RPG e Arte
RPG e Arte
RPG e Arte
. Arte acontecendo no Centro Cultural Banco do Brasil, estamos fazendo contato com um grupo muito especial de jovens - os jogadores de RPG. So adolescentes vidos de oportunidades de se encontrarem, discutirem e tomarem conhecimento de tudo o que puderem a respeito do assunto que ocupa os seus fins de semana e muitas horas livres. Agora, no momento que realiza o 'I Encontro BBteen de RPG", consolidando a imagem do Banco do Brasil que rejuvenesce com seus novos correntistas adolescentes, a Superintendncia Estadual do Rio de Janeiro, em parceria com o CCBB, traz a pblico a instigante experincia que deu origem escolha desta atividade como q principal vnculo com o seu pblico jovem. Banco do Brasil Superintendncia Estadual do Rio de Janeiro
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Os textos deste livro foram elaborados atravs do crculo de palestras RPG &L Arte projeto criado e coordenado pela professora Snia Rodrigues Mota, realizado no perodo de 14 de maro a 11 de abril de 1995 no Centro Cultural Banco do Brasil. Esta edio foi patrocinada pelo Banco do Brasil Superintendncia Rio e pelo Cento Cultural Banco do Brasil. Edio Snia Rodrigues Mota Transcrio Miridam Sampaio Reviso tipogrfica Maria Jos de Sant'Anna Capa Christiane Mello e Marcelo Ribeiro Projeto Grfico e Editorao Eletrnica Due Programao Visual
SUMRIO
APRESENTAO PREFCIO PRIMEIRA EDIO CAPTULO I A CONSTRUO DA PERSONAGEM
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O heri pico Isabela Fernandes Soares Leite O heri na narrativa folhetinesca Professora Pina Coco O heri na cultura de massas Lus Antnio Aguiar
CAPTULO II A CONSTRUO DOS MUNDOS
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CIP - Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ R819 RPG &. arte / coordenao, Snia Rodrigues Mota Rio de Janeiro: Banco do Brasil, Superintendncia Rio: CCBB 1996. 316p. Encontro promovido no Centro Cultural Banco do Brasil em maro e abril de 1995. Inclui bibliografias ISBN 85-86216-01-1
1. Jogos de fantasia -Discursos, conferncias etc. 2. Fico Discursos, conferncias etc. I. Mota, Snia Rodrigues, 1952 - II Banco do Brasil, Superintendncia Estadual Rio. III Centro Cultural Banco do Brasil. CDD 793.9 CDU 794 96-1017 001337
O conto maravilhoso e a literatura oral Denise Leipziger O mundo da representao: a linguagem teatral Hamilton Vaz Pereira Indiana Jones: uma aventura multimdia Oswaldo Lopes Jr.
CAPTULO III
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Todos os direitos desta edio so reservados ao Banco do Brasil - Superintendncia Rio Rua Senador Dantas 45, 40 andar tel: (021) 262 9804 fax: (021) 240 2138
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A construo de u m universo de fantasia Lus Roberto Mee A saga no universo de Tolkien Cludia Moraes
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APRESENTAO
Quantas vezes j no discordamos sobre os destinos das personagens de uma narrativa? Quantas vezes no imaginamos um cenrio diferente para um certo enredo? Entretanto, acabamos ficando sempre merc do autor, que tudo sabe e tudo pode. Para liberar esse desejo de poder mudar tramas, cenrios e personagens, surgiu o RPG, o Roleplaying Game, um jogo de criar narrativas em grupo. No RPG se produz, mas tambm se toma emprestado. Elementos de gneros narrativos como o terror, a fico cientfica ou a saga; personagens do conto maravilhoso, heris intergalticos e at drages. Tudo possvel no RPG porque o mosaico narrativo feito por ns. O presente volume um registro do encontro "RPG & Arte", promovido no Centro Cultural Banco do Brasil em maro e abril de 1995. Ali estudou-se o mosaico que o RPG, atravs dos emprstimos que esse jogo faz das inmeras outras formas de narrar. Nos sete captulos que compem esta publicao, especialistas discutem desde o heri pico at as mais recentes esperincias brasileiras com o RPG, como por exemplo a novela de rdio interativa. Com mais esta iniciativa, o CCBB amplia o debate sobre os desenvolvimentos inditos que a arte de narrar pode apresentar quando exposta a novas lgicas.
Precursores e arautos da Fico Cientfica Brulio Tavares Pr-condies ideais de sobrevivncia no admirvel mundo novo Mauro dos Prazeres
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CAPTULO
A difuso do RPG no Brasil Douglas Quinta RPG e rdio: a radionovela da FM-USP Luciano Alves Ona O RPG brasileiro Luiz Eduardo Ricon RPG e cinema: a experincia do filme Era uma vez... Arturo Uranga
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CAPTULO
A CONSTRUO DA PERSONAGEM
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H controvrsia sobre o sentido etimolgico da palavra grega hirs. Mas, de modo geral, pode-se aproxim-la do sentido de defender, guardar, velar, ser til. Assim, o heri seria um guardio que nasceu para ser til e servir a algum ou a toda uma comunidade. A tradio homrica, que chama os heris de "semideuses", contribuiu para fixar a idia de que o heri possui ascendncia divina. Em algum ponto da "rvore genealgica" do heri vai figurar um deus ou uma deusa. Apesar desta questo sobre a origem divina do heri ser ainda polmica entre os estudiosos podemos afirmar que pelo menos as figuras hericas mais conhecidas possuem parentes divinos. Esta ascendncia pode ser longnqua, como no caso de Edipo, ou muito prxima, como nos casos de Perseu, Aquiles e Teseu, que tm pais ou mes divinos. Apesar de toda a controvrsia terica em torno da origem e das caractersticas do heri pode-se traar um perfil genrico deste guardio da humanidade. Os autores que nos servem de guia" parecem concordar a respeito da idia de que todos os heris se parecem muito, tanto em suas caractersticas bsicas como no que concerne s aventuras que enfrentam. O heri grego, o babilnio, o hitita, o japons, o asteca e o australiano: todos possuem mais ou menos as mesmas caractersticas e funes. E o heri antigo se assemelha ao moderno: Gilgamesh, Tzuzan, Perseu, Jaso e Ulisses em muito se assemelham ao Batman, ao HomemAranha, ao Super-Homem e a todos os heris medievais ou dos contos infantis. O modelo do heri representa um arqutipo que est presente na psique de todos os homens de qualquer local ou poca. A linha terica da Psicologia Analtica de Jung define ento o mito do heri como uma * Artigo entregue para publicao. **Vide bibliografia ao final do estudo.
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imagem arquetpica universal. Esta seria a razo da semelhana entre os diversos mitos. O arqutipo designa um modelo ou imagem original presente na estrutura psquica inconsciente da humanidade. Neste sentido a idia do heri, ou melhor, a imagem do heri, corresponde a uma necessidade psquica bsica e universal. O heri cumpre uma funo humana espetacular, pois desempenha um papel especfico que a figura religiosa do deus, ou dos deuses, no poderia desempenhar. Os deuses no podem cumprir a funo do heri porque so muito distantes e onipotentes para servir de modelo para o homem, so muito enlouquecidos e apavorantes para representar as verdadeiras e trgicas paixes humanas. Os deuses so adorados, cultuados e temidos, mas no podem ser imitados. O heri, por ser mortal e por cumprir o trgico percurso humano de sofrimentos, pode oferecer aos homens um modelo psquico a ser repetido, a nvel imaginrio, por cada indivduo. Neste sentido a imagem arquetpica do heri funciona, tanto a nvel coletivo quanto a nvel individual, para suprir as carncias fsicas e psicolgicas da comunidade ou do sujeito. Nos grandes momentos de crises e transformaes culturais e individuais o arqutipo do heri ativado para oferecer comunidade, ou ao homem, um modelo ideal de comportamento frente s dificuldades. A imagem psquica do heri vem assim constelar um ncleo de estrias e mitos que, em ltima instncia, auxiliam um indivduo, ou todo um povo, a superar suas crises e processar suas transformaes. A meio caminho entre o divino e o humano, o heri vai possuir uma personalidade ambgua, contraditria, por vezes at marcadamente dissociada. Esta personalidade centrada na tenso de opostos vai lev-lo a aventuras estranhas que so ponteadas de glrias e de falhas, de vitrias e fracassos. O heri vai ser simultaneamente virtuoso e repleto de carncias. Aps alcanar vitrias sobre-humanas e conquistas memorveis ele est condenado a falhar em algum ponto, e toda a sua carreira ameaada, desde o incio, por situaes crticas. Este o perfil por excelncia do heri, um ser poderoso e virtuoso mas essencialmente voltado para o descomedimento e para a transgresso dos limites impostos aos mortais pelos deuses. Esse gesto de transgresso dos prprios limites internos chama-se em grego hybris, que literalmente
significa ultrapassar a medida de cada um. Todo heri cai em hybris, e este movimento pode trazer conseqncias nefastas. Por conta da dissociao interna entre seus lados divino e humano o heri pode se tornar uma figura trgica: ele vai ser, temporariamente, dominado por excessos de raiva e possudo por paixes demonacas, podendo at perder totalmente a lucidez. H momentos no mito do heri em que ele se sente impotente, louco ou miservel. Um exemplo fascinante da hybris herica pode ser retirado de uma das cenas mais impressionantes da lixada de Homero. Aquiles, o principal heri grego, o mais forte, o mais valoroso, o mais corajoso, o mais isto ou aquilo, simplesmente transforma-se em um verdadeiro psicopata nas cenas finais da lliada. Ele mata seu inimigo, o heri troiano Heitor, aps uma luta admirvel - uma verdadeira carnificina descrita lindamente dentro do mais sofisticado senso esttico. Depois da vitria, em vez de respeitar o morto devolvendo o cadver do pobre Heitor sua famlia - para que fosse sepultado com as honras devidas a um heri - Aquiles arrasta o corpo em volta das muralhas de Tria diante dos olhos desesperados dos pais, da esposa, dos irmos e dos amigos de Heitor. Aps despedaar assim o cadver Aquiles esconde os restos de Heitor no acampamento grego para que o corpo permanecesse insepulto. Aquiles, neste episdio, possudo pelo sentimento de que um deus e pode, portanto, agir de acordo com seus desejos mais irracionais. Este o processo por excelncia da hybris: o heri dominado pela falsa certeza de que todo-poderoso. Assim, todos os heris, que so freqentemente generosos, virtuosos e altrustas, vo deixar-se eventualmente dominar por excessos afetivos e por paixes mesquinhas ou egostas. Ele pode, por exemplo, ser sbio e equilibrado na maior parte do tempo, mas de repente sentir um dio descabido por algum, chegando prximo da loucura. E o que ocorre com a maioria dos heris gregos, mas tambm acontece com o Batman, com o Super-Homem ou com o rei Arthur. Dentro da nossa abordagem arquetpica podemos afirmar que todos os heris, desde o Gilgamesh at o Batman, so contraditrios, descomedidos e caem em hybris. A hybris pode ter conseqncias benficas apesar de sempre gerar o erro e a culpa. Ela mesma um motor ambguo que pode levar o heri morte trgica (no caso da maioria dos heris da epopia homrica) mas tambm lev-lo vitria e ao autoconhecimento.
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Outro exemplo interessante da hybris o de Teseu. Teseu o heri grego que mata o Minotauro no labirinto de Creta. Teseu conquistou uma vitria impressionante, pois ningum jamais havia conseguido antes entrar no labirinto e dele sair com vida, tendo morto o Minotauro ainda por cima. E ele consegue porque o heri. Ele recebeu a ajuda de uma princesa chamada Ariadne, que lhe ofereceu um fio de linho com o qual Teseu foi capaz de chegar ao centro do labirinto e de l retornar sada. Ele amarrou o fiozinho na entrada do labirinto e conseguiu - depois de matar o monstro - encontrar a sada. Ariadne ajudou o heri, mas em troca pediu que ele se casasse com ela, porque a princezinha estava loucamente apaixonada. E o heri prometeu porque tambm se apaixonara por ela. Depois da vitria sobre o Minotauro ele carregou Ariadne para uma ilha onde celebraram suas npcias. Teseu casou-se com Ariadne numa cena muito romntica, eles dormiram juntos na areia da praia e, no dia seguinte, quando a princesa acordou, estava sozinha na ilha. Teseu e seus companheiros tinham-na abandonado. O heri foi embora, covardemente teve medo de se entregar a uma mulher, usou-a para seus fins egostas e no soube am-la como ela merecia. Este triste evento mtico um exemplo de hybris muito freqente, pois comum, nos mitos e contos de fadas, o heri trair a princezinha que o ajuda. Chama-se complexio oppositorum (termo de Junito Brando) ao conjunto de elementos contraditrios que envolve a vida e a personalidade do heri pelo fato dele ser meio homem, meio deus. Junito Brando nos apresenta uma bela reflexo sobre esta ambigidade fundamental do heri. Ele refere-se principalmente ao heri da epopia homrica, mas estende a idia a todos os outros: "Observando-a mais de perto (a personagem herica), nota-se que a beleza e a bravura de um Aquiles podem ser empanadas fsica e moralmente por caracteres monstruosos. (...) O heri parece sempre estar sujeito violncia sanginria, loucura, ao ardil, ao furto, astcia criminosa, ao sacrilgio, ao adultrio, ao incesto; em resumo, a uma contnua transgresso do mtron, vale dizer, dos limites impostos pelos deuses aos seres mortais (...). O que se deseja acentuar a ambivalncia desta criatura singular. Suas inmeras qualidades e servios extraordinrios em favor da comunidade, mas tambm suas fraudes, roubos, crimes, violncias e monstruosidades no se aplicam a este ou quele tipo de heri mas, em
maior ou menor escala, o todo deste vasto complexio oppositorum faz parte integrante da vivncia herica. A complexio oppositorum manifesta-se no mito em vrios nveis e de diversas maneiras. Ela acaba levando o nosso defensor a cair em hybris. Mas, como j dissemos, a hybris, apesar de suas conseqncias nefastas, conduz o heri maturidade, ao autoconhecimento e conscincia de seus prprios limites. O heri simultaneamente virtuoso e monstruoso, mas no por isso que ele deixa de ser um benfeitor da humanidade, um homem moral e fisicamente superior ao comum dos mortais. Apesar da hybris, ou justamente por causa dela, ele acaba realizando sua misso. o que ocorre, por exemplo, quando Hrcules ofende a deusa Hera, que ento lhe impe como castigo os doze trabalhos. Graas a estes, Hrcules foi heri. Ou quando Perseu, num gesto infantil e irrefletido de prepotncia descomedida, promete a um tirano mau chamado Polidectes trazer-lhe a cabea da Medusa. Este foi um gesto tpico de hybris porque o heri no podia ter prometido uma bobagem daquelas. A Medusa um dos monstros mais apavorantes do mito grego. Ela tem o cabelo cheio de serpentes envenenadas e seu olhar to horrendo que petrifica todo aquele que a encarar nos seus olhos repelentes. Perseu no podia ter prometido tal loucura. Este um bom exemplo de hybris, pois ao mesmo tempo em que leva o heri a fazer ou dizer besteiras tambm o leva a ser heri. Perseu ser obrigado a superar a si mesmo para matar a Medusa. E ele consegue realizar sua misso, tornando-se um dos heris mais admirveis do imaginrio grego. Assim, os heris podem ser generosos ou bondosos, mas tambm cruis, sanginrios e perversos em certos momentos. A coragem, a beleza ou fora do heri so contrabalanadas por uma espcie de monstruosidade expressa de diversas formas: loucura temporria, deformaes fsicas, raivas repentinas, taras, perverses sexuais e morais, orgulho excessivo, etc. Apesar de seus erros e fracassos, ou justamente por causa deles, o heri aquele que sempre cumpre seu destino. Que destino este? Matar o inimigo ou o monstro, vencer batalhas e salvar pessoas necessitadas. Mas no s isto. O heri vai sofrer profundamente uma queda moral ou fsica por conta de sua hybris. Este sofrimento pelo qual passa todo heri - e que pode coincidir ou no com a prpria morte literal - necessrio para que o nosso guardio adquira o autoconhecimento. Todo heri sofre uma "morte simblica" que pode ser representada,
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no mito, por uma morte verdadeira (s vezes reversvel) ou por ferimentos e sofrimentos de diversos nveis. Ele passa por provas dolorosas e por experincias terrveis. Faz parte de seu rito inicitico. Chama-se catbasis este momento de auto-aniquilamento em que o heri conhece as trevas. Esta catbasis pode ser representada de distintas formas: uma odissia no mar, uma viagem ao deserto, uma entrada no castelo encantado ou na caverna do drago, uma descida a labirintos ou a calabouos, uma descida, enfim, ao mundo dos mortos. Catbasis a palavra grega que designa descida, submerso. Ela to inevitvel quanto necessria, pois consiste numa morte simblica que leva ao renascimento. O heri no comea sua jornada j completo e perfeito, ele tem que passar por um eterno aprendizado para adquirir sabedoria e humildade. De incio o heri jamais humilde. Ele ainda no sabe que, muitas vezes, ter que levar uma bofetada no rosto sem poder retribuir. No incio das estrias o heri vai sempre querer devolver as bofetadas que recebe ou vingar-se das injrias que sofre. Aos poucos, s custas de muito sofrimento, o nosso lutador vai aprendendo a adquirir aquele especial autocontrole, aquele infalvel discernimento, que so as caractersticas principais do heri maduro. No final da estria, ento sim, o heri se transforma em um homem sbio, capaz de exercer plenamente seus poderes de forma saudvel e equilibrada. Todo ferimento ou morte no mito do heri reversvel. A morte simblica sucede um renascimento. A toda catbasis sucede uma anbasis - subida, emerso. A catbasis permite ao heri cumprir a sua misso, pois ela aciona o sacrifcio necessrio sua renovao moral e fsica. Depois da catbasis, o que encontra o heri na caverna ou no castelo do monstro que ele acabou de matar? Encontra um tesouro, um anel protetor, uma arma poderosa, uma princesa maravilhosa. So os prmios reservados pelos deuses ao guardio dos homens como recompensa pelo seu sofrimento e sacrifcio. So os objetos mgicos e sagrados que demarcam que o heri vai retornar - vai realizar a anbasis - cheio de tesouros e novos conhecimentos. Os prmios correspondem criatividade e riqueza interiores adquiridas pelo heri aps sua morte simblica. O heri retorna da misso renovado, transformado. Ele renasce. Isto significa que ele alcanou aquela maturidade interior que o torna rei de todo o povo, que o torna digno da princesa. Em geral o heri sai da sua aventura mais
forte, mais invulnervel e mais sbio do que quando a comeou. Este o seu processo bsico: ir vencendo obstculos graduais que vo aumentando suas potencialidades, que vo lhe oferecendo condies de passagem a nveis cada vez mais sofisticados de existncia espiritual. O heri inicia sua aventura em estado de ignorncia e termina o percurso como rei sbio. Isto ocorre porque ele passou por muitos sofrimentos, por muitas perdas e feridas. O heri que chega l, pega uma espada de deuses emprestada e, sem mais, mata o monstro na primeira esquina, no heri. Ele tem que passar por uma dorzinha, derramar o seu sangue. O percurso do heri representa, sob o ponto de vista psicolgico, a passagem da vida infantil para a vida adulta, o que envolve necessariamente um autodesmembramento temporrio. Neste sentido o heri pode apenas alcanar o pleno conhecimento de suas potencialidades aps experimentar o terrvel sacrifcio de si mesmo. Esta simbologia do sacrifcio herico estaria ligada morte ritual do mundo infantil, ao "despedaamento* dos desejos regressivos e dos medos que dominam o sujeito na sua passagem para o mundo adulto. O grande estudioso americano das religies, Joseph Campbell, elaborou uma estrutura bsica do mito herico que seria seguida por todos os heris de todos os tempos e naes. Consoante Campbell, a aventura do heri pode ser dividida em estgios elementares pelos quais todo heri passaria. Seriam estes: 1) "o nascimento complicado"; 2) "a educao inicinca"; 3) "a chamada aventura"; 4) "o auxlio sobrenatural"; 5) "as provas iniciticas, incluindo a catbasis do heri e sua luta contra o monstro"; 6) "o retorno e o casamento". Vale a pena comentarmos brevemente sobre cada um destes estgios. Sob o ponto de vista de Campbell, seja o heri grego ou brbaro, gentio ou judeu, antigo ou moderno, sua jornada sofre poucas variaes no plano essencial. Quando so encontradas variaes na morfologia bsica da aventura elas so irrelevantes praticamente. O mito do heri segue sempre um padro arquetpico que funciona segundo os moldes da psique humana. Em outras palavras, na abordagem arquetpica o mito do heri corresponde simbolicamente ao prprio desenvolvimento da conscincia do homem. Neste senado os estgios apontados por Campbell representariam os prprios estgios de desenvolvimento da personalidade humana, desde a infncia at a maturidade.
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Todo heri tem um nascimento complicado por conta de sua dupla maternidade ou paternidade. O pai ser deus ou a me ser deusa, mas o heri contar tambm com pais e mes "adotivos" que sero mortais. Ter, ento, um pai ou uma me divinos, espirituais; e um pai ou uma me mortais (os famosos "padrastos" e "madrastas"), que podem ser benvolos ou malvolos segundo a funo que desempenham. Alm dessas complicaes, o prprio nascimento do heri ser precedido por muitas dificuldades, j que seu advento fruto da problemtica e proibida unio entre deuses e mortais. Estas dificuldades que precedem o nascimento do futuro defensor da humanidade envolvem certas circunstncias estranhas e mgicas, tais como a esterilidade dos pais (representando a esterilidade do reino todo), uma relao sexual secreta ou proibida, um tabu sobre o advento da criana, uma ameaa dos orculos ou uma maldio familiar. Um tpico exemplo de nascimento complicado o caso do heri e rei Arthur. O rei Uther Pendragon apaixona-se pela princesa Igrayne, que, no entanto, j casada com o inimigo mortal do rei Uther, o Duque de Cornwall. Incapaz de controlar seu desejo avassalador, Uther pede ajuda ao mago Merlin para obter uma noite secreta de prazeres com Igrayne. O mago promete a Uther satisfazer sua luxria se, em troca, o rei lhe entregar o filho que nascer desta unio. Dominado por seus desejos, o impetuoso e inconseqente Uther aceita o trato, pensando em enganar Merlin no momento apropriado. Para executar o seu plano, o mago faz com que Uther adquira o aspecto fsico do Duque de Cornwall. Desta forma o rei consegue enganar a todos, penetra facilmente no castelo do Duque e tem relaes com Igrayne, que acredita ser ele o seu marido. O fruto desta unio foi o heri e futuro rei Arthur. Conforme o pacto entre Merlin e Uther, Arthur teve que ser entregue pelo pai ao mago logo no dia do seu nascimento, sendo, ento, criado por um humilde e simptico nobre. Desta forma o rei Arthur , simultaneamente, filho do corpo do Duque, da alma de Uther e do esprito do mago Merlin, sendo, alm disso tudo, ainda criado por um quarto pai adotivo. Devido a todas estas dificuldades a criana-heri ser, mais cedo ou mais tarde, abandonada pelos pais verdadeiros para ser criada por pais adotivos de origem humilde ou at por animais. Estes pais adotivos, em geral, possuem a sabedoria necessria para criar o heri e prepar-lo para suas futuras gestas. Somente os pais "adotivos" (animais de vrias espcies,
magos, pescadores, pastores, fadas, caadores) podem oferecer ao futuro salvador da humanidade a sabedoria ou o conhecimento secreto que os "verdadeiros" pais no seriam capazes de oferecer. Para que o heri inicie ento seu roteiro de conquistas e vitrias ele tem que receber de seus pais adotivos esta educao iniciatica que possui as caractersticas simblicas de um rito sagrado preparatrio. A criana aprender desde cedo os segredos da natureza ou o manejo de uma arma sagrada especial, ou saber falar com os animais, ou adquirir um conhecimento secreto sobre alguma particularidade da vida. A educao inicitica vai "fortalecendo" o heri fsica e moralmente, preparando-o espiritualmente para cumprir sua misso divina. Sem esta educao especial o heri seria incapaz de desprender-se do mundo idlico da infncia para ingressar nas regies de perigos terrveis e de mistrios fascinantes que ele ter que enfrentar. Deixemos um pouco os picos para trs e voltemo-nos ora ao heri moderno para compreender que este tambm se encaixa perfeitamente no roteiro elaborado por Campbell para o heri antigo. Vejamos o exemplo do Batman. Este heri contemporneo - criado nos Comics antes de Campbell ter escrito o seu livro sobre o roteiro do heri - segue rigorosamente a estrutura simblica que temos delineado neste texto. O fato de que, no "mito" do Batman, algumas imagens antigas tenham sido substitudas por signos mais atuais no afasta significativamente o nosso homem-morcego do heri clssico. Batman tambm abandonado, pois seus pais morrem quando ele era ainda criana. Seu "pai adotivo" ser o mordomo Alfred, que funciona como um verdadeiro protetor, sbio guardio, capaz de oferecer ao pupilo a sabedoria e o afeto necessrios ao bom desenvolvimento dos super-poderes do futuro cavaleiro das trevas. nico a conhecer a verdadeira intimidade e os "desvios psicolgicos" do homem-morcego, Alfred tambm desempenha o papel divino de um sacerdote que magicamente auxilia o heri em seu Templo sagrado da Bat-Caverna. A criana herica j vem ao mundo com duas virtudes "naturais", dons divinos que o comum dos mortais no possui: a ctret, a superioridade em relao aos outros homens, e a time, a honra e o orgulho pessoais. Estas virtudes dotam o heri de caractersticas divinas j desde o seu nascimento, e o predispem a poderes gloriosos. Ele ser o mais forte, o
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mais belo, o melhor nesta ou naquela aptido, o mais inteligente, o mais bondoso, etc. Por outro lado, estes dons divinos tambm so ambguos como tudo no heri, e podem lev-lo ao descomedimento e hybris, mais cedo ou mais tarde. Resta dizer que a educao inicitica, ento, vem apenas aprimorar ou acentuar os dons que j so inatos no heri. Os dons da time e da aret so ambguos porque podem levar o heri a possuir um excesso de orgulho e de virtudes. Este excesso pode prejudiclo, pois ele no deve se esquecer de que um simples mortal, e no um deus. No entanto o nosso guerreiro vai, muitas vezes, acreditar que um deus. O heri vai chegar e dizer: "vou matar aquele monstro, eu posso", quando no pode nada. Antes ele ter que descobrir humildemente que tambm precisa da ajuda dos deuses pois carente e vulnervel. Ocorre que a maioria dos heris gregos ofende os deuses em sua ousadia e, por conta disso, acabam morrendo tragicamente ou cometendo erros terrveis e injustias absurdas. Tomemos de novo o exemplo de Aquiles, na Ilada. Aquiles cai em hybris quase a cada cinco pginas do poema porque, realmente, ele muito poderoso. O heri alcana vitrias incrveis contra os troianos mas tambm possudo por excessos inconcebveis de insensatez e raiva. Aquiles vai agir de forma infantil e desequilibrada quando, num dos primeiros cantos da Ilada, ele se ofende com o chefe do exrcito grego, o rei Agammnon. Aquiles fica ofendido em sua time, em sua honra, porque uma escrava sua teve que ser oferecida ao rei Agammnon. O heri no admite esta ofensa e diz: "no luto mais". Esta infantil e teimosa atitude acaba simplesmente por levar o exrcito grego beira da derrota, pois Aquiles fica realmente sem lutar durante um tempo. A chamada aventura o momento em que o heri, em geral na adolescncia, depara-se pela primeira vez com uma figura sobrenatural que lhe revela seu verdadeiro paradeiro, sua origem divina e sua misso especial. Este "arauto" do destino chamado por Campbell pelo nome de guardio da porta ou do limiar. Realmente, este ser sobrenatural, que abre ao heri as portas da aventura, comporta-se como um guardio simblico do reino inconsciente por onde o heri ter que vagar e errar daqui em diante. A chamada pode advir de um "erro", de um mero acaso ou de uma hybris do heri, e ela apresenta-se como manifestao inicial dos poderes misteriosos que esto entrando em jogo na sua vida.
A chamada demarca o momento crucial da "separao" do heri. Ele repentinamente, dolorosamente, afastado de seus pais e de seu mundo conhecido, para ser jogado num reino de perigos e encantos. A vida do heri agora est ameaada. O arauto ou agente que anuncia a aventura, por conseguinte, costuma ser sombrio, aterrorizante, repugnante ou considerado inicialmente malfico. Pode ser um animal, um mago, um ogro, um ano, uma bruxa, um tirano. Este guardio, que abre para o heri as portas do desconhecido, j pertence ao reino misterioso que ele anuncia, por isso constitui, ele tambm, um mistrio para o nosso herico aventureiro. Um belo exemplo de chamada, dentro de seu tpico clima de mistrio apavorante, pode ser encontrado na lenda do heri Aladim, das Mil e uma noites. O terrvel feiticeiro Jafar se faz passar por tio de Aladim e convida-o para um passeio, noite, nas montanhas. Jafar conduz o heri at uma negra fenda encravada nas rochas. Sob a luz tnue do luar, Aladim percebe que a fenda a entrada de uma escura e infindvel caverna. Jafar pede ao amedrontado rapaz para descer at o fundo da caverna e de l trazer uma "velha e intil lmpada", que tinha cado um dia "por acaso" naquela fenda. Desesperado, Aladim percebe o intuito do perverso tio e responde que no vai. O mago repetidamente insiste com Aladim, chegando a bater-lhe no rosto. Aladim, apavorado, est agora certo de que o tio deseja sua desgraa, e tenta fugir. Jafar agarra o heri pelas rochas em declive e, quando se levanta, percebe que est num tnel completamente escuro que desce, desce, desce, sem nunca chegar ao fim. Tenta subir de novo, mas a volta impossvel. Ouve longe os gritos do tio, do lado de fora: "se voc no buscar minha lmpada, eu te deixo preso neste buraco at a eternidade". Aladim no tem outra opo. Deve prosseguir, pelo menos esta sua nica chance. Durante dias vaga pelas trevas totais, sempre descendo, descendo, descendo, como um condenado. Encontra a velha lmpada e retorna, subindo, com grande esforo, tudo de novo. Assim comeam as aventuras do Aladim e de sua lmpada mgica. Uma chamada terrvel e apavorante, cujo arauto foi um feiticeiro cruel que desejava a morte de Aladim. O heri quase recusa a chamada, mas o apelo do destino foi mais forte. Graas a esse tio perverso, representante das foras ocultas, foi aberto para Aladim o portal de suas trevas interiores. Agora s lhe resta obedecer corajosamente ao chamado do mistrio. No h caminho de volta.
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Para aqueles que no recusaram o chamado, o primeiro encontro do heri se d com uma figura protetora que fornece ao aventureiro amuletos, armas ou objetos especiais que o protegero contra as foras tirnicas que ele est prestes a enfrentar. Alm disso o protetor, de origem sobrenatural, em geral indica ao heri o modo correto de realizar a sua misso, ou lhe mostra o caminho certo, ou oferece um conhecimento secreto. O importante lembrar que este protetor supre a carncia inicial do heri, tornando-o no s fisicamente mais apto como tambm lhe oferecendo a segurana moral e a autoconfiana necessrias para que ele leve a cabo sua perigosa misso. Mais tarde o heri ter de enfrentar o grande perigo totalmente sozinho; mas, de incio, este protetor deve acompanh-lo, pois o nosso matador de monstros ainda no aprendeu a confiar em si mesmo. Neste sentido o protetor representa direta ou indiretamente o pai ou me divinos que desejam ajudar seu filho nos momentos difceis. O guardio protetor ser ou um mensageiro do deus ou deusa que pretende ajudar o heri, ou ser o prprio deus ou a prpria deusa disfarados. Nos contos de fadas e nas estrias dos heris modernos esta presena divina substituda por uma entidade no divina, mas inequivocamente sobrenatural e mgica (um mago, um ano, um animal falante, uma fada, assim como o mordomo Alfred para o Batman ou o professor Xavier para os X-men). Dentro da linha de abordagem arquetpica, este momento da chamada e a apario do "protetor" eqivalem a pontos fundamentais no processo de desenvolvimento da personalidade. O momento da chamada representa simbolicamente a fase em que o sujeito, ainda adolescente, descobre-se como indivduo diferenciado e nico, distinto da imagem paterna ou materna at ento dominantes. Nesse instante o adolescente percebe que torna-se urgente desenvolver a sua prpria personalidade. E necessrio, ento, mergulhar dentro de si mesmo e clarear os recantos mais obscuros do eu, confrontando-se com os terrveis poderes que ali se ocultam. A figura protetora do guardio surge neste perodo representando um novo poder da personalidade que a psique infantil antes desconhecia. Tendo respondido a seu prprio chamado, e prosseguindo corajosamente, o heri encontra todas as foras do inconsciente do seu lado. Maternal ou paternal, este princpio sobrenatural de proteo ao heri significa o
apoio dado personalidade consciente por parte do sistema mais amplo da psique que Jung denominou "Self". Aps todas esta etapas, o heri finalmente est apto a realizar a "passagem", transpondo os limites de seu mundo conhecido e adentrando no reino ameaador de seu prprio inconsciente, onde encontrar perigos e obstculos inexorveis. O heri est ligado luta e ao combate, assim como a toda uma srie de obstculos, incluindo o que se denomina tarefas e provas de resistncia do ego. O termo heri permaneceu nas lnguas modernas com o sentido de guerreiro, de combatente. De fato, todo heri um guerreiro e acabar, mais cedo ou mais tarde, tendo que combater. Realmente nada reala tanto o heri como sua qualidade de bravo lutador e combatente intrpido. Esta , principalmente, a preocupao de Homero ao falar dos bravos da guerra de Tria: exacerbar seus talentos e poderes sobre-humanos na guerra. Basta abrir a Ilada e a Odissia para contemplar o grandioso desfile de gigantes guerreiros tais como Aquiles, Heitor, Ptroclo, jax, Diomedes, Enias, Ulisses. O inimigo do heri pode ser todo um exrcito de inimigos poderosos, podem ser demnios ou as foras da Natureza (o vento, o mar, o gelo, etc). Mas contra o monstro que o heri tem, realmente, que colocar prova suas qualidades blicas, morais e espirituais de forma mais terrvel e intensa. O monstro constitui o cerne do rito inicitico do heri, pois vencer o monstro significa dominar as potncias das trevas que habitam no prprio interior do indivduo. O heri um "limpa-monstros" na medida em que o nico mortal capaz de enfrentar os demnios que dominam a frgil humanidade. Os monstros podem ser considerados como encarnaes simblicas de complexos, desejos e terrores obscuros da psique inconsciente. Vencer um monstro , antes de mais nada, vencer a si mesmo, ultrapassar barreiras internas, desfazer "ns" afetivos, clarear os medos infantis. A luta contra o monstro consiste no encontro com as foras mais terrveis do inconsciente que devem ser trazidas luz. Por isso o monstro quase invencvel, quase impossvel de ser derrotado. O heri arrisca-se ao mximo nesta luta, mas sempre acaba vencendo aps sofrimentos terrveis. A vitria contra o monstro a essncia do rito inicitico do heri. Antes deste clmax em sua aventura o guerreiro participa de buscas, ultrapassa obstculos e realiza provas. So ritos preparatrios, tarefas que
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vo fortalecendo gradualmente o ego do heri para a luta final contra o monstro. A todo este conjunto angustiante de provas e lutas, que leva o heri a sofrer perdas e danos fsicos e morais, os estudiosos do o nome de rito de passagem ou prova inicitica. Mas a luta final contra o monstro resume toda a misso de nosso guardio. E para ela que o heri se armou e se preparou desde a mais tenra infncia. A vitria contra o monstro possibilita ao heri adquirir autoconhecimento necessrio para sua prpria regenerao espiritual e para a regenerao espiritual de todo o seu reino. Cabe-nos agora realar um pouco mais a idia de que o heri um defensor, o guardio e o salvador de todo um povo. Lembremos que a situao problemtica que precede o nascimento do heri simboliza, de forma drstica, toda a decadncia e a runa de um reino. A proibio imposta aos "velhos" rei e rainha de terem filhos, ou a ameaa oracular que pesa sobre a famlia real, compromete toda a comunidade e designa a decrepitude e a esterilidade "psquica" do reino. O heri o elemento novo (proibido porque novo) que vem ativar novamente a criatividade do reino. Dentro deste tema importante lembrar que o heri, por mais contraditrio e volvel que seja, por mais que cometa atrocidades e descomedimentos, ainda e sempre ser o grande defensor de algum ou de um povo. Ele nasceu para servir o "outro". E a perfeita representao do mais sublime altrusmo e desprendimento humanos. O heri aquele que se sacrifica - e conhece a morte de perto ou literalmente - em prol da salvao de todo o reino. Neste gesto de auto-sacrifcio o heri estar tambm possibilitando a renovao e a transformao de toda a sua comunidade. O heri prestigiado pela sociedade de que faz parte somente aps a sua vitria final, porque, de incio, ele um tabu, uma ameaa, um problema. A comunidade projeta nele todas as suas culpas e impurezas. O heri , originalmente, objeto de desdm e temor, por isso deve ser sacrificado. Ele ento abandonado, pelo rei ou pela comunidade, para que seja morto pelas feras ou pela fome. O reino original do heri sofre de uma deficincia "psquica", sendo incapaz, inicialmente, de aceitar a renovao que o heri pode trazer. A comunidade vai rejeitar o heri e o seu poder de transformao. No entanto, mesmo depois de ter sido to cruelmente renegado quando criana, o heri acaba salvando o seu povo
e revertendo o sinal negativo que o envolvia. Torna-se um rei-salvador que ser adorado por todos. Ao regressar de suas misteriosas faanhas, ao completar sua aventura inicitica, o heri j acumulou energia, criatividade e conhecimento suficientes para outorgar ddivas inesquecveis a todos os de sua comunidade. Desta forma o reino, antes estril e arruinado, torna-se de novo rico e frtil. A fase do retorno e do casamento correspondem paradoxalmente s fases mais difceis da aventura. Muitos heris falharam nestas ltimas etapas. O retorno a reintegrao sociedade, podendo representar simbolicamente o retorno do ego - sado das profundezas do inconsciente - para a luz de uma conscincia renovada e integrada. Durante a catbasis, que inclui a luta contra o monstro e a morte simblica do heri, este descobre em si mesmo uma fonte inesgotvel de criatividade e riqueza. Mas o retorno significa colocar todo este conhecimento adquirido disposio da sociedade, significa garantir a contnua circulao da nova energia espiritual dentro da comunidade. E, s vezes, o heri no est preparado para este gesto generoso. Por isso o retorno pode afigurar-se o estgio mais difcil. O conhecimento pleno adquirido "l embaixo" pode aniquilar toda a sua lembrana ou interesse voltados para "este mundo". Alguns heris no retornam, ou retornam de forma incorreta. A falha neste estgio em geral pode acarretar o fim trgico e irreversvel do heri. o que teria ocorrido com Teseu, Hracles, Orfeu e Gilgamesh que, fixados na ilusria plenitude do mundo "l de baixo", no agentaram enfrentar de novo a realidade. O casamento, mais ainda do que o retorno, pode causar trgicos danos ao heri se no for devidamente realizado. Junito Brando, Jung e Campbell parecem concordar com a idia de que a fase do casamento a mais importante e a mais difcil da aventura herica, principalmente no que concerne ao processo de transformao do adolescente em homem maduro. Casar-se significa para o heri contactar os afetos e emoes mais profundos, libertar seu lado feminino. Apenas esta unio com o "outro" lado pode oferecer ao heri a possibilidade de harmonizar sua natureza dividida e cumprir seu percurso de amadurecimento e autoconhecimento. A unio com o "outro" simboliza a completude da psique. Lembremos que o heri no deve apenas matar o drago, mas tambm voltar para sua terra, transmitir ao povo a criatividade e o conhecimento
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adquiridos e fundar uma famlia, tornando-se um Rei-Pai. Na verdade, poucos heris o conseguem. A grande maioria falha neste estgio, e o restante da vida do heri torna-se uma srie crescente de fracassos e perdas at sua morte final. Conta-se nos dedos aqueles heris gregos que completaram todo o ciclo. Quanto aos heris modernos, quase impossvel apontar algum que tenha realmente se casado e se tornado pai. Basta lembrarmo-nos da grande multido de heris modernos cujo destino a solido melanclica, acompanhada de uma espcie de "neurose depressiva", por sua incapacidade de realizar o encontro verdadeiro com o feminino (Batman, Super-Homem, Capito Amrica, os X-men, etc). Para encerrar este estudo e completar o que vnhamos tentando dizer, lembremos o que nos diz o psiquiatra Joseph Henderson sobre o heri em seu ensaio intitulado "os mitos antigos e o homem moderno*: "(...) o conflito do homem primitivo para alcanar a conscincia se expressa atravs da luta entre o heri arquetpico e as potncias csmicas do mal, personificados em drages e outros monstros. No desenvolvimento da conscincia individual, a figura do heri representa os meios simblicos com os quais o ego emergente ultrapassa a inrcia do inconsciente e libera o homem maduro do desejo regressivo de voltar ao estado de bem-aventurado da infncia".
