Allan Kaprow
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No final dos anos 60, uma experincia educacional chamada Projeto Outros Caminhos ocorreu sob o patrocnio do Distrito Unificado Escolar de Berkeley, Califrnia. O educador Herbert Kohl e eu fomos seus responsveis, apoiados por uma bolsa da Fundao Carnegie. Seu propsito era atribuir s artes papel central nos currculos da escola pblica. Para alcanar seus objetivos, o projeto atuou como uma agncia que reunia administradores escolares, professores e seus estudantes com jovens poetas, contadores de histrias, escultores, arquitetos, fotgrafos, performers e at atletas que consideravam seu esporte arte. A participao era mais informal do que estrita e variava de individual a coletiva (professores e suas classes, de k at 12). Havia quem frequentava apenas grupos de trabalho e quem se engajava em projetos semestrais. Estvamos instalados numa loja no longe da escola secundria de Berkeley, o que nos tornava agradavelmente acessveis aos transeuntes, embora a maior parte de nossa atividade se estendesse s outras salas de aula da cidade e ao ambiente cotidiano. Naquela poca, Berkeley, juntamente com as cidades prximas de Oakland e So Francisco, era o cenrio de uma imensa convulso social, e havia foras armadas por toda a parte. importante mencionar esse fato
porque nossas atividades raramente se relacionavam de modo direto com o conflito, embora refletissem suas paranoias e poderosas energias, bem como a onda de fervor utpico que o alimentava. A maior parte de nossos esforos, de fato, focalizava o ensino bsico, como a leitura, a redao, a matemtica e estudos comunitrios, pois acreditvamos que a arte poderia favorec-los. Ningum, contudo, podia ignorar a tenso e o cheiro de gs lacrimognio, e algumas vezes nossos experimentos abordavam os limites das fronteiras sociais. Por exemplo, havia em uma das escolas de Oakland uma classe de sexto ano cujos garotos eram considerados analfabetos inveterados. Esqueo-me do ttulo oficial, mas era o suficiente para conden-los a permanente excluso social. Seus dias na escola (quando apareciam) resumiam-se questo de superviso disciplinar, sem o componente educao. Numa tarde, alguns deles vieram a nossa loja em frente escola com seu professor. Havamos recebido certa quantidade de filmes e mquinas fotogrficas Polaroid baratas, e eu convidei os garotos para dar uma volta comigo e tirar fotos de qualquer coisa que quisessem. No caminho, eles fotografaram as caretas que faziam, suas sombras, os helicpteros que sobrevoavam a cidade, os tanques do Exrcito e os policiais; pareciam, no entanto, preferir os grafites dos
Wolf Vostell O sonho da razo produz monstros (esboo da instalao),1992 Cadilac, cupins, plexiglas e ferro
Fonte: Catlogo da exposio Reperti, O meio ambiente visto por 18 artistas, MNBA, Rio
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muros das caladas e das paredes dos edifcios. Eu me perguntava por que eles, j que eram analfabetos, estariam to interessados em palavras, especialmente sexuais. Ento eu lhes disse que deveramos fotografar grafites nos banheiros pblicos, femininos e masculinos. Todos acharam a ideia tima, especialmente se as meninas pudessem ir aos banheiros masculinos e vice-versa. Samos pela cidade visitando banheiros de postos de gasolina e motis e gastamos dezenas de rolos de filme, a maioria perdida. O exame dos que foram aproveitados, no entanto, evidenciou que as crianas entendiam palavras de quatro letras, bem como as descries relacionadas a certos desenhos. Analfabetos? Nem tanto. Kohl e eu vislumbramos o germe de uma ideia no que acabara de acontecer. Cobrimos as paredes de nossa loja com grandes folhas de papel de embrulho pardo, disponibilizamos canetas hidrocor, tintas e pincis, grampeadores e cola. Convidamos os garotos na semana seguinte e colocamos sobre a mesa as fotos que eles haviam tirado, sugerindo que eles fizessem grafites usando as fotos e quaisquer desenhos que quisessem, como, por exemplo, os que haviam visto durante nosso passeio. A princpio eles ficaram hesitantes e cheios de risinhos, mas esclarecemos que no haveria censura e que eles no seriam punidos por palavres, desenhos ou baguna que fizessem. Logo havia fotos nas paredes e por toda parte. Linhas desenhadas e pintadas as contornavam e enquadravam, ampliando rgos genitais e os nomes de pessoas do lugar, obviamente reconhecidos por eles. Esses nomes, como Huey (provavelmente Huey Newton, o pantera negra que estava preso), Bobo (um chefe de gangue da rea) e Csar (Csar Chaves, lder campons) estavam pintados em letras grandes. s vezes nomes de opositores eram seguidos por verbos como chupa e outros equivalentes.
