A Biblioteca de Alexandria

Carl Sagan

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Carl Sagan
A superstio uma covardia face ao divino, escreveu Teofrasto, que viveu no tempo da Biblioteca de Alexandria. Habitamos num universo no qual os tomos so produzidos no centro das estrelas; no qual em cada segundo nascem um milhar de sis, no qual a luz do sol e os relmpagos fazem surgir a fasca da vida no ar e na gua dos planetas mais novos; no qual o material de base da evoluo biolgica resulta por vezes da exploso de uma estrela no meio da Via Lctea; no qual uma coisa to bela como uma galxia se formou cem mil milhes de vezes um cosmos de quasares e quarks, de flocos de neve e pirilampos, onde talvez existam buracos negros e outros universos e civilizaes extraterrestres cujas mensagens de rdio chegam neste momento Terra. Em comparao com isto, quo pobre so as pretenses da superstio e da pseudocincia; quo importante para ns continuar esse esforo que caracteriza o homem: a prossecuo e a compreenso da natureza. Cada aspecto da natureza revela um profundo mistrio e acorda em ns um sentimento de respeito e deslumbramento. Teofrasto tinha razo. Quem receia o universo tal como , quem se recusa a acreditar no conhecimento e idealiza um cosmos centrado nos seres humanos prefere o conforto efmero das supersties. Prefere evitar o mundo a enfrent-lo. Mas quem tem a coragem de explorar a estrutura e textura do cosmos, mesmo quando este difere acentuadamente de seus desejos e preconceitos, ir penetrar profundamente nos seus mistrios. No h na Terra outras espcies que tenham alcanado a cincia, que continua a ser uma inveno humana, produzida por uma espcie de seleo natural ao nvel do crtice cerebral, e isto por uma razo muito simples: produz bons resultados. Sem dvida que a cincia no perfeita e pode ser mal utilizada, mas de longe o melhor instrumento que temos, que se corrige a si prprio, que progride sem cessar, que se aplica a tudo. Obedece a duas regras fundamentais: primeiro, no existem verdades sagradas, todas as asseres devem ser cuidadosamente examinadas com esprito crtico, os argumentos de autoridade no tm valor; segundo, tudo o que estiver em contradio com os fatos tem de ser afastado ou revisto. Temos de entender o cosmos como ele e no confundir aquilo que com aquilo que gostaramos que fosse. Por vezes, o bvio est errado e o inslito verdadeiro. Num contexto alargado, todos os seres humanos partilham as mesmas aspiraes. E o estudo do cosmos fornece o contexto mais alargado possvel. A atual cultura mundial uma espcie de arrogante novidade; chegou cena planetria depois de 4 mil e 500 milhes de anos e, depois de ter passado os olhos em redor durante uns milhares de anos, declarou-se detentora de verdades eternas. Mas num mundo em to rpida mudana como o nosso, tal atitude o caminho certo para o desastre. Nenhuma nao, nenhuma religio, nenhum sistema econmico, nenhum corpo de conhecimento pode oferecer todas as respostas quando est em jogo a nossa sobrevivncia. Devem certamente existir sistemas que funcionem muito melhor do que qualquer um dos que temos. Conforme a boa tradio cientfica, a nossa tarefa descobri-los. Uma vez j, na nossa histria, houve a promessa de uma brilhante civilizao cientfica. Resultante do grande

