Memórias Póstumas de Brás Cubas é um romance modernista escrito por Machado de Assis em 1880. Narrado pelo próprio Brás Cubas após sua morte, o livro descreve de forma não linear a vida do protagonista através de memórias e digressões. Brás Cubas morre aos 64 anos e é acompanhado por apenas 11 amigos em seu funeral devido à chuva constante. Ele inicia suas memórias póstumas descrevendo os detalhes de sua própria morte.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é um romance modernista escrito por Machado de Assis em 1880. Narrado pelo próprio Brás Cubas após sua morte, o livro descreve de forma não linear a vida do protagonista através de memórias e digressões. Brás Cubas morre aos 64 anos e é acompanhado por apenas 11 amigos em seu funeral devido à chuva constante. Ele inicia suas memórias póstumas descrevendo os detalhes de sua própria morte.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é um romance modernista escrito por Machado de Assis em 1880. Narrado pelo próprio Brás Cubas após sua morte, o livro descreve de forma não linear a vida do protagonista através de memórias e digressões. Brás Cubas morre aos 64 anos e é acompanhado por apenas 11 amigos em seu funeral devido à chuva constante. Ele inicia suas memórias póstumas descrevendo os detalhes de sua própria morte.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é um romance modernista escrito por Machado de Assis em 1880. Narrado pelo próprio Brás Cubas após sua morte, o livro descreve de forma não linear a vida do protagonista através de memórias e digressões. Brás Cubas morre aos 64 anos e é acompanhado por apenas 11 amigos em seu funeral devido à chuva constante. Ele inicia suas memórias póstumas descrevendo os detalhes de sua própria morte.
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MEMRIAS PSTUMAS DE BRS CUBAS
Disposto em 160 captulos de extenses variveis,
Memrias Pstumas de Brs Cubas foi publicado origi- nalm ente em folhetim, na Revista Brasileira, em 1880. No ano seguinte, 1881, foi editado em livro, inaugurando o que a histria literria passou a consignar como fase realista da fico machadiana e dando incio ao perodo realista da Literatura Brasileira. Aps a Dedicatria e um irnico prlogo Ao Leitor, Brs Cubas, defunto-autor, em posio transtemporal, do outro lado do mistrio, comea a narrar sua autobiografia. Apoiado na memria, sem nenhuma ordem lgica ou cronolgica, num processo de livre associao de ideias, imagens e palavras (impres- sionis mo associativo), o autor, do tmulo, rev sua existncia de homem rico, excntrico, inteligente, culto, leviano, preguioso, cnico, ambicioso, s vezes sdico, que, entendiado da morte e da eternidade, se compraz em contar sua vida de fracassado, suas baixezas e as dos outros, para compor, fragmentariamente, uma implacvel anlise do homem de seu tempo e de todos os tempos. Como defunto pode, impunemente, difamar amigos e inimigos e confessar suas intenes mais srdidas e suas aes mais vis, pois est alm de qualquer vingana ou punio. Brs Cubas um narrador estranhssimo, ao mesmo tempo consciente-participante e onisciente (no sentido fantstico e ingnuo), que, alm da posio singular de morto que escreve, se entretm em comentar com o leitor a prpria escritura, atravs de frequentes digres ses, de comentrios paralelos sobre os mais diversos assuntos: comparaes com elementos alheios ao livro; retratos morais de personagens secundrias ou alheias trama; sondagem das reaes do leitor; experincias e brinca- deiras grficas e toda a sorte de desvios, com os quais o autor/narrador discute, utilizando a funo metalingus - tica, o ato de escrever e a tecitura do romance, com a bem- humorada bisbilhotice e o tom desabusado e provoc at ivo que a fico machadiana instaura a partir de Memrias Pstumas. O romance comea pelos funerais de Brs Cubas, narrados por ele mesmo. Entretm-se, a seguir, em comentar a causa mortis a pneumonia contrada quando inventava o emplasto Brs Cubas. No captulo IX, Transio, principiam propriam ente as memrias. Brs Cubas comea revendo a prpria infncia de menino rico, mimado e endiabrado. Em O Menino Pai do Homem, freudianamente antes de