Vera Andrade - Ensino Da Criminologia

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Vera Regina Pereira de Andrade

POR QUE A CRIMINOLOGIA (E QUAL CRIMINOLOGIA) IMPORTANTE NO


ENSINO JURDICO?

Tendo sido responsvel pela criao da disciplina Criminologia nos Cursos de


Graduao e Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, e
ministrando-as, juntamente com outros colegas, h quase quinze anos, sinto-me vontade
para falar da importncia da disciplina nos Cursos Jurdicos brasileiros precisamente a
importncia na qual apostamos - razo deste escrito comunidade jurdica. Imperioso, pois,
registrar que, apesar do Ensino Jurdico brasileiro de graduao e, sobretudo, de psgraduao, contar com excelentes e consagradas ctedras de Criminologia, duas evidncias
(empiricamente verificveis) so ainda marcantes: uma, a da ausncia ou do lugar
residual, perifrico, que a disciplina ocupa na grade curricular, regra geral,

optativa. A

outra, a de que, quando presente, so as Criminologia crticas que ocupam nela um lugar
residual, cabendo a centralidade Criminologia positivista . Trabalho, portanto, com uma
dupla hiptese: a disciplina Criminologia ocupa pouco espao no Ensino Jurdico e as
Criminologias crticas pouco espao na Criminologia. O Direito Penal, a contrario sensu,
ensinado luz da Dogmtica Penal e, portanto, o Direito Penal dogmtico, ocupa um lugar
central e espaoso ( I, II, III, IV, V).
Mas, qual a relao existente entre Direito Penal (dogmtico) e Criminologia ? Qual a
importncia da Criminologia no Ensino do Direito? Mas, de que Criminologia estamos
falando, se a Criminologia no singular no existe?
Tais interrogantes, colocados aqui no incio do sculo XXI, soariam familiares na
Europa de finais do sculo XIX e transio para o XX, entre nomes clebres como Franz
Von Liszt, Enrico Ferri, Arturo Rocco, pois foi precisamente o debate sobre as relaes
entre Direito Penal e Criminologia e a performance que deveriam assumir no marco de um
modelo integrado de Cincias Penais a musa daquele tempo, e cujo modelo, ento
consolidado e ainda dominante , nos ajuda a compreender

aquele estatuto ausente-

perifrico da Criminologia.. que no modelo oficial que ento se consolidou (a favor da


"Gesamte Strafrechtswissenschaf" de Liszt e contra o modelo de Ferri ), e cujos trs
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pilares, reciprocamente interdependentes,
Poltica Criminal, haver uma

sero o Direito Penal , a Criminologia e a

diviso metodolgica , cabendo Criminologia

desempenhar uma funo auxiliar, tanto do Direito Penal como da Poltica Criminal
oficial, inteiramente abrigada no marco da dicotomia dever-ser/ser. Com efeito, enquanto a
Dogmtica do Direito Penal, definida como Cincia normativa, ter por objeto as normas
penais e por mtodo o tcnico-jurdico, de natureza lgico-abstrata,

interpretando

sistematizando o Direito Penal positivo (mundo do DEVER-SER) para instrumentalizar