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acordar jnico, a Biblioteca de Alexandria era, h dois mil anos, uma cidadela onde os melhores intelectos da antiguidade estabeleceram os fundamentos para o estudo sistemtico da matemtica, da fsica, da biologia, da astronomia, da literatura, da geografia e da medicina. Ainda hoje edificamos sobre essas bases. A biblioteca foi construda e financiada pelos Ptolomeus, os reis gregos que herdaram a parte egpcia do imprio de Alexandre o Grande. Desde a poca da sua fundao, no terceiro sculo antes de Cristo, at a sua destruio sete sculos depois, foi o crebro e o corao do mundo antigo. Alexandria era a capital editorial do planeta. claro que na altura no existia a imprensa. Os livros eram caros; cada exemplar tinha de ser copiado mo. A biblioteca era o repositrio das melhores cpias do mundo. Foi ali inventada a arte da edio crtica. O Antigo Testamento chegou-nos diretamente das tradues gregas feitas na Biblioteca de Alexandria. Os Ptolomeus usaram muita da sua enorme riqueza na aquisio de todos os livros gregos, assim como dos trabalhos originrios da frica, da Prsia, da ndia, de Israel e de outras regies do mundo. Ptolomeu III Evergeto tentou pedir em emprstimo a Atenas os manuscritos originais ou as cpias oficiais das grandes tragdias de Sfocles, Esquilo e Eurpedes. Para os atenienses, esses textos eram uma espcie de patrimnio cultural um pouco como, para a Inglaterra, os manuscritos ou as primeiras edies das obras de Shakespeare; por isso, mostraram-se reticentes em deixar os manuscritos sair das suas mos por um instante que fosse. S aceitaram ceder as peas depois de Ptolomeu ter assegurado a devoluo atravs de um enorme depsito em dinheiro. Mas Ptolomeu dava mais valor a esses manuscritos do que ao ouro ou prata. Preferiu por conseguinte perder a cauo e conservar, o melhor possvel, os originais na sua biblioteca. Os atenienses, ultrajados, tiveram de se contentar com as cpias que Ptolomeu, pouco envergonhado, lhes deu. Raramente se viu um estado encorajar a busca da cincia com tal avidez. Os Ptolomeus no se limitaram a acumular conhecimentos adquiridos; encorajaram e financiaram a investigao cientfica e deste modo geraram novos conhecimentos. Os resultados foram espantosos: Eraststenes calculou com preciso o tamanho da Terra, traou o seu mapa, e defendeu que se podia atingir a ndia viajando para oeste a partir de Espanha; Hiparco adivinhou que as estrelas nascem, deslocam-se lentamente ao longo de sculos e acabam por morrer; foi o primeiro a elaborar um catlogo indicando a posio e magnitude das estrelas de modo a poder detectar essas mudanas. Euclides redigiu um tratado de geometria com base no qual os seres humanos aprenderam durante vinte e trs sculos, trabalho que iria contribuir para despertar o interesse cientfico de Kepler, Newton e Einstein; os escritos de Galeno acerca da medicina e da anatomia dominaram as cincias mdicas at ao renascimento. E muitos outros exemplos, j apontados neste livro. Alexandria era a maior cidade que o mundo ocidental j conhecera. Pessoas de todas as naes iam at l para viver, fazer comrcio, estudar; todos os dias chegavam aos seus portos mercadores, professores e alunos, turistas. Era uma cidade em que os gregos, egpcios, rabes, srios, hebreus, persas, nbios, fencios, italianos, gauleses e iberos trocavam mercadorias e ideias. Foi provavelmente a que a palavra cosmopolita atingiu o seu mais verdadeiro sentido cidado, no apenas de uma nao, mas do cosmos. (A palavra cosmopolita foi inventada por Digenes, o filsofo racionalista crtico de Plato.) Estavam certamente aqui as razes do mundo moderno. Que foi que os impediu de crescer e florescer? Por que razo o ocidente adormeceu para s acordar um milhar de anos depois, quando Colombo, Coprnico e os seus contemporneos redescobriram o mundo criado em Alexandria? No me possvel dar uma resposta simples, mas sei pelo menos o seguinte: no h registro, em toda a histria da biblioteca, de que qualquer um dos seus