Em 1836, o jornalista parisiense Emile Girardin lana o primeiro jornal de baixo preo, logo vendido unitariamente: o La Presse. A novidade de porte, contrapondo-se at ento forma nica de venda por assinatura e passando a incluir entre seus leitores componentes da nova classe operria - ou "perigosa" - como a chamava a burguesia assustada com o progresso social que transformava Paris. Ainda nesse ano, o La Presse publica outra novidade, um romance decupado em captulos: La Vieille Filie (A solteirona), de Balzac, j um autor consagrado. O sucesso imediato, e no tarda para que se descubra na fico seriada um filo de venda e o carro-chefe dos jornais. Novos romances surgem e passam a ser escritos tambm "aos pedaos", ou seja, o escritor assina um contrato e recebe um adiantamento; entrega os primeiros captulos; conforme o sucesso de recepo, continua ou altera o projeto inicial. Assim, personagens secundrios de agrado popular so alados categoria de protagonistas; personagens de parca emparia so eliminados por mortes providenciais; fios narrativos se esticam ou encolhem, e o prprio romance, como um todo, dura mais ou menos meses: o pblico, sentido atravs da vendagem do jornal, comanda. O sistema , hoje, o mesmo, na criao da ltima herdeira dos folhetins, a nossa telenovela: o roteirista entrega a sinopse geral e cerca de trinta captulos iniciais; alteraes podem ser feitas medida da reao do pblico, agora avaliada pelos ndices do IBOPE. Um exemplo relativamente recente e radical foi Amaznia, apresentada pela Manchete, em que o diretor foi afastado e Tizuka Yamasaki, ao assumir o posto, no hesitou em matar a maioria dos personagens e mudar totalmente o rumo da intriga... Voltando ao sculo XIX e a Paris: ao La Presse junta-se, no mesmo Artigo entregue para publicao.
Bibliografia BRANDO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. III. Petrpolis, Vozes. 1987. CAMPBELL, Joseph. O heri de mil faces. So Paulo, Cultrix, 1988. HENDERSON, Joseph. "Os mitos antigos e o homem moderno". In: Jung et alii. O homem e seus smbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1964.
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formato inovador, o Le Sicle, e mais outros. Balzac, Alexandre Dumas, pai, Ponson du Terrail, Paul Fval, Eugne Sue, so autores de folhetins, reverenciados pelos leitores, que exigem mais e mais. O folhetim vem tradicionalmente em rodap ou em folhas parte, de forma a poder ser recortado e, a seu final, encadernado pelos mais abonados, costurado pelos mais humildes, biblioteca dos pobres, que circula em emprstimos ou trocas. Leitura popular e coletiva onde algum l em voz alta para um vido grupo analfabeto, nos seres de inverno. Leitura que irmana a burguesia e o operariado emergente, palpitantes, em torno das desgraas de inocentes e sofredoras heronas, vtimas de empedernidos viles, mas salvas, enfim, por destemidos e apaixonados heris. O sucesso do romance folhetim cruza fronteiras - no Brasil, particularmente, suas tradues ocupam a maior parte dos jornais da Corte e so quase simultneas s publicaes originais - e o sculo, para morrer aps a Grande Guerra, em 1914. Morrer de todo, no: transformar-se, adaptar-se aos novos meios de comunicao - seriado de cinema, radionovela e por fim, telenovela. O que no pode morrer o momento crucial em que, para desespero dos leitores, interrompe-se a narrativa em seu ponto mais angustiante, com a famosa frmula: "continua no prximo captulo*... A prpria disposio seriada impe conseqncias estruturais narrativa: a primeira delas o "gancho": cada captulo deve se interromper de forma misteriosa ou surpreendente, obrigando o impaciente leitor a comprar depressa o jornal, ao dia seguinte. Mas, como o romance dever se estender por meses a fio, tramas mltiplas ajudam a compor uma srie de "ganchos", e eis que o ansiado prximo captulo no s no esclarece o anterior, como ainda acrescenta outro segredo ou situao de perigo vivida pelos personagens. Alguns captulos depois, retoma-se a seqncia do primeiro suspense, e assim vai sendo conduzida a leitura, fragmentada e ansiosa. Essa forma de leitura, por sua vez, comanda nova regra; ao, muita ao. A descrio, pea-chave no romance clssico, ocupa pouco espao no folhetim: bastam alguns elementos sugestivos e vagos, suficientes para dar asas imaginao dos sonhadores e serem pulados pelos mais afoitos: "...estava diante de um suntuoso castelo, rodeado por esplndidos jardins..."
No h, por outro lado, nessas histrias, lugar para personagens densos ou complexos: preciso que o leitor compreenda de imediato quem quem e quem se ope a quem. As oposies so claras: bons e maus; pobres e ricos - na ordem, diga-se de passagem. As excees so devidamente enquadradas: um pobre mau s pode ser um degenerado, punido pela morte; um rico s se torna bom aps muito sofrimento e expiao de suas vilanias, em geral, beira de uma morte resgatadora. Os conflitos tambm so claros: trata-se, no fundo, da eterna luta entre o Bem e o Mal, entre a Justia e a Injustia. Os personagens que travam essa luta so emblemticos, smbolos de valores e desejos arcaicos e coletivos. Por dirigir-se basicamente - ainda que no apenas - a um pblico pouco afeito leitura, e tambm por seu carter fragmentrio, o folhetim cultiva uma esttica de redundncias e repeties, recurso didtico, por um lado e que reaviva a memria dos leitores mais distrados, por outro (o resumo dos captulos anteriores s ir aparecer no incio do sculo XX). Outra conseqncia de ordem esttica a lente de aumento, que aponta para maus monstruosamente maus, bons definitivamente bons, sem nuances ou meio termo. O folhetim uma boa histria, contada com extrema competncia, sem maiores intenes que a de distrair leitoras ociosas e leitores espezinhados pela sorte, oferecendo a esses a evaso para um universo consolatrio, onde o Bem sempre triunfa, a Injustia punida, o Amor para sempre e a Felicidade, possvel.
Uma das grandes vertentes do romance romntico retomada pelo folhetim a da narrativa histrica, e o grande mestre , sem dvida, Alexandre Dumas, pai. Vejamos mais de perto um de seus melhores romances, A rainha Margot. A ao se desenrola - ou melhor, se enrola... - na segunda metade do conturbado sculo XVI, numa Frana dividida entre catlicos e protestantes, beira de uma sangrenta guerra civil. No que se afigura como uma tentativa de paz, o rei catlico, o cruel Carlos IX, decide casar sua irm Margarida - Margot - com seu primo Henrique de Navarra, lder
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dos protestantes. A cena do casamento abre a narrativa, bem como no belo filme de Patrice Chreau. Casamento sem amor, como regra entre prncipes; aliana poltica que rene no palcio do Louvre, residncia real, todos os chefes dos dois partidos. Carlos dominado pela me, a ambiciosa italiana Catarina de Mdicis. Desprezando o fraco Carlos, Catarina sonha em conduzir ao trono seu filho preferido, o duque de Anjou e, por preveno, matar o jovem Henrique, cuja me acabara, alis, de envenenar: com efeito, Ren, o astrlogo de Catarina, previra o trono da Frana para Henrique. Ora, que melhor ocasio que essa, com a elite protestante hospedada no palcio real? Carlos cede, mais uma vez, me e autoriza o que passou histria como a Noite de So Bartolomeu - um covarde massacre que chacinou praticamente toda a populao protestante de Paris, alm dos chefes polticos. Henrique escapa, pelo recente casamento - afinal, genro do rei - e pela cumplicidade de Margot, com quem faz um pacto de aliana poltica, preservando-se a liberdade sentimental de cada um (ambos tm uma vida sentimental assaz atribulada). Toda a ao posterior vai se estruturar a partir desse conflito inicial, que ope Henrique a Catarina. A cada momento, ele e seus aliados correm risco de vida, cruzam emboscadas, escapam de atentados. O que est em jogo o trono mais poderoso do mundo civilizado: quem vencer, ter o cetro e a coroa. Nessa luta, Henrique o heri, e a encarnao do Bem. Tem atributos de peso: em primeiro lugar, a inteligncia brilhante, a capacidade de pensar rapidamente e agir com igual presteza, a lucidez total e a astcia. Tais qualidades seriam perigosas em uma corte sanguinria e inimiga, se no fossem aliadas capacidade de controle total das emoes. Henrique no s jamais permite que seu rosto revele o que se passa em seu ntimo, como literalmente compe um personagem que lhe convm. Com seu carregado sotaque gasco, sua fala popular e sem rebuscamentos, seu jeito rude de campons criado nas montanhas, faz-se passar por um distrado e desambicioso caipira, ao largo das intrigas palacianas e das disputas religiosas. Que ningum se engane: Henrique sabe que seu cu prev a coroa de Frana, quer esse trono, dotado de uma coragem moral toda prova e de um sangue frio exemplar. Tem ainda como atributos a lealdade, a tolerncia e um auxiliar mgico: uma estrela que
brilha nos momentos cruciais. Em sua luta contra Catarina, parte de uma posio desfavorvel: pobre, perdeu seu reino, a Navarra; perseguido, espoliado e virtual prisioneiro no Louvre. Cabe-lhe, como em um RPG de aventuras, reverter essa situao e triunfar sobre os inimigos - praticamente toda a Corte. Contra ele, uma perfeita vil: Catarina de Mdicis, oponente terrvel. Tal como Henrique, dotada de astcia e inteligncia, absolutamente fria e senhora de suas emoes. Calculista e ambiciosa, Catarina uma "me madrasta* que tiraniza os filhos preteridos em prol do predileto Anjou. Como os Valois, linhagem real da Frana, uma sanguinria que no hesita diante do assassinato, sendo, como boa Florentina, uma especialista em venenos. Catarina evolui em um universo de magia, profecias, horscopos e previses lidas em vsceras palpitantes de animais sacrificados. Sua posio inicial de fora: todo-poderosa, domina o filho rei e tem, entre outras, mostras de todas as chaves de todos os aposentos do Louvre, onde pode entrar quando quiser. Dispe ainda do "esquadro volante, formado por belas jovens de seu squito, na verdade, espis de confiana, prontas a auxili-la em suas piores tramas. Se Henrique conta com Margot e os protestantes que escaparam ao massacre, Catarina tem a seu lado, provisoriamente, os dois filhos preteridos, Anjou e Alenon, ambos aspirantes ao trono e dispostos a matar o irmo reinante e a matar-se, para tanto. Ren, o astrlogo, tambm est a seu lado (mas passar a auxiliar Henrique, ao final, rendido pelo horscopo triunfante). Maurevel, um matador profissional, ser seu brao armado, bem como o duque de Guise, lder catlico. Alguns outros personagens participam do jogo: em primeiro lugar, o rei, Carlos IX - em princpio, do lado do Mal, por sua frieza e crueldade, absoluta ausncia de sentimentos e escrpulos, e por seu excesso e destempero. E ainda, como vimos, um fraco, submetido me, que odeia, mas no tem coragem de enfrentar. No entanto, brechas positivas se entrevm em sua personalidade: o carinho pela amante clandestina, uma humilde jovem do povo, Marie Touchet, que lhe deu o nico filho, bastardo; a amizade sincera por Henrique, que lhe salva a vida durante uma caada. Tratava-se, na verdade, de uma tentativa de assassinato, favorecida por Alenon, na qual Henrique, pensando rpido, age por interesse pessoal e poltico - e sua coragem e presteza tero como
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recompensa a proteo real, garantia de vida. Enfim, Carlos ser definitivamente resgatado pela horrvel morte: envenenado pela prpria me (embora o veneno se destinasse ao odiado Henrique), tem uma longa agonia, vertendo sangue por todos os poros, transformado em uma poa ensangentada. Sua lucidez final resgata, ao melhor estilo folhetinesco, os crimes passados. Os jovens La Mole e Coconnas representam um dos temas mais caros a Dumas, o da amizade viril, mais forte que a morte. So tpicos heris romnticos, jovens, belos, corajosos e apaixonados. La Mole ser a grande paixo de Margot, paixo recproca, que o levar morte; Coconnas ama Madame de Nevers, a melhor amiga de Margot. Ambos esto na Corte, a servio de perigoso e covarde Alenon, mas auxiliando secretamente Henrique. E, por fim, Margot: espelho positivo de Catarina, a nica outra personagem feminina forte. Tem atributos ambguos: a sensualidade exacerbada dos Valois convive com uma cultura que espantava a poca; inteligente e corajosa, Margot resgatada de sua busca frentica de prazeres pela lealdade a Henrique, por sua escolha pelos fracos contra os fortes, e pelo amor sincero por La Mole. Ressalte-se que seu papel menor no romance - ainda que lhe empreste o ttulo - que no filme, onde a bela Isabelle Adjani a protagonista absoluta. Sobretudo, todos tm um atributo comum: so reis e prncipes, acima do Bem e do Mal; acima de qualquer mortal, devendo contas apenas a Deus, de Quem so representantes na terra. O orgulho de pertencer famlia real uma constante neles. Os que no so coroados so aristocratas - dedicados guerra e aos prazeres, pairando sobre a comum ral. H poucos personagens vindos do povo - o mais atuante ser, no desfecho, o carrasco do Reino, que se apieda de Margot, contagiado pela lealdade que une La Mole e Coconnas, no momento da dupla execuo. Dumas no um historiador, comprometido com a veracidade factual, mas um romancista, criador de mitos. Sua leitura da histria da Frana voltada para a dramaticidade e exemplaridade dos episdios. Sua verso a mesma do sculo XVIII e, particularmente, de Voltaire, vendo em Henrique um heri salvador que anuncia uma Nova Era de paz e tolerncia, de triunfo da inteligncia e da razo: os Bourbon seguindo-se aos cruis e selvagens Valois e abrindo o Sculo das Luzes. Em oposio, Catarina
representa os Tempos Antigos, de barbrie, crendices, magia e assassinatos. Muito graas a essa viso de Dumas, Henrique de Navarra, por fim rei de Frana, aps as mortes sucessivas dos ltimos Valois - trono pelo qual abjura sua f protestante - , at nossos dias, o "bom rei Henrique", o mais amado e popular, e sua primeira mulher, Margarida, ser sempre a "rainha Margot", bela, corajosa e arrojada, to dramaticamente empapada de sangue, na lenda e no filme de Chreau. Mas, at que a profecia se realiza e Henrique consiga a coroa, muita coisa ir acontecer - assunto para uma jornada de RPG e histria que fica para uma outra vez...
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babaca e o seu respectivo pseudnimo. Como o do Homem-Aranha: Peter Parker. Ele o sujeito empurrado por todo mundo, uma personalidade quase que medocre, no sentido de mediano; no sentido tambm de acessvel a todo mundo, humanizado. Alis, o Homem-Aranha, que eu saiba, no tem namorada, como nenhum heri; j o Peter Parker, babaca que seja, s namora gatssimas. O nosso heri, o heri que aparece nas histrias de terror de um Stephen King no parece heri, ele o protagonista da histria, o foco arbitrrio das atenes. O que quer dizer isso? Aquele no qual a ao se concentra; ele no foi eleito por desgnios divinos, no tem dons, ele igual a mim e a voc. Pretende-se que voc sinta, quando l a histria, que o horror que o acomete pode tambm se abater sobre voc, em sua casa, tomando banho com a cortina de plstico - algo to frgil - como nica proteo entre voc e o mundo louco. Isso por um lado apresenta at uma perda de charme. Acho, por exemplo, que na hora de compor um jogo de RPG, entre um Perseu da vida, os Trs Mosqueteiros e um heri do tipo que estou traando para vocs - principalmente se vocs quiserem se colocar na pele de um deles - dificilmente a escolha recair sobre este nosso personagem mediano. natural que se queira ser o Aquiles. Por outro lado, peo a vocs para pensarem um pouco no desafio que representa tomar um ser absolutamente inexpressivo num grande heri, no protagonista de uma ao. Acho que esse desafio, esse percurso que a literatura de massas - literatura ampla, fortemente lida - coloca. o desafio que esse heri ou que esses protagonistas cumprem atravs das mos de competentes autores que se dedicam ao seu ofcio, que no so nem autores - para no ter sobre ns o peso dessa palavra sagrada -, so escritores, so pessoas que escrevem, que uma coisa pra mim muito mais digna; com muito mais orgulho me digo um escritor. Autor, deixa Deus, que j fez bastante. Imaginem, portanto, um heri que nem parece heri. E mais ou menos por a que a gente vai caminhar. Ento, gostaria de propor alguns acordos com vocs antes de avanar nesta conversa. O primeiro refere-se justamente a reunir esses personagens do bangue-bangue, do terror, da fico cientfica e das novelas policiais numa categoria, numa palavra: heri. Como posso falar deles todos ao mesmo tempo, genericamente? Posso falar deles todos ao mesmo tempo, entendendo que participam de
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um ambiente do qual ns participamos tambm, um ambiente cultural, um ambiente onde circulam determinadas idias, circulam determinados tipos de programa, os tipos de meios atravs dos quais circulam filmes, programas de televiso, agora a multimdia, etc. e tal. Isso tudo o ambiente, isso forma o ambiente, uma certa mentalidade em torno de um determinado objeto chamado cultura. Costumo caracterizar esse ambiente cultural como a cultura de massas, cultura que no reservada aos grandes patronos, que no reservada a quatro paredes. E uma cultura difusa, a novela que entra pela televiso e vai para um pblico altamente diferenciado. No se trata mais daquele ambiente cultural em que artista e consumidor de cultura esto agregados, em que participam de um mesmo segmento, em torno de um gosto e propostas estticas homogneas. Cultura agora coisa difusa, coisa annima. A gente joga as coisas, no sabe aonde vo parar, aonde que vo dar. E importante no confundir cultura de massas com comunicao de massas. A comunicao de massas parte da cultura de massas, a sua difuso, sua veiculao. Mas o ambiente cultural guarda outros aspectos. Por exemplo, esse elemento da mentalidade de hoje, essa humanizao do heri. Ento, esse ambiente cultural do qual compartilham diversos produtos o ponto em comum, a partir do qual posso falar tanto de uma personagem do Stephen King, quanto de um personagem de Agatha Christie - porque, a rigor, se eu fosse pegar uma lupa e tentar dissecar direitinho, acho que eles no tm muito a ver; mas, nesse comprometimento deles com a humanizao, sim, com a vulgarizao, sim: so parte do desafio de transformar o vulgar em uma boa histria. Um outro acordo que queria levantar com vocs essa maneira de encarar a cultura de massas. E muito difcil refletir sobre uma coisa que difusa, que se manifesta muito em cima de cada indivduo, subjetivamente. Uma novela, por exemplo, vamos ver que existem personagens mais simpticos para uns, menos para outros. Como a cultura de massas no deveria ser vista sem se considerar a recepo dos produtos culturais, muito difcil falar da coisa genericamente. Noutro dia eu estava lendo um romance do Stephen King, Jogo perigoso, que parece dirigido para um tipo de pblico bem diferente de A hora do Vampiro, do mesmo autor. A histria o seguinte: um casal, l dos seus 40 e poucos anos, com um casamento mais do que cansado, procura reativar as suas emoes atravs
de um joguinho sadomasoquista. Ou seja, vo para uma casa de campo, o cara algema a mulher numa cama, vo comear a ter algo parecido com uma relao sexual, quando o cara sofre um enfarte, morre, e a mulher fica l, presa, algemada numa cama de mogno. O engraado que, apesar do horror que King consegue extrair disso, no deixa de ser uma situao bastante trivial. Trivial por qu? No tem nem um super ali, no tem nenhum sobrenatural agindo ali, em nenhum momento. Existe uma mulher angustiada e um homem mono, um cadver ao lado dela. Uma coisa bem diferente disso A hora do Vampiro que, na minha opinio, a melhor recriao do Drcula a partir do Bram Stoker que j foi feita. Eu adoro... Olha, quando eu digo Drada, por favor no me falem em Coppola. Aquilo que ele fez gua com acar que devia ser inserida na veia dele, no tem nada a ver com o Drcula do Stoker, um Drcula inumano, um Drcula sem piedade, um Drcula, esse sim, sobrenatural. Um vampiro que o Stephen King foi recuperar do melhor do gtico romntico. No h uma esttica comum, no h um ponto de vista nico por onde voc possa pegar esses diferentes heris, so histrias radicalmente diferentes. Esse um outro acordo: aceitar essa multiplicidade, essa diferenciao, essa possibilidade de vrias idias que produzem diferenciao em cada leitura que voc faz. Uma coisa bastante subjetiva, bastante individual. Ou pragmtica... compe-se o personagem para causar determinado tipo de efeito. Essa a motivao bsica da cultura de massas. Isso nos d muita liberdade. A falta de determinaes a priori, a falta de uma esttica dita superior ao efeito do produto cultural torna impossvel, em contraponto com o heri pico, traar um roteiro do heri da cultura de massas. Este nosso heri gerado dentro do seu prprio ambiente, no est determinado. Perde o charme? Perde determinado charme, mas oferece outras vantagens. E nesses termos em que estou colocando sua caracterizao histrica, nessa fluidez desse heri/protagonista. Ele o heri ou o protagonista de um determinado momento, no esto predestinados a ser heris, no tm dons, no tm talentos excepcionais... precisam superar-se... so pessoas absolutamente comuns e cotidianas. Aqui, nesta sala, pode haver assassinos, aqui pode haver vampiros, enfim, aqui pode haver pessoas absolutamente monstruosas e, no entanto, parecem todas corriqueiras.
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Essa promiscuidade - ou vulgarizao - da cultura de massas um ponto bastante importante. Se algum chegar perto do Drcula original, percebe que a aura dele j desprende uma coisa enlouquecedora, voc fica perturbado perto do Drcula. J um vampiro numa histria de terror mais contempornea pode estar aqui nessa sala. Ento, digo que essa fluidez, essa falta de substncia - de essncia, de fundamentalismo - uma coisa tpica da cultura de massas. Falta de substncia nesse sentido, no h predeterminaes, no so os deuses que determinaram o que aquele heri vai ser ou o que vai fazer, no h um destino a cumprir, h uma coisa quase que ocasional, quase que acidental que leva aquele indivduo absolutamente corriqueiro, a ganhar notoriedade dentro de uma determinada trama. E tudo localizado. Aquela coisa da fundao do cosmos, da inteligncia contra a brutalidade, do cosmo contra o caos, nada disso est em jogo diretamente, a no ser que a gente queira fazer um aprofundamento por conta prpria, vlido, naturalmente, mas no nico nem excludente. Pelo menos essa a leitura que fao. Saindo ento dessa fase de acordos, avano sugerindo que, a grosso modo, de uma maneira bastante simplista, a gente pode dizer que o heri pico aquele que tem uma misso a cumprir, tem que vencer Tria, tem que chegar a algum lugar, construir alguma coisa, etc. Essa misso guarda um qu de sobrenatural. No pra qualquer idiota fazer, tem que ser o cara que tem aquele dom e que foi escolhido pelos deuses para isso. Atreva' se um mortal comum a tentar cumprir aquela misso. E dessa misso, o heri no pode escapar. Se ele se recusar a cumprir a misso, eliminado. Evidentemente, porque ela foi definida em esferas superiores. Cabe ao heri pico mostrar-se digno da honra de ter sido eleito para cumprir a misso. E essa a sua epopia, essa a sua consagrao. O heri pico tem a glria, a distino, a afirmao de sua excepcionalidade como guia de vida e de enredo. E o caso do Artur da Tvola Redonda, destinado a fundar a compreenso do estado britnico, do imprio britnico, da coroa, daquela coisa una, indivisvel, que sai da rocha. Ento, esse tipo pico um gnero que se presta muito afirmao dos mitos, principalmente os de identidade de um povo ou de uma nao. Agora, digamos que surgisse algum neste nosso pas, com a se' guinte inspirao: "Meu Deus, eu gosto tanto do Brasil, eu amo tanto o Brasil, eu gostaria de ser Tiradentes". S que no toa que Tiradentes
retratado sempre com aquela corda em torno do pescoo. S se reconhece o cara pela corda que o matou. E como se a imagem nos dissesse: "Ame os heris mas no seja igual a eles, porque olha no que d". Isso tem uma fora muito grande, a mtica do martrio, a exigncia de abrir mo da prpria vida, do nosso cotidiano, se quisermos fazer que nem os heris. E aquele carcar filando o fgado de Prometeu, que ousou dar aos homens uma parcela do poder divino. O destino de um heri trgico comumente a aniquilao. Ento, a margem da autonomia desses heris curta, estreita. Limites definidos por deuses; esses heris tm de cumprir seu desgnio, definido por uma coisa mais importante do que eles. Esse o peso do mito - o mito da nacionalidade, por exemplo, "Brasil, ame-o ou deixe-o". No tempo da ditadura, essa frase tinha um peso colossal sobre a gente. J o heri dramtico, aquele heri romntico tipo Madame Bovary, circula num circuito mais mundano, mas nem por isso pouco excepcional. E o martrio atravs do conflito consigo mesmo, atravs dos conflitos com os valores sociais. Madame Bovary uma adltera. Alis, os romnticos adoravam adlteras... adoravam mat-las. A quantidade de adlteras que eles criaram para serem sacrificadas em honra dos valores sociais ina-creditvel. E quase todas morrem por complexo de culpa, por se obrigarem a expiar com a vida por seus pecados... pecados humanos! A Luza do Primo Baslio tambm. Que diabo de febre era aquela? Morreu por culpa. A culpa uma coisa muito romntica, no sentido no do romance de dois namorados. Romntica no sentido de determinada poca. O que institua a excepcionalidade da herona era o martrio, o suicdio culposo, a negao do seu direito fraqueza. Da pra santa, faltava pouco. Justamente o contraponto que quero estabelecer, a princpio, entre o heri da cultura de massas e esses que citei que ele no representa misso nenhuma. No parte de valor nenhum, nasce sem promissrias. No tem, por princpio, para merecer o papel principal no enredo, de martirizar-se. Suas fraquezas so mais caractersticas - humanas! - do que sua excepcionalidade. Dentro do enredo, ele no est agindo em nome de ningum, age em causa prpria o tempo todo. Procura as suas vitrias, procura sobreviver a uma situao de perigo. Quando age em nome de uma causa maior, sua verdadeira motivao so idiossincrsicas, quer dizer, razes particulares dele. Assim, a composio desse heri precisa
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ser gerada no prprio enredo, seu conflito bsico no est definido heri x deuses, heri x sociedade; nada disso. E um heri individualista e bastante individualizado. Vou dar um pulo de alguns sculos, indo direto para o ano no sei das quantas, quando Isaac Azimov estava formulando as suas fundaes. O Asimov tinha ento um heri que acho bastante tpico de fico cientfica, Harry Sheldon. Asimov levou 20 e tantos anos escrevendo todos os volumes das fundaes. O ltimo livro o que nos mostra o incio da histria toda. Quando ele comeou a escrever, havia um personagem l na mitologia daquele imprio galctico, nosso Harry Sheldon, que tinha contribudo de alguma forma obscura pra fundao daquele imprio. Ento, ele era um mito. No ltimo livro, ele pega o Harry Sheldon e o materializa. E a histria de Sheldon entre os 40 e 80 anos de idade. Comea vivendo a sua crise dos 40 anos. Isso mesmo, no passa de um quarento cismado: "Meu Deus, minha vida est acabando". Asimov individualiza o mito que criou, sua angstia. Harry Sheldon quer deixar alguma coisa para a posteridade. Ento, cria a grande teoria cientfica da psico-histria, que vai salvar ou preservar a existncia da espcie humana na galxia, motivado, entre outras coisas, pela crise dele dos 40 anos: "Eu quero deixar alguma coisa pronta". Agora vou pegar uma histria do Stephen King chamada Cemitrio. "Cemitrio Maldito" foi a verso do cinema. O protagonista Lou Creed. Bem, j falei do Bram Stoker, daquele Drcula fantstico que no bem nem mal, que simplesmente no humano. Ns, para ele, s interessamos como fonte de suprimento, sacos de sangue. Todo o resto que a gente considera humanidade, sentimentos, amor famlia, tudo isso pro Drcula no tem absolutamente nenhum valor, ele um predador, ele uma coisa inumana. A, pegamos o Lou Creed, o heri do Cemitrio. Esse sujeito vai comprar uma propriedade - no podia ser em outro lugar? ao lado de um cemitrio amaldioado que tem a capacidade de ressuscitar mortos. Mas no ressuscitar assim numa boa, no. O morto volta mais monstruoso do que qualquer.... uma coisa... enfim! Ento, voc pensa: Esse homem vai enfrentar um perigo desses? Quem esse homem? A histria inicia-se no dia em que a famlia est de mudana. Ele est no carro com a famlia dele, a filha est choramingando, o beb est berrando, a mulher est resmungando e ainda tem um gato no veculo. Isso so as
primeiras cenas da histria. Podia ser mais prosaico, mais medocre? No podia. S pra resumir, a filha que choraminga vai ser a nica que se salva, o beb berrando vai virar um monstro depois de ressuscitado e o pai vai ter que mat-lo, assim como o gato, que foi pavimentado no cho por um caminho. O bichano fora enterrado no cemitrio, ressuscitado, e retornou um monstro fedendo a cadver o tempo todo. A esposa vai ser trucidada pelo beb-monstro. Quando Lou Creed v que sua famlia acabou, no se conforma, enterra a esposa no tal cemitrio. Da, ela ressucta e... imaginem como voltou. E tudo isso aconteceu a uma inocente famlia suburbana, sem nada demais, como tantas em toda a Amrica. E um terror que pode adentrar pela sua casa ou pela minha sem mais nem menos. O que o desgraado do Creed fez? Ele foi escolhido pelos deuses? Afrontou desgnios sagrados? Desonrou-se perante o Estado, os valores morais? Nada disso, ele era um cara como eu e voc; ele deu azar! Em Os crimes da Rua Morge, do Edgar Alan Poe, h um detetive fantstico, o Dupont, que, observando pistas - que eu acho que nenhum ser humano normal seria capaz de ver-, acaba descobrindo que os crimes so cometidos por um smio enlouquecido. Foi o primeiro psicopata da histria americana. O primeiro Serial Killer da histria americana foi um macaco. Notem a excepcionalidade do assassino e a do detetive. Lembrem Sherlock Holmes tambm. No tem pessoa que no se sinta um imbecil, um verdadeiro sr. Watson, quando Sherlock Holmes comea a dizer: "Voc est vendo aquela mancha, aquela mancha amarela, mais puxada para a direita do que para a esquerda? Isso quer dizer que...". E a, daquela mancha, conclui que o suspeito esteve na ndia. Todo mundo se sente um imbecil lendo aquilo, no s o Watson. Claro! Esses seres so excepcionais. J Agatha Christie tem Miss Marple, uma velhinha que vive de rendas modestas numa cidade chamada St. Mary Mead. Tricota, tem um jardim, sabe cozinhar, principalmente fazer compotas e muito observadora. Ento, como ela observa a alma humana, acredita que o ser humano o mesmo em qualquer lugar, o mesmo de St. Mary Mead, que deve ter aproximadamente 3 mil habitantes, contando com toda a periferia. Ela desvenda todos os crimes, baseada em suas observaes sobre a alma humana. O raciocnio que a conduz soluo dos mistrios reconhecer que o assassino pode ser qualquer um, no um ser horrendo, identificado
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como malfico primeira vista. E ela faz sacaes geniais, simplesmente porque uma pessoa observadora, dotada de uma sabedoria que vem com a experincia, com a idade. Totalmente prosaica! Podia estar sentada entre ns. Ns estaramos pensando: Porque que ela est aqui nesse ar refrigerado? O que que ela est fazendo? Ela est ali provavelmente caando um criminoso com a ponta do olho. No h excepcionalidade nenhuma. Qualquer um de ns pode ser tanto o detetive quanto o criminoso. Com esses elementos que se constri o protagonista do objeto cultural na cultura de massas. Sua caracterstica fundamental a identificao com a pessoa que l o livro, que assiste ao filme. Ele precisa ser mundano, e dessa mundanidade, desempenhar emocionantes papis em enredos bem urdidos. Essas so as suas exigncias. Alis, exigncias da prpria seduo. Um sujeito que trabalha em computao grfica da mais enlouquecida, dessa que produz efeitos especiais de deixar o queixo cair, me disse outro dia que h uma boa razo para, quando se quer produzir uma cena de sexo, por exemplo, cenas erticas, abrir-se mo do computador e botar seres humanos de carne e osso na frente da cmera. "O negcio o seguinte", ele me explicou, "a gente podia forjar corpos de deuses, perfeitos, e bolar acrobadas impossveis sob a lei da gravidade para enroscar os dois... mas ningum sente teso por algo que no humano". Essa uma boa sntese de todo o raciocnio que procurei desenvolver aqui.
DEBATE
Platia (Daniel Braga): Eu s queria fazer uma colocao, uma opinio pessoal sem, em nenhum momento, querer discordar do que o Lus Antnio disse sobre o Drcula de Copolla. E lgico que ele no inumano, como o do Bram Stoker, mas ele tambm um predador. S que tanto um quanto o outro so movidos pelo amor. E o principal objetivo deles. Lus Antnio Aguiar: Mas no existe isso no livro do Bram Stoker. No existe aquele amor do passado. O passado do Drcula, inclusive, uma coisa absolutamente nula, no existe. Ele no tem memria, ele morto. A vida dele como vivo no existe. Platia (Arthur Vecchi): A professora Isabela disse que o arqutipo do heri o grego e vem at hoje, at os tempos modernos. E o Lus Antnio Aguiar, ao contrrio, nega essa vinda do arqutipo do heri grego at os dias de hoje. Coloca, at, a figura do anti-heri na histria. O que no tem virtude nenhuma, no tem nada, est l por acaso, age mal e acaba resolvendo o problema. Eu quero saber qual a diferena, como que esse arqutipo vem at hoje e como que ele pode ser negado. Isabela Fernandes: Respondendo ao Arthur, eu continuo com a minha primeira definio de que o heri o mesmo, desde os gregos. As diferenas entre o heri antigo e o moderno no devem ser desprezadas, mas este problema das diferenas pode encontrar soluo mais criativa do que a mera repetio de um "clich" bem a gosto da atualidade, o "clich" que declara ser o heri - e qualquer figura da tradio popular o mero reflexo de uma poca ou cultura especfica. Claro que existem diferenas entre o heri moderno e o antigo, mas estas so irrelevantes para a estrutura do mito como um todo. Por exemplo, dizer que o heri antigo tem o respaldo divino e que o heri moderno no tem (sendo heri "por acaso"), e dizer que esta diferena decisiva para desarticular a teoria do arqutipo , no mnimo, desconsiderar o carter simblico de toda lenda, seja antiga ou atual. Em outras palavras, quero dizer que os signos que nutrem as estrias dos heris - antigos ou modernos - no podem ser compreendidos ao p da letra porque so smbolos. Realmente, Batman, ao p da letra, no possui nenhum deus por trs dele ajudando-o.
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Mas se formos ver mais de perto, o que encontramos em Batman? Uma inteligncia absolutamente divina, uma fora de vontade digna de um heri homrico e um supercomputador que um telo dos deuses do Olimpo (e que resolve tudo, absolutamente tudo). Desta forma os signos que surgem nas estrias atuais so diferentes daqueles que alimentam os mitos antigos, mas estes signos distintos remetem a sentidos simblicos semelhantes. Os elementos mgicos e divinos que envolvem o heri antigo s desaparecem superficialmente, eles vm disfarados na vestimenta do banal e do corriqueiro. Por exemplo, os valores que, nos mitos antigos, esto ligados ao divino, e por isto possuem uma funo mgica e religiosa na aventura do heri, so substitudos, nas estrias modernas, pelos valores "corriqueiros" da cultura moderna, que, no entanto, guardam sua funo mgico-religiosa. Chamam-se eles liberdade, democracia, cincia, indivduo, ecossistema, equilbrio psicolgico e outros. So estes os "deuses" que ajudam nosso heri moderno, e sua proteo permanece sendo absolutamente milagrosa e mgica. Um outro exemplo: o heri moderno, apesar de ser mais individualista, ou mais "neurtico", do que os heris do passado, continua tendo como interesse central salvar o prximo, salvar o seu "reino", seja ele a cidade de Nova Iorque ou a de Gotham City. O heri atual, mais individualizado, no por isso menos generoso ou altrusta. O valor "divino" atual tambm o indivduo, por isso o heri de hoje bem mais voltado para ele mesmo, mas eu desconfio que ele no mais narcisista ou mais neurtico do que o foram Teseu ou Hracles. Assim, o "corriqueiro" que predomina nas estrias modernas um disfarce simblico. Por trs deste corriqueiro continuamos encontrando o heri superpoderoso, ainda cheio de ideais e ainda salvando as cidades de inimigos demonacos. O Alfred do Batman um mordomo, mas tambm, principalmente, um guardio protetor; os poderes do Aranha vm de um acidente radioativo, mas vm tambm, principalmente, dos deuses disfarados em tecnologia nuclear. Lus Antnio: Existe uma divergncia, uma divergncia terica. Eu no aceito arqutipo nenhum, esse negcio de inconsciente coletivo, essa coisa que est no inconsciente e que todo mundo tem, eu no aceito. Para mim as mudanas so mais significativas do que o que permanece. Elas recontextualzam o que permanece, e o transformam, tornam-no uma outra coisa, indita. H semelhanas, claro, mas apenas uma opo
prioriz-las. E as diferenas? Eu acho que a Histria reformula a mentalidade das pessoas. Uma corta a outra, no h um resqucio ali, no fundo do inconsciente da gente desde os tempos da Pr-Histria, que define o ser humano at hoje. No acredito nessa coisa do coletivo, da formulao inconsciente de uma realidade. Acredito, sim, numa construo social. A cada momento a sociedade formula, ativamente, produz as suas vises da Histria, da sua atualidade. Mas isso no matria inerte. Eu acho que num momento onde prevalece a mundanidade, a mediocridade, num sentido assim de mdia do heri, onde o sentido aproximar esse protagonista - por isso que eu chamo de protagonista - do ser humano, isso uma diferena to significativa que ns estamos diante de uma novidade. Ns estamos diante de uma outra coisa. Claro que se voc pegar todas as histrias que j foram escritas 300 mil vezes, voc vai encontrar semelhanas. Mas, se voc for valorizar a diferena, se pensar pelo lado da diferena, voc vai encontrar tambm marcas profundas nesses heris que no parecem heris, que no tm dom divino nenhum, que agem quase que para sobreviver, que no foram escolhidos pra isso, que so parecidos comigo, com voc, to parecidos que parecem mesmo que so gente. O sentido de aproximao; esse um sentido, para mim, totalmente diferente, radicalmente diferente. Um Lou Creed protagonista no porque faz alguma coisa que o torna heri. Ele protagonista porque a ao, o roteirista, ou o escritor, concentrou a ao nele. Isabela: Lus Antnio, o Batman e o Homem-Aranha no so absolutamente parecidos com a gente. Eles no lutam para sobreviver, eles o fazem por hobby. Lus Antnio: O Batman e o Homem-Aranha tm que ser vistos pela personalidade que eles tm com mscara e sem mscara. O personagem no fundo um s. E a humanidade deles uma das causas de seus conflitos - eles no conseguem abrir mo dela. Snia Mota: Eu acho que est claro para vocs todos que existe realmente, como o Lus Antnio observou, uma diferena grande de opinio entre os dois debatedores, o que muito saudvel. Pina Coco: So duas coisas com a mesma palavra. Na verdade dizer: "fulano o heri da histria" uma coisa. Eu quero dizer que ele a personagem principal e o protagonista. Agora, um heri? Talvez o que no exista mais seja o heri. Simplesmente isso.