sua aplicao com segurana jurdica , a Criminologia, definida como Cincia causalexplicativa, ter por objeto o fenmeno da criminalidade (legalmente definido e delimitado
pelo Direito Penal) investigando suas causas segundo o mtodo experimental (mundo do
SER) e subministrando os conhecimentos antroplogicos e sociolgicos necessrios para
dar um fundamento cientfico Poltica Criminal , a quem caber, a sua vez, transformalos em opes e estratgias concretas assimilveis pelo legislador ( na prpria criao
da lei penal ) e os poderes pblicos, para preveno e represso do crime .
Estrutura-se, neste momento, uma Criminologia de corte positivista, com pretenses
de cientificidade , conformadora do chamado paradigma etiolgico , e segundo a qual a
criminalidade o atributo de uma minoria de sujeitos perigosos na sociedade, que, seja pela
incidncia de fatores individuais , fsicos e/ou sociais, apresenta um maior potencial de
anti-sociabilidade e uma maior tendncia a delinqir Identifica-se, assim, criminalidade
com violncia individual.
O modelo integrado caracteriza-se, portanto, por uma diviso metodolgica do
trabalho, associada a uma unidade funcional, na luta, ento declara-se, cientificamente
fundamentada contra a criminalidade Neste modelo, o Direito Penal, pelo seu escopo
prtico e pela promessa de segurana, recebeu a coroa e a faixa de rainha, reinando com
absoluta soberania, enquanto a Criminologia e a Poltica Criminal se consolariam, e bem,
com faixas de segunda e terceira princesas. E com este ttulo que a Criminologia
atravessa o sculo XX , quando um outro concurso vem mudar a sua historia: nele, a
Criminologia no desfila nem concorre com o Direito Penal dogmtico, ela senta-se mesa
de jurados, mas com nova roupagem, para julgar o Direito Penal, e sua prpria roupagem
anterior. Refiro-me mudana do paradigma etiolgico para o paradigma da reao social ,
processada desde a dcada de 60 do sculo XX, que deu origem a outra tradio
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criminolgica crtica ( Criminologia da reao social, Nova Criminologia, Criminologia
radical, Criminologia crtica stricto sensu, Criminologia feminista),

segundo a qual a

Criminologia no mais se define como uma cincia que investiga as causas da


criminalidade, mas as condies da criminalizao, ou seja, como o sistema penal,
mecanismo de controle social formal (Legislativo- Lei penal-Polcia-Ministrio PblicoJudicirio- Priso- cincias criminais-sistema de segurana pblica,etc. ) constri a
criminalidade e os criminosos em interao com o controle social informal ( famlia-escolauniversidade-mdia-religio-moral-mercado

de

trabalho-hospitais-manicmios-),

fucionalmente relacionados s estruturas sociais.


A criminalidade no ( no existe em si e per si),

ela

socialmente

construda. Neste movimento, a Criminologia converte o sistema penal como um todo e,


conseqentemente, a Lei Penal e as Cincias Criminais, (dimenses integrantes dele), em
seu objeto, e problematiza a funo de controle e dominao por ele exercida .
No centro desta problematizao esto os resultados sobre a secular seletividade
estigmatizante ( a criminalizao da pobreza e da criminalidade de rua x imunizao da
riqueza e da criminalidade de gabinete) e a violncia institucional do sistema penal,
sobretudo da priso,

a inverso de suas promessas, a incapacidade de dar respostas

satisfatrias s vtimas e suas famlias, e a prpria Criminologia etiolgica e o Direito Penal


dogmtico so denunciados em sua funo instrumentalizadora e legitimadora da
seletividade, nascendo da uma nova problemtica para a Poltica Criminal: quais so as
alternativas priso e ao sistema penal?
Com esta revoluo opera-se a passagem de uma Criminologia comportamental e da
violncia individual (positivista),que nos doutrina a ver o crime no criminoso ( Ferri),
para uma Criminologia da violncia institucional, que

nos ensina que no se pode

compreender o crime, a criminalidade e os criminosos sem compreender o controle social e