Freud, o narrador fundamenta a explicao dos traos de seu carter a partir da relao pai-me. Caracteriza-se como opinitico, egosta, volvel, e define sua tendncia a julgar as atitudes humanas ao sabor das circunstncias, dos lugares e das convenincias. Aos dezessete anos, Brs Cubas detm-se na narrativa de seu primeiro amor Marcela , amiga de rapazes e de dinheiro, prostituta de luxo, amor que durou quinze meses e onze contos de ris, e que quase deu cabo da fortuna da famlia. Para se curar desse amor, Brs Cubas mandado para Coimbra, onde se forma em Direito, aps alguns anos de bomia desbragada, fazendo romantismo prtico e liberalismo terico. Retorna ao Rio de Janeiro por ocasio da morte da me. Depois de um namoro inconsequente entre Brs Cubas e Eugnia, coxa de nascena, filha de D. Eusbia, amiga pobre da famlia, seu pai planeja induzi-lo a ingressar na carreira poltica, atravs do casamento. Encaminha o relacionamento do filho com Virglia, filha do Conselheiro Dutra, homem bem posto no mundo poltico e que certamente apadrinharia o futuro genro. Mas Virglia prefere se casar com Lobo Neves, mais decidido que Brs Cubas e tambm candidato a uma carreira poltica. Sobrevm a morte do pai do narrador e, por causa da herana, instaura- se o conflito entre Brs Cubas e sua irm, Sabina, casada com Cotrim. Virglia reaparece, anunciada pelo primo Lus Dutra. Reencontra-se com Brs Cubas e tornam-se amantes, vivendo agora, no adultrio, a paixo que no viveram quando noivos. Seguem-se as peripcias da relao que se vai esfriando, mas reacende quando Virglia fica grvida de um filho de Brs Cubas. No entanto, a criana morre antes de nascer. Para manter discretamente sua relao amorosa, Brs Cubas corrompe a empregada de Virglia, Dona Plcida, velha beata cuja misria a obriga a figurar como moradora de uma casinha na Gamboa, que Brs Cubas alugou para seus encontros. Por cinco contos de ris, Dona Plcida aceita proteger os amantes, cuidar da casinha e rezar por Brs Cubas, diante de uma imagem da Virgem que conserva no quarto. Segue- se o reencontro de Brs Cubas com seu amigo de infncia, Quincas Borba (Joaquim Borba dos Santos). No primeiro reencontro, Quincas Borba, pobre e miservel, rouba o relgio de Brs Cubas; mais tarde, graas a uma herana, refaz suas finanas e repe o relgio. Trata-se de Quincas Borba, filsofo-doido, que expe ao amigo o humanitismo , doutrina filosfica que ser retomada e aprofundada no romance seguinte: Quincas Borba. Perseguindo a celebridade ou procurando uma vida menos tediosa, Brs Cubas torna-se deputado. Lobo Neves nomeado presidente de uma provncia e parte com Virglia para o Norte. Termina a relao dos amantes. Sabina arranja uma noiva para Brs Cubas, a Nh- Lol (Eullia Damasceno de Brito), sobrinha de Cotrim, de 19 anos. Mas Nh-Lol morre de febre amarela e Brs Cubas torna-se definitivamente um solteiro. Ainda perseguindo a celebridade, Brs Cubas tenta ser ministro de Estado e no consegue. Funda um jornal de oposio e fracassa. Quincas Borba d os primeiros sin ais de demncia. Virglia, j velha e desfigurada em sua beleza, solicita a Brs Cubas o amparo indigncia de Dona Plcida, que morre em seguida. Morrem tambm Lobo Neves, Marcela e Quincas Borba. Eugnia encontrada num cortio. A ltima tentativa de glria o emplasto Brs Cub as, remdio contra todas as doenas. Irnica e tragica mente, porm, numa de suas sadas rua para cuidar de seu projeto, molha-se na chuva e apanha uma pneumonia, da qual vem a falecer, aos 64 anos. Virglia, acompanhada do filho, visita Brs Cubas agonizante. Aps longo delrio, morre, assistido por alguns familiares. Depois de morto, comea a contar, de trs para frente, a histria de sua vida. Mas, antes de tudo, faz estampar, na abertura do livro, a seguinte dedicatria, diagramada em forma de epitfio: AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADVER DEDICO COM SAUDOSA LEMBRANA ESTAS MEMRIAS PSTUMAS ANTOLOGIA Captulo I bito do autor Algum tempo hesitei se devia abrir estas memrias pelo princpio ou pelo fim, isto , se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja comear pelo nascimento, duas consideraes me levaram a adotar diferente mtodo:a primeira