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ilustres cientistas e estudiosos tivesse alguma vez desafiado a srio os princpios polticos, econmicos e religiosos da sua sociedade A permanncia das estrelas era posta em dvida, mas no a da escravatura. A cincia e a sabedoria em geral eram domnio de alguns privilegiados, a vasta populao da cidade no tinha a mais leve noo do que se passava dentro da biblioteca, ningum lhe explicava nem divulgava as novas descobertas, para ela a investigao tinha utilidade quase nula. As descobertas nos campos da mecnica e da tecnologia do vapor eram sobretudo aplicadas no aperfeioamento de armas, no encorajar das supersties e no entretenimento dos reis. Os cientistas nunca se deram conta do potencial de libertao dos homens que as mquinas continham. ( nica exceo de Arquimedes, que enquanto esteve na Biblioteca de Alexandria inventou o parafuso de gua, ainda hoje utilizado no Egito para a irrigao dos campos. Mas mesmo assim considerava que esses mecanismos engenhosos tinham pouco a ver com a dignidade da cincia.) As grandes realizaes intelectuais da antiguidade tiveram poucas aplicaes imediatas: a cincia nunca cativou a imaginao das massas. No havia contrapeso para a estagnao, o pessimismo, e a mais vil submisso ao misticismo. E quando por fim a populaa veio incendiar a biblioteca, no houve ningum que a impedisse de o fazer. O ltimo cientista a trabalhar na biblioteca foi uma mulher. Distinguiu-se na matemtica, na astronomia, na fsica e foi ainda responsvel pela escola de filosofia neoplatnica uma extraordinria diversificao de atividades para qualquer pessoa da poca. O seu nome, Hipcia. Nasceu em Alexandria em 370. Numa poca em que as mulheres tinham poucas oportunidades e eram tratadas como objetos, Hipcia movia-se livremente e sem problemas nos domnios que pertenciam tradicionalmente aos homens. Segundo todos os testemunhos, era de grande beleza. Tinha muitos pretendentes, mas rejeitou todas as propostas de casamento. A Alexandria do tempo de Hipcia ento desde h muito sob o domnio romano era uma cidade em que se vivia sob grande presso. A escravatura tinha retirado civilizao clssica a sua vitalidade, a igreja crist consolidava-se e tentava eliminar a influncia e a cultura pags. Hipcia encontrava-se no meio dessas poderosas foras sociais. Cirilo, o arcebispo de Alexandria, desprezava-a por causa da sua relao estreita com o governador romano, e porque ela era um smbolo da sabedoria e da cincia, que a igreja nascente identificava com o paganismo. Apesar do grande perigo que corria, continuou a ensinar e a publicar at que no ano de 415, a caminho do seu trabalho, foi atacada por um grupo de fanticos partidrios do arcebispo Cirilo. Arrastaram-na para fora do carro, arrancaram-lhe as roupas e, com conchas de abalone, separaram-lhe a carne dos ossos. Os seus restos foram queimados, os seus trabalhos destrudos, o seu nome esquecido. Cirilo foi santificado. A glria da Biblioteca de Alexandria agora apenas uma vaga recordao. Tudo aquilo que dela restava foi destrudo logo a seguir morte de Hipcia. Foi como se a civilizao inteira tivesse efetuado uma lobotomia a si mesma, e grande parte dos seus laos com o passado, das suas descobertas, das suas ideias e das suas paixes extinguiram-se para sempre. A perda foi incalculvel. Em alguns casos, apenas conhecemos os aliciantes ttulos das obras ento destrudas, mas, na sua maioria, no conhecemos nem os ttulos nem os autores. Sabemos que das 123 peas de teatro de Sfocles existentes na biblioteca, s sete sobreviveram. Uma delas o dipo Rei. Os mesmos nmeros aplicam-se s obras de squilo e Eurpedes. um pouco como se os nicos trabalhos sobreviventes de um homem chamado William Shakespeare fossem Coriolano e O Conto de Inverno, mas sabendo ns que ele escrevera outras peas, hoje desconhecidas embora aparentemente apreciadas na poca, obras chamadas Hamlet, Macbeth, Jlio Csar, Rei Lear, Romeu e Julieta
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Do contedo cientfico desta gloriosa biblioteca no resta um nico manuscrito.

autor: Carl Sagan traduo:Maria Auta de Barros et al fonte: Crtica original: Cosmos (1980) Lisboa: Gradiva, 2001, pp. 332336.