Face Ao Extremo - Capítulo Pessoas Comuns
Face Ao Extremo - Capítulo Pessoas Comuns
Face Ao Extremo - Capítulo Pessoas Comuns
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PESSOAS COMUNS
Explicaes do mal
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Crimes totalitrios
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fazer, utilizando, a propsito de Echmann, a expresso "banalidade do mal". A julgar pelos inmeros mal-entendidos que
provocou, a expresso no foi muito feliz; mas a idia de Arendt
importante.
Confrontada com a pessoa de Adolf Echmann, durante seu
processo em Jerusalm, Arendt rende-se s evidncias: apesar
dos esforos da acusao para torn-lo diablico, ele aparece
como um ser profundamente medocre, ordinrio, comum, ao
passo que o mal pelo qual responsvel um dos maiores da
histria da humanidade. "O problema com Echrnann est exatamente em que havia muitos semelhantes a ele, e que no eram
nem perversos nem sdicos, que eram, e ainda so, terrivelmente
normais" (Arendt 1966, p. 303). Nesse sentido - e apenas nesse
sentido - o mal que Echmann ilustra "banal", e no "radical",
ou seja, inumano (Arendt distingue entre "radical" e "extremo").
Essa banalidade de forma alguma deve levar a uma banalizao:
exatamente porque to fcil e no exige qualidades humanas
excepcionais que esse mal particularmente perigoso: por pouco
que o vento sopre do lado "certo", propaga-se com a velocidade do
fogo. esse aspecto paradoxal do conceito - um mal extremo,
mas no radical - que, sem dvida, responsvel pelos mal-entendidos que o cercam; mas preciso dizer que o fato ele prprio
paradoxal, ao mesmo tempo comum e excepcional.
A "banalidade" ainda no , na verdade, uma explicao; ,
antes, um meio de afastar as frmulas habituais e de indicar a
direo em que preciso investigar. Um dos condenados de
Nuremberg, Seyss- Inquart, antigo governador da ustria, depois
da Holanda, j dizia, a respeito do testemunho de Hoess sobre as
execues em Auschwtz: "Existe um limite no nmero de pessoas
que se pode matar por dio ou pelo gosto do massacre [para o caso
do fanatismo e do sadismo], mas no h limite para o nmero que
se pode matar, de maneira fria e sistemtica, em nome do 'imperativo categrico' militar" (Gilbert 1950, p. 256). A explicao no
deve ser procurada no carter do indivduo, I!1asno da sociedade,
que impe tais "imperativos categricos:'. A explicao ser poltica e social, e no psicolgica ou individual.
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totalitria absorveu as "lies" do czar smo russo, do militarismo prussiano ou do despotismo chins. mas assumiu uma
nova feio, e foi esta ltima que agiu sobre a conscincia dos
indivduos. Esta . tambm. a concluso de Lev: " preciso
estabelecer claramente como princpio que a falta maior pesa
sobre o sistema. sobre a prpria estrutura do estado totalitrio" (Lev 1989b. p. 43).
O que me interessa, no entanto, no o totalitarismo
enquanto tal, mas sua ao sobre a conduta moral dos indivduos.
A esse respeito. algumas de suas caractersticas so mais importantes do que outras.
A primeira o lugar reservado ao inimigo. Todas as doutrt-":
nas extremistas servem-se do princpio '~qem no a meu favor
contra mim" (que infelizmente provm do Evangelho). mas nem
todas prosseguem: "E quem contra mim deve perecer"; nem
todas. tambm, dispem dos meios do Estado totalitrio para i
executar a ameaa contida nesse princpio. O que mais especfcamente caracteriza o totalitarismo que o inimigo se encontra no .