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Platia (Alexandre Maron): Minha primeira colocao seria a seguinte: a Pina Coco disse que os folhetins de hoje em dia seriam as telenovelas, passando pelas novelas de rdio. Acho que uma caracterizao muito forte dos folhetins so tambm os comia, os super-heris americanos. So extremamente folhetinescos tambm, tm uma seqncia enorme de 20, 30 anos com aquelas mesmas personagens e as estruturas mudando, sendo sempre uma seqncia. Eu queria ajudar a botar lenha na fogueira um pouquinho. Eu queria perguntar para a mesa se essa mudana de foco no reflete uma mudana de paradigma, do fato de que, hoje em dia, a classe dominante de repente se diluiu. Hoje existe uma classe mdia enorme, uma mediocridade no sentido mesmo de mediocridade do mdio, o mdio domina. Ser que no isso que influencia a mudana do grande heri cheio de qualidades para o heri comum, para o heri que igual a cada um de ns? Pina Coco: S pra falar a questo dos comics. Nem tudo que seriado folhetim. Os comia, primeiro, tm imagem; o que a novela tambm tem: o mesmo personagem o tempo todo. Pode ser tambm um avatarzinho, porque o folhetim mais a questo da narrativa mesmo, o tema, o tratamento e a seriao, mas pode ser tambm. Lus Antnio: Para entender um ambiente cultural voc tem que pensar com todos os elementos que participam dele. O pblico ao qual o produto se dirige, o pblico que consome um determinado produto, sem dvida nenhuma, um dos fatores determinantes. Eu no acho que o nico, eu no acho que se faz tudo em funo disso, eu acho que uma coisa interativa. No meu tempo de faculdade se dizia que era uma coisa dialtica. Mas tudo bem, o que eu quero dizer que uma coisa transforma a outra. Ento, o fato de haver hoje um largo pblico de classe mdia, de classe mdia baixa para os produtos culturais, influencia na composio dos personagens. Voc tem que ver que o tempo inteiro tem uma mo mexendo aquelas coisas, moldando aquela massa ali pra fazer o po e uma mo que participa do mesmo ambiente, da mesma emoo, que assiste mesma telenovela que voc assiste. Ento, o escritor, o roteirista ligado nisso. Eu acho que uma caracterstica desse ambiente de cultura de massas. O artista hoje, j no tem aquela coisa de se sentir caminhando a 10 metros do cho. H uma coisa para mim mais democrtica no sentido de que a arte no exige tanta elitizao. A fronteira do que arte ou no
se quebra, abre-se o acesso a um maior nmero de pessoas sem aquela exigncia de um ritual de iniciao por parte do leitor, do espectador, que na verdade um grande funil. Entre outras coisas, modifica-se a postura do artista, que um ser humano, igual a qualquer um. Platia (Fbio): Meu nome Fbio, no jogo RPG, estou comeando a jogar agora, mas me interesso pelo assunto, e sou escritor, amador ainda. Eu queria fazer duas colocaes. Primeiro, quando voc falou sobre o Cemitrio maldito, o protagonista no deu azar, ele foi burro mesmo. Pelo amor de Deus! O cara enterra o gato, o gato volta daquele jeito; enterra o filho, o filho volta daquele jeito e, quando a mulher morre, ele enterra a mulher. Falar o qu de um sujeito desses? Lus Antnio: Que um ser humano normal igual a qualquer um, capaz de cometer erros. Platia (Fbio): Errar uma vez humano, duas vezes burrice, trs vezes ento... A outra colocao que eu queria fazer a seguinte: foi discutida aqui a diferena de pontos de vista sobre o heri. Eu vim falar de uma experincia pessoal, que foi uma coisa que eu j fiz em algumas histrias que escrevi, que voc unir as duas coisas. Pegar aquele cara medocre, comum, um Peter Parker num Clark Kent da vida, s que com poderes fantsticos e que no ganhou aquilo por acaso. Foi escolhido por agraciamento divino para cumprir uma misso, s que ele no cumpre. Mesmo assim, continua sendo super capaz. A est a ligao entre as duas verses de heri. O heri grego, escolhido por agraciamento divino, com poderes incrveis, e o heri medocre da cultura de massas, que aquele cara que est muito mais preocupado com ele mesmo, muito mais preocupado com os problemas dele, com os problemas pessoais dele, com a vida dele, do que com a humanidade, com uma causa, com determinado grupo; ou ento seguir para aquela misso para a qual ele foi escolhido divinamente. Platia (?): Eu acho que o cara pode, de repente, esquecer a misso dele e usar os poderes para resolver problemas pessoais, pode subir cabea isso. Platia (Fbio): Mas exatamente isso que acontece, o que eu expus. O cara est mais preocupado com os problemas pessoais do que com a misso divina que ele recebeu. Em suma, ele acaba ajudando as pessoas muito mais por acidente, muito mais por acaso do que exatamente pela
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misso divina. Aquele heri do tipo "Oh! desejo salvar meu pas, minha nao''. Ele est muito mais preocupado com o seguinte: vou garantir o meu, o resto que se dane. Se algum se privilegiar, conseqncia e eu acho que a coisa mais ou menos por a. Platia (Daniel): Meu nome Daniel, fao Histria na UFF e queria perguntar para a Isabela se existe essa diferena entre heris e viles na mitologia. Aqui est se debatendo, uma polmica muito grande sobre o heri em si, mas dentro da llada, dentro da prpria Odissia, por exemplo, o Heitor, inimigo do heri Aquiles, no era um vilo, no era um oposto. O tempo todo dentro da Ilada, o Heitor foi muito mais agraciado pelos deuses e muitas vezes os deuses deram a vitria a ele. No final, consegue se enterrar o corpo dele. No existia uma dicotomia, o heri e o vilo. Ao mesmo tempo, o Heitor no era filho de Deus. Isabela: Era bisneto. Em algum lugar h sempre uma ascendncia divina. Daniel: Est certo, ele estava mais distante. Isabela: Edipo tambm estava distante e era heri da mesma forma. Daniel: Mas onde est o vilo? Onde o vilo aparece? Isabela: O vilo realmente no aparece to claramente, voc tem toda a razo. Aparece o monstro, ou as foras da natureza, ou os deuses enraivecidos, mas no o vilo. Realmente no podemos interpretar os deuses cruis ou os monstros como "viles". A questo do mocinho e do vilo surge mais tarde, talvez na ltima etapa da tragdia grega, e apenas sob um certo aspecto. Na Epopia, que bem anterior, ainda no se coloca claramente a questo do vilo - a no ser, com alguns "porns", na figura dos pretendentes no palcio de Ulisses, na Odissia. Mas, de modo geral, na Epopia grega o Mal ainda no est introjetado dentro do prprio homem, ele encarnado por deuses e monstros. O homem pico no pode assumir a responsabilidade pelo Mal do mundo. Na tragdia grega comeam - e apenas um comeo - a aparecer os caracteres perversos e malficos dentro do prprio homem. Daniel: Esses viles podem, inclusive, ser deuses? Isabela: No. Na tragdia grega tudo bem mais humano. Na epopia, numa poca anterior tragdia, os monstros so divinos, tm ascendncia divina tambm. Os grandes inimigos do heri pico so os monstros ou o inimigo da batalha, que no vilo, como o Heitor, que voc citou
muito bem. O Heitor no o vilo. o inimigo dos gregos, mas um heri totalmente voltado para o bem. Daniel: Dentro da Tragdia Grega, por exemplo, nas Bacantes, o Dioniso no o vilo? Isabela: De jeito nenhum. Realmente a figura do vilo aparece mais claramente em Eurpedes. Mesmo assim Dioniso no vilo nas Bacantes. Os deuses podem ter pssimo carter - e geralmente o tm - mas no so "viles" no sentido restrito do termo. Platia (Juliano Rego Monteiro): Isabela colocou que, geralmente, os heris representam uma necessidade do povo, um anseio que a populao tem pra colocar suas necessidades. Atualmente, eu tenho observado que a maioria dos heris, por exemplo, o Batman Azrhael, o Wolverine da Marvel Comics, o Lobo, muitos heris tm assumido uma postura um pouco perversa. Eles tm a mente um pouco perversa. Isto significa que a nossa sociedade tem se tornado perversa? Isabela: Isso vem confirmar o que eu disse anteriormente, o que existe desde a epopia grega. O heri com traos virtuosos e monstruosos. Aquiles era perverso de vez em quando, assim como o Batman. Faz parte da estrutura moral do heri, desde Homero. A perverso do heri, ento, eu diria que mais arquetpica, e no tanto fruto de nossa sociedade moderna to perversa. Talvez esta ltima apenas exacerbe a "perverso" natural do heri. Platia (Alberto Magno): Eu fao cinema e gostaria de lembrar que toda a unanimidade burra, ainda bem que existe esta divergncia. Tem um exemplo que bastante simples que so os heris de Nelson Rodrigues, considerado um dos grandes autores de todos os tempos. Nelson escreveu folhetim e tem personagens comuns como o Palhares, o que d beijo na boca da cunhada na porta do elevador, ou a estagiria do calcanhar sujo. E vem da mitologia grega, ento unifica a mesa. Lus Antnio: O que a gente tem que louvar no caso a genialidade de um Nelson Rodrigues, que intencionalmente fez essa juno. Se ele no quisesse fazer, no acontecia. No foi porque algo dentro dele o empurrou inconscientemente a fazer. Platia (Maurcio): Eu queria discordar um pouco do que est sendo falado, de que os heris modernos no se preocupam com o bem coletivo, s com a vida dele. Aquele pistoleiro de Os brutos tambm amam o .... ele
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pode no ser filho dos deuses, mas ele o gatilho mais rpido do Oeste, no tem uma espada mgica, mas tem os dons e se sacrifica para salvar a cidade. Acho que isso acontece em muitas histrias, at mesmo com heris da vida real. Como o Lamarca, por exemplo. Sobre a histria dos gregos, acho que seus heris, mesmo sendo filhos de deuses, com todas essas paixes, esses dios deles, de repente so mais humanos do que, por exemplo, o Clark Kent. Snia Mota: Foi o Artur a primeira pessoa que falou sobre essa divergncia. Essa divergncia est surgindo no debate porque a questo central da construo do personagem. Como todo mundo ou quase todo mu do aqui constri personagens - nos jogos de RPG, na literatura ou nos e tudos de literatura - as pessoas acabam se preocupando mais com isso. Acho que uma questo tica importante, por isso que est dando essa discusso toda. Eu fico pensando no livro A hora do vampiro, s pra pegar o Sthepen King. Neste livro o menino um heri com caractersticas gregas tambm. Quais so as duas caractersticas bsicas do heri grego? A honra e a excelncia, o que muda a questo da divindade, se isso um atributo divino ou no. Existe uma divergncia, na minha opinio secundria, sobre a inspirao do ficcionista ser divina ou se a inspirao do heri divina. Para mim essa divergncia secundria. Agora, eu acho que existe uma diferena, que a principal, que eu nem sei se o Lus Antnio e a Isabela divergem em relao a isso, que a seguinte: o que move o heri? Me parece que nas histrias - pelo menos as mais comoventes, as que mais mobilizam as pessoas at hoje, em todos os tempos o que move o heri um sentido de honra e excelncia e isso move desde os gregos, quer dizer, o menino em A hora do vampiro, sobrevive por causa disso e, inclusive, volta para destruir os vampiros. O pai dele um crico e destrudo. As pessoas que no tm excelncia, em vrios sentidos, as pessoas totalmente medocres, so destrudas. E quase como se fosse determinado que os verdadeiramente burros no herdaro o reino dos cus. Aquela pessoa, que no tem capacidade de resistir a adversidade, vai ser destruda. Em Zona mona, do mesmo Sthepen King, o heri sacrifica a vida para impedir que um nazista chegue presidncia dos Estados Unidos. Acho que tem essa coisa muito forte, quer dizer, mesmo a Miss Marple, ela tem um sentido de justia, ela s uma velhinha, e t c , etc, mas ela tem um sentido de justia e ela muito boa, ela a melhor
naquilo. Ento, eu acho que a excelncia e a honra so atenuados, mas eles se mantm. O Maurcio colocou a questo do Lamarca, um heri da nossa gerao. Lus Antnio, e as pessoas que foram heris na nossa gerao - uma boa parte morreu - so pessoas corriqueiras, estudantes como ns ramos, mas que tinham uma capacidade de sonhar, talvez, ou de resistir mais do que as outras. Esta uma diferena que no to medocre assim, no ? No sei se voc falou nesse sentido. Lus Antnio: No. Primeiro, isso: eu no uso medocre com um sentido de ruim. Uso medocre no sentido de mediano, a busca de uma mdia. E no acho que a questo da inspirao seja secundria, no, acho que uma diferena absolutamente marcante, um elemento que faz toda a diferena. Quando o indivduo, que no escolhido pelos deuses, ganha foras dentro si para superar a adversidade, o que ele est me dizendo que qualquer indivduo tem foras dentro de si, independente de divindade ou no, para superar essas mesmas adversidades. Snia Mota: Mas somente alguns encontram essa fora. Lus Antnio: Isso a teologia, j teologia. Eu realmente no vou discutir, realmente eu at concordo, em princpio. Estou at tentando me reconverter, readquirir f, mas no a questo. O que eu quero dizer que h um privilgio dentro do ambiente da cultura de massas para o ser humano que no escolhido. A gente est no Brasil, um pas com 32 milhes de pessoas morrendo de fome, com essa vergonha que o Legislativo, o Judicirio, etc, etc. Isso aqui est longe de ser o reino dos cus, evidente. Existe uma tendncia importante a se observar na cultura de massas que a tendncia de dar valor ao indivduo medocre, mediano, que igual a mim. Eu no sou descendente de deuses, no sou descendente de uma raa aristocrtica, no tenho sangue azul e, mesmo assim, posso enfrentar o perigo. Tenho direito honra, excelncia, virtude, inteligncia. Isso pra mim uma diferena fundamental, que se coloca no protagonista ou no heri. O heri se faz - se se quer manter o termo heri dentro da cultura de massas -, o heri faz a si prprio. Ele no escolhido por deuses, ele no escolhido pela nao. Ele escolhido pela sua prpria necessidade e vontade de sobreviver. Isso pra mim muito mais glorioso, muito mais digno do que encostarem o dedo nele e determinarem: "voc!". E isso. Isabela: Talvez voc esteja pegando por demais literalmente a questo
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dos deuses, realmente. De novo uma divergncia de abordagem, no ? Snia Mota: E metfora, no ? Lus Antnio: No metfora! " imagem e semelhana de Deus" no metfora, uma frase que condicionou geraes e geraes e milnios de geraes. Ento, voc uma hora cria uma histria para dizer quem " imagem e semelhana de Deus" ou, pelo menos, que quem est perto disso est mais perto da perfeio. Na outra hora, voc parte para o sacrlego e valoriza o sacrlego. Eu acho que h uma ruptura, no apenas uma imagem, uma imagem que faz cabeas. A outra coisa que eu queria dizer, s para complementar o raciocnio, o seguinte: vamos admitir que eu, de repente, seja imbudo de no sei que poder divinatrio. Eu virei uma pitonisa e consegui dizer que esprito estava embutido na poca de Homero e que esse esprito perdura at hoje. Vocs vo ter de confiar muito na minha capacidade de adivinhar; eu acho que o que a gente chama de o esprito de Homero, que vem at hoje, uma viso que a gente tem de Homero. No , necessariamente, o que Homero ou as pessoas da poca dele eram. A gente sabe muito pouco sobre o que eles eram, praticamente nada. E uma viso que a gente constri, a gente vai construindo o nosso passado, at em funo das necessidades do presente que a gente tem. E essa necessidade, que atual, que se v refletida no passado... mas somente quando se faz do passado um espelho do presente. Quem aposta que o inconsciente coletivo que a gente quer levantar hoje aquele l que estaria presente em Homero? Quem que, de cara limpa, aposta numa coisa dessa? Isabela: E uma questo terica, no d para apostar nada. Lus Antnio: Mas eu apostava que no . Platia (Marcelo Arajo): Quando a gente fala de heri, ns temos que falar basicamente de duas coisas: a primeira, da dicotomia que isso nos traz, porque se ns vamos falar de heris, ns vamos falar de vilo e vamos falar de bem e de mal. Vamos falar de todas as coisas duais e duplas e ambguas que existem na nossa vida. Quando ns falamos de heris, ns vamos falar da necessidade que o homem teve de criar os heris. O homem no s criou heris. Como no caso da mitologia grega, criou deuses, porque o homem sempre sentiu uma necessidade de explicar aquilo que ele desconhece e de ser salvo por algo superior. Ento, ele atribui qualidades s pessoas comuns ou no e essas qualidades que vo
salv-lo. Ns tnhamos, na poca mais antiga, na poca clssica, o vilo, como os monstros e todos aqueles medos interiores. Depois, o heri tambm era caracterizado pela dualidade, toda a diferena que ele tinha em si mesmo. Nas novelas de cavalaria, a dicotomia mais enraizada. O heri totalmente bom, infalvel, ele no erra, a no ser no caso de Dom Quixote. Tirando ele... Ou ento ele totalmente mau, o vilo, no presta, s vai fazer maldades. Eu acho que hoje em dia ns criamos os super-heris, os chamados super-heris que foram criados na dcada de 30, pelo menos os que eu tenho mais contato, como o Batman, o Super-Homem. Esses heris, eles foram criados em poca de guerra, pocas que a humanidade precisava desses salvadores, por isso a eles so atribudos poderes excepcionais. E interessante ver que todo esse arqutipo, toda essa dicotomia, vai estar presente. Eu acredito que, quando se fala em inconsciente coletivo, estamos falando dessa dicotomia que o ser humano tem de ver o bem e o mal. Ns podemos usar o exemplo do Batman, que ele todo arquetpico. Ns temos o Batman como o cavalheiro das trevas, mas no podemos deixar de ver as duas caras que precisa de uma moeda para decidir se ele vai fazer o bem ou o mal. Ele todo dividido, ele a personificao da dualidade humana. Com o heri de hoje em dia ns buscamos retroagir ao heri passado, ns encontramos nele essa personalidade dual. Acho que o principal aspecto do heri de hoje essa dualidade. At, como j foi mostrado, esse resvalar por vezes na perversidade. Eu queria fazer um lembrete: o Lus Antnio esqueceu de mencionar o Poirot, que eu acho o melhor detetive de Agatha Christie, e ele tinha fracassos tambm. Ele e outros. Watson j escreveu que Sherlock Holmes fracassou, mas na sua linha ele se mantinha quase que perfeito e ele no era to comum. Os homens em si, eles no precisam ser heris, mas o fato de ser heri vai basear-se na superao de suas deficincias comuns, esse que o heri comum que eu acredito que o senhor est falando. Platia (Cludia): Eu trabalho no Centro Cultural, fao oficina literria e acho essa discusso muito interessante. Tem um aspecto muito importante que no foi tocado nessa polmica que surgiu, e que eu gostaria de acrescentar, que foi o surgimento do romance social e do apropriamento da crtica social pelo romancista, depois da Revoluo Francesa. Ns tivemos escritores como Balzac ou Vitor Hugo que fizeram fortes crticas
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sociedade. Eu acho que, a partir desse momento em que o escritor comea a fazer criticas sociedade, que o anti-heri comea realmente a tomar corpo. Eu queria que fosse debatida essa minha colocao. Pina Coco: Na verdade, o romance de folhetim surgiu exatamente nesse momento, em 1836. O primeiro que escreve Balzac. Aconteceu de escrever folhetim. Ento no bem por a. O fato de depois voc ter o romance social, essa mesma classe social, comea a provocar solues, pessoas comeam a se engajar, a tentar encontrar solues e ser tema tambm da literatura, mas simultaneamente coexiste. Eu no quero colocar lenha demais, embora eu ache que a fogueira super apaixonante, porque daqui a pouco no tem mais tempo para isso. E o triunfo da burguesia francesa no sculo XIX e a queda total da aristocracia do regime ancio. E uma burguesia extremamente medocre nos dois sentidos, inclusive mediana. E mediana no pode ser uma virtude. No caso no . A virtude mediana de pequena mesmo e, no entanto, essa pequena burguesia e para ela vai se criar um romance folhetim em que heris so heris e causas existem - e o Henrique IV - porque o Henrique de Navarra espoliado - torna-se Henrique IV da Frana. Depois das duas guerras mundiais no sculo XX, voc comea a ter o que o Lus Antnio chama de o heri problemtico, do anti-heri, dessa coisa na literatura, na narrativa, essa perda dessa purificao, talvez! Platia (Gustavo Lima): Eu sou da Escola Naval e sou jogador de AD &. D e Vampiro e aqui foi falado muito do heri, da questo do bem contra o mal. E mesmo apesar do conflito que a Isabela colocou bem, o conflito interior deles, eu observo que nos jogos que eu tive oportunidade de jogar a gente v o heri ao contrrio, o heri sendo a pessoa, de repente, com a ndole m e que, de repente, acaba sendo um atrativo para os jogadores. Muitos jogadores se sentem atrados por esse tipo de personagem, que um personagem da cultura moderna, como, por exemplo, a gente v O Exterminador do futuro que, sendo o vilo da histria, ele era o personagem principal. E o ttulo do filme e a personagem que ficou conhecida, apesar de ele ser o vilo. Ns temos o Jason de Sextafeira 13 que mata sem nenhum critrio, sem nenhum tipo de justia, ele mata a todos e o heri da histria. A gente tem... de Brinquedo assassino que o mesmo caso, segue a mesma linha de raciocnio. E h os prprios vampiros, o caso do jogo de Vampiro. Os vampiros, muitas vezes, no
tm necessidade de fazer justia, de fazer bem ou mal. Eles vo matar indiscriminadamente para obter alimento. O que eu gostaria de saber se, na opinio dos palestrantes, essa nova postura de ver o heri no simplesmente como uma pessoa que visa o bem e sim como uma pessoa que simplesmente tem seus prprios interesses e que pode ter uma personalidade, maligna ou no, mas que tem tendncias malignas. Eu gostaria de saber se esse novo tipo de heri, se pode ser considerado heri. Lus Antnio: Dentro da viso que eu estou colocando, pode ser considerado um protagonista. por isso que eu fao essa diferena. No que eu me prive da necessidade de heris, eu me privo da necessidade desses heris serem autorizados por foras extraterrestres. J que eles no tm essa misso dada a eles, de defender o bem, de defender a nao, defender o diabo que o parta, j que eles no tm essa misso dada a eles, podem ser crudelssimos. O Lestat, no ltimo livro eu que li, O ladro de corpos, uma peste, ele volta quele vampiro impiedoso de Entrevista com o vampiro, que era mais sedutor, ele volta quilo, tanto que... Bom, eu no vou contar o final, porque muita gente pode no ter lido o livro. Mas ele recupera aquela crueldade dele, aquela sede de sangue. Ento, o heri sem carter, ou protagonista, de fato, uma possibilidade aberta pelos tempos de hoje, j que o heri no tem que ser uma perfeio, ele tem que concentrar algum tipo de agonia, ele tem que cristalizar, galvanizar algum tipo de agonia, no tem que ser um exemplo. Vejam o Forrest Gump, que participa da guerra do Vietn porque o nico lugar onde aceitam idiotas no exrcito americano. Ele volta condecorado, mas, na verdade, s queria ter salvo o amigo, no lance que o distinguiu, e a pega a medalha e joga fora, j que a coisinha no significou nada para ele, e o grande lema da vida dele escatolgico: "quero mijar", que ele repete sempre que est numa situao de tenso. Quer dizer, ele no tem ideais. Monta uma grande empresa, e a usa como cabide de empregos para os amigos desvalidos. Por meios do avesso, ele atinge o ideal do heri americano, e desmancha todo esse iderio, todo o imaginrio do ideal americano de heri, que cumpre pelas vias no recomendveis por esse mesmo iderio. Forrest Gump, para mim, uma crtica social interessante, sem deixar de atender a exigncia da literatura de massas: o entretenimento.
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Pina Coco: Gostaria de dar um palpitezinho. Primeiro, pra lembrar que ns estamos falando - ns que somos da rea de literatura - de coisas muito diferentes. A Isabela est falando do universo grego, de mitos. Mito uma coisa tambm diferente. E de tragdia. Eu estou falando do romance folhetim que o comeo de uma coisa que eu chamo de "baixo narrar, que se ope j". Ningum vai comparar Os trs mosqueteiros e Madame Bovary, por exemplo, porque Os trs mosqueteiros no quer mais do que divertir, talvez at como um jogo de RPG. No pretende transformar, fazer a cabea do leitor, mudar suas idias, fazer com que seja uma coisa inesquecvel. O objetivo contar competentemente uma boa histria, ningum resiste a uma boa histria bem contada, um momento de distrao. O Lus Antnio est falando de uma outra coisa que a cultura de massas, ele est falando de um outro tipo de expresso. Ento, tambm normal essas separaes, essa diferena entre os diferentes tipos de heris. Ns estamos muito angustiados em tentar reduzi-los a um s. Por que no conviver? Eu creio que o que est por trs, mais embaixo, so duas questes extremamente importantes que a gente no esgotaria nem de leve aqui: a questo tica. Porque voc criar um gnio do mal, um serial killer, como no filme que O retrato de um assassino, que um filme belssimo, e a personagem no tem razo nenhuma para matar, desculpa nenhuma, no tem libi nenhum e no morre no final. E muito grave isso, muito complicado voc criar essa personagem. A personagem do vampiro - ns no podemos esquecer que ele no humano, ele um vampiro, ele j tem uma punio, no pode morrer diferente voc cri-lo como personagem, um personagem sanguinrio, brutal, cruel que mata por matar, predador que no punido. Voc querer pessoalmente o mal e a injustia uma coisa complicada, uma grande discusso. H uma outra questo que a ideolgica. Quando voc pega o Forrest Gump, eu posso achar que esse o heri dos nossos tempos, tristes tempos os nossos, como tambm posso fazer uma leitura inversa, depende de como olho. Estou olhando da esquerda? Da direita? Isso no existe mais, enfim, depende de qual a ideologia que eu teria. O que eu estou dizendo do vampiro, ele no um serial killer porque ele no humano. At por isso ele diferente. Quando, num jogo de Vampiro, todo mundo vampiro - e no temos o heri herico Ia grega, digamos - ns tambm no temos personagens humanos. Ento, as convenes
so outras. Tambm acho que uma questo semntica, acho que heri uma coisa, personagem principal, protagonista outra. Platia (Gustavo Borges): O vampiro, na maior parte das histrias, no deixa simplesmente de ser humano, ele sobrenatural mas continua com grande parte de seus sentimentos que s vezes at se intensificam. Lus Antnio: Isso um tipo de vampiro. Por exemplo, o vampiro da Anne Rice. Ele tem na memria o que era ser humano, ento ele um personagem bastante dramtico e romntico, porque est sempre em conflito com essa memria. O Drcula, em nenhum momento, se ressente da falta de humanidade, parece que nunca existiu. Platia (Daniel): Est todo mundo falando da viso atual do heri, e que o heri medocre, o heri mau, o Lobo e outros exemplos. Eu queria resgatar os heris medievais que eles eram os bons, os portadores da luz, os campees da justia. Quem foi um dos maiores heris do tempo medieval seno Lancelot, que foi o cara que colocou um chifre no rei Arthur? E o rei era um corno. A que est o grande barato do heri, o lado humano dele. Os prprios deuses do Olimpo, os deuses so maravilhosos e a vem uma Vnus olha para uma Psique e questiona: "Mas como ela mais bonita do que eu?" E Vnus vai l e acaba com ela. E isso que eu acho que o grande barato, pelo menos na minha concepo. E o lado humano do Vampiro, do heri e que existe h muito tempo, que no uma coisa de agora, uma coisa que pode estar sendo mais explorada agora. Esse o grande lance que j existe h muito tempo, pode estar sendo mais colocado agora. Pina Coco: Voc esquece s uma coisa. A personagem no preexiste. E criada pelo criador. Voc est falando como se personagens fossem coisas autnomas. Apenas para colocar mais lenha na fogueira. Platia (Maurcio Rodrigues): Eu j joguei muitos RPGs. Hoje em dia s jogo Vampiro. Todo mundo discutiu o heri folhetinesco, o heri dos deuses e o heri corriqueiro dos nossos tempos. Um grande especialista, um mitlogo que j morreu, o Joseph Campbell, definia o heri como aquele que se d para alguma coisa. Se ele mata, se faz alguma coisa errada, no importa. A principal caracterstica dele se dar para alguma coisa, se jogar para este objetivo. A, fica impossvel transformar o boneco assassino em heri. Heri por qu? S porque o nome dele o filme? Impossvel voc transformar. Outra coisa: no d, tambm, para comparar
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um Drcula com o vampiro do Sthepen King. impossvel, porque o vampiro do Sthepen King suga o sangue do ser humano at o globo ocular, ele no quer saber. So incomparveis. Agora, se voc for comparar o vampiro do Sthepen King com o vampiro da Anne Rice - que totalmente um cara porn-chique, que no quer saber de nada, s quer saber de curtir a vida - diferente. No d pra curtir a vida, vampiro no curte a vida. Platia (?): Foi dito que os heris foram criados para suprir uma necessidade do homem. O homem tinha necessidade de acreditar num deus para acreditar mais em si mesmo. Ser que agora os heris esto se tornando medocres porque o homem est crendo mais nele mesmo do que precisando se basear em algum deus? O homem hoje precisa crescer por si? Lus Antnio: Tomara, no estou absolutamente tentando reduzir a questo. Eu quero colocar uma coisa antes: que no se pense que eu aprecio tanto assim "quebrar pau" - quer dizer, eu aprecio - mas, enfim, acho que deve se levar em conta aquilo por onde eu comecei. Eu acredito muito numa fluidez dinmica das idias, hoje em dia. Que o objeto tem leituras, ele no tem verdades. Ento, eu no estou defendendo a minha idia contra a idia da Isabela. No estou dizendo uma verdade. No isso, so leituras diferentes, contribuies diferentes. Acho que uma hora voc pode usar uma leitura para conseguir um bom jogo ou escolher a outra. Platia: De forma alguma eu estou querendo colocar lenha entre vocs dois. Quero apenas associar que, de certa forma, o que era antigo comeou a ser transformado. O Lus Antnio nega que o heri receba dons divinos. Mas, por exemplo, Quirn (o centauro) tinha uma inteligncia to estpida que at deuses consultavam a medicina dele. E na nossa poca tem um - transformando - um Sherlock Holmes com uma inteligncia to estpida que descobre atravs de uma mancha. Lus Antnio: Eu disse que os heris contemporneos no se sobressaem graas a dons que recebem dos deuses. Agora, posso interpretar o que voc me perguntou da seguinte maneira: ser que hoje as pessoas esto acreditando menos em deuses? Ser que as pessoas esto precisando acreditar menos em deuses e mais em si mesmas? Eu acho - eu uso esse verbo achar porque ele frgil - eu acho que, dentro do ambiente da
cultura de massas, dentro do ambiente atual, voc no exige mais que o sujeito para ler um livro tenha na cabea a possibilidade de romper com seu cotidiano. A vanguarda modernista defendia que ele tinha, para ler a obra, de elevar-se do seu cotidiano, negar seu cotidiano, ou assumir posies que esto l no fundo do inconsciente como os surrealistas queriam levantar. O indivduo normal, leigo, que preza sua famlia, sua vida, tem o direito de ler um livro. Acho isso democrtico. O autor no precisa se considerar como um sujeito iluminado por um deus qualquer para escrever uma histria, ele simplesmente um arteso e eu acho tambm que essa uma das vantagens. Voc no est predestinado a isso, no houve deuses apontando voc, nem lhe concedendo essa licena. Isso outra faceta dessa coisa toda. Agora, se voc libera geral, se voc abre a porteira, a coisa fica mais complicada em termos sociais e em termos de leitura. Quer dizer, se todo mundo pode ser heri, sem pistolo, j imaginou como que fica a ordem e o progresso nessa?
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II
A CONSTRUO DOS MUNDOS
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Sendo o ncleo temtico deste encontro "A Construo dos Mundos", comearei por falar um pouco do universo da literatura oral, para depois adentrar no Conto Maravilhoso. Escolho este caminho por achar que vale a pena relembrar a fora da palavra falada, j que, nos mitos das mais diferentes culturas, a inaugurao do mundo se d por essa via. Mesmo na bblia, a cosmogonia mais conhecida por ns, no livro do Gnesis, o mundo se cria a partir da palavra de Deus: "Faa-se a luz; e fezse a luz"... A partir do som, manifesta-se o oculto. O ato de nomear criador, e ao homem concedido este dom, que traz em si o poder do discernimento, da escolha e da transformao. Entre muitos povos e tambm entre muitos personagens do Conto Maravilhoso, comum a pessoa possuir dois nomes - um que do conhecimento de todos e outro, que s a me (ou seu iniciador) lhe diz secretamente ao ouvido e que jamais poder ser revelado, pois quem o conhecesse poderia dominar a pessoa, capacitando-se, inclusive, a tomar para si os poderes que o nome confere a seu dono. No Conto Maravilhoso, o gnomo Rumpelstinkin um exemplo clssico. Ao ser descoberto o seu nome pela princesa, ele se rasga ao meio, de raiva, e desaparece cho adentro para sempre. Nas sociedades orais, o homem a sua palavra, e hoje no podemos mais dimensionar o significado desta relao to profunda. Os contos circulavam de boca a boca, de mestre a discpulo, pois era a palavra viva a intermediria do homem, e esta ia se forjando a partir do ambiente e do grupo de diferentes ouvintes que evocavam interferncias especiais. * Artigo entregue para publicao.
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A sociedade contempornea pode e deve usufruir dos contos legados - muitas vezes recriaes baseadas em motivos muito mais primitivos do que a forma como chegaram at nos - mas devemos ser cuidadosos em no nos esquecermos de que eles pertencem ao universo da oralidade, onde o conhecimento era entendido como a totalidade no fragmentada, o pensamento religioso imperava, a palavra ainda detinha o seu poder mgico, e os contos eram um dos instrumentos para se alcanar este tipo de saber. No devemos ser pretenciosos e examinar estas histrias sob a tica contempornea do que hoje se designa literatura oral, uma diviso didtica que compartimentaliza o saber das sociedades iletradas, separando a Arte da Cincia e da Religio. Podemos vislumbrar os contos, encantar-nos e aprender muito com a sua sabedoria, j que eles so "mtodo muito antigo, ainda insubstituvel, para dar forma e transmitir conhecimento que no se pode exprimir de nenhum outro modo." Portanto, por nossa legtima curiosidade e necessidade que nos acercamos do conto maravilhoso, para que o nosso pensar, atualmente fragmentado e enrijecido, seja revigorado e adquira mais vio, a fim de que, a partir dele, possamos aprender mais sobre ns mesmos. Desde cedo a humanidade acreditou na magia das palavras e no poder encantatrio das frmulas mgicas e de suas rimas repetidas. Acreditava-se que, por meio delas, era possvel prejudicar, curar ou conseguir proteo. No interior, ainda comum no se falar em chuva para no chama' Ia, no se pronunciar o nome do demo ou de certas doenas para no torn-las presentes. No dizer certos pensamentos para que 'os anjos no digam amm', no responder quando no se tem certeza de quem est chamando ou batendo porta. No conto popular, tambm encontramos este poder manifesto da palavra em ao. Nos contos celtas, comum que os dementais ou bruxas, ao se aproximarem dos heris, os chamem pelo seu nome, mesmo sem o conhecerem, e eles respondam. Os encantamentos pelas formulai cadenciadas permeiam vrios contos. Para as fadas profetizarem, basta-lhes falar. As sereias, cantando fazem que os homens percam o seu rumo.
Por ser a palavra o fio que tece o conto maravilhoso que julgamos importante este prembulo sobre a literatura oral. Feito isto, podemos nos aproximar mais especificamente da construo do mundo maravilhoso. Como os contos foram registrados diretamente da oralidade, pressupem a presena do contador e do ouvinte; portanto, vou me referir sempre a eles, e no ao escritor e leitor, para que no esqueamos que os contos maravilhosos evocam a presena de um ambiente intimista, no qual as pessoas se tocam pelo olhar e pela voz. Poderamos dizer que o mais intrigante no Conto Maravilhoso o fato de no encontrarmos, nele, a sensao de estranhamento diante das situaes mais inslitas. Nele, tudo pode acontecer, a partir de um pacto que se estabelece entre o contador e o ouvinte, realizado, normalmente, por meio de frmulas iniciais do tipo: "Era uma vez, h muito e muito tempo atrs, no tempo em que se amarrava cachorro com lingia... Era uma vez, no tempo em que os bichos falavam, um castelo perdido numa enorme floresta..." Feito esse pacto, aceitamos adentrar no espao-tempo do Conto Maravilhoso, regido por suas prprias leis, diferentes das do nosso cotidiano. Essas frmulas iniciais variam de cultura para cultura, mas sempre existiram para demarcar a ruptura com o pensamento linear. Em certos locais, essas frmulas so muito elaboradas, constituindo verdadeiros rituais de passagem, evocando a presena de ancestrais, de antigos contadores, entoando-se canes... No Kalevala, epopia finlandesa, encontramos estes primeiros versos que nos do idia de como os cantores populares recitavam seus poemas: sentados um em frente ao outro, de mos dadas e balanando-se para trs e para frente. "Irmo amado, caro companheiro, belo camarada de juventude, vem logo cantar comigo aproxima-te para recitar j que estamos novamente juntos (...) aproxima tua mo da minha
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pe teus dedos entre meus dedos para cantar nossos cantos mais belos e contar nossos melhores contos." Nesta sensvel abertura, evidencia-se que o repertrio pertence a todos, uma parte da memria da comunidade e que todos so responsveis pela sua transmisso. No ingresso desse mundo normalmente inaugurado em nossa cultura a partir do "Era uma Vez", uma lgica diferente vai passar a nos conduzir. Sabemos que, nesse novo universo, tudo pode estar encantado, podemos esperar impossveis encontros, metamorfoses, ultrapassar qualquer fronteira. As dvidas no aparecem - um lobo fala, sapo vira prncipe, algum dorme cem anos, e a desconfiana no interrompe o fio da narrativa, pois nenhum elemento gratuito. O que poderia atrapalhar esse entendimento entre o ouvinte e o conto seria a falta de ao do heri ou do ouvinte; parar eqivaleria morte, j que essas histrias se tecem a partir de imagens que se sobrepem e que exigem, portanto, ateno e ao dos participantes. A linguagem utilizada no Conto Maravilhoso especial; uma linguagem repleta de imagens a serem contempladas e sinais a serem decifrados. Seria como ler numa floresta noite, escutar um mito ou lembrar um sonho onde tudo se turva nossa lgica. Travamos contato espontneo com ela por meio dos nossos sonhos e outras fontes que j se apresentam estruturadas sob a forma literria, como nos contos. H uma reflexo interessante de Walt Disney quanto a essa linguagem, apesar de ele t-la citado referindo-se a outro contexto. Ele dizia que seu trabalho era com o "impossvel plausvel" e explicava, pela lgica dos desenhos animados: Se algum vai atravessar um abismo, a perna dele cresce e ele transpe a barreira sem problema. E uma cena impossvel, mas no causa estranhamento o fato de um personagem ser achatado de tanto que batem nele, visto que impossvel, mas plausvel; e essa a principal qualidade de um criador - alcanar a credibilidade, no perder a cumplicidade do ouvinte ou leitor. Uma das
grandes fontes onde podemos aprender essa arte encontra-se, sem dvida, nos contos maravilhosos populares. E interessante notar como nos contos o conflito j se apresenta logo no incio da narrativa, e de forma bem clara. No primeiro pargrafo j temos, normalmente, a apresentao da trama e dos personagens. "Era uma vez um rei que tinha trs filhos. Dois deles eram inteligentes e espertos, mas o terceiro falava pouco, era simplrio e tinha o apelido de Boboca. Estando o rei velho e fraco, e lembrando-se que no tardaria a morrer, no sabia a qual de seus filhos legaria o imprio"... (As trsplumas - Irmos Grimm) A j se tem a situao-conflito que conduzir a narrativa: um reino est desgastado, precisando de renovao. A narrativa dos contos direta, concisa, simples, sem grandes meandros psicolgicos. Exemplificando: quando Branca de Neve se perde na floresta, no fica especulando se o seu destino poderia ter sido outro, no se recorda de toda a sua infncia e, a partir da, compreende ou maldiz. No. A cena muito clara, uma imagem: ela se perdeu na floresta e no sabia decifrar os sons nem conhecia a leitura das sombras na noite. Nada pode ser mais terrvel do que a imagem de uma menina perdida na floresta. Orson Welles dizia que, de todos os filmes a que assistiu, Branca de Neve foi o que mais o aterrorizou. Dificilmente os personagens que habitam os Contos Maravilhosos possuem nomes, no mximo um Joo e Maria, que so nomes to comuns que poderiam ser de qualquer um de ns. Eles so conhecidos como o Rei, o Prncipe, a Princesa, a Bruxa..., ou seja, eles so representaes, no possuem individualidade. Andr Jolles diz que "Se o prncipe do conto tivesse o nome de um prncipe da Histria, seramos logo transportados da tica do acontecimento para a tica da ao. J no perguntaramos - "Que aconteceu ento ao prncipe", mas - "Que fez o prncipe? -" e comear-se-ia a duvidar da necessidade das coisas", rompendo-se, assim, o fio condutor das imagens. O Conto Maravilhoso o espao das altas torres, das escuras cavernas, dos quartos proibidos, das florestas impenetrveis. Tudo sugere que algo est escondido e que vai ser revelado durante o Conto.
