Clarice Lispector

A VIDA NTIMA
DE LAURA
Ilustrao
Flor Opazo

A Nicole Algrante
a Andra Azulay
a Alexandre Dines
a Ftima Froldi
a Fabiana Colasanti de SantAnna

Vou logo explicando o que quer dizer Vida ntima. assim vida
ntima quer dizer que a gente no deve contar a todo o que se passa na
casa da gente. So coisas que no se dizem a qualquer pessoa.
Pois vou contar a vida ntima de Laura.
Agora adivinhe quem e Laura.
Dou-lhe um beijo na testa se voc adivinhar. E duvido que voc
acerte! D trs palpites.

Viu como difcil?

Pois Laura uma galinha.

uma galinha muito da simples.

Peo a voc o favor de gostar logo de Laura porque ela a
galinha mais simptica que j vi. Vivi no quintal de Dona Lusa com as
outras aves. casada com um galo chamado Lus. Lus gosta muito de
Laura. embora s vezes brigue com ela. Mas briguinha -toa.

Acho que vou ter que contar uma verdade. A verdade que Laura
tem o pescoo mais feio que j vi no mundo. Mas voc no se importa,
no ? Porque o que vale mesmo ser bonito por dentro. Voc tem

beleza por dentro? Aposto como tem. Como que sei? que estou
adivinhando voc.
Outra verdade: Laura bastante burra. Tem gente que acha ela
burrssima, mas isto tambm exagero: quem conhece bem Laura
que sabe que Laura tem seus pensamentozinhos e sentimentozinhos.
No muitos, mas que tem, tem S porque sabe que no
completamente burra ela fica toda prosa e boba. Ela pensa que pensa.
Mas em geral no pensa coisssima alguma.

Lus passeia o dia inteiro no terreiro entre as galinhas, de peito

inchado de vaidade. porque ele pensa que, sabendo cantar de
madrugada, manda na Lua e no Sol.
Laura quase no deixa gente nenhuma fazer carinho nela. Porque
tem um medo danado de pessoas. Se algum chega perto dela, sem ser
para dar milho, ela foge com grande barulheira, cacarejando feito uma
doida Ela cacareja assim: no me matem! no me matem!
Mas ningum tem inteno de mat-la porque ela a galinha que
bota mais ovos em todo o galinheiro e mesmo nos das vizinhanas

Laura vive apressadinha. Por que tanta pressa, oh Laura? Pois ela
no tem nada o que fazer. Esta pressa uma das bobagens de Laura.
Mas ela modesta: basta-lhe cacarejar um bate-papo sem-fim com as
outras galinhas. As outras so muito parecidas com ela: tambm meio
ruiva e meio marrom. S uma galinha diferente delas: uma carij toda
de enfeites preto e branco. Mas elas no desprezam a carij por ser de
outra raa. Elas at parecem saber que para Deus no existem essas
bobagens de raa melhor ou pior.

Eu sei que voc nunca viu Laura. Mas se voc j viu uma galinha
meio marrom, meio ruiva, e de pescoo muito feio como se voc
estivesse vendo Laura.
Vai sempre existir uma galinha como Laura e sempre vai haver
uma criana como voc. No timo? Assim a gente nunca se sente s.
Pena que Laura no goste de pessoa alguma. Ela quase nunca
tem sentimentos, como eu disse. Na maioria das vezes tem o mesmo
sentimento que deve ter uma caixa de sapatos.

Por que ser que Laura fica o dia inteiro bicando a terra e
procurando comida? No pode ser por tanta fome, pois a cozinheira
Dona Lusa lhe d muito milho. Vou contar um segredo de Laura: ela
come por pura mania. Come cada porcaria! Mas no to burra assim.
Por exemplo: no come pedao de vidro. Sabida, hein?
Um dia ela sentiu que ia ser me de novo. Cacarejou depressa a

novidade para Lus. Lus parecia que ia estourar de tanta vaidade de ser
de novo pai. Bem sei que todo ovo nasce. Mas aquele ia ser uma
beleza. Era um ovo todo especial.
At que uma noite Laura sentiu que o ovo estava pronto para
nascer. Como que ela sentiu? Desculpe, no sei, porque nunca fui
galinha na minha vida. Ela estava at dormindo e acordou sentindo o
ovo nascendo dela.
Viva o meu filho! Foi assim que Lus cantou. Embora fosse meianoite, a notcia era como se o Sol brilhasse. No galinheiro brilhava
aquele lindo ovo branco. Laura, toda satisfeita, esfregou suas penas
com o bico para alisar-se, igual como a gente penteia os cabelos.
Porque ela muito vaidosa e gosta muito de estar bem-arrumada.

Depois que se penteou viu que estava pronta para se sentar em

cima do ovo e esquent-lo at nascer o pinto. Tudo estava to bom que
nem sei dizer.