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mtertorro.pas.
verdade que a Alemanha nazista e a"
Unio Sovitica mantm uma poltica externa agressiva; mas.
nisso. comportam-se como os outros Estados imperialistas. A
idia de inimigo interno. em contrapartda - ou. se preferirmos,
a extenso do princpio de guerra s relaes entre grupos no
mesmo pas - caracteriza-os em sua especificidade. Quem a
formula Lenn, logo depois da Revoluo de Outubro; e Ecke,
grande inspirador e promotor dos campos, na Alemanha, quem
declara, em discurso dirigido aos Fhrer dos campos, no incio da
guerra: "O dever de destruir um inimigo interno do Estado em
nada se distingue do que os obriga a matar seus adversrios no
campo de batalha" (Hoess 1979. p. 101).
A generalizao da idia de guerra conduz Iogcamente
concluso de que os inimigos so bons de matar. As doutrinas
totalitrias sempre dividem a humanidade em duas partes de
valores desguas (que no coincidem com a oposio "nosso pas"
versus "os outros pases" - !?,.,ose trata de um nacionalismo
s~~~l~s); os seres inferiores devem ser punidos, at mesmo elm-
143
I ti ti
I/I!;
ser encontra-se sozinho diante de uma fora infinitamente superior e, portanto, encontra-se impotente. Sabe-se que, durante e
depois da Segunda Guerra, alguns autores judeus reprovaram as
populaes judias em conjunto por se terem deixado levar "como
carneiros para o abatedouro", de no terem resistido de armas na
mo (encontramos essa idia em homens to diferentes quanto
Bruno Bettelheim e Raul Hilberg, Jean Amry e Vassili Grossman;
mas essas primeiras formulaes foram utilizadas como aguilho
entre os organzadores da resistncia clandestina). Outros escritores dedicaram-se, em seguida, a contestar essa afirmao,
enfatzando os atos de resistncia que aconteceram aqui e ali.
Trata-se, na verdade, de um falso debate; e questo "por que os
judeus no se rebelaram mais?" podemos responder apenas o
seguinte: porque uma revolta como a pretendida era impossvel
em um regime totalitrio. Por que os prisioneiros de guerra
soviticos na Alemanha no se revoltaram? Por que cinco milhes
de camponeses da Ucrna deixaram-se morrer passivamente
durante a grande privao que Stalin lhes infligiu. no incio dos
anos 30? Por que um bilho de chineses no se revoltam, hoje?
Invocar aqui as tradies judaicas ou uma mentalidade de gueto
totalmente imprprio.
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Os agentes do mal
ItlH
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constitudo pelo conjunto de seus atos, claro que ele que ser
considerado como atingido pelo mal, e no apenas os atos.
Grossman acrescenta: "Talvez sejamos culpados, mas no
h juiz que tenha moralmente o direito de levantar essa questo"
(Idem, p. 92). "Entre os vivos, no h inocentes. Todos so
culpados: voc, acusado, e voc. promotor, e eu, que penso no
acusado, no promotor e no juiz" (idem, p. 95). Hoje, depois do
desmoronamento do totalitarismo comunista em vrios pases, a
questo atual: preciso julgar os culpados? Se , onde encontrar juizes inocentes para faz-Ia? Mas o argumento de Grossman,
nesse caso, fora de propsito: os tribunais fazem justia em
nome de princpios aceitos por todos, no porque os justos, e
apenas eles, tm o direito de condenar os culpados; ele confunde,
com graves conseqncias. direito e moral. O juiz s interessa
justia na medida em que encarna seus princpios com rigor; no
tem nada a ver com sua virtude pessoal. A presso exercida pelo
Estado pode ser considerada como uma circunstncia atenuante,
a prtica extremamente difundida de certos crimes pode incitar a
anst-los, por fim; nem por isso se deve impedir, em um primeiro
momento, que a verdade se estabelea e a justia seja administrada. A clemncia ser bem-vinda, mas s pode intervir depois: h
uma grande diferena entre indulgncia e ocultao da verdade.