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O "h muito tempo atrs" implica uma incurso a esses espaos proibidos, onde o heri se aventura em busca de sua identidade. Mais tranqilo seria ficar em casa e no atender o chamado da aventura? Por que os heris tm de se defrontar com o mal, se a princpio eles so to bons? Por que tm de ser tocados pelo mal? Eles necessitam atravessar o bosque com seus gigantes, lobos, bruxas, para que, ao final da jornada, percebam que todos esses encontros encarnavam apenas facetas do mundo. Se as marcas que ficam da jornada de nossos protagonistas so de generosidade, audcia e decises, como algum que inocente, puro, pode escolher um caminho? necessrio ter contato com o mal para que nos tornemos livres, conscientes e experientes. O heri dever passar inevitavelmente por tentaes, e como ser santo ou pecador se no se foi tocado pelo mal? Imaginemos que a malvada madrasta da Branca de Neve no a tivesse mandado embora. O que teria acontecido? Possivelmente a nossa herona estaria at hoje esfregando o cho daquele enorme castelo... Muitas vezes o mal que empurra nossos bons heris para florestas. E, sobre as florestas, Bachelard coloca isso muito bem, e eu farei uso do seu pensamento. Elas so um mistrio - o espao encoberto para os olhos, mas transparente para a ao. Elas so o lugar da ao, no existem florestas jovens na imaginao. A floresta um antes de mim, um antes de ns, um longe da histria dos homens que, sem a gente se dar conta, vai nos levando para os lugares mais estranhos e, contradi-toriamente, mais familiares tambm... Este o pano de fundo do Conto. O caminho dar sinais para guiar a ao dos personagens, mas apenas o heri os decifrar e agir de forma adequada, seja pela intuio ou astcia, mas sabendo canalizar a sua energia de forma correta. Ganhando mundo, eles vo construindo o seu destino. Alguns heris podero ser agraciados com flechas que jamais erraro os seus alvos, mantos que o tornaro invisvel, toalhas que sempre se enchero de comida pela recitao de frmulas mgicas.
Mas no nos enganemos: de nada valeriam estes talisms na mo de outros. O heri deve ser merecedor de cada presente e no poder, no decorrer da narrativa, enganar-se sobre o uso correto de cada presente em cada situao. O uso abusivo de um talism ou o esquecimento deste pode eqivaler destruio do heri. Ele deve sentir, querer e saber agir. Muitas vezes, no Conto Maravilhoso, a ao pode ser de aparente passividade. Na histria da Bela adormecida, por exemplo, o prncipe consegue chegar at a torre porque as plantas que protegiam o castelo se abriram, naquele momento, dando-lhe passagem. A Bela Adormecida estava pronta para se relacionar com o outro, com o seu oposto, seu complemento. Na maioria dos Contos Maravilhosos, no so os beijos que despertam as princesas, mas, sim, a prontido para o outro, conquistada aps um perodo de isolamento do mundo exterior. Saber utilizar-se de sua energia pela ao - interna ou externa - tarefa do heri. E preciso interagir com a natureza, confiando nela e respeitando a sabedoria dos seus ciclos, sem jamais esquecer de agradecerlhe. Os finais do Conto Maravilhoso nos apresentam, normalmente, uma nova ordem instaurada: aquela situao de desgaste apresentada no incio da narrativa resolvida a partir de uma renovao - um casamento, a conquista da espada, a abertura de um novo ciclo, a volta realidade. Tanto o heri quanto o ouvinte saem revigorados de uma boa aventura, pois, aps o enfrentamento do trajeto cheio de percalos, ambos se sentem mais aptos para enfrentar a vida e realizar seu destino. E tantas vezes ouvimos o mesmo conto, ou contos com a mesma estrutura, que ouvir - contar - recontar s pode ser uma tarefa legada pela sabedoria de nossos antepassados para que nos sintamos mais felizes neste mundo, pois, no Conto Maravilhoso, podemos encontrar respostas que jamais alcanaramos pelo nosso raciocnio lgico-formal. A lei da repetio que rege o conto sempre recriadora. Quanto maior contato tivermos, por exemplo, com o Ciclo dos Adormecidos, Bela Adormecida, Brunhilde, Branca de Neve, - maiores possibilidades
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teremos de fazer uma leitura mais rica de suas imagens, porque, como diz Durand, "o conjunto de todos os smbolos sobre um tema esclarece os smbolos, uns atravs dos outros" (...), no querendo isto dizer que "um nico smbolo no seja to significativo como todos os outros", mas cada repetio se torna aperfeioadora, podendo-se comparar a uma espiral que "a cada repetio circunda sempre o seu foco, o seu centro", ampliando o poder de entendimento, porque s apreendemos a linguagem especial a partir dela mesma. Voltando aos finais destes Contos, j bem o sabemos, so normalmente felizes. Triunfam todos os que merecem, e triunfam tambm os dementais: elfos, gnomos, salamandras, ondinas, que resistem, como os deuses gregos, "estes deuses alojados no corao dos carvalhos, nas guas rumorosas e profundas" e que no podiam da ser expulsos. E quem diz isso? A Igreja. Contradiz-se enormemente ao proclamar a morte deles, indigna-se com a sua vida. Sculo aps sculo, intima-os a morrer... Mas, ento, eles esto sempre vivos?" Persiste a religio paga com seus protetores da natureza, tendo como aliados para a sua permanncia os Contos Maravilhosos. O Conto Maravilhoso diferencia-se do Mito porque nele no h mais deuses ou semideuses. Nossos heris representam o caminho do homem na terra. Steiner nos diz que, a partir dos nossos heris, podemos reconstituir a histria da humanidade, desde a Queda do Homem at o reencontro com o Paraso Perdido, da Tragdia Transcendncia Humana - e esta pode ser uma boa maneira de contemplar as histrias dos contos. Fernando Pessoa reconstri em linguagem imaginativa o percurso do heri humano em Eros e Psique. "Conta a lenda que dormia uma Princesa encantada A quem s despertaria Um infante, que vivia De alm do muro da estrada (...) A Princesa Adormecida Se espera, dormindo espera
(...) E orna-lhe a fonte esquecida Verde, uma grinalda de hera E o Infante persegue o seu caminho Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada (...) Depois dos percalos da estrada, ele, finalmente, a encontra e d-se o desfecho do poema, quando (...) Ergue a mo, e encontra hera E v que ele mesmo era A Princesa que dormia." E uma pena no podermos transcrever todo o poema, mas eis a o que chamamos de unio nos Contos Maravilhosos. No incio do poema, temos um "infante", ou seja, 'aquele que no fala'. Ao final, incorporando o seu oposto representado pela Princesa, podemos imaginar que ele completou sua aventura, deixando de ser um infante' para se tornar algum que, por meio da fala, pode manifestar a sua individualidade, RESSONAR - (PER-SONARE) como personalidade individual, com a faculdade de nomear, que o poder de confrontar-se consigo mesmo. A partir da, com a tarefa-destino cumprida, o heri alcana a sua completude. A ns, cabe voltar realidade para repetirmos o seu gesto. As frmulas finais dos Contos nos tiram da fantasia, impelindo-nos para a ao no espao do cotidiano. E assim, a partir desta ruptura brusca, abandonamos a atitude de contemplao, vendo aos poucos o mundo maravilhoso desmanchar-se a nossa frente. "- Tu tambm foste ao casamento? - Naturalmente, e bem elegante estava eu. Meu toucado era de neve,- veio o sol e o derreteu; meu vestido era de
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teia de aranha, passei por um espinheiro e ele se rasgou; meus sapatos eram de vidro, tropecei numa pedra e eles fizeram clinc! e se espatifaram.'' (O casamento de Joo - Irmos Grimm) comum, depois do fecho, passar-se a histria para outro: "O que era de vidro se quebrou O que era de papel se rasgou. Quem quiser que conte outra." Assim, tornando a histria propriedade do outro, o contador d por terminada a sua tarefa, uma vez que "narrar histrias sempre a arte de as continuar contando." Estas frmulas, to preciosas na literatura oral, persistem como caracterstica da literatura autoral, e interessante notar como os autores as (re)criam, utilizando os recursos pertinentes escrita. O livro A histria sem fim, de Michael Ende, escrito em duas cores; uma para representar o mundo da realidade e a outra, o da fantasia. Em Alice no pas das maravilhas, de Lewis Caroll, a personagem est lendo um livro sem imagens quando, de repente, aparece um coelho, e ela o segue, penetrando num mundo que transgride inteiramente a nossa lgica. No momento em que o maravilhoso comea a se transformar num pesadelo, ela acorda, conta para a irm o seu sonho e a irm sonha o sonho de Alice ... Assim, o Conto Maravilhoso vai-se adaptando aos novos tempos, aos novos formatos. Mas seja qual for o tempo, gostaria de terminar fazendo a clssica pergunta que Marc Soriano j fez a vrios adultos; - De qual histria voc se lembra? E, invariavelmente, a histria um conto popular maravilhosOi quadrado, como dizem os antigos, no lrio da memria, ouvido na primeira infncia, no tempo sem tempo em que os bichos falavam.
Referncias Bibliogrficas 1 - Annimo, O Sufismo no Ocidente - RJ: Dervish, 1984 2 - HONKO, Lauri, "Terra de Heris" in O Correio da Unesco no 85, ano 13, p.ll 3 - JOLLES, Andr, Formos Simples, p. 202/203 - SP: Cultrix, 1976 4 - BACHELARD, Gaston, A potica do espao, p. 144 - RJ, Livraria Eldorado Tijuc, Ltda, 5 - DURAND, Gilbert, A imaginao simblica, p. 17, SP: Cultrix, Ed. da Universidade de So Paulo, 1988 6 - MICHELET, Jules, Sobre as feiticeiras, p. 23, Lisboa: Ed. Afrodite 1974 7 - PESSOA, Fernando, "Mensagem" in Cancioneiro, RJ: Nova Fronteira 1981... 3 a . ed. 8 - LIMA, Francisco Assis de Sousa, Conto Popular e Comunidade Narrativa, p. 56 - RJ: FUNARTE / Instituto Nacional do Folclore, 1985
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Diretor de Teatro
Meu nome Hamilton Vaz Pereira. Fui convidado para falar uma boa meia hora para vocs. Eu aceitei o convite porque eu gosto muito de falar sobre teatro, teatro a minha rea. H vinte anos eu imagino histrias, cenas, os cenrios que eu gostaria de colocar em cena, o que o personagem, quando entra em cena, faz, o que o outro que entra em cena diz para o outro que j chegou, eu penso qual a luz, qual o som que est acontecendo, qual o drama, qual o assunto, qual o conflito. Depois de um longo tempo solitrio seguido de um intenso trabalho de equipe sempre acho que o resultado pode ter algum interesse para as pessoas e o coloco no palco. O pblico assiste ao espetculo, gosta, no gosta, sai do teatro falando bem, sai falando mal. Esse o assunto que me moveu at aqui. Alm disso, me foi dito que eu encontraria aqui pessoas que gostam desse tipo de coisa, ou seja, de inventar historinhas, de mentir, dizer a verdade, de inventar personagens. Confesso que no tenho muita idia do que vem a ser RPG, mas estamos aqui para isso mesmo. Eu falo umas coisas aqui, vocs falam da e, quando o debate for aberto, vocs me explicam como o jogo. At l, eu vou contar para vocs algumas coisas a respeito do meu trabalho. H trs anos, eu pensava sobre o que colocar no palco, o que apresentar para as cidades brasileiras, quando alguns amigos me disseram: rapaz, por que voc no l Homero? E eu falei: Homero? Hum... o grande poeta da antigidade. A eu me lembrei de que os livros escolares - pelo menos no meu tempo - diziam assim: "A Grcia o bero da civilizao ocidental". Da Grcia eu lembrava do calcanhar de Aquiles, da cena das sereias, da histria do cavalo de Tria, mas nunca havia juntado uma coisa com a outra. Muito bem. Ento aconteceu uma coisa interessante que vou levar pela vida, que ainda vou respirar muito, alguma coisa que eu vou contar para meu filho e que ainda vai me servir muito para eu pensar a vida, conhec-la melhor. O mundo de Homero, ento, meu
papo. O papo de um cara de teatro que, num certo momento, h trs anos, se interessou pela llada e pela Odissia. Eu estudei um pouco da llada e fiz um espetculo chamado a Ira de Aquiles, isso h dois anos. No ano passado, com meu grupo de estudos, fiz uma adaptao e montei a Odissia, em janeiro desse ano. E agora, legal para mim estar aqui falando sobre essa experincia, sobre a linguagem teatral e sobre o que eu encontrei, quando me vi diante das duas obras do grande Homero. Antes devo dizer que quem fala um leigo. E vocs sabem que ao redor dos grande eruditos, dos grandes especialistas em qualquer matria, sempre h os leigos, seres apaixonados, que do palpites despudorados acham isso e aquilo sobre a matria em evidencia. Provavelmente, a na platia deve haver algum especialista em Homero. Se no tem, melhor para mim que vou ficar ainda mais vontade para falar o que bem entender e vocs acharo que por a mesmo. Se no for por a tambm est bem, vamos ficar contentes porque estamos a fim de passar uma tarde alegre. Vou comear com a llada. Quando eu consegui passar pelas primeiras linhas, descobri um universo que no tinha nada a ver com o nosso, era tudo muito diferente da nossa vida cotidiana, dos nossos assuntos. Os cenrios, os assuntos, os personagens eram qualquer coisa de muito diferente. A guerra de Tria um acontecimento datado do sculo XII a.C. Imaginem 12 sculos a.C.! Aconteceu a guerra de Tria, e depois teve um perodo, de mais ou menos quatro sculos, do qual at hoje se sabe pouca coisa. No entanto, nesse perodo chamado de A Era Negra aconteceu uma coisa interessante: os habitantes daquela regio do Mediterrneo, de pai pra filho, de estrangeiro pra estrangeiro construram estrias que tinham a ver com deuses chamados Zeus, Palas Atena, Apoio, Afrodite; com heris gregos como Agammnon, Aquiles, Ulisses, Ajax' Diomedes; com heris troianos como Heitor, Paris e tantos outros. Ento, num perodo de mais ou menos quatro sculos, as pessoas fizeram circular essas histrias at que, num certo momento, um fulano chamado Homero - hoje ningum acredita que Homero tenha sido uma nica pessoa escreveu no sculo 8 a.C. a llada, escreveu a Odissia e isso chegou. Mas, o Mas, importante insistir que antes de Homero as pessoas j contavam as histrias sobre deuses imortais e sua relao com heris potentes, belos, fortes, hbeis para guerra, e mortais. Ento, imaginem a emoo que senti quando resolvi realizar a llada no palco. Mas, como representar
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esses deuses, esses heris? Eu tenho 1 metro e 78, Agammnon devia ter uns trs metros de altura. Assim, como um ator de estatura mediana como eu poderia representar o grande Agammnon, o rei dos homens? Enquanto estudava a llada pensando que adoraria coloc-la no palco para as pessoas de hoje, com os recursos teatrais que ns temos hoje, eu me perguntava como representar aquilo? E dito em Homero que o escudo do grande Ajax do tamanho da porta de uma cidade. Imaginem o cavalo que devia ser Ajax para segurar um escudo desse tamanho. Como pegar um ator brasileiro no to alto, no to forte, e faz-lo representar tal personagem? Isso se tornou um desafio para toda equipe. Quer dizer, como apresentar para o nosso semelhante, para o pblico, essas figuras e esse universo que no tem nada a ver com o nosso cotidiano? Bem... No tem nada a ver com o cotidiano mas, sempre gostei de conhecer e transmitir estrias extraordinrias, de arrancar da vida o que ela tem para dar e devolve-la para as outras pessoas. Ento, eu pensei: "Vou fazer esse espetculo e vou dar um jeito de transmitir para a platia de teatro a potncia do verso de Homero, da prosa de Homero, que deu origem ao universo que at hoje a gente desfruta." A llada trata do cerco que os gregos fizeram a Tria. Os gregos estavam na boa quando um troiano chamado Paris raptou a mulher do grego Menelau, chamada Helena, e levou-a para Tria. Os gregos ficaram indignados com o fato e resolveram destruir Tria para que os troianos se tocassem do absurdo de fazer tal ofensa ao grande Menelau, irmo de Agammnon. Agammnon era um cavalo, Menelau tambm, quer dizer, todos ali tinham uns ombros maravilhosos, era uma coisa assim que voc fala, p! Ento o que acontece? Na llada, o dia-a-dia o dia-a-dia da guerra. O grego e o troiano acordam, tomam banho, se colocam lindos para a guerra e partem para enfrentar o inimigo. Boa parte da llada so os combates entre os gregos e troianos, combate pessoal, no aquele combate que eu mando uma bomba para l, uma bomba para l, voc manda um bomba para c. Entenderam? A cena mais ou menos assim: surge um grego e surge um troiano em cena, o grego pergunta para o troiano "Quem voc?" O troiano diz "Eu sou Heitor, filho de Pramo, moro em Tria, tenho mulher, tenho filho, tenho cavalos, tenho bois, tenho tesouros". A o grego gosta do que ouve e o troiano pergunta "E voc, quem ?" O grego fala "Eu sou Menelau, irmo de Agammnon,
a minha mulher Helena, que morava comigo em Tria e foi raptada por Paris, e eu estou aqui porque acho uma loucura roubarem minha mulher" etc... Quando o grego e o troiano sacam que esto diante de um inimigo belo, forte, nobre e honrado, eles partem para o combate pessoal, para saber quem o melhor dos dois. No interessante? Agora, se o grego percebe que o troiano meio cado, ou se o troiano percebe que o grego no do primeiro time, eles no lutam, porque no interessa para nenhum dos dois lutar com algum inferior. Olha, que loucura! Hoje em dia, quando a gente percebe que o adversrio mais fraco, a que a gente pisa nele e ainda pisca para a galera. Vou brigar com um igual? Ento, isso chama logo a ateno do leitor: o guerreiro valoroso s luta com quem igual ou mais forte do que ele. No sensacional? Isso muito diferente dos dias de hoje. Muito bem, mas por que isso? Porque no tem vantagem nenhuma para o grego, ou para o troiano, brigar com um cara menor, pois se ele briga com um maior e vence todo mundo vai dizer: "Poxa, Diomedes lutou com aquele troiano muito maior do que ele e venceu". O acampamento grego comenta: "P, Diomedes est com tudo...". Os poetas passam a cantar os feitos hericos de Diomedes. Se Diomedes luta com o maior, o mais forte, o mais bem armado e perde, no tem problema nenhum, porque ele perdeu e foi morto por um cara melhor do que ele. O universo de Homero difere do nosso papo, ns vivemos numa democracia, ns queremos a coisa igual para todo mundo, mas naquela poca o legal no era pertencer ao rebanho e sim, se destacar! Quem era o melhor? Quem era mais temvel? Quem era o mais forte? Quem era o mais hbil na guerra? Quem era o mais audaz? Quem era o melhor guerreiro? Essas eram as questes no cotidiano da guerra. Muito bem, disparei a falar para dar tempo de pensar o que eu vou dizer mesmo. Eu vou contar para vocs a historinha da llada, rapidamente. So quatro os cenrio importantes - o primeiro o campo de batalha, o segundo cenrio o mar, a praia, o acampamento grego. Gregos deixaram suas ilhas, suas cidades, seus reinos, pegaram seus navios negros e velozes, e desembarcaram em Tria. Tria o terceiro cenrio, uma belssima cidade beira-mar, com um pessoal chiqurrimo, com seus grandes guerreiros, suas famlias e suas riquezas. No ponto mais alto do palco, o quarto cenrio, o Olimpo com seus deuses: Zeus, com sua balana de ouro, Palas Atena torcendo e participando da guerra a favor dos gregos,
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e Apoio pelo lado troiano. So esses os deuses que mais influem na guerra. Pois bem, a guerra j acontece h nove anos, os gregos esto para invadir Tria e no conseguem, porque sempre Apoio d um jeito. Zeus tambm no quer a destruio de Tria. Ento, no nono ano da guerra e a guerra durou 10 anos -, Aquiles, o grande heri da Grcia fica irritado com Agammnon, eles se desentendem, por causa de uma presa de guerra. Aquiles, o mais hbil para guerra, se sente ofendido e decide se retirar da guerra, decide no lutar mais. Aquiles, como todos os outros gregos, veio ajudar Menelau recuperar Helena dos troianos e lev-la de volta para a Grcia; e ao mesmo tempo, saquear a cidade, pegar as mulheres, os tesouros etc... Aquiles, um nico mortal, sai da guerra e com isso, os troianos que estavam numa situao extremamente debilitada devido aos noves de guerra, comeam a vencer a guerra. Os troianos aproveitam a discrdia e empurram os gregos para longe de Tria, atravs do campo de batalha, at a praia. Os troianos chegam a tocar fogo em alguns navios gregos! Aquiles, o nmero 1, sai da guerra, e seu time comea a perder. Olha, que destaque! Da que acontece um fato terrvel: Ptrodo, amigo de Aquiles, tambm um valoroso guerreiro, morre nas mos de Heitor, o grande troiano. Ptrodo fica chateado porque, com sua sada, Aquiles pe em risco a Grda, o povo grego. Ptrodo diz: eu vou para a guerraAquiles diz: no v porque voc vai encontrar um cara mais forte do que voc e vai morrer. Ptrodo diz: "No quero saber, eu vou lutar pelo meu povo". Ele vai e no d outra: fica diante de Heitor, v que o troiano mais forte, sabe que vai morrer mas, mesmo assim, cumpre o seu destino. Heitor passa a espada em Ptrodo e ele morre. Heitor melhor do que Ptrodo na guerra, em tudo. Aquiles, ao saber da morte do amigo, volta para a guerra. A partir da, os gregos voltam a vencer e a empurrar os troianos para dentro dos muros da sua cidade. E Aquiles mata, mata, voc fica bobo como o Aquiles mata, voc fica enjoado porque - eu sou um rapaz pacfico -, voc l que o heri da histria mata, mata com selvageria, com um requinte de crueldade. At que encontra Heitor. Heitor olha o grego e no tem dvida, sai correndo. Ele d trs voltas ao redor de Tria com Aquiles atrs dele. Heitor, resolve parar de fugir e decide cumprir o seu destino. Ele diz pro seu pai e sua me, para sua mulher e seu filho, que no vai fugir no, que Tria vai saber que ele vai ser morto pelo maior dos gregos. Aquiles mata Heitor. A llada termina com Pramo,
o rei de Tria, pai de Heitor, suplicando a Aquiles o corpo daquele que era a alegria da cidade de Tria. A Odissia. Se a gente tem na llad, no primeiro livro, o momento da guerra, na Odissia a gente tem o momento da paz. A guerra acabou, Tria foi invadida, foi saqueada no dcimo ano da guerra pelos gregos. Os gregos mataram todos os troianos, acabaram com a cidade, pegaram todos os tesouros, as mulheres mais lindas, as princesas, e levaram para a Grcia. Quando a Odissia comea existe um grande problema: todos os grandes heris gregos j voltaram para casa menos um, Ulisses, o Odisseu. Ulisses est preso na ilha da deusa Calipso. Ulisses estava voltando para casa, para Itaca, para sua ilha, quando seu navio sofreu com as ondas do mar, com os raios, e afundou prximo a ilha de uma deusa maravilhosa... Calipso se apaixona por aquele nufrago e prope a ele amor, amor, amor. Durante 10 anos ele fica querendo voltar para casa, querendo ver a mulher, ver o filho, o seu paldo. O reladonamento dos dois j no estava grande coisa, quando Calipso diz o seguinte: "Olha, Ulisses, se voc ficar aqui comigo, esquecer sua mulher, esquecer a sua ilha, esquecer o seu filho, eu fao de voc jovem pra sempre, te dou a imortalidade, e alm disso, o amor de uma deusa. A juventude, a imortalidade, e o amor de uma deusa". Olha a proposta irrecusvel da Calipso! Ulisses responde que a nica coisa que ele deseja voltar para casa, para a esposa, para o filho. E uma opo. Vamos respeitar... No saber se Ulisses est morto ou vivo cria um certo impasse: as pessoas no podem enterrar seu corpo, caso esteja morto; nem ficam sabendo de suas histrias, caso ele esteja vivo. Esse desaparedmento terrvel para os mortais e para os deuses. Pois bem, depois de 10 anos de guerra de Tria, depois de 10 anos de aventuras martimas, Ulisses, com a ajuda de Palas Atena, consegue voltar para Itaca. Quando chega em casa ele descobre uma situao curiosa: existem 108 pretendentes mo da sua mulher Penpole. Os costumes da poca diziam que a rainha viva deveria eleger e casar com o novo soberano da ilha. Penpole, fiel ao seu amor, desejando ardentemente a volta de seu marido, inventa mil artifcios para retardar a escolha e o casamento. Ela diz que assim que completar uma tal manta ela vai escolher o melhor pretendente e casar com ele. Durante 10 anos ele enganou os 108 nobres, a fina flor de Itaca. Ulisses chega em casa, saca que tem 108 atrs da sua mulher e que sozinho no
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vai conseguir dar uma lio naqueles despudorados. Disfarado de mendigo, ele bola um plano com a ajuda de seu filho Telmaco e Palas Atena para massacrar os insolentes, e massacra. Depois da matana, ele encontra com sua mulher, mas ela no o reconhece, no acredita que ele o marido desaparecido. Os dois no se vem h 20 anos! Ulisses, ento, mostra um cicatriz de infncia a mulher, a ela olha a cicatriz no alto da coxa e reconhece o marido. s vezes, a gente passa algumas horas fora de casa, louco pra voltar, e quando chega ainda tem que matar 108 pretendentes para a tua mulher te reconhecer. Vai da que a histria de Ulisses termina em happy-end. Ele agora pode contar para a mulher e o filho, para seus amigos e, principalmente para os poetas, o que viveu lutando em Tria, o que viveu no mar. A alegria de Ulisses deve ter sido enorme ao contar para todos a sua Odissia. E assim, desde a antigidade, qualquer viagem, grande ou pequena, no completa se no transmitida, se no comunicada. Hoje, sculos depois, aqui estou, nesta tarde adorvel, saboreando o mundo de Homero, que no guardo pra mim, mas comunico a vocs, na esperana que vocs sintam o sabor e fiquem estimulados para conhecelo ainda mais do que eu. O que no vai ser muito difcil. E, pra terminar com uma frase poderosa, eu peo ajuda a Palas Atena e digo a todos os jogadores: "Sejam audazes para que a posteridade os louve!" Muito obrigado pela presena de todos!
INDIANA JONES: U M A AVENTURA MULTIMDIA OSWALDO LOPES JR. Roteirista e crtico de cinema e televiso
Arqueologia a busca de FATOS, e no da VERDADE. Dr. Henry Jones, Jr. Antes de entrarmos no mundo de Indiana Jones, vamos dar uma olhada em outros universos criados ao longo da Histria do cinema, e que podem ser usados em RPG. No meu ponto de vista, um dos objetivos principais do RPG a criao de uma histria, o desenvolvimento de um roteiro, e exatamente nesse ponto que o jogo tange o cinema. A criao de um universo cinematogrfico, ou a contextualizao de uma histria o primeiro passo para analisarmos a coerncia de um filme, ou melhor, a coerncia do roteiro de um filme. Tomemos por exemplo, Frankenstein (idem), qualquer uma das verses. Dentro daquele universo, a revitalizao de rgos mortos completamente possvel, o transplante de crebro possvel, apesar de no mundo real no ser. E como se fosse um universo paralelo. No contexto de Vampiros de almas (Invasion ofthe Body Snatchers), por exemplo, temos que tomar cuidado na hora de dormir, porque podemos acordar transformados em outra pessoa, sem sentimentos. Corremos o risco de virarmos uma vagem espacial. Isso possvel dentro do universo de Vampiros de almas. Vamos analisar um formato cinematogrfico que muita gente torce o nariz quando v: os filmes seriados. Quando nos referimos ao filme seriado, a primeira coisa que nos vem cabea o sanguinrio Jason Vorhees de Sexta-Feira 13 (Friday 13th). Na verdade, uma coisa insuportvel, repetitiva e entediante. O sujeito sempre morre no final e no filme seguinte j est l matando de novo. Filmes de terror desse tipo so to pobres e monocrdios quanto o cinema porn, com seus doses ginecolgicos, trepadas sempre iguais e vazios de erotismo. Porm, o formato seriado vai muito alm desse massacre tedioso. No incio da dcada de 30, quando o cinema comeava a falar, alguns
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produtores tiveram a idia de fazer filmes baratos, cheios de aventura e ao, com histrias tiradas dos pulp magazines que infestavam as bancas de jornais, em episdios semanais que prendessem a ateno do pblico. Assim surgia o seriado cinematogrfico, legtimo formato da cultura de massa, que mais tarde encontrou um lar perfeito na televiso. Contudo, dcadas aps a sua era de ouro, nos anos 30 e 40, os filmes em srie se adaptaram aos novos tempos e voltaram a fazer sucesso no cinema, servindo de suporte ideal para sagas no mnimo interessantes. Um bom exemplo disso so as aventuras de James Bond, o agente 007. A srie, baseada nos romances do ingls Ian Fleming, j est em seu 19. exemplar (incluindo a stira Cassino Royale). Seu alicerce - assim como nos filmes de Indiana Jones - um personagem herico, que roda o mundo inteiro, cada vez com uma misso diferente, pronto para salvar o planeta, a democracia e os ideais da cultura ocidental das mais diversas ameaas, qualquer que seja ela. Na fico cientfica talvez possamos enxergar melhor alguns exemplos disso. Um universo extraordinrio que nasceu no cinema e se alastrou por outras mdias foi O planeta dos macacos (Planet of the Apes). Com um roteiro impressionante de Rod Serling e Michael Wilson - a partir de um livro do autor francs Pierre Boulle - Franklin J. Schaffner dirigiu o primeiro longa-metragem em 1968. A idia deu to certo que em poucos anos mais quatro filmes, um seriado de T V e vrios gibis juntaram-se ao universo primata-futurista. Outra saga que deu certo foi Jornada nas estrelas (Star Trek). Nascida como um seriado de TV em 1965, as aventuras da nave estelar U.S.S. Enterprise no sculo XXIII j renderam - at agora sete longas-metragens e mais trs sries televisivas, alm dos usuais caanqueis perifricos. E no podemos esquecer de Guerra nas estrelas (Star Wars), a mega srie cinematogrfica de trs trilogias (das quais s vimos a segunda) criada por George Lucas. O mais impressionante aqui que, mais de uma dcada sem nos dar um filme novo, a histria dos cavaleiros Jedi e da luta entre as foras rebeldes e imperiais ainda cria um enorme frisson entre as vrias geraes de fs. Talvez alimentado pela continuidade da saga em pocket books e minissries em quadrinhos extremamente coerentes com esse universo passado "a long time ago in a galaxy far for away...". Por fim, bom lembrar que nem sempre as sries de cinema esto
associadas aventura ou aos gneros fantsticos, isto , terror, fico cientfica ou fantasia. O Poderoso Chefo (The Godfather) - a saga de Coppola sobre a famlia Corleone, de mafiosos talo-americanos - no fez parte de nenhum desses gneros e uma das melhores trilogias que o cinema j produziu. Portanto, d para ver que um seriado cinematogrfico - como compreendemos hoje em dia - composto por vrios filmes que se complementam, respeitando ou gerando um universo prprio, mais elaborado, numa realidade alternativa (ou no) onde fatos e Personagens interagem numa estrutura plausvel e coerente. Em geral, esses mundos acabam saltando das telas para outras mdias narrativas como histrias em quadrinhos, sries de televiso, livros de histrias, livros de referncia, guias, jogos de RPG, etc. - que ampliam e complementam o universo original. Quando falamos do mundo de Indiana Jones, a coisa fica um tanto mais complexa. Todo mundo conhece os trs filmes de Steven Spielberg, a maioria ouviu falar da srie de TV (que infelizmente no fez sucesso, apesar de extraordinria), mas pouca gente sabe que hoje existem mais de atenta histrias originais com o personagem, aprovadas pela Lucasfilm, e m vrias mdias - histrias em quadrinhos, pocket books, livros para adolescentes, RPGs, CD-Roms, alm de cinema e televiso. um universo muito vasto, mas no inteiramente ficcional. Na verdade, sua matriz o mundo real, como o conhecemos. Mais especificamente, a base e o referencial onde Indiana Jones interage a Histria do sculo XX. engraado pensar que estamos nessa mesma realidade. Sabemos que W i a n a uma criatura ficcional, mas ao mesmo tempo um personagem o bem elaborado que pode ter at uma biografia. Por exemplo: existe u m arquelogo, hoje com 96, nascido em primeiro de julho de 1899, chamado Henry Jones Jr. Esse cara provavelmente o homem mais ^portante do sculo por vrios motivos. Ele participou da I Guerra Mundial, da D Guerra Mundial, encontrou a Arca da Aliana com os dez a n d a m e n t o s , o Clice Sagrado, Excalibur, a Arca de No, o Velo de u r o - que o mitolgico Jaso procurou, encontrou e perdeu -, um chifre de unicrnio - provando que o mitolgico animal existiu -, descobriu Shangril, a lendria Atlntida e esteve frente a frente com o Mago Merhn, al m de ter conhecido dezenas de personalidades marcantes de nosso s culo, como Mata Hari, Picasso, Charles De Gaulle. Albert Schwe.tzer,
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Lnin, Krishnamurti e Elliot Ness, s para citar alguns. A gente tem que ter muito respeito por esse senhor quase centenrio que hoje mora em Princeton, no leste dos Estados Unidos, est aposentado, cercado de filhos e netos, e que, infelizmente ou felizmente, no existe. O que torna o personagem fascinante exatamente o fato dele interagir com figuras e fatos histricos do nosso tempo. Veremos mais tarde como a fico e a realidade se cruzam nesse universo. Antes vamos ver como nasceu esse herico arquelogo. Reza a lenda que George Lucas e Steven Spielberg estavam de frias no Hava no fim dos anos 70, quando o primeiro disse ao segundo que tinha criado com Philip Kaufman um personagem peculiar. Vivendo na primeira metade do sculo XX, a criatura era um arquelogo de profisso, aventureiro de corao, forte, destemido e justo, sempre disposto a salvar a humanidade das garras do nazismo ou de qualquer outra ameaa, mas ao contrrio do arqutipo do heri clssico - com uma leve tendncia para trapalhadas e para estar na hora certa no lugar errado. Seu nome: Indiana Jones. Quase uma brincadeira, na verdade a busca da revitalizao de um tipo de cinema h muito esquecido: o seriado de aventuras das matins de sbado, que enchia as salas com situaes maniquestas, ao de tirar o flego e um suspense que perdurava at a semana seguinte. Com uma filmografia voltada basicamente para o pblico infanto-juvenil, Spielberg ficou logo interessado em filmar aquilo. Afinal, se enquadrava perfeitamente no estilo que ele vinha desenvolvendo desde que Encurralado (Duel) saiu da telinha de TV para as telas de cinema. Assim, a lenda comeou a tomar forma. O roteiro foi entregue a Lawrence Kasdam, que j tinha no currculo o excelente O imprio contra-ataca (The Empire Strikes Back), segundo e melhor episdio da trilogia Guerra nas estrelas, produzido por Lucas e dirigido por Irvn Kershner. No fim de 1980 o roteiro intitulado Os caadores da arca perdida (Raiders of the Lost Ark) estava pronto para ser filmado. A histria se passa em 1936, e o Professor Jones - aps voltar de uma frustrada explorao a um templo peruano - convocado pela Inteligncia Militar Americana para encontrar a Arca da Aliana, que guarda as tbuas originais dos Dez Mandamentos, antes dos nazistas que a procuram desesperadamente numa escavao egpcia. Para isso ele precisa de um medalho ancestral que pode indicar a localizao da Arca
