Communication
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Esta evoluo exigiu um grande esforo do corpo editorial no julgamento de mrito cientfico dos manuscritos frente aos limites de publicao de nosso peridico. A despeito disto, temos conseguido reduzir o tempo decorrido entre submisso e publicao, em funo tanto da adoo de pr-avaliao de todas as submisses recebidas, quanto pelo uso do sistema Scielo Submission de gerenciamento eletrnico dos processos. A pr-avaliao imprimiu, tambm, maior agilidade no processo de avaliao com a reduo do volume de artigos em julgamento. Buscando aprimorar nosso trabalho editorial, no prximo ano Interface iniciar a pr-publicao (ahead of print) dos manuscritos j aprovados na biblioteca SciELO, permitindo uma maior difuso junto comunidade cientfica e, com a atribuio de um nmero doi, o imediato e correto registro das citaes recebidas. Ainda como iniciativa para ampliar o acesso, especialmente o internacional, os autores cujos artigos aprovados foram submetidos em portugus ou espanhol sero convidados a apresentar o texto em ingls para publicao na verso eletrnica da revista. Esses manuscritos tambm sero includos na Biblioteca Scielo Social Sciences, como tem sido feito desde 2006. interessante informar que, recentemente, artigo publicado pela Interface dentro da Scielo Social Sciences foi convidado a integrar coletnea publicada em ingls por editora universitria da ndia, que tomou conhecimento do mesmo nessa Biblioteca, o que refora a relevncia deste espao de difuso internacional de nossos peridicos. O aumento das submisses e publicao de artigos de autores vinculados a instituies estrangeiras (6% do total de artigos publicados em 2009) , tambm, resultado da visibilidade alcanada pelas Biblioteca Scielo Brasil e Scielo Social Sciences. Visando dar continuidade ao esforo de internacionalizao de nosso peridico, para o prximo ano buscaremos conquistar a indexao de Interface em novas bases de dados. Todas essas informaes indicam que 2010 ser mais um ano de muito trabalho para o Corpo Editorial da revista e todos os nossos colaboradores! E, esperamos, de novas conquistas! Os editores
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editorial
We close the year of 2009 with a 75% increase in the total number of submitted papers (717) received compared to 2008. This evolution demanded a great effort of the editorial body concerning the appraisal of scientific merit of the manuscripts in view of our journals publication limits. In spite of this, we have been able to reduce the time elapsed between submission and publication, as a result both of the adoption of the pre-evaluation of all the submitted papers and of the use of the Scielo Submission system of electronic management of the processes. The pre-evaluation has also accelerated the process due to the reduction in the volume of papers under appraisal. Aiming to improve our editorial work, in the next year Interface will begin the pre-publication (ahead of print) of the approved manuscripts in the SciELO library, promoting greater dissemination in the scientific community and, with the assignment of a doi number, the immediate and correct register of the received quotations. Also as an initiative to extend the access, especially the international one, the authors whose approved papers were submitted in Portuguese or Spanish will be invited to present the text in English for publication in the journals electronic version. These manuscripts will also be included in the Scielo Social Sciences Library, as has been occurring since 2006. It is interesting to inform that, recently, a paper published by Interface in Scielo Social Sciences was invited to integrate a collection published in English by a university press from India, which came to know about it in this Library. This stresses the relevance of this international dissemination space of our journals. The increase in submissions and publication of papers by authors from foreign institutions (6% of the total number of papers published in 2009) is also a result of the visibility reached by the Libraries Scielo Brasil and Scielo Social Sciences. Aiming to continue with the process of internationalization of our journal, in the next year we will strive to promote Interfaces indexation in new databases. All these data indicate that 2010 will be another very busy year for the journals Editorial Body and all our collaborators! And, we hope, a year of new achievements! The editors
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Francisco Ortega1
ORTEGA, F. Neurosciences, neuroculture and cerebral self-help. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.247-60, out./dez. 2009.
The aim of this paper was to analyze the phenomenon called neuroascesis or cerebral self-help, within the context of increasing impact of the neurosciences and the emergence of neuroculture and the cerebral subject. In order to accomplish this, it is important to understand the sociocultural context of neuroascesis, which corresponds to what is being called somatic culture or biosociality. The purpose of the article was to explore how a reductionistic form of subjectivity, the cerebral subject, enables the appearance of cerebral practices of the self, i.e. practices of how to act on the brain in order to maximize its performance. Such practices lead to the formation of new types of sociality.
Este artigo pretende analisar o fenmeno denominado de neuroascese, ou autoajuda cerebral no contexto do crescente impacto das neurocincias e do surgimento da neurocultura e do sujeito cerebral. Para tanto, importante compreender o mbito sciocultural mais amplo no qual a neuroascese se insere e que corresponde ao que vem se chamando de cultura somtica ou, mais especificamente, de biossociabilidade. O objetivo do artigo explorar como uma forma de subjetividade reducionista, o sujeito cerebral, d lugar apario de prticas de si cerebrais, isto , prticas de como agir sobre o crebro para maximizar a sua performance, que levam a formao de novas formas de sociabilidade.
1 Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua So Francisco Xavier, 524, pavilho Joo Lyra Filho, 7 andar, blocos D e E. Maracan, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-900 [email protected]
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artigos
Da bioascese neuroascese
Este texto pretende analisar o fenmeno que denomino neuroascese, ou autoajuda cerebral no contexto do crescente impacto das neurocincias e do surgimento da neurocultura e do sujeito cerebral. Para tanto, importante compreender o mbito sociocultural mais amplo no qual a neuroascese se insere na nossa cultura contempornea, e que corresponde ao que vem se chamando de cultura somtica (Ortega, 2008), indivduos somticos2 ou, mais especificamente, de biossociabilidade. Neste trabalho, vou me servir desse conceito em um sentido mais amplo que o de Paul Rabinow (1996), que o cunhou para analisar as implicaes socioculturais e polticas da gentica e do projeto Genoma. Para o antroplogo americano, a gentica deixar de ser apenas uma metfora biolgica para descrever o social, levando formao de identidades e prticas sociais. No texto, uso esse conceito de Rabinow, sublinhando o elemento dos processos de subjetivao, mas sem limit-lo especificamente gentica, estendendo o uso a diferentes formas de subjetividade biolgica ou somtica presentes nas sociedades contemporneas, incluindo o sujeito cerebral, ao qual me refiro mais adiante. Entendo por biossociabilidade uma forma de sociabilidade ou de coletividade constituda por grupos de interesses privados, no mais reunidos segundo critrios de agrupamento tradicional como classe, estamento, orientao poltica, como acontecia na biopoltica clssica analisada por Foucault3, mas segundo critrios de sade, performances corporais, doenas especficas, estatuto gentico compartilhado por outros indivduos, longevidade, entre outros. Narrativas de experincia de doenas e performances do sofrimento que aparecem na mdia, bem como a disseminao e moralizao do vocabulrio mdico-fisicalista baseado em constantes biolgicas, taxas de colesterol, tono muscular, desempenho fsico ou capacidade aerbica fornecem os critrios de avaliao individual e destacam a existncia corporal do self como lugar privilegiado de construo de relaes consigo e com os outros nas sociedades biomdicas contemporneas (Ortega, 2008; Rose, 2007). Coletividades organizadas em torno de classificaes biomdicas ocupam cada vez mais espao, podendo reivindicar uma influncia maior na tomada de decises acerca de terapias apropriadas para doenas especficas; obter fundos para a pesquisa, ou marcar distncia da prpria investigao biomdica e contestar o estatuto nosolgico de determinadas doenas, como vemos no caso do autismo. Em sociedades fortemente marcadas pelas teorias e prticas psicanalticas, como o caso do Brasil e dos EUA durante as sete primeiras dcadas do sculo passado, era frequente que os indivduos se descrevessem como habitados por um espao interior e psicolgico, fonte de desejos e lugar de escrutnio de todos os transtornos psquicos, avaliando a si mesmo e aos outros e agindo sobre si mesmo com base nessa crena. Os discursos psicolgicos possibilitaram formas de relacionar-se consigo mesmo em termos de neuroses, desejos inconscientes, trauma, e represso, dando uma centralidade sexualidade na definio da vida psquica. Nas ltimas dcadas, porm, esse espao interno caracterstico da cultura psicolgica fortemente influenciada pela psicanlise vem sendo achatado e, em alguns casos, deslocado por uma localizao de doenas e transtornos no corpo e no crebro (Ortega, 2008). Sirva, como exemplo, o caso do alcoolismo: Segundo os 12 passos dos Alcolicos Annimos (AA), deixar de beber corresponde a uma transformao interior. O alcoolismo visto como uma fraqueza moral e da vontade, uma falha localizada no interior do self o indivduo deve reconhecer que , e sempre ser, um alcoolista e que deve trabalhar para estabelecer nveis de introspeco e disciplina que permitam deixar o vcio de maneira definitiva. Nas
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2 Nikolas Rose (2007, p.26) define os indivduos somticos como aqueles seres cuja individualidade , em parte pelo menos, localizada na nossa existncia carnal, corporal e que experienciam, articulam, julgam e agem sobre si mesmos em parte na linguagem da biomedicina.
O biopoder clssico, descrito por Foucault, se articulava como uma antomopoltica do corpo e uma biopoltica das populaes. A biopoltica foucaultiana (1999, 1997, 1976) enfatizava, especialmente, as noes de sexualidade, raa e degenerescncia, cujo objetivo era a otimizao da qualidade biolgica das populaes e estava vinculada afirmao da burguesia como classe social e ao fortalecimento do Estado Nacional. Diversos autores tm estendido o uso do bipoder e biopoltica para o contexto contemporneo. Neste artigo uso o termo biossociabilidade para frisar as descontinuidades com o biopoder clssico. Para uma importante crtica do uso do conceito de bipoder em autores como Negri e Agamben, ver Rabinow e Rose (2006). Para o uso do termo biossociabilidade em diferentes contextos empricos, incluindo uma reflexo atualizada de Rabinow, ver a interessante coletnea de Gibbon e Novas (2008).
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descries neurocientficas do alcoolismo, em contrapartida, o objetivo das intervenes o estado neuroqumico do crebro. A bebida ativa o sistema de recompensas no crebro, mas, em alguns indivduos, o crebro recompensaria a bebida de uma maneira desmesurada provocando desejos intensos pelo lcool. Trata-se de um sistema endorfnico superestimulado. As complexas prticas confessionais dos rituais dos AA so substitudas por simples decises acerca de tomar ou no a medicao (Vrecko, 2006). Esse um exemplo emblemtico do deslocamento de explicaes centradas na vida psquica para as baseadas em parmetros cerebrais. No processo de descrio da individualidade e subjetividade em termos corporais, o crebro ocupa um lugar privilegiado. O espetacular progresso das tecnologias neurocientficas, o intenso processo de popularizao, pela mdia, de imagens e informaes que associam a atividade cerebral a praticamente todos os aspectos da vida, e certas caractersticas estruturais da sociedade atual vm produzindo, no imaginrio social, uma crescente percepo do crebro como detentor das propriedades e autor das aes que definem o que ser algum. Ele responde, cada vez mais, por tudo aquilo que outrora nos acostumamos a atribuir pessoa, ao indivduo, ao sujeito. Inteiro ou em partes, o crebro surgiu como o nico rgo verdadeiramente indispensvel para a existncia do self e para definir a individualidade. Crenas, desejos e comportamentos so frequentemente descritos em um vocabulrio cerebral ou neuroqumico. Nikolas Rose (2007) define este processo usando o termo self neuroqumico (neurochemical self), isto , a formao neuroqumica da pessoa. A emergncia de neuroessencialismo, neurorrealismo e neuropoltica vem sendo ressaltada nas interpretaes populares da neurocincia (Racine, Bar-Ilan, Illes, 2005), resultando em um entusiasmo aparentemente acrtico (Illes, Racine, 2005) diante dos avanos neurocientficos. Acredito que a noo de sujeito cerebral (Vidal, 2009; Ortega, Vidal, 2007; Ehrenberg, 2004) resume adequadamente a reduo da pessoa humana ao crebro, que perpassa diferentes anlises crticas da neurocultura contempornea: a crena de que o crebro a parte do corpo necessria para sermos ns mesmos, no qual se encontra a essncia do ser humano, ou seja, a identidade pessoal entendida como identidade cerebral. Uso o termo sujeito cerebral como uma derivao da noo de sujeito que Foucault (1984a, 1984b, 1976) analisa em sua histria da subjetividade. Trata-se de uma categoria histrica e cuja nfase recai precisamente nas formas e nos processos de subjetivao e nas tecnologias do self usadas pelos indivduos para a formao de diferentes subjetividades. Existiriam, assim, diferentes formas de subjetividade, tipos de sujeito na histria da subjetividade, entre elas, o sujeito cerebral das sociedades contemporneas. O sujeito cerebral no possui uma realidade prvia a suas corporificaes performativas. Em outras palavras, o processo de subjetivao tem uma preeminncia ontolgica e, por isso, a nfase recai nas noes, prticas e contextos pelos quais os seres humanos se tornam sujeitos cerebrais. Sujeitos cerebrais se formam e so formados mediante tecnologias do self sustentadas, em parte, pelo conhecimento especializado e sua divulgao pela mdia e pela cultura popular. Deve ser observado, porm, que o sujeito cerebral no uma figura antropolgica nem monoltica, nem hegemnica, e que os indivduos no se subjetivam de uma nica maneira. Existe uma coexistncia entre ontologias cotidianas, que faz com que as pessoas mudem os registros na sua forma de agir, experienciar, pensar e falar de si mesmo e dos outros. Em determinados contextos podem recorrer a um vocabulrio psicolgico, em outros, ao cerebral ou neuroqumico. Diferentes ontologias do self, da psicanaltica cerebral, convivem de maneira mais ou menos harmnica quando falamos de ns mesmos e vivemos nossas vidas. No mbito da biossociabilidade, o sujeito cerebral d lugar apario de prticas de si cerebrais, as neuroasceses, isto , discursos e prticas de como agir sobre o crebro para maximizar a sua performance, que levam formao do que vou chamar de neurossociabilidades e neuroidentidades. Elas constituem formas de selves objetivos, de autoconstituio objetiva (objective self-fashioning), usando a expresso de Joseph Dumit (2004) para se referir ao processo de formao de um self objetivo, ou seja, uma categoria de pessoa desenvolvida mediante conhecimento especializado. um processo duplo: por um lado, as prticas da cincia da medicina e da tecnologia formam selves mediante a experimentao cientfica, os exerccios de taxonomia mdica, entre outros. Isto , produzem fatos que definem objetivamente quem somos; por outro, os indivduos formam seus prprios modelos de self a partir dos fatos cientficos. A noo de self objetivo remete a uma
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compreenso da subjetividade que tem, como ponto de partida, discursos tcnicos, cientficos e mdicos sobre a objetividade, ou seja, uma subjetividade objetivada, uma forma de self, na qual a perspectiva fenomenolgica e subjetiva da primeira pessoa reduzida perspectiva em terceira pessoa expressa mediante as tecnologias mdicas e os discursos e as prticas objetivantes. Os indivduos constituem a si mesmos objetivamente a partir da incorporao em suas vidas de fatos sobre si mesmos - seus corpos, mentes, crebros. So fatos objetivos veiculados pela mdia, que so incorporados nas descries de ns mesmos. Os jornais e as revistas de divulgao cientfica, a televiso e o cinema difundem continuamente imagens que insistem na associao entre o crebro e a mente, sendo a mente localizada no crebro. A mdia capitaliza precisamente a potente familiaridade e a transparncia das imagens. O risco grande, os limites entre as imagens entendidas como representaes de correlaes ou de relaes causais entre estados mentais e estruturas cerebrais ultrapassado com frequncia, sendo essas imagens interpretadas como registros objetivos de estados emocionais e mentais.
Neurocultura e neurossociabilidade
Na cultura somtica da biossociabilidade, a neurossociabilidade est ocupando cada vez um espao maior. Podemos compreender a neurossociabilidade como uma especificao da biossociabilidade que diz respeito a formas de identidade, sociabilidade, cidadania e autoadvocacia4, que tm os saberes e prticas neurocientficas como referncia. Encontramos, por um lado, todo um mercado crescente de produtos que incluem: best-sellers de autoajuda cerebral, aos quais me referirei mais adiante, softwares e programas de fitness cerebral para o computador, que constituem verdadeiras academias para o crebro (brain gyms), vitaminas e todo tipo de suportes alimentares para aprimorar a performance cerebral (Brownlee, 2006a, 2006b; CBS, 2006; Singer, 2005). Por outro lado, o sujeito cerebral est se tornando um critrio biossocial de agrupamento, como podemos constatar no surgimento de: a) Grupos que se renem para testar as performances cerebrais, como se depreende da existncia de clubes do crebro, Campeonatos Mundiais de Memria e Olimpadas de esportes da mente, promovidas pelo empresrio Tony Buzan, criador dos mapas mentais e autor de numerosos best-sellers de autoajuda cerebral (<www.buzanworld.com>; ver, tambm, Tony Buzan em Wikipedia). Neles, os crebros so submetidos a verdadeiras competies mentais, que incluem desde jogos mentais clssicos a exerccios para medir pensamento criativo, velocidade de leitura ou clculos mentais e de memria. b) Neurocomunidades, como a Braingle Community5, orientada para um pblico adolescente, e que abrangem fruns de discusso, talk boxes permitindo conversas privadas, e servio de live chat. Os neurousurios podem fazer observaes sobre assuntos cerebrais, comentar os novos jogos, quebra-cabeas e Brain Teasers para promover a atividade cerebral. Ao mesmo tempo, a comunidade tem acesso a todo um mercado cerebral. Uma indstria neuro est surgindo para compras on-line que no s inclui livros, jogos, videogames, mas tambm camisetas, bons, canecas, mousepads, neurocalendrios, entre outros, que ajudam a delinear a identidade coletiva das novas neurocomunidades. Nesse sentido, os recursos para crianas so descomunais, como se pode constatar ao digitar as palavras neuroscience for kids em qualquer mecanismo de busca na internet. c) Grupos de apoio para portadores de diferentes doenas e transtornos neurodegenerativos e seus familiares, tais como: Alzheimer, esquizofrenia,
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Do ingls self-advocacy. O termo representa o envolvimento da pessoa com deficincia mental na defesa de seus direitos e na expresso de suas necessidades, no intuito de oferecer a elas a possibilidade de gerenciar suas vidas, fazer valer suas opinies e decises que lhe dizem respeito e que, na grande maioria das vezes, determinaro sua cidadania.
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Parkinson, esclerose mltipla, Transtorno de Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH), demncia Frontotemporal (Frontotemporal Dementia - FTD), Doena de Huntington (Hungtinton Disease), entre outros. As funes e objetivos desses grupos so diferentes, atendendo tambm as especificidades das diferenas doenas e transtornos, contemplando atividades que vo desde palestras e troca de informao e experincias at exerccios, servios religiosos ou ajuda psicolgica. Intervenes psicossociais diversas e troca de experincias podem acontecer em encontros regulares ou por meios virtuais, como internet, com o uso de videoconferncias, comunidades no Yahoo, orkut, blogs e outros (A lista de organizaes e de grupos de autoajuda nos diferentes pases e continentes enorme. Basta procurar em qualquer mecanismo de busca na internet). d) O movimento da neurodiversidade: Os participantes desse movimento acreditam que uma conexo neurolgica atpica no uma doena que deva ser tratada, e sim uma diferena humana que deve ser respeitada. Indivduos diagnosticados com autismo de alto-funcionamento (geralmente associado com a chamada Sndrome de Asperger) impulsionam o movimento. Para eles, o autismo uma parte constitutiva de sua identidade. Uma cultura autista vem sendo desenvolvida segundo modelos de pensamento e estilos de vida considerados autistas, como se depreende dos numerosos websites existentes na internet sobre o tema. Neles encontramos desde dicas de literatura que trata de autismo at listas de organizaes de apoio a autistas e potenciais parceiros para casamento autistas. A noo de neurossociabilidade permite compreender como o sujeito cerebral se torna um critrio de agrupamento, isto , como d lugar formao de diversos grupos, sejam eles de portadores de alguma doena neurodegenerativa e seus familiares, ou de indivduos que se renem para testar a sua performance cerebral, ou de grupos de autistas que usam o critrio cerebral para reclamar um acesso cidadania que o modelo biomdico lhes tinha negado. Um modelo de subjetivade-objetiva, como em um oxmoro, que surgiu a partir de uma ideologia reducionista e solipsista da compreenso da subjetividade e da vida social, serve paradoxalmente para criar novas formas de subjetividade e de sociabilidade que tm no crebro a sua ncora. Obviamente, existe uma diferena do ponto de vista do significado sociopoltico entre grupos de apoio a portadores de doenas e transtornos especficos, grupos pr e anticura, que aparecem no debate em torno do autismo, por um lado, e neurocomunidades de adolescentes, clubes do crebro e empresrios dos neuronegcios, pelo outro. Ambos os grupos tm o crebro como referncia. Todavia, enquanto os primeiros poderiam ser comprendidos como formas de resistncia a um tipo de racionalidade poltica neoliberal aparelhada com tecnologias neurocientficas, os segundos se enquadram plenamente nos objetivos dessa racionalidade poltica. Enfim, o mapeamento da neurossociabilidade est apenas comeando e um terreno em constante expanso. Vou me concentrar, a seguir, no resto do texto, em alguns aspectos dessa neurossociabilidade e das prticas de si cerebrais.
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alteraes no crebro (Merzenich, Jenkins, 1994). Tenta-se comprovar as alteraes cerebrais causadas por hbitos, decises conscientes, atos de vontade, prticas de ateno, exerccio fsico, alimentao, prticas de meditao, entre outros. Cada vez mais pesquisadores relatam a descoberta (que j foi apontada por James no final do sculo XIX) de que, ao contrrio do que se acreditava, as conexes entre clulas nervosas do crebro criadas na infncia no se mantm inalteradas durante toda a vida adulta do indivduo. Tornou-se um dado emprico (como se depreende da avalanche de artigos sobre o tema) que a estrutura e o funcionamento do crebro pode modificar-se at idade bem avanada, e novos neurnios so criados (Schwartz, Begley, 2002; Jones 2000; Weiller, Rijntjes, 1999). na base desse conhecimento emprico que tem acontecido um verdadeiro boom de prticas neuroascticas na ltima dcada, que deram lugar a um florescente mercado de neurobusiness em constante expanso (Woldbring, 2007). Por exemplo, pesquisadores descobriram recentemente que as atividades aerbicas possuem benefcios importantes, para alm dos cardiovasculares e da utilidade no tratamento da depresso, j conhecidos desde algum tempo. O exerccio encoraja os crebros saudveis a funcionarem a nveis timos, permitindo aumentar sua performance e promovendo a plasticidade cerebral. Tambm promete retardar a progresso da Alzheimer e os sintomas do Parkinson. Os mesmos efeitos foram constatados recentemente em relao alimentao saudvel, com baixo teor de gorduras saturadas e rica em mega 3 (Brownlee, 2006a; Cotman e Berchtold, 2002). A idia bsica por trs dessas pesquisas muito simples, cuidando de seu corpo, seu crebro tambm se beneficia, observa Carol Greenwood (apud Brownlee, 2006a), pesquisadora em nutrio e envelhecimento da Universidade de Toronto. Essa afirmao exemplifica a tendncia recorrente de um neurosolipsismo que leva a confundir ou reduzir o todo s partes, o corpo ao crebro: embora as prticas treinem o corpo, se afirma que o crebro que est sendo visado. Tomando como base os novos conhecimentos sobre a plasticidade cerebral, surgiu, em San Francisco, a partir do trabalho pioneiro do Dr. Michael Mezenich, membro da academia das cincias e neurocientista renomado, a empresa Posit Science Corporation, uma das diversas empresas que esto aparecendo no ramo dos neuronegcios (Lynch, 2004). O objetivo de Posit Science ajudar as pessoas a prosperar ao longo de suas vidas. Fazemos isso fornecendo ferramentas efetivas e no invasivas que comprometam a plasticidade natural do crebro na tarefa de melhorar a sade cerebral (Teichert, 2005). O programa de fitness cerebral de Posit Science focaliza no aperfeioamento da velocidade, preciso e intensidade com as quais nosso crebro recebe, registra e lembra aquilo que ouvimos. O programa cerebral o primeiro passo; a empresa planeja oferecer uma academia cerebral (brain gym) completa para treinar os diferentes sistemas cognitivos: viso, controle executivo, equilbrio, mobilidade. A publicidade da empresa lembra a do marketing de produtos de beleza: o programa de neuroascese promete rejuvenescer a plasticidade natural do crebro, adiando o declnio mental at em dez anos. No por acaso, o principal alvo de Posit Science a populao idosa. Mesmo que o Brain Gym no represente a fonte da juventude, Mezernich afirma que parte da soluo, pois ter um grande impacto no apenas na qualidade de vida dos idosos. E, o que mais importante, promete manter a vitalidade, o vigor das pessoas. Vitalidade e vigor necessrios para que a longevidade cerebral (brainspan) possa acompanhar a longevidade corporal (lifespan) em constante aumento (Annimo, 2006). Da mesma maneira que a fitness corporal, a fitness cerebral exige uma grande dose de disciplina, vontade e automotivao. A recompensa grande, nos promete inverter o processo de envelhecimento cerebral (Olney, 2006). Por outro lado, os neuronegcios so promissrios. Posit Science prev um potencial de venda enorme considerando que a metade dos norte-americanos que atingirem 85 anos sofrero de alguma forma de demncia. E os preos so salgados, comeando em torno dos U$ 500 (Olney, 2006).