penal que os constri como tais , e esta culmina numa Criminologia da violncia estrutural,
que nos ensina a compreend-los no apenas a partir da mecnica do controle, mas
funcionalmente relacionada s estruturas sociais ( o capitalismo, o patriarcado, o racismo..).
A seletividade do sistema penal revelada, assim, como classista, sexista e racista, que
expressa e reproduz as desigualdades, opresses e assimetrias sociais.
Desta forma, a mudana de paradigmas desloca e redefine a Criminologia de um
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saber auxiliar do Direito Penal e interno ao modelo integrado ( que o cientificiza), para um
saber crtico e externo sobre ele ( que o problematiza e politiza) convertido em objeto
criminolgico, ao ponto da obra de Criminologia mais importante do sculo XX, de autoria
de Alessandro Baratta, ter sido denominada Criminologia Crtica e Crtica do Direito
Penal: : introduo Sociologia Jurdico-Penal.
a vez da Criminologia julgar o Direito Penal e sua prpria histria para concluir que a
perda do reinado naquele concurso jurdico no equivaleu, para a Criminologia etiolgica,
perda do reinado na histria do controle penal moderno.
Ora, a historicidade da disciplina opera decisivamente a favor da compreenso do estatuto
ausente-perifrico da Criminologia: a auxiliaridade de ontem se reflete na residualidade
pedaggica de hoje ( o mesmo se diga, e com mais razo , em relao 2 princesa, a
Poltica Criminal) de um Ensino, ademais, centrado na abstrao do normativismo
tecnicista, cujo modelo refora aquele estatuto. Por outro lado, as Criminologias baseadas
no paradigma da reao social no apenas no obedecem a esta lgica , mas a problematiza.
V-se, neste rapidssimo escoro, que as relaes entre Criminologia e Direito Penal esto
sujeitas, historicamente, a (des)encontros e, dado que no existe a Criminologia no
singular, a resposta queles interrogantes depende do paradigma e da Criminologia que
orienta nossa viso e discurso. Ora, tanto a insero ( se estudar) e o espao ( quanto
estudar) da Criminologia no Ensino do Direito, quanto a definio do seu contedo( o que
estudar ) , com que mtodo e para que, envolve um conjunto de definies, a um s tempo,
paradigmticas e polticas, que transferem suas marcas ao Ensino, que tm impacto na
construo de sujeitos ( subjetividades), cuja palavra e ao tem impacto, a sua vez, na
vida social. Defendo, pois, uma incluso criminolgica capaz de romper com ambas as
hipteses aqui alinhavadas, a saber, resgatar tanto o espao da Criminologia no Ensino
Jurdico, quanto das Criminologia crticas no Ensino da Criminologia, superando seu
estatuto perifrico-ausente, sem abortar, por outro lado, a Criminologia tradicional,
resgatando, ao mximo, a historicidade da Criminologia, sem a qual no se compreende
como se exerce o poder punitivo ( como somos dominados), o discurso oficial ( com que
sedues legitimadoras) e o senso comum ( como somos produzidos e produzimos o
outro )criminais. No basta, tampouco, contar a histria da Criminologia europia, ou
norte-americana, temos que mergulhar na Criminologia latino-americana e brasileira, em
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busca de nossa identidade, sem olvidar, em derradeiro, que se a Criminologia enquanto
pretenso disciplinar e cientfica parece ser um invento da modernidade ocidental, uma
escavao arqueolgica ( Foucault) nos revela que, em busca de uma discusso sobre crime
e pena, o cu o limite.
A Criminologia tm, portanto, uma importncia decisiva para o Ensino do Direito, desde
que no reduzida a uma rubrica excludente que, mais do que valorizar a disciplina e auxiliar
na compreenso do poder e do controle social e penal ( crime, criminalidade, pena,
criminalizao, vitimao, impunidade, etc), do poder-espao dos operadores jurdicos
nesta mecnica ,concorra para infantilizar o imaginrio acadmico, com a viso positivista
da boa cincia para o combate exitoso da criminalidade. A Criminologia, ao contrrio de
todas as suas promessas, no nasceu para isso e no pode faz-lo. Ensinar Criminologias,
nesta perspectiva , concorrer para a formao de uma conscincia jurdica crtica e
responsvel, capaz de transgredir as fronteiras, sempre generosas, do sono dogmtico , da
zona de conforto do penalismo adormecido na labuta tcnico-jurdica; capaz de inventar
novos caminhos para o enfrentamento das violncias ( individual, institucional e estrutural)
e este talvez seja o melhor tributo que possam prestar ao Ensino e formao profissionalcidad.

Autora : Vera Regina Pereira de Andrade [email protected]


Professora nos Cursos de Graduao e Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina. Especialista , Mestre e Doutora em Direito . Ps-Doutora em Direito
Penal e Criminologia. Pesquisadora do CNPq.
Autora de A iluso de segurana jurdica: do controle da violncia violncia do controle
penal. 2a edio. Porto Alegre, Livraria do Advogado,2003. Dogmtica Jurdica: escoro
de sua configurao e identidade. 2a edio Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
Sistema penal Maximo x cidadania mnima. Cdigos da violncia na era da globalizao.
Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003. Cidadania: do direito aos direitos hmanos. So
Paulo: Acadmica, 1993.Organizadora da Homenagem a Alessando Baratta, Verso e
Reverso do controle penal: (des)aprisionando a sociedade da cultura punitiva.
Florianpolis, Fundao Boiteux, 2002. 2 volumes.

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