Logo depois da Libertao, as letras francesas eram sacudidas por
um debate apaixonado, que opunha os partidrios da justia (o
que freqentemente queria dizer ajuste de contas) e os da caridade (e, portanto, do perdo aos colaboradores); de um lado Vercors
ou Camus, de outro, Mauriac e Paulhan. Mas as duas atitudes
no se excluem de fato: mesmo se decidimos perdoar, melhor
faz-lo com conhecimento de causa, depois de ter estabelecido os
fatos: a justia no se reduz punio.
Por outro lado, essa responsabilidade estende-se, em nosso
mundo compartimentado e especializado, da concepo inicial
execuo final: a multiplicidade dos agentes no os torna menos
responsveis. S a culpa legal, verdade, diz respeito aos tribunais; ora, no atual estado das coisas, a lei no considera todos os
cmplices como culpados; assim, ela pune os que decidem, mas
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As testemunhas
Passemos agora ao outro lado da fronteira que separa os
"ativos" e os "passivos" e, portanto, tambm os "culpados" e os
"responsveis". O estabelecimento dessa fronteira essencial, e os
prprios sobreviventes freqentemente a traaram, recusando a
idia de uma culpabilidade coletiva que seria preciso mptngr
comunidade dos carrascos. Etty Hllesum tem, ainda, o mrito de
t-Ia afirmado no momento mesmo em que estava reduzida ao
papel de vtima. Foi em 1941 que ela escreveu: "Ainda que
houvesse apenas um nico alemo respeitvel, seria digno de ser
defendido contra toda a herda dos brbaros, e sua existncia nos
tiraria o direito de derramar nosso dio sobre todo um povo"
(1985, p. 25). Logo depois da guerra, Jaspers ps em evidncia o
contra-senso de condenar, legal ou moralmente, um povo inteiro,
quando apenas os indivduos tm vontade e podem, portanto, ser _
dados como culpados; dizer que "os alemes s" culpados pelo
holocausto" to absurdo quanto pretender que "os judeus so
culpados pela crucificao". Os sobreviventes dos campos no
faro outro juizo. Bettelhem escreve: "Quem aceita a tese da
culpa de todo um povo destri o desen~olvimento da autn1a
democracia, fundada na autonomia e na responsabldadetndtvtdual" (1972, p. 366); e Lev exclama: "No compreendo, no
suporto que se julgue um homem no pelo que , mas pelo grupo
a que por acaso pertence" (l989b, p. 171). Recusar aos indivduos
a capacidade que possam ter de furtar-se influncia de sua
origem ou meio , mais uma vez, privar os homens de sua
humanidade.
A idia da culpa coletiva est, como sabemos, bastante bem
implantada entre os guardas. Buber-Neurnann recorda-se de que,
nos campos soviticos, todos os alemes eram automaticamente
tratados como fascistas, mesmo que na verdade fossem comunistas fugidos do regime de Hitler. Nada de diferente se passa nos
campos alemes: todo e qualquer indivduo reduzido a sua
pertena ao grupo. Ecke aterroriza os judeus detidos cada vez que
um protesto que lhes diga respeito se levanta em algum canto do
mundo: eles so coletivamente culpados. O prprio Htler d como
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Assim, por princpio, as testemunhas escapam s perseguies legais; mas podemos consider-Ias
como moralmente
responsveis. No formam um grupo homogneo; poderamos,
antes, v-Ias como que dispostos em crculos concntricos, de
acordo com o grau de seu dstanctamento dosprpros agentes do
mal.
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.'.
Theresa Stangl. Como pde ela aceitar que seu marido tivesse a morte como ofcio? Fazendo o melhor de si para ignorar. Evitando
fazer-lhe perguntas embaraosas. Aceitando suas confusas explicaes, de acordo com as quas ele s se ocupava da
administrao, e no das execues ("Evidentemente, eu queria
ser convencida, no ?", admite, 30 anos mais tarde; idem. p.
145). Comparando as vtimas aos soldados mortos no froni.