Autoajuda cerebral
As descobertas da neuroplasticidade tm dado lugar a um mercado de best-sellers de ginstica e autoajuda cerebral com embasamento cientfico diverso. Eles prometem desenvolver determinadas regies do crebro (especialmente o hemisfrio direito, tradicionalmente reprimido e negligenciado),
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permitindo desde aumentar a performance do raciocnio e da memria, combater depresso, ansiedade, adies e compulses diversas, at melhorar a performance sexual, atingir a felicidade ou estabelecer um contato direto com Deus. Essa literatura constitui uma amlgama de trabalhos diversos que inclui: estudos mais srios de neurocientistas, psiclogos cognitivos e psiquiatras renomados que, baseados nas novas descobertas, oferecem um programa de exerccios para aumentar a performance e o poder cerebral, prevenindo a decadncia mental e combatendo demncias. Habilidades tais como percepo, memria de curto e longo tempo, habilidades lgicas, verbais e visuoespaciais podem ser desenvolvidas com a ajuda das prticas neuroascticas (Goldberg, 2001; Chafetz, 1992; Goldman, Klatz, Berger, 1991; Mark, Mark, 1991; Winter, Winter, 1987). Outros best-sellers, escritos geralmente por autores de autoajuda que descobriram o filo da neuroascese, vo muito mais longe nos resultados atingveis com seus programas de autoajuda cerebral, apesar de afirmarem possuir embasamento cientfico. Eles prometem: identificar significados ocultos nas conversas das pessoas; absorver fatos como esponjas e reproduzi-los palavra por palavra anos depois; ler e compreender um livro em trinta minutos; ou gravar, na memria, fatos, imagens e at livros completos. Entre eles, os mais voltados para movimentos de New Age, e usando um vocabulrio cientfico e um linguajar tcnico, acreditam poder manipular o crebro para atingir qualquer resultado desejvel. Esses autores recorrem, com frequncia, a simplificaes chulas da mecnica quntica para afirmar que a realidade uma iluso criada por nosso crebro e que o universo a mente e a mente o universo (Spotts, Atkins, 1999, p.80). Os exerccios garantem promover estados alterados da conscincia capazes de conectar o crebro com as foras do universo e com uma inteligncia superior, a Mente csmica ou Divina. O que resulta surpreendente desses ltimos best-sellers que reproduzem todos os tpicos da literatura da autoajuda tradicional usando um vocabulrio cientificista e coisificador. A partir da segunda metade da dcada de 1980, autores como Antonhy Tony Robbins recuperam o credo bsico da tradio da clssica Self-Help americana, dos movimentos oitocentistas de New Thought, e da Christian Science (Fuller, 2001). Isto , a ideia do poder da mente sobre a matria, chamada doravante de Mind-Power e que pressupe o poder do crebro sobre a mente. Essa viso do self retraduzida em uma linguagem pseudocientfica, como um self ciberntico que pode ser reprogramado para obter a mxima performance pessoal (McGee, 2005). J no incio dos anos sessenta, o cirurgio plstico nova-iorquino Maxwell Maltz descobriu um filo ao vender o velho Mind-Power oitocentista com uma roupagem ciberntica, dotando-o de legitimidade cientfica. O resultado, chamado de programao neurolingustica (neurolinguistic programming), propunha que crenas e desejos seriam uma espcie de software que pode ser instalado no hardware, o crebro humano. A receita foi vendida, em 1960, como Psycho-Cybernetics, vendendo at a atualidade mais de trinta milhes de exemplares no mundo inteiro (McGee, 2005; Maltz, 1960). Mesmo autores como Shirley McLaine lanam mo de um vocabulrio cientificista e, na busca de legitimidade, falam de foras, vibraes, eletromagnetismo, hemisfrios cerebrais (Fuller, 2001; Green, 1992). A novidade da autoajuda cerebral, escreve Rdiger (1995, p.120), o estgio avanado de reificao da subjetividade, que se transferiu dos mecanismos do subconsciente para as circunvolues do crtex cerebral. Todos os lugares comuns da autoajuda tradicional esto presentes numa roupagem cientificista e cerebralizada. Vale mencionar: a nfase na criatividade que engendra a realidade; a ideia de um eu interior que pode ser cultivado e promovido pela manipulao cerebral; a insistncia na autonomia e autocontrole de nossos destinos e at da prpria realidade, atingida agora com prticas neuroascticas. A absoluta irredutibilidade da categoria de responsabilidade e autonomia individual, enfatizando controle e autodomnio, bem como a redutibilidade total da realidade aos desgnios do pensamento so tambm realadas na autoajuda cerebral. Finalmente, a total obsolescncia do outro, do ambiente social e cultural no eu cerebral construdo pelas prticas neuroascticas. Se na autoajuda tradicional era a mente o centro definidor do sujeito, e seu poder permitia mudar a vida, realizar nosso desejo e monitorar nosso desempenho, agora, o crebro ocupa esse lugar reservado outrora mente. O velho slogan voc o que for sua mente, aparece agora em uma verso cerebralizada: voc o que for seu crebro. Um tpico importante da autoajuda tradicional, a ideia da mente dividida e em luta - em que uma parte insubmissa e deve ser controlada, ou subutilizada - remete tradio do crebro duplo de
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Arthur Wigan e outros, tal como descrita pela historiadora das neurocincias Anne Harrington (1987). Na poca ps-Broca, isto , na poca posterior descoberta da localizao da faculdade da linguagem no hemisfrio esquerdo do crebro pelo neurologista francs, Paul Broca, o hemisfrio esquerdo era considerado superior, ao ser responsvel pelas atividades intelectuais e civilizadas, predominando em homens, brancos e europeus. O direito, em contrapartida, preponderava em mulheres, criminosos, ndios, negros, loucos e homossexuais (Harrington, 1987). Os best-sellers de autoajuda cerebral reproduzem e exploram o boom do crebro direito, que tem lugar a partir dos anos 60 (invertendo a tradicional valorizao do hemisfrio esquerdo), no contexto da contracultura e das pesquisas sobre o crebro dividido (split-brain) de Bogen, Gazzaniga e Sperry, entre outros (Harrington, 1987; Gazzaniga, 2005, 1985, 1973; Harris, 1985, 1980; Blakeslee, 1980; Bogen, 1977, 1973; Gazzaniga, Bogen, Sperry, 1962). Boa parte dos bestsellers de autoajuda cerebral embarca na esteira da reabilitao do hemisfrio direito. Um marco importante nessa tendncia a publicao, em 1972, do clssico frequentemente citado The Psychology of consciousness de Robert Ornstein (1972). Nele, o racionalismo e tecnificismo da sociedade ocidental, com sua nfase na lgica e na linguagem, patente no predomnio do hemisfrio esquerdo, teria reprimido as tendncias holsticas e msticas do direito, mais prximo do pensamento oriental6. O mercado de autoajuda inundado por uma enxurrada de ttulos ligando o hemisfrio direito aos mais bizarros fenmenos, desde a tipificao de artistas, msicos, polticos e ditadores, segundo sua orientao cerebral, at a sexualidade tntrica, a capacidade medinica e outras atividades paranormais prprias do crebro direito (Capacchione, 2001; Spotts, Atkins, 1999; Wells, 1989; Ehrenwald, 1984). Especialmente na pedagogia aparece, desde finais dos anos 60, toda uma moda neuroeducativa que insiste nas inmeras vantagens escolares do treinamento do crebro direito, repudiando o sistema educativo tradicional baseado no hemisfrio esquerdo (Herman, 1981; Edwards, 1979; Gainer, Gainer, 1977; Hunter, 1976). Os novos neuroeducadores propem como soluo um equilbrio hemisfrico no currculo que compense os excessos da educao baseada no hemisfrio esquerdo com seus fracassos educativos:
Os estudantes que no acham a escola muito empolgante talvez possuam uma orientao cerebral esquerda. Para eles, muitas tarefas para o crebro esquerdo no fazem sentido. Existem evidncias de que os pobres nas grandes cidades tendem a possuir uma orientao cerebral direita, enquanto que indivduos de classe mdia so mais orientados para o hemisfrio esquerdo. Se isso for verdade, explicaria por que muitos pobres nas cidades no tm sucesso nas escolas e por que consideram irrelevantes muitas tarefas exigidas na escola. (apud Ornstein, 1997, p.92)
Em um livro de 1997, The Right Brain: Making sense of the Hemispheres, Ornstein faz uma certa mea-culpa ao se perguntar em relao aos estudos sobre o hemisfrio direito: Como possvel que as coisas escaparam do controle? Como possvel que todas essas pessoas to bem intencionadas se afastaram tanto da evidncia e inclusive do trabalho cientfico? Tudo comeou com boas idias, boas intenes e bons trabalhos (Ornstein, 1997, p.88).
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Os educadores no aprenderam novos desenvolvimentos a partir da literatura primria, mas predominantemente de livros e revistas que popularizam esse conhecimento, simplificam e reconstroem muitos dos achados cientficos, conduzindo a uma viso simplificada, tosca, e idealizada (Harris, 1985). No contexto de uma genealogia das prticas de si cerebrais, no se trata de separar o joio do trigo, as evidncias cientficas da charlatanice e das afirmaes e propostas disparatadas, por mais importante que seja essa tarefa7. Mais relevante mostrar como as prticas neuroascticas reproduzem a lgica do sujeito cerebral e da autoajuda tradicional com uma roupagem cientificista. Ao nvel das prticas de
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7 Os prprios usurios dos diversos programas de brain-fitness no parecem se preocupar pelo seu embasamento cientfico. Surpreende-me que as pessoas no se preocupem mais com a cincia, observa Torkel Klinberg, professor de neurocincia cognitiva do Instituto Karolinska de Estocolmo, que no perguntem, onde est a evidncia de que esses programas funcionam? (Lawton, 2008, p.29).
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si, muitos motivos so recuperados da tradio neuroeducativa da frenologia e da autoajuda tradicional do sculo XIX. surpreendente constatar como os programas neuroascticos dos best-sellers contemporneos repetem recomendaes sobre exerccios cerebrais e sobre a importncia do exerccio fsico, da dieta equilibrada e do efeito de lcool, drogas e outras toxinas no crebro de autores oitocentistas, tais como John Harvey Kellog, no seu First Book in Physiology and Hygiene (1887). Mas os contextos socioculturais e a finalidade das prticas so diferentes. No fim do sculo XIX, o crebro azeitado de Kellog remete a um contexto de debilitamento e deslegitimao das regras sociais e da ordem moral, no qual o corpo fsico, social e poltico estava fora de controle, s recupervel pela vontade individual e pelas prticas bio - e neuroascticas. A fitness cerebral destinava-se a recuperar a retido moral e garantir a ordem sociomoral erodida pela perda da legitimidade da autoridade tradicional (Gunsfield, 1992). Hoje, em contrapartida, o sujeito cerebral no pretende restaurar ou legitimar formas tradicionais de autoridade, e sim, inserir-se nas demandas da maximizao da performance corporal da cultura somtica na govermentalidade neoliberal. No entanto, mesmo existindo descontinuidades nos contextos socioculturais e nos objetivos dessas prticas, no nvel das prticas de si, isto , da (neuro)ascese, existem assombrosas semelhanas. Trata-se dos mesmos exerccios, da mesma diettica cerebral, de maneiras semelhantes de potencializar a performance cerebral, embora com finalidades diversas. Em ambos os casos, as prticas neuroascticas redundam na formao de selves objetivos. Para no cair em anacronismos e postular uma continuidade direta (o que, sem dvida, seria ingnuo), necessrio, no entanto, guardar a devida distncia entre os dois momentos histricos e levar em considerao diferentes fatores na formao de selves objetivos, a partir da segunda metade do sculo XX, que no existiam na poca da frenologia e dos movimentos de Self-Help e de New Thought, tais como: o papel desempenhado pela mdia, as tecnologias de visualizao mdica, a indstria de psicofrmacos, entre outros (Rose, 2007; Ehrenberg, 2004; Healy, 2002).
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fitness corporal para o crebro. Na cultura somtica, fitness corporal e cerebral andam lado a lado. Na autoajuda cerebral os principais motivos da autoajuda tradicional aparecem em nova roupagem cientificista, temperados com o jargo da cultura somtica e das academias de ginstica.
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ORTEGA, F. Neurociencias, neuro-cultura y auto-ayuda cerebral. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.247-60, out./dez. 2009. Este artculo pretende analizar el fenmeno denominado neuro-ascesis o auto-ayuda cerebral en el contexto del creciente impacto de las neurociencias y del aparecimiento de la neuro-cultura y del sujeto creberal. Para tanto, es importante comprender el mbito socio-cultural ms amplio en el que la neuro-ascesis se inserta y que corresponde a lo que se viene llamando cultura somtica o, ms especficamente, bio-sociabilidad. El objeto del artculo es el de explorar como una forma de subjetividad reduccionista, el sujeto cerebral, da lugar a la aparicin de prcticas de s cerebrales; esto es, prcticas de como actuar sobre el cerebro para maximizar su actuacin, que llevan a la formacin de nuevas formas de sociabilidad.
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Vernica Santos Albuquerque1 Rodrigo Siqueira Batista2 Suzelaine Tanji3 Edneia Tayt-Sohn Martuchelli Moo4
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The present paper provides a historical review regarding knowledge and power construction, taking disciplinary organization as the basis for the discussion about the confinement of knowledge to disciplines in health professionals education, and its consequences to the ways of delivering healthcare. Interdisciplinarity, transdisciplinarity and complex thought are proposed as theoretical principles to overcome the disciplinary logic.
O presente artigo traz uma reviso histrica sobre a construo do conhecimento e do poder a partir da organizao disciplinar como base para a discusso do confinamento do saber em disciplinas na formao dos profissionais de sade e suas consequncias nos modos de produzir ateno sade. Ato contnuo, prope a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade e o pensamento complexo como referenciais tericos para ultrapassagem da lgica disciplinar.
Artigo original, com base ensaio em puramente terico, sem qualquer envolvimento de dados gerados a partir de pesquisa com seres humanos. Por isso, no foi submetido a parecer de Comit de tica em Pesquisa. 1 Curso de graduao em Enfermagem, Centro Universitrio Serra dos rgos (UNIFESO). Avenida Alberto Torres, 111/5 andar, Alto, Terespolis, RJ, Brasil. 25.964-004 [email protected] 2 Curso de graduao em Medicina, UNIFESO. 3 Curso de graduao em Enfermagem, UNIFESO. 4 Centro de Cincias da Sade, UNIFESO.
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Consideraes iniciais
A formao superior dos profissionais de sade foi, de modo geral, historicamente construda sobre a fragmentao de contedos e organizada em torno de relaes de poder, as quais conferiram ao professor especialista uma posio de centralidade no processo de ensino-aprendizagem. Essa construo - entre outros aspectos, tais como o enfoque privilegiado nos determinantes biolgicos, na doena e no trabalho hospitalar - vinculou-se excessiva especializao e ao distanciamento dos contedos curriculares necessrios formao de um profissional de sade com perfil capaz de responder s necessidades da populao (Feuerwerker, 2002). Tal dificuldade relaciona-se com o perfil dos egressos, fruto de uma formao que, por um longo tempo, privilegiou a especializao, o uso intensivo de tecnologia e os procedimentos de alto custo, enquanto acumulavam-se as necessidades bsicas de sade de grande parte da populao brasileira. Neste mbito, abordagens que se referem tica, humanizao e ao cuidado so colocadas em segundo plano (Rgo et al., 2007). Estas questes se intensificaram ainda mais nas ltimas dcadas, justificando o esforo do Ministrio da Sade no sentido de reorganizar a ateno sade - na lgica da integralidade do cuidado -, o qual tem sido obstaculizado pela precria disponibilidade de profissionais com formao generalista, dotados de viso humanstica e preparados para prestar cuidados contnuos e resolutivos s pessoas (Brasil, 2005). Dentre os inmeros fatores que contribuem para o descompasso entre a formao em sade e as necessidades de sade brasileiras, surgem trs aspectos cruciais: (1) A falta de integrao entre o ensino bsico e o profissionalizante, (2) a formao de profissionais cada vez mais especializados e despreparados para uma ateno generalista, e (3) o ensino fragmentado em inmeras disciplinas, que tantas vezes induz precocemente formao profissional especializada (Rodrigues, Reis, 2002). Frente a esse cenrio, experincias transformadoras, desenvolvidas em algumas instituies de Ensino Superior brasileiras, vislumbram a formao do profissional de sade capaz de prestar cuidado integral a indivduos e coletividades, entendido como aquele que considera a capacidade de escuta, acolhimento, construo de vnculos e responsabilizao (Pinheiro, Mattos, 2006). As novas maneiras de organizar a prestao de servios e formao em sade precisam levar em conta as necessidades dos usurios. Assim, a compreenso do ser humano e do processo sade-doena passa necessariamente por uma abordagem interdisciplinar - e, mesmo, transdisciplinar - na construo dos conhecimentos. Essa abordagem interdisciplinar implica a ultrapassagem das fronteiras entre as disciplinas - espaos de confinamento por excelncia - e a articulao dos processos de ensino-aprendizagem ao trabalho e pesquisa. Com efeito, vrias so as estratgias adotadas pelos cursos de graduao na rea da sade que optaram por transformar seus currculos, cabendo mencionar: (1) A ruptura com as grades disciplinares, (2) a opo por estruturas modulares integradas, (3) o desenvolvimento de atividades transversais, e (4) as experincias de prticas interdisciplinares, dentre outras (Albuquerque et al., 2007; Rezende et al., 2006; Dellaroza, Vanucchi, 2005; Lima, Komatsu, Padilha, 2003; Feuerwerker, 2003). Considerando essas experincias, surge a necessidade de se refletir sobre a lgica da organizao disciplinar dos currculos para as graduaes na rea da sade, como modo de critic-la e transp-la, na perspectiva de se desenharem novos sentidos para a formao. Tal a proposta do presente ensaio, organizado em torno da reflexo histrico-conceitual acerca da disciplina - delimitando-se, especialmente, seu emprego em termos educacionais na formao do trabalhador de sade -, bem como das possibilidades de superao de sua lgica na formao em sade.
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Ainda que o sentido apresentado no item 7 seja aquele usualmente empregado nas discusses de cunho educacional, as conotaes expostas nos itens 3 e 4 tm particular importncia ao se reconhecer a disciplina como um modo segundo o qual se organiza a sociedade. De fato, em concordncia com Foucault e Deleuze, a constituio de uma sociedade disciplinar sucessora das sociedades de soberania, instituda aps Napoleo ter operado a grande converso de uma a outra (Deleuze, 1992). A emergncia da sociedade disciplinar diz respeito prpria evoluo do capitalismo, estando em profunda interseo com os modos de produo estabelecidos no perodo ulterior Revoluo Industrial, a qual marcada pela organizao em termos de espaos de confinamento - cujo projeto ideal pode ser reconhecido na fbrica (Siqueira-Batista, 2007): concentrar, distribuir no espao, ordenar no tempo, compor no espao-tempo uma fora produtiva cujo efeito deve ser superior soma das foras elementares -, nos quais a disciplina exercida de forma institucionalizada, em espaos fechados, havendo necessidade de se passar de um para o outro ao longo da vida:
O indivduo no cessa de passar de um espao fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a famlia, depois a escola (voc no est mais na sua famlia), depois a caserna (voc no est mais na escola), depois a fbrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a priso, que o meio de confinamento por excelncia. (Deleuze, 1992, p.219)
A organizao da sociedade disciplinar articula-se ao entendimento de que o sujeito, ao longo de sua vida e sua histria, encontra-se submetido a espaos de confinamento, sendo alvo de discursos institucionalizados, sobretudo por meio da educao formal, a qual se constitui como normalizadora e homogeneizadora por excelncia, onde a disciplina faz sustentar um tipo especfico de conduta esperado pela sociedade por intermdio da organizao de sua rotina e do estabelecimento de relaes hierrquicas. Com efeito, os confinamentos so moldes, nos quais se estabelecem relaes de poder em diferentes domnios (Siqueira-Batista, Siqueira-Batista, 2009). De fato, Foucault reconhece que o poder sobre a vida nas sociedades modernas se estabelece em dois polos - antomo-poltica do corpo e biopoltica das populaes -, os quais so interconectados por mltiplas redes de relaes (Foucault, 1977). A antomo-poltica do corpo diz respeito ao desvendamento e produo de discursos e prticas sobre o corpo humano - abordado como mquina a ser otimizada, disciplinada em sua docilidade e produtividade - ao passo que a biopoltica das populaes dirigida aos elementos biolgicos e sociais, tais como reproduo, nascimento e morte. Ambas as dimenses - o indivduo (antomo-poltica do corpo) e a massa (biopoltica das populaes) - so dispositivos, compatveis entre si, da organizao disciplinar. Esses ordenamentos foram bastante propcios ao desenvolvimento da especializao de carter disciplinar em concordncia com o desenvolvimento da cincia e da tcnica experimentados a partir do sculo XIX. Tal enfoque disciplinar - como fruto tpico do racionalismo cientfico -, dividiu a universidade em trs grandes reas - a tecnolgica, a biolgica e a humana - as quais, por sua vez, se estilhaaram em dezenas de sub-ramos e especializaes. Sobre esse aspecto, Crema (1993) chama a ateno para o desenvolvimento do mtodo analtico de Descartes na superao do paradigma escolstico aristotlicotomista medieval da poca:
Para aquele momento, o resgate da razo e da objetividade cientfica foi saudvel e as especializaes foram criadas na tentativa de acompanhar o acmulo crescente do saber-efazer humano, que acabaram por sepultar o homem pluriapto ou homem total. Assim, nos ltimos quatro sculos, passou-se especializao das mentes. Surgiram os experts nas partes, os videntes do mnimo, que no incio cumpriram uma funo scio-cultural necessria e fundamental. Mais tarde, entretanto, o movimento passou a ocorrer por puro
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bom andamento dos trabalhos; (4) ordem, bom comportamento; (5) obedincia a regras de cunho interior; firmeza, constncia; (6) castigo, penitncia, mortificao; (7) ramo do conhecimento; cincia, matria.
condicionamento dissociativo. Ser especialista adquiriu status, mas a desconexo cada vez maior da viso global, tornou-o um sofisticado prisioneiro das fraes. (Crema, 1993, p.138)
Com efeito, se, no campo epistemolgico, a disciplina se caracteriza por cada um dos ramos (especializaes) do conhecimento, no domnio pedaggico o termo disciplina indica as atividades de ensino ou o ensino de uma rea do conhecimento, instaurando a nfase em informaes isoladas que passam a valer por elas mesmas, e no por sua capacidade de ajudar o homem a compreender o mundo, sua realidade e a posicionar-se diante de seus problemas vitais e sociais (Luck, 2001). Com base nas presentes consideraes, pode-se inferir que o campo das relaes entre poder e organizao disciplinar da construo do conhecimento apresenta muitas variveis. Tantas so elas e de tal fora que a proposta de ultrapassar as disciplinas demanda uma profunda reflexo social, histrica e coletiva, de maneira a sair do contexto da escola para o contexto da vida, da forma como os sujeitos se relacionam e de como este modo de operar pode ser (re)contextualizado.