Laura recebeu a visita das amiguinhas dela, todas cacarejando e

trazendo minhocas de presente, j que ela no podia levantar-se de
cima do ovo.
Tambm recebeu visita de Dona Lusa. Como presente de Dona
Lusa, Laura ganhou um pires de milho novo e amarelo.
Quando o pinto estava pronto, grande demais para caber dentro
da casca, ele mesmo quebrou de dentro para fora a casca com o bico.
Depois que saiu inteiro da casca do ovo, apareceu aquela coisa
feinha e magrinha.
Mas no dia seguinte virou o pinto mais amarelo do mundo e o
mais fofinho, e comeou a correr lindo atrs da me. Laura catava
minhocas e botava as minhocas no bico aberto do pinto. At que ele foi
crescendo e virou frango e ento ele mesmo procurava comida para
comer. J tinha pegado a mania de Laura: comia sem parar. Laura
estava satisfeita como uma rainha.
Este frango se chama Hermany.
Uma bela noite... Bela coisa nenhuma! Porque foi terrvel. Um
ladro de galinhas tentou roubar Laura no escuro do quintal. Mas Laura
fez uma barulheira to tremenda que agitou todas as galinhas e elas
comearam a cacarejar. E o galo comeou a berrar.
Dona Lusa acendeu as luzes da casa toda, acendeu as luzes do
quintal e o ladro teve tanto medo que fugiu. Dizem que at hoje ele
ainda anda correndo.
Outra coisa ruim para Laura foi que Dona Lusa a emprestou para
um quintal vizinho. que ela sabia botar muito ovo e pediam que a
emprestassem por uns tempos.
Foi assim que Laura se viu entre galinhas desconhecidas e sem
Lus.
Depois tudo foi melhorando porque ela comeou a arranjar amigas
entre as galinhas e botou grande quantidade de ovos.
Ento voltou para o seu verdadeiro quintal. Lus ficou todo
contente. Esse galo, como eu j disse, era muito vaidoso. Orgulhava-se
de ser casado com Laura, orgulhava-se de cantar bem alto, bem rouco e
bem estridente, logo que o Sol dava mostras de querer nascer. Ele era o
primeiro galo das redondezas a cocoricar.

Quando eu era do tamanho de voc, ficava horas e horas olhando

para as galinhas. No sei por qu. Conheo tanto as galinhas que podia
nunca mais parar de contar.
Vou contar uma coisa meio enjoada de se contar. o seguinte:
sabe que a galinha tem um cheiro um pouco chato? Parece cheiro de
cesto de roupa suja ou de quando a gente no toma banho todos os
dias. No cheiro limpo no. Ento embaixo das asas aquela
morrinha. Mas no faz mal. Todas as coisas tm mesmo um cheiro, no
? Voc cheira bem? Cachorro que gosta de viver cheirando tudo, O
que eu queria saber quem ensinou o galo a cantar de madrugada.
Tem gente que se aproveita do canto como despertador para se
acordar.
Eu queria tanto que Laura soubesse falar. Ela ia dizer tanta burrice
engraada que s vendo. Ela ia dizer assim, por exemplo: voc sabe
que uma coisa vermelha vermelha? e voc respondia: claro que ,
pois se voc j est dizendo.
Talvez ela pudesse explicar que gosto tem minhoca. Mas no
fcil explicar o gosto que se tem na boca. Por exemplo: experimente
explicar o gosto do chocolate. Viu como difcil? gosto de chocolate
mesmo.
Voc sabe que Deus gosta de galinha? E sabe como que eu sei
que Ele gosta? o seguinte: se Ele no gostasse de galinha, Ele
simplesmente no fazia galinha no mundo. Deus gosta de voc tambm
seno Ele no fazia voc. Mas por que faz ratos? No sei.

Laura no beija ningum. Acho que ela d umas bicadinhas meio

sem jeito em Hermany. Alis nunca vi ningum mais sem jeito que essa
galinha. Tudo o que ela faz meio errado. Menos comer. E, claro,
ela faz um ovo certo.
Existe um modo de comer galinha que se chama galinha ao
molho pardo. Voc j comeu? O molho feito com o sangue da
galinha. Mas no adianta mandar comprar galinha morta: tem que ser
viva e matada em casa para aproveitar o sangue. E isto eu no fao.
Nada de matar galinha. Mas que comida gostosa, . A gente come
com arroz bem branco e bem solto.
Tambm existe uma comida de galinha que se chama supremo de
frango. At me deu fome. Eu sei onde se come esse tipo de galinha.
Mas no digo porque parece propaganda. Tambm, pelo mesmo motivo,
no posso dizer que refrigerante bom de se beber com essa galinha.
Adivinhe! Comea com a letra C.
engraado gostar de galinha viva mas ao mesmo tempo
tambm gostar de comer galinha ao molho pardo. que pessoas so
uma gente meio esquisitona.
Eu s queria saber do seguinte: h quanto tempo existe galinha na
Terra? Voc que me responda porque eu no sei.
Agora vou contar uma coisa um pouco triste.
A cozinheira disse para Dona Lusa apontando Laura:
Essa galinha j no est botando muito ovo e est ficando
velha. Antes que pegue alguma doena ou morra de velhice a gente
bem que podia fazer ela ao molho pardo.
Essa a no mato nunca, disse Dona Lusa.
Laura ouviu tudo e sentiu medo. Se ela pensasse, pensaria assim:
muito melhor morrer sendo til e gostosa para uma gente que sempre
me tratou bem, essa gente por exemplo no me matou nenhuma vez. (A
galinha to burra que no sabe que s se morre uma vez, ela pensa
que todos os dias a gente morre uma vez.)
Alm disso Laura estaria sentindo, se sentisse, que Dona Lusa
nunca ia com-la. Gostava muito de viver. Ento ela meteu o bico na
lama, se lambuzou toda e se despenteou. Veja que ela no era to burra
assim: ela sabia que os outros s a reconheciam mesmo porque ela era
a mais limpa e a mais penteada do galinheiro. Quando a cozinheira