Recusando-se a acreditar que tambm se matavam mulheres e
crianas. Essa acomodao ao mundo -lhe necessria para
c.f>!1.til).:!lar
a Viver tranqila. ela mesma quem diz claramente:
"Era assim que eu tinha vontade, que eu tinha necessidade de
pensar, que me era preciso pensar para manter nossa vida familiar e, se voc quiser. [... ] para conservar minha razo" (idem. p.
373). A senhora Stangl prefere o conforto verdade; no a nica ..
Qual a responsabilidade desse primeiro crculo de ntimos? Os agentes do mal. como vimos, muitas vezes sofrem uma
fragmentao de sua existncia em uma esfera pblica e outra
privada. que no se comunicam entre si; podem ser excelentes
maridos e excelentes pais. Stangl, particularmente, desejava comportar-se como pai de famlia exemplar, compensando assim as
nsattsfaes que o trabalho lhe trazia. O que teria feito se a
mulher o tivesse obrigado a escolher entre o ofcio e ela prpria?
Sereny faz a pergunta mulher, que compreende bem o que est
em jogo: se pensa que ele teria mudado de emprego, deve sentir-se
culpada pelo que se produziu, uma vez que poderia t-lo detido.
Sua reao reveladora. Depois de refletir demoradamente, ela
responde: se eu o tivesse colocado diante da alternativa Treblinka
ou eu, "sim, finalmente, a mim que ele teria escolhido". Mas,
algumas horas depois, ela muda de opinio e envia a Sereny uma
carta afirmando o contrrio. Sua interlocutora tira ento a concluso que se impe: "A verdade uma coisa terrvel, terrvel
demais. algumas vezes, para que possamos viver com ela" (idem,
pp. 387-388). Em um grande nmero de casos. os ntimos poderiam ter impedido os massacres, mas no o fizeram.
No segundo crculo em volta dos agentes do mal encontramse seus compatriotas: os que Do o conhecem pessoalmente, mas
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No terceiro crculo ao redor dos agentes do mal, encontramse os pases submetidos: populaes como a da Polnta e a da
Frana, em relao Alemanha. No se pode transferir para elas
a responsabilidade dos agentes, uma vez que estes eram inimigos.
Mas, em alguns casos, podemos nos perguntar se tais populaes
no se mostraram particularmente complacentes em relao aos
abusos cometidos em seu prprio solo; a questo foi notadamente
levantada pelos poloneses, que viram de perto o extermnio dos
judeus nos campos da morte: Sua indiferena, imputada ao
tradicional ant-serntsmo, no os torna culpados? Pois, como diz
Marek Edelman, em certas situaes "um inimigo no s aquele
que mata, mas tambm aquele que permanece indiferente. [... ]
~o ajudar e matar so a mesma coisa" (Au sujet, p. 271).
Do apaixonado debate que cercou essa questo retenho que,
como freqente, a verdade no se faz de uma nica pea. O
ant-semtsmo desempenhou um papel, assim como a cupidez e
o medo; as testemunhas polonesas no-judias acabaram habituando-se ao inaceitvel, e tiveram mais piedade de si mesmas do
que dos judeus. Ao mesmo tempo, os gestos de ajuda recproca
foram muitos, mesmo que os poloneses fossem particularmente
ameaados e perseguidos pelo ocupante. Um exemplo e uma
frmula geral parecem-me resumir da melhor forma possvel a
situao. Um casal polons "ariano" esconde uma judia durante
a ocupao. Um dia, o marido, que nunca deixou de ser ant-semita, decide denunci-Ia para livrar-se dela. Ameaado por um
amigo de sua mulher, renuncia ao projeto e deixa a casa. Depois
da insurreio de 1944, a populao de Varsvia evacuada; a
judia j no pode ficar no esconderijo. Para proteg-Ia, a polonesa
empresta-lhe o beb: corre menor risco a mulher que se imagina
ser me. E se assim a polonesa perdesse o filho? "Irena no lhe
faria mal. Cuidaria bem dele" (Tec 1986, p. 55). A traio e o
cuidado para com o outro coabitam o mesmo teto. Quarenta anos
mais tarde, Walter Laqueur conclui que a atitude dos poloneses
est longe de ser a pior de todas nesse perodo sombrio: "Uma
comparao com a Frana no seria absolutamente desfavorvel
Polnia" (Laqueur 1982, p. 107).