Nos dias seguintes seus prprios nomes e imagens comearam a aparecer, frequentemente com ajuda nossa e ocasionalmente com a mtua ajuda deles mesmos. Depois, foram estimulados a contar histrias sobre o que fizeram e o que haviam visto nas outras partes das paredes. Os que escreviam melhor eram encorajados a reproduzir em locais apropriados suas histrias, em geral compostas de slogans de no mais do que duas ou trs slabas (como a maioria dos grafites pblicos), s raramente havendo sentenas completas. Uma semana depois, porm, discreto entusiasmo comeou a substituir a timidez, e substancial atividade de alfabetizao, a aparecer. Kohl soubera que o sistema de depsito de textos escolares estava descartando os antiquados manuais de leitura Dick & Jane e que poderamos obter quantos exemplares quisssemos. A ideia era fazer com que nosso pequeno grupo os reescrevesse e reilustrasse. Se eventualmente houvesse algum jovem interessado nessas narrativas estereotipadas, naqueles tempos de tenso social, seriam necessariamente os filhos e filhas de pais potencialmente racistas e sexistas. No havia, porm, muitos deles dispostos a falar sobre o assunto em Berkeley, e esse era um dos motivos pelos quais a cidade se livrava desses livros. Nossa suposio era de que a sensibilidade dos garotos para esses preconceitos (a maioria deles era de negros ou hispnicos) nos ofereceria abertura para discusso franca e tornaria mais atraente a perspectiva de completa reviso dos textos. Estvamos certos. Dick e Jane transformaram-se em monstros cabeludos e selvagens; imagens foram recortadas e substitudas por desenhos; o contedo foi rediagramado, criando-se modificaes temporais; e o texto Corre, corre, cachorro transformou-se na pardia Se
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do professor deveriam ser radicalmente revisados. Era o que dizamos e no tnhamos nenhuma iluso de que a tarefa fosse fcil. Se as novas artes eram confusas para muitos que pertenciam aos prprios crculos artsticos, pelo menos compartilhavam duas condies. Uma era o fato de as fronteiras entre a arte e o resto da vida se terem tornado difusas. Outra era o desejo de seus criadores de que elas continuassem sendo reconhecidas como arte. E, para isso, elas precisavam ser reconhecidas e discutidas no quadro institucional das artes. Os artistas cuidaram para que essa conexo com a mquina de validao se mantivesse slida. Seus trabalhos eram amplamente promovidos como arte, sob a forma de documentos fotogrficos, gravaes, textos descritivos, por galerias, novos empresrios de msica e dana, colecionadores e publicaes artsticas. Embora meu propsito pessoal em nossa experincia educacional daquele projeto fosse artstico, ainda que simultaneamente um modo de incentivar a alfabetizao, e alguns estudantes e colegas me ouvissem falar assim, o trabalho nunca foi publicado ou exposto. Assim, pelas regras do jogo ento vigentes, ele falhou como arte. Hoje, passados 25 anos, a histria est para ser publicada num livro de arte. O enquadramento artstico recair sobre ela. Finalmente ela se tornar arte? E, se assim for, ser boa arte? Um fator agravante que em minhas ideias e escritos sobre o Happenings e seus sucessores nos anos 60, enfatizei a ambiguidade da identidade: o trabalho de arte deveria, tanto quanto possvel, permanecer obscuro quanto a seu status. Segundo esse critrio, a experincia no Projeto Outros Caminhos era boa arte (e at agora, pelo menos para mim), desde que eu possa preservar sua histria como algo de que se ouviu dizer entre amigos. Meu lema era sim-
ples: no se deve apressadamente rotular a vida como arte; isto pode matar o jogo. Ser que passou tempo suficiente para que a histria do evento se tornasse um boato til nos dias que correm til porque autorizaria outros a deixar a arte convencional pelo jogo arte/vida? Difcil de responder. Ou, em seu lugar, terei eu desvalorizado o jogo, encaixando-o no cimento da histria da arte, quer dizer, como no sendo nada alm de arte? Talvez. Sendo apenas arte, a influncia
Allan Kaprow Push and Pull. A Furniture Comedy for Hans Hofmann, 1963
Fonte: http:// www.medienkunstnetz.de/works/ push-and-pull/
Dois quartos foram construdos em um armazm. O primeiro estava bem iluminado contendo objetos, predominantemente, amarelos que contrastavam com a faixa vermelha da parede superior. O segundo quarto, como um sto, era forrado com piche e jornal, iluminado por luz fraca e com uma televiso sem som no cho. Caixas, roupas velhas e outras coisas enchiam esse espao. O pblico chegou e comeou a trocar os objetos de ambos os quartos. Logo tudo virou uma baguna. Mulheres mais velhas comearam a arrumar as coisas, outras mulheres juntaram-se a elas. Gradualmente, os dois quartos voltaram a seu estado original, e o ciclo se completou. Kaprow no participou dessa ao.