e que est com uma antiga namorada que vive no Nepal. Tudo estava l: um heri destemido, uma mocinha (quase) indefesa, viles com cara de mau querendo dominar o mundo, lugares exticos, situaes repletas de suspense e perigo, e um "MacGuffin" mstico e poderoso - como a Arca da Aliana - impulsionando a trama. O passo seguinte era a escolha do ator que encarnaria aquele heri fantstico. George Lucas tinha uma lista enorme de nomes para o papel, cuja primeira opo era Tom Selleck, mais conhecido como o Magnum da srie de TV do mesmo nome. Com a recusa deste, vrias reunies foram feitas entre Lucas, Spielberg, Kaufman e outros executivos envolvidos no projeto para definir um nome. Por fim, quando ningum mais tinha idias, Spielberg sugeriu Harrison Ford, que j tinha trabalhado com Lucas em Loucuras de vero (American Grafit), Guerra nas estrelas e O imprio contra-ataca. Segundo consta no livro Skywalking, a biografia de George Lucas escrita por Dale Pollock, o produtor vetou Ford imediatamente, por ele j ter trabalhado demais em filmes seus. Preferia escolher uma cara diferente. Bem, todos sabemos que Spielberg conseguiu convencer o amigo a confiar o chapu de feltro e o chicote a Harrison Ford. O resto Histria. Desde o primeiro momento, Os caadores da arca perdida alcanou seus objetivos. Era a perfeita releitura dos seriados de aventura do incio do cinema sonoro, apoiada numa moderna tecnologia de efeitos especiais e recursos de fotografia, som e montagem. O filme conquistou quatro Oscars - melhor montagem, melhor som, melhor edio de som e melhores efeitos especiais - alm de concorrer a melhor filme, direo e roteiro, prmios que muito lhe eram merecidos. Contudo, logo se transformou numa das cinco maiores bilheterias de todos os tempos. Talvez porque Lucas e Spielberg conseguiram revitalizar a essncia do cinema de aventura. Ou ento porque, com Os caadores da arca perdida a dupla no s fez uma tpica aventura escapista espelhada nos velhos seriados dos anos 30, mas tambm revelou os mritos basicamente cinematogrficos de um gnero desprezado por dcadas pela crtica. Ouso dizer que Os caadores da arca perdida o melhor filme de aventura de todos os tempos, e a melhor releitura dos clssicos desse gnero. O roteiro de Lawrence Kasdam absolutamente impecvel, milimtrico, que parece ter pego todos aqueles seriados de Jim das selvas, Os perigos de Uyoka, Tonem, Batman, O Sombra,
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bateu no liqidificador, tirou o melhor de cada um e juntou. realmente um filme superestruturado e que tem todos os clichs do gnero. O heri imbatvel, que cai na porrada, e ao mesmo tempo um intelectual. A mocinha indefesa, mas boa de briga. Os viles, nazistas chapados, sem muita complexidade, no tm muitas facetas. A prpria histria de mocinho e bandido, "good girys vs. bad guys", claramente maniquesta, cheia de som e de fria, e com a nica pretenso de divertir e emocionar o espectador, como uma autntica aventura regada pipoca deve ser. Trs anos depois, com o sucesso de Os caadores da arca perdida, os produtores resolveram fazer uma nova histria com o heri Indiana Jones (lgico que aqueles cifres de desenho animado surgem sobre as cabeas dos executivos quando aparece um filme desses!). Novamente de olhos voltados para a Era de Ouro de Hollywood, Lucas e Spielberg abriram um pouco o leque de influncias. Indiana Jones e o templo da perdio (Indiana Jones and the Temple of Doom) comea com um autntico musical dos anos 30 e 40. A sensao de sonho, de "mentira cinematogrfica" vem junto. De repente, no minsculo "night dub", surgem dezenas de danarinas num palco imenso, que ningum sabe de onde saiu, e desenvolvem uma coreografia digna da Broadway. O espectador percebe que aquele espetculo grandioso totalmente impossvel de acontecer dentro do "Club Obi Wan". E apenas uma brincadeira dos criadores, como que dizendo: "bem-vindo ao nosso universo, onde o sonho se mistura com a realidade, e onde quase tudo pode acontecer". Logo o filme se transforma num fliperama, do incio ao fim. Comea como um fliperama, com o quebra-quebra no "night dub", e termina como um fliperama naquela perseguio de carrinhos dentro da mina. A histria se passa um ano antes de Caadores, comea em Hong Kong e continua na ndia, com Indy, seu assistente mirim Short Round e a cantora Willie Scott tendo que resgatar a pedra sagrada de Sankhara e todas as crianas de uma aldeia hindu das entranhas do sinistro Palcio de Pankot. A grande maioria das pessoas considera o Indiana Jones e o templo da perdio o filme mais fraco da trilogia. Eu o considero o pior e o melhor dos trs. E certamente o mais fraco. Os outros dois roteiros so bem melhor estruturados. S que esse o nico filme que se adequa ao objetivo inicial do Lucas e do Spilberg, mesmo que seja de forma no-intendonal. Quando pensaram em fazer Os caadores da arca perdida, eles pegaram
tudo de bom que existia nos antigos seriados e usaram ali. No Templo da perdio, a dupla pegou tudo de ruim e fez um filme ruim, tosco e inconseqente como as sries dos anos 30, s que com mais dinheiro. A cena de perigo mais emblemtica da histria do cinema, principalmente desse seriados - que a do heri preso numa sala fechada, onde o teto cheio de lanas pontiagudas comea a baixar, vai fechando sobre ele e no h sada: o final tpico dos episdios dos anos 30 - existe no filme. O prprio Spielberg acabou se arrependendo de ter feito Indiana Jones e o templo da perdio ao saber que muitas crianas saram correndo, chorando no meio da sesso, impressionadas com a cena do ritual onde o sacerdote Mola Ram arranca o corao do nativo e o abaixa at a lava fervente, enquanto o corao continua batendo em sua mo. O pblico cativo de Spielberg - as criancinhas - ficou traumatizado com aquelas imagens. Hoje em dia, essa turma, mais cresdda, deve estar enriquecendo os psicanalistas por causa desse trauma. Para se redimir com seu pblico mais jovem, o diretor resolveu fazer mais um filme, fechando a trilogia de Indiana Jones. Alm disso, George Lucas estava ansioso para contar um pouco da infncia do personagem, revelando mais ainda o perfil desse heri j clssico. Indiana Jones e a ltima cruzada (Indiana Jones and the Last Crusade) uma grande brincadeira, mais parecido com o primeiro filme, embora com um tom mais crtico e mais leve. A ltima cruzada assumidamente uma comdia e parte de uma deliciosa citao cinematogrfica. Ao colocar Sean Connery como o pai de Harrison Ford, o filme reafirma algo que muitos j tinham observado: Indiana Jones filho legtimo do agente secreto James Bond. S isso, mostrado com bom humor, j vale o filme. Essa informao subconsciente pega carona em anos de tradio de 007 no cinema e aproveita o prestgio de Connery como o mais carismtico James Bond que j existiu. Isso engrandece o heri da Lucasfilm e colocado de uma forma leve, engraada. O roteiro to bem estruturado quanto o de Caadores, e a ao ininterrupta, com o Dr. Jones, seu pai e os amigos Marcus Brody (Denholm Elliot) e Sallah el-Kahir0ohn Rhys-Davies) em eletrizantes correrias em barcos, trens, motos, avies (e at um dirigvel e um tanque de guerra!) em busca do lendrio Santo Graal. Quando se pesquisa a histria dos trs filmes, em especial do primeiro e do terceiro, descobre-se que eles se basearam em histrias e fatos
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reais. Por exemplo, em Os caadores da arca perdida os personagens descobrem que a Arca da Aliana est enterrada numa cidade egpcia chamada Tanis. Tanis realmente existiu. A histria que Indiana conta para os oficiais da inteligncia no incio do filme totalmente verdadeira. Est nos livros de Histria que o Fara Shishak - que reinou no Baixo Egito h quase 3 mil anos - invadiu Jerusalm aps a morte do Rei Salomo, por volta de 925 A.C., saqueou a cidade e roubou dos Hebreus a Arca da Aliana, que estava guardada no templo de Salomo. De volta a Tanis, Shishak levou a Arca para o seu palcio e construiu um templo em louvor dos soldados que pereceram nessa batalha de invaso a Israel, onde inclusive enterrou seus corpos. Contudo, Usehet - seu Vizir - recomendou que o Fara pusesse a Arca da Aliana longe dos olhos de Amun-Ra, o Deus Sol, num lugar onde ningum pudesse perturb-la. Shishak ento enterrou a relquia hebraica no mesmo templo em que estavam os corpos dos soldados. Mesmo assim, um ano depois, uma violenta tempestade de areia sepultou a cidade, fazendo-a literalmente sumir do mapa. Isto fato. Em tempo, no filme, o templo onde a Arca foi enterrada chamado de Poo das Almas. A construo de uma narrativa em cima de dados histricos uma das principais marcas registradas no universo de Indiana Jones. O roteiro de A ltima cruzada - onde o heri e seu pai correm atrs do Clice Sagrado - se apoia em duas bases ntidas, uma lendria e outra real. Remetendo-nos lenda do Rei Arthur e o Santo Graal, podemos ver o paralelo entre os protagonistas de ambas as histrias. Arthur, o sbio rei que detm o conhecimento e a misso de encontrar o Clice (Professor Henry Jones/Sean Connery), que trata Sir Lancelot, seu primeiro cavaleiro, como um filho (Indiana Jones/Harrison Ford) e com quem divide a mulher amada, Guinevere (Elsa Schneider/Alison Doody), que por sua vez tem admirao pelos dois so os pontos de contato mais bvios entre elas. H tambm um forte paralelismo entre o filme e o famoso poema do sculo XIII Parzival, de Wolfram von Eschenbach (que mais tarde inspirou a ltima pera de Richard Wagner, Parsifal). No poema, o Rei Anfortas gravemente ferido e o cavaleiro Parzival precisa descobrir os segredos do Clice Sagrado para salv-lo, enquanto Cundrie, a dama que atrai ambos, a prpria ambivalncia, dividida entre a luz e as trevas. Alm da fico clssica, Lucas e Spielberg foram buscar
referncias nos fatos reais que envolvem a lenda do Santo Graal. Em 1931, um jovem estudioso alemo de 27 anos chamado Otto Rahn procurava alguma pista que o levasse ao Clice. Descobriu na Frana as runas de um templo dos Cathars - faco crist banida em 1244 por heresia e considerados os ltimos guardies da Taa de Cristo - sobre os quais ele escreveu dois livros. As obras chamaram a ateno de Himmler, lder da SS, do emergente partido nazista. Obcecado pelo oculto (como j foi dito em Caadores), Hitler deu carta branca ao jovem estudioso para continuar a busca. Otto Rahn no era realmente um arquelogo, mas um apaixonado pela busca do Clice Sagrado. Foi a vrios lugares pesquisando, levantando informaes que poderiam levar ao valioso tesouro cristo. Vrios historiadores, analisando A ltima cruzada em relao histria real de Otto, descobriram alguns pontos em comum entre elas. Ele, por exemplo, era fisicamente muito semelhante imagem de River Phoenix no filme - que vive o Indiana Jones com treze anos de idade. Otto andava sempre com roupas de escoteiro, com umas botas enormes para facilitar suas caminhadas atrs dos indcios do Clice Sagrado. Seu fim permanece um mistrio. Enquanto uns dizem que ele terminou seus dias num campo de concentrao alemo, outros afirmam que Otto, enlouquecido, se matou num ritual dos Cathars, algo semelhante morte apocalptica do arquelogo Ren Belloq no fim de Os caadores da arca perdida. Examinando toda a "biografia" de Indiana Jones, vemos que ele busca subsdios na histria real de nosso sculo e em mitos clssicos da Humanidade. Aps A ltima cruzada, George Lucas ainda queria contar mais sobre a vida desse fascinante personagem. Em 1991, ele criou o seriado televisivo O jovem Indiana Jones (The Young Indiana Jones Chronicles), que revelava como aquele destemido aventureiro e intelectual - que nos acostumamos a ver nos filmes se safando de perigos iminentes e conquistando tesouros lendrios - chegou a ser o que era. O objetivo de George Lucas era mostrar a formao da personalidade daquele heri, a construo de seu carter, num dos contextos mais ricos da histria da humanidade: o incio do sculo XX. A Revoluo Mexicana, a Primeira Grande Guerra, a Revoluo Russa, o desenvolvimento da poltica e das cincias, o Cubismo e o Modernismo nas artes, o nascimento do jazz e da Psicanlise, o surgimento das grandes invenes, formavam um palco perfeito para
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mostrar o aprendizado e o crescimento do jovem Indiana Jones. Era tambm uma forma de mostrar que nem o criador nem a criatura estavam interessados apenas no escapismo. No que o cinema de entretenimento seja um gnero menor, como a intolerncia da maioria dos crticos teima em afirmar, mas o que Lucas buscava aqui era formar e informar o pblico sobre a variedade de culturas, de credos e de ideologias que h no mundo, e apresentar a um telespectador anestesiado pela banalidade da programao um universo rico e fascinante que at hoje tem ressonncias em nosso cotidiano. Enfim, fugir da mediocridade, ensinando e divertindo ao mesmo tempo. O problema que a audincia da srie foi abaixo das expectativas, tanto aqui como l fora. Por qu? A meu ver, houve erro de divulgao por parte dos produtores e preconceito por pane do pblico, mais especificamente de dois tipos de pblico. Os fs de seriados de ao e violncia, que esperavam rever as correrias do personagem do cinema na telinha, se decepcionaram ao encontrar muito mais o aprendizado de vida de um jovem no incio do sculo do que aventura propriamente dita. E o pblico mais intelectualizado, que naturalmente foge dos "enlatados" convencionais, imaginou que a srie seria uma repetio semanal das estripulias do herico arquelogo, tpico do cinema de Spielberg. Bem, nesse desencontro de espectativas perderam todos, menos quem acompanhou a srie e o Professor Henry Jones Jr., que ganhou uma rica e empolgante histria de vida. As aventuras de Indiana Jones no se limitam ao cinema e TV, como j foi dito, e seu universo tende a se expandir tambm em outras mdias, a fim de ajudar a compor esse mosaico ficcional. At o momento, existem oito minissries em quadrinhos e trinta e um livros contando histrias do personagem, isso sem falar em CD-ROM e RPGs (vide apndice). Nos quadrinhos, o arquelogo j passou por duas grandes editoras, em trajetrias distintas. Na poca do lanamento de Os caadores da arca perdida, a Marvel - a maior editora de quadrinhos dos Estados Unidos e do mundo - comeou a adaptar os filmes para quadrinhos e a lanar uma srie mensal com aventuras de Indiana Jones. Porm, os autores e editores das revistas no tinham a menor preocupao em manter a coerncia interna do universo do personagem, e as histrias eram escritas aleatoriamente, sem que os responsveis se preocupassem com ordem
cronolgica ou nada parecido. Em geral, as tramas eram inconsistentes e se apoiavam nica e exclusivamente na ao frentica. Pelo que deixou transparecer em sua tentativa frustrada de quadrinizar o heri, a Marvel devia achar que Indiana Jones era o Jason Sexta-Feira 13 Vorhees do cinema de aventura. Para alvio dos fs verdadeiros de Indiana Jones, a revista teve vida curta. No incio dos anos 90, a Dark Horse Comics - atualmente a quarta do ranking e que na poca era uma editora pequena - resolveu pegar o personagem e retrabalh-lo, aproximando-o das aventuras cinematogrficas, e submetendo seus roteiros ao crivo da Lucasfilm. Comeou transformando Indiana Jones and the Fate of Atlantis, um jogo em CDROM da LucasArts, numa minissrie em quatro partes, escrita e desenhada pelo veterano Dan Barry, especialista em pulp comics (Tarzan e Flash Gordon). Com o sucesso do gibi, a Dark Horse passou a lanar outras minissries fechadas, mantendo o esprito dos longas de Spielberg, como pequenos filmes em quadrinhos, respeitando sempre a cronologia do personagem. Em alguns trabalhos inclusive os autores fazem seus roteiros embasados numa pesquisa histrica, com referncias a fatos, locais e objetos reais e mitolgicos, colocando Indiana Jones atrs do Velo de Ouro, da Pedra Filosofal ou da Lana de Longinus. O ponto mais importante das minissries da Dark Horse justamente esse: elas misturam o suspense tipo cliffhanger dos pulps e seriados dos anos 30 (a matriz referencial do personagem), a contextualizao sobre dados histricos (presente tambm na srie de TV) e a bem costurada narrativa aventuresca da trilogia do cinema (com algumas lamentveis excees). Isto , as caractersticas principais, a verdadeira essncia do personagem criado por George Lucas e Philip Kaufman h quase 20 anos. Isso tambm acontece nos romances escritos por Rob MacGregor e Martin Caidin para a Bantam Books. Sempre obedecendo cronologia de Indiana Jones, segura com rdea forte pela Lucasfilm. E esse, sem dvida, o segredo para a consistncia deste universo ficcional to rico. Todas as histrias criadas com o personagem, em todas as mdias, passam pela aprovao da Lucasfilm, que exige coerncia em sua cronologia. Afinal, o Doutor Jones tem at data de nascimento... se a gente bobear, pode at acreditar que ele existe, como eu j disse no incio. Se voc observar bem, ver que as histrias se complementam. Os filmes, gibis, episdios da srie, os livros, formam
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mostrar o aprendizado e o crescimento do jovem Indiana Jones. Era tambm uma forma de mostrar que nem o criador nem a criatura estavam interessados apenas no escapismo. No que o cinema de entretenimento seja um gnero menor, como a intolerncia da maioria dos crticos teima em afirmar, mas o que Lucas buscava aqui era formar e informar o pblico sobre a variedade de culturas, de credos e de ideologias que h no mundo, e apresentar a um telespectador anestesiado pela banalidade d programao um universo rico e fascinante que at hoje tem ressonncias em nosso cotidiano. Enfim, fugir da mediocridade, ensinando e divertindo ao mesmo tempo. O problema que a audincia da srie foi abaixo das expectativas tanto aqui como l fora. Por qu? A meu ver, houve erro de divulgao por parte dos produtores e preconceito por parte do pblico mais especificamente de dois tipos de pblico. Os fs de seriados de ao e violncia, que esperavam rever as correrias do personagem do cinema na telinha, se decepcionaram ao encontrar muito mais o aprendizado de vida de um jovem no incio do sculo do que aventura propriamente dita. E o publico mais intelectualizado, que naturalmente foge dos enlatados convencionais, imaginou que a srie seria uma repetio semanal das estripulias do herico arquelogo, tpico do cinema de Spielberg. Bem nesse desencontro de espectativas perderam todos menos quem acompanhou a srie e o Professor Henry J o n e s J r ., q u e g a n h ' Q U u m a rica e empolgante histria de vida. cgdnnouuma As aventuras de Indiana Jones no se limitam ao cinema e TV como ia fo, dito, e seu universo tende a se expandir tambm em ounas mdias, a fim de ajudar a compor esse mosaico ficcional Ar* existem oito minissries em quadrinhos e tnnta ^ histrias do personagem, isso sem falar em C ^ O u T ^ o T (VldC apndice). Nos quadrinhos, o arquelogo i J l , U editoras, em trajetrias distintas. Na poca do i r ^ * " *"*" da arca perdida, a Marvel - a maior ^ , & ? * ? * * " Unidos e do mundo - comeou a adaptar o f i ! S * *
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cronolgica ou nada parecido. Em geral, as tramas eram inconsistentes e se apoiavam nica e exclusivamente na ao frentica. Pelo que deixou transparecer em sua tentativa frustrada de quadrinizar o heri, a Marvel devia achar que Indiana Jones era o Jason Sexta-Feira 13 Vorhees do cinema de aventura. Para alvio dos fs verdadeiros de Indiana Jones, a revista teve vida curta. No incio dos anos 90, a Dark Horse Comics - atualmente a quarta ran>dng e que na poca era uma editora pequena - resolveu pegar o Personagem e retrabalh-lo, aproximando-o das aventuras cinematogrficas, e submetendo seus roteiros ao crivo da Lucasfilm. Comeou transformando Indiana Jones and the Face of Atlantis, um jogo em CDROM da LucasArts, numa minissrie em quatro partes, escrita e desenhada Pelo veterano Dan Barry, especialista em pulp comics (Tarzan e Flash vordon). Com o sucesso do gibi, a Dark Horse passou a lanar outras ntinissries fechadas, mantendo o esprito dos longas de Spielberg, como Pequenos filmes em quadrinhos, respeitando sempre a cronologia do Personagem. Em alguns trabalhos inclusive os autores fazem seus roteiros er nbasados numa pesquisa histrica, com referncias a fatos, locais e objetos reais e mitolgicos, colocando Indiana Jones atrs do Velo de Ouro, da Pedra Filosofal ou da Lana de Longinus. O ponto mais importante das "unissries da Dark Horse justamente esse: elas misturam o suspense tipo diffhanger dos pulps e seriados dos anos 30 (a matriz referencial do Personagem), a contextualizao sobre dados histricos (presente tambm n a srie de TV) e a bem costurada narrativa aventuresca da trilogia do anema (com algumas lamentveis excees). Isto , as caractersticas Principais, a verdadeira essncia do personagem criado por George Lucas e Philip Kaufman h quase 20 anos. Isso tambm acontece nos romances Peritos por Rob MacGregor e Martin Caidin para a Bantam Books. Sempre obedecendo cronologia de Indiana Jones, segura com rdea forte pela Lucasfilm. E esse, sem dvida, o segredo para a consistncia de ste universo ficcional to rico. Todas as histrias criadas com o Personagem, em todas as mdias, passam pela aprovao da Lucasfilm, Que exige coerncia em sua cronologia. Afinal, o Doutor Jones tem at data de nascimento... se a gente bobear, pode at acreditar que ele existe, como eu j disse no incio. Se voc observar bem, ver que as histrias se complementam. Os filmes, gibis, episdios da srie, os livros, formam
e editores das revistas no tinham a menor r m ' o s autores re C UPaa coerncia interna do universo do personagem e r, ^ "*"'" * aleatoriamente, sem que os responsveis J * a s m s t n a s eram escritas
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realmente um mosaico que contam a vida de um homem. Alis, de um heri. Mas antes de enlouquecermos de vez, sempre bom lembrar que esse homem mais importante do sculo nunca existiu, fora dos limites de um bem construdo mundo de fantasia. E lgico que um sujeito no poderia ter feito aquilo tudo. E impossvel algum existir assim e estar vivo com 97 anos. Certamente ele teria morrido de infarto com 30, 40 anos, sei l. Por fim, importante ter sempre em mente a lio bsica do universo de um personagem to rico como Indiana Jones. Um dos muitos caminhos (talvez o mais fascinante) para tornar uma narrativa mais interessante criar um equilbrio entre os fatos e a fico, entre o real e o imaginrio. Limitar-se realidade sem dar asas imaginao tedioso at para documentrios. Por outro lado, trabalhar apenas com o mundo da imaginao pode acabar empobrecendo uma histria, por mais paradoxal que possa parecer. Num mundo sem elos com a realidade, praticamente tudo pode acontecer, transformando o inesperado e o impossvel em algo corriqueiro e enfadonho. O pulo do gato criar as fantasias mais delirantes sobre um contexto histrico e conhecido, ou vice-e-versa. O sabor de uma boa histria - e isto tambm vale para as aventuras de RPG - vem da mistura desses dois ingredientes. At porque s vezes a realidade muito mais fantstica do que a fico, e quando percebemos isso podemos estar entrando numa regio... alm da imaginao! pela Odissia.
Apndice - O MUNDO DE INDIANA JONES Organizao de Oswaldo Lopes Jr. Maro de 1995. Atualizado em Maio de 1996. CINEMA Patrick Flanery, George Hall, Ronny Paramount/ Lucasfilm Ltd. Coutteure, Margaret Tyzack, Lloyd Owen, Ruth de Sosa. 1991/ 93. - Os caadores da arca perdida EPISDIOS: (Raiders of the Lost Ark) Argumento: George Lucas & Philip - Indiana Jones and the Curse of the Kaufman. Roteiro: Lawrence Kasdan. Jackal (piloto) Direo: Steven Spielberg. Elenco: Rot.: Jonathan Hales / Dir.: Carl Harrison Ford, Karen Allen, Paul Schultz e Jim 0'Brien. Freeman, John Rhys-Davies, Denholm Indy encontra T. E. Lawrence Elliot, Ronald Lacey. 1981. (Lawrence da Arbia), o arquelogo - Indiana Jonnes e o templo da perdio Howard Carter, Pancho Villa, (Idiana Jones and the Temple of Doom) Tenente George Patton e Coronel Argumento: George Lucas. Roteiro: John Pershing. Willard Huyck &. Gloria Katz. Florence, May 1908 Direo: Steven Spielberg. Elenco: - Indy encontra o compositor Giaccomo Harrison Ford, Kate Capshaw, Ke Puccini Huy Quan, Amrish Puri, Roshan Paris, July 1908 Seth, Philip Stone. 1984. Rot.: Reg Gadney / Dir.: Ren - Indiana Jonnes e a ltima cruzada Manzor. (Indiana Jonnes and the last crusade) - Indy encontra Pablo Picasso, Edgar Argumento: George Lucas &. Menno Degas, Norman Rockwell, George Braque, Henri Rousseau, e as escritoras Meyjes. Roteiro: Jeffrey Boam. Direo: Steven Spielberg. Elenco: Gertrude Stein e Alice B. Toldas. Harrison Ford, Sean Connery, Vienna, November 1908 Denholm Elliot, Alison Doody, John Rot.: Matthew Jacobs / Dir.: Bille Rhys-Davies, Julian Glover. 1989. August. - Indy encontra o Arquiduque Franz Ferdinand, a princesa Sophie, Sigmund TELEVISO Freud, Carl Jung e Alfred Adler. Lucasfilm Ltd./ Amblin Television British East frica, September 1909 - O jovem Indiana Jonnes Rot.: Matthew Jacobs / Dir.: Carl (The Young Indiana Jonnes Chronicles) Schultz. Criador e Produtor Executivo: George - Indy encontra o ex-presidente Teddy Lucas. Produtor: Rick McCallum. Elenco bsico: Corey Carrier, Sean Roosevelt e o caador Frederick Selous.
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- Indy encontra o General Henr Ptain, Benares, ndia, January 1910 Rot.: Jonathan Hensleigh / Dir.: o Gen. Joseph Joffre, o Gen. Robert Nivelle e o Gen. Charles Mangin, oficiais Deepa Mehta. - Indy encontra Jiddu Krishnamurti e do exrcito francs. Paris, October 1916 Annie Besant, lder teosofista. Rot.: Carrie Fisher / Dir.: Nicolas Peking, March 1910 Rot.: Rosemary Anne Sisson / Dir.: Roeg. - Indy encontra Mata Hari. Gavin Millar. Young Indiana Jones and the Phantom - Indy encontra o professor e tradutor Yen Train of Doom Fu. Rot.: Frank Darabont / Dir.: Peter Princeton, February 1916 Rot.: Matthew Jacobs / Dir.: Joe MacDonald. - Indy encontra o Coronel Paul Von Johnston. - Indy encontra Thomas Alva Edison e oLettow-Vorbeck, o principal oficial alemo na frica durante ala Guerra, autor e editor Edward Stratemeyer. o agente da Inteligncia Britnica Richard Ireland, April 1916 Rot.: Jonathan Hales / Dir.: Gillies Meinenzhagen, o estadista )an Chrstian Smuts, e reencontra o caador e Mackinnon. Indy encontra o poeta W. B. Yeats, o explorador Frederick Selous, agora dramaturgo Sean 0'Casey e o lder Capito. German East frica, December 1916 poltico Sean Lemass. Indy encontra Barthelemy Boganda, London, May 1916 primeiro presidente da Repblica Central Rot.: Rosemary Anne Sisson / Dir.: Africana. Carl Schultz. - Indy encontra Winston Churchi e a Congo, January 1917 - Indy encontra o Dr. Albert Schweitzer. sufragista Sylvia Pankhurst. ustria, March 1917 Somme, Early August 1916 Rot.: Jonathan Hensleigh / Dir.: Rot.: Frank Darabont / Dir.: Vic Armstrong. Simon Wincer. - Indy encontra o poeta e romancista - Indy encontra o Imperador Karl I e a Imperadora Zita, os ltimos monarcas da Siegfred Sassoon e o poeta, romancista ustria, o Prncipe Sixms (filho do ltimo e crtico Robert Graves. Duque de Parma) e o Conde Ottokar Germany, Mid August 1916 Rot.: Jonathan Hensleigh / Dir.: Graf Czemin, Ministro do Exterior do Imprio ustro-Hngaro. Simon Wincer. - Indy encontra Charles De Gaulle. Barcelona, May 1917 Rot.: Gavin Scott / Dir.: Terry Jones. Berlin, Late August 1916 - Indy encontra Sergei Diaghev e Verdun, September 1916 Rot.: Jonathan Hensleigh / Dir.: Ren reencontra Pablo Picasso. Petrograd, July 1917 Manzor.
Rot.: Gavin Scott / Dir.: Simon Rot.: Jule Selbo / Dir.: Carl Schultz. Wincer - Indy encontra os msicos Sidney Bechet, - Indy encontra Lnin. Louis Armstrong, King Oliver, LU' Prague, August 1917 Hardin e Johnny & Baby Dodds, o oficial - Indy encontra Franz Kafka. de polcia Elliot Ness, os gngsters ]im Palestine, October 1917 Colosimo, Al Capone e Johnny Torro, - Indy encontra os comandantes o dramaturgo e escritor Ben Hecht, o australianos Harry George Chauvel, jornalista e dramaturgo Charles William Grant eM. W.J. Bourchier, e MacArthur, e reencontra Emest reencontra T. E. Lawrence e Richard Hemingway. Meinenzhagen. Young Indiana Jones and the Scandal of Transylvania, January 1918 1920 (June 1920) - Indy encontra o Prncipe Vlad IV, o Rot.: Jonathan Hales / Dir.: Syd Empalador. McCartney. Northern Italy, June 1918 - Indy encontra os msicos George Rot..- Jonathan Hales / Dir.: Bille Gershwin, Irving Berlin, Ted Lewis, a August. escritora Dorothy Parker, o jornalista, - Indy encontra Emest Hemingway e o crtico e ator Alexander Woolkott, o ator agente da Inteligncia Americana e produtor teatral George White, George Emanuel Victor Voska. S. Kaufman e Edna Ferber, e reencontra Sidney Bechet. Istanbul, September 1918 Rot.: Rosemary Anne Sisson / Dir.: LIVROS Mike Newell. JOVEM INDIANA JONES - Indy encontra o estadista grego Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, Bantam/Falcon Books e a romancista nacionalista turca Halide Alguns escritos por Les Martin, outros Edib. por William McCay. Paris, May 1919 Rot.: Jonathan Hale / Dir.: David -Young Indiana Jonnes' Titanic Adventure Hare. - Indy encontra o futuro lder vietnamita-Young Indiana Jonnes and the Pirates' Ho Chi Minh, o presidente americano Loot Woodrow Wilson, o Prncipe Faisal da- Young Indiana Jonnes and the Lost Arbia, o Premier francs George Gold of Durango Clemenceau, o estadista ingls David - Young Indiana Jonnes and the Lloyd George, o diplomata ingls Amold Plantatiom Treasure Toynbee e a viajante inglesa Gertrude- Young Indiana Jonnes and the Tome Be, e reencontra T. E. Lawrence. of Terror (Young Indiana Jones and the Mystery - Young Indiana Jonnes and the Prmcess o/ the Blues) ofPeril
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1992. - Young Indiana Jonnes and the Ghostly - Indiana Jonnes and the Sky Pirates Riders - Young Indiana Jonnes and the Cirde de Martin Caidin. Dezembro de 1993. - Indiana Jonnes and the WHITE of Death - Young Indiana Jonnes and the Journey WITCH de Martin Caidin. Abril de 1994. to the Underworld - Young Indiana Jonnes and theCurse Indiana Jonnes and the Philosopher's Stone of the Ruby Cross - Young Indiana Jonnes and the Gypsyde Max McCoy. Maio de 1995. Revenge - Young Indiana Jonnes and the Secret LIVROS EUROPEUS INDIANA JONES City -Young Indiana Jonnes and the Black Bear Pockets / Goldmann Todos escritos por Wolfgang Hohlbein Mountain of Fire - Young Indiana Jonnes and the face of - Indiana Jonnes and the Longship of the Dragon the Gods - Indiana Jonnes and the Genghis LIVROS Khan's Sword INDIANA JONES - Indiana Jonnes and the Lost Peope Bantam / Falcon Books - Indiana Jonnes and the Secret of the - Indiana Jonnes and the Peril at Delphi Easter Islands de Rob MacGregor. Fevereiro de 1991. - Indiana Jonnes and the Avalon - Young Indiana Jonnes and the Dance Inheritance - Indiana Jonnes and the Feathered of Giants Snake de Rob MacGregor. Junho de 1991. - Indiana Jonnes and the Seven Veib (Ttulo original: Ij" En De Gevederde de Rob MacGregor. Dezembro de Slang) - Indiana Jonnes and the God o/ EI 1991. (Publicado no Brasil como Indiana Dorado Jonnes e os sete vus - Editora (Ttulo original: Ij En Het Goud Van El Dorado) Salamandra) - Indiana Jonnes and the Gnesis Deluge - Indiana Jonnes and the LoiTrinth of de Rob MacGregor. Fevereiro de Horus (Ttulo original: Ij En Het Labyrint 1992. Van Horus) - Indiana Jonnes and the Unicom's Legacy HISTRIAS EM QUADRINHOS de Rob MacGregor. Setembro de 1992. Dark Horse Comics - Indiana Jonnes and the Interior World (As revistas de Indiana Jones de Rob MacGregor. Dezembro de
- Raiders of the Lost Ark Sourcebook de Peter Schweighofer. 1994. - Indiana Jonnes and the Tomb of the Templates - Indiana Jonnes and the Fate ofAtlantis - Indiana Jonnes and the Land of de William Messner-Loebs e Dan Adventures Barry. Em 4 partes. 1991. de Sanford Berenberg e John Terra - Indiana Jonnes and the Shrine of the 1995. Sea Devil - Indiana Jonnes and the Golden de Gary Gianni. Em 1 parte. 1992 Vampires - Indiana Jonnes and the Thunder in the Orient CD-ROM de Dan Barry e Dan Spiegle. Em 6 LucasArts partes. 1993/ 94. - Indiana Jonnes and the Arms of Gold- Indiana Jonnes and the Fate ofAtlantis de Lee Marrs e Leo Duranona. Em 4 de Hal Barwood e Noah Falstein. 1992. partes. 1994. - Indiana Jonnes and the Golden Fleece de Pat McGreal, Dave Rawson, Ken Hooper e Stan Woch. Em 2 partes. 1994. - Indiana Jonnes and the Iron Phoenix de Lee Marrs e Leo Duranona. Em 4 partes. 1994/ 95. - Indiana Jonnes and the Spear of Destiny de Elaine Lee, Will Simpson e Dan Spiegle. Em 4 partes. 1995. - Indiana Jonnes and the Sargasso Pirates de Karl Kesel, Paul Guinan e Eduardo Barreto. Em 4 panes. 1996. RPG - ROLEPLAYING GAME Masterbook games /West End Games - The World of Indiana Jones de Brian Sean Perry. 1994. - Indiana Jonnes and the Rising Sun de Bill Oimesdahl e David Pulver. 1994.
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DEBATE
Platia (Klaus): Escapando um pouco do Indiana Jones, mas ainda falando sobre a linguagem no cinema, o Sean Connery um cara amaldioado, ele nunca vai deixar de ser o James Bond, porque mesmo quando ele no interpreta o James Bond ele o James Bond. Em O nome da rosa a gente v que ele s est com a batina, mas o James Bond. Quando ele pai do Indiana Jones, continua sendo o James Bond. Oswaldo Lopes Jr.: Eu no acho que seja sempre assim. Por exemplo, em Os intocveis, que um filme policial, ele no o James Bond. Ele quase uma conscincia pairando acima do filme. James Bond ali o Elliot Ness. Acho que Sean Connery , hoje em dia, um ator que conseguiu fugir do personagem. No caso de A ltima cruzada, por exemplo, ele estava ali com essa funo. A brincadeira ali ser o James Bond, pai do Indiana Jones. Mas acho que o Sean Connery tem talento e porte o suficiente para escapar desse estigma. Platia (Klaus): Talento ele tem, sem dvida. A segunda pergunta a seguinte: os personagens humanos, tanto os heris quanto os viles, impregnados da luz ou das trevas, eles ficam mais ricos, certo? Tanto que me parece, por isso, que o Batman renascia da histria em quadrinho do Frank Miller, que fez tanto sucesso. A eu te pergunto: por que que no foi exatamente um Batman-Frank Milller que apareceu no cinema? Isso que se estava esperando? Qual foi a idia original na cabea dos produtores do Batman no cinema? Oswaldo Lopes Jr.: Eu fao a mesma pergunta que voc, porque tambm sou f do personagem. Eu tambm preferia ver O Cavaleiro das Trevas no cinema. O Robocop original muito mais o Batman do que Batman, o filme de Tim Burton. Paul Verhoeven se aproximou muito mais de O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, do que Tim Burton se aproximou de qualquer um dos Batmans dos quadrinhos. Platia (Klaus): Eu no sei se isso uma impresso particular minha. Eu at gostaria que fosse. Por que to poucas mulheres jogam RPG? Por que to poucas garotas na platia? Por que to poucas mulheres curtem contos hericos?