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Vcios cotidianos
Voltemos s manifestaes do mal. Em face das perseguies e das humilhaes sofridas. era importante para as vtimas
afirmar: somos seres humanos tanto quanto vocs. Si c'est un
homme. de Primo Lev, L'Espce humaine, de Robert Antelme, so
pregaes em favor da humanidade das vtimas; nessa humanidade comum que residem as esperanas dessas ltimas. "
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porque somos to homens quanto eles que os SS sero definitivamente impotentes diante de ns. [... 10 carrasco [...] pode matar
um homem, mas no pode transform-Ia em outra coisa" (Antelme 1957, pp. 229-230). Mas quem diz "somos homens como eles"
deve poder concluir, hoje, quando a humanidade das vtimas
plenamente reconhecida, mas a dos carrascos parece problemtica, que eles tambm so homens como ns. Os agentes do mal
eram pessoas comuns, ns tambm: assemelham-se a ns, somos
como eles.
Talvez no haja mrito algum em fazer uma tal constatao
quando no se est diretamente atingido pelos acontecimentos
em questo; mas a coisa no nada fcil para os que a sofreram
na carne. Um prisioneiro de Auschwtz conta que ele e seus
companheiros formulavam-se constantemente a questo relativa
a "se o alemo era um ser humano como outro qualquer. A
resposta era sempre categrica: 'No, o alemo no um homem,
o alemo um boche, um monstro, e mais que isso: um monstro
consciente de sua monstruosidade" (Laks 1989, p. 157). Assim, li
o que se segue com admirao ainda maior por tratar-se do dirio
de Etty Hillesum. Um amigo lhe diz: "O que podem querer os
homens, destruindo assim seus semelhante?" Ela replica: "Os
homens, os homens ... No esquea que voc um deles. [...] Os
horrores e atrocidades no so uma ameaa misteriosa e longnqua, externa a ns, mas esto muito perto, e emanam de ns
mesmos, seres humanos" (Hllesum 1985, pp. 102-104). Isso se
passa em uma quarta-feira, 19 de fevereiro de 1942, pela manh,
durante uma parada do trem em Amsterd.
Outros levam muitos anos para fazer a mesma descoberta.
Lev defende a humanidade do prisioneiro, em 1946, em Si c'est
un homme; mas s 40 anos mais tarde, em 1986, consegue
escrever, em Les naujrags et les rescaps: "Eram feitos do mesmo
tecido que ns, eram seres humanos medianos, medianamente
inteligentes, de uma maldade mediana: salvo excees, no eram
monstros, tinham o nosso mesmo rosto" (Lev 1989b, p. 199).
Soljenitsyn lembra-se dos anos em que era oficial do Exrcito
Vermelho e conduzia sua bateria atravs da Prssia devastada;
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FRAGMENTAO
Formas de descontinuidade
Tanto os sobreViventes de Auschwtz quanto os observadores mais tardios surpreendem-se com um trao comum a todos
os guardas. inclusive os mais cruis: a incoerncia dos atos. Em
um mesmo local, vezes em um mesmo dia. e at na mesma hora,
uma pessoa leva para a morte um prisioneiro e dispensa cuidados
a um outro. No que bem e mal se equilibrem - este ltimo
ultrapassa aquele de longe -. mas no h nenhum guarda que
seja completamente "mau". Todos parecem ter um humor constantemente instvel, se assim se pode dizer, sujeito influncia
das circunstncias - a ponto de o termo "esquzofrena" impor-se
para descrev-Ias. muito embora nenhum deles esteja acometido
de qualquer doena mental; trata-se dessa esquzofrena soclal
especfica dos regimes totalitrios. "Contra toda lgica", observa
Primo Lev, "piedade e brutalidade podem coexistir no mesmo
indivduo e no mesmo momento" (1989b, p. 56).
