, a criana se tornar madura como criana. O jovem como jovem. O
adulto como adulto. E o que pode chegar velhice viver a sabedoria. E com a
maturidade prpria de seu estgio (idade) vivido que algum ir comparecer diante de
Deus, para viver com ele para sempre.
5. Agora, o louvor
Diante de tudo isto que resta a dizer seno louvar a glria de Deus? Como no
bendiz-lo por palavras e atitudes ex corde? Cada Joo, Marli, Silvio, Tereza foi
chamado a participar da vida. muito melhor viver que no viver. E se eles foram
chamados a viver, no sentido de poderem alcanar a vida plena (cf. Jo 10,10). Vida
que s ser completa ao verem e conviverem com o prprio dador da vida - vida
completa porque homens e mulheres tornar-se-o semelhantes a Deus, vendo-o face a
face como amigo.
Passam os homens e as mulheres na histria. Uns encerram nela seu caminhar
aos trs anos. Outros, aos vinte. Outros ainda aos oitenta ou aos noventa anos. Cada um
completa este ciclo da nica vida num momento s sabido por Deus. E ele chamar seus
filhos e filhas naquele momento de amor, esperando receb-los na maturidade daquela
idade. Eles levaro como nica bagagem o aprendizado que os tornou mais humanos e
mais capazes de amar. Mesmo que tenham sido presidentes, advogados, mdicos,
donas-de-casa, faxineiras, professoras, trabalhadores braais ou de escritrios, reis ou
papas. Tambm os nascituros que no completaram sua entrada na histria social,
pessoas com deficincias, de raas diferentes, de religies diferentes, sero recebidos, a
seu tempo, pelo Pai. Ele lhes deu oportunidades prprias de se educarem para o amor.
Tudo quanto aqui vem sendo valorizado - seja em contas bancrias, posses,
ttulos, status, etc. - ou tenha sido precrio na histria, como a fome, a misria, a dor, o
desemprego, a angstia etc. - seja em sade, dignidade, direitos, trabalho, cultura perder sua fora porque Deus transforma isto em nudez e s sobrar ou a
vergonha/dio ou o amor (cf. Gn). Na verdade tudo passa. S no passa o amor (cf.
2Cor 13,13). E pelo amor de Deus, o amor humano ser subsumido no prprio Deus,
pois Ele amor.
por isto que o viver na histria torna-se um aprendizado para a eternidade. E
por isto que a salvao de Deus atingir todos os homens e mulheres de todos os
lugares, de todos os tempos, de todas as fs, de todas as culturas. O amor divino
universaliza a salvao. Ao mesmo tempo, cada homem ou mulher ser personalizado.
Cada um ser, na verdade, diante de Deus, este Pedro, esta Marlene, este Yan, esta Jlia,
que se tornam irmos e irms deste Jesus, o Filho nico do Pai.
O amor o critrio para a educao e o crescimento na histria. A histria , na
verdade, o laboratrio, a escola, onde todos nos preparamos para viver na e da glria de
Deus, que todo e s amor.
o amor que por amor criou o universo desde sua origem na poeira csmica.
Por amor, Ele, Deus, acompanhou os milhares anos-luz at surgirem as grandes galxias
siderais, os planetas todos e nossa Terra. Por amor, Ele acompanhou a passagem da
matria para a vida primeira. Foi por amor que Ele acompanhou a complexifio dos
grandes mamferos. E eles se transformaram nos primatas. Foi por amor e especial
interveno que Deus fez surgir a espcie humana, em continuidade da natureza
csmica somada ao seu sopro especial (ruah). Inclusive foi por amor que acompanhou o
surgimento de seu Filho Jesus, no seio daquela Maria, esposa de Jos, da descendncia
davdica, que era descendncia de Abrao - o pai de uma multido incontvel. por
amor que continua acompanhando o surgimento pessoal de cada Elisa, Carlos, Ana ou
Fabrcio.
por amor que, nele, subsistem todas as coisas. E todas elas se encaminham
para a grande consumao, atingindo a plenitude pessoal e social. por amor que o ser
humano ser definitivamente a glria de Deus. E poder v-lo face a face. Isto :
participar do seu amor.
Diante de to grande amor como no se extasiar? Como no ficar estupefato
diante de toda a obra criada e mantida em milhares e milhares de sculos? Como no se
admirar diante do ser humano que Deus quis como portador de sua imagem, para que
um dia fosse sua semelhana tambm? Mas, sobretudo, como no se desdobrar em
louvores e ao de graas por Deus ter oportunizado a seu Filho tornar-se admico em
nossa carne, como nosso irmo? Mas, mais ainda; como no magnificar Deus-amor, que
reconheceu seu Filho pregado na cruz e o ressuscitou? No foi o Pai que lhe devolveu a
glria que ele tinha desde antes da criao do mundo? J no era ele, desde ento, o
Salvador que levaria tudo e todos consumao como obra divina? Como no glorificar
o Pai de Nosso Senhor Jesus que, nele e por ele, se tornou nosso Pai?
ento que brota, espontnea e naturalmente, o salmo 8 feito cano:
Referncias bibliogrficas
COMISSO INTERNACIONAL DE TEOLOGIA. A esperana crist na ressurreio Algumas questes atuais de escatologia. Petrpolis: Vozes, 1994.
COOK, Michael. Uma breve histria do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
HAEKING, Stephen. Uma nova histria do tempo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
HAUGHT, John F. Deus aps Darwin: uma teologia evolucionista. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 2002.
LA PENA, Juan Luis R. de. Criao, graa, salvao. So Paulo: Loyola, 1998.
___ Imagem de Dios - Antropologia teolgica fundamental. Santander: Sal Terrae,
1988.
PETERS, Ted & BENNETT, Gaymon. Construindo pontes entre a cincia e a religio.
So Paulo: Unesp/Loyola, 2003.
RIDLEY, Matt. O que nos faz humanos: genes, natureza e experincia. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
SANNA I. Dalla parte delVuomo: la chiesa e i valore umani - Per una antropologia a
misura duomo. Roma: Citt Nuova, 1990.
SOBRE O AUTOR
CONTRA CAPA
EDITORA VOZES