Platia (?): As mulheres so to apaixonadas pelos contos hericos quanto os homens. No preferncia feminina. Eu no sei se por falta de conhecimento, realmente so poucas as mulheres. Talvez por falta de oportunidade, talvez por que o RPG foi difundido num mundo masculino e no foi apresentado para as mulheres. Eu sou uma mulher que jogo e jogo com muitas mulheres. Denise Leipziger: Bom, eu no sei se elas curtem to pouco assim os contos hericos, o que eu posso falar dos personagens. O que eu posso falar, o que culturalmente acontece com o contedo mesmo dos contos que so poucas as personagens femininas realmente de peso. Citei duas, eu poderia, na realidade, citar mais uma nesse processo herico de conquistar. So poucos, tambm, os heris negros, como so poucos os heris velhos, quer dizer, o velho sbio ele pouco aparece, mais reverenciada a coisa do guerreiro, a coisa do heri que vai luta, do jovem. Platia (Klaus): Os heris negros, eles tambm so raros na nossa cultura. Se voc for pegar os contos hericos dos povos negros, certamente vai ser diferente. Denise Leipziger: E isso. H uma seleo, a seleo que chega para a gente, o repertrio que chega para a gente j passa por uma peneira ideolgica e cultural onde a gente vai ter poucas histrias com mulheres, com negros e com velhos, com os velhos sbios, que seriam a segunda etapa do heri, quando ele j transps aquela segunda etapa e vai se tornar o velho sbio. Platia (Klaus): Duas perguntas para o Hamilton Vaz Pereira. A llada tem diversas verses, mas a verso mais badalada cita o Cavalo de Tria? Segundo o Jean Claude Carrier, os indianos e os gregos so indo-europeus e entre eles existem muitas semelhanas. Por causa disso, o Mahabarata conta a histria de uma grande aventura muito parecida com a llada. Jean Claude Carrier, quando tentou teatralizar a histria, teve muitas dificuldades. Como que voc vai tentar colocar isso no palco? Hamilton Vaz Pereira: O Cavalo de Tria no aparece na llada no, na Odissia. Durante um papo entre Helena e Menelau , a gente fica sabendo o que aconteceu depois que Heitor foi morto. Os dois esto no palcio comendo e contam para os convivas como foi a histria do
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Cavalo. Com relao a fazer, na realidade eu j fiz os dois espetculos: A lixada em 94 e a Odissia, em 95. Foi uma coisa que deu um trabalho enorme. Bem... Quando vocs ouvem falar sobre Indiana Jones uma coisa legal, porque vocs tm um domnio da histria. Quando eu venho com uma conversa sobre personagens de um universo que vocs no conhecem, um outro sabor. Os dois sabores so legais da gente provar e da gente curtir. No caso de fazer teatrinho da obra de Homero, tem uma coisa que se coloca assim: os heris so to encantadores, to fortes e bonitos, as tramas so to legais, complexas, que voc fica pensando se voc tem condies, se o seu poder de criar a cena teatral to forte quanto aquela grande sugesto de Homero. Acho que a primeira coisa que voc tem que fazer quando se depara com um problema desse aceitar o desafio mesmo que isso lhe custe a vida. Em seguida, voc deve procurar se sentir semelhante a Homero, semelhante aos deuses e aqueles grandes heris. Minha atitude e de toda a equipe foi a de colocar em cena a nossa mxima potncia criadora. Como voc vai colocar o Cavalo de Tria em cena, por exemplo? O nosso Cavalo de Tria tinha um metro e meio de altura. Os troianos adoravam cavalos, ento os gregos deram um cavalo de madeira para os troianos, e ele se tornou o famoso presente de grego. A cena assim: Os gregos fingem que vo embora, que desistem da guerra e deixam o presente na praia. Os troianos olham aquele cavalo e o trazem para dentro da cidade. S que dentro da barriga do cavalo, estavam todos os grandes heris gregos. Quando a noite chega, os troianos vo dormir, os gregos saem da barriga do cavalo e no d outra: acabam com Tria. esse o presente de grego: voc d alguma coisa a algum, que o que a pessoa quer, e, de repente, o presente se torna uma arma contra quem o recebeu. A gente aprendeu com Homero que, alm da viagem, a maravilha est no ato de contar, no momento em que voc saboreia as palavras, no momento em que voc quer passar beleza para o outro. A gente no tinha um puta cavalo, seria dispendioso, no havia grana para fazer isso, mas a gente tinha atores preparados para passar para a platia, atravs das palavras, o que aconteceu. Em teatro, preciso sempre avaliar a melhor maneira de seduzir a platia. Platia (Renata): Eu fao veterinria na UFF e sou jogadora de RPG. Com relao coisa da mulher no estar muito presente no jogo de RPG, eu acho que vem como uma coisa de preconceito, as histrias que
a gente conhece, geralmente, no tm heris e no tm heronas, no existem mulheres fazendo papel de como o heri realmente sempre participa das histrias. As heronas que existiram, geralmente tiveram finais tristes, como Joana D A r c que foi queimada numa fogueira, ou ento elas passam por trs, como mentes femininas brilhantes como em Brumas de Avalon, por trs de grandes heris. Eu acho que o RPG justamente chegou para isso, a mulher agora no precisa ser mais a mocinha que vai ser o prmio do heri, ela pode pegar e ser uma personagem, ser uma maga, ser um guerreiro, uma grande guerreira e participar e, de repente, ser a pea chave desse jogo. Acho que o RPG chegou para mudar essa coisa de a mulher ser sempre a mocinha. Ela pode at usar isso como artifcio, ser uma mulher linda, maravilhosa, toda fragilzinha e, de repente, numa batalha, ela a chave para que a batalha seja concluda. Uma coisa que a mulher no conseguiu comear no RPG, pelo menos que eu tenha visto, ser mestre. Acho que devia comear a ser mestre grande. Eu, pelo menos, no tenho tempo para me dedicar, para ser mestra, por enquanto. Pretendo ler e, quem sabe, de repente, fazer uma histria, construir alguma coisa, mas, fora isso, acho que so poucas as mulheres mestras. E isso que tem que comear a aparecer no RPG. Com relao parte feminina nas histrias, est comeando a crescer. O RPG comeou s com homens, mas agora no bem por a. Platia (Raul): Eu achei que no incio estava meio perdido, no estava se falando nada de RPG, mas a gente tem que falar sobre isso de maneira bem ampla. Eu acho legal ter pessoas do sexo feminino jogando RPG porque um tanto desagradvel a viso que o pessoal tem de RPG atualmente. O que RPG? Vrias pessoas acham que RPG um bando de neguinhos frustrados que gostam de fazer um personagem todo-poderoso. Por que na vida o cara no nada e o cara no tem nenhuma sensibilidade na hora de jogar? Por que o cara faz o personagem que o mais forte de todos, quer fazer o personagem o melhor de todos, mas ele no est pensando em criar um personagem vivo realmente, no est pensando em criar um personagem com personalidade, com uma histria. As vezes, o cara faz o personagem muito poderoso, mas qual ? No tem o nome do personagem, no tem a histria do personagem, o personagem surgiu apenas de um monte de nmeros. Acho que o pessoal que gosta mesmo de RPG tem que se opor simples alocao de nmeros numa ficha. No
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caso do Vampiro e do Uage e outros jogos da White Wolf colocar uma poro de bolinhas. Existem jogadores que fazem assim: eu quero um personagem bem poderoso, com milhares de disciplinas. RPG no s rolar dados, RPG no s chegar e falar: "voc est no meio de um deserto e rolar ataque". Para jogar RPG, tem-se que fazer toda uma descrio do mundo. Na primeira vez que o cara joga um jogo de RPG, o mestre teria que se encarregar de falar para o jogador como funciona o mundo, as regras bsicas daquele mundo em que o personagem est dentro. como o cara que est acostumado a jogar Ravenloft e vai jogar Vampiro ou, ento, ele joga AD&D e vai jogar Rolemaster. O jogador faz uma ficha, no conhece nada da histria do mundo, da realidade e o mestre diz que est tudo na ficha, comea a jogar e a est cercado, etc. Eu j vi gente fazer isso, mas o personagem no sabe como funciona o mundo, no sabe como funciona o sistema, ento o jogador no vai poder representar o seu personagem. A histria diferente, a criao do mundo - ponto central do debate de hoje - diferente e muitos mestres de RPG esquecem isso. Voc pega gente jogando RPG que diz que joga muito RPG, sabe jogar muito bem e s coloca um nmero alto. Quem j jogou um jogo mais atual, j deve ter visto que em Vampiro, por exemplo, se quer seduzir uma mulher no teste da caada, para obter sangue, o que muita gente faz? Pega o dado e rola, o cara s quer rolar o dado, rolar uma cantada, no quer representar. Ento para que serve RPG? Para ficar apenas um amontoado de dados bonitinhos? Para mostrar que tem dado amarelo, vermelho, verde, purpurina, dado fosforescente? Isso no RPG, chegar na mesa e jogar dados. RPG representar, fazer um personagem e jogar com ele de acordo com o que significa o personagem passando uma idia. Platia (Lus Eduardo): Sobre a questo da mulher no RPG, na verdade eu acho que o principal motivo da pouca freqncia feminina no RPG mais uma questo de origem, porque o RPG vem de um bero que bem clich. Um negcio que vem do final da dcada de 70, daquelas aventuras, daquele negcio de Dungeon, onde os caras entravam num labirintozinho, depois numa saletazinha, o ladro abria a porta, eles entravam, tinha uns trs ores, a o guerreiro saa cobrindo todo mundo na pancada, o feiticeiro fazia um feitiozinho por trs, essas coisas todas. Isso persistiu durante um bom tempo, foi muito depois que o pessoal
comeou a se preocupar com outras coisas. Esse negcio no muito bom, nem eu gosto disso, o que dir uma menina. E uma coisa sem sentimento, s chutar traseiro, s pancada. Hoje em dia, conforme foi havendo a evoluo, tenho sentido que o negcio evoluiu de tal forma que hoje voc j tem subsdio at em nvel de sistema, para voc ter mais interpretao, um negcio mais roleplay, bem mais humano. nesse contexto que vai chegar ao pessoal do sexo feminino. Sinceramente, o sistema herico, esse universo herico do guerreiro onipotente, aquele cara que vai l e mata, mata e mata, como os guerreiros gregos, um negcio que mais difcil. Acredito, no sei, no posso falar muito. Para a mulher em si, para aceitar. Porque a mulher um negcio mais sentimental, um negcio mais emotivo. Conforme o RPG vai evoluindo para mais interpretao, que vai ao encontro at do prprio teatro, acredito que a presena feminina vai aumentar e bastante, mas ainda fica o rano daquele rtulo dos primrdios, que deve ainda afastar bastante a presena feminina. At hoje, o pessoal tenta usar os mesmos recursos que se usava antigamente quando RPG era s rolar alguns dados e saber quanto dano voc fez no inimigo, quanto de experincia voc ganhou pra crescer mais no seu nvel, para ficar mais onipotente. H jogador que ainda usa esse tipo de conceito tentando fazer os personagens ficarem mais poderosos nos sistemas que se tem hoje. Sistemas que so realmente fantsticos, que levam em considerao a criao do personagem, coisas bem humanas como fobias, traumas e coisas assim. J ouvi falar bem de outros sistemas como o Vampiro, que eu no tive oportunidade de jogar ainda, soube que um sistema bastante voltado para o roleplay e para a prpria concepo do personagem. Eu acredito que um dos principais motivos para o afastamento feminino do RPG seja, principalmente, essa questo do rano dos primrdios do jogo. Denise Leipziger: Foi dito aqui que As brumas de Avalon seria a histria recontada pelo ponto de vista feminino, atravs de guerras. Eu no sei se obrigatrio a herona guerreira. Poderia at ser, mas a gente pode contar muita coisa a partir de Helena de Tria, que foi simplesmente raptada. Muita coisa pode ser contada atravs dela. Ela inventa o remdio contra picada de cobra. Ela faz coisas absolutamente fantsticas. Mas quando as pessoas narram, a narrativa ainda do ponto de vista masculino. Eu no sei se a herona tem que ser aquela que vai lutar e desbravar. Os poderes
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da feiticeira so fantsticos, mas a gente conta do ponto de vista masculino, que a questo do heri que deixa as mulheres de lado. Platia (Lcio Pimentel): Eu fao sociologia na UFRJ e gostaria de fazer uma pergunta para o Hamilton, a respeito de teatro. Eu queria mais detalhes. Antes, eu vou te dar uma explicao que voc no conhece. Existe uma vertente do RPG chamada Live Roleplaying, onde cada jogador tem um personagem e um teatro improvisado, mais do que no RPG. Cada jogador tem um histrico com um objetivo prprio, sendo que no existe um roteiro escrito. Existe uma determinada situao e seu personagem pode ser desde um guerreiro medieval ou um aliengena, se for um cenrio de fico cientfica. A minha dificuldade justamente passar alguns personagens para os jogadores. Alguns ficam muito difceis de serem interpretados ao vivo porque, no RPG de mesa, o mestre vai descrever a cena, no Live cada um vai interpretar ao vivo. Eu queria saber como que voc vai interpretar um Deus, por exemplo. Nos Estados Unidos existem Lives dos mais diversos tipos. Voc tem um Live Titanic, por exemplo, onde cada um personagem era membro do navio da primeira classe ou da tripulao. Quando o Titanic afunda, cada um tem uma misso prpria. Existem alguns Lives que ficam mais difceis para a interpretao. Como algum vai interpretar um ser onipotente, com centenas de poderes e conseguir fazer isso de forma convincente para que os outros jogadores fiquem apavorados ou impressionados com a sua presena? Ou mesmo no caso de uma viso mais humana, um rei. Eu j fiz alguns Lives em que aos personagens menos importantes ningum dava ateno. Eu queria que voc desse algumas dicas simples, sem usar recursos cnicos muito elaborados, de como fazer uma interpretao. Hamilton Vaz Pereira: Essa pergunta super boa. Eu no tenho intimidade alguma com o RPG. Como que o ator pode representar um deus ou um grande heri, no uma pessoa do cotidiano, dessas que a gente assiste em novela, mas algum que tenha uma aventura intensa, que tenha poderes que para ns seriam assustadores? Como que um ator pode chegar a impressionar os prprios companheiros do jogo, do palco e principalmente da platia? A resposta que eu encontrei para isso assim: quantas pessoas aqui dentro, nesse exato momento, entre essas 100 pessoas para as quais eu estou falando, esto prestando ateno, esto realmente querendo saber o que eu estou dizendo aqui? Qual a
intensidade que eu posso passar? Onde que eu vou chegar elevando a minha voz desse jeito? Quanto tempo eu seguro a ateno de vocs? Quando eu vou perder a ateno? Quando que vocs vo falar: "Deixa esse cara falar, o nosso papo est bem melhor". Isto uma coisa muito delicada. Dentro da questo teatral um ponto central. Quando eu estou conversando com uma pessoa interessante, quando eu quero que o dilogo acontea, eu procuro me tornar uma pessoa interessante, tento seduzir a pessoa pela conversa. Quanto tempo dura esse jogo? Um espetculo de teatro dura entre uma hora e quinze e duas horas, mas quanto tempo de cena realmente o ator e o espectador permanecem na mesma viagem? Em um espetculo inteiro, voc vai perceber que ficou atento ali uns dez minutos. Nesses dez minutos aconteceu uma troca, voc dialogou, voc seduziu. No teatro, o espectador v o ator no palco e, passa a achar aquele rapaz legal, aquela atriz linda. De repente, vai para o camarim e no acha mais a atriz to linda, nem o rapaz to forte. Mas, no palco eles se tornaram deuses. Durante a cena teatral tudo parecia coisa de deuses. Posso no achar graa nenhuma de uma garota num primeiro momento mas, sbito, ela comea a falar, a andar , a danar e, eu penso : "Meu Deus, ela! Quero casar com essa mulher, ter filhos com ela, passar a vida inteira junto dela!". Essa sensao pode passar rpido, durar trinta segundos, mas saudvel que acontea. No sei se respondi sua pergunta, mas tentei beca. Snia Mota: Agora eu fiquei curiosa. Hamilton, me diz uma coisa: ento uma questo do tempo em que o ator consegue concentrar a ateno? Porque isso planejado, no ? Hamilton Vaz Pereira: O meu assunto o jogo teatral, tem alguma semelhana com o jogo de vocs. Vou dar um exemplo. Trabalhando com quatro atores, eu digo para eles: "Cada um de uma vez vai sair daqui, passar por esse corredor cheio de gente, abrir a porta, fechar a porta e sair de cena." A levanta o primeiro ator, passa, abre a porta e vai embora. A o segundo ator desgruda a bunda do chiclete que estava na cadeira, vai e tropea ali, pede desculpas aqui, toca no queixo de um, diz uma gracinha para outro, na hora de abrir a porta diz que no est conseguindo, capricha no topete e, finalmente, abre a porta e sai de cena. A eu penso: "O primeiro foi assim, o segundo j fez isso tudo. O primeiro simplesmente levantou e foi embora; j o segundo jogou tudo que tinha para jogar,
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desde o momento em que pensou em se levantar da cadeira, me deu cem mil informaes com as quais pude rir, pude chorar, pude achar ruim. Eu diria assim: o segundo jogou melhor, me deu mais informao num certo espao de tempo. Os dois levaram quinze segundos para fazer o mesmo trajeto, mas o segundo enriqueceu o nosso tempo de uma tal maneira que eu fiquei emocionado. As pessoas - no s os atores - devem saber jogar. Tem gente que, numa conversa, no deixa a conversa morrer nunca. J tem outros que voc fala: "E a, tudo bem?" Tudo". A voc insiste: "Voc gosta de futebol ?" A o cara diz: " gol". A voc conclui: "Bem... Com esse a eu no vou para lugar nenhum". D um certo consolo saber que tem gente que, numa conversa, no deixa nunca o papo morrer. saber ou no saber jogar. querer informar, querer expressar alguma coisa que est no interior e por a vai. Platia (Daniel): Para quem no me conhece, eu estudo Desenho Industrial na UFRJ. Vou tentar fazer uma coisa mais genrica. Eu observei o pessoal falando de RPG, como o RPG deve ser ou no. Acho que a escolha desses trs enfoques - literatura, cinema e teatro - para o debate no foi nem um pouco aleatria. Acho que a gente deve abrir os olhos para isso, porque a que est o bero do RPG. Eu quero perguntar para cada um dos palestrantes, atravs de suas experincias e dos seus conhecimentos, como que se faz a criao de um mundo, de um personagem? Como a parte escrita, se voc recebe alguma noo. O laboratrio do ator, ele tenta incorporar aquele personagem que no a realidade dele? Como o roteiro do cinema? Estava querendo que vocs passassem essa experincia para a gente. lgico que no existe uma frmula, mas vocs devem saber alguma coisa. Passar isso para a gente poder enriquecer o nosso jogo. Denise Leipziger: O personagem, no Conto Maravilhoso, no costuma ser muito individualizado. Tanto que normalmente ele nem tem nome. "Era uma vez um rei... Era uma vez uma rainha..." Quando tem nome assim como Joo e Maria. Qualquer um pode ser Joo, qualquer uma pode ser Maria. Na realidade, ele um arqutipo. Ele est ali representando uma srie de qualidades. Se ele um rei, ele est representando aquela imagem que voc tem de rei. Se voc est trabalhando isso em nvel de personagens, se voc est trabalhando com os dementais, gnomos, elfos, eles tambm no vo ter individualidade. Quando Walt Disney faz os sete anezinhos, cada um com uma carinha, com jeitinho bonitinho
para agradar s criancinhas, de forma alguma corresponde realidade do Conto Maravilhoso. Os dementais no tm essa individualidade, essa forma prpria de se colocar. Eles pensam de uma forma meio grupai, so regidos por um pensamento grupai. O personagem do Conto Maravilhoso no muito individualizado. Ele representativo de alguma coisa, de alguma dasse, de alguma situao. E os cenrios que constrem esse mundo so aquilo que a gente viu. Na realidade, so experincias interiores que a gente vai projetando. Do tipo: "Estou em uma encruzilhada. Vou descer at o fundo do poo." E isso realmente que vai aparecer: o poo. o personagem que o fuso cai no poo, de entra no poo e acontece uma aventura l embaixo. Depois ele consegue ultrapassar tudo e voltar. Esse mundo criado a partir do que isso reflete dentro da gente, de como essa floresta dentro de cada um de ns, to estranha e to familiar. A torre l em dma inacessvel. A que parte do corpo corresponderia a verticalidade da torre reladonada ao homem? Stos, aos nossos pores. Acho que a gente vai construindo por a, a gente tem esse conhedmento do mundo. Ele est dentro da gente. Os cenrios esto dentro da gente e os personagens seriam mais ou menos isso. Hamilton Vaz Pereira: Eu vou falar um pouco da relao atorpersonagem. Existe uma coisa assim: a pessoa, para se tomar ator, qualquer pessoa - qualquer garota, qualquer rapaz - enfrenta um trabalho durssimo, assim como quem quer ser mdico. Quer dizer, voc tem que estudar, voc tem que trabalhar, voc tem que pesquisar diariamente. Assim como um pintor tem que pintar, um pianista tem que tocar as tedas, o ator no palco procura passar para a platia a expresso de um personagem. Ele faz a platia crer que d a est assistindo a um cara que est vivendo uma tal drcunstnda de vida. Suponhamos que o personagem recebeu um boa notcia: ganhou muito dinheiro na loteria. Em seguida, vem a terrvel noticia da morte da me. Como ele vive aquele momento em que est com uma grande alegria, porque est com uma supergrana, e est com uma infdiddade terrvd porque a me acabou de falecer? No momento em que ele est feliz, porque pode com o dinheiro realizar coisas incrveis, vem aquela dor. Para representar esse personagem complexo o ator tem que ser audaz. Muitas vezes o difcil para o diretor conseguir com que o ator tenha orgulho do seu trabalho, satisfao com o prprio corpo, com sua voz, com sua capaddade de expresso. Ns somos educados para a
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timidez. Ns somos educados para no ofender. O brasileiro educado, no para ser forte e sim para ser fraco, caipira, para ter medo da Europa, dos Estados Unidos e do Japo. terrvel. A gente educado para gostar das outras culturas, das outras pessoas. A gente no se d o menor valor. A gente se maltrata, a gente se enfeia e ns somos lindos, somos fortes. So 500 anos disso. Para o ator se imbuir de que, ao ir para o palco, ele tem que ser generoso para com ele e para com o pblico a maior dificuldade. Na hora em que voc vai fazer o personagem, seja ele um personagem rico ou mixuruca, no importa, voc tem que apresentar sobre o palco alguma coisa a mais do que o cotidiano oferece. Eu posso ter uma voz pequena, mas, na hora de estar diante de uma platia, tenho que dar o mximo. Tenho que parecer muito mais do que sou realmente. Na vida cotidiana, talvez eu seja meio tmido, mas, na hora de jogar, de amar, de me encontrar com as pessoas, tenho que ampliar. A grande dificuldade da relao entre um mestre, que seria, suponho, o diretor, e aquele que vai executar o que o mestre est dizendo, os dois estarem abertos e apostarem que aquele momento que eles esto vivendo da maior importncia para a vida, imprescindvel para a sade do planeta. Uma das tarefas do diretor, no dia-a-dia de ensaio, estabelecer o bem-estar entre as pessoas. Muito embora a cena apresente a terrvel crueldade do grande Ajax, heri grego da llada, correndo atrs de crianas troianas para mat-las, no esforo de trabalho eu devo exercitar a minha alegre maldade. E isso no mole, no. E duro exigir que voc cresa , que as pessoas se tornem maiores do que elas so. A llada e a Odissia exigem que o homem de hoje se torne maior do que . A gente preparado para querer pouco, para se satisfazer com uma porcaria de vida, mas ns no estamos aqui pra isso. No mesmo? Oswaldo Lopes Jr.: Falar da criao de mundos uma coisa meio esquizofrnica. Quando a Snia me convidou para a palestra eu pensei: "Vou falar sobre criao de mundos... mas eu no sou Deus!". Porm, como disse o Woody Allen, a gente tem que se basear em algum! Agora, falando srio, em cinema, mais especificamente na construo de um roteiro - que a minha rea - o mais importante de tudo manter uma coerncia do incio ao fim. Mais importante do que a prpria histria, a coerncia interna da obra. Voc pode estar contando uma histria absolutamente simples, corriqueira, cotidiana, ou ento uma histria totalmente fantstica
e impossvel de acontecer em nosso mundo, tanto faz. Por mais absurda que a histria seja, preciso manter uma coerncia. Podemos citar como exemplo a obra de Lovecraft, que criou um universo mitolgico prprio cheio de criaturas terrveis - o grande Cthulhu, os Mi-Gos, os Antigos... - atravessando vrios contos, sempre mantendo uma forte coerncia interna. E muito semelhante ao que George Lucas e sua turma faz com o mundo de Indiana Jones e com a "galaxy far, {ar away" que engloba as histrias de Guerra nas estrelas. Em um filme de fico cientfica completamente improvvel e fantasioso, voc acompanha a narrativa e todos os absurdos que acontecem na histria, e os aceita, porque todos os absurdos esto em harmonia com aquele universo, formam uma malha coerente onde aquela histria se apoia. Por exemplo, voc est em um universo de sonho e, ento, tudo ali coerente. Voc abre a porta e tem um elefante rosa. Voc vai olhar as horas e est passando um filme em Cinemascope no seu pulso. E tudo isso tem coerncia. De repente, acontece alguma coisa real demais. Para a realidade coerente, mas para aquele universo completamente incoerente, ento quebra essa mgica, quebra essa estrutura. O mais importante voc manter essa coerncia na cabea. Ateno: eu N O estou falando de lgica. Hitchcock falava: "Eu criei a minha histria, eu a levo para onde quero. Se um chato chega e me diz que isso ou aquilo no tem lgica, eu digo que no me interessa. A lgica para ser jogada pela janela!". Voc precisa ter coerncia no que est contando. Se na histria que voc cria um pterodctilo pousa na janela da protagonista e comea a cantar, e isso coerente com o resto da trama, tudo bem. Se voc estiver contando uma aventura cotidiana, faa com que ela parea o mais aceitvel possvel para todo mundo. Pense nela com a mesma coerncia de uma corriqueira notcia de jornal, frugal e "lgica" como se pudesse acontecer a qualquer hora, em qualquer esquina e com qualquer um. Agora, se voc est criando uma histria que seja completamente descabida, fantasiosa, preciso manter isso em mente ao longo de toda a criao dela. Um filme que ilustra muito bem essa questo de coerncia interna O Iluminado, de Stanley Kubrick e baseado num livro de Stephen King. Aqui, um escritor se torna zelador de um grande hotel nas Montanhas Rochosas e se muda com a mulher e o filho pequeno para l, onde vivero enquanto a neve cair. De repente, ele e o filho comeam a ver fantasmas pelos sagues e quartos do hotel. Aquilo comea
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a se voltar contra a famlia, e comea a enlouquecer o escritor. A partir de um certo momento voc no sabe se o que ele est vendo so fantasmas de pessoas mortas no hotel ou se so apenas alucinaes. A histria vai seguindo um caminho at que o homem se torna perigoso e a esposa o tranca num depsito. Aparentemente, s existem os trs ali. Nem ela nem o filho pretendem tir-lo do depsito e ele no tem como sair sozinho. S que ele sai, porque um "fantasma" abre a porta. Isso tem ou no tem coerncia dentro do universo do filme? um exemplo muito discutido, uma cena bastante polmica em termos de lgica interna de uma obra. Foi um ponto em que o Kubrick deixou em aberto, de propsito ou no. Eu considero O Iluminado um dos melhores filmes de terror que j vi em minha vida e o acho irretocvel, mas sem dvida essa cena uma ponta solta. Ao escrever um roteiro, ao criar uma histria, seja ela em cinema, TV, quadrinhos, teatro, RPG ou em qualquer outra mdia, devemos evitar esse ripo de armadilha. No podemos esquecer que a coerncia essencial. Platia (Raul): Acho que o jogador tem que representar os personagens como eles so. Os jogadores tm de entrar no esprito do jogo. Nesse Live, que tem naquele tal folhetinho quadradinho, est escrito Nexus. O que isso? Isso a ltima coisa que eu queria falar. Platia (Lcio): O Nexus um sistema, uma nova srie da Kaosi (?..) empresa que fez Call ofCthuu. um sistema de jogo bsico e cada livro seria uma aventura de Live Aaion e pronto. O Nexus que voc est perguntando um Live Aaion de fico cientfica. Platia (Daniel): Tenho algumas perguntas bem rpidas para fazer sobre Indiana Jones: eu queria saber se voc joga RPG e como voc trabalhou essa pesquisa. No sei se voc trabalha isso academicamente ou se voc um aficionado por Indianas Jones, como voc construiu essa histria toda. Em relao ao fato da criao de mundos, eu gosto muito de Indiana Jones, eu sou muito interessado por Indiana Jones porque acredito mais pelo aspecto histrico, porque Indiana Jones para mim o Forrest Gump da histria contempornea, assim como o Conan o Forrest Gump da era boreana: est em todos os lugares, em todos os momentos. Eu no sei se exatamente uma criao do mundo, se o George Lucas fez a criao do mundo do Indiana Jones, pelo fato de que o mundo j estava l no incio do sculo, mas foi mais a criao do personagem, a elaborao do personagem...
Oswaldo Lopes Jr.: Ele adequou o personagem ao nosso mundo e vice-versa e a criou a fico em cima do mundo real e da histria do Sculo XX. Platia (Daniel): Exatamente. s isso. Oswaldo Lopes Jr.: Eu joguei RPG uma vez na vida, como jogador. No joguei mais porque a maioria das pessoas que conheo s jogam aventuras na linha de "espada & feitiaria", que um gnero que eu no gosto. Sempre quis jogar Guerra nas estrelas ou Call of Cthulhu. Platia (Daniel): Voc conhece o RPG do Indiana Jonesl Oswaldo Lopes Jr.: Eu tenho o jogo, e estou preparando uma aventura. Apesar de s ter jogado uma vez, estou com a pretenso de mestrar, j que tenho uma histria consistente do Indiana Jones passada no Brasil. Ando lendo os livros base, estudando o sistema do RPG, mas existe um grande problema em relao a isso. Eu sei que num RPG o mestre cria um plot inicial, que vai sendo desenvolvido pelos jogadores ao longo da aventura. Mas acontece que eu sou roteirista, trabalho como roteirista. Como s vezes a idia comea a ficar boa demais, eu vou me envolvendo, desenvolvendo a estrutura, criando o roteiro e acabo criando a histria do incio ao fim. Platia (Daniel): Parece que acontece o mesmo com todos os mestres. Oswaldo Lopes Jr.: Eu sei que assim que no se mestra, mas assim que se escreve um roteiro. Platia (Daniel): Onde a gente pode arrumar alguma coisa dos vdeos do Indiana Jones que so inditos no Brasil? Ou algum tipo de livro? Oswaldo Lopes Jr.: Se voc souber me conta, porque estou querendo tambm. Existem 29 episdios do seriado e no Brasil s passaram 16. Dos 13 inditos por aqui, eu espero que sejam lanados em vdeo pela Lucasfilm daqui h algum tempo. Quanto aos livros, a editora americana Bantam lanou 9 pocket booh de Indiana Jones e 14 livros com aventuras do jovem Indy at o momento. Agora, livros tericos ou companions sobre o personagem que existem poucos. Fiz um levantamento das obras criadas em todas as mdias - desde filmes, quadrinhos, livros, CD-Rom, RPG - com o personagem Indiana Jones e descobri que j existem mais de 70 histrias inditas, originais, e aprovadas pela Lucasfilm. A grande maioria fazendo cross-overs com fatos e personagens da histria do nosso sculo.
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III
O PRIMEIRO FRANKENSTEIN
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O PRIMEIRO FRANKENSTEIN
SUSANA SCHILD Crtica de cinema - Museu de Arte Moderna
Susana Schild: O filme Frankenstein considerado um clssico do horror e a origem da histria muito interessante. O livro foi publicado em 1818, e escrito por Mary Shelley, uma jovem que tinha 18 anos, ou seja, mais ou menos a idade dos adeptos do RPG. Embora todo livro, toda criao seja de alguma forma um desafio imaginao, o livro Frankenstein surgiu de um desafio que tem um paralelo de como se joga o RPG hoje: quatro pessoas, Mary Shelley, o marido Perce Shelley, que era poeta assim como Lord Byron e um mdico, em uma noite de tdio, sem luz eltrica, sem televiso, sem vdeo, sem nada, propuseram-se a um desafio - "Vamos fazer uma histria de fantasma!" Na poca estavam na moda histrias de fantasmas alemes, com um clima bem gtico, e desse desafio provocado, ou seja, "vamos ver quem consegue fazer uma histria de horror", Mary Shelley criou a sua, que virou um mito e um marco provavelmente sem precedente. Isto porque as histrias de horror geralmente so baseadas em personagens ancestrais, por exemplo, o Drada, zumbis, mmias e fantasmas, provenientes de uma tradio oral, ou de vrias formas do folclore, ou de origem que se perdeu no tempo. Frankenstein no, ele inaugura uma idade moderna no gnero horror, porque foi criado pela cincia, por um mdico, por um cientista, ou seja, no um personagem que vem da Idade Mdia ou das trevas. Ter sido criado pelo homem torna o mito Frankenstein muito mais interessante porque na criao a autora apela para as novidades da poca que estavam ligadas eletricidade, por exemplo. O mito Frankenstein criado por uma descarga eltrica e, enfim, formado por vrios pedaos de cadveres. O que interessante que esse personagem foi criado numa poca em que as nicas imagens eram pictricas, ou seja, foi um monstro construdo apenas pela imaginao, no tinha outros subsdios visuais. Hoje em dia a cabea da gente to formada pelo audiovisual, por imagens da televiso e do cinema, que muito difcil imaginar como era o mundo sem o audiovisual,
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como era o mundo sem imagens em movimento, como que funcionava a cabea das pessoas. Pelos livros, a cabea funcionava muito bem, mas com um referencial completamente diferente do que ns temos hoje. Toda nossa imaginao hoje tem como base o que a gente viu, de alguma forma, e a Mary Shelley, na flor da idade dos seu 18 anos, foi dormir uma noite e ela escreve que viu o horrvel espectro de um homem estendido, que sob a ao de alguma mquina poderosa mostrava sinais de vida e se agitava com o movimento meio vivo, desajeitado. Deve ter sido medonho. Isso foi o que ela viu, deitada na cama. E interessante como as pessoas usam a imaginao. Mary Shelley deitou na cama, viu e ficou apavorada. A partir do desafio, ela descreve tambm: "Foi ento que a idia me empolgou rpida como a luz e achei: o que me havia aterrorizado, certamente encheria de horror os outros, e eu tinha que apenas descrever o espectro que assombrara o meu sono da meia-noite." O livro foi publicado, alcanando grande sucesso, mas ainda era, em termos visuais, uma produo individual, ou seja, quando uma pessoa l, sem referencial de imagem, ela que cria o monstro, ento cada pessoa tinha seu Frankenstein na cabea. O mesmo exerccio que ela fez para criar o monstro, cada pessoa fazia. Em 1895 foi criado o cinema, que est fazendo 100 anos hoje. Em 1910 teve uma primeira verso para o cinema, do Thomas Edison, que se perdeu. Parece que outras duas que tambm se perderam. Em 1931, Hollywood descobriu o filo do filme de horror. Naquela tentativa de implantar uma indstria cinematogrfica, descobriuse que o pblico adorava morrer de medo na cadeira de cinema, o que era fantstico: sentava-se numa cadeira em uma salinha escura, e o pblico encarava qualquer desafio. Em 1930, os Estados Unidos estavam numa grande depresso econmica. H teorias de que era at um consolo para o pblico confrontar-se com monstros na tela, ou seja, era muito mais fcil conviver e driblar esses monstros do que conviver com o monstro das dificuldades do dia-a-dia. Em 1931, a Universal Pictures fez Drcula, com Bela Lugosi, que foi um grande sucesso, inaugurando o gnero horror. Assim como hoje ns temos o filme Jornada nas estrelas um, dois, trs, quatro, cinco, Hollywood inaugurou o filo horror. E para a segunda opo, produziu Frankenstein. Chamaram o Bela Lugosi para interpretar o papel, mas o Bela Lugosi, um hngaro com voz aveludada, um porte super elegante,
no aceitou a proposta, argumentando que, com a cara completamente cheia de bandagem, ningum veria o seu rosto - e ele tinha muito orgulho de seu rosto. Alm disso, ele no emitiria nenhum som, s iria grunhir de vez em quando e rejeitou o papel. Essa foi a sorte do Boris Karlloff, um ator que tinha 44 anos, fazia filmes h muito tempo, sempre em papis secundrios. Sob a direo de um ingls, James Whale e graas a um trabalho notvel do maquiadorjack Pearce, houve uma segunda criao do monstro Frankenstein. Esse monstro foi visto, uma segunda etapa do mito Frankenstein: a primeira, o mito imaginrio na cabea de cada um; depois, um mito ao vivo, andando com aquele jeito robtico que vocs vo ver. Depois eu vou contar como que se conseguiu esse efeito com o Frankenstein. O mais interessante que esse filme fez muito mais sucesso que o Drcula. Conta-se que o Drcula arrecadou quinhentos mil dlares de bilheteria e Frankenstein arrecadou um milho de dlares. No confronto Frankenstein e Drcula, o Frankenstein ganhou nesse primeiro round de bilheteria. E o impacto do Frankenstein foi to grande - d para ver na abertura do filme - que tem uma apresentao. O estdio tinha medo de como o pblico ia receber um filme que eles consideravam completamente assustador. H um prlogo em que uma pessoa avisa para a platia "Olha, se vocs tiverem medo, saiam, est em tempo". interessante avaliar o que era o terror em 1931, e traar um paralelo dessa evoluo com o Frankenstein do Kenneth Brannagh e com o Robert De Niro, por exemplo. interessante ver o que aterrorizava as pessoas, o que era considerado quase insuportvel. O filme, na poca, fez tanto sucesso que a Universal se apropriou da imagem Frankenstein. Houve, at hoje, 118 verses para o cinema de Frankenstein, mas o Drcula ganhou nessa, ele teve 158, mas a forma Frankenstein, o rosto Frankenstein, o prottipo Frankenstein so imbatveis at hoje. Tem mais: trata-se de um caso nico em que o nome do criador confunde-se com a criatura, que no tem nome. Mas na cabea das pessoas, o monstro o Frankenstein nessa confuso criador-criatura de quem que cria quem. H uma outra coisa interessante: nesse filme tem uma cena, que foi retirada logo depois da apresentao, pois foi considerada forte demais. S foi reenxertada em 1987 e essa histria, escrita em 1818, aponta para questes absolutamente contem-porneas como, por exemplo, os limites da criao em todos os seus aspectos.
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DEBATE
Susana Schild: No livro temos a velha histria do feitio que vira contra o feiticeiro. No filme, no. A o feiticeiro se d super bem. E esse happy end uma coisa que podemos discutir. O Criador mais desumano do que o monstro? Podemos pensar tambm na questo da menininha. Como o monstro mostra a criatura humanizada! Na verdade, o monstro era um carente, um inocente, ele olha para aquela menininha e se encanta. Ento a questo : quem o desumano nessa histria? Quem o personagem monstruoso? O filme livra a barra da elite, a elite est l resguardada. Algum aqui tinha visto esse filme? Ningum? Uma pessoa. O Frankenstein do De Niro todo mundo viu? Uma pessoa s j tinha assistido a esse filme. Incrvel. E vocs tm idia de qual cena foi cortada do filme logo aps a estria? Platia: Do fogo do moinho? Platia: Da morte da menina? Susana Schild: Exatamente. A cena foi considerada forte demais para as platias da poca. E achei incrvel que aqui as pessoas riram tanto quando o "monstro" joga a menina no lago. E pensar que esta cena poderia aterrorizar o pblico dos anos 30. De qualquer forma, dos 118 filmes que foram feitos depois inspirados no Frankenstein, esse serviu de modelo, de referncia. Nenhum dos filmes feitos depois conseguiu modificar essa imagem cristalizada pela interpretao de Boris Karloff. Porque tem uma coisa que o que a gente imagina. Como que a gente imagina? A imaginao, num certo sentido, fcil sem limites. Voc imagina o que quiser. Agora, como que voc transforma a sua imaginao em imagem? E mais, como imagem cinematogrfica. Como que voc vai provocar tambm a imaginao dos outros? Como que voc vai provocar a imaginao do grande pblico? Porque cinema para grande pblico, esse o desafio. Foram feitos trs filmes antes sobre Frankenstein: em 1910, 1915, 1920 que no tiveram esse impacto. Eu acho que quem mexe com RPG ou com outras formas de criao deve fazer esse exerccio: como eu colocaria isso num filme, como eu colocaria isso em imagem, em movimento. Essa questo no fcil,
realmente no . muito mais complicado. No livro de Mary Shelley o que interessante que tudo muito minimalista. Ela escreve que a criatura tinha 2 metros de altura por 2 metros de largura, era horrvel. Acabou. Foi essa a dica que ela deu para o monstro. E o James Whale aprimora, trabalha essa pista. O que ela deu foi uma dica fsica, concreta, desse personagem. A transformao dessa pista em representao, em imagem, deu um trabalho danado. Aquele andar dele meio robtico, por exemplo, foi construdo assim: colocaram uma barra de ferro de 15 quilos nas costas do Boris Karloff - que o impedia de se curvar. Alm disso, calaram-no com um par de botas de 15 quilos cada. Realmente ele no podia se mover mesmo, por uma impossibilidade fsica. Ele no podia carregar tanto peso. A maquiagem tenta tirar o mximo possvel de sua expresso facial. Era feita basicamente base de cera e ainda tinha aqueles pinos... Quer dizer, se a gente compara com imagens que a gente v hoje, realmente no assustador. Mas impressionante aquela sensao de desamparo. Apesar de ser um personagem to grande, to forte, ele absolutamente indefeso, porque ele no conheceu o mundo, no conhece as regras do jogo, no conhece o tempo. Ele no conhece absolutamente nada e abandonado pelo criador. Esse filme tem uma outra questo tambm. Como eu disse, Hollywood estava descobrindo o filo do horror: Drcula, Frankenstein e depois ia ter Zumbi, a alma do outro mundo. Mas o sucesso do Frankenstein foi to grande que resolveram fazer um outro rapidinho. Mas o Frankenstein j tinha morrido no primeiro filme. Ento o que eles fazem: ressuscitam o Frankenstein atravs de um artifcio, e surge o segundo filme, com o Boris Karloff tambm, A noiva do Frankenstein. No livro ele pede uma noiva, porque ele est to sozinho, to desamparado, que ele pede uma noiva para reproduzir um monte de monstrinhos. Enfim, esse o tema e a partir da mais cento e tantos filmes. Platia (Felipe): Eu queria saber se antes desse filme havia sido explorada a imagem de um personagem to orgnico, porque aparecem cortes, aparecem cicatrizes bem mostra, pino no pescoo, etc. Se ele foi o primeiro personagem assim to visceral e como foi a aceitao de algum to retalhado? Meu nome Felipe, eu estudo Desenho Industrial, estou no quinto ano e jogo muito pouco RPG. Susana Schild: O cinema apresentou filmes de monstros, de experincias semelhantes, inclusive foram realizados trs filmes de Frankenstein.