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Pblico e privado
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Mandel, a Vigilante em exerccio de Brkenau, no se contenta em proteger a orquestra feminina de Alma Rase, como
Kramer j fazia; e tem um fraco pelas crianas: no as suas, pois
no as tem, mas as dos outros. Um dia, ela descobre duas
crianas judias que a me tentava esconder, e convoca-as a seu
escritrio; a me espera tremendo, diante da porta. "Cinco minutos mais tarde, elas voltaram, cada uma carregando um pacote
com bolo e chocolate [...). Ela era capaz de reaes normais, da
reao maternal de uma mulher, assim como podia transformarse em uma besta selvagem" (Lngens-Rener 1948, p. 146). Fana
Fnelon conta um outro episdio, que no termina to bem:
Mandel salva uma criana polonesa da cmara de gs e cobre-a
de carinhos e presentes; pela primeira vez, as prtsoneras vemna rir. No entanto,
alguns dias mais tarde, ela entra
particularmente sombria na barraca e pede o duo de Madame
Butte1jly. E ento as prisioneiras ficam sabendo que ela teve de
separar-se da criana e entreg-Ia para a morte. Em geral, pensa
Fnelon, "o crebro dela, como o de todos os alemes, compartimentado como um submarino, formado de cmaras estanques,
a gua pode invadir uma delas sem que as outras sejam atingidas"
(Fnelon 1976, p. 346). Ora, nesse caso, a cmara da "Vida
privada" corria o risco de transbordar para a cmara da "Vida
profissional"; foi preciso, ento, restabelecer os compartimentos
estanques. Talvez; mas seriam os alemes os nicos a terem o
crebro organizado dessa maneira? E todos os alemes obedeceriam o mesmo modelo?
Dispomos de documentos pessoais - cartas, entrevistas ou
lembranas - de algumas pessoas que fizeram essa separao
entre o pblico e o privado, o que nos permite observar mais de
perto seu funcionamento. RJ. Lifton analisou em detalhes o caso
do dr. Eduard Wrths, mdico-chefe de Auschwtz. Ele adere
doutrina nazista e, portanto, professa o ant-semttsmo. mas,
diferentemente do que acontece com numerosos colegas, isso no
o impede, quando ainda mdico de provncia, de tratar de judeus.
Em Auschwtz, pratica experincias "mdicas" com os prisioneiros; mas tambm se torna conhecido pela honestidade pessoal:
para seu prprio abastecimento, recusa-se a utilizar qualquer
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influenciam nem desculpam seus atos polticos, mas talvez contribuam para convencer a ele mesmo da justeza de suas idias,
como acontecer mais tarde com seus admiradores.
J evoquei uma outra forma de ruptura entre as.ol).~
da pessoa e seu modo de vver, a do fariseu, que proclama belos
.prtncptos sem cuidar de submeter a eles suaprprtaconduta,
Essa ruptura, que impede a ao propriamente moral e em seu
lugar produz o moralsmo, familiar tambm pela atitude de
numerosos intelectuais (Rousseau diria "filsofos"), que pregam a
generosidade ou a tolerncia e de quem ficamos sabendo, em uma
confidncia, que na vida privada se conduzem como seres irascveis e interesseiros. Entre eles, deparamo-nos, em suma, com
uma distribuio inversa que se observa nos campos: a doutrma
professada Virtuosa, mas no a pessoa. preciso, ento, fazer
como dizem, no como fazem; a superficie sedutora, ao menos
aos olhos do prprio sujeito, que se considera capaz de resgatar
as imperfeies do ncleo interno: em casa, bato em minha
mulher, verdade, mas externamente me bato contra o imperialismo americano. De resto, essa figura da fragmentao no est
ausente dos campos: Henry Bulawko recorda-se do chefe de
equipe Mosche, que, semelhantemente ao kapo Arno Boehm, traz
sempre um cassetete ao alcance da mo. "Ele era muito religioso,
fazia suas preces trs vezes por dia - e todos os dias surrava
algum" (Langben 1975, p. 171). O Einsatzkommando II b, que
age na regio de Smferopol, na Rssa, recebe ordem para matar
trs ml judeus e ciganos antes do Natal; a ordem executada com
especial rapidez, para permitir que as tropas compaream
cerimnia de celebrao do nascimento de Cristo; o chefe do
comando, Otto Ohlendorf profere um emocionado discurso para
os soldados.
