Solfejo Dó Movel
Solfejo Dó Movel
Solfejo Dó Movel
Uma nota para cada slaba e uma slaba para cada nota
Ricardo Dourado Freire (UnB)
FREIRE, Ricardo Dourado. Sistema de solfejo fixo-ampliado: Uma nota para cada slaba e uma
slaba para cada nota. Opus, Goinia, v. 14, n. 1, p. 113-126, jun. 2008.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FREIRE
ou seja, da relatividade das slabas, com respeito s frequncias sonoras fixas. Desta
maneira, poderiam ser formados trs conjuntos de hexacordes principais, baseados nas
notas C, F e G, que apresentavam a seqncia diatnica maior (tom-tom-semitom-tomtom). Por volta do ano 1600, a slaba Si foi adicionada para completar a escala diatnica e,
no mesmo perodo, tericos italianos substituram Ut por Do, embora Ut continue a ser
usado na Frana at os dias atuais.
No decorrer da renascena, a partir da presena das alteraes que comearam a
ser incorporadas na prtica musical (musica ficta) e com o uso de outros centros tonais,
alguns tericos propuseram sistemas de solfejo prprios, mas que caram em desuso. O
uso de slabas diferentes do sistema DArezzo e escalas baseadas em sete notas foram
propostos por Ramos de Pareja (publicado em 1482), Hubert Waelrant (1517-98), Daniel
Hitzler (1576-1635) e Carl Graun (1704-59). (RANDEL, 1986)
No Brasil, de acordo com Binder e Castagna (1996) foram encontrados nove
estudos tericos de autores brasileiros elaborados e divulgados no perodo entre 1734 e
1854. Entre estes estudos, pode-se destacar o manuscrito A Arte de Solfejar de Luis lvares
Pinto (DINIZ, 1977), apresentado pelo autor setecentista como Methodo mui breve, e
fcil, para se saber solfejar em menos de h (um) mez; e saber-se cantar em menos de seis.
Segundo os Gregos e primeiros Latinos.
lvares Pinto baseou sua abordagem na tradio latina de Guido DArezzo ao
adotar as slabas Ut-Re-Mi-Fa-Sol-La. No entanto, lvares Pinto utilizou a slaba Ni para
chamar a 7 nota da escala. Outra caracterstica deste tratado, foi a adoo da slaba Si para
representar qualquer nota alterada por sustenido, com a exceo de F, e o uso da slaba
Bi para alteraes com bemis, com exceo do Si. A Arte de Solfejar diferencia e explica as
diferenas na entoao entre a Cantoria Natural, sem alteraes, da Cantoria
Acidental, quando esto presentes os sustenidos e bemis. (DINIZ, 1977)
Estruturas dos Sistemas de Solfejo Modernos
Os modelos de solfejo presentes na cultura ocidental tiveram forte influncia da
metodologia original de solmizao do padre Guido DArezzo. As slabas Guidonianas
serviram de base para a nomenclatura musical na Frana durante o sc. XVII e o princpio
da mobilidade foi utilizado como parmetro principal na organizao dos sistemas de solfejo
mvel. Os sistemas de solfejo podem ser divididos em trs grupos (Quadro 1), a partir da
relao entre os parmetros da altura do som (Solfejo fixo), o parmetro das funes
tonais (Solfejo mvel) e o parmetro dos intervalos.
opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
.
Sistemas de Solfejo
Mvel
D mvel
Nmeros
D fixo
Letras alfabticas
Tonwort (Carl Eitz)
Bogeanu
Sistema de relaes
intervalares
Solfejo por
intervalos
hisis
Nota
cisis
cis
disis
D
des
deses
esis
dis
es
eses
fisis
fis
E
fes
G
ges
geses
gisis
gis
A
as
ases
aisis
ais
b
H
ces
His
C
beses
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FREIRE
especficas para as alteraes, sendo acrescentado no final das letras is para designar
sustenidos, es para bemis, isis para dobrados sustenidos e eses para dobrado bemis.
(Quadro 2)
Um sistema silbico, organizado a partir de critrios racionais, foi criado pelo
matemtico e professor de msica alemo Carl Eitz. Em 1892, Eitz estabelece as bases do
Tonwort: um sistema de solfejo no qual estavam especificadas slabas distintas para cada nota
diatnica, cromtica e enarmnica da escala no temperada. (Quadro 3)
bo
Nota Bi (D)
be
tu
ro
ga
mu
To
ri
Gu Su
mo
ti
sa
pa
go
pu
so
le
de
fi no
bo
ki
la
Fe
ni Bi (D)
da
ke
lu
fa
ne
be
De acordo com Phleps (2004), no perodo entre 1917 e 1930, a partir das idias
de Carl Eitz, foram criados na Alemanha vrios sistemas de solfejo baseados na relao
especfica entre slabas de solfejo e sua notao musical. Podem ser citados, entre outros os
sistemas de Wilhelm Amende (1917), A. Bayer (1924), Max Freymuth (1926), Adalbert
Hmel (1918), Robert Hvker (1926), Wilhelm Schaun (1926), Anton Schiegg (1923),
Hermann Thiessen (1926-27) , Heinrich Werl (1930, Sistema absoluto de relao notaslaba do fontico Grundlage) e Adolf Winkelhake (1929).