que eu no sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor(1), para quem a campa foi outro bero; a segunda que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moiss, que tambm contou a sua morte, no a ps no introito, mas no cabo: diferena radical entre este livro e o Pentateuco(2). Dito isto, expirei s duas horas da tarde de uma sexta- -feira do ms de agosto de 1869, na minha bela chcara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prsperos, era solteiro, possua cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitrio por onze amigos. Onze amigos! Verdade que no houve cartas nem anncios. Acresce que chovia peneirava uma chuvinha mida, triste e constante, to constante e to triste, que levou um daqueles fiis da ltima hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu beira de minha cova: Vs, que o conhecestes, meus senhores, vs podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparvel de um dos mais belos caracteres que tm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do cu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funreo, tudo isso a dor crua e m que lhe ri natureza as mais ntimas entranhas; tudo isso um sublime louvor ao nosso ilustre finado. Bom e fiel amigo! No, no me arrependo das vinte aplices que lhe deixei. E foi assim que cheguei clusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country(3) de Hamlet, sem as nsias nem as dvidas do moo prncipe, mas pausado e trpego como quem se retira tarde do espetculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas trs senhoras, minha irm Sabina, casada com o Cotrim, a filha um lrio do vale e... Tenham pacincia! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa annima, ainda que no parenta, padeceu mais do que as parentas. verdade, padeceu mais. No digo que se carpisse, no digo que se deixasse rolar pelo cho, convulsa. Nem o meu bito era cousa altamente dramtica... Um solteiro que expira aos sessenta e quatro anos no parece que rena em si todos os elementos de uma tragdia. E dado que sim, o que menos convinha a essa annima(4) era aparent-lo. De p, cabeceira da cama, com os olhos estpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extino. Morto! morto! dizia consigo. E a imaginao dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vo desde o Ilisso(5) s ribas africanas, sem embargo das runas e dos tempos a imaginao dessa senhora tambm voou por sobre os destroos presentes at s ribas de uma frica juvenil... Deix-la ir; l iremos mais tarde; l iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluos das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhoro da chcara, e o som estrdulo de uma navalha que um amolador est afiando l fora, porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito com uns mpetos de vaga marinha, esvaa-se- me a conscincia, eu descia imobilidade fsica e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.(6) Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e til, a causa da minha morte, possvel que o leitor me no creia, e todavia verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. 8 (1) Observe que o jogo de palavras a mudana da ordem dos termos altera o sentido e o resultado. No se trata de autor que j morreu (autor defunto), mas de um morto que se torna autor e escreve, do tmulo, suas memrias. Na posio surrealista de morto que escreve, Brs Cubas est livre de qualquer constrangimento para articular o discurso e produzir a sucesso dos fatos. Pode difamar amigos e inimigos, pode expor suas prprias baixezas, sem risco de vingana, punio ou juzo moral dos vivos, que no podem atingi-lo. (2) Pentateuco = os cinco livros de Moiss, que so os primeiros da Bblia, desde o Gnese at o Deuteronmio. As aluses bblicas reforam a ironia decorrente da aproximao proposta pelo narrador entre sua obra e os escritos sagrados de Moiss. Mesmo descontando a alta dose de ironia, preciso insistir na elevada conscincia que tem Machado de sua posio inovadora e do modo de narrar fora dos hbitos conhecidos do leitor da poca. (3) Undiscovered country reino desconhecido ou, no contexto, a morte. Palavras ditas por Hamlet, na pea homnima de