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potencial que ela poder ter sobre o ensino pblico, e sobre a prpria arte, pode ser indefinidamente arquivada. Como garantia contra essa possibilidade, suponhamos que eu aqui e agora recusasse qualquer status artstico ao evento que anteriormente designei como arte. Suponhamos que o consenso em meio aos profissionais da arte e da educao nos anos 90 esteja prestes a ocorrer (e por que no?). Sendo assim, o que fizemos nos anos 60 foi um ex-
perimento educacional completamente separado da arte. Essa manobra, pelo menos, manteria para o leitor de arte a ambiguidade de sentido necessria a que me referi e salvaria o evento da possibilidade de ser limitado pela arte e seus discursos especiais. Ele permaneceria aberto reviso educacional. Para o educador, que pode no ter relao com a arte, um objetivo particular foi portanto alcanado. Um grupo de crianas foi ajudado na alfabetizao e a interessar-se pela leitura. Ter esse sido, porm, um exemplo de bom ensino? Aqui, novamente, surgem dificuldades. Sem alguns controles e medies, modos de repetir a atividade, o que aconteceu entre ns e uma dzia de crianas em Berkeley seria dificilmente considerado um livro-texto clssico. Todo mundo costuma desabrochar sem receber ateno especial. O que interessa o que acontece a longo prazo. Colocando de outro modo, questo o que aconteceu com as crianas depois que nos deixaram?, provavelmente responderamos: voltaram a ser o que eram antes. E, se ensino slido e desenvolvimento contnuo so necessrios para obter valores durveis, como acredito que sejam, todo o experimento no passou de uma brincadeira educacional. Na melhor das hipteses, foi uma boa diverso. Superficialmente, o que a arte pode fazer. Podem a arte experimental e a educao experimental andar juntas mais substancialmente para o bem comum? Quem sabe, como a maior parte da nova arte, tais investigaes possam e devam ser situadas no mero nvel de laboratrio e concepo de modos de proceder. Isso pode parecer demasiadamente ctico, mas, ao longo dos anos, acabei vendo que, nas raras ocasies em que a arte foi introduzida em nvel profissional nas escolas nacionais, ela chega salpicada de luzes brilhantes numa atmosfera acadmica normalmente desprovida de arte. Chega num dia e
Allan Kaprow Time Pieces, 1975 Vdeo em DVD, preto e branco, com som
Fonte: http://www.hauserwirth.com/ artists/images-clips-view/ ?artist_id=35&a=allankaprow&p=10
Art as Life, 2008 Vista da instalao no The Geffen Contemporary at Moca, Los Angeles
Foto de Brian Forrest, http:// www.hauserwirth.com/artists/35/ allan-kaprow/images-clips/6
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vai embora no seguinte. Os prprios artistas tendem a encarar seu campo de atividade como algo especial num mundo sombrio e aflito. Eles tm exposies, concertos, leituras de poesia, cada uma dessas atividades piedosamente oferecida como momento de jubilosa criatividade. exceo das escolas de arte profissionais, para adultos, artistas profissionais geralmente no ministram cursos dirios nas escolas pblicas. Portanto, no de surpreender que compartilhem com a escola o preconceito cultural segundo o qual a arte marginal para a educao principal. A educao real ocorre todos os dias, a arte nos feriados, santos dias! O Projeto Outros Caminhos tentou explicitamente corrigir essa noo de divertimento atribuda s artes, insistindo na ideia de que elas deveriam ser seriamente encaradas como objeto central no cerne de um programa escolar normal. Desejava-se, em ltima anlise, que o projeto pudesse treinar e referir professores integrais para o sistema de ensino. As limitaes de verba, combinadas com a exausto para com as tenses polticas da Bay Area, entretanto, encerraram a experincia em dois anos. Para se avaliar sua eficcia, em minha opinio, seriam necessrios no mnimo 10 anos.