O sistema de Eitz apresenta uma reestruturao total dos conhecimentos
musicais prvios, neste caso, o excesso de fatores novos, dissociados das prticas
pedaggicas no permite o encadeamento de elementos musicais anteriores, sendo
necessria a formulao de uma nova estrutura de conhecimentos musicais. Esta proposta
foi adotada na Prssia, entre 1914 e 1925, no entanto, devido s dificuldades de
implementao foi abandonada logo em seguida. (RAINBOW, 1980)
Seguindo a perspectiva fontica de Eitz, o romeno Costantin Bugeanu estabeleceu
um sistema de trinta e cinco slabas no qual a escala maior utiliza as slabas D-Re-Mi-Fi-GoLu-Sa, e as vogais so alteradas de acordo com os sustenidos e bemis. (BIERHANCE,
2000) (Quadro 4)
opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
.
di
Nota
de
Da
(d)
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ra
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Mi
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li
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la
so
Sa
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do
Si
Se
Da
(d)
du
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FREIRE
()
Nota
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(Fe)
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Sol
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Nota
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(m)
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(t)
Ti
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Tonika-Do (Alemanha)
Di
()
Nota
()
Ri
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Fi
Mi
Sol
Sa
L
Lo
entre cada grupo de duas notas e torna-se essencial o domnio de conhecimentos teoria
musical bsica e anlise de notas e tonalidades para a performance do solfejo.
Os sistemas de solfejo apresentam caractersticas e focos de aprendizagem
especficos. Cada sistema privilegia determinados aspectos na abordagem prtica do solfejo,
valorizando os parmetros da altura do som (Solfejo fixo), o parmetro das funes tonais
(Solfejo mvel) ou as relaes intervalares entre duas notas. No sistema fixo, a
microestrutura o foco central. Cada nota musical estabelecida a partir de parmetros
absolutos das freqncias sonoras e as slabas de solfejo representam estas notas musicais.
A entonao das notas estabelecida a partir alturas fixas tanto para slabas guidonianas,
letras alfabticas ou conjuntos de slabas especficas. Cada nota estabelecida
independentemente do contexto musical no qual est inserida, permitindo a vinculao
direta entre cada slaba e sua respectiva entonao, privilegiando a identificao rpida das
notas na pauta e valorizando a leitura a primeira vista. Os sistemas de solfejo mvel
focalizam a aprendizagem a partir da macroestrutura musical. O conhecimento do contexto
harmnico elemento fundamental para estabelecer as funes de cada altura na estrutura
musical. As slabas ou nmeros so atribudos s notas de acordo com a anlise da escala ou
modo que dever ser entoado, assim sendo faz-se necessrio conhecer o modo e a tnica
do trecho musical antes da atribuio das slabas que devem cantadas, fator que contribui
para fortalecer a noo de afinao. O sistema por intervalos torna-se extremamente
racional pois desconsidera as relaes de contexto musical, sendo baseado apenas nas
relaes absolutas entre intervalos. Alm disso, a anlise de intervalos faz-se impossvel de
ser utilizada em situaes de performance em tempo-real, pois o tempo de processamento
para calcular uma sequncia de intervalos no disponvel em situaes ao vivo. (FREIRE,
2005a)
Conceito de Interferncia nos Sistemas de Solfejo
Face ao fato dos sistemas de solfejo terem sido criados no perodo anterior ao
estabelecimento das Cincias Cognitivas, mesmo os modelos mais modernos carecem de
uma preocupao com os princpios cognitivos envolvidos no processo de aprendizagem.
Os procedimentos metodolgicos do ensino de solfejo so baseados em tradies musicais
que, muitas vezes, prescindem de avaliao crtica, repetindo prticas pedaggicas seculares.
Pesquisas baseadas em propostas tericas conduzidas pela Psicologia Cognitiva podem
questionar procedimentos tradicionais e redirecionar a pesquisa sobre as prticas de
aprendizagem do solfejo, tendo como objetivo principal o processo de aprendizagem
musical e as condies para a realizao desta aprendizagem.
Robert Gagn, psiclogo estadunidense, publicou o livro Conditions of Learning,
120. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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O conceito de interferncia proposto por Gagn pode ser aplicado na anlise dos
sistemas de solfejo de maneira a elucidar elementos estruturais que dificultam o processo
de aprendizagem musical. Interferncia ocorre quando um estmulo inicialmente adquirido
como parte de uma cadeia de aprendizagem transforma-se em parte de outra cadeia ou
entra em choque com outros estmulos. Por exemplo, quando uma nota musical indicada
por uma slaba de solfejo apresenta diversas alturas musicais, um estmulo (slaba de solfejo)
denomina vrias alturas (notas), situao na qual fica caracterizada a interferncia.
O mecanismo da interferncia, que o mecanismo bsico do esquecimento, deve ser
levado em conta na aprendizagem de discriminaes mltiplas. De fato, pode-se dizer que
uma das principais questes relativa organizao das condies para que se d a
aprendizagem de discriminaes mltiplas refere-se reduo ou preveno da
interferncia. (GAGN, 1971, p. 39)
opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
.
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opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
.
Nota
Ri
R
Me
Mi
Fe
(Bi)
F
Fi
Gi
Sol
Ge
Li
L
Le
Se
Si
De
(Ni)
D
124. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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Ricardo Dourado Freire