Shakespeare, no conhecido monlogo do 3. ato, que comea por ser ou no ser: eis a questo. (4) Trata-se de Virglia que, discretamente, fora visitar o ex-amante. Observe como o narrador ironiza e relativiza a prpria morte. (5) Ilisso = riacho prximo de Atenas, na Grcia. O ilustre viajante uma aluso ao escritor francs Chateaubriand (l768-1848), que na obra Itinerrio de Paris a Jerusalm descreve o vo das cegonhas a que se refere Brs Cubas. (6) A repetio do conectivo e (polissndeto) faz avolumar-se, por adio e sucesso, a fora da ideia, para chegar inutilidade com a eliminao de tudo. Observe a gradao em anticlmax. Captulo XXXI A borboleta preta No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, to negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da vspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusbia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraa; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, comeou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, sa do quarto, mas tornando l, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelo dos nervos, lancei mo de uma toalha, bati-lhe e ela caiu. No caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabea. Apiedei-me; tomei-a na palma da mo e fui dep-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado. Tambm por que diabo no era ela azul? disse comigo. () Captulo XXXII Coxa de nascena Fui dali acabar os preparativos da viagem. J agora no me demoro mais. Deso imediatamente; deso, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o captulo passado apenas uma sensaboria ou se chega a empulhao... Ai, no contava com Dona Eusbia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha convidar-me para transferir a descida, e ir l jantar nesse dia. Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que no pude deixar de aceitar; demais, era-lhe devida aquela compensao; fui. Eugnia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por minha causa, se que no andava muita vez assim. Nem as bichas de ouro, que trazia na vspera, lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas finamente recortadas numa cabea de ninfa. Um simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de broche, um boto de madreprola, e outro boto nos punhos, fechando as mangas, e nem sombra de pulseira. Era isso no corpo; no era outra coisa no esprito. Ideias claras, maneiras chs, certa graa natural, um ar de senhora, e no sei se alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a da me, a qual me lembrava o episdio de 1814, e ento dava- me mpetos de glosar o mesmo mote filha... Agora vou mostrar-lhe a chcara, disse a me, logo que esgotamos o ltimo gole de caf. Samos varanda, dali chcara, e foi ento que notei uma circunstncia. Eugnia coxeava um pouco, to pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o p. A me calou-se; a filha respondeu sem titubear: No, senhor, sou coxa de nascena. () (*) Os captulos XXXI e XXXII esto ligados se considerarmos o idntico destino fruste da borboleta e da jovem. No so elas que tm a cor e o defeito, mas estes que as tm, ou seja, o acidente marcou - -lhes definitivamente a vida. MEM_P_DE_BRAS_CUBAS_Ma_2012 13/08/12 11:31 Pgina 8 9 Captulo LV O velho dilogo de Ado e Eva(*) (*) Esse curioso captulo, em que a pontuao grfica substitui as palavras, uma faceta inovadora da narrativa machadiana: o experimentalismo grfico, maneira das vanguardas concretistas ou de alguns poetas barrocos. Contudo, em Machado, essas brincadeiras grficas tm funcionalidade e confi - guram no apenas uma atitude ldica, mas tambm um gosto da experimentao pela experimentao. Machado foi ao mesmo tempo um clssico e um inventor que usou, com muita liber dade, a tradio literria e o amor livre criao. O ttulo O Velho Dilogo de Ado e Eva o eufemismo de que o sempre sutil e recatado Machado se vale para sugerir que vai descrever uma relao sexual entre Brs Cubas e Virglia. Contudo, como o que se dizem os amantes durante o ato convencional, previsvel, arquetpico e nada se pode dizer de novo ou diferente, Machado, para evitar a vulgaridade, substitui as palavras pelos sinais de pontuao. Captulo CXVII O