A maioria dos artistas, claro, est menos interessada nas ambiguidades de identidade e de objetivo do que eu. Finalizaes abertas, para mim, so democrticas e desafiam o pensamento. Para outros, so simplesmente evasivas e irresponsveis. Depende de qual tipo de arte se est tratando. E de qual segmento do pblico. Quando a arte como prtica intencionalmente se confunde com a multiplicidade de outras identidades e atividades que costumamos chamar de vida, ela se torna sujeita a todos os problemas, condies e limitaes dessas outras atividades, bem como de suas liberdades nicas (como, por exemplo, a liberdade de fazer um siteespecific enquanto se dirige na autoestrada para ir ao trabalho, em vez de ficar restrito s paredes de uma galeria; ou a liberdade de se engajar no ensino ou no trabalho comunitrio como arte). Os critrios pelos quais medimos sucessos e fracassos em arte to efmera obviamente se diferenciam da esttica autossuficiente da pintura e da escultura, menos preocupada com sua referncia simblica ao mundo exterior, tica e aos aspectos prticos dos domnios sociais que ela atravessa. E a tica, representando uma diversidade de interesses especiais, bem como os mais profundos de uma cultura, no
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Fonte: http://www.artmemoires.com/lmter/l4042/ 40ilrofil888.htm
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pode ser facilmente dissociada da natureza de um trabalho artstico. Sucessos e fracassos tornam-se julgamentos provisrios, sujeitos (como o tempo) a mudanas. Uma vez que o artista no mais o agente primrio responsvel pelo trabalho artstico, mas deve associar-se a outros, s vezes soltos e indefinidamente organizados como garotos de escola, s vezes estritamente definidos em estruturas governamentais ou corporativas, o trabalho de arte torna-se menos um trabalho do que um processo
de interaes significao-produo. Quando a arte se afasta dos modelos tradicionais e comea a fundir-se nas manifestaes do dia a dia da prpria sociedade, os artistas no s no podem assumir a autoridade de seus talentos, mas tambm no podem pretender que o que acontece seja vlido simplesmente pelo fato de ser arte. De fato, na maior parte dos casos eles no ousam dizer que arte. Arte pblica sria numa Amrica que no esteja em sintonia com a cultura artstica pode um dia tornar-se uma presena vital em formas e lugares mais parecidos com a vida ordinria. A situao, ento, ser verdadeiramente experimental. O falecido artista Robert Filliou, disse uma vez que o propsito da arte era revelar o quanto a vida mais interessante. A tarefa para os artistas experimentais contemporneos talvez seja a de explorar esse paradoxo, dia aps dia, de novo e novamente. Ento, talvez, seu legado ao pblico poder ser o mistrio de dar um lao no cadaro de um sapato.
Allan Kaprow (1927-2006) foi um dos artistas mais importantes das poticas experimentais contemporneas, responsvel pela criao do Enviroments e do Happenings, a partir do final dos anos 50. No Brasil, teve tradues de seu texto The Education of Un-Artist (duas partes, 197172) publicadas em Malasartes 3 (parte I, 1976) e em Concinnitas 4 (parte I, 2003) e 6 (parte II, 2004).
Este texto foi originalmente publicado em Lacy, Suzanne (org.) Mapping the terrain New Genre Public Art. Seattle: Washington Bay Press, 1996: 152-158.
Traduo: Ins de Araujo Reviso Tcnica: Paulo Roberto Stolz e Ivair Reinaldim
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