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Mas esse de James Whale teve uma influncia esttica muito forte de O Gabinete do Dr. Caligari, um filme alemo, no sei se vocs viram, de 1923. Um filme mudo superinteressante. Vocs deviam ver, porque no apresenta uma pessoa costurada, mas um sonmbulo bastante assustador tambm. Era um sonmbulo, mais ou menos comandado por um ser mais forte, um mdico. E sempre a questo do mdico. A medicina estava despertando muito a imaginao das pessoas. O que a medicina era capaz de fazer, o que os avanos da cincia poderiam provocar excitava muito a imaginao. E o prprio cinema era um avano tecnolgico. Ento houve outros filmes antes, mas no com essa fora to explcita. Fora esses trs Frankenstein - dos quais no se tem mais notcias, no tem mais registros, desapareceram - teve o Drcula antes, que teve um impacto muito forte, mas numa outra vertente. Esse foi um marco no filme de horror e o marco da questo da cincia criando o monstro. Tiveram outras coisas: filmes curtos e filmes de fantasmas. Mas era mais para o lado ldico, no era uma coisa assustadora, com o intuito de assustar a platia, de horrorizar. Porque no cinema naquela poca predominava a expectativa de cativar pela aventura, cativar pelo romance, cativar pelo lado mais ameno da vida. O cinema em Hollywood se cristalizou como a melhor forma de escapismo, ou seja, no vamos complicar muito a vida do espectador, ele vai ao cinema para se divertir. O que ficou provado que o pblico tambm se divertia muito com esse tipo de filme. Agora, o interessante tambm pensar no impacto, porque esse filme provocou vrios desafios imaginao. Esse filme tem 64 anos e o monstro quase no est em cena - ele tem at uma presena discreta. O monstro, a criatura, a presena dele em cena, no uma coisa assim to marcante, to permanente. Ele visto at com um certo pudor, sem muitos doses. Tem uma cena linda dele com a luz, ele descobrindo a luz, os movimentos da mo. No uma coisa assustadora hoje, mas na poca foi, exatamente porque o pblico no estava acostumado com esse tipo de personagem. Platia (Marcelo): Meu nome Marcelo e fiz comunicao na Estcio. Uma das coisas que eu queria falar a respeito do filme que, na minha opinio, Frankenstein foi a criatura mais injustiada na histria do cinema. Acho que todo mundo viu a porque. E outra coisa: o mdico pode ter sido aliviado no filme, mas acho que o julgamento do pblico
completamente diferente do julgamento do final do filme, que termina maravilhoso com o casamento com uma mulher linda e um final feliz. Mas acho que a opinio do pblico completamente diferente. Uma outra coisa a questo do medo que estava sendo discutida aqui. Nem sempre o medo precisa ser uma coisa explcita. Um dos filmes que me deu mais medo foi um filme preto e branco, acho que o clima do preto e branco ajuda muito. Foi um filme do Robert Wise, acho que Desafio ao Alm. Ele no tem nada: no aparecem fantasmas, no aparecem cabeas cortadas. A nica cena que d um pouco de susto a que a mulher est na escada e uma outra mulher est inconsciente e cai de cima. a nica cena que pode assustar um pouco, nesse contexto. Mas tem uma cena que me marcou muito: eu vi esse filme numa madrugada, deveriam ser umas trs horas da manh. Ento tem uma cena em que a mulher est deitada e est no quarto junto com uma outra amiga dela. A de repente ela comea a imaginar... Susana Schild: Vamos pensar na questo da sensao do medo. O medo est muito mais ligado imaginao. Quando voc v, por pior que seja, voc tem um alvio. Voc est vendo, aquilo se concretizou: o monstro da serra eltrica. A coisa mais intolervel que tem voc no ver. Voc est do lado de um perigo, de qualquer coisa, e voc no pode detectar. E tudo que voc sente - ansiedade, angstia, medo -, tudo fica muito pior, porque a imaginao da gente o melhor produtor de filme de terror que existe. uma coisa absolutamente eficiente e, como ela maltrata, um negcio terrvel. Acho que existem vrios filmes que confundem a questo do explcito com a questo do implcito, porque medo uma sensao, um sentimento subjetivo. Quando voc v, de alguma forma alivia essa sensao. Platia (?): Mas eu acho que so duas coisas diferentes, que so separadas na locadora: o terror e o suspense. O suspense trabalha a angstia, voc no sabe o que que vem, no terror no, voc v algumas coisas. Susana Schild: Em primeiro lugar, a diviso dos gneros nas locadoras uma questo complicada - e cada gnero pode ter a sua subjetividade. As divises tradicionais procuram antecipar uma expectativa do espectador. A tenso, por exemplo, pode estar no suspense como pode estar na comdia. Voltando ao filme, tudo uma questo de tenso, de
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como se estabelece a tenso. E essa tenso um elemento dramtico importante em qualquer gnero. Agora, de um modo geral, a tenso se quebra quando voc v. E um outro tipo de relao com o olhar. E a tenso se mantm quando voc no v, porque a tua cabea comea a funcionar. Tem uma frase que eu gosto muito de um cineasta francs, George Franju, diretor de Os olhos sem rosto (Les yeux sans visage). Ele diz o seguinte: "Eu gosto de filmes que me fazem sonhar, mas eu no gosto de filmes que sonhem por mim*. Acho que isso o seguinte: mesmo quando o filme mostra, e a a gente v o Frankenstein, no uma imagem massacrante. Essas imagens do margem para que a tua cabea continue a funcionar. Hoje em dia a questo dos efeitos especiais, dos doses e da narrativa, deixa muito pouco lugar para a imaginao do espectador. Por exemplo, o ltimo Frankenstein mostra tudo. Voc sai de l absolutamente saturado e esvaziado. No foi um filme que me alimentou, no fiquei preocupada com o monstro, com a criatura e sim quando aquele filme ia acabar. E a msica do filme foi uma das piores que j vi ou ouvi. Era uma falta de confiana na imagem to grande, com aqueles acordes estridentes o tempo todo. Um filme que abafa a imaginao ao invs de provoc-la. A questo do que se v na tela e o que se imagina estabelece uma interao muito rica com o espectador - e, como resultado dramtico, no preciso ver tudo. A imaginao do espectador tambm trabalha - e pode trabalhar a favor do filme. Tem uma coisa muito forte hoje em dia, e que representa essa questo, que a representao da violncia e do erotismo no cinema. Existem filmes dos anos 30, dos anos 40, de gngster por exemplo, que tem um soco, mas aquilo tem uma violncia dramtica to incrvel, bem superior s 300 mortes que a gente v hoje em dia em tantos filmes. E uma questo de banalizao da violncia. Essa representao perde o impacto pela repetio do clich. Outra questo a do erotismo. Um filme clssico, como o Gilda, com a Rita Hayworth. Ela tira a luva e os homens enloqueciam com isso. Ela virou smbolo sexual porque tirava a luva. Uma coisa inimaginvel hoje. Ento hoje, essa coisa explcita que, por um lado, pode ter um visual fantstico, por outro muito empobrecedora do imaginrio. Voc no complementa. No caso de Gilda, todos os homens foram para casa e certamente, na imaginao, acabaram tirando a roupa dela toda, mas no cinema ela tirou a luva. Aquilo provocou. Eu acho que tem a questo da imagem provocadora e do espectador
complementando o que viu. Porque cada filme que a gente v, cada livro que a gente l, a gente complementa aquilo com o imaginrio, com a nossa bagagem, com a nossa experincia. Ento se um mdico assistir a esse filme, vai ficar completamente identificado com o Dr. Frankenstein. "Poxa, coitado, isso mesmo, um desafio, aventura." Ento uma questo pessoal de cada um. Platia (Maria Zlia): Boa tarde, meu nome Maria Zlia, eu fiz trs anos de Psicologia. Eu penso que essa questo do imaginrio justamente esses monstros que existem dentro da gente. Eles no tm como sair e acabam saindo horrorosos nos filmes de monstros, que so prprios para isso. Tem que ter uma vlvula de escape dos sentimentos agressivos, dos sentimentos maus, nossos sentimentos que esto reprimidos pelo prprio conceito da vida humana. Susana Schild: Voc tem razo - tudo fica mais simples quando concretizado. Concretizou, mole. Vimos isso agora no Frankenstein. O problema lidar com o imaginrio e a proposta desses encontros fazer uma relao entre vrios tipos de criatividade. Platia (Rmulo): Sou Rmulo, fao Desenho Industrial no Fundo, sou presidente de um Clube de RPG. Para quem joga, prepare-se porque vem chumbo grosso. Somos o Arcano Cultural e a gente est chegando na praa ms que vm. Vamos tentar falar um pouco de RPG agora. Quando se comea a jogar um RPG de terror, normalmente voc no tem o auxlio das imagens, como, por exemplo, um filme tem. a frase que voc falou do cineasta francs sobre o legal fazer alguma coisa que lhe faa sonhar, no que algum sonhe por voc. E quando voc comea a jogar num RPG de terror, normalmente o mestre, de certa forma, toma a cena contando tudo o que est acontecendo, de forma que voc perde um pouco a chance de ter uma coisa subjetiva, voc prprio montar na tua tela mental a imagem do que seria ou o monstro ou a situao, digamos assim, sinistra. Eu queria que voc ajudasse a gente a formular uma maneira que, apenas em palavras ou gestos, passasse a informao subjetiva para que o jogador, na mo da gente, na mo do mestre, sonhe por ele mesmo. No fique dependendo que a gente d uma imagem superexplcita, descreva uma cena nos mnimos detalhes, o que no final vai acabar perdendo o horror da histria. Acho que o horror est justamente quando voc no sabe de tudo. Aquele negcio, dizem que o homem tem medo do
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desconhecido. Os homens da caverna temiam o escuro at conhecerem o fogo. At irem l e ver que no havia nada. Como o mestre deveria fazer para deixar a situao na mo do jogador, de forma que ele pudesse imaginar a cena, sentir o medo, sem ser nada muito drstico, sem ser nada muito explcito. Susana Schild: Bom, no plano verbal bem mais fcil transmitir o que se quer e tambm provocar a imaginao prpria e do outro. Me parece que o RPG uma forma muito rica de desenvolvimento da imaginao. Quando as informaes so verbais, a imaginao de cada um est agindo, porque se voc falar: "Imaginem um drago em uma floresta", cada pessoa vai imaginar o seu drago na sua floresta. Essa criao intransfervel. Voc pode falar: "Olha, as rvores so enormes". Cada um vai imaginar sua rvore enorme. "O drago tem sete caudas", e cada um vai imaginar. Porque o visual que unifica, padroniza uma imagem. Agora, quando texto, por mais que descreva que o mocinho era bonito, cada um vai imaginar o mocinho dentro da sua cabea. Ento tanto no verbal como no texto, cada um cria a sua prpria imagem. Acho que isso inevitvel. Mesmo no RPG o mestre falando, a criao individual. Tanto que se diz que tem um paralelo muito grande do cinema com o sonho porque, n o sonho, ns todos somos produtores, diretores, atores, montadores - nossos sonhos tambm tm corte. s vezes sonhamos em preto e branco, sonhamos colorido, at com musica. Enfim, cada um de ns, quando sonha, um tremendo cineasta. S que so filmes, so produes individuais intransferveis, plenamente intransferveis, porque quando voc fala: "Sonhei que minha me chegou" ou ento: "Sonhei com mar ou com navio", voc est vendo esse mar, esse navio. O outro est vendo o mar e o navio dele. E o cinema seria o sonho coletivo, porque a partir do momento em que se entra numa sala escura, redinamos na poltrona, h um corte com a realidade, e vivemos uma espcie de sonho coletivo, em que as mesmas imagens so compartilhadas por toda a platia - embora cada pessoa possa complementar essas imagens com sua prpria experincia e imaginao. Confesso que sou bastante purista, no acredito no que vejo no vdeo em minha casa, s acredito no que vejo no cinema. Sala escura corte com a realidade mesmo, uma coisa sem interferncia de objetos de apoio como por exemplo o sof, o gato, o sndico, sei l o qu. Gosto
desse mergulho na sala escura. Existe todo um paralelo, uma associao de que quando voc entra no cinema, voc d uma relaxada no teu vnculo com o real. Durante duas horas a gente acredita nas coisas mais brbaras, mais implausveis e todo mundo jura que verdade. Mas uma verdade imaginria, uma verdade interior, subjetiva. Ento tem essa coisa do sonho de cada um, o imaginrio de cada um e o cinema como um sonho coletivo. Todo mundo viu a mesma coisa e, mesmo assim, cada um interpreta e vive de uma forma diferente, porque depende da sensibilidade, da experincia e das preferncias tambm. Platia (Daniel): Meu nome Daniel Mallagutti, fao direito na UFRJ. O problema da banalizao da violncia ou do clmax da histria no est s na questo da imagem. Est tambm na estrutura da narrativa. Voc v mestres por a, uma poro de mestres de RPG, que montam uma aventura que uma seqncia de combate sem fim. Est na prpria histria tambm, porque tem certas cenas que, por mais que voc queira incentivar a imaginao, elas tm que ser detalhadas, se no vira aquela confuso. "No, voc estava aqui", "No, eu no estava aqui, estava em outro lugar", "O monstro pegou de surpresa", "No, no pegou, porque eu no estava a". Quem j no passou por isso aqui? Susana Schild: S um detalhe: eu no entendo de RPG. O meu filho tentou me explicar, mas eu no consegui aprender. Pelo que entendo, o RPG uma recusa da coisa pronta. Um jogo onde eu sou capaz de criar a minha histria. Acho que est havendo uma saturao de histrias muito prontas, histrias que no abrem para a imaginao. O cinema hoje est muito bvio, com algumas excees. Por exemplo, esse Frankenstein acho absolutamente sutil, delicado, sbrio. A relao entre as pessoas uma relao sbria, enquanto que hoje as coisas abafam. Quando se mostra demais, a coisa perde o mistrio. O grande desafio voc lidar com o mistrio. Ento, pelo que entendo de RPG, as pessoas tentam criar o que a Mary Sherlley fez com 18 anos: "Vamos criar uma histria". isso o que vocs fazem: descrevem. De repente, algum filma. Confiem. Platia (Rodrigo): Sou Rodrigo. No fao porra nenhuma. Ele ali, Marcelo, disse que o Frankenstein talvez seja o personagem mais injustiado. No concordo nem um pouco. Acho que ele era o personagem que estava no lugar mais alto do pdio. Assim como ele mencionou que o
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homem tem medo do que ele no conhece, o Frankenstein talvez seja o personagem que inaugurou essa linha. Era um personagem que necessitava de carinho e era inocente. Talvez, se o criador tivesse ensinado as coisas para ele, ele no tinha matado a garotinha. Mesmo assim, voc pode apresentar todas as boas razes para ele. Mas o povo da cidade ia querer destrulo da mesma forma, porque ele era desconhecido, porque ele era um monstro. Tambm falou sobre o mdico, que ele foi injustiado. Tambm no concordo porque acho que o ser humano tem mais valor do que um bicho ou uma criao, um monstro ou qualquer coisa assim. Acho que o mdico era o nico que podia vencer, se que posso usar essa palavra. Susana Schild: Essa questo passa por noes de limites, pela questo da responsabilidade. Como j dizia o Pequeno Prncipe, voc responsvel pelo que voc faz. Hoje em dia, com essa manipulao gentica em laboratrios, existncia de banco de smen, banco disso, banco daquilo vrias novas questes esto surgindo. H dois ou trs anos assisti a um debate de televiso na Frana sobre o seguinte problema: o que fazer com um banco de smen no qual os "donos" do material no apareceram mais? Isso est gerando um debate tico, jurdico e gentico monstruoso: o material depositado no banco ou no frigorfico de smen, de vulos, ou seja l de qu: Aquilo gente ou no gente? Pode-se destruir aquilo ou no se pode? Como que voc cria isso tudo e coloca num frigorfico? E agora, o que se faz com aquilo? A quem pertence aquele material? Platia (Rodrigo): Mas no livro ele tambm assim? Ele tambm foge, vai casar? Susana Schild: Vai. Platia (Rodrigo): Mas acho que, pelo menos, ele se arrepende do que ele fez, ele vai caar o monstro. Susana Schild: E o monstro mata ele. Platia (Rodrigo): O monstro mata ele no livro? Susana Schild: Mata, porque o subttulo daqui "Frankenstein, o moderno Prometeu*. Prometeu um personagem da mitologia. Teria sido responsvel pela criao do primeiro ser vivo e ele rouba o fogo dos cus para fazer essa criao e ele punido por isso. Platia (Rodrigo): E lgico. Susana Schild: Ento a questo de que bvio que a aventura humana fantstica, os avanos so incrveis.
Platia (Rodrigo): Mas Prometeu deve estar arrependido. Susana Schild: Aqui o feitio que vira contra o feiticeiro. No livro ele se d conta do estrago que ele fez e da inconseqncia que foi. Porque a questo de "quem pode criar vidas?" a uma coisa ancestral, bblica. Platia (Rodrigo): No filme tambm, s que, talvez para no ficar uma coisa muito forte, eles no tenham matado o mdico. Susana Schild: Por causa da platia, entende? Mas aquele mdico merecia pelo menos uma crise de conscincia mais forte, que ele no tem. Ele sai muito light da sua experincia. Snia Mota: Acho superimportante essa questo que o Rodrigo levantou. Acredito que o monstro seria destrudo em qualquer circunstncia e acho tambm que o mdico se arrepende, ele sofre com aquilo, com o que ele fez, com a onipotncia dele. Agora, o que me preocupa o seguinte - nesse filme, quer dizer, na verso americana do Frankenstein - : acho o filme o mximo, mas acho que ele tem uns limites ticos. Quando o campons encontra a filha morta, o filme no explica e eu acho timo ele no explicar. Ele sabia quem era, sabia que era o monstro, donde ele deveria tambm supor que foi o filho do baro que criou. Poderia at saber disso ou pelo menos supor. Aquele sujeito no saiu do nada. Ele no surgiu de uma chocadeira eltrica. Algum fez aquele sujeito. Fiquei impressionada durante o filme com o fato de no haver nenhuma represlia contra o criador. Porque no pouca coisa voc perder uma filha pequena porque um monstro foi criado. quase um hobby de filhinho de papai, quer dizer, o hobby do filho do baro foi criar o monstro e a o hobby do filho do baro mata a filha de um campons. Eu no estou fazendo crtica ao diretor. Nada disso. A mim, impactou. Eu no entendi assim: "No, porque o diretor fez isso para aliviar a barra do mdico." Acho que muitos camponeses seriam perfeitamente capazes, na poca, de no reagir contra o filho de baro. Possvel, e existem casos assim. No precisa ser do Frankenstein no. A gente l at nos jornais hoje em dia. Susana Schild: No se trata de saber quem criou o monstro, mas de um posio "ento vamos matar o culpado". Platia (Rodrigo): Acho que tem uma questo que tem que se colocar: a do empregado do Frankenstein, a forma como ele passou a tratar o Frankenstein. Porque ali, ele encontrou o qu? Uma criatura pior do que
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ele, no ? Uma criatura mais feia do que ele. Ento era a forma dele se vingar das coisas que o mundo fazia contra ele. Ele deve ter passado por muita coisa igual ao Frankenstein, s que ele tinha conscincia do que se passava. O Frankenstein no. Ele sabia: "Eu estou apanhando porque sou feio, sou largado" e o prprio doutor Frankenstein empregou ele para fazer aquele tipo de coisa, porque ele um pria, porque uma pessoa normal no ia l caar, cavar, aceitar o corte dos defuntos. Uma pessoa normal no ia ficar parada, principalmente naquela poca. Uma outra coisa que eu estava observando a questo da violncia, a questo das pessoas se assustarem. Acho que uma questo de valor de poca. Hoje, se a gente passa ao lado de um Frankenstein na rua, a gente ia olhar e falar: "Esse da foi vtima de uma guerra de traficantes, esse cara est cortado porque ele um marginal". Quer dizer, a gente j est acostumado com esse tipo de coisa, j no impacta mais. Voc olha e acha normal. Voc tropea nisso todo dia. Voc liga a TV e v a guerra do Golfo, v gente morrendo, v gente metralhando. Naquela poca no. Tanto que, quando a Primeira Guerra Mundial surgiu, foi uma coisa desesperadora. Voc viu na TV as guerras das Malvinas e do Golfo e comenta com a maior naturalidade, sem se dar conta do nmero de pessoas que morreram. Acho que toda essa mudana do cinema, toda essa coisa, uma questo de valores. O prprio fortalecimento, a seleo natural que o ser humano est passando, vai se acostumando com esse tipo de coisa. Susana Schild: Quer dizer, ou vai se acostumando ou vai se embrutecendo, ou vai se insensibilizando, porque uma questo de defesa. Agora, uma coisa: no livro no existe esse assistente. A comeam as questes das adaptaes. No livro, por exemplo, todo mundo sabe, o nome do mdico Victor Frankenstein e o do amigo Henry "no sei de qu". No filme est trocado: o amigo Victor e o cientista Henry. O Fria no existe no livro. O que existe, o nome Fritz Moritz. Justine Moritz era o nome da empregada que no livro assassinada, porque acham que foi ela que matou o irmo do mdico. Ou seja, a passa a questo das adaptaes. Ele fez uma sntese do livro, ele no fala do comeo da histria, que uma narrativa dentro de uma narrativa, nem do fim da histria que o monstro caando o criador. Enfim, essa uma outra questo da fidelidade ao original. Ele no foi fiel ao original. Ele foi
fiel idia. E enxertou aqui e ali, porque a questo da representao por imagens. Ento voc tem desafios de oramento para a produo, voc tem desafios tcnicos. Ele tirou personagens, sintetizou outros, mas acho que esse filme coloca muito bem a questo de quem o monstro nessa histria. Acho que o monstro nessa histria o mdico. A questo da onipotncia, como a Snia falou, da manipulao e essa coisa de mexer com os mistrios eternos de vida e morte rende filmes. Platia (Daniel): Meu nome Daniel Braga. Fao Desenho Industrial na UFRJ. Vim aqui para dizer alguma coisa, mas todo mundo roubou o que eu ia falar, principalmente o Marcos que trabalha com publicidade. Eu queria colocar uma coisa que eu saquei no filme, acho que o ponto que o diretor joga mesmo a responsabilidade nos ombros, joga a responsabilidade de ter feito aquela criatura nos ombros do doutor e ele apenas se abstm, na hora em que o doutor revela que o crebro era de um criminoso: "Ah, de um criminoso?", "Mas tudo bem, ele vai se dar bem". E na hora do brinde do pai: "Aos filhos da casa de Frankenstein, filhos bastardos". uma hora em que realmente o filme joga mesmo a responsabilidade, que o certo, em cima de uma pessoa que, por um objetivo egosta, uma aventura, resolveu criar, ser Deus. No que a gente no possa, todo dia a gente deus. A gente faz um milho de criaes, mas a gente arca com elas. Ele, no caso, no arcou. Susana Schild: Tem essa confuso de quem o monstro nessa histria, porque o criador e a criatura so identificados pelo mesmo nome. Isso uma coisa super interessante. Essa criatura, para todo mundo, o Frankenstein, assim como o mdico o Frankenstein. Ou seja, qual o limite entre um e outro? Platia (Mrcio): Meu nome Mrcio, fao o segundo ano do MV1 e queria colocar que, com o passar do tempo, a imagem dele foi mudando. Susana Schild: De quem voc est falando? Platia (Mrcio): Da criatura. Foi se tornando mais cruel, pior. No se tomou mais humano. Como o passar do tempo o tomou forte, matava todo mundo, no tinha aquele lado humano. Com o passar do tempo, ele foi perdendo a humanidade que ele tinha no filme original. No primeiro filme ele era humano, foi criado inocente. Agora voc tem a imagem do Frankenstein como monstro. No tem esse lado do Frankenstein mais humano. Afinal, a culpa no dele, a culpa do criador. Nos filmes de
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agora, o Frankenstein recm-criado mata o criador e sai para a rua para matar todo mundo. Mudaram a imagem. Susana Schild: Mas acho que essa uma questo de causar mais impacto visual. Platia (Marcos): Com o passar do tempo, colocaram o Frankenstein mau, pior, ele foi perdendo aquela humanidade. Susana Schild: Mais sangue, no ? Platia (Marcos): Pois , a mesma coisa aconteceu com os outros personagens. Platia (Simone): Meu nome Simone. Sou professora e no jogo RPG. Eu queria, se voc pudesse - eu no entendo de cinema -, que fizesse um paralelo entre o Blade Runner e o Frankenstein. Poderia fazer isso? Susana Schild - Blade Runner fala de um outro tipo de criao artificial - de replicantes criados para viver 4 ou 5 anos. Com um detalhe: podem ser to ou mais atraentes que os "humanos". Enquanto a criatura de Frankenstein era repelente, os andrides de Blade Runner so rplicas perfeitas de seres humanos e difceis de identificar, uma vez que a cpia to parecida com o original. Na minha opinio, o filme de Ridley Scott toca em um ponto crucial dos dias de hoje que separar o falso do verdadeiro. Alm disso, essas cpias perfeitas foram feitas para "viver" um determinado tempo, que a essncia da cultura do descartvel.
IV
FANTASIA E FICO
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Vou comear minha palestra pelo ttulo dessa mesa: Fantasia e Fico. A Fantasia, o Conto Maravilhoso, parte de um acordo ficcional entre o leitor - pode ser tambm o ouvinte da histria ou o jogador, no caso do RPG - e o texto. Entre quem est transitando na narrativa de fantasia e a prpria narrativa. Ningum vai pensar em questionar porque, no chamado Conto Maravilhoso, os bichos falam. Em Chapeuzinho Vermelho, o Lobo Mau tenta ludibriar a Chapeuzinho e as pessoas no escutam a Chapeuzinho Vermelho perguntando: "Como pode um lobo falar?". Da mesma forma, ningum vai jogar Dungeon and Dragons questionando drages: "No, mas um drago no pode exisitir.*. Enfim, existe um acordo ficcional. Quando se parte para transitar naquele universo, est claro que est se admitindo a existncia daqueles elementos. Toda a narrativa de fantasia fico. Isso fcil para a gente entender. A fico que pode no ser fantasia. Uma fico uma coisa inventada por algum. possvel que tenha todos os elementos da realidade, se passe num mundo absolutamente realista, com todos os elementos do real, mas no realidade. E a maneira que o autor tem de organizar aquilo. Neste sentido, nunca vai ser igual ao real. E parecido, mas uma seleo da pessoa que escreveu a histria ou pintou o quadro ou que fez uma musica; uma inveno de quem a organizou daquela forma e no de outra. Por exemplo, se a gente pegar Faroeste Caboclo, do Legio Urbana, podemos considerar que todos os elementos que existem em Faroeste Cabodo so elementos da realidade. O Joo de Santo Cristo no voa, ele no faz mgica. No uma narrativa de fantasia, mas uma narrativa ficcional, porque o Renato Russo organizou elementos de um determinado personagem que pode ser encontrado nas pginas policiais de qualquer jornal. Ele pegou os elementos de uma notcia policial e fez daquilo a saga
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de um sujeito. Especulou de onde teria vindo esse cara, para onde foi, quais foram as coisas que fizeram dele um heri de uma narrativa chamada Faroeste Caboclo. A narrativa ficcional sempre diferente do que a gente v na realidade porque ela tem suas leis prprias. Algum construiu aquela narrativa, criou um mundo para ela. A fico no um passatempo de desocupados ou de escapistas. Esta outra questo importante para a qual eu gostaria de chamar a ateno, porque algumas pessoas tm esse preconceito contra a fico. importante tambm porque tem tudo a ver com a nossa atividade, a atividade do pblico de RPG, a atividade dos participantes deste seminrio. As pessoas que se colocam contra a fico, talvez pensem que uma coisa de quem no tem nada para fazer, um passatempo para quem quer fugir da realidade. Outro conceito equivocado de que a fico a atividade, o territrio sagrado, das pessoas que conseguem fama e prestgio, ou pelo menos tentam conseguir. Digo que este conceito equivocado porque considero a fico uma atividade necessria ao ser humano de uma maneira geral. As pessoas usam a fico para imaginar, para criar e uma grande parte das pessoas "assiste" fico, "recebe" a fico como o caso de milhes de pessoas que assistem a telenovelas todos os dias. uma necessidade que todo mundo tem. No d para discriminar como uma atitiude apenas passiva, a das pessoas que apenas assistem a telenovela. De alguma maneira aquilo est estimulando a imaginao. Umberto Eco, autor de O nome da rosa, um grande estudioso de literatura. Ele escreveu que um dos motivos pelos quais as pessoas lem fico, precisam de fico, porque ler fico uma forma de jogar um jogo que d sentido s coisas que acontecem, aconteceram ou vo acontecer. Existe um jogo com a fico em qualquer nvel, da atividade mais passiva at a atividade mais interativa com a fico, o RPG, por exemplo. Isso uma tendncia inerente ao ser humano, a um ser que pensa. A maneira como as pessoas reagem fantasia e fico vai depender muito das circunstncias individuais de cada um, vai depender muito do quanto as pessoas conhecem, da idade que elas tm, de que tipo de referncias culturais e pessoais existem. A Rita Lee fez uma msica onde os elementos do conto maravilhoso tipo o bicho-papo, a bruxa e a fada so exatamente os elementos questionados porque, de repente, para a
famlia de uma garota o namorado pode ser um bicho-papo e para essa garota pode ser o prncipe encantado. Uma das primeiras coisas que uma pessoa que gosta de histrias e gosta de contar histrias aprende como construda a narrativa. As pessoas que precisam de fico, apreciam a fico, de tanto ouvir histrias, contar histrias, assistir a filmes, escutar msicas, comeam a aprender como que aquilo foi construdo. Eu chamo isso de "o segredo do encantado", que uma expresso do Jorge Amado, do livro Tenda dos milagres. O segredo do encantado existe at nas coisas mais simples como contar piada. Tem gente que conta piada magnificamente. A mesma velha piada, e uma determinada pessoa conta e todo mundo em volta rola de rir, porque ela aprendeu a organizar aquela histria de maneira a faz-la mais engraada. Ou as pessoas que contam caso de assombrao, e quem ouve morre de medo. So pessoas que aprenderam como mexer com aqueles elementos. Vale para todo mundo: um contador de caso, de piadas, um escritor, um compositor de msica, um mestre de RPG. Vale para qualquer pessoa que aprende a organizar a narrativa. E algum que consegue deixar de lado o secundrio, consegue se ater ao principal, consegue definir o que mais ou menos emocionante. Isso o que faz com que uma histria, como a do Frankenstein, tenha mais de cem adaptaes para o cinema. E a mesma histria, s que as pessoas iluminam pedaos diferentes. E, s vezes, elas mantm a fidelidade histria, mas realmente contam de uma forma diferente. Eu assisti recentemente, at mais de uma vez, ao filme Rainha Margoc e ele de uma fidelidade, na minha opinio, extraordinria ao livro, apesar de ir alm do que est escrito. O filme pressupe coisas que o livro insinua. Fica muito mais emocionante. No se pode dizer que o diretor do filme, ou o roterista, colocaram coisas no drama que no existiam no livro. As coisas que foram colocadas esto l. Foram invertidos alguns fatos, coisas absolutamente secundrias. A amante do rei morre de uma forma e no de outra, por exemplo. O que ele fez, principalmente, foi puxar da narrativa coisas que outras pessoas que leram antes no imaginaram. Um fato interessante que o rei Carlos XI morre, no filme, folheando um livro envenenado. O antecedente o seguinte: a me do rei, Catarina de Mdias, manda envenenar um livro para matar o genro. Acontece que, por acidente ou no, o filho a quem ela manda entregar o livro deixa-o
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em cima da mesa e o Carlos XI pega o livro que est todo grudado. Ele molha a mo na lngua e vai passando as pginas e por causa disso ele morre envenenado meses depois. Essa mesma situao foi usada por Umberto Eco em O nome da rosa de uma maneira completamente diferente, mas o fato o mesmo. Essas coincidncias acontecem porque existem as histrias, que so os fatos relatados por algum, independente de quem primeiro d notcias dele. O contador de histrias, o escritor, o mestre de RPG, todas as pessoas que mexem com fico, aprendem esse segredo. Esta obviedade de que a histria raramente original, a originalidade est em como organizar os fatos, como tirar o mximo prazer de uma histria. A histria em si, os fatos que a compem, podem estar na tradio oral de um pas, no mito, na vizinhana das pessoas, podem ser um relato de guerra, podem estar nas folhas de um jornal. Uma outra coisa o enredo. Por exemplo: um casal tem uma filha, a mulher morre; o marido casa de novo, a madrasta odeia a enteada; tenta mat-la uma, duas, trs vezes; a jovem sobrevive com a ajuda de algum e casa. Essa histria ocupa trs linhas. No entanto, tm centenas de verses dessa histria. Tem tambm a daquela enteada que pobrezinha, as irms maltratam, a madrasta maltrata, ela tem que limpar a casa o dia inteiro e a ela encontra um sujeito maravilhoso, um prncipe encantado que casa com ela. E a histria de A gata borralheira, a histria de Uma linda mulher. A histria em si essa, a forma pela qual ela contada o que a gente chama de enredo. Em Uma linda mulher existe o "prncipe encantado" da Cinderela e, no entanto, o enredo foi organizado de forma tal que a personagem principal, Vivian, no uma enteada, mas uma pessoa que no tem uma famlia para cuidar dela. Ela no limpa a casa o dia inteiro, ela prostituta. Aparece, apesar dessas diferenas, um prncipe encantado mesmo, um sujeito que tem milhes e no final sobe a escada para resgat-la, l de cima, de uma vida sem amor. Tem uma outra: uma bela mulher raptada do seu marido por um visitante estrangeiro. Os amigos do marido se unem a ele para resgat-la e, por tabela, destrurem a casa do audacioso. So vitoriosos. Essa histria que tambm tem trs linhas rendeu a lixada, a Odissia, centenas e centenas de versos, 800 pginas de versos, h cerca de 3 mil anos. E depois, trinta anos antes de Cristo, rendeu a um autor chamado Virglio um livro chamado Eneida. O Virglio fez uma coisa interessante neste livro: ele mistura um pouco
da guerra de Tria com a histria de Roma. Ele coloca um heri troiano, Enas, escapando ao cerco quando os gregos destruram tudo em Tria. At o filho de Heitor, uma criana de 6 anos de idade, foi morto pelos gregos, segundo reza a tradio. Virglio mistura a fuga de Enas com lendas da fundao de Roma e faz uma outra epopia, onde ele copia alguma coisa do Homero e muda muitas coisas. Outro exemplo dessa apropriao, que se deve considerao de que a narrativa no tem dono, o que contado no livro Viva o povo brasileiro, de Joo Ubaldo Ribeiro, um dos melhores romances que eu j li. O livro narra a epopia do povo brasileiro, do ponto de vista dos oprimidos, e h um trecho em que est acontecendo a guerra do Paraguai e os orixs do candombl comeam a perceber que os seus filhos de santo da ilha de Itaparica esto morrendo. Por causa disso, eles entram na guerra do Paraguai do lado dos brasileiros. Homero fez a mesma coisa na lixada. Os deuses do Olimpo entram na guerra, uns do lado dos gregos, outros do lado dos troianos. Ser que Joo Ubaldo - como antes o fez Virglio - se inspirou em Homero? Pode ser que sim, pode ser que no. Isto no importante. O fundamental que os Orixs entrarem na guerra do Paraguai tem tudo a ver com o que contado, assim como tinha tudo a ver os deuses gregos interferirem na guerra de Tria. Monteiro Lobato usou e abusou dessa estratgia em sua literatura para crianas. Ele pegou histrias, no s do mito, do conto maravilhoso, mas s vezes de outros autores como Cervantes, autor de Dom Quixote, e personagens como o Peter Pan e construiu outros enredos. Por isso que a gente tem que fazer uma separao entre histria e enredo. Por exemplo, na guerra de Tria, o Homero comea a narr-la no nono ano da guerra e termina a lixada antes da vitria dos gregos. Ele retoma, na Odissia, a guerra de Tria. Retoma a histria emflash back, em outro enredo de um outro livro. Lobato partia de outros universos ficcionais, quer fossem do mito, quer fossem de literatura de outros autores, e construa uma outra "realidade", como se fosse um mundo real no Srio do Picapau Amarelo. Eu chamo este real, o do stio, de "real-fico" e Lobato colocava esse realfico em contato com a fico dos outros. Isso exige uma competncia narrativa fantstica porque possvel pegar, por exemplo, o filme Era uma vez e mistur-lo com personagens do mundo real e coloc-los para
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viajar na fantasia. um pouco isso que o Lobato fazia tambm. S que ele detalhava bastante o real dele, O stio do picapau amarelo, e mesclava com elementos de fantasia tambm. Era um stio no interior do Brasil e tudo isso do nosso conhecimento. Os seres humanos ali no tinham trs cabeas, no eram mutantes, nada disso. Seres humanos comuns, com a particularidade da supresso, pelo autor, de alguns elementos do real que todo mundo vive. Por exemplo, no Stio no existe pai nem me. Na obra do Lobato no existem pai e me. Nem pai, nem me, nem escola, que, alis, eram trs coisas que o Lobato achava que atrapalhavam mais do que ajudavam. Ele eliminou isso das histrias dele. As crianas do Lobato esto permanentemente em frias e, ao mesmo tempo, elas estudam o tempo todo porque elas no so obrigadas a estudar. Este trao essencial na obra de Lobato. Ele elimina da realidade, como ns conhecemos. No existe escola ou pais. Portanto, no existe a autoridade do conhecimento escolar ou da famlia, como costuma acontecer na vida da maioria das crianas. No sei se as crianas que lem Monteiro Lobato percebem isso logo de cara. Eu estava relendo esses dias A reforma da natureza e a a Dona Benta diz para Emlia: "Voc vai desfazer essa reforma imediatamente. Onde j se viu fazer ninho nas costas de passarinho?" Era uma das muitas idias loucas da Emlia. A Emlia diz: "No vou, desse jeito eu no desmancho nada." Dona Benta vai e explica: "Olha Emlia, no d certo por causa disso e disso." A Emlia aceita: "Ah, bom, agora eu vou. Voc explicou, conversou comigo." Era um outro dado do real que o Lobato discordava. Ele no suportava imposies autoritrias. As personagens dele negociam entre si o tempo todo. Na verdade, O stio do picapau amarelo a grande metfora de Lobato para o Brasil. Ele tinha uma implicncia enorme com a corrupo da alma nacional. Uma bronca especial dos polticos desonestos, das escolas formadoras de bacharis. Ele imaginou o Centro Cultural Banco do Brasil muito antes, dcadas antes, de se pensar o Centro Cultural Banco do Brasil. Ele dizia que se ele achasse petrleo no Brasil, faria um centro cultural com cinema, televiso - ele j conhecia televiso nos EUA, morou l - biblioteca, teatro. Ele sonhava com isso e dizia para o amigo Ansio Teixeira: "Faremos mais pelo Brasil com esse centro cultural do que essa besta do Apocalipse que o Estado, e esses milhares de cagados que so os professores." Ele
realmente tinha horror s escolas, ao Estado, s situaes que observava na realidade brasileira. E, j que no deixavam ele fazer coisas com que sonhava, como o centro cultural - a sociedade adulta era muito burra ou, talvez, muito esperta - ele jogava toda a confiana que restava dentro de si na juventude. Ele achava que os nicos seres capazes de ter imaginao no Brasil eram os jovens. Conheo bem as idias do Lobato sobre isso porque a minha dissertao de mestrado foi sobre sua literatura e tive a oportunidade de ler 40 anos de correspondncia dele com os amigos, e considero que era uma correspondncia entusiasmada, por um lado, e furiosa por outro. Ele realmente malhava do presidente da Repblica at o sujeito que passava na rua e deixava o presidente fazer coisas erradas. Era muito crtico, o Monteiro Lobato. O que ele fez foi pegar esse real-fico (o stio), como se ele construsse um sistema de RPG que fosse ao mesmo tempo especfico, em mundos determinados, e genrico, porque os personagens dele transitam em todos os mundos tambm. Em Os doze trabalhos de Hrcules, os personagens do Lobato refazem os trabalhos de Hrcules. Os personagens dele interagem o tempo todo com a a fico dos outros, com o mito, com a fantasia. a primeira vez que surge no Brasil uma literatura com um modelo interativo. E a primeira interao que existe aqui. Em O picapau amarelo, ele pe os personagens do mito e do conto maravilhoso para viajarem para o real-fico dele. Ele muda todo mundo para o Sido do Picapau Amarelo e faz toda uma crtica ao mito, ao conto maravilhoso e literatura dos outros. Por exemplo, ele coloca o Dom Quixote do Cervantes para comer pipoca, na varanda da Dona Benta, com o Capito Gancho. Dom Quixote diz para a Emlia assim: "Os escritores mentem muito. Voc no v, um tal de Cervantes me colocou numa situao ridcula." A o Capito Gancho diz: "E a mim, ento, me colocaram derrotado por uma criana." Emlia contesta: "No, mas eu li, est num livro." E o Capito Gancho diz assim para ela: "O que que tem que est no livro, bonequinha, os livros mentem tanto quanto os homens." Quer dizer, ele passa o tempo todo questionando o que mentira e o que verdade e viajando. Na fico, na fantasia, no p de Pirlimpimpim. Existem dois elementos fundamentais na obra do Lobato relacionados com a fantasia e com o desejo. Um desses elementos o "faz de
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conta". Se voc faz de conta que uma coisa assim, claro que essa coisa assim. Se voc faz de conta que no , no . Outro elemento da fantasia fundamental na obra de Lobato o p de Pirlimpimpim, que a viagem no tempo. Quase todas as diabruras das personagens de Lobato so feitas atravs desses mecanismos. Em outras ocasies a literatura de Lobato interage abertamente com a narrativa alheia. Em A chave do tamanho, voltando questo da narrativa sem dono, ele parte do mesmo mote de Alice no pas das maravilhas. Inclusive, assume o dilogo com a outra narrativa, faz referncia direta: "No, porque a Alice no pas das maravilhas..." Eu gostaria de chamar a ateno para uma outra forma de interao entre narrativas, esta sim, com certeza, inconsciente, no depende do conhecimento prvio do autor, esto separados no tempo e no espao os textos que se assemelham. Em determinada cena de A chave do tamanho, a Emlia diminui, vira uma minhoquinha e chega no jardim de uma casa. Lobato descreve o jardim, os caramujos gigantes, o jardim virou uma selva mosntruosa para a Emlia. Igualzinho, idntico mesmo, ao filme Querida, encolhi as crianas. A descrio dele a mesma do filme, com o detalhe que foi escrita dcadas antes. Na verdade, quando eu afirmo que a narrativa no tem dono, no significa que as pesssoas imitem umas s outras. Significa que os medos, os sonhos, a fantasia, a imaginao dos autores, quer esses autores estejam na Academia Brasileira de Letras, quer sejam mestres e jogadores de RPG, tm coisas em comum. Por isso acontece de pessoas em continentes diferentes, em pocas diferentes, escreverem coisas semelhantes. Uma outra coisa interessante sobre Lobato que ele, no satisfeito em interagir com outros mundos ficcionais, era capaz tambm de desmistifcar gneros como a tragdia, a epopia ou o conto maravilhoso. Fazia isso atravs do humor. Outro dia eu estava analisando um livro de RPG, lendo para fazer uma avaliao, para escrever alguma coisa a respeito. Eu peguei um livro de regras, no me lembro agora qual foi. Acho que foi um dos suplementos do Gurps e no livro estava explicado que se o jogador escolhesse ter tanto de fora, no podia ter o mesmo patamar de inteligncia. A orientao era mais ou menos a seguinte: se na ficha de personagem o jogador quer que sua personagem seja poderosa fisicamente, no vai poder querer ser tambm o mais inteligente. No se pode ao
mesmo tempo ter o mximo de inteligncia e o mximo de fora. Isso me lembrou o Hrcules, do Monteiro Lobato, que era capaz de chegar para o gigante Adas e dizer assim: "Olha, segura aqui o mundo nas costas para eu beber um pouco d'gua." A ele pegava o planeta nas costas e ficava l. Quer dizer, ele tinha fora suficiente para isso, mas no tinha inteligncia suficiente para perceber que uma pessoa que est condenada a carregar o mundo nas costas, se achar um pateta que se oferea para segurar o mundo enquanto a pessoa for beber gua, no vai voltar jamais. E lgico, no tem cabimento acreditar que algum, em s conscincia, volte para um castigo terrvel, se achar outro que o substitua. Hrcules vai precisar da Emlia, do Pedrinho, do Visconde para o orientarem, porque ele tem fora, mas no tem inteligncia. Ele no pode ter todos os atributos ao mesmo tempo. Evidente. Se eletivessetodos os atributos ao mesmo tempo, a narrativa ficaria incoerente, inconsistente, sem graa. O interessante que o mito no conta que o Hrcules era um heri burro. O Lobato, que raciocinou em cima, viu que, pelas coisas que o Hrcules fazia, ele no podia ser muito inteligente mesmo. O genial em Lobato que ele cria uma narrativa engraada, atravs dessas observaes do mito. Ele no acrescenta ao mito. Ele simplesmente desvenda coisas que talvez os outros autores no tenham percebido. No mito os deuses ajudam. Os deuses que do as dicas, quer dizer, que permitem que o ser humano faa e vena ou no. O Lobato, na sua interatividade, elimina essa ao dos deuses porque so as personagens que fazem as histrias. No so mais os deuses jogando com o destino dos humanos e sim as personagens do Lobato, como um grande RPG literrio, os "jogadores", os picapauzinhos, interagindo. Por isso acho que se a nossa cultura fosse uma cultura de maior cuidado com as coisas nacionais, como o Hamiltom Vaz Pereira gostaria que fosse, e eu tambm, se ns fssemos mais preocupados em prestigiar nossas coisas, se a nossa cultura fosse uma cultura de valorizar mais a inovao brasileira, ns j teramos o RPG. Ns teramos o RPG surgindo no Brasil, teramos comeado o jogo. Monteiro Lobato, se fosse vivo, ia adorar o Roleplaying Game. Eu li um livro chamado Quimera, de um autor norte-amerciano, John Barths. Neste livro feita a mesma coisa que o Lobato fez na literatura para jovens. Em Quimera uma personagem dos dias atuais interage
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com a Sherazade de Mil e uma noites. Fez isso 40 anos depois de o Lobato e no existe nada de errado, ou de menor, no autor norte-americano ter feito isso dcadas depois de um autor brasileiro. Na verdade isso confirma a hiptese inicial que eu estou levantando. A narrativa, realmente, no tem dono. O que existem so sempre formas novas, mais interativas, de lidar com a arte da fico, que um patrimnio e uma necessidade de ns todos.