No fundo, para aquele que tem algo a reprovar em si, pouco
importa se esse algo se situa na esfera pblica ou privada; o que
conta que existam duas esferas e que uma - que ento se
proclama como constituindo o essencial de seu prprio ser possa resgatar a outra, sobretudo aos prprios olhos. "O sinistro
dr. Otto Bradfisch, ex-membro dos Einsatzgruppen, que presidiu
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Causas e efeitos
IWl
o estilhaamento
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IDO
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Os efeitos da fragmentao interior no so menos difundidos. Soldados que procuram matar o mais rpido possvel so.
freqentemente,
excelentes pais de famlia: neles. o compartimento "guerra" no se comunica com o da "paz". E no se trata apenas
da guerra: observou-se com freqncia que os mesmos soldados
americanos desembarcados na Europa. revoltados com o ant-semitismo dos nazistas. praticavam uma poltica de segregao
racial em relao aos seus prprios negros. Os franceses que
proclamavam os princpios da Revoluo -liberdade
e igualdade
- instauravam em suas colnias regimes em que as populaes
no desfrutavam nem de uma nem de outra. E sei tambm que
minha prpria vida no est a salvo dos efeitos malignos da
fragmentao.
Em um regime totalitrio. a esquzofrena social. a separao da vida em sees impermeveis, um meio de defesa para
quem ainda guarda alguns princpios morais: s me comporto de
forma submissa e indigna em tal fragmento de minha exstnca:
nos outros. que considero essenciais. mantenho-me como uma
pessoa respeitvel. Sem essa separao. eu no poderia funcionar
normalmente. Mais ou menos como a febre. durante uma doena.
a fragmentao no em si mesma um mal. mas uma defesa
contra ele; graas a essa defesa. no entanto. que o mal se torna
possvel. at mesmo fcil. e. nesse sentido. ela de fato um "vcio
cotidiano". R.J. Lfton, que em seu livro sobre os mdicos nazistas
dispensa uma grande ateno a essa situao. caracteriza-a como
um "desdobramento" (mas os compartimentos so. com freqncia. mais que dois). e descreve os inmeros meios pelos quas a
pessoa comprometida consegue manter uma boa opinio a seu
prprio respeito: aceitando executar tal ato. mas no tal outro;
isolando o privado do pblico; resgatando o vcio pblico pela
v.!Ttudeprivada.
..
Ora. no s os mdicos nazistas agem assim; o mesmo se
d com todos os "proflssonas'' (e. de um jeito ou de outro. somos
todos profissionais) que no aplicam as mesmas regras ticas em
seu trabalho e fora dele; e que podem aceitar o inaceitvel como
especialistas. assegurando-se de que. em sua outra Vida. a "ver-
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Nos campos, os detentos vem os efeitos nefastos da fragmentao e prometem a si mesmos: se um dia nos libertarmos,
"poremos nossos gestos em harmonia com nossas idias" (Gunzbourg 1980, Il, p. 86). Mlena tem a mesma exigncia: "Ela no
suportava a distncia entre as palavras e os gestos" (Buber-Neumann 1986, p. 229); e o dr. Frankl ouviu, nos campos, "um
chamado para que minha prpria vida testemunhasse minhas
idias, em vez de apenas public-Ias em um livro" (Frankl 1967,
p. 167). Mas tais decises, que partem de uma condenao da
\9'1
I!J!;