Humanitismo(*) Duas foras, porm, alm de uma terceira, compe - liam-me a tornar vida agitada do costume: Sabina e Quincas Borba. Minha irm encaminhou a candidatura conjugal de Nh-Lol de um modo verdadeiramente impetuoso. Quando dei por mim, estava com a moa quase nos braos. Quanto ao Quincas-Borba, exps-me enfim o Humanitismo, sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas. Humanitas, dizia ele, o princpio das coisas, no outro seno o mesmo homem repartido por todos os ho- mens. Conta trs fases Humanitas: a esttica, anterior a toda a criao; a expansiva, comeo das cousas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contar mais uma, a contrativa, absoro do homem e das coisas. A expans o, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e da a disperso, que no mais do que a multiplicao personificada da substncia original. Como me no aparecesse assaz clara esta exposio, Quincas Borba desenvolveu-a de um modo profundo, fazend o notar as grandes linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao Bramanis - mo, a saber, na distribuio dos homens pelas diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na religio indiana tinha apenas uma estreita significao teolgica e poltica, era no Humanitismo a grande lei do valor pes - 10 soal. Assim, descender do peito ou dos rins de Humani tas, isto , ser um forte, no era o mesmo que descender dos cabelos ou da ponta do nariz. Da a necessidade de cultivar e temperar o msculo. Hrcules no foi seno um smbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto Quincas Borba ponderou que o paganismo poderia ter chegado verdade, se se no houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mitos. Nada disso acontec er com o Humanitismo. Nesta igreja nova no h aventuras fceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, um sacerdcio, a reproduo um ritual. Como a vida o maior benefcio do universo, e no h mendigo que no prefira a misria morte (o que um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmis- so da vida, longe de ser uma ocasio de galanteio, a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeira - mente h s uma desgraa: no nascer. () (*) Este captulo permeado por uma viso antis- schopenhaueriana (A dor, segundo o Humanitismo, uma pura iluso), mas defendida por um luntico, como se o ficcionista pretendesse mostrar que apenas um indivduo desassisado poderia pacionalmente apegar-se vida. Captulo CXIX Parntesis(*) Quero deixar aqui, entre parntesis, meia dzia de mximas das muitas que escrevi por esse tempo. So bocejos de en fa do; podem servir de epgrafe a discursos sem assunto: ----------------------------- Suporta-se com pacincia a clica do prximo. -------- --------------------- Matamos o tempo; o tempo nos enterra. ----------------------------- Um cocheiro filsofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carrua - gem. -------- --------------------- Cr em ti; mas nem sempre duvides dos outros. ----------------------------- No se compreende que um botocudo fure o beio para enfeit-lo com um pedao de pau. Esta reflexo de um joalheiro. ----------------------------- No te irrites se te pagarem mal um benefcio: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar. (*) O humor machadiano, quase sempre irnico, reflexivo, amargo e algumas vezes negro, tem aqui outra conotao: a gratuidade do frasista, do manipu - la dor de palavras e ideias. Captulo CXXV Epitfio(*) AQUI JAZ DONA EULLIA DAMASCENO DE BRITO MORTA AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE ORAI POR ELA! (*) Aqui o prprio tmulo de Eullia que anuncia sua morte. O cone substitui as palavras. MACHADO POR DRUMMOND Quadrilha Joo amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que no amava ningum. Joo foi para os Estados Unidos, Teresa para o con - ven to, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernan des que no tinha entrado na histria. Captulo XLII Que escapou a Aristteles Outra coisa que tambm me parece metafsica isto: D-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segund a bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, uma simples suposio; a segunda, Brs Cubas; a terceira Virglia. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou at tocar em Brs Cubas, o qual, ceden- do fora impulsiva, entrou a rolar tambm at esbarrar em Virglia, que no tinha nada com a primeira bola; e eis a como, pela simples transmisso de uma fora, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar solidariedade do aborrecimen to humano. Como que este captulo escapou a Aristteles? O poema Quadrilha de Alguma Poesia parece ter sua gnese no captulo XLII de Memrias Pstumas de Brs Cubas. E no toa que noutro poema, construdo com elementos tomados obra de Machado de Assis, Drummond o chama bruxo (mgico), dedicando-lhe o poema com amor. O prprio ttulo de Quadrilha j denuncia a atmosfera romanesca da fico machadiana. MEM_P_DE_BRAS_CUBAS_Ma_2012 13/08/12 11:31 Pgina 10 11 Depois, o desacerto amoroso, a inesperada intromisso do humor (no penltimo verso, na primeira edio de Alguma Poesia, estava Lili casou com Brederodes), a intriga, todo aquele mundo de conflitos sentimentais parece saltar do ritmo descritivo da dana de uma quadrilha. A aproximao engenhosa. A um bruxo, com amor Em certa casa da Rua Cosme Velho (que se abre no vazio) venho visitar-te; e me recebes na sala trastejada com simplicidade onde pensamentos idos e vividos perdem o amarelo de novo interrogando o cu e a noite. Outros leram da vida um captulo, tu leste o livro [inteiro. Da esse cansao nos gestos e, filtrada, uma luz que no vem de parte alguma pois todos os castiais esto apagados. Contas a meia voz maneiras de amar e de compor os ministrios e deit-los abaixo, entre malinas e bruxelas. Conheces a fundo a geologia moral dos Lobo Neves e essa espcie de olhos derramados que no foram feitos para ciumentos. E ficas mirando o ratinho meio cadver com a polida, minuciosa curiosidade de quem saboreia por tabela o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador. Olhas para a guerra, o murro, a facada como para uma simples quebra da monotonia [universal e tens no rosto antigo uma expresso a que no acho nome certo (das sensaes do mundo a mais sutil) volpia do aborrecimento? ou, grande lascivo, do nada? O vento que rola do Silvestre leva o dilogo, e o mesmo som do relgio, lento, igual e seco, tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do [gabinete Paran, mostra que os homens morreram. A terra est nua deles. Contudo, em longe recanto, a ramagem comea a sussurrar alguma coisa que no se entende logo e parece a cano das manhs novas. Bem a distingo, ronda clara: Flora, com olhos dotados de um mover particular entre mavioso e pensativo; Marcela, a rir com expresso cndida (e outra coisa); Virglia, cujos olhos do a sensao singular de luz mida; Mariana, que os tem redondos e namorados; e Sancha, de olhos intimativos; e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar [l fora, o mar que fala a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina e das chinelinhas de alcova de Conceio. A todas decifraste ris e braos e delas disseste a razo ltima e refolhada moa, flor mulher flor cano de manh nova... E ao p dessa msica dissimulas (ou insinuas, quem [sabe) o turvo grunhir dos porcos, troa concentrada e [filosfica entre loucos que riem de ser loucos e os que vo Rua da Misericrdia e no a encontram. O eflvio da manh, quem o pede ao crepsculo da tarde? Uma presena, o clarineta, vai p ante p procurar o remdio, mas haver remdio para existir seno existir? E, para os dias mais speros, alm da cocana moral dos bons livros? Que crime cometemos alm de viver e porventura o de amar no se sabe a quem, mas amar? Todos os cemitrios se parecem, e no pousas em nenhum deles, mas onde a dvida apalpa o mrmore da verdade, a descobrir a fenda necessria; onde o diabo joga dama com o destino, ests sempre a, bruxo alusivo e zombeteiro, que revolves em mim tantos enigmas. Um som remoto e brando rompe em meio a embries e runas, eternas exquias e aleluias eternas, e chega ao despistamento de teu pencen. O estribeiro Oblivion bate porta e chama ao espetculo promovido para divertir o planeta Saturno. Ds volta chave, envolves-te na capa, e qual novo Ariel, sem mais resposta, sais pela janela, dissolves-te no ar.