apareceu Laura ficou com medo, mas se garantindo com a bondade e o

amor de Dona Lusa. A cozinheira pegou uma galinha chamada
Zeferina, meio arruivada e meio marrom, que era muito parecida com
Laura.

E na hora do jantar, quando todos estavam sentados ao redor da

mesa, Zeferina, prima de quarto grau de Laura, apareceu numa travessa
grande de prata, j toda em pedaos, alguns bem dourados. O filho e a
filha de Dona Lusa, Lucinha e Carlinhos, comeram, embora com pena,
Zeferina com arroz branco e solto e regaram tudo com molho pardo.

Agora vou contar uma coisa muito bacana. Preciso antes dizer
que Laura era uma galinha pra frente. Tanto que um habitante de Jpiter
um cara que tinha um s olho na testa e era do tamanho mesmo de

uma galinha , esse habitante de Jpiter baixou de noite no quintal de

Dona Lusa, enquanto todas as galinhas estavam dormindo.
O habitante-ano se chamava Xext e foi logo acordar Laura. Laura
nem se espantou. Disse assim:
Ol bicho. Como que voc se chama?
Xext, respondeu ele.
Falou, t falado, disse Laura.
E perguntou: quer que eu pea a Lus para cantar a sua vinda?
No, disse Xext, porque ele acordaria todo mundo. E no valia
a pena porque as pessoas no acreditam em mim, pensam que sou
fantasma.
Por que voc me escolheu para se apresentar?
Porque voc no quadrada.
Xext pronuncia-se Equzequte. difcil, eu sei. Era mais fcil se se
chamasse Jos ou Zequinha.
Xext perguntou a Laura como eram os humanos por dentro.
Ah, cacarejou Laura, os humanos so muito complicados por
dentro. Eles at se sentem obrigados a mentir, imagine s.
Pea alguma coisa de mim que eu fao acontecer, falou Xext.
Ah, disse Laura, se meu destino for ser comida, eu queria ser
comida por Pel!
Mas voc nunca vai ser comida e ningum vai matar voc.
Porque eu no deixo. E agora vou embora, minha me est me
esperando. Ela se chama Xexta.
Tchau, disse Laura.
Tchauzinho, respondeu Xext e desapareceu.
Que bom ser protegida por um habitante de Jpiter, pensou Laura
e comeou a dormir de novo. Mas acordar no meio da noite bem que
cansou Laura, e no dia seguinte a cozinheira disse a Dona Lusa:
Laura est com cara de ontem.
Cara de ontem quer dizer cara de maldormida.
Acabou-se aqui a histria de Laura e de suas aventuras. Afinal de
contas, Laura tem uma vidinha muito gostosa.
Se voc conhece alguma histria de galinha, quero saber. Ou

invente uma bem boazinha e me conte.

Laura bem vivinha.

CLARICE LISPECTOR
nasceu em 1920, em Tchetchelnik, uma pequena cidade da Ucrnia. Veio para o Brasil quando ainda era
um beb, com seus pais e suas irms. Viveu muitos anos no Recife. Desde pequena gostava de escrever e
inventar histrias. Quando comeou a trabalhar como jornalista, publicou seus primeiros contos. Ento,
nunca mais parou de escrever. Fazia livros para crianas e adultos. Casou-se no Rio de Janeiro e teve dois
filhos. Viveu alguns anos em outros pases: em Npoles, na Itlia; em Berna, na Sua; em Torquay, na
Inglaterra. Ao todo, Clarice Lispector escreveu vinte e seis livros. Eles fizeram tanto sucesso, que muitos
foram at traduzidos em outras lnguas.

Da autora:
O MISTRIO DO COELHO PENSANTE
A VIDA NTIMA DE LAURA
A MULHER QUE MATOU OS PEIXES
QUASE DE VERDADE
COMO NASCERAM AS ESTRELAS