C O N S T R U O DE UM UNIVERSO DE FANTASIA
Isso foi um negcio engraado. A Snia me chamou para explicar como que se constri um universo de fantasia. E a eu me sentei e fiquei pensando: mas, no final das contas, o que fantasia? Andei pensando e no cheguei a nenhuma concluso firme. Eu sei que fantasia no aquilo a que chamamos de fico cientfica, que acaba sendo uma mistura de cincia e de fico e que no tem muito de cientfico nem de ficcional. Mas a fantasia tem certas coisas que a gente pode dizer a respeito. Ela no se passa num mundo onde as leis do nosso mundo valem. Ela se passa em algum lugar que se parece com o nosso mundo, mas no . E tambm no se passa no futuro do nosso mundo, como a gente consegue imaginar que possa ser este futuro; e tambm no se passou no passado, pelo menos at onde conhecemos o passado. Ento a fantasia um negcio do qual conseguimos dizer uma poro de coisas do que ele no . Eu no cheguei a nenhuma concluso do que ela efetivamente. E fiquei pensando que outra coisa eu podia dizer sobre a fantasia; me d a impresso que a fantasia vem de muito tempo passado. Talvez de quando se comeou a escrever. Se estou certo, a primeira histria contada escrita foi aquele mito de Gilgams: esse cavalheiro seria rei de uma cidade chamada Uruk, na Sumria. Os professores, aquelas pessoas de quem vocs gostam muito, j devem ter falado a respeito. Isso parece que faz parte da natureza da gente; essas histrias, que so cultivadas a partir de uma poca to remota, periodicamente aparecem de novo. As culturas desabam, aparecem adiante, desabam de novo, reaparecem adiante. A cultura produz uma histria feito essa de Gilgams; Snia estava falando da Grcia, que produziu a lixada, produziu a Odissia; Roma, produziu a Eneida. Estvamos falando da Finlndia, que produziu Kalevala. Existem as histrias do rei Arthur, que so um pouco anterior conquista da Inglaterra pelos romanos. E uma coisa interessante que esse Gilgams e o rei Arthur existiram; eles no tinham aqueles atributos
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todos de quando viraram lenda, mas existiram. O rei Arthur, na verdade, nem era rei. Ele era um general ou qualquer coisa assim, de um daqueles pequenos reinos que havia na Inglaterra, antes da conquista normanda. A impresso que d que as pessoas pegam certos elementos da realidade e, como dizemos, "enfeitam o pavo" e pronto: temos um mito. Est a o mito prontinho para o consumo e se ele tem sucesso vira um pico naquela cultura. Passa de uma coisa que deve ter nascido de uma conversa de botequim e vira uma pea de literatura, que algo respeitvel. Esse negcio parece muito forte na natureza humana; porque as culturas sobem e descem, descem e sobem e cada uma vai produzindo. O que mais temos hoje pico. Cada cultura vai produzindo o seu. Acontece uma coisa engraada para quem no tem convices religiosas; podemos at encarar a Bblia como uma alegoria de fatos que aconteceram. A presena dos judeus no Egito documentada historicamente; eles voltaram para aquela regio que hoje o estado de Israel. Agora, se Moiss pediu a Deus para abrir o Mar Vermelho para eles passarem ou no, a j fica por conta da crena de cada um. Mas, de uma maneira geral, esses mitos eram feitos para as pessoas acreditarem naquilo: "No, isso a histria". Ulisses conseguiu fugir ao cerco de Tria e fez aquela viagem medonha para chegar a taca. Ento essas histrias eram inventadas para as pessoas acreditarem naquilo como tendo sido realidade. Mas acho que as pessoas foram ficando um pouco mais espertas; foram vendo que So Jorge matando drago fica um negcio meio difcil. Tenho notado que, de uns tempos para c, aconteceu uma coisa curiosa: de repente, uma obra de fantasia se tornou um sucesso: O senhor dos anis. E uma fantasia, ningum est dizendo para vocs acreditarem naquilo. perfeitamente claro que algum resolveu inventar uma histria desvairada: drages, magos e uma poro de coisas. Mas no interessa. No existiu, no pode ter existido, provavelmente no vai existir. Mas algo que as pessoas gostam de ler! Essas histrias tm um certo padro a seguir. Elas precisam ter um heri e esse heri precisa ter alguma coisa para fazer, porque seno ele fica parado na histria. E essas coisas que ele tem que fazer precisam ser difceis porque, se for acordar, pegar a conduo, ir para o trabalho, trabalhar, voltar para casa, jantar e dormir esse cara no um heri. Esse cara uma pessoa comum e a vida das pessoas comuns no interessa.
O que interessa a vida dos heris. Ento o heri tem que ter alguma encrenca para resolver. Se tiver vrias, melhor ainda. A histria demora mais, o pessoal gosta de ouvir histria, fica mais interessante. Mas basicamente a coisa essa. Existe um problema para ser resolvido. Quem viu a Histria sem fiml Havia um problema, a fantasia estava desaparecendo. O problema para o heri: impedir que a fantasia desaparecesse. Um problema s, mas um grande problema. Ento o heri passa pela tarefa de resolver problemas. H trabalhos, e Hrcules teve doze. No teve mais um porque a Emlia se ps a esbravejar com o rei de Micenas. E o heri cumpre a tarefa. E todos vivem felizes para sempre. A histria de aventura no tem muito mais do que isso. Ela pode ser uma histria de aventura passada na frica do sculo XIX. Temos que chegar s cachoeiras do Nilo. Essas histrias, que so fantasias, no so para se acreditar. Essa fantasia meio que renasceu; o negcio no estourou logo no incio, mas foi crescendo, foi crescendo. Outro dia eu estava lendo qualquer coisa sobre isso. Quando o Silmarillion apareceu, a primeira edio foi de 500 mil exemplares. Foi uma coisa sem precedentes na literatura de lngua inglesa. Quer dizer, uma coisa sem precedentes na cultura mundial. O sujeito, sem saber se o pblico vai gostar ou no, pelo histrico do autor, banca 500 mil exemplares! O livro, que incidentalmente parece que o menos lido dos livros do Tolkien, teve uma primeira edio de 500 mil exemplares, tal era a popularidade da fantasia gerada pelo Hobbit e pelo Senhor dos Anis depois. Ento com tudo isso, eu estava pensando depois da Snia me dizer: "Vai l e explica para o pessoal como que se constri um mundo de fantasia." Comecei a pensar na fantasia e me vieram essas coisas todas. Mas eu estava aqui ouvindo a palestra dela e ela comeou a falar dessas histrias que esto a e que a gente s faz a embalagem. A histria est pronta, voc "enfeita o pavo". Tira a rainha malvada e coloca a pessoa que cobra o aluguel caro. D um trabalho "do bode", mas basicamente a coisa essa. Trocando em midos: as histrias so recicladas. Nada se cria, tudo se copia. Eu estava pensando que existe uma lenda dos ndios, no sei quais, que me contaram h uns 10,12 anos atrs, em que os ndios viviam em determinado lugar l no meio da mata e um belo dia o chefe da tribo ouviu dizer que existia, rio abaixo, uma coisa chamada "dia" e que essa
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coisa tinha uma luz que tornava mais fcil ver as coisas. Eles viviam num lugar onde havia noite permanente. O chefe dos ndios se interessou e arranjou uma canoa. Alguns ndios desceram o rio, arranjaram um bocado de dia l e trouxeram. Desse dia em diante, a tribo teve dias e noites e todos viveram felizes. Quando me contaram essa histria, fiquei pensando: "que negcio interessante". Porque existe uma poro de histrias ripo: "foram at no sei onde e trouxeram o milho, o trigo, e as pessoas se alimentaram do trigo ou do milho e foram felizes para sempre". Uma poro de heris de uma poro de histrias, esses cavalheiros todos, trouxeram uma poro de coisas: o trigo, o milho, os ces de caa, o gado, o ferro, o fogo. Mas essa histria dos ndios, eu achei interessante porque os ndios trouxeram uma coisa que no de voc chegar e pegar: trouxeram os dias. A, peguei essa histria e como que virei ela pelo avesso. Porque ela para mim tinha um inconveniente: eles no tinham os dias, desceram o rio, pegaram os dias, subiram o rio, "instalaram" os dias l e todos foram felizes para sempre e a histria acabou. Eu no tenho competncia para inventar uma histria em cima de algo to curto! A, me ocorreu a idia de virar a histria pelo avesso: um pas que s tivesse dias e que o pessoal fosse buscar a noite. "Ah, bolas, mas a mesma coisa". Me parece que no. No sei por que, a cultura da gente valoriza coisas como luz, claridade, qualquer coisa que permita que voc veja bem as coisas e desvaloriza o escuro, a sombra. So as coisas perigosas. No sei se isso est ligado aos medos que trazemos das cavernas da Idade da Pedra. Tudo bem, sabemos que no h nenhum bicho l dentro, mas no entramos num quarto escuro da mesma forma que entramos num quarto com luz. Nem que seja para tomar cuidado para no dar uma batida em alguma coisa. Sabemos que o escuro envolve um risco qualquer, que a escurido assusta. Ento, se no mundo que eu estava querendo construir, se eles trouxerem escurido, ficava um negcio que renderia problemas. E quando se tem problemas, pode-se ter uma histria. Do mesmo jeito que no se vai ao mdico para dizer que se est bem, no se escreve uma histria para dizer: "Olha, tudo bem no pedao, problema nenhum." No se escreve uma histria para dizer que era um lugar muito bonito, todos eram felizes, no havia problema nenhum, as pessoas gostavam umas das outras, era um barato. Vai ser um horror de chato!
Ento fiquei imaginando que se houvesse dias e trouxessem as noites, se construiria uma encrenca. Ento isso rendia uma histria. A, eu pensei: eu vou construir mundos. O sujeito vai trazer noites. Ento no pode ser um mundo onde o sujeito resolva apanhar noites ali na esquina ou dois quarteires depois. Ento ele desce, pega o automvel, compra a noite e traz. No, no isso. Tem que ser um negcio que tenha os elementos "fantsticos", ou no vai virar uma histria de fantasia. Ento o que tem? Uma srie de coisas que o heri precisa fazer para conseguir a noite. Tem um mago para dar uma ajuda ao heri. Tem um mago para atrapalhar o heri. Claro, porque tenho que desequilibrar as coisas. Porque se voc tem um mago que resolve tudo, voc chega l, manda o mago dar uns tapas no bandido e resolve o problema. Acabou a histria. A histria fica uma coisa que no se sustenta, no traz interesse. E o tipo da vitria fcil, no tem graa. Uma coisa que precisava era equilibrar as foras nesse mundo fantstico. O bem vai, mas no vai muito porque o mal muito poderoso. Mas o mal faz umas bobagens de vez em quando, e voc consegue dar uma rasteira nele; e ele vem e d uma em voc para a coisa ter o atrativo. Uma vez que se est construindo uma fantasia, tem-se que ter leis nesse mundo, leis diferentes das do mundo em que a gente vive. E uma vez que se estabeleceu essas leis, tem-se que respeit-las, seno esse mundo vira uma baguna. Logo, se o mago exerce poderes muito grandes durante muito tempo, ele tem que economizar, no pode sair gastando os poderes vontade, at porque ele sabe que os poderes do mago oponente so grandes tambm! Assim, me d a impresso que, de um modo geral, a coisa essa. Tem-se que construir um mundo que tenha um certo equilbrio entre o bem e o mal, para a histria no ficar fcil para o mocinho. Equilbrio entre o mocinho e o bandido, entre o bem e o mal. Tem-se de criar certas leis que rejam esse mundo. Essas leis so diferentes das do nosso mundo mas, uma vez adotadas essas leis, tem-se de respeit-las, porque do contrrio fica um negcio desonesto. "No, um momento, vou suspender a lei porque aqui tem uma parede, aqui tem outra e o drago est vindo para cima de mim. No tenho para onde subir. Ningum vai me jogar uma escada de cordas? Eu vou morrer*. Mas no h drago nessa histria. mentirinha. preciso respeitar as leis que voc mesmo criou.
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Me parece que isso. Quem estiver interessado em tentar, pode inventar um mundo em que haja um heri disposto a fazer alguma coisa e consegue faz-la. Pode ser um drago, que vem assolar a regio onde esse heri mora, de tantos em tantos anos. Ele vem cobrar um tributo das cidades para no tacar fogo em tudo e os heris do lugar tentaram matar o drago, mas no conseguem. At que um tem a idia de fazer o drago entrar numa gruta, provocar um terremoto, esmagar o drago. Quem quiser tentar... Agora, respeitando as leis do lugar para no ficar uma histria sem p nem cabea. Se uma histria de fantasia, tem que ter os elementos do fantstico. Claro, isso a no tem problema. O drago j elemento fantstico o bastante. De uma maneira geral, me parece que
isso.
Jornalista
Sobre o que a Snia falou do Hrcules ser "tapado", se eu estou bem lembrado, aconteceu uma coisa engraada quando ele luta com Anteu, filho de Gea, a terra, que fornecia foras ao Anteu atravs dos ps, porque ele estava em contato com a terra, sua me. E Hrcules estava lutando com Anteu, que estava na maior, acabando com ele. E a Emlia, que chamava ele de Lel, se vira e d uma sugesto para ele dizendo: "Desliga ele, Lel". A idia dela foi virar Anteu de cabea para baixo para ele no ter mais contato com sua me, pelos ps. E Hrcules conseguiu vencer Anteu assim, atravs de uma sugesto da Emlia, no foi idia dele.
H trs anos, quando foi comemorado o centenrio de nascimento do Tolkien, se perguntou muito por que ele fez renascer a fantasia. A "Academia" acha que o Tolkien um lixo. Edmund Wilson chegou a dizer que O senhor dos anis era composto de mais de mil pginas de lixo juvenil. Para a crtica, ele fazia dicionrios muito bem, mas no era um bom ficcionista. S que vendeu 35 milhes de livros e os editores pouco se lixaram para a crtica e comemoraram seu centenrio como o de um grande autor. Tolkien era professor de Oxford e tinha o hbito de se reunir com outros professores, entre eles C S . Lewis, para ler em voz alta as histrias que estavam sendo criadas. Era como um grupo de RPG. Um grupo s de homens se reunia eficavacontando sagas uns para os outros. Eles achavam que as mulheres tinham outras coisas para fazer na vida. S que eles no se consideravam autores de fantasia. Pretendiam criar uma mitologia para a Inglaterra. Tolkien chegava a dizer que estava cansado da mitologia grega, estudada por todo mundo. Por causa disso, ele resolveu criar uma mitologia. Esta histria comea na sua infncia. Sua me no tinha dinheiro para pagar escola e resolveu ela prpria ensinar aos filhos. Por ser catlica, sabia latim e Tolkien adorou aprender esta lngua. Ela tambm tentou ensinar piano, mas ele no quis porque achava mais graa na msica das palavras. Quando era criana, adorava descobrir diferenas entre as lnguas faladas na Inglaterra. Adorava os nomes dos trens do Pas de Gales porque tinham uma sonoridade diferente. Comea a pesquisar lnguas por conta prpria e tambm a inventar palavras como qualquer criana. Quando ele j estava em Oxford, j tinha mais de cinco lnguas completamente criadas, inclusive foneticamente. Em seus livros, faz questo de dar chaves para pronunciar os nomes prprios e todo um alfabeto em runas para
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quem quiser escrever em linguagem lfica. Ele tinha cinco lnguas na mo e no tinha povos que falassem essas lnguas. Nisso ele diferente de outros autores. Primeiro criou a lngua para depois criar um povo que a utilizasse. Para o povo lfico, doou a sua favorita. Achava que os elfos eram como ele, Tolkien. Estavam num mundo errado, deveriam ter vivido em outra poca. Tinham que desaparecer, mas ao mesmo tempo eram imortais. E, assim, vai criando povos para cada lngua. No era o povo que falava a lngua, era a lngua que acabava por criar um povo. Tolkien era uma pessoa politicamente incorreta. Detestava qualquer coisa que ele considerasse moderno e moderno para ele era Shakespeare. Tudo depois de Chaucer era dispensvel. Sua vida era absolutamente normal. Suas maiores preocupaes eram pagar o colgio dos filhos ou ter que mudar de casa. No viajava, no havia nada parecido com uma vida aventureira. Entre as matrias que saram durante as comemoraes do seu centenrio, havia uma que tinha como ttulo "Paradigma do sem graa". Muita gente tenta entender como que um homem to absolutamente normal foi capaz de criar um mundo to fantstico. Tolkien escrevia para ele mesmo. No gostava que o venerassem, nem de lidar com muita gente. Quando seus livros foram editados da forma que ele queria, no conseguiram muito sucesso - at porque eram de capa dura, com muitos mapas em cores e, portanto, muito caros. Na Inglaterra, no incio, Tolkien vendeu pouco. S quando os direitos foram comprados por uma editora americana que virou cuit. Em Berkeley, e tambm em outras universidades americanas, que comeou o boca a boca. "Voc no leu o Tolkien? Mas como voc ainda no leu o Tolkien?" Na verdade, quem criou a fantasia do Tolkien no foi ele e sim seus leitores. Eles leram de uma forma diferente O Hobbit e O senhor dos anis. A poca era a do nascimento da contracultura. Por exemplo, Tolkien fumava cachimbo e seus hobbks tambm fumavam. J nos Estados Unidos, dizia-se que eles fumavam maconha. As mensagens do escritor, bastante conservadoras, viraram ao contrrio. Isaac Asimov leu 4 vezes O senhor dos anis e achava que era um grande livro de aventura, mas ficava assustado com a raiva do Tolkien em relao tecnologia: "Ele pensa numa Idade Mdia sem servos e sem escravos". S os poderosos tm vez. Todos moram com muito conforto, podem viver tranqilamente. Ele defendia o lado rural da Inglaterra. Para os seus leitores, a mensagem era ecolgica. Por
ter participado da Primeira Guerra, ele era pacifista, mas nunca fez parte de nenhum movimento. O que ele no queria era viver outra guerra, porque chegou a ficar seis meses com febre, sem que os mdicos descobrissem porque, quando teria que voltar para as trincheiras. Chegaram a dizer que ele era covarde. No d para imaginar um personagem do Tolkien vivendo essa situao. Os leitores idolatravam o Tolkien e ele, por temperamento, nunca se expunha. Assim, foi criado o mito de que ele era um autor de contracultura, a partir principalmente das Universidades americanas. O grande "pulo do gato" dele como criador de fantasia foi ter usado um anti-heri como personagem mais importante da aventura. Nisso, fica fcil a identificao com um mestre de jogo de RPG. No existe nada menos herico do que um hobbit. Uma pessoa que no chega a um metro e meio, tem medo de tudo e que o que mais gosta na vida de morar num buraco muito confortvel, fumar cachimbo, beber cerveja e dormir e acordar tarde, com certeza no tem o perfil de um heri. Tolkien era muito parecido com o Bilbo, como pessoa, mas como escritor ele era Gandalf, o mago. Em um trecho do livro O Hobbit est uma frase que acho tima. Torin, um dos anes, quer resolver as coisas heroicamente. Quer que algum v l, lute com o drago e acabe a histria como todas as outras sagas. Gandalf diz o seguinte: "Isso no seria nada bom, pelo menos sem um forte guerreiro ou at um heri. Tentei arranjar um, mas os guerreiros andam todos atarefados a lutar uns com os outros em terras distantes. E, nessas vizinhanas, os heris escasseiam ou no existem pura e simplesmente". Quando Tolkien olhou em volta, no achou nada alm de ingleses classe mdia brigando pela prestao da casa. So eles que sero os hobbits. Quando ele faz isso, transforma ns todos em heris. Para ele, "a terra s pode ser salva por pessoas normais." Tolkien levou 12 anos para escrever O senhor dos anis. Era to perfeccionista que seu livro mais querido, Silmarillion, s foi publicado depois que ele morreu, quando seu filho aceitou fazer alguns cortes pedidos pelos editores. Nenhum deles ousou publicar este livro da forma que estava, mesmo depois do sucesso de venda dos outros. Silmarillion o grande livro do mestre de RPG. No uma aventura, a base da aventura. onde ele cria um mundo com referncias que so usadas nos outros
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livros. O Hobbit, escreveu para crianas. Ele tinha um filho que no conseguia dormir. Comeou a contar uma historinha cada noite para ver se o menino dormia. S que o efeito foi ao contrrio. Cada vez o menino queria mais histria e a surgiu O Hobbit. Nas primeiras edies, o livro claramente para crianas, inclusive com muita ilustrao. Logo depois que O Hobbit fez sucesso, Tolkien saiu atrs dos editores para conseguir publicar o Silmarillion. No conseguiu. Todos queriam uma continuao do Hobbit. Mas ele queria criar uma mitologia. Ento, ele fez uma fuso do Stmariilion com o Hobbit e nasceu O senhor dos anis. Tolkien era muito religioso e no se considerava um criador, mas um subcriador. Para ele, a histria j existia antes dele escrever. O que ele achava que devia fazer mesmo era uma mitologia e por isso teve dificuldades em criar uma aventura boa para ser lida, como queriam os editores. Poucas pessoas leram o Silmarillion inteiro. E uma bblia, um livro de referncias que comea com a criao do mundo, quando todos os seres eram bons. Alguns se tornam maus porque querem o poder de Deus. Quando o Tolkien morre, seu filho Christopher pega todo o material no publicado e d uma certa ordem e faz uma espcie de traduo, j que em seus manuscritos Tolkien escrevia nas vrias lnguas que tinha criado. At hoje, ainda h livros da srie Histrias da Terra Mdia sendo editados. A obra do Tolkien considerada como causa prxima para a criao do RPG. Quem estudou o assunto, diz que o RPG comeou no final do sculo passado, na Alemanha. Algum da rea militar achou que era mais produtivo simular uma batalha antes dela acontecer do que analisar depois. Um caixote de areia com pedrinhas representava o campo de batalha e os soldados. Depois de algum tempo, isto virou um jogo. H. G. Wells, autor de A mquina do tempo, pegou este jogo de guerra e colocou um pouco de fantasia, mas apenas para se divertir. Nunca mais se falou nisso. Logo depois do Tolkien ter estourado nos Estados Unidos, apareceu o RPG. Um tabuleiro de hexgonos e personagens similares aos do Senhor dos anis seriam o primeiro RPG. Em 1973, ano da morte do Tolkien, foi registrado Dungeons and Dragons. Tolkien a leitura perfeita para quem joga RPG porque ele tinha uma preocupao muito grande com a coerncia interna, tanto dos personagens quanto do universo criado. Alm disso, fez mapas geogra-
ficamente corretos e chegava ao requinte de recitar seu texto em voz alta para ver se a quantidade de palavras estava de acordo com o que ele estava contando. Por exemplo, se o personagem estava subindo uma escada, o dilogo tinha que ter a durao necessria para se subir tantos degraus. Tudo nos livros absolutamente acreditvel. Ele achava que se alguma coisa no parecesse verdadeira, a fantasia seria quebrada e a sensao de magia seria perdida. Lus Roberto Mee: De certa forma, isso aquela coisa de respeitar as leis do mundo que ele criou. Cludia Moraes: E ele cria as leis completas. Tem rvores genealgicas das leis, dos reis. Reis que no aparecem em lugar nenhum, esto l. Ele criou geraes inteiras, apenas para usar o que precisasse no desenrolar da aventura. Por que essa histria encantou tanta gente? No Brasil, oficialmente s existem livros do Tolkien h um ano, na edio da Martins Fontes. Mas o nmero de pessoas que conhece O senhor dos anis imenso. Houve edies piratas no mundo inteiro, inclusive aqui. Os fs do Tolkien faziam cruzadas contra essas edies e isso ajudou a divulgar. Alm disso, todo mundo que lia O senhor dos anis recomendava para outras pessoas. Nunca encontrei algum que gostasse mais ou menos do Tolkien. Ou as pessoas adoram e acabam lendo vrias vezes ou nem conseguem ler. Alguns leitores acham que a obra dele uma grande alegoria. Ele detestava isso e vivia desmentindo quem fazia essas afirmaes. Mostrava que os manuscritos eram anteriores, por exemplo, Segunda Guerra e portanto no poderiam falar sobre ela. Dizia tambm que detestava escritores que pretendessem ensinar alguma coisa. Lgico que qualquer livro passa uma moral. A dele conservadora, mas no moralista. Ele s queria que os seus leitores entrassem no seu mundo e dessem valor sua mitologia. E isso tem tudo a ver com RPG. Todo jogador de RPG pretende criar uma mitologia, talvez por isso a maioria das aventuras no tenha como cenrio o presente. Talvez o encanto do Tolkien e do RPG seja exatamente este: definir o bem e o mal. E, hoje em dia, parece meio simplista este ponto de vista. Se eu fosse um mestre de RPG, eu acharia mais interessante criar uma aventura do ponto de vista de Mordor. Tentar ver como Sauron justificaria tudo o que fez. Provavelmente, o lado bom pareceria bem pior do que aparece no livro.
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DEBATE
Platia (Rodrigo): O Lus Roberto Mee citou que h um padro nas histrias, que tem que ter um heri. Esse padro j foi usado por escritores como o Tolkien e por outros depois? Ainda podem ser feitas obras com esse tipo de tema, obras com efeito to forte como as do Tolkien ou como a da Trilogia do Star Warsl Lus Roberto Mee: Eu acho que sim; s depende da habilidade de cada um em criar aquilo que ela achou do enredo; a armao geral da histria a mesma. Se voc quiser escrever uma histria dessas, sugiro que voc faa antes um mapa. O mapa da histria mais ou menos o mesmo: heri, problema, problema, soluo, final feliz. Vai pulando esse negcio, vai descascando os abacaxis e chega no final, que satisfatrio. O esquema esse; Star Wars tem isso, sendo que eram trs filmes, cada um deles tendo incio, meio e fim. Chegava-se a um final feliz. Problema de novo, final feliz, problema de novo, final feliz. D para fazer? D. No posso provar, mas tenho certeza de que d. Platia (Rodrigo): Imagino que qualquer obra que vem nesse estilo, como as crnicas do universo do Dragon Leruis, baseada no mundo de Tolkien. Lus Roberto Mee: Podem ser histrias melhores ou histrias piores. Para ser boa, precisa de algum que saiba o que est fazendo. Cludia Moraes: No Dragon Lends acho que h uma grande diferena: os personagens femininos. Platia (Rodrigo): Ah, mas isso no importa muita coisa. Cludia Moraes: Importa, porque as figuras femininas no so boas ou ms, o semi-elfo no bom ou mau. As pessoas no Tolkien so boas ou ms. No Dragon Lends, no sei se voc sabe, as histrias foram escritas por pessoas que eram amigas anteriormente e algumas foram para a guerra do Vietn e outras ficaram no movimento pacifista e foram presas. Por exemplo, a Kitiara uma personagem que era para ser boa, porque era da turma, mas vira m. Isso no existe no Tolkien. O Dragons Lends acrescenta isso. Ele parte de uma realidade. Assim como o Tolkien, no inventou
nada. Se algum pesquisar fora do universo da fantasia, o anel a coisa principal do Tolkien. De onde surge esse anel? Bem, Plato fala de um anel que torna as pessoas invisveis. S que o anel s tem poder quando virado para dentro. O anel simboliza uma coisa que se fecha em si mesmo: o poder dos deuses. Se usada qualquer argola fechada, qualquer coisa fechada, o poder est dentro de quem a usa, esse poder no sai. Quando tirado o anel, o poder sai e a acontecem as coisas desejadas que no podiam ser alcanadas. Se algum desejar muito, vai ser possudo pelo anel, ao invs de possu-lo. Isso est em Plato, est em milhes de histrias. O Tolkien no inventou esse anel. Ele pegou tambm isso, no sei se conscientemente. Na verdade, o livro-me desses caras todos o Kalevala, que estamos atrs todos esses anos e no conseguimos encontrlo porque da Finlndia. Eu vi uma edio espanhola, j vi uma em ingls na Embaixada, mas um livro que no encontrado normalmente. Era isso que o Tolkien lia. Tudo do Tolkien tem correspondente em qualquer mitologia, porque os nossos medos - como disse Snia Mota so os mesmos e os nossos smbolos tambm. Se formos para o oriente, o anel ao contrrio da espiral. O anel um smbolo muito mais ocidental. Para ns, se um personagem usasse uma espiral no dedo, no significaria muita coisa. Para um oriental, simbolizaria. O fato de se dizer que o Dragon Lends baseado no Tolkien porque, ao se ler o Tolkien, passase a achar que toda a saga de aventura dele, mas, na verdade... Platia (Rodrigo): Eu li as crnicas, no li o Tolkien. Cludia Moraes: Voc no leu o Tolkien? Ento leia o Tolkien. Voc est fazendo uma afirmao porque te disseram? A a diferena de cada autor. Quando se cria alguma coisa para o heri, para o anti-heri ou seja l o que for o personagem, desde que tenha coerncia, vai se criar uma coisa nova, apesar da histria ser antiga. Snia Mota: Acho muito importante essa questo que o Rodrigo levantou pelo seguinte: no adianta apenas se conhecer as histrias porque a criatividade, a originalidade, a inveno, no so feitas em relao s histrias, existem em relao ao enredo. Quer dizer, a criatividade do Tolkien todo esse trabalho de organizao de um mundo. Acho interessante frisar isto porque, do jeito que o Mee falou, parece uma coisa simples fazer fico, e no . Eu escrevo um livro de 120 pginas e acho que deu um trabalho imenso escrever. Mee escreve cinco de 500 diz
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assim: "No, simples. Voc pega o heri, pe um problema*. No concordo. Considero impossvel ser construdo um mundo totalmente diferente do que j foi escrito. Quem me disser que capaz de fazer um negcio desses, sinceramente duvido. Um mundo totalmente diferente nunca se escreveu na histria da humanidade desde que o homem se ergueu sobre a terra. "Vou escrever um mundo que nunca foi escrito, nunca foi pensado, nunca foi contado". Para mim, isso no existe. Tudo o que se cria tem alguma coisa a ver com o real, tem alguma coisa a ver com a experincia passada da raa, da espcie, da cultura de quem est criando o mundo. inevitvel. A criatividade est na maneira como mobiliado esse mundo, como so dispostas as coisas, os personagens, as caractersticas que so atribudas aos personagens. No uma coisa simples. Acho que no simples para o escritor, no simples para o jogador de RPG. No simples para quem conta uma histria porque - e j escutei a mesma histria contada por vrias pessoas - cada uma conta de uma maneira diferente. No s a questo de que "quem conta um conto aumenta um ponto". E a maneira de contar mesmo. Uma pessoa conta tal fato primeiro e o outro depois; s o fato de se inverter a ordem dos acontecimentos d outra interpretao completamente diferente. Isso remete quela discusso sobre a Morgana. Pode-se contar a histria da Morgana pelo que ela fez, pelas aes dela. O Agammnon, lder da esquadra grega na guerra contra Tria, sacrificou a filha dele e de Clitemenestra, Efignia, e depois partiu e deixou o reino e a mulher abandonados. A mulher furiosa com a morte da filha. Quando ele volta, a mulher o mata, com a cumplicidade do amante, Egisto. Contando dessa forma, quem escuta pode pensar: "Poxa, ela no era to monstro assim." A maneira como voc conta importante. Por isso que bom serem lidas verses da mesma histria. Na cultura grega existe isso. O mesmo mito era contado por trs dramaturgos: Esquilo, Sfocles e Eurpedes. O mesmo mito, a mesma histria, contada de formas completamente diferentes e despertando emoes diferentes. sempre possvel existir um novo Tolkien, com o mesmo sucesso, porque sempre vai haver um olhar novo. E isso que a originalidade. Platia (Felipe): Fiquei meio curioso com o que a Snia falou sobre a interveno do Lus Roberto Mee. Tive a mesma impresso. Ele apresentou a forma como descrever uma aventura, bolar uma fico. Achei
muito simples. como se houvesse uma receita; pega-se um heri que est cheio de problemas e a a histria toda vai ser esse heri tentando resolver esses problemas. E, na maioria das vezes, ele vitorioso em todas as resolues. Acho que no existe, pelo menos na minha opinio particular, uma receita para se escrever alguma coisa. Cada pessoa vai tentar escrever aquilo da maneira que achar melhor. Assim como algum aqui falou: "O Star Wars uma coisa s". Outra pessoa falou: "No, no Star Wars so trs filmes com incio, meio e fim. Comea com um heri que tem uma srie de problemas. O heri tem que resolver os problemas e termina tudo muito bem. E assim que termina sempre uma histria. A vem o terceiro filme". Quer dizer, no bem assim porque, para quem viu a trilogia, o segundo filme catstrofe em cima de catstrofe. Um dos heris, o Intrpido, congelado. O outro, o ator principal, que o Luke Skywalker, perde a mo, fica com uma mo mecnica. O incio do terceiro filme uma tentativa deles resolverem todos os problemas que ficaram para trs. De certa forma, essa questo de ter que ser um heri uma coisa que est sendo mudada. A maior parte dos livros e das fices antigas composta por heris. Isso uma coisa que est mudando. Eu jogo pouco RPG, mas um RPG que me interessou em particular foi Vampiro. Exatamente porque o personagem principal no necessariamente tem que ser um heri. Exatamente aquele, que era o bicho-papo em todas as outras histrias, era o mal. A trabalha-se em cima disso e cria-se um outro personagem. Acho que isso uma coisa que est acontecendo. As pessoas esto acabando com essa histria de quem o mocinho, de quem o heri. As pessoas esto incorporando mais esses anti-heris. De certa forma, para construir outras sagas ou mesmo para trabalhar em cima de sagas como foi a de O imprio contra-ataca. Existe uma verso de jogos que completamente o inverso. Tem-se de ser os caas-do-mal, do imprio e tem que chegar l e tentar detonar. O negcio ficou to incorporado que - todo jogo de computador tem uma senha - os "pirateadores" fizeram um arquivo no computador com essa senha que no final dizia assim: "Morte ao Luke Skywalker". Quer dizer, o cara que pirateou esse jogo j incorporou esse esprito que ser contra o lourinho de olhos verdes. H coisa mais feia do que os personagens do Imprio contra-atacai No final, quando o Darth Vader tira a mscara, um velho cheio de pereba na cabea, respirao difcil. E a mesma coisa, o
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imperador era um velhinho corcunda e acho que isso que era interessante. No li o Trevaterra, mas o Lus Roberto Mee pegou uma lenda indgena e fez a inverso da luz pela escurido. A, no sei se ele sabia - eu no conheo essa lenda -, mas mais ou menos o que a Snia Mota colocou, as lendas indgenas que conheo so exatamente ao contrrio. Havia uma ndia e um ndio. O ndio queria casar com a ndia e ela disse que s casaria com ele se ele trouxesse a noite. Ela respondeu: "O meu pai, que mora bem longe, tem o segredo da noite". Ele manda trs servos buscarem a noite. Chegam l e um cara lhes d uma cabaa e eles voltam. S conheciam o dia. No meio da viagem, no se contm, abrem a cabaa e, de repente, fica tudo escuro. No que foi copiada. E exatamente o que Snia falou. A polmica que quero jogar aqui a seguinte: eu conheci uma lenda. Havia duas incgnitas que, supostamente, os vikings no conheciam: o medo e o sol. Uma feiticeira chega para um determinado grupo de marinheiros e fala: "Se vocs forem para tal lugar, vo encontrar o dia e vocs tm de trazer o dia de volta." E eles, atravs de um caminho, vo parar em uma terra onde o dia era abundante. Vo retornar para a terra deles com o dia. Isto, de certa forma, uma fico, uma lenda, que trabalha sobre um acontecimento possvel, que era o caso dos vikings terem conseguido encontrar um caminho atravs da Islndia, da Groenlndia e chegado Amrica do Norte. Isto vai contra tudo aquilo que estudamos no colgio: nos disseram que o primeiro europeu a pisar na Amrica foi Colombo. E aquele "lance" da Emlia: tudo aquilo que est no livro, est na histria, uma verdade. Para voc ir contra essa verdade um negcio meio complicado. Platia (Henrique): Eu ia tocar em trs pontos. Ia falar sobre a lenda, mas o meu amigo j me poupou saliva, j explicou. Outra coisa que tambm ele tocou, foi sobre o fato do heri ser o vilo. O protagonista da histria ser o vilo. Eu jogo muitas aventuras com super-heris, fico cientfica. Eu prefiro jogar como vilo, porque mais emocionante criar o problema do que tentar resolver. O vilo tem muito mais trabalho para bolar uma engenhoca, bolar todo um plano e o mocinho s tem o trabalho de ir l e desfazer. No caso do vilo, o roteiro justamente o contrrio. O vilo vai criar um problema e um final no feliz, geralmente, ou um final feliz, se der sorte. O terceiro ponto que eu quero tocar aquela interveno que o Lus Roberto Mee falou de um mago. Sempre tem
algum ser divino, um mago, um deus que ajuda o heri a fazer a misso dele. Eu queria saber a opinio dele, at dos trs se for possvel: porque esses magos, esses deuses, j no fazem o prprio servio? Se eles tm poder para ajudar o "cara", porque eles mesmos no o fazem? Lus Roberto Mee: Achei interessante a histria dos ndios que no foram buscar o dia, foram buscar a noite. Eu estava dizendo para ele: nada se cria, tudo se copia. Mesmo que no se saiba, pode-se estar tendo uma idia que algum j teve antes. Sobre aquela pergunta inicial de como seria possvel se criar mais alguma histria, uma vez que existe um padro determinado. Ser que j no escreveram as histrias todas? Certamente no. H um paralelo grande com o que a Snia Mota estava dizendo. Isso de se jogar do lado do bandido. Enquanto a trajetria do heri a de resolver problema, a trajetria do bandido a de criar problema e quanto pior terminar, melhor. Existem as tragdias gregas baseadas no mesmo fato, contadas por autores diferentes, com pontos de vista diferentes. De cada verso do fato, vai-se achar que o bandido diferente. Snia Mota: H uma coisa que eu