Esse modelo linear, cuja organizao prev o domnio de cada disciplina como requisito para estudantes e professores - e tambm como conjunto de rituais, rotinas e linguagens criado entre estes atores -, contribui decisivamente para a definio e legitimao daquilo que considerado saber autntico e aceitvel. Dessa forma, as disciplinas tornam-se as principais maneiras de se analisar e intervir na realidade. Em geral, poucos so os estudantes que conseguem vislumbrar algo que permita unir ou integrar os contedos ou os trabalhos das diferentes disciplinas, uma vez que estas se apresentam claramente separadas umas das outras, fragmentando e isolando os contedos. O conhecimento to somente acadmico e informativo priorizado, permitindo que os saberes surjam de modo descontextualizado e aparentemente desprovido de qualquer ideologia (Santom, 1998). Essa compartimentalizao - a qual entende os campos de conhecimento como dimenso desconectada das realidades de sade da populao -, impacta na relao da universidade com a sociedade, como aponta Santos (1997) ao dizer que a universidade no poder promover a criao de comunidades interpretativas na sociedade se no as souber criar no seu interior, entre docentes, estudantes e funcionrios. Para isso preciso impor, s barreiras disciplinares e organizativas, uma presso constante, buscando, no fundo, subvert-las. Contrariando essa ideia de confinamento disciplinar dos saberes, a segunda metade do sculo XX e o alvorecer do sculo XXI tm mostrado que o conhecimento deve receber tratamento multidimensional, ao se reconhecer a complexidade da sociedade contempornea e a existncia de diferentes valores, presentes nas questes humanas, cientficas e sociais. A relao mais estreita entre os contedos que so trabalhados nos currculos e as necessidades dos estudantes desejada, de maneira que possam ser empregadas em diferentes contextos e situaes profissionais cotidianas. Na atualidade, reitera-se, com intensidade, a posio central ocupada pela disciplinaridade, tornando necessria a construo de processos mediatizados pela subjetivao, em um novo formato, que considere a abertura da academia aos movimentos de passagem de uma estrutura disciplinar para alternativas mais abertas, matizadas pela flexibilizao e pela rediscusso das relaes de poder, as quais permitam repensar a formao de profissionais para atuar, de modo mais fecundo, no tempo e no espao vigentes (Veiga Neto, 2005).
Com efeito, a interdisciplinaridade se dispe como configurao de modos de trabalhar com encontros, dilogos e conexes entre os saberes (Pombo, 2005). Assim, a discusso de
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interdisciplinaridade no campo de formao em sade exige um referencial mais prximo ideia de atitude, como apresenta Fazenda (2003): atitude de buscar alternativas para conhecer mais e melhor; atitude de reciprocidade que impele troca, ao dilogo com pares idnticos, com pares distintos ou consigo mesmo; atitude de humildade diante da limitao do prprio saber; atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvelar novos saberes; atitude de desafio diante do novo; atitude de responsabilidade, envolvimento e comprometimento com os projetos e as pessoas. Considerando a compreenso proposta para interdisciplinaridade, a ultrapassagem da lgica disciplinar de estruturao curricular - que passa a integrar no s os contedos das diversas reas do saber, mas, tambm, os diferentes profissionais da sade -, se entrelaa s discusses sobre as prticas e os atos corporativos: Vive-se um momento histrico em que as corporaes das profisses da sade empreendem um movimento conservador em relao s suas competncias especficas. No entanto, a interdisciplinaridade exige um debate srio e honesto, sobretudo quando se parte do princpio da integralidade como eixo nuclear nas mudanas na formao e nos modelos de ateno sade. Embora a experincia de ultrapassar o modelo disciplinar traga conflito e desconforto, ao desestabilizar dispositivos de segurana e relaes de poder, possibilita a reconduo ao prazer da descoberta, a ampliao da viso de mundo e novas possibilidades de atuao, tanto na esfera do ensino, quanto do trabalho em sade. Esse movimento de tornar cada vez mais tnues as fronteiras entre as disciplinas faz emergir conceitos, como o de transdisciplinaridade. Japiassu (2006, p.13) apresenta esse conceito como a abordagem cientfica, cultural, espiritual e social dizendo respeito ao que est entre as disciplinas, atravs das disciplinas e alm de toda disciplina. A atitude transdisciplinar apresenta-se no grau mximo de relaes na integrao de disciplinas, que permitem a interconexo dos contedos no sentido de auxiliar na unificao dos conhecimentos e compreenso da realidade. Essa atitude transgride a dualidade que se ope ao binrio simplificador e capaz de articular sujeito/objeto, subjetividade/objetividade, matria/conscincia, simplicidade/ complexidade, unidade/diversidade ou masculino/feminino (Moraes, 2004, p.215). A transdisciplinaridade torna-se, pois, uma resposta adequada globalidade, contextualizao e necessidade de resposta a problemas complexos e fundamentais da existncia:
Donde a necessidade e a urgncia, nos dias de hoje, para uma reforma do pensamento e da educao, no somente de procurarmos integrar e religar as diversas disciplinas de nosso saber em quadros de pensamento suscetveis de corresponder aos grandes problemas que nos colocamos e que nos desafiam, mas de valorizarmos os conhecimentos multi e interdisciplinares e promovermos o desenvolvimento no ensino e na pesquisa, de um esprito ou mentalidade propriamente transdisciplinar. Porque num mundo em que ningum parece entender ningum, torna-se imprescindvel que abandonemos a rotinizao e as falsas seguranas de que ainda se vangloriam nossas disciplinas isoladas e nos entreguemos ao sonho da aventura transdisciplinar apresentando-se como um meio de compensar as lacunas do pensamento cientfico mutilado pela especializao e exigindo a restaurao de um pensamento globalizante em busca da unidade, por mais utpica que possa parecer. (Japiassu, 2006, p.17)
Cabe ressaltar que a proposta inter/transdisciplinar no significa negar cegamente as disciplinas, nem ser contrrio s especializaes. Nesse sentido, Crema (1993, p.140) prope uma reflexo sobre a transdisciplinaridade como uma abertura do especialista ao todo que o envolve e dialogicidade com outras formas de conhecimento e vises do real, visando a complementaridade. Postula-se a motivao e a disponibilidade para o desafio da convivncia com a diversidade e do trabalho em equipe. A proposta transmutar o especialista fechado na especialidade, transform-lo num construtor de pontes, consciente da dinmica do todo e das partes, que seja capaz, alm de fracionar, de vincular e de restaurar. Nestes termos, a transdisciplinaridade nasce e construda da necessidade, interna ao desenvolvimento cientfico, de religao dos saberes, sem o que se torna impossvel conhecer e entender os fenmenos que se revelam campos complexos, de mltiplos fatores e interaes (Severino, 2002, p.29).
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Em recente estudo, Zaballa acrescenta ao debate o conceito de metadisciplinaridade, o qual tem como ponto de apoio a superao da viso disciplinar. Nessa proposio, as disciplinas no so, em nenhum momento, o objeto de estudo, mas instrumentos ou meios para se alcanarem objetivos pretendidos. Na universidade, a metadisciplina deve ser entendida como a ao de se aproximar dos objetos de estudo a partir de uma tica global que tenta reconhecer sua essncia e na qual as disciplinas no so o ponto de partida, mas sim o meio que dispomos para conhecer uma realidade que global e holstica (Zaballa, 2002, p.34). De um modo prtico, podemos vivenciar essa transposio da lgica disciplinar por meio de currculos que operem com mdulos integrados com o processo de trabalho e a construo de cidadania do profissional de sade em formao (Albuquerque et al., 2008; Ras, Monteiro, Siqueira-Batista, 2008). Outra proposta apresentada por Etges (2004) encontra, na pesquisa, um caminho para a interdisciplinaridade desejada: professores de determinada especialidade devem trabalhar diretamente com outros professores de outro ramo do saber. Esse trnsito deve ser permitido para grandes projetos de pesquisa. A formao de redes pe todos os pesquisadores em condies de igualdade, entendendo-se que um dos princpios fundamentais de organizao dever ser a liberdade. Portanto, a estrutura departamental, burocrtica e basicamente autoritria por estrutura, dever ser necessariamente abolida. A formao dos graduandos se dar por meio de projetos interdisciplinares. Sua formao ser rigorosa, mas no bitolada para uma nica atividade profissional, caracterstica de uma fase do capitalismo que j passou. Na atualidade, a departamentalizao e a organizao disciplinar no do conta da formao profissional adequada nem para o mundo, nem para a trajetria de vida dos indivduos. A interdisciplinaridade aponta sadas viveis e extremamente fecundas para uma universidade composta por pessoas livres, capazes de atuar como sujeitos perante o saber que constroem, como sujeitos capazes de comunicar esse saber de forma que sua responsabilidade perante a sociedade esteja sempre presente e atuante (Etges, 2004). Esse processo de mudana na formao traz elementos de contraposio viso irreal de fragmentao dos saberes apresentados nos currculos disciplinares. Para Behrens (2006), a viso globalizadora exige um pensamento complexo para produzir conhecimento crtico, transformador, significativo e relevante. nesse ponto que o paradigma da complexidade fundamenta a proposta de ruptura com o modelo de ensino-aprendizagem por disciplinas, como apresentar-se- a seguir.
Complexidade
As especializaes disciplinares apresentam progressos dispersos, fragmentando os contextos, as globalidades e as complexidades (Morin, 1991). Nessa perspectiva, cada dimenso do humano e do planeta separada e encerrada nos vrios departamentos das cincias. O enfraquecimento da percepo do global conduz ao enfraquecimento das responsabilidades (j que cada qual tende a ser responsvel apenas por sua tarefa especfica) e da solidariedade (os vnculos entre os cidados so recalcados). A especializao extrai um objeto do seu contexto, rejeita os laos e suas intercomunicaes com o meio e sua caracterstica de multidimensionalidade. Tendo em vista tais pressupostos, a fim de trazer o referencial da complexidade para o debate na formao em sade, mister relacion-lo com a produo de conhecimento na sociedade moderna:
O paradigma da cincia moderna, assentado na razo, na diviso/anlise e na mxima conhecer para controlar reduziu os problemas e suas respostas a modelos para a ao transformadora sobre a natureza e controladora da sociedade, produzindo conhecimentos disciplinares e com alto nvel de especializao. Separar e reduzir tm sido mximas do paradigma moderno. Entretanto, natureza e sociedade nunca deixaram de ser complexas e o mundo atual a expresso dessa complexidade os problemas que nos apresentam so multidimensionais e as contradies se avolumam. O ser humano alienado por suas prprias mos da natureza, passou a amea-la de forma perigosa para sua prpria espcie e todas as outras. Os laos de solidariedade humana se fragilizam, desfazem e contradies irredutveis emergem no cotidiano natural e social. (Baumgarten, 2006, p.16)
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Rever essa forma de produo do conhecimento e de cuidado consigo, com o outro e com a natureza deve ser o pressuposto mximo das mudanas curriculares na sade. Nesse contexto, deslocarse para alm da lgica disciplinar apenas um movimento coerente com a proposta de desenvolvimento em termos de complexidade do saber-fazer em sade (Siqueira-Batista, Aleksandrowicz, 2006; Tarride, 1998). Para tal, utilizamos o referencial do pensamento complexo que, segundo Morin, Ciurana e Motta (2007, p.52), aborda um problema lgico e geral: A complexidade diz respeito no apenas cincia, mas tambm sociedade, tica e poltica. A complexidade, confrontada com a mera simplificao - a qual esta no exclui, mas reposiciona - um pensamento que postula a dialogicidade, a recursividade, a hologramaticidade (pressuposto que implica um elemento bsico de um conjunto que pode conter quase a totalidade da informao sobre um fenmeno maior) e a holoscpica como seus princpios mais pertinentes. Trata-se de um espao mental no qual no se obstaculiza, mas se revela e se desvela a incerteza. E isso porque o pensamento complexo conhece os limites epistemolgicos introduzidos pela cincia contempornea. O pensamento complexo reconhece, ento, que o movimento e a impreciso so mais potentes do que um pensamento que os exclui e os desconsidera (Morin, Ciurana, Motta, 2007; Vasconcelos, 2002). A complexidade no pressupe um pensamento completo - esta no pode s-lo, porque um pensamento multidimensional e que articula. A ambiguidade do pensamento complexo dar conta das articulaes entre os domnios disciplinares fraturados pelo pensamento desagregador (Morin, Ciurana, Motta, 2007). No domnio do pensamento complexo reconhece-se a existncia de dois tipos de ignorncia: aquela que no sabe e quer aprender, e aquela (mais perigosa) que acredita que o conhecimento um processo linear, cumulativo, que avana trazendo a luz ali onde antes havia escurido, desconsiderando que toda luz tambm produz sombras como efeito. Por isso, preciso partir da extino das falsas clarezas. No podemos partir metodicamente para o conhecimento impulsionados pela confiana no claro e distinto, mas, pelo contrrio, temos de aprender a caminhar na escurido e na incerteza (Morin, Ciurana, Motta, 2007). A complexidade, evidentemente, no despreza o simples, mas critica a simplificao. Nesse sentido, a complexidade no a simplificao colocada s avessas, nem a eliminao do simples. Diferentemente dos pensamentos simplificadores, que partem de um ponto inicial e conduzem a um ponto terminal, o pensamento daquilo que complexo um pensamento rotativo, espiral (Morin, Ciurana, Motta, 2007). A partir desta breve contextualizao das caractersticas do pensamento complexo, possvel encontrar coerncia com a proposta de formar profissionais de sade com base na construo de conhecimentos e prticas que integrem as dimenses biolgica, psquica, social e ecolgica da vida, da mente, da sociedade e do ambiente, incluindo o desenvolvimento do que Capra (2002, p.13) chama de uma maneira coerente e sistmica de encarar algumas das questes mais crticas da nossa poca. Nestes termos, uma organizao curricular que se disponha a ultrapassar o crcere disciplinar pode ser uma proposta contra-hegemnica quelas orientadas por uma viso maximizadora de recursos e restritiva do ponto de vista da cidadania, da integralidade e da equidade que o trabalho em sade pode produzir (Saippa-Oliveira, Koiffman, 2004). A partir desse ponto de vista, factvel avanar na perspectiva de ultrapassar o confinamento disciplinar e apostar em desenhos curriculares para a rea da sade, alicerados na inter/transdisciplinaridade e no pensamento complexo.
Consideraes finais
A disciplina est em crise - anncio vociferado por Foucault e Deleuze -, marca deste tempo, nos diferentes domnios da vida, includa a educao. As instabilidades vigentes, mais do que eventos isolados, se inscrevem no mbito de uma profunda mutao social, em direo a novas modalidades de organizao (Chevitarese, Pedro, 2005), pautadas no novo monstro de Burroughs (Deleuze, 1992), o controle:
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O controle no uma disciplina. Com uma estrada no se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. No digo que esse seja o nico objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar at o infinito e livremente, sem a mnima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse o nosso futuro. (Deleuze, 1992, p.5)
Nestes termos, cabem as interrogaes sobre os caminhos que ora se constroem em nome da ultrapassagem disciplinar: (1) A quais interesses servem? (2) A que lgica pertencem? (3) Em nome de quais dispositivos de poder se instituem? Colocar-se tais questes - mais do que respond-las, desta ou daquela maneira - o que se impe, sob pena de se deixar capturar em modulaes (controle) enquanto se luta para se desvencilhar dos moldes (disciplinares).Nesta perspectiva, a reflexo inter/transdisciplinar e a complexidade podem ser antdotos, na medida em que ampliam possibilidades de pensar acerca dos enredamentos de tcnica e poder, os quais so particularmente pregnantes na sade. Tal a responsabilidade das instituies formadoras: ultrapassar a disciplina em prol de um ensinoaprendizagem mais fecundo e generoso, mas sem deslizar para as artimanhas do controle, sob pena de que se descubra, no sem sofrimento e dor, qual dos regimes, definidos por Deleuze (1992), o mais duro: os buracos da toupeira ou os anis da serpente.
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Some considerations are made about bad medicine: a set of individual and collective phenomena regarding the usual disharmony, dissatisfaction and disappointment experienced by sick people in the doctorpatient relationship. The purpose is to contribute to a better understanding of such bad medicine, taking its complexity into account, and also to collaborate with its improvement. We disagree with the common sense that summarizes such failed encounters as bad medical practice. We argue that some of its typical aspects, such as authoritarianism, arrogance, coldness, excessive control, belligerency, and the feelings of omnipotence and omniscience of so many physicians are intertwined with historical-epistemological, social-political and sub-cultural factors of these professionals; for instance, the political victory of Science and its ethnocentrism, biomedicines official monopoly of cure, the current expansion of the biomechanical paradigm, the authoritarian culture in the hospital setting, the unquestioned adoption of a scientific prejudice against non-science, among others, besides wider and more complex processes like social medicalization.
Realizamos algumas consideraes sobre a m medicina: um grupo de fenmenos individuais e coletivos referentes comum desarmonia, insatisfao e frustrao no encontro mdico-paciente vividos pelos doentes. Visamos contribuir para uma melhor compreenso dessa m medicina, considerando sua complexidade, e para a sua melhoria. Divergimos do senso comum e douto que resume tais desencontros como m prtica mdica. Argumentamos que alguns de seus aspectos tpicos, como autoritarismo, arrogncia, frieza, controlismo, beligerncia, sensao de onipotncia e oniscincia de muitos mdicos esto entrelaados com foras ou fatores histrico-epistemolgicos, sciopolticos e subculturais desses profissionais, como a vitria poltica da Cincia e seu etnocentrismo, o monoplio oficial da cura pela biomedicina, a vigncia e expanso nela de um paradigma biomecnico, a cultura autoritria hospitalar, a adoo cega do preconceito cientfico com a no-cincia, dentre outros fatores, alm de processos mais amplos e complexos como a medicalizao social.
Departamento de Sade Pblica, Centro de Cincias da Sade, Universidade Federal de Santa Catarina. Rua Laureano, 970, Campeche, Florianpolis, SC, Brasil. 88065-040 [email protected]
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Introduo
No raro acontecer de pessoas procurarem ajuda mdica e encontrarem profissionais pouco acolhedores, mais ou menos arrogantes, rspidos, pouco amigveis, indelicados, alguns at grosseiros em certa medida, que no olham na cara. Em tais encontros, frequentemente h aumento da insegurana, insatisfao e frustrao nos doentes, denotando uma desarmonia relativamente comum nessa relao. Tomamos, como objeto de reflexo, esse fenmeno designado no ttulo como m medicina, plagiando o jargo profissional que fala em m prtica. Nossa hiptese que a m medicina no pode ser resumida chamada m prtica. Sendo mais do que a corrupo de uma suposta boa prtica, ela fomentada por um conjunto de aspectos constitutivos da biomedicina. No se trata de contrapor uma boa a uma m prtica mdica, mas sim de explorar a complexidade de aspectos histrico-epistemolgicos, culturais, pedaggicos e sociopolticos envolvidos na biomedicina, que alimentam a m medicina. Esse fenmeno facilmente reconhecvel a partir da vivncia dos doentes e, tambm, a partir do ponto de vista de certo saber/fazer acadmico/artstico especializado, que contribui para sua compreenso - como em Kloetzel (1999) e Stewart et al. (1995) - e que permite reconhecer uma boa medicina, a qual, entretanto, no ser objeto de nossa ateno. De fato, a literatura mdica e da Sade Pblica, h muito tempo e persistentemente, debrua-se sobre os problemas da relao mdico-paciente e da atividade mdica - Balint (1988), Illich (1981), Clavreul (1983), e, no Brasil, mais recentemente, por exemplo: Caprara e Franco (1999), Camargo Jr. (2003), Caprara e Rodrigues (2004), Guedes, Nogueira e Camargo Jr. (2006), Camargo Jr. (2008). No necessrio definir ou precisar a m medicina, dado que no se trata de um novo objeto ou categoria a ser bem delineada. Poder-se-ia, talvez, dizer que se trata do problema da relao ruim mdico-paciente, apenas por convenincia chamado de m medicina, falta de um termo melhor e sinttico. Mas esta expresso, relao mdico-paciente, embora consagrada, pode remeter a dicotomias que nos esforamos por evitar (por exemplo, saber versus prtica), e tende a reduzir, de certo modo, o problema, induzindo a desvincul-lo de outras dimenses que justamente pretendemos explorar. H um senso comum e certo senso douto que atribuem essas experincias, desarmonias e frustraes, no encontro clnico, m prtica mdica. Essa viso preza a separao entre os aspectos contextuais, muito influentes sobre a prtica da biomedicina2, e um ncleo conceitual da mesma, que teria seus fundamentos tericos alhures, na Cincia, aos quais no caberia crtica (Pires, 1998), pois pouco envolvimento teriam com a m prtica. Neste ensaio partimos de uma perspectiva diversa, baseada em Latour (2001, 2000a, 2000b), na qual essa separao entre ncleo conceitual e contexto scio-histrico indesejvel porque dificulta a compreenso da complexidade do fenmeno, que intrinsecamente hbrido (envolvendo saberes, poderes, histrias, culturas, afetos, tcnicas, tecnologias etc). Nossa abordagem trata conjuntamente alguns destes aspectos da rede sociotcnica (Latour, 2000b) constitutiva da medicina moderna, e considera esta inseparabilidade como necessria e estratgica para uma compreenso, sempre parcial, das complexidades envolvidas, com vistas melhoria de sua prtica cuidadora. A proposta uma reflexo de inspirao genealgica e scio-histrica sobre alguns aspectos e foras envolvidos na atividade mdica e seu saber fomentadores da m medicina, que atravessam tanto dimenses individuais e prticas como sociais, corporativas e epistemolgicas. O mtodo genealgico busca explorar
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2 Usamos o termo biomedicina para designar a medicina ocidental contempornea, que abarca dois conjuntos que, para nossos objetivos de compreenso da m medicina, devem ser considerados integradamente: o primeiro o grosso da prtica profissional dos mdicos do ocidente, que apresenta impressionante homogeneidade frente a tradies e prticas curadoras de origem no cientfica ou no acadmica. Portanto, esse primeiro significado do termo pode ser resumido como a biomedicina o que os mdicos fazem. O segundo significado do termo refere-se ao conjunto de saberes, valores e tcnicas que informam a prtica social designada pelo primeiro significado, de cunho cada vez mais cientfico e especializado, em mudana permanente (mas tambm com relativa homogeneidade e continuidade ao longo das ltimas dcadas, sobretudo nos seus aspectos aplicveis e aplicados ao cuidado, prtica clnica).
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redes e origens (valores, emoes, foras, desejos, interesses, poderes) que orientam, influenciam e constrangem culturas, prticas sociais e saberes (Martins, 2004). A reflexo no se prope a realizar uma genealogia propriamente dita, mas refletir sobre elementos genealgicos associados a outros fatores envolvidos com a m medicina, ensaiando algumas hipteses interpretativas a respeito. Abordaremos a m medicina sob alguns poucos ngulos, como aspectos da iniciao dos profissionais, do saber e da ao mdica, com nfase condutual e emocional: a arrogncia e o autoritarismo, a beligerncia e o controlismo, a misso imaginria do heri solitrio e o peso dessa misso impossvel. Esse trs pares de caractersticas, comumente criticadas e presentes na m medicina, so interligadas entre si e vinculadas com foras das mais diversas naturezas. Neste ensaio propomos reflexes e especulaes que se destinam a contribuir para o incremento da compreenso da complexidade nelas embutida, bem como de sua persistncia na prtica e no ensino mdicos. Embora muito denunciada e, por vezes, considerado esgotado o seu debate, a considerao e anlise da m medicina so relativamente dispersas e pouco sistematizadas na literatura. Parece-nos relevante sua abordagem para uma melhor avaliao das dificuldades de formao dos mdicos e dos desafios da reforma dessa prtica profissional. Isso ainda mais importante para gestores do Sistema nico de Sade (SUS) e para profissionais da ateno primria sade, em poca de expanso dessa ltima, via Estratgia Sade da Famlia e de intensa medicalizao social da vida e dos riscos individuais e coletivos. Nesse ambiente que clama por uma clnica ampliada, uma educao em sade empoderadora e mais integralidade nos servios e nos profissionais, relevante relembrar a grande dimenso do problema (Caprara, Rodrigues, 2004) e investigar origens e complexidades do mesmo.
Arrogncia e autoritarismo
O senso comum e a cincia nasceram juntos. Segundo Santos (2000), o senso comum foi o nome dado s formas de conhecimento que no correspondessem aos critrios epistemolgicos estabelecidos pela cincia para si prpria. A diferenciao epistemolgica pretendida pela Cincia em relao ao senso comum foi precisa: tratou-se de erigir uma instncia acima e supostamente desvinculada das tradies e religies, que seria o critrio supremo de avaliao do que e do que no verdadeiro, a Cincia. A construo do senso comum igualou tudo aquilo que ficou fora da Cincia: um conjunto heterogneo de prticas e saberes (populares e especializados) que ficou sendo considerado homogneo e pobre do ponto de vista epistemolgico3 e, tambm, agregado num conluio poltico-cultural que mantinha os homens presos na obscuridade, de carter conservador e indesejvel. Assim, a cincia moderna considera o senso comum superficial, ilusrio e falso (Santos, 2006). Essa desconfiana bsica, se um dos motores da cincia para a mesma fazer sua primeira ruptura epistemolgica (Santos, 1982) na construo do conhecimento cientfico, hoje se revela problemtica pelo seu lado destrutivo e dominador de outros saberes, assim como pela sua arrogncia e preconceito, que, todavia, no so exclusividade da cincia e nem foram inaugurados por esta. Nossa hiptese que certa arrogncia preconceituosa e etnocntrica da cincia encontra afinidades eletivas ou mesmo antecedentes histrico-culturais anteriores modernidade. Numa perspectiva macrocultural e histrica, encontramos traos de uma arrogncia etnocntrica na antiga cultura religiosa judaico-crist, desenvolvida na
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3 Hoje, com as etnocincias, h que modular essa afirmao, ressaltando o fato de que os especialistas tradicionais exticos (curadores, no caso da sade) so considerados portadores de saber emprico relevante como indcio valioso a orientar a pesquisa cientfica, mas no mais que isso.
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Europa com o cristianismo e exportada para o planeta a partir da expanso europia aps o sculo XV. Joseph Campbell (1993) ilustra esse etnocentrismo comentando a peculiaridade da religio judaica perante o grosso das religies do mundo, politestas. Segundo o autor, na maior parte destas ltimas, os deuses principais eram universalistas e os deuses bairristas ou tribalistas eram secundrios, invocados para proteo do povo em perodos de guerra. Ao fim das batalhas, era possvel a construo de sincretismos e era comum um relativo respeito pela cultura dos perdedores, devido s equivalncias que se podiam fazer entre as divindades dos diferentes povos. Com isso, os diferentes mitos, deuses, verdades, cincias e sabedorias podiam ser reconhecidas e se entrecruzar, se transformavam ao mesmo tempo em que se preservavam. Porm, essa possibilidade ficou dificultada quando a cultura e a religio dos vencedores eram tribalistas e monotestas, seu Deus era nico: o que foi o caso da religio judaico-crist. Iav o Deus nico, os demais so demnios, e os mitos, saberes e culturas dos povos pagos perdem respeito e sabedoria, ficam dignos apenas de combate e desqualificao. Resumindo a histria, poderamos dizer que uma religio tribalista e monotesta misturou-se com a cultura beligerante e dominadora europia que se expandiu pelo mundo. Quando essa cultura derruba seu prprio deus e o substitui pela Cincia, como nica instituio social produtora de verdades, em posio mitolgica (Feyerabend, 1991), esta, que j nascia com uma proposta nada modesta - revelar as verdades - ficou embebida e reconstruiu essa arrogncia etnocntrica que desqualifica tudo o que no ela mesma. A digresso acima prepara o terreno para chegarmos rea da sade-doena e profisso mdica, em que desdobramentos subculturais, emocionais e polticos da vitria da guerra da cincia foram provavelmente relevantes, e a hiptese aqui trabalhada de que sejam mais importantes do que se imagina, atingindo os interstcios atuais da tcnica, da clnica e do relacionamento com os doentes. No necessrio traar detalhes e complexidades desses desdobramentos no Ocidente, basta marcar o que mais relevante para nossa reflexo: a oficializao dos mdicos nos sculos recentes, como nicos curadores legtimos, representantes da Cincia, portadores da verdade, legitimados pelos Estados4 (Adam, Herzlich, 2001). A autonomizao da profisso perante a sociedade foi a pedra de toque culminante da trajetria poltica da medicina. Tal trajetria possivelmente ajudou a veicular uma tradio de arrogncia e etnocentrismo cientficos para o interior desses especialistas oficiais em sade-doena. De modo que a arrogncia em sentido geral pode no ser fruto de caracterstica pessoal ou circunstancial da m prtica mdica. Uma parte relevante dela poderia ser remetida herana cultural cientfica. Herdeira dessa luta e dessa conquista poltica, a biomedicina est, por um lado, impune e assegurada na posio de poder, o que facilita a arrogncia; e, por outro lado, sente-se permanentemente ameaada pela mirade de tradies, tcnicas, saberes, prticas e curadores que sobrevivem socialmente, diferentes dela mesma e, paradoxalmente, cada vez mais procurados (Le Fanu, 2000). Mas como se infiltraram, na mentalidade, na cultura clnica e no cotidiano de razovel nmero de mdicos, essa arrogncia e esse autoritarismo? O nascimento da clnica e seu aprendizado no hospital, bem como seu desenvolvimento histricoepistemolgico apoiado no paradigma biomecnico5 (estabilizado e detalhado no sculo XX, em pleno vigor no sculo XXI com a biologia molecular e a gentica), facilitam uma compreenso parcial desse processo, associados arrogncia proveniente da Cincia e agressividade poltica das suas lutas iniciais contra a Igreja, dentre outras foras importantes (inclusive de ordem poltico-econmica). Os mdicos aprendem biomedicina eminentemente no hospital. O comum autoritarismo mdico pode ser interpretado como uma herana cultural e
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4 Posteriormente acompanhados por outras profisses da sade que foram se regulamentando oficialmente.
5 Pode-se dizer que o paradigma biomecnico envolve um concepo ontolgico-localista e mecnico-causal das doenas, em que estas so vistas como coisas concretas, defeitos ou disfunes do organismo fsico, relacionadas a leses materiais, a serem investigadas no interior do corpo fsico e corrigidas com alguma interveno concreta (medicamentos e cirurgias) (Camargo Jr., 2003). O uso do termo kuhniano paradigma aqui em sentido estendido ao saber e atividade mdica, baseado na sua semelhana com o conceito de estilo de pensamento, de Ludwik Fleck (1986), conceituado de forma mais genrica e aplicvel a um coletivo de pensamento portador de uma formao especializada com interesses e atividades especficos (Tesser, 2008).
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psicossocial enraizada no proceder mdico, talvez amplificada pela subcultura mdica do hospital, o qual , nitidamente, autoritrio desde seu nascimento enquanto instituio mdica. Para Foucault (1980), essa caracterstica historicamente herdada da instituio militar, e fez o hospital ser considerado como uma instituio quase-total, a exemplo dos manicmios, conventos e prises (Goffmann, 1974). O autoritarismo no hospital aceito e, relativamente, no causa muitos problemas. Ali, o paciente delega o poder para os profissionais. Discusso ou recusa de uma conduta mdica, num hospital, coisa rara, estranha, e, muitas vezes, significa alta a pedido. Desnecessrio enfatizar que o autoritarismo no tema de discusso no hospital. vivido e praticado no ambiente, nas regras, nas relaes e est embutido no imaginrio social hospitalar, cristalizado em regras e normas inflexveis. O mdico, ao prescrever num hospital, no tem o paciente sua frente, no fala com ele, no precisa explicar os diagnsticos e as condutas. Estas explicaes, quando ocorrem, so rpidas e realizadas em momento parte, muitas vezes apenas com um familiar, geralmente separadas da deciso e prescrio teraputica. Feita a prescrio, ela ser automaticamente executada sobre um doente paciente e submisso, que receber, da enfermagem, uma curta resposta s suas perguntas sobre o tratamento: para a dor, contra a infeco. O tempo do contato teraputico no hospital pequeno e os critrios de internao e alta definem os objetivos dos profissionais e o tempo de contato com o doente, alm de constrangimentos outros institucionais e sociais - filas para internao etc. Estes critrios e estes tempos produzem expectativas, prioridades e certa sensao de eficcia, os quais esto pautados pelo diagnstico e interveno na doena, sendo referidos sua cura ou controle, com a sada do doente da situao de gravidade geradora da internao. Por isso mesmo, a interveno e deve ser sempre rpida, seu efeito e sua eficcia devem ser sentidos rapidamente, para o que no se poupa tecnologia investigativa e teraputica duras. Dentro do hospital a percepo dos danos (iatrogenias) muito menor, no s pelo pouco tempo de contato, como pela naturalizao de alguns deles. Alm disso, dada a situao clnica de alta gravidade e de extrema assimetria de poder, a tolerncia dos pacientes internados aos danos muito grande. A ateno hospitalar voltada para o risco biolgico, e pouco tem a ver com a vida do doente printernao ou ps-alta. A gravidade da situao orgnica no hospital permite que o aspecto biolgico se destaque, fornecendo uma sensao de suficincia do saber biomdico (Cunha, 2005). Nos hospitais, bem como na biomedicina em geral, h a tendncia para a fragmentao do cuidado por especialidades, de forma que, na medida em que aparecem outras doenas, estas vo sendo distribudas pelas especialidades que se responsabilizam por patologias especficas, submetendo o doente a um esquartejamento epistemolgico irreversvel (Tesser, 2004). Esse mergulho no hospital permite compreender quo comuns so os problemas quando muitos mdicos se defrontam com a imensa maioria de pacientes independentes, que esperam acolhimento emocional, explicaes que lhes faam sentido, acalmem e preparem para a teraputica, e teraputicas compreensveis e factveis. Ou seja, a maior parte da vida profissional do mdico ambulatorial (exceo feita a algumas especialidades), em que quase nenhuma daquelas condies especiais de autoridade, controle, rapidez, eficcia, objetividade e necessidade de interveno imediata controlada aparecem. E, obviamente, muitos no foram preparados adequadamente para lidar com os doentes independentes em suas condies reais de existncia, mesmo supondo timas ou ideais condies socioinstitucionais para a prtica mdica. O aprendizado da clnica, no hospital, pelos profissionais foi e continua sendo provavelmente uma fora importante no processo pedaggico-inicitico: vrios anos de formao (pelo menos seis; oito ou mais anos considerando as residncias mdicas) numa instituio autoritria so essenciais para a introjeo da arrogncia e do autoritarismo em muitos mdicos. Adicionalmente, o desvio da ateno para o olhar as leses (em detrimento do escutar o doente), marcador do nascimento da clnica (Foucault,1980), fantasticamente hipertrofiado com o desenvolvimento tecnolgico diagnstico recente, certamente ajudou e fortaleceu esse processo. Esse desvio do olhar, que v tendencialmente as pessoas doentes como portadores de doenas e, recentemente, riscos, que passam a ser os objetos principais da ateno do mdico (Camargo Jr, 2003; Mendes Gonalves, 1994), foi desenvolvido a tal ponto que talvez seja por si mesmo outro dos fatores importantes para a compreenso de tantos desencontros entre mdicos e doentes. Assim, a arrogncia e o autoritarismo biomdicos podem ser relacionados a uma caracterstica cultural e histrica geral do ocidente europeu, possivelmente reforada na subcultura da corporao
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mdica, aprendidos na prtica e pelo seu lado interno no locus formador - o hospital -, e pela sua relao externa com a sociedade, como fruto de sua vitria poltica associada Cincia, que colocou esta em um lugar seguro, garantido e com o poder de dizer a verdade. Tal trajetria de relacionamento da biomedicina com a sociedade torna plausvel a hiptese de que haja uma forte influncia do ambiente macropoltico para o ambiente microssocial da clnica, por meio do processo que permite a manuteno permanente e renovada da arrogncia-autoritarismo, atualizando essa caracterstica e sustentando um habitus profissional em parte da corporao, no sentido de Bourdieu (1994). Tal processo pode ser resumido em poucas palavras: a impunidade gerada pelo monoplio oficial do exerccio da atividade curadora na sociedade e a legitimidade da decorrente, garantidas no atacado, foram afastando as tcnicas relacionais e a percepo tica, emocional e cotidiana da necessidade da legitimao dos profissionais e da relao de cura no varejo, no cotidiano do contato com os doentes. Ou seja, a posio social do mdico enquanto curador estvel e est garantida: ele pode, e essa possibilidade coerente com o que vem acontecendo com parte dos profissionais, descuidar-se de se legitimar como curador no dia-a-dia (Tesser, Luz, 2008). Adicionalmente, tal processo facilitado pelas caractersticas do saber mdico que permitem e alimentam o iderio de que uma eficcia e uma correo tcnicas podem se dar revelia da ancestral relao curador-doente, iderio de origem eminentemente cientfica. A promessa iluminista e positivista cientfica de eficcia dada pela elucidao dos mecanismos da doena e pela interveno material especfica sobre eles certamente alimentou e alimenta a crena (dificilmente assumida) de que se poderia prescindir do nebuloso emaranhado psicossocial da relao curador-doente. Porque os mdicos seriam honestos, cientficos e eficazes, poderiam dispensar esses meandros subjetivos e sacerdotais da relao de cura, cuja eficcia simblica (ou efeito placebo) foi atribuda aos curadores pr-cientficos, no sem projetar neles uma dose de charlatanismo, como ilustrado por Lvi-Strauss (1976) na histria famosa de Quesalid. A associao entre herana poltico-cultural, hospitalar e epistemolgica talvez seja forte o suficiente para que, mesmo em locais de trabalho onde supostamente a reconstruo dessa relao ancestral de cura interessa direta e economicamente ao mdico, como na medicina privada, no raro que vrios profissionais tenham se mantido muitas vezes arrogantes, pouco comunicativos e frustrantes para seus pacientes. Tais heranas se fundem e cristalizam, levando perda da legitimidade no varejo e indiferena frente a essa perda, ao no-aprendizado prtico da necessidade da continuada reconstruo da legitimidade, com a consequente fragilizao da harmonia emocional e relacional entre curadordoente, abalando de forma profunda a relao de cura, na prtica, de parcela dos profissionais em muitas situaes.
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tambm, de certa forma, para a construo de um estado de esprito cultural tenso e beligerante quanto sade-doena. Particularmente com relao ao saber cientfico biomdico nascente dos sculos XVI a XX, o medo e a agressividade referentes s doenas e prpria natureza, a ser dominada pela Cincia em formao e, depois, consolidao, promoveram uma mentalidade beligerante perfeitamente em consonncia com a arrogncia e o autoritarismo. Como resultado dessa histria, podemos sintetizar que, em geral, a relao do homem moderno e, em especial, a do mdico para com a natureza, por um lado, de desconfiana hostil e medo e, por outro lado, de otimismo intervencionista quanto ao poder da tecnologia cientfica. A outra face desse otimismo intervencionista um claro pessimismo quanto s potencialidades curadoras autctones dos doentes e as possibilidades de estmulo a elas, geralmente pouco exploradas pela pesquisa, pelo saber e pela prtica mdica (exceo feita, sobretudo, s tecnologias preventivas de imunizao). A subjetividade, o estado de esprito ensinado aos praticantes da tradio biomdica, um misto de alerta, agressividade defensiva, ateno para os mnimos indcios dos inimigos mortais (as doenas graves), frieza, tendncia interventora e vigilncia controladora. Grosso modo, como uma inimiga que a cincia biomdica v a natureza. Aps analis-la, a reconstri como modelo ideal, reduzida s partes materiais passveis de manuseio, seno agora, no futuro. Assim, a Cincia conhece, a seu modo, parte da natureza, aquela parte que ela concebe e reconstri em seus modelos, mas essa uma natureza reconstruda e dominada, tecnicamente feita, desprovida de qualquer interioridade e vida, reduzida a um mecanismo complicado (Mller, 1996). Muitas culturas consideraram a natureza como uma aconchegante e dadivosa me, ainda que tivesse seus momentos de fria e desequilbrio (intempries, doenas etc). Viram-na com carter predominante de doao e nutrio generosa, sbia, maternal, amistosa e poderosa. Todavia, para a modernidade e muitos de seus mdicos, ela uma permanente ameaa que deve ser controlada, monitorizada e vigiada. As doenas, legitimadas e objetivadas pela construo cientfica das entidades nosolgicas (e dos riscos), converteram-se em inimigos naturais e, como se tivessem vida prpria, parecem estar, a cada paciente, sintoma e/ou exame, prestes a atacar. Assim, a sade humana parece frgil e carece de vigilncia profissional, tecnolgica, contnua, intensiva ou peridica. Algo similar a uma parania est em vigor alertando muitos mdicos sobre o perigo da imensa lista de doenas graves que esto sempre por perto e que podem se travestir de sintomas aparentemente banais ou comuns. No hospital, local de doentes graves, onde essas patologias se fazem presentes de forma acentuada, o perigo de vida e o medo da morte esto na sua expresso e intensidade mximas. A guerra no hospital declarada e, muitas vezes, real. As capacidades prprias dos doentes esto quase sempre insuficientes e fracassadas, a gravidade grande, o belicismo aceito, a interveno agressiva, precoce e controladora , muitas vezes, necessria e salvadora. O fato de, no mundo extra-hospitalar, os adoecimentos serem muito diferentes, na sua maioria benignos (outros tantos se instalam e evoluem lentamente, com idas e vindas), e as curas e convalescenas se darem por mltiplos e complexos, inclusive autctones, poderes, no altera a mentalidade, os automatismos emocionais, os medos e as posturas que muitos mdicos aprenderam no hospital: o filme de terror aprendido nas aulas, as doenas graves e, mesmo, as trgicas histrias reais de pacientes, acompanhados nos anos de formao nos hospitais, marcaro por muito tempo as mentes e os coraes de boa parte desses curadores. A beligerncia e o controle para com a natureza e, na sade, em relao s doenas e, mesmo, aos doentes, so quase que indissociveis. O controle pode ser considerado uma parte da beligerncia, mas desdobrou-se de tal forma nos procedimentos cientficos e biomdicos, bem como na sua subcultura profissional, que merece tratamento mais detido. Ele a forma operacional pela qual a beligerncia se expressa e se concretiza nas prticas e nos saberes cientficos e biomdicos. Alm disso, o controle configurou-se como um dos pontos centrais da racionalidade cientfica moderna, ocupando lugar central em disputas envolvidas nas discusses epistemolgicas e metodolgicas da biocincia sobre os saberes e intervenes teraputicas (Tesser, 2007). A cincia permeada por outros valores alm dos chamados cognitivos - como adequao emprica, consistncia, simplicidade, fecundidade, poder explicativo e verdade. Os valores cognitivos so defendidos, em geral, como os nicos e essenciais, tanto descritivamente como prescritivamente, para caracterizar e orientar a Cincia. Lacey (1998) aceita que os valores cognitivos prestigiados pela cincia
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moderna possam ser separados relativamente dos demais valores sociais e que sejam cruciais na pesquisa cientfica, mas ressalta que sua interpretao sempre estruturada por alguns valores sociais, e o apoio sua expresso ligado expresso de certos valores sociais (Lacey, 1998, p.177). O controle est visivelmente associado a valores cognitivos como preditibilidade e reprodutibilidade, e pode ser considerado o valor central na empreitada cientfica (Lacey, 1998), de fundo simultaneamente poltico, social e psicolgico. Ele dirige-se inicialmente natureza e, mais especificamente, ao controle dos objetos materiais. Esse enfoque constitui-se na maior e mais bem-sucedida (em termos de hegemonia social na comunidade cientfica) estratgia de restrio e seleo de dados e fenmenos como base emprica para teorias e, posteriormente, como mundo a ser controlado. Tal estratgia de seleo e restrio de dados chamada, por Lacey (1998), de estratgia materialista. Para esse autor, a maior vantagem da estratgia materialista justamente o fato de ela ser possivelmente a melhor para propiciar o controle. Seria disso que decorre o sucesso da cincia, e no da proeminncia dos valores cognitivos nela. Na sade, a razo biomdica interventora, controladora e dominadora, coerentemente com as caractersticas da racionalidade cientfica moderna em geral: racionalismo, mecanicismo, dualismo, fragmentarismo, metodologismo, quantitativismo, materialismo (Luz, 1988, p.117). Com isso, busca controlar o corpo, eliminar ou controlar doenas, fazer a gesto dos riscos, regulamentar modos de vida. A biomedicina adotou, de forma hegemnica, a metafsica materialista, o que induz e aprofunda a afinidade eletiva entre o esquema de valor do controle na sociedade moderna e na cincia mdica. Essa metafsica afirma que o mundo realmente tal e qual todos os objetos presentes nele (inclusive os seres humanos) so inteiramente caracterizveis por propriedades e relaes materialistas (talvez, em ltima anlise, fisicalistas): todos os fenmenos so inteiramente caracterizveis sob o aspecto de sua produo pelas estruturas, processos e leis subjacentes, e as possibilidades das coisas so exauridas por suas possibilidades materiais. Ento, a adeso s estratgias materialistas poderia conduzir-nos a uma explicao completa do mundo (Lacey, 1998). O entendimento do mundo obtido, a, por um tipo de conhecimento especfico da cincia: as teorias. Estas, em geral restritas pela estratgia materialista5, representam os fenmenos em termos de sua concordncia com leis da natureza (fsica e biolgica), e apresentam uma imagem do mundo em termos de leis e quantidades. Os fenmenos so abstrados de qualquer insero na experincia humana, nas atividades prticas e sociais. As teorias deixam inexploradas, na maior parte, tanto as condies (mesmo as sociais) que criam e mantm os espaos a respeito dos quais elas fornecem entendimento, quanto os efeitos e consequncias dos acontecimentos de tais espaos nos ambientes naturais, humanos e sociais (Santos, 2000; Lacey, 1998). Em outras palavras, diz-se que as teorias cientficas produzem conhecimento extensivo, isto , relacionam muitos acontecimentos aparentemente desconectados e diferentes. Conectam, por exemplo, o movimento de uma flecha ao movimento dos planetas e dos corpos em queda. Na cincia, a extensividade um valor cognitivo prestigiado: tanto melhor uma teoria quanto mais fenmenos ela interligar e explicar, e assim, subliminarmente, permitir previso e mecanismos de controle. Todavia, as teorias cientficas no produzem conhecimento completo. Se a cincia pode prever com boa aproximao a trajetria da flecha, no relaciona a flecha ao arqueiro, vitima, ao fabricante de arcos, matria-prima usada na sua confeco, ao contexto social e ao objetivo do tiro
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6 Existem outras teorias com outras estratgias de seleo de dados, mesmo na biomedicina, como, por exemplo, a psicanlise. So de localizao e difuso suficientemente pequena e marginal na profisso mdica para confirmarem a regra.
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Um exemplo trivial o conceito de inflamao, que unifica os mais distintos e variados fenmenos corporais e mrbidos, sem dvida de forma precria, mas permite seu controle relativo por meio dos anti-inflamatrios (hormonais e nohormonais), base de boa parte das teraputicas biomdicas. Eles so potentes como sintomticos, mas pouco duradouros e apresentam relevante iatrogenia.
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(uma guerra? uma caada? um esporte?). Um conhecimento completo envolveria essas finalidades, sujeitos, histrias e suas relaes. Se a extensividade do conhecimento cientfico encanta e seduz, gerando o avano tecnolgico, a sua incompletude, na rea da sade, tem desdobramentos srios, raramente discutidos. Na relao da sociedade com a cincia e a tecnologia, a incompletude j exige ateno, motivo de algum debate pblico, de legislao especfica e de interesse dos cidados, devido, sobretudo, crise ecolgica e ambiental global. Na sade, a nossa hiptese de que a percepo da incompletude do saber cientfico se manifesta pela fuga para outras medicinas, mas permanece fora da cincia e da corporao mdica. Para alm da m prtica, isso remete aos dilemas e cegueiras paradigmticas na diagnose e na ao teraputica, em que o conhecimento cientfico parece ser pobre em completude e est, a toda hora, se debatendo com a complexidade e integrao dos aspectos e partes das pessoas e seus adoecimentos, sendo que essa complexidade e integrao no so abrangidas ou so excessivamente reduzidas pela extensividade das teorias biomdicas atuais e suas tecnologias correlatas7. O baixo teor de integralidade dessa medicina (Tesser, Luz, 2008) est enraizado nessa desproporo extensividade-completude, em que o controle tem papel fundamental. Entender o papel e o valor do controle na cincia prepara o terreno para entendermos o controle no saber mdico e na biomedicina. Se ele j est hipertrofiado pela tradio hospitalar, pela luta contra a natureza e as doenas e pelo autoritarismo, atinge o pice quando da cientificizao progressiva da medicina, que o sacraliza. Assim, h que compreender a poderosa e agressiva tendncia controlista que permeia a biomedicina e se infiltra em grande parte da subjetividade mdica, contribuindo para a m medicina, de certo modo afastando a solidariedade, diminuindo o empoderamento e a autoconfiana dos pacientes, dificultando a harmonia e a efetividade das prticas profissionais nos seus aspectos relacionais, de comunicao e educao. Todavia, pouco h alm do imprio do controle como valor social, poltico e cientfico que justifique a sua exportao como valor principal para clnica, exceto, claro, a noo disseminada de que ele tem utilidade pragmtica imediata, levada ingenuamente, contraprodutivamente e perigosamente at as ltimas consequncias. Ao contrrio, pode-se pensar que talvez a obsesso pelo controle seja justamente um empecilho para a clnica, para sua misso curadora (Tesser, 2007), para o aprendizado do cuidado em meio incerteza. O controle como piv da ao mdica deve tambm ser levado em conta na considerao de sua ao alimentadora da medicalizao social, geradora, por um lado, de dependncia excessiva do cuidado mdico-profissional (Illich, 1981), e, por outro, de disciplinarizao dos comportamentos (Foucault, 1988, 1980) e dos cuidados com a sade, introjetada at ser incorporada obsessivamente pela cultura geral e pelas pessoas (Nogueira, 2003), gerando o que Nogueira (2001) chamou de higiomania. Assim, a beligerante obsesso por controle que permeia a biomedicina e parte dos profissionais mdicos vem de muitos lados: das teorias e dos mtodos cientficos biomdicos; das tecnologias cientficas; dos valores sociais, hospitalares e epistemolgicos; dos interesses econmicos da indstria farmacutica e de equipamentos; das lutas polticas cientficas; da medicalizao social. Uma tenso controlista atrapalha o relacionamento de parte dos mdicos com os doentes, minando coraes e mentes desses curadores, que reproduzem a beligerncia controladora que aprenderam.
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8 Essa tendncia muito forte devido reduo progressiva, no saber mdico, do umbral teraputico para muitas doenas, riscos e condies, com reduo dos pontos de corte (como para hipertenso e diabetes), criao de categorias medicalizadoras (exemplo: prhipertenso, fibromialgia) e expanso e flexibilizao de critrios diagnsticos que ficam mais abrangentes, que vo medicalizando e criando rtulos de doenas para vivncias e sofrimentos os mais diversos da vida, para os quais a indstria farmacutica gera incessantemente drogas controladoras sintomaticamente eficazes (exemplo: antidepressivos). Mas essa uma questo complexa que transcende o escopo deste texto.
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poderes e curas quase milagrosos para todos os adoecimentos e padecimentos, acirrada com a medicalizao social. Adicionalmente, os mdicos esto cada vez mais restritos na sua competncia e autonomia epistemolgica, reduzidos progressivamente a aplicadores de saberes e tecnologias investigativas (algoritmos diagnsticos) e teraputicas institucionalizadas na biomedicina; perdendo sua identidade de curadores, que vai sendo substituda pela de tcnicos obcecados por diagnsticos, administradores de tratamentos padronizados para doenas especficas. Eles tendem a ficar menos envolvidos, portanto, com a produo de compreenso e tratamento de seres individuais nicos sofrendo, com a vida e a sade em crise (Dalmaso, 1998; Sayd, 1998; Luz, 1996). Obviamente, tudo isso facilita a m medicina, estando inserido na complexidade da atividade mdica em geral. Assim, alguns aspectos do cotidiano comum da m medicina podem ser interpretados como contendo influncia da arrogncia relacional e epistemolgica desses curadores que se sentem heris solitrios; como, por exemplo, quando um mdico diz para um paciente que sua doena no tem cura (mas tem controle, tratamento), situao cada vez mais comum asma, rinite, hipertenso, reumatismos, diabetes, osteoartrites, dermatites, alergias, doenas ou transtornos mentais etc. H a uma conjuno de fatores: o monoplio institucional dessa corporao de curandeiros atribui aos mesmos certos poderes microssociais (institucionais) e refora a arrogncia e o autoritarismo aprendidos no hospital; a solido social faz com que se sintam os nicos portadores da verdade; e, por ltimo, a cegueira paradigmtica alimenta a incapacidade de muitos praticantes de relativizar as verdades de seu saber, o que os induz a universaliz-las, tornando absolutas as verdades e limites biomdicos sobre as doenas, lanadas aos doentes como veredictos finais. Isso gera problemas e sofrimentos, para os doentes desenganados e incurveis, de crise de relacionamento, para os rebeldes e os no enquadrveis (que no tm nada), de desconfianas e de transtornos para todos. Pairando nica a produzir verdades sobre sade-doena, no haveria sentido em reconhecer limites prprios biomedicina e relativizar as ms notcias, pois no existiria, nessa viso, nenhuma outra notcia a ser dada por nenhuma outra tradio curadora digna de crdito. Sem conseguir localizar os limites de seu saber, parte dos profissionais mdicos muitas vezes desenganam os pacientes. Como consolo, a mdia promete, para breve, vrios avanos tecnolgicos e teraputicos, pelos quais mdicos e doentes devem esperar. Esses profissionais debatem-se, ento, entre a precariedade dos recursos atuais e as promessas exageradas, vivendo como podem o mito do heri com sua misso solitria impossvel de oniscincia e onipotncia. Uma dessas possibilidades de vivncia, ento, rechaar a misso impossvel e, ao faz-lo, negar o difcil compromisso e misso tico-sociais de curador, negar os aspectos profundamente humanos e sacerdotais do manejo do sofrimento, da doena e da morte, encarando a medicina como simplesmente mais uma profisso, o que pode resultar em indiferena e frieza para com o adoecimento e sofrimento, que passam a ser problemas tcnico-profissionais regrados por condutas protocolares. Por outro lado, talvez apenas alguns emergencistas usufruam, com alguma frequncia, da sensao de dever de heri cumprido ao sarem de seus plantes. Mas esses momentos so uma pequena minoria das atividades mdicas.
Consideraes finais
Compreender parcialmente desencontros vividos na medicina e na m medicina exige considerao de variveis inslitas contextuais (como trabalhar aps uma noite em claro num planto agitado) e fatores complexos epistemolgicos, subculturais, filosficos, pedaggicos, histricos, polticos. Muitos desses fatores, aqui no abordados (como a busca de status social e poder econmico, a relao com a estrutura social mais geral, o medo do erro e dos processos, dentre outros), necessitam anlise e considerao para a composio de um quadro compreensivo mais amplo da m medicina. As ideias aqui sintetizadas so apenas uma reflexo parcial sobre o tema. Mesmo assim podemos ter deixado uma impresso talvez excessivamente negativa da biomedicina, para alm da m medicina. H que corrigi-la: os mdicos no so todos assim, sua medicina no ruim e seus saberes e tecnologias muitas vezes so maravilhosos. Simplesmente no abordamos o lado luminoso, das virtudes e potncias, das sabedorias,
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da dedicao, da vocao, da criatividade, do aprendizado, das alegrias e experincias intensamente humanas que fazem crescer e enriquecer as vidas de mdicos e doentes, tambm presente na prtica mdica. O objetivo era abordar poucos aspectos problemticos e complexos envolvidos na m medicina, inerentes prpria biomedicina. A anlise deles e de outros fatores parece-nos necessria de ser mais desenvolvida para que se possa trabalhar na formao mdica e na sua educao permanente de modo a minimizar a m medicina e fomentar a boa medicina.
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Palabras clave: Medicina. Relaciones mdico-paciente. Mala conducta profesional. Sociologa. Antropologa.
Recebido em 18/12/08. Aprovado em 16/06/09.
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Fernanda Garbelini De Ferrante1 Manoel Antnio dos Santos2 Elisabeth Meloni Vieira3
DE FERRANTE, F .G.; SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M. Violence against women: perceptions of medical doctors from primary healthcare units in the city of Ribeiro Preto, So Paulo. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.287-99, out./dez. 2009. Violence against women is a complex and highly prevalent phenomenon that is considered a public health problem. The affected women generally search for healthcare services in order to treat associated symptoms. This qualitative study aimed to verify the perception of doctors working at primary healthcare units of Ribeiro Preto, state of So Paulo, on violence against women perpetrated by intimate partners. Data were collected through interviews with 14 gynecologists and general practitioners. The use of content analysis allowed us to define the following themes: knowledge of the types and severity of violence, perception regarding who the affected woman is, medical practice in the violence situation, intervention possibilities and barriers to access the services. As the medical doctors feel unprepared to approach the subject, they handle it with gender and social class prejudices, transferring the responsibility for occasional failures to others, such as the services, the network and the women. Violncia contra a mulher um fenmeno complexo e altamente prevalente, considerado problema de sade pblica. Comumente, as mulheres afetadas buscam servios de sade para tratar sintomas associados. Este estudo, de abordagem qualitativa, teve por objetivo verificar a percepo dos mdicos das unidades bsicas de sade de Ribeiro Preto-SP sobre violncia contra a mulher perpetrada por parceiro ntimo. Os dados foram levantados por meio de entrevistas com 14 mdicos ginecologistas-obstetras e clnicos gerais. A anlise de contedo permitiu definir os seguintes temas: conhecimento sobre tipos e gravidade de violncia, percepes acerca de quem a mulher acometida, prtica mdica frente situao de violncia, possibilidades de intervenes e barreiras de acesso ao servio. Os mdicos, por se sentirem despreparados para abordar o tema, o enfrentam com muitos preconceitos de classe social e gnero, transferindo a responsabilidade, por eventuais falhas no atendimento, aos outros: os servios, a rede e as mulheres.
Keywords: Violence against women. Physicians. Health professional. Primary healthcare. Womens health.
Palavras-chave: Violncia contra a mulher. Mdicos. Profissional de sade. Ateno primria sade. Sade da mulher.
Elaborado com base em De Ferrante (2008), pesquisa financiada pelo CNPq (processo 403103/05-3) e Fapesp (processo 2006/61922). 1 Hospital Nossa Senhora da Luz, Aliana Sade. Rua Brigadeiro Franco, 3226, apto. 21, gua Verde. Curitiba, PR, Brasil. 80.250-030 fernandadeferrante@ hotmail.com 2 Departamento de Psicologia e Educao, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo. 3 Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo.
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Introduo
A violncia domstica contra a mulher, tambm designada violncia de gnero ou violncia por parceiro ntimo, um fenmeno complexo e de alta prevalncia no Brasil. Foi reconhecida como um problema de sade pblica por afetar a integridade fsica e a sade mental da mulher. Como tal, pode ser identificada, assistida e encaminhada nos servios de sade (World Health Organization, 1997), embora vrios estudos (Marinheiro, 2004; Pedrosa, 2003; Schraiber et al., 2003; Sugg, Inui, 1992) afirmem que os profissionais de sade apresentam dificuldades em lidar com essa problemtica.
poder, que designa mulher o papel de sexo frgil, permitindo, assim, o controle sobre ela, ao impedir sua participao na vida poltica, social e econmica, de modo a consolidar o poder e naturalizar as posies masculinas e femininas como desiguais. Por conseguinte, gnero um conceito-chave para analisar a relao de subordinao das mulheres e a mudana social e poltica. Corresponde a uma categoria histrica e, por essa razo, passvel de ser modificada. Segundo Chau (1984) a violncia capaz de alienar o sujeito, mantendo-o na relao sem que este perceba que suas vontades e aes esto merc do dominador. O sujeito no percebe sua perda de autonomia. A perda de autonomia, a alienao e sujeio da vontade aos caprichos do outro, configuram violao dos direitos humanos, que so utilizados como parmetros na definio de violncia, compreendendo-a como todo ato capaz de viol-los (Saffioti, 2004). Por violncia fsica entende-se todo e qualquer ato que objetive causar dano cometido por meio do uso de fora fsica ou utilizando algum tipo de arma ou instrumento que possa causar leses internas, externas ou ambas. A violncia psicolgica inclui toda ao ou omisso que causa ou destina-se a causar dano autoestima, identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. A violncia sexual toda ao na qual uma pessoa, em situao de poder, obriga outra realizao de prticas sexuais, mediante fora fsica, influncia psicolgica ou uso de armas ou drogas (Day et al., 2003). Podemos observar que as violncias cometidas contra a mulher assumem vrias formas e, ainda, que o lar um fator de risco para a violncia (Azevedo, 1985). As mulheres vtimas da violncia domstica, segundo mostram os registros da Delegacia de Defesa da Mulher em So Paulo, em 60% dos casos continuam vivendo com seus agressores depois de registrada a queixa (Verardo, 1997). Esses dados denunciam que eventos violentos ocorridos no ambiente familiar no so nomeados como violncia. Ainda que muitas mulheres descaracterizam ou no percebem o que lhes ocorre como violncia, mesmo que muitas vezes a situao domstica seja extremamente conturbada e as hostilidades perpetradas pelo parceiro ntimo sejam reiteradas, existe uma tendncia a negar a violncia, o que contribui para manter a invisibilidade do problema (Schraiber et al., 2002). Para compreendermos o fenmeno da violncia de gnero devemos descartar as posies deterministas e reducionistas, que apresentam a mulher como passiva e vtima de uma situao imposta. Gregori (1993) afirma que a violncia entre parceiros ntimos determinada por um conflito entre as partes envolvidas, ocorre em uma relao entre gneros, sendo a agresso uma forma enviesada de comunicao resultante de uma negociao malsucedida por diversas motivaes. Destaca que as mulheres participam ativamente desse processo e sustenta que as agresses seriam novas formas de relacionamento, isentas de acordos, entendimentos ou negociaes. O reconhecimento da participao ativa da mulher no desencadeamento da violncia no significa afirmar que ambos encontram-se na mesma posio em relao ao gnero, ou seja, homens e mulheres no detm o poder de maneira igualitria. A mulher participa da relao violenta, podendo at desencade-la, porm mais penalizada do que seu parceiro nessa relao (Saffioti, 2004). A incorporao da violncia contra a mulher como objeto do campo da sade recente. Segundo apontam Schraiber e DOliveira (1999), a partir da dcada de 1980, por meio do movimento feminista, a violncia domstica contra a mulher comeou a ganhar visibilidade na esfera pblica, alocando-se inicialmente nos mbitos jurdico e policial. Devido s dificuldades percebidas na dcada de 1990, buscaram-se novas estratgias para se abordar a violncia perpetrada pelo parceiro ntimo a partir de trs campos: a sade, os direitos humanos e o desenvolvimento social, pelo prestgio reconhecido na agenda internacional e por disponibilizarem ferramentas prticas e tericas para o manejo da violncia. Considerando ser este um problema de sade pblica, os profissionais de sade e as usurias dos servios so atores que protagonizam esse cenrio. No presente estudo voltaremos nossa ateno ao papel dos profissionais de sade, buscando apreender suas percepes quanto problemtica e ao papel que desempenham perante essas mulheres.
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atendimento das mulheres em situao de violncia (Brasil, 2004). Entretanto, sabe-se que os profissionais no identificam ou no registram a violncia nos pronturios mdicos como parte do atendimento realizado (Garcia-Moreno et al., 2005; Kiss, 2004). Apesar dos nmeros chocantes apontados pelas estatsticas, estudos referem que muitas mulheres procuram atendimento nos servios de sade para tratar de seus sintomas fsicos, mas no relatam aos profissionais como eles foram desencadeados, omitindo a violncia domstica (Marinheiro, 2004). Pedrosa (2003) corrobora essa suspeita aps entrevistar profissionais de sade em Ribeiro Preto-SP , que relataram no ter capacitao suficiente, nem contar com um ambiente de trabalho que promova uma estrutura adequada para lidar com situaes de violncia, embora soubessem da importncia da escuta e do acolhimento. Sugg e Innui (1992) detectaram algumas barreiras para a atuao eficaz dos mdicos diante da violncia, tais como: falta de tempo; probabilidade de se identificarem com seus pacientes, o que dificulta a visibilidade dos casos de violncia domstica, por no acreditarem que pessoas, assim como eles, possam pertencer a um grupo de risco; medo de ofender os pacientes, por acreditarem que se trata de um assunto privado; sentimento de impotncia diante dos abusos cometidos e da perda de controle, pois se decepcionam ao depararem com a inabilidade dos pacientes em controlar suas vidas, e tambm ficam desapontados com sua prpria impossibilidade de controlar os comportamentos dos pacientes. Rodrguez-Bolaos, Mrquez-Serrano e Kageyama-Escobar (2005) destacam outras barreiras, que impedem a identificao e encaminhamento dos casos de violncia. Para esses autores, os mdicos temem por sua segurana pessoal, no querem se envolver com questes judiciais, desconhecem locais para encaminhar as mulheres e no acreditam que o servio de sade seja um local adequado para tratar casos de violncia. Alm disso, os profissionais tendem a desconfiar que as mulheres estejam realmente falando a verdade e acreditam que suas atitudes podem no contribuir para solucionar o problema. Existem tambm barreiras institucionais, considerando que a instituio no oferece suporte ao atendimento, nem espaos privados para realizar a consulta, sem contar a falta de capacitao profissional. Destaca-se tambm que no esto sendo completamente cumpridas as normas de ateno estabelecidas, que contemplam identificao, valorizao do risco, fortalecimento, orientao, referncia e registro. Para Schraiber et al. (2003), o fato de a linguagem entre profissionais e usurias ser muito diferente um aspecto fundamental na dificuldade de se trabalhar com o tema. H um hiato entre o que os profissionais entendem como sendo um problema de sade e o que as usurias buscam nos servios. Por essas razes, as demandas trazidas pelas usurias no tm lugar reconhecido entre os profissionais, pois no existem canais de expresso ou de comunicao entre eles, por falta de cdigos de linguagem em comum e consenso em relao s nomeaes prprias a respeito dessa questo. A dinmica dominante na situao : a mulher no fala e os profissionais no perguntam, denunciando a dificuldade da comunicao, o silncio e a invisibilidade do problema como consequncias de sentimentos de medo, vergonha, preconceito ou descrdito de ambas as partes. Portanto, ao constatarmos a importncia do processo de comunicao para o atendimento das mulheres em situao de violncia, consideramos o mdico locado nas unidades de sade como agente mediador e interlocutor, que, no contato com as usurias, torna-se pea-chave para acolher, desenvolver possveis intervenes e encaminhamentos. Sendo assim, acreditamos que um passo importante a ser dado compreender a percepo desses profissionais sobre a violncia de gnero, alm de identificar quais os procedimentos e intervenes adotados para investigar sua ocorrncia. Dessa forma, este estudo teve por objetivo investigar a percepo dos mdicos que atuam nas unidades bsicas de sade de Ribeiro Preto-SP sobre a violncia praticada contra mulheres por parceiros ntimos.
Trajetria metodolgica
Em virtude da natureza do fenmeno, optamos por realizar uma pesquisa de cunho qualitativo, uma vez que este mtodo volta-se para os aspectos subjetivos, que possibilitam um aprofundamento nas
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redes de significaes das aes e relaes humanas, buscando-se compreender a realidade vivenciada por esses profissionais (Minayo, 2001). Para termos acesso aos significados que os profissionais constroem acerca da violncia contra a mulher, elegemos, como instrumento, a entrevista semiestruturada. Um roteiro temtico foi elaborado com o intuito de contemplar os seguintes tpicos: percepo sobre a violncia domstica contra a mulher, atuao profissional diante da violncia domstica, e conhecimentos tericos e prticos para possveis encaminhamentos. Elegemos, como critrios de incluso, que os mdicos trabalhassem nas unidades bsicas de sade de Ribeiro Preto-SP , localizadas nos cinco distritos sanitrios do municpio; fossem clnicos gerais (CG) ou ginecologistas-obstetras (GO); atendessem mulheres em sua prtica profissional; e concordassem em participar da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com as normas preconizadas pela resoluo no 196/96 do Conselho Nacional de Sade. Obtida a autorizao institucional e aps a aprovao no Comit de tica em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo, realizamos pr-teste do instrumento para ajustar o roteiro. A aplicao-piloto abrangeu cinco entrevistas com profissionais que preenchiam os critrios de seleo e que no foram includos no estudo. Alm disso, realizamos uma aproximao com o campo, com o intuito de nos ambientarmos e nos aculturarmos no contexto. Selecionamos os entrevistados conforme os critrios definidos e realizamos 14 entrevistas com o auxlio do gravador, no perodo de junho a agosto de 2007. O critrio de saturao foi utilizado para interromper a coleta de dados. No processo de coleta de dados, deparamo-nos com dificuldades que estenderam nossa permanncia no trabalho de campo entre elas, em vinte das visitas que realizamos nas unidades de sade, no foi possvel falar pessoalmente com os mdicos por razes diversas: no estavam presentes nas unidades, alegaram que no tinham tempo ou que no estavam disponveis para conceder a entrevista. Nesse caso, as enfermeiras ou os responsveis pelo servio sugeriam-nos que retornssemos em outros dias e em horrios diferentes, o que poderia favorecer a realizao da coleta. Alm disso, cinco mdicos negaram-se prontamente a colaborar com o estudo, alegando que no tinham tempo, nem interesse em contribuir com a pesquisa. Tanto as recusas frontais, como as sutis que se materializaram em esquivas apoiadas em pretextos banais, embora compreensveis, como falta de tempo so comportamentos que sinalizam uma predisposio negativa em relao temtica abordada no estudo ou, mais genericamente, uma indisposio em colaborar com investigao cientfica na qual no se vislumbra um interesse ou oportunidade de obter benefcio imediato. Por outro lado, preciso considerar que tais recusas, alm das dificuldades no agendamento das entrevistas com os outros mdicos, podem resultar em um vis de seleo, pois os informantes que se recusaram poderiam ser ainda mais avessos temtica do que aqueles que aceitaram participar. O perfil dos participantes foi delineado conforme os dados obtidos nas entrevistas. Dentre os 14 entrevistados figuram: oito homens e seis mulheres com idades variando entre 29 a 57 anos; 12 viviam com parceiro fixo e dois eram solteiros; quanto s suas especialidades mdicas, nove eram GO e cinco CG; em relao distribuio por local de trabalho, trs atuavam no distrito leste, dois no sul, trs no oeste, dois no norte e quatro no distrito central; o tempo de formao dos profissionais variou entre quatro e 36 anos; e, por fim, o tempo de atuao na Secretaria Municipal de Sade variou entre um a 25 anos. Para garantir o anonimato dos participantes, optamos por descrev-los com base em algumas caractersticas, tais como: especialidade, sexo e idade. As entrevistas foram transcritas na ntegra e literalmente. Para sistematizar os resultados utilizamos o mtodo de anlise de contedo temtico proposto por Bardin (1977), o que nos possibilitou identificar os ncleos de sentido que emanavam dos discursos dos mdicos entrevistados. Para tanto, realizamos uma primeira leitura flutuante do material transcrito para nos aproximarmos dos contedos abordados pelos entrevistados, o que permitiu que nos familiarizssemos com suas impresses. Vrias releituras exaustivas foram realizadas e possibilitaram um aprofundamento no exame dos relatos, assim como destacar eixos norteadores para a interpretao. Seguimos a anlise organizando os dados de acordo com os temas utilizados para elaborao do roteiro de entrevista. Concluda essa etapa do processo, elaboramos uma classificao dos contedos por meio do desmembramento dos relatos, para identificar as ideias principais, assim como as estruturas relevantes abordadas pelos entrevistados. Sendo assim,
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destacamos alguns temas que se consolidaram a partir da comparao dos eixos norteadores do roteiro de entrevista com o material que emergiu dos discursos dos participantes. Como referencial terico para dar suporte anlise de contedo, utilizamos as noes de gnero abordadas anteriormente. Entendemos que esse fundamento terico capaz de nos proporcionar a compreenso das representaes dos profissionais de sade, tanto a partir de sua insero como sujeitos sociais quanto a partir do que eles destacam acerca de suas representaes das relaes estabelecidas entre homens e mulheres. Partimos do pressuposto de que essas representaes so as pautas orientadoras para sua atuao profissional diante da violncia contra a mulher.
Resultados e discusso
Para a construo dos resultados analisamos os eixos norteadores: conhecimentos sobre os tipos e gravidade da violncia de gnero; percepes acerca de quem a mulher que se encontra em situao de violncia; a prtica mdica frente a essa situao; as possibilidades de interveno profissional e percepo de barreiras para o atendimento. Outras temticas que emergiram no decorrer das entrevistas no sero abordadas neste estudo. No que diz respeito ao conhecimento sobre os tipos e gravidade da violncia de gnero, todos os mdicos afirmam conhecer a violncia fsica e psicolgica. Alguns denominam esta ltima de violncia verbal. A violncia sexual foi a menos mencionada nos discursos. Alm do destaque dado violncia fsica, percebemos, a partir dos relatos coligidos, que os mdicos reconhecem que privar a mulher de frequentar o espao pblico, impedi-la de trabalhar e depreciar o desempenho de suas atividades domsticas so expresses de violncia, assim como manter relao sexual sem o consentimento da parceira. Outra ideia abordada pelos profissionais foi a de que a violncia surge a partir do momento em que h transgresso do respeito pela individualidade da mulher. Dois mdicos destacaram que, em se tratando de violncia psicolgica, a mulher tambm participa ao depreciar o trabalho e outros aspectos relacionados vida do homem. Esses achados esto de acordo com Gregori (1993), que destaca a participao ativa da mulher na situao de violncia. Em relao s percepes da gravidade da violncia presentes nas falas dos profissionais, a maior parte acredita que a violncia psicolgica a mais grave, pois a prpria mulher apresenta dificuldade em reconhec-la como algo prejudicial sua sade, a ponto de, frequentemente, permanecer exposta situao durante anos a fio. Alm disso, a constatao do agravo torna a tarefa mais rdua, uma vez que implica mobilizar recursos para superar a situao. Outra ideia que surgiu nos relatos a de que, por ser mais difcil o profissional detectar a violncia e a prpria mulher reconhec-la como tal, os mdicos sentem-se limitados para abord-la ou aplicar qualquer tipo de interveno. Destaca-se a fala de profissionais que afirmam que a violncia psquica causa dependncia emocional da mulher em relao ao homem, dando margem para o surgimento das violncias fsica e sexual. As passagens a seguir ilustram essas idias:
[...] eu acho que a pior em termos, at para diagnosticar, para pessoa perceber que est passando, eu acho que a violncia emocional, aquela um pouco ligada dependncia [...] difcil s vezes voc quebrar isto, eu acho que a pior, a pior. At porque, junto com ela, vem a dependncia emocional, vem, futuramente, s vezes uma violncia fsica, uma violncia sexual, eu acho que a pior. (GO2, mulher, 37 anos) [...] mais grave mesmo, do ponto de vista existencial, a violncia psquica. Por qu? Porque ela suportvel. Ento fica aquele casal se suportando anos [...] anos, n. Especialmente a mulher suportando o homem. Mas a mulher tambm evidentemente que ela bilateral essa revolta. E a violncia fsica de um modo geral, ela permite a definio mais rpida da situao. (CG5, homem, 57 anos)
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Esses discursos remetem-nos definio de violncia abordada por Chau (1984), ao propor que os agressores buscam manter a parceria e estabelecer relaes hierrquicas, tornando desiguais as diferenas, visando dominar, explorar e oprimir, contudo sem que o indivduo perceba-se imerso nessa situao, alienando-o, impedindo o exerccio de sua autonomia e sujeitando-o humilhao e opresso. A violncia psicolgica provoca feridas na alma, muitas vezes mais difceis de curar do que as marcas fsicas, e constantemente acompanhada por outras formas de violncias (Saffioti, 2004). Outro ponto que constatamos refere-se s percepes acerca de quem a mulher que se encontra em situao de violncia. De acordo com os profissionais, a permanncia das usurias em um relacionamento marcado pela violncia deve-se a mltiplos fatores, destacando-se, sobretudo: o medo de represlia do parceiro, a dependncia financeira e emocional, e o medo de perder os filhos. Esses aspectos esto diretamente relacionados s questes de gnero, ou seja, a posio social inferior ocupada pela mulher justifica e naturaliza a violncia, que tende a se perpetuar. O relato a seguir apresenta essas consideraes:
Porque a situao de vida dessas mulheres muito complicada. Elas dependem do marido financeiramente, n no tm coragem de largar por causa dos filhos porque ele que banca a casa. [...] educacional, as famlias so muito ignorantes, sem instruo nenhuma, muito broncas foram criadas assim, como uma mulher muito subjugada. Como que voc vai mudar isso na cabea de uma pessoa, n? Fazer a mulher entender que ela igual ao marido dela. Que ela tem que se posicionar com ele de igual pra igual. Mas no adianta, ela no foi criada assim. O cara no v ela assim, ela no se v assim, entendeu?. (GO5, mulher, 30 anos)
Chama a ateno o preconceito de classe dos profissionais, que frequentemente desqualificam as mulheres, com expresses como as famlias so muito ignorantes. Essa viso desqualificadora das usurias pe em relevo a assimetria que marca as relaes de poder, tanto na hierarquia de gnero como na estrutura de classes. preciso lembrar que a medicina cientfica, desde sua origem no projeto de medicalizao do corpo feminino, se afirma como uma profisso masculina e misgina (Vieira, 2002). Ainda hoje constitui um nicho de poder masculino, o que vale tambm para as mulheres mdicas, submetidas mesma ordem do discurso. Para Piscitelli (2002), devido construo social do papel da mulher ou seja, quando se trata do feminino social, o gnero a mulher ocupa uma posio de dependncia em relao ao homem, que seria o provedor de suas necessidades materiais. mulher destinado o espao privado, ou seja, a responsabilidade pelo desempenho das tarefas domsticas e pelo cuidado dos filhos, naturalizando-se as relaes de gnero. Seu permetro de domnio delimitado pelo lar, e a possibilidade de perder suas funes tradicionais significaria abrir mo de suas conquistas e de sua relevncia social. Seguindo-se essa linha de raciocnio, a mulher permanece na relao por no ser capaz de visualizar outras possibilidades para sua vida, o que contribui para a cronicidade da violncia, destacada por Oliveira (2001) e Saffioti (2004), que afirmam que esta se desenvolve em um ciclo vicioso e, com o passar dos anos, tende a se tornar mais grave e intensa. Nos deparamos, assim, com as questes de gnero na gnese da violncia perpetrada por parceiro ntimo. Por meio da hierarquia de gnero, a mulher designada como dcil, submissa, emotiva, resignada e cuidadora, enquanto o homem deve ser agressivo, corajoso, destemido, arrojado e provedor. Essas noes manifestam-se no discurso dos mdicos ao destacarem que as mulheres, mesmo reconhecendo a situao de violncia a que esto expostas, aceitam-na como algo natural e inevitvel, portanto, inquestionvel e imutvel. No que se refere prtica mdica frente situao de violncia, pudemos depreender dos discursos que os profissionais so capazes de identificar usurias que sofrem agresso, seja devido s marcas fsicas deixadas em seus corpos ou aos sintomas associados, tais como: somatizaes, queixas infundadas e desconfortos difusos, angstia, depresso, dispaurenia (dores ao manter relao sexual), entre outras manifestaes. Outro elemento que contribui para a identificao da violncia o relato produzido pelas mulheres, ao serem questionadas, conforme podemos verificar nas passagens a seguir:
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[...] a gente percebe (silncio). Percebe como? Primeiro, pode ser pelas leses que ela tem. E ela fala assim: Ah. Eu escorreguei e bati o olho. Mas a gente percebe, quando tem um hematoma. Ah. Eu escorreguei e bati o olho. Esse hematoma, no que escorregou... claro que ela levou um soco do marido, s que ela no quer falar. A gente percebe assim, s vezes conversando um pouco... [...] s vezes eu fico 15, vinte minutos conversando com ela, tento ganhar confiana dela ... para ver se ela conversa alguma coisa, se ela faz alguma coisa. (GO3, homem, 52 anos) Eu j tive pacientes que me revelaram, mas elas no vieram com essa queixa, entendeu? Isso foi uma coisa que... a gente comea retirando conforme a gente vai colhendo a histria. [...] Normalmente porque t tendo dor pra tudo quanto lado. E t vivendo com angstia, so os casos de depresso. (CG1, mulher, 36 anos)
As diferenas de classe se expressam em um olhar de estranhamento e suspeio que o profissional dirige s mulheres atendidas na rede pblica. O mdico no hesita em lanar mo dos esteretipos de gnero para interpretar as vrias situaes de violncia. Desse modo, sua percepo sobre essas mulheres parece estar calcada nas diferenas de situao socioeconmica e educacional das pacientes assistidas na rede pblica, que complementada por uma viso de gnero. Esta se evidencia quando se pressupe que as mulheres querem permanecer nessa situao, aceitam ser subjugadas e inferiorizadas, ou mentem deliberadamente para proteger seus parceiros violentos. Essa viso ancorada em preceitos que reforam o esteretipo de gnero sobre a condio feminina em nossa sociedade. Outro estudo encontrou resultados semelhantes (Kiss, 2004). Os relatos sugerem que as mulheres em situao de violncia no necessariamente buscam as unidades de sade para tratar das leses, mas chegam aos servios com as mais variadas demandas. Foi possvel identificar no discurso de vrios entrevistados que a relao estabelecida entre mdico e paciente promove um sentimento de confiana, que viabiliza a abertura de um canal de comunicao da mulher com o profissional. Os mdicos conseguem identificar que essas queixas, mesmo quando a mulher nega a situao de violncia tais como dores difusas, muitas vezes sem explicaes fsicas que as justifiquem , podem estar relacionadas a outros determinantes. Algumas vezes, por meio do dilogo estabelecido com essas mulheres, eles terminam por confirmar a exposio situao de violncia. As entrevistas indicam que, apesar de essas mulheres chegarem aos servios com queixas diversas, que primeira vista no so necessariamente relacionadas violncia, os profissionais so capazes de identificar essa conexo. Assim, ao estabelecerem uma relao de confiana e intimidade com suas pacientes, possibilitam que a violncia domstica perca sua aura de invisibilidade. Os profissionais reconhecem tambm que existem casos que eles no so capazes de identificar, tal como mostra o relato a seguir:
A mulher eu acho que muito mais do que a gente estima que a maioria das pacientes eu acho que nem falam, n. E se a gente no percebe pelo o que ela falou, se no tem nenhuma marca no corpo a gente no fica sabendo, n. (GO5, mulher, 30 anos)
Frente identificao dos casos de violncia, os mdicos lanam mo de uma gama diversificada de possibilidades de intervenes profissionais, conforme cada caso, tais como: tratar ferimentos; dar apoio moral; orientar e esclarecer a usuria de que aquela situao lhe prejudicial e que existem recursos para alterar aquele panorama; notificar; encaminhar para os mais variados servios multidisciplinares. Selecionamos dois relatos que retratam as atitudes dos profissionais ao serem questionados sobre como agir frente a uma mulher que se encontra em situao de violncia:
Eu acho que a primeira coisa identificar, n. Voc tentar identificar o problema. A, tentar... ah... falei assim, tentar achar uma maneira de tentar ajudar, mandar, encaminhar pro psiclogo, mesmo que seja difcil, tentar ir abordando de forma... devagar pra conseguir encaminhar a paciente. (GO4, mulher, 29 anos)
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Eu acho que isso fazer isso orientar: o senhor acha que eu devo o senhor acha que eu devo denunciar? [...] Eu acho que deve. Dar fora nesse aspecto eu acho que esclarecer, esclarecer, n [...] mas, pelo menos orientar e achar o que mais lgico de se fazer. Deixar assim alertar, orientar mostrar que no desse jeito. Principalmente quando voc tem confiana, n de ela poder te dizer isso, elas confiam, n no vo dizer pra qualquer um. Chegar no ponto de falar com o mdico, n. Eu acho que isso. (CG4, homem, 47 anos)
Schraiber et al. (2002), ao destacarem a importncia dos servios de sade para o enfrentamento da violncia, afirmam que esses locais so portas de entrada para mulheres, sendo, portanto, necessrio identificar os casos por meio do dilogo, para que ocorra o acolhimento e o encaminhamento adequados, estratgia condizente com as necessidades do cuidado integral. Carreira e Pandjiarjian (2003), ao apoiarem a criao de uma rede intra e intersetorial para lidar com a violncia de gnero, destacam que fundamental uma viso integrada, que inclua a preveno-identificao para um correto encaminhamento-atendimento dessas mulheres. Pautados nesses autores, enfatizamos que o encaminhamento, para alm da dimenso do acolhimento, seria uma alternativa eficaz de dar prosseguimento assistncia a uma situao de combate violncia, visando um melhor prognstico para a usuria. Para os mdicos que trabalham nas unidades de sade, os locais mais referidos para se encaminhar uma mulher em situao de violncia domstica foram: a Delegacia de Defesa da Mulher, nos casos de violncia fsica, e, nos casos de agresso sexual, o Hospital das Clnicas, por possuir um servio especializado para tratar desse tipo de violncia. Outra alternativa de encaminhamento que surgiu nos relatos foram os servios de sade mental, por disponibilizarem terapia de casal. Alm disso, pudemos constatar que parte dos entrevistados desconhece os recursos comunitrios disponveis para possveis encaminhamentos dessas usurias, delegando ao servio de enfermagem tal funo. Houve ainda uma parcela de profissionais que afirmou no conhecer os procedimentos adequados para dar andamento aos casos de agresso:
Ento porque eu atendo aqui da eu preencho esse protocolo e passo pra enfermeira. Da a enfermeira que vai ento eu no sei te falar pra onde ir. A enfermeira que vai tomar essas providncias. Ento eu no sei pra onde eu mando a mulher, no sei. (GO6, homem, 41 anos) Eu no sei quais os passos certinho, assim a gente fala: oh, procura a delegacia Mas tambm no sei dizer com detalhes, no. No sei se tem algum servio de apoio psicolgico, no sei. (GO5, mulher, 30 anos)
Essas passagens acabam por denunciar uma situao preocupante, tambm apontada por Pedrosa (2003) ao referir que os mdicos no esto capacitados para lidar com usurias que chegam aos servios de sade em situao de violncia a que esto expostas muitas vezes cronicamente. A falta de capacitao destacada pelos participantes como uma barreira para o atendimento dessas mulheres, uma vez que muitos deles reforam a necessidade de um treinamento voltado especificamente para os casos de violncia de gnero. Esse achado congruente com outros estudos, como os de Rodrguez-Bolaos et al. (2005), Schraiber et al. (2003, 2002) e Schraiber e DOliveira (1999). Alm dessas, outras barreiras institucionais so referidas nos discursos dos profissionais, tais como: a falta de tempo para abordar a paciente; a falta de estrutura do sistema, que no disponibiliza profissionais suficientes e, ainda, a falta de capacitao de outros rgos envolvidos na rede de apoio e assistncia, sobretudo a polcia, a qual, segundo os mdicos, no faz nada. Essas barreiras institucionais so destacadas nos relatos a seguir:
Ai... na verdade o que eu t fazendo muito pouco. Porque voc comea... voc esbarra em tantas dificuldades aqui.... primeiro que c quase no tem tempo... voc acaba tendo que... eu... 15 minutos a consulta, mas pra voc fazer uma orientao sexual mesmo, voc tem
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que... ou, ento, de agresso, de conversar com a mulher, muito mais que isso, ento esse um obstculo. (GO4, mulher, 29 anos) Tambm, como ajudar ela? Eu dou os conselhos, tudo bem. Tem mulher que quer sair desta situao, s que no acha um lugar onde ela pode ser ajudada. Onde poderiam ajudar? a polcia, s que a polcia no faz nada. Tem a Delegacia da Mulher, que ela disse que fez vrios BOs, s que a polcia tambm no faz nada. E ela continua apanhando. (GO3, homem, 52 anos) [...] Eu acho que essa uma inadequao do servio pblico. Por exemplo, n qu que adianta eu estar detectando e no conseguir trabalhar o qu que aquela violncia pode estar fazendo na vida da pessoa, at pra que ela tenha condies de mudana ou de enfrentar a situao de outra forma? Eu no tenho tempo eu no tenho formao pra isso e no tenho o que fazer, pra onde encaminhar. (GO7, mulher, 48 anos)
Chama a ateno que vrios profissionais partem do pressuposto de que no h nada a ser feito, uma vez que as mulheres e/ou os servios e/ou as delegacias de polcia no colaboram. Desse modo, subestimam a importncia da deteco e encaminhamento, bem como o trabalho em rede. Alm das barreiras institucionais, encontramos, no relato dos mdicos, barreiras pessoais, que muitas vezes os impedem de agir adequadamente frente a uma situao de violncia. Entre elas, destacam-se: os mdicos sentem-se impotentes frente s atitudes que a mulher possa vir a tomar, mesmo depois de orientada; afirmam que temem tomar qualquer atitude por medo da reao do agressor. Podemos inferir essas dificuldades nos relatos a seguir:
Que ela veio uma vez com espancamento... e, assim... ela foi muito espancada, tava com marcas no pescoo. A eu falei pra ela procurar a Delegacia, fazer queixa... ir atrs. A o marido... ela... ela voltou com o marido e o marido veio aqui tirar satisfao: por que eu mandei ela fazer queixa? uma situao complicada. Mas a gente tem que orientar sempre... obrigao nossa orientar pra procurar a delegacia. (GO4, mulher, 29 anos)
Esses resultados so convergentes com diversos estudos realizados sobre a violncia de gnero (Rodrguez-Bolaos et al., 2005; Kiss, 2004), no que diz respeito s barreiras destacadas pelos profissionais de sade para identificar e lidar com casos de violncia. Frente a isso, Schraiber et al. (2002) propem algumas estratgias: a comunicao, a capacitao e a implicao das instituies com o fenmeno abordado seriam os meios pelos quais a violncia domstica poderia finalmente ter seu espao reservado na agenda do sistema pblico de sade. Alm disso, deveria ser mais desenvolvida uma rede de apoio multidisciplinar, que integrasse as reas de sade, segurana pblica, educao, assistncia psicossocial, entre outras, contribuindo para a preveno e o combate da violncia domstica contra a mulher (Carreira, Pandjiarjian, 2003).
Concluso
O presente estudo explora um tema relevante e atual para a rea da sade pblica, visto sob a tica dos profissionais. Os resultados revelaram que os mdicos detm alguns conhecimentos acerca dos tipos de violncia de gnero e so capazes de identificar e, muitas vezes, acolher as mulheres que esto expostas situao. Contudo, destacam uma srie de dificuldades para atuarem frente a uma usuria que apresenta essa problemtica, e reconhecem a falta de capacitao profissional, alm de outras barreiras pessoais e institucionais, que limitam sua atuao, tanto em nvel preventivo como interventivo. Algumas caractersticas da interao mdico-paciente tambm se mostraram teis para a compreenso do fenmeno investigado. A percepo dos mdicos sobre a violncia perpetrada por
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parceiro ntimo influenciada pela condio social da mulher assistida no Sistema nico de Sade, que fortemente desqualificada. A essa dimenso dos preconceitos de classe dos profissionais se acopla a das relaes de gnero, o que implica que a hierarquia de classe e a hierarquia de gnero se complementam e potencializam, atualizando, no interior da relao mdico-paciente, a subordinao histrica das mulheres. Frente aos resultados obtidos, podemos questionar se as dificuldades e barreiras destacadas pelos mdicos no estariam denunciando que a violncia, alm de ser invisvel como abordada em estudos anteriores no seria por vezes ignorada e negligenciada, visto que muitos profissionais no se sentem seguros, nem capacitados para lidar com mulheres expostas situao de violncia. Ser que no poderamos falar em uma invisibilidade institucional, uma vez que os profissionais no so preparados para as mais variadas situaes que possam surgir em seu cotidiano, alm do fato de a rede pblica no disponibilizar uma estrutura capaz de dar suporte permanente a essas demandas? Ao apontarem a singularidade da percepo dos mdicos, os resultados sugerem a necessidade de um trabalho integrado e em rede, que oferea uma resposta efetiva para o problema da violncia de gnero. Alm disso, preciso investir na qualificao dos outros profissionais de sade, alm dos mdicos, para que se viabilize um atendimento multidisciplinar. Nessa vertente, apontamos a importncia de haver outros profissionais mais capacitados para a escuta, que no necessariamente o mdico, uma vez que este dispe de apenas 15 minutos para a consulta. Como apontam outros estudos, tambm preciso oferecer superviso interdisciplinar, para possibilitar que a rede seja capaz de oferecer uma infraestrutura que d suporte a essa demanda. Finalmente, preciso dar ateno para as questes de gnero e de classe que atravessam as percepes que os profissionais tm em relao ao fenmeno da violncia domstica e s mulheres acometidas, para que os servios de sade se constituam em espaos de acolhimento e apoio, integrando-se efetivamente rede de atendimento.
Colaboradores Fernanda Garbelini De Ferrante coletou e analisou os dados e redigiu este artigo sob superviso de Elisabeth Meloni Vieira, que desenhou e orientou o estudo. Manoel Antnio dos Santos participou da anlise dos dados e da redao final do manuscrito. Referncias ANGULO-TUESTA, A.J. Gnero e violncia no mbito domstico: a perspectiva dos profissionais de sade. 1997. Dissertao (Mestrado) Escola Nacional de Sade Pblica, Fundao Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 1997. AZEVEDO, M.A. Mulheres espancadas: a violncia denunciada. So Paulo: Cortez, 1985. BARDIN, L. Anlise de contedo. Lisboa: Press Universitaires de France, 1977. BRASIL. Ministrio da Sade. Poltica Nacional de Ateno Integral Sade da Mulher: princpios e diretrizes. Secretaria de Ateno Sade. Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Braslia: Ministrio da Sade, 2004. CARREIRA, D.; PANDJIARJIAN, V. Vem pra roda! Vem pra rede!: guia de apoio construo de redes de servios para o enfrentamento da violncia contra a mulher. So Paulo: Rede Mulher de Educao, 2003. CHAU, M. Participando do debate sobre mulher e violncia. In: FRANCHETTO, B.; CAVALCANTI, M. L.V.C.; HEILBORN, M.L. (Orgs.). Perspectivas antropolgicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. v.4. p.23-62.
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Palabras clave: Violencia contra la mujer. Mdicos. Personal de salud. Atencin primaria de salud. Salud de la mujer.
Recebido em 10/10/08. Aprovado em 19/07/09.
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SCOTT, J.W. Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press, 1988.
Trabalho em sade e a implantao do acolhimento na ateno primria sade: afeto, empatia ou alteridade?
Alessandro da Silva Scholze1 Carlos Francisco Duarte Junior2 Yolanda Flores e Silva3
SCHOLZE, A.S.; DUARTE JUNIOR, C.F .; FLORES E SILVA, Y. Health work and the implementation of user embracement in primary healthcare: affection, empathy or alterity?. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.303-14, out./dez. 2009. We conducted a theoretical reflection on the work of primary healthcare professionals in the scope of user embracement, searching for possibilities to overcome alienation in their production process, based on experience reports regarding user embracement implementation in primary healthcare services. We identified the following theoretical perspectives which we consider useful in order to enhance humanization in the work in the health area and also to foster subjectivity in interpersonal relationships: affection, empathy and alterity. Although they are closely related to each other, we believe alterity is the theoretical perspective that is able to give the health worker conditions to develop user embracement while ensuring his/her own humanization. Alterity opens possibilities to cope with everyday situations in the healthcare services, providing health professionals with the conditions to work without restricting themselves to a biomedical point of view and, at the same time, preserving their own health. Desenvolvemos uma reflexo terica sobre o trabalho na Ateno Primria Sade (APS) na diretriz do acolhimento, buscando possibilidades de superar a alienao em seu processo produtivo, a partir de relatos de experincia da implantao do acolhimento em servios de APS. Identificamos as seguintes perspectivas tericas nas relaes interpessoais nos servios, com indicadores de avanos na humanizao do trabalho em sade e de uma aproximao com a subjetividade: afeto, empatia e alteridade. Ainda que todas sejam adequadas e mesmo complementares entre si, fazemos nossa opo pela alteridade como perspectiva terica capaz de instrumentalizar o trabalhador da sade para desenvolver o acolhimento, sem deixar de garantir sua prpria humanizao. Esta abre possibilidades de enfrentamento das situaes do cotidiano dos servios de sade, oferecendo aos profissionais condies de construrem seu trabalho sem limit-lo perspectiva biomdica e preservando sua prpria sade.
1 Curso de Medicina, Universidade do Vale do Itaja (UNIVALI). Rua 3050, 300, apto. 101, Centro. Balnerio Cambori, SC, Brasil. 88.330-308. [email protected] 2 Curso de Medicina, UNIVALI. 3 Mestrado Profissional em Sade da Famlia e Gesto do Trabalho, UNIVALI.
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Introduo
A Poltica Nacional de Humanizao (PNH) da Ateno e Gesto no Sistema nico de Sade, chamada Humaniza SUS, foi desenvolvida de modo a qualificar o SUS e estabelecer, na prtica, suas diretrizes. Essa poltica foi uma resposta s evidncias do despreparo dos profissionais da sade para lidar com a dimenso subjetiva do cuidado, juntamente com a persistncia de modelos de gesto centralizados e verticais, que desapropriam o trabalhador de seu processo de trabalho (Brasil, 2006a). A PNH definiu como humanizao a valorizao dos diferentes sujeitos implicados no processo de produo de sade: usurios, trabalhadores e gestores (Brasil, 2006a, p.10). Esta deve ser implementada com base nos seguintes princpios: transversalidade, qualificando a comunicao no sistema; indissociabilidade entre ateno e gesto, garantindo a integralidade do cuidado ao identific-lo com os processos de trabalho e produo de sade; protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos. Este ltimo relaciona-se diretamente com o entendimento do trabalho como forma de produo de sujeitos, assumindo que a autonomia destes nos processos de gesto e cuidado garante maior efetividade nas mudanas do sistema de sade. O acolhimento uma das diretrizes da PNH e tem se tornado sua face mais visvel, especialmente na Ateno Primria Sade (APS), pelas consequncias diretas que pode determinar no acesso dos usurios como uma mudana no processo de trabalho, a fim de atender todos aqueles que buscarem o servio de sade. Desse modo, o princpio da universalidade estabelecido de forma qualitativa, no apenas pelo aumento no nmero de unidades ou profissionais na rede de sade, mas pela incluso de toda a equipe de sade no processo de ateno, aproveitando a capacidade clnica de profissionais que apenas serviam de intermedirios para a consulta mdica. Esses profissionais devem criar espaos no servio de sade que permitam uma escuta qualificada, conduzindo responsabilizao pelo problema do usurio e dando-lhe uma resposta adequada (Brasil, 2006a; Silveira, 2004; Malta et al., 1998). A PNH prope o acolhimento como processo constitutivo das prticas de produo e promoo da sade, preocupando-se em incluir a sade do trabalhador em sade como parte das metas do SUS e de seus parmetros de avaliao. Porm, as propostas da PNH conduzem tanto a possibilidades de humanizao do trabalho no SUS como a novas exigncias, capazes de sobrecarregar ainda mais os profissionais de sade, caso estes no estejam instrumentalizados para lidar com o aumento de demanda gerado na ampliao qualitativa da universalidade e pela qual devem se responsabilizar. Nesse caso, ainda que bem intencionada, a proposta da humanizao com base no acolhimento gera condies adicionais para o surgimento da Sndrome de burnout do trabalhador em sade. Reconhecida como uma das principais doenas nos Estados Unidos e na Europa, o burnout um risco ocupacional para pessoas envolvidas nos cuidados em sade, iniciado com excessivos e prolongados estados de tenso no trabalho, atingindo mais intensamente os no especialistas, como as auxiliares de enfermagem. Suas manifestaes incluem: exausto emocional, perda de interesse em prticas profissionais inovadoras e sintomas fsicos diversos, com consequente perda de qualidade no trabalho e distanciamento nas relaes pessoais (Trigo; Teng, Hallak , 2007). O sofrimento no trabalho pode ainda ser mantido pelo desenvolvimento de estratgias defensivas que garantem a normalidade aparente e insensibilizam contra o que faz sofrer, como as demandas lanadas ao trabalhador em sade para construir um ambiente de humanizao e acolhimento dentro de um sistema que nega a subjetividade do trabalhador e do usurio. Esse trabalhador protege sua sade mental, de modo a tornar tolervel o sofrimento tico que experimenta ao infligir um sofrimento indevido ao outro, objetificando-o e a si mesmo num processo de produo de procedimentos, e no de sade (Dejours, 1999). Diante disso, construmos este artigo a partir de uma pesquisa de natureza bibliogrfica/terica sobre o trabalho dos profissionais de sade na perspectiva do acolhimento na APS no Brasil, com base nas categorias afeto, empatia e alteridade, apontadas como possibilidades tericas para superar a alienao em seu processo produtivo (Mayema, 2007; Brasil, 2006a, 2006b; Teixeira, 2005, 2004). Inspirando-nos em Minayo (2007), relacionamos tais possibilidades bibliogrficas/tericas com relatos de situaes prticas de implantao do acolhimento na APS, coletados em artigos cientficos identificados nas bases de dados da Bireme com a temtica acolhimento, especificando-se servios de sade, de 1998 a
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2008, e considerando a descrio das primeiras experincias at as mais atuais. O resultado dessa busca indicou 13 textos, dos quais apenas trs descreviam experincias. Considerando o nmero de textos disponveis para anlise, escolhemos acolhimento e APS como nossos novos descritores de busca e selecionamos outros nove trabalhos. A anlise e a interpretao do material disponvel resultaram da leitura compreensiva dos textos selecionados, problematizao das ideias a contidas sobre implantao do acolhimento e humanizao do trabalho, conduzindo-se um dilogo com as categorias previamente identificadas para elaborarmos uma sntese interpretativa.
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qual vive, a sociedade na qual convive com outros seres humanos, at suas prprias individualidades fsicas, espirituais e mentais. Por sua vez, Maturana (1997) definiu o humano a partir da linguagem que surgiu da intimidade na vida dos antepassados do homem que coordenavam suas aes ao compartilharem alimentos, participarem da criao dos filhos, exercerem sua sensualidade na vida cotidiana. Essas condutas consensuais coordenadas nos pequenos grupos eram, por sua vez, coordenadas pela linguagem, a qual tem uma base emocional; sem esta, a convivncia no seria possvel. O linguajar e a capacidade de se emocionar renem-se para constituir uma forma especfica de dilogo ou conversao, definindo o modo de viver do grupo humano considerado. A convivncia nos grupos humanos se d por interaes recorrentes. Quando essas interaes recorrem de forma espontnea, levando coexistncia dos elementos do grupo em aceitao mtua, identifica-se o amor como fenmeno biolgico. O amor expressa uma congruncia estrutural entre sistemas vivos que, no caso humano, pode acontecer nas diferentes formas possveis de viver juntos, mais prximas ou mais casuais, desde que baseadas na aceitao mtua. A emoo do amor origina o fenmeno social. Assim, um sistema social humano existe quando seres humanos coordenam suas aes no viver em aceitao mtua, sem a qual o sistema no se define como social. Por outro lado, no so sistemas sociais os sistemas de trabalho, voltados para a realizao de uma tarefa, o que exige o compromisso com a emoo que constitui esse espao de relaes. Da mesma forma, os sistemas hierrquicos, que so [...] constitudos sob a emoo que configura as aes de autonegao e negao do outro na aceitao da submisso prpria ou da do outro [...] no so sistemas sociais (Maturana, 1997, p.177). Nesse sentido, os servios de sade aproximam-se mais da definio de aparelhos do que daquela de redes, entendendo-se aparelhos como organizaes de agentes sociais caracterizados por dirigirem suas aes a um pblico, ou seja, o conjunto de indivduos com o qual mantm uma relao de exterioridade, destinando a ele sua produo, enquanto estabelece internamente sua estrutura e processos de regulao. J as redes definem-se por no terem um pblico e, independentemente de quais formas assumam, todas estabelecem estruturas fracamente hierarquizadas e muito mais flexveis em relao aos aparelhos, sendo constitudas por entidades relativamente autnomas, a partir de um princpio dinmico de autorregulao. Os aparelhos na sociedade moderna frequentemente agem de forma a excluir o interesse dos usurios, assumindo um paradigma produtivista centrado no nas relaes produtor-usurio, mas no produto, ou procedimento, em si mesmo (Godbout, 2004). Assim, alguns recursos utilizados pelas pessoas doentes, nos seus itinerrios em busca de cura e cuidado, encontram-se imersos em sistemas sociais como a famlia; enquanto outros, includos no sistema de sade formal ou profissional, mobilizam sistemas de trabalho. No primeiro caso, partimos do pressuposto de que neste sistema existe aceitao mtua e, consequentemente, a responsabilizao e o desvelo necessrios ao cuidado devem estar presentes. Os sistemas de trabalho, entretanto, prescindem da aceitao mtua, expondo os doentes possibilidade de serem subjugados pelo modo-de-ser trabalho, como meros objetos de procedimentos ou consumidores de health commodities (Scholze, Silva, 2005; Helman, 2003). Diante desses intercmbios possveis, nas redes do indivduo ao longo de seus itinerrios de cura e cuidado, e da expectativa que os servios de sade contribuam para a cura e o cuidado, cabe o questionamento: de que forma os servios de sade, estabelecidos como sistemas de trabalho, podem estar aptos a produzirem cuidado de forma integral? Tambm cabe a ns perguntarmos o que este cuidado integral, para no chegarmos a um conceito semelhante ao de sade, vinculado pela Organizao Mundial da Sade (OMS) nas dcadas de 1970 e 1980, que sofreu tantas crticas entre profissionais da rea. Neste momento, considerando a alteridade dos seres humanos, podemos inferir que um cuidado integral to amplo e to distinto quanto as culturas humanas existentes, e que para cada ser humano existe um cuidado necessrio segundo seus problemas de sade, aceitao do cuidado e o olhar cultural que esta pessoa lanar sobre o cuidador e sobre as teraputicas (ou atos em Sade) que este indicar em seu itinerrio de cura e cuidado. Mehry (1998) considerou que o trabalho em sade tem como produto os atos em Sade, cuja finalidade seria intervir nos problemas de sade, pressupondo um impacto positivo sobre as
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necessidades em sade dos usurios dos servios. Porm, o foco de seu trabalho pode ser esse usurio ou a produo de procedimentos, sendo que, neste ltimo caso, a produo de atos em Sade esgotase na produo do procedimento, independentemente de seu impacto sobre a sade de uma pessoa ou populao. O autor entendeu que os usurios se voltam para os servios de sade menos em busca de procedimentos do que esperando encontrar espaos que disponibilizem acolhimento, responsabilizao e vnculo. Porm isso no limita o foco do trabalho em sade apenas na produo dessas relaes, sendo necessria tambm a competncia para responder aos problemas de sade, sejam ou no disfunes biolgicas. O autor reconheceu, ainda, uma dimenso cuidadora, envolvendo os ncleos de saber caractersticos de cada profisso da sade, a ser explorada juntamente com os conhecimentos tcnico-cientficos para desenvolver o acolhimento e a responsabilizao, buscando aumentar a resolutividade da ateno em sade e autonomizar o usurio. Concomitantemente, a interpretao exclusivamente biomdica das doenas deveria ser ampliada para incluir as diferentes prticas de cura existentes na sociedade e as experincias dos pacientes que no se enquadram nos diagnsticos preestabelecidos do instrumental terico biomdico vigente. A partir dessas mudanas no modelo de ateno sade, possvel vislumbrar uma assistncia que se destine ao cuidado integral sade, de forma que o modo-de-ser trabalho esteja subordinado ao modo-de-ser cuidado (Tesser, Luz, 2002; Merhy, 1998). Para que seja possvel ampliar o instrumental de ao dos profissionais da Sade, as mudanas nos servios deveriam incluir a discusso sistemtica do modo-de-ser de trabalho versus modo-de-ser do cuidado, em diversas perspectivas, incluindo-se a a insero de estudos antropolgicos, sociolgicos, geogrficos, histricos, ticos e de relaes humanas, entre outras possibilidades. Importante enfatizar que estes conhecimentos so oferecidos em muitos cursos de graduao e ps-graduao, contudo a superficialidade dos mesmos, a entrega destes contedos a pessoas sem experincia na sade e a ideia de que estas disciplinas apenas servem para confirmar as horas obrigatrias do Ministrio da Educao comprometem em muito o interesse dos profissionais pelos contedos ministrados.
Experincias no acolhimento
Nesse contexto terico, o acolhimento constitui-se em um elemento da mudana no processo de trabalho em sade, com potencial de ampliar as prticas de cuidado envolvidas nas aes dos profissionais de sade, porm esse potencial pode ser restringido pelo contexto prtico no qual o acolhimento ser estabelecido. O contexto do trabalho em sade hegemnico na atualidade aquele do modo-de-ser trabalho, voltado para a produo de procedimentos e muito bem adaptado estrutura dos servios de sade organizados como aparelhos. As diferentes experincias na implantao do acolhimento j desenvolvidas estiveram voltadas para implementar uma escuta ampliada, capaz de identificar os motivos que levaram o usurio a buscar o servio, identificando suas necessidades e dando encaminhamento para a soluo de seus problemas. Em algumas propostas foram criadas equipes de acolhimento, compostas por diferentes profissionais, enquanto outras se centraram especialmente nos auxiliares de enfermagem, os quais recorreriam a outros membros da equipe de sade quando necessrio. Porm, eventualmente, estes auxiliares encontravam-se em unidades sem locais adequados para a escuta do paciente e sem o envolvimento do restante da equipe, no sendo eles mesmos acolhidos (Mayema, 2007; Campos, Carpintero, Bueno, 2001; Costeira, s/d). As dificuldades iniciais na experincia com acolhimento costumavam envolver o temor diante das novas iniciativas, exacerbadas pela nfase que o acolhimento dava a problemas j existentes, mas no percebidos, criando uma falsa noo da Unidade Bsica de Sade (UBS) como pronto-atendimento (Franco, Bueno, Merhy, 1999). Essa percepo foi corroborada quando os usurios relacionavam o acolhimento diretamente com a pontualidade dos mdicos e a rapidez no atendimento da recepo, em unidades que preservavam um trabalho na forma mdico-centrada, a partir da distribuio de fichas (Ramos, Lima, 2003). Esta mesma ptica foi mantida pelos prprios membros da ESF , que relacionavam a organizao do processo de trabalho da equipe com a falta de acesso ao atendimento clnico, e percebiam a Estratgia Sade da Famlia como dirigida aos excludos. Considerando esta premissa, no
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viam necessidades de maiores investimentos, mas viam como correta (e, muitas vezes, como a assistncia mais adequada) a atuao de auxiliares de enfermagem na recepo, ainda que orientada por opes limitadas de encaminhamento, utilizando a referncia ao pronto-atendimento de acordo com a organizao do trabalho, em lugar da necessidade do usurio. Com isto, o que verificamos foi a ampliao de um sistema de distribuio de senhas e preservao do no acesso disputada agenda mdica (Schimith, Lima, 2004). Equipes com atividade docente-assistencial vivenciaram essa situao diante de populaes diversas daquelas originalmente abrangidas, ao receberem moradores de rua, moradores de favela e profissionais do sexo, entre outros, para os quais as rotinas programticas no se mostravam adequadas. Desse modo, estabeleceu-se um acolhimento no apenas de carter pontual, mas, a partir da identificao de situaes de vulnerabilidade, no qual a organizao do processo de trabalho foi modificada para resgatar a cidadania dos usurios, na perspectiva da equidade e de uma discriminao positiva (Romano, 2008; Carneiro, Silveira, 2003). Diferentes formas de organizao do acolhimento em diferentes centros de sade foram relatadas por Takemoto e Silva (2007), sendo que, em trs das unidades estudadas, o auxiliar de enfermagem conduzia uma triagem qualificada, que levava a uma primeira consulta com o mdico, favorecendo somente o atendimento a queixas agudas numa modalidade de pronto-atendimento. Assim, no houve ampliao da resolutividade dos outros profissionais, ao contrrio de outra unidade pesquisada, em que o acolhimento foi entendido como postura, buscando dar resposta s necessidades do usurio, ainda que no fossem clnicas. Esse tipo de vnculo capaz de gerar satisfao e segurana, sendo fruto de um atendimento baseado na escuta e no bom desempenho dos profissionais, influenciando inclusive o acesso geogrfico, pois o atendimento com resolutividade promove a procura por determinadas unidades, mesmo implicando maior deslocamento do usurio (Tresse, 2008; Lima et al., 2007). Porm, mesmo que a implantao do acolhimento conduza os profissionais prtica dessa diretriz operacional, o deslocamento de algumas decises - antes centradas no mdico, para outros profissionais, como tcnicos e auxiliares de enfermagem - pode no ser bem compreendido pelos usurios. Os possveis conflitos entre as propostas de descentrar o trabalho da figura do mdico e a concepo de atendimento em sade trazida pelos usurios podem dificultar os esforos de comunicao, especialmente pela desvalorizao dos profissionais que conduzem o acolhimento, gerando sobrecarga nas equipes de sade, caso estas no sejam tambm acolhidas (Oliveira, Tunin, Silva, 2008; Pinafo, Lima, Baduy, 2008; Souza et al., 2008). Uma forma de responder s possveis resistncias implantao do acolhimento ou a sua implantao em formatos que tm pouco impacto no processo de trabalho entend-lo concomitantemente como postura dos profissionais e como tcnica, objetivando a ampliao e a qualificao do acesso dos usurios. Para isso, contribui tambm uma implantao participativa do processo, com colegiados locais e o apoio de representantes do nvel central. Assim, possibilita-se um aumento quantitativo do rendimento dos profissionais envolvidos e faz-se com que estes percebam uma maior qualificao no seu trabalho e na produo do cuidado, qualificando o vnculo com a comunidade e fortalecendo as equipes por meio da educao permanente (Alves et al., 2008; Oliveira et al., 2008; Solla, 2005; Panizzi, Franco, 2004).
sujeitos e coletivos, considerando-os em suas singularidades. Assim, buscaremos definir trs desses possveis marcos tericos - afeto, empatia e alteridade - e analisar suas relaes com o processo de trabalho em sade como maneiras adequadas de receber os distintos modos como a populao busca ajuda nos servios de sade, respeitando o momento existencial de cada um sem abrir mo de pr limites necessrios (Andrade, Barreto, Bezerra, 2008, p.821). O termo afeto deriva originalmente da literatura psicanaltica, na qual se tentava descrever o tipo de sentimento que acompanhava ideias ou representaes mentais de objetos externos, enquanto o humor seria a soma dos afetos. Manley (1999) sugeriu que se abandonasse a distino de humor como um estado emocional prevalente em longo prazo, enquanto o afeto seria mais flutuante, buscando-se descrever os componentes objetivo e subjetivo da expresso emocional separadamente, podendo estes inclusive serem discordantes. Normalmente, verificadas nas variaes da expresso facial, tom de voz e gestos, as manifestaes externamente direcionadas do afeto podem permitir classific-lo como: alegre, triste, embotado, expansivo, lbil, inapropriado, variando tambm na intensidade com que a emoo expressa (Cordioli, Zimmermann, Keller, 2004; Sadock, 1999). Teixeira (2004) utilizou o termo afeto ao definir o acolhimento dialogado como uma tcnica de conversa, conduzida por determinadas emoes e afetos, de modo que as redes de trabalho em sade formam extensas redes de conversaes que podem ser pensadas como redes de trabalho afetivo, dedicadas a criar e a manipular afetos. Esse afeto estaria limitado, porm, situao apriorstica de aceitao do outro como um legtimo outro, no mesmo sentido que Maturana (1997) utilizou o termo amor, sendo que aquele autor identificou esse afeto como acolhimento. A capacidade de identificar os afetos no outro, por meio de sutis pistas sociais, denominada empatia, uma habilidade baseada na autoconscincia emocional, fundamental para a efetividade interpessoal e citada como parte do processo de acolhimento (Demeneck, 2008). uma das cinco reas bsicas que relacionam as habilidades definidoras da Inteligncia Emocional, permitindo manifestar reaes emocionais apropriadas a partir da autoconscincia. A raiz da palavra latina emoo motere: mover, implicando, com o prefixo e, a conotao de mover para longe, ou seja, uma tendncia de ao est implcita em cada emoo (Goleman , 1999). Emoo se refere a um sentimento e aos pensamentos, estados psicolgicos e fisiolgicos, e toda a gama de impulsos para agir ligados a esse sentimento. Algumas so consideradas universais: raiva, tristeza, medo, alegria, amor, surpresa, desgosto, vergonha (Goleman, 1999). Tambm a palavra empatia denomina um sentimento que nos permite considerar uma perspectiva diferente da nossa prpria, fazendo com que olhemos o sofrimento alheio com o olhar de quem sofre, apreciando a situao como se estivssemos no lugar da pessoa que a experimenta. Na sua ausncia, existe desconsiderao pela pessoa do outro, seus valores, crenas e desejos (Goldim, 2006). Isso nos remete definio de Boff (1999) do modo-de-ser cuidado, invivel sem o sentimento de empatia, que tambm um dos atributos essenciais na relao mdico-paciente e qualquer outra relao profissional na sade em que se pense o cuidado como uma responsabilidade tica e moral do outro em um momento de fragilidade emocional e fsica (Morinaga et al., 2002). Por sua vez, alteridade um conceito central da Antropologia, cincia que nasceu do estudo das populaes distantes, demandando o desenvolvimento de ferramentas, como a observao participante, para conduzir suas investigaes. Ao longo de suas diferentes vertentes, a Antropologia preservou suas noes de distanciamento, seja no sentido de aproximar o que longnquo, seja no de assumir um distanciamento da realidade prxima que permita um estranhamento desta, de modo a ver, como culturais, elementos de nossa prpria sociedade que, por sua presena cotidiana, parecem-nos naturais. O olhar antropolgico voltado para o outro, para a alteridade. Essa alteridade incorpora a noo de humanidade plural, negando a existncia de um centro do mundo ou de um centro do saber, e aceitando a diversidade de culturas que carregam suas prprias complexidades e maturidade (Laplantine, 2000). A ideia no apenas a observao de diferentes realidades culturais, mas tambm adotar o ponto de vista do outro, buscando experimentar a realidade cultural alheia, a partir da prpria alteridade (Helman, 1996). Dessa forma, reconhecemos o outro no apenas como objeto, mas tambm como um sujeito relacional em sua singularidade (Brasil, 2006a). O nvel de incorporao da alteridade no trabalho em sade, ou competncia cultural do profissional, pode variar da aceitao incondicional ao puro escrnio, considerando-se que, se no
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exploradas e comunicadas, as diferenas culturais no encontro entre profissional e usurio podem inviabilizar o cuidado (Betancourt, 2004). Ainda que no seja uma panaceia, a competncia cultural desenvolvida a partir de uma postura de alteridade necessria para garantir a qualidade das prticas de sade, evitando assumir o usurio como passivo e ignorante diante dos profissionais de sade, que seriam responsveis absolutos pelo cuidado, quando, na verdade, o primeiro que detm o poder de escolha quanto a que orientaes seguir ou no (Oliveira, 2002). O acolhimento, portanto, no se limita a um espao fsico disponvel ou a uma postura dos profissionais em seu trabalho na sade, mas depende de uma organizao multidisciplinar no servio de sade que exige pessoal disposto para ir alm da reflexo e problematizao dos processos de trabalho, com garantia de tempo disponvel e boa remunerao, alm de uma infraestrutura que permita a eficcia do atendimento clnico. Tais condies so possveis em uma cultura institucional aberta e flexvel, na qual o poder seja intensamente delegado a gestores e a equipes tcnicas qualificadas (Serrano, Benito, Giordani-Serrano, 2007). Neste momento, percebemos que o sistema oficial de sade, representado pelo Ministrio da Sade, ao tratar da sade do outro usurio, esquece-se do outro funcionrio deste sistema. Demonstra, desta forma, que a sua vontade de humanizar os servios baseia-se em aes para se ver em estatsticas de assistncia e muito pouco para realmente atuar numa perspectiva humanizadora que inclui o cuidado a todos: usurios diretos do sistema e trabalhadores deste mesmo sistema. Nesse sentido, nos ltimos anos, a Antropologia vem se deparando com um dilema em suas aes: a necessidade de interveno do antroplogo, e no apenas a observao, descrio e interpretao do que descobre em suas pesquisas, sobretudo na rea da sade. O dilema maior est em como oferecer as ferramentas de ao para outras reas do conhecimento agirem, sem que estas, ao utilizarem as mesmas, no produzam os problemas descritos anteriormente. Do que falamos exatamente? Quando fornecemos aos dirigentes dos servios de sade respostas a suas indagaes sobre como assistir melhor ao usurio considerando sua cultura e alteridade, proporcionamos meios que incluem aes diferenciadas que exigem dos trabalhadores da sade maior disponibilidade de tempo, maior envolvimento emocional, fsico e espiritual com o usurio, sem que este receba em igual volume condies para atuar nessa perspectiva. Olhando desta forma, o que temos so servios superficiais que continuaro a ignorar o ser humano, visto que ignorar o trabalhador que atua na rede de sade to grave quanto ignorar o usurio.
Consideraes finais
No curso de sua breve histria, o SUS promoveu claros avanos, ainda que, em geral, estes avanos no tenham revertido em amplo reconhecimento e apoio para sua efetivao, dada sua condio de movimento contra-hegemnico. Em vez disso, encontramos, de forma recorrente, tentativas de se construrem pontos de apoio para novos avanos, alguns slidos e bem-sucedidos, outros de aspecto artificial e ignorando a existncia de conhecimentos prvios ricos em potencialidades, em prol de novas nomenclaturas que correm o risco de se tornarem apenas novas vestes para antigas prticas. O acolhimento pode se tornar apenas outra denominao de pronto-atendimento, caso o trabalhador da sade no seja tambm acolhido. Os profissionais envolvidos nessa empreitada precisam desenvolver conceitos claros em relao a seu trabalho, evitando a sobrecarga, assumindo a participao nas decises organizacionais e definindo claramente seus papis como cuidadores, com comunicao clara e sem superenvolvimento que ameace sua integridade pessoal. Assim, esta reflexo foge s pretenses de firmar respostas, limitando-se a construir algumas possibilidades tericas em torno da humanizao e do acolhimento, nas quais obtivemos mais claramente alguns pontos de partida para novos questionamentos do que frmulas exatas para sua implantao. No entanto, isso coerente com a perspectiva de redes de conversao fluidas, constantemente co-construindo as prticas nas interaes entre os sujeitos que buscam ou oferecem apoio em meio ao processo sade-doena. Identificamos os marcos tericos: afeto, empatia e alteridade como maneiras adequadas de atuar no acolhimento na APS, facultando tambm, aos profissionais de sade, seus prprios avanos na
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humanizao do seu trabalho. Esses marcos tericos abrem possibilidades de releitura dessas relaes, permitindo abordar as prticas em sade na ptica do modo-de-ser cuidado, e mesmo relativizar a estrutura de aparelhos dos servios de sade, entendendo sua emoo fundamental no como a aceitao mtua incondicional do amor, mas que a emoo do compromisso fundamenta esse sistema de trabalho, voltando-se para a produo de sade, no para o consumo de servios ou produtos do complexo mdico-industrial. Mas, ainda que adequados e mesmo complementares entre si, fazemos nossa opo pela alteridade, como marco terico capaz de instrumentalizar o trabalhador da sade para desenvolver o acolhimento, sem deixar de garantir sua prpria humanizao. Essa opo se deve caracterizao do afeto no como apenas positivo nas relaes humanas, mas trazendo em seu bojo todas as possibilidades emocionais, desde a alegria at a tristeza, devendo sempre ser compreendido, no apenas expressado, mesmo porque as responsabilidades ticas do profissional da sade impedem-no de se guiar apenas emocionalmente, tanto quanto de ignorar as emoes do outro e suas prprias nos encontros desenvolvidos nas prticas em sade. A compreenso dos afetos alheios deve-se, ento, empatia do profissional, cujo desenvolvimento demanda autoconhecimento e a capacidade de identificar as manifestaes verbais ou no verbais, explcitas ou contraditrias, do sofrimento de outrem. Ainda assim, essas manifestaes de afeto no seriam inconfundveis ou exclusivas, pois sempre acabam por serem moduladas culturalmente. A alteridade abre, ento, possibilidades de enfrentamento das situaes do cotidiano dos servios de sade, acolhendo o outro como sujeito em seu sofrimento, em lugar de constituir-se em torno da doena como objeto. Ao mesmo tempo, o profissional tem condies de construir seu trabalho a partir da alteridade, evitando ser etnocntrico na perspectiva biomdica e preservando sua sade mental, de modo a responsabilizar-se por seus esforos em conjunto com o outro, sem sofrer por inevitveis insucessos decorrentes daquilo que no domina, os quais podem sempre ser encarados como oportunidades de aprendizagem. Tais oportunidades so enriquecidas quando se assume o distanciamento proposto pela alteridade em relao realidade dos servios de sade, estranhando-a de modo a produzir mudanas, e superando a naturalizao das situaes que promovem o sofrimento do trabalhador e sua alienao.
Colaboradores Os autores Alessandro da Silva Scholze e Carlos Francisco Duarte Junior participaram da elaborao do projeto, reviso da literatura, redao e reviso do texto. A autora Yolanda Flores e Silva participou da redao e reviso do manuscrito.
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Palabras clave: Acogimiento. Servicios de salud. Atencin primaria de salud. Investigacin interdisciplinaria.
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Acolhimento coletivo:
um desafio instituinte de novas formas de produzir o cuidado
Joo Batista Cavalcante Filho1 Elisngela Maria da Silva Vasconcelos2 Ricardo Burg Ceccim3 Luciano Bezerra Gomes4
CAVALCANTE FILHO, J.B. et al. Collective welcoming: a challenge instigating new ways of producing care. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.315-28, out./dez. 2009. Within the challenge of implementing a form of welcome in which the team of healthcare workers would be made comprehensive, and would be thus in relation to users, a team of professionals from the family health program has proposed collective welcoming. This is a meeting space between workers and users that is focused on their health needs. Within this creative space, active work becomes stronger in relation to normative acts and, through communicative acts, transforms tension into understandings. There is a search for a metastable balance in which work is reconstituted in the light of each new challenge, thereby building relationships of greater solidity and providing learning for new ways of producing care. No desafio de implementar uma forma de acolhimento que integralizasse a equipe de trabalhadores de sade e estes com os usurios, uma equipe de profissionais do programa de sade da famlia prope o acolhimento coletivo, um espao de encontro entre os trabalhadores e usurios, tendo por objeto as necessidades de sade destes. Neste espao criador o trabalho vivo ganha fora na sua relao com os atos normativos, e por meio de atos comunicacionais transforma tensionamentos em entendimentos. H a busca de um equilbrio metaestvel onde o trabalho se reconfigura diante de cada novo desafio, construindo relaes mais solidrias e proporcionando aprendizado de novas formas de produo de cuidado.
Keywords: User embracement. Interdisciplinary healthcare team. Brazilian national health system. Primary healthcare.
Palavras-chave: Acolhimento. Equipe interdisciplinar de sade. Sistema nico de Sade. Ateno primria sade.
Coordenao do Ncleo de Promoo da Sade, Secretaria de Sade do Estado de Sergipe. Rua Francisco Rabelo Leite Neto, 670, apto. 202. Atalaia, Aracaju, SE, Brasil. 49.037240 joaoaracaju27@ hotmail.com 2 Secretaria Municipal de Sade de Recife. 3 Departamento de Ensino e Currculo, Faculdade de Educao, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Departamento de Promoo da Sade, Universidade Federal da Paraba.
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Introduo
O Sistema nico de Sade (SUS) foi institudo no Brasil pela Constituio Federal de 1988, aps um processo histrico de lutas organizadas em torno do movimento de reforma sanitria, sintetizado pela defesa de que Sade direito de todos e dever do Estado. Desde ento, o SUS vem sendo construdo na busca de implementar princpios tais como: universalidade do acesso, equidade e integralidade da ateno sade, descentralizao da gesto setorial, regionalizao e hierarquizao da rede de servios e participao popular com papel de controle social. A proposio do Programa de Sade da Famlia (PSF) como estratgia de consolidao do SUS aconteceu a partir de dezembro de 1993 e foi eleita como prioritria para a reorientao do modelo de ateno sade, no sentido de reverter modelos de assistncia centrados na produo de procedimentos que se destinam cura de doenas e tm como local privilegiado o hospital, para modelos centrados no cuidado dos indivduos, considerando seu contexto socioeconmico e cultural e tendo, como local privilegiado de atuao, o territrio em que se encontram. A estratgia de gesto do setor da sade em implementao no municpio de Aracaju foi denominada Sade Todo Dia e est em construo desde 2001. Em seu modelo terico orientador, o Sade Todo Dia tem, por objeto de suas politicas, as necessidades de sade dos indivduos e coletividades; e considera o trabalho em sade como um encontro entre usurios e trabalhadores onde h o reconhecimento, pelo trabalhador, das necessidades dos usurios, como direito sade. A natureza do encontro entre usurios que tm necessidades de sade e trabalhadores que reconhecem estas necessidades o da produo de um processo onde h o acolhimento do outro, compreenso e significao de suas singularidades e oferta dos saberes em sade que venham permitir ao profissional intervenes continuadas (vnculo) e responsabilizao pelo resultado destas intervenes. O desenho tecnoassistencial do Sade Todo Dia pode ser apresentado pelo diagrama da Figura 1.
Compreender, significar
Corresponsabilizar-se
Produzir autonomia
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No projeto Sade Todo Dia, encontramos que a implantao do acolhimento foi a primeira interveno sobre o processo de trabalho. Esta interveno estava dirigida fundamentalmente para a rede bsica de ateno sade. A proposta do acolhimento documentada no projeto era de ampliar o acesso da populao por meio da substituio do critrio fila pelo da necessidade devidamente qualificada por profissionais de sade. Segundo o projeto, a partir do acolhimento, os usurios devem ter acesso a um conjunto de aes que sejam mais adequadas para as suas necessidades em sade. Desde sua implementao, vrios formatos de acolhimento tm sido experienciados pelos profissionais de sade do municpio de Aracaju. Uma equipe de sade lanou-se ao desafio de implementar uma forma de acolhimento onde todos os seus integrantes contribussem com seus olhares, visando acolher s necessidades de sade da populao adscrita e fazendo emergir projetos teraputicos sem fronteiras disciplinares ou meritocrticas, trabalhando numa perspectiva entre-disciplinar (Ceccim, 2006). Este ensaio configura um estudo de caso com enfoque de anlise qualitativa sobre a prtica desta equipe de sade enfrentando esse desafio no bojo do PSF , escolhendo o acolhimento coletivo como formato desse processo de trabalho. Ns - o mdico e a enfermeira dessa equipe - utilizamos a observao participante e a realizao de grupos focais com a equipe, usurios e estudantes de medicina vinculados equipe em seu processo de formao. Acreditamos ser o grupo focal o meio de fazer emergir pontos de vista e processos emocionais, permitindo a captao de significados difceis de serem captados com outros meios. Na interao, percepes e significados so construdos em grupo, o que no seriam em entrevistas individuais (Gatti, 2005). Os participantes, esclarecidos dos mtodos e objetivos da pesquisa e sobre a garantia do carter voluntrio de sua participao, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, permitindo a utilizao das informaes desde que fosse garantido o anonimato. Para este estudo, realizamos trs grupos focais: um com usurios (G1), outro com estudantes (G2), e o ltimo com profissionais da equipe de sade (G3). Foram transcritas aproximadamente trs horas e vinte minutos de dilogo. Os nomes, quando citados, foram trocados propositalmente por nomes fictcios. Para o G1, realizamos escolha aleatria de dois usurios presentes no acolhimento coletivo convidados em cada dia da semana, totalizando dez usurios convidados, dos quais compareceram seis ao grupo. Do G2 participaram as quatro estudantes de Medicina que tomaram parte do acolhimento coletivo em seu processo de formao, como parte do estgio de Sade Coletiva da Universidade Federal de Sergipe. Do G3 participaram componentes da equipe: mdico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e quatro agentes comunitrios de sade. Nos grupos realizados, assumimos o papel de mediadores e participantes do grupo. Longe de sermos imparciais, acreditamos que, fazendo parte daquele coletivo de trabalhadores de sade, no poderamos deixar de participar da sua reflexo e construo de snteses. Por meio da reviso bibliogrfica, buscamos uma aproximao aos conceitos de acolhimento e ferramentas para avaliao de seu carter cuidador, com o intuito de ampliar/qualificar a capacidade de reflexo sobre nossa realidade e de estruturao de experincia como um agir militante, em busca de contribuir com a defesa da vida e implementao real do SUS.
O que acolhimento?
Para a anlise do acolhimento coletivo, necessria uma aproximao ao que j foi produzido intelectualmente sobre acolhimento. Com um grande aporte terico recente e os variados fazeres em unidades de sade, a palavra acolhimento termina por ser portadora de uma polissemia, adquirindo inmeros significados, almas, sentidos. No nosso objetivo encontrar uma definio para o acolhimento, uma vez que as reflexes sobre o tema, quando compatibilizadas, acabam por ser complementares e, em conjunto, so essenciais para a estruturao da nossa prxis. Em aula proferida no curso de especializao em Sade Coletiva do Centro de Educao Permanente em Sade de Aracaju e Universidade Federal de Sergipe em 2005, Emerson Merhy abordou o acolhimento como um no-lugar, mas o encontro entre o trabalhador de sade e o usurio, onde este
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ltimo tensiona a entrada na rede de sade, tentando mostrar que merece ser cuidado. H um apelo por meio de atos comunicativos para que determinada necessidade seja considerada (Merhy, 2005). Um profissional de sade sofre a influncia de vrios atos normativos, mas a convivncia entre estes atos normativos e os comunicativos no resolvida no plano das regras ou protocolos assistenciais. Requer colocar em anlise certos territrios, como o do poder e o das relaes comunicativas. Uma das sadas seria burocratizar essa relao5 consagrando as regras, o que pode abrir ou fechar os espaos pblicos aos usurios, como pode permitir ou impedir a realizao de atos comunicativos, e, assim, negar ou ofertar uma forma de cuidado. Teixeira (2005), em uma discusso sobre a questo da integralidade, encara o acolhimento como uma rede de conversaes. O autor afirma que as diferentes concepes de integralidade dependem do que os diferentes projetos tecnopolticos pretendem integrar, no sentido de tornar inteiro. Esta problemtica teria como foco a relao trabalhador-usurio que se d nos servios, para o qual se dirigem os mais fortes desejos de integrao (Teixeira, 2005, p.91). Seria necessrio integrar a voz do outro nesse processo, superar o monoplio do diagnstico das necessidades do outro pelos profissionais ou determinadas profisses de sade. Teixeira afirma ainda que a substncia do trabalho em sade a conversa, onde se trabalha com um objeto necessariamente relacional, partilhado por todos os atores presentes. Entende, assim, a rede de ateno como uma rede de conversaes que permeia todos os momentos do encontro trabalhadores-usurios e os fluxos da ateno. Defende, ento, a compreenso do acolhimento-dilogo ou do acolhimento dialogado como sendo atitude central no trabalho vivo, em ato, devendo ser orientado por posies morais e cognitivas que considerem a alteridade, a insuficincia real dos diferentes atores e a necessidade da integrao dos saberes presentes. Para Merhy et al. (2004), o encontro entre o trabalhador e o usurio d inicio a um processo relacional onde opera o trabalho vivo, em ato. O encontro dispara um processo de interveno tecnolgica implicada com a manuteno/ recuperao/alterao de certo modo de andar a vida. O acolhimento permite ainda arguir sobre o processo de produo da relao usurio-servio sob o olhar da acessibilidade. Teria a potncia de: construir vnculo e responsabilizao, de provocar rudos sobre os momentos nos quais o servio recepciona o seu usurio e evidenciar as dinmicas e os critrios de acessibilidade a que os usurios esto submetidos; pode produzir novas dinmicas, instituintes de novas linhas de possibilidades para a produo do cuidado. uma chance de modificar o servio para uma forma usurio-centrada, reduzindo a centralidade das consultas mdicas e utilizando melhor os potenciais de outros profissionais. Silva Jnior e Mascarenhas (2006) colocam que o acolhimento possui trs dimenses: da postura, da tcnica e dos princpios de reorientao dos servios. No acolhimento pesam as questes da subjetividade e individualidade, a busca de significados e de no-ditos. O acolhimento requer a mobilizao de saberes para dar respostas, levando a uma postura de enriquecimento do arsenal teraputico, buscando enriquecer as intervenes. O trabalho em equipe entra neste arsenal, mas busca a sua articulao, e no sua alienao. O acolhimento abre um espao dialgico para extirpar a alienao, respeita o sujeito, negocia necessidades e rearticula os servios. De nossa leitura e vivncia, destacamos o acolhimento como dispositivo para ampliar a acessibilidade aos servios de sade; como estruturante do processo de trabalho centrado nas necessidades de sade; com potencial instituinte de novas
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5 Merhy (2005), acessando a teoria da ao comunicativa de Habermas, afirma que isto seria a captura de um espao que deveria defender a vida pela lgica instrumental. O ato comunicativo, que opera na relao, em uma postura dialgica, seria a oportunidade de tensionar a razo instrumental, onde dominam as regras externas ao sujeito, os atos normativos.
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formas de produzir o cuidado; como espao de integrao da voz do usurio na construo de projetos teraputicos, e como integrao dos profissionais e seus saberes na busca de cuidar da populao que assistem, numa perspectiva entre-disciplinar, como aquela que prope Ceccim (2006).
pode ser sempre atravessado por distintas lgicas que o trabalho vivo pode comportar. A partir do momento em que se abre um espao pblico para a negociao das necessidades em sade, uma das lgicas que pode tentar tensionar o institudo a lgica do usurio. Os atos comunicativos podem preencher o espao do encontro entre trabalhadores e usurios, fazendo emergir deste encontro um projeto teraputico dialogado, que faz uso dos saberes de ambos os atores e de mltiplas tecnologias disponveis no espao, usando a criatividade, e, somente assim, produzindo o cuidado. Franco e Merhy (2005) colocam que o desafio posto aos que trabalham com sade o de construir processos de produo de sade que sejam capazes de se firmar com novas referncias para os usurios, dando a estes a segurana de que um modelo centrado nas tecnologias leves, mais relacionais, tem a potncia de cuidar tal como imaginam ou desejam. Outro dado relevante de assumir o de que nenhum profissional possui todas as ferramentas necessrias para exercer o cuidado. necessrio trabalho em equipe. Para Ceccim (2006, p. 262), todo profissional de sade, pela condio de terapeuta, deve ter, com apropriao e acurcia, recursos e instrumentos de interveno clinica, mas esta somente pode ser exercida na perspectiva sob compartilhamento e matriciamento. Merhy (2002) considera vital compreender que o conjunto dos trabalhadores de sade apresenta potenciais de interveno nos processos de produo do cuidado. Esses potenciais esto marcados pelos ncleos especficos de competncia de cada profisso ou ocupao profissional, associados dimenso de cuidador que qualquer profissional de sade detm, seja mdico, enfermeiro ou um (vigilante) da porta de um estabelecimento de sade (p.123). A perda dessa dimenso cuidadora pode ser apontada como outra causa da grave crise atual do modelo mdico-hegemnico. Acreditamos existir e estarmos participando de um movimento de mudana, de resposta crise do modelo biomdico. So novos fatores da clnica na contemporaneidade: a necessidade de integrar o outro no seu projeto teraputico individual, de conhecer o significado de seu adoecer, de integrar seu agir e seus referenciais de explicao sobre o que sente e os processos que experimenta, de atuar junto dele buscando autonomia e felicidade. A integrao do outro atravessa, tambm, a integrao no interior das equipes de sade. Profissionais alienados do processo de produo do cuidado, em um modelo mdico-centrado e procedimento-centrado, dificilmente se reconhecero como realizadores de atos de sade, dificilmente reconhecero seu potencial cuidador. Ao invs de enxergarem seu papel, realizam um ato simplesmente reprodutivo, desvinculado da produo do valor de uso do produto sade (no caso, atos de sade), com prejuzo para sua transformao pelo trabalho, para sua satisfao como autores do processo de trabalho, como realizadores de uma obra de trabalho (Campos, 2000). Ceccim (2006) defende a entre-disciplinaridade para que se reconfigurem as relaes em equipe permanentemente ante a complexidade do enfrentamento do mundo real das necessidades em sade disputando serem reconhecidas e cuidadas. O autor prope a entre-disciplinaridade como forma de compreender o trabalho multiprofissional e interdisciplinar, um lugar de sensibilidade e equilbrio metaestvel6, em que a prtica teraputica emergiria em clnica mestia ou clnica nmade; em que todos os potenciais seguiriam se atualizando e o equilbrio no seria outro que no a transformao permanente de si, dos entornos, do trabalho (Ceccim, 2006, p.265). Essa transformao permanente rompe com as lgicas das agendas fechadas e programticas. Desafia o institudo, as resistncias. Atos comunicativos
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6 Entendemos equilbrio metaestvel como um equilbrio em acontecendo, um institudo que abre tranquilamente suas portas ao instituinte que emana das relaes com o outro, e com a realidade complexa que teima em fugir das capturas. E, por isso mesmo, se movimenta, modifica, abraa, integra, acolhe, cuida. O compromisso a defesa da vida, a felicidade e emancipao do homem.
criativamente complexificam o olhar para as necessidades referidas, por vezes com muito mais de noditos e pedidos de cuidado (Ceclio, 2006). No basta compor as equipes com profissionais de vrias reas. necessrio que os saberes, tecnologias, circulem em benefcio do cuidado. Colocar o potencial cuidador, o saber e o fazer de cada profissional que compe a equipe de sade em um espao de acolhimento de necessidades de sade, com o objetivo de integrar este trabalho, um dos desafios do acolhimento coletivo. Desalienar o papel de cada um na produo do cuidado, fazendo emergir projetos teraputicos entre-disciplinares, circulando olhares e desejos, um modo de tornar o nosso trabalho obra criativa cotidiana. Neste movimento de integrao, integrando tambm os usurios, estamos nos aproximando do espao onde o acolhimento coletivo ocorre.
O acolhimento coletivo
O desenho da Figura 2 uma representao grfica que busca exibir os caminhos para a produo de projetos teraputicos cuidadores utilizando o acolhimento coletivo. Seria este o momento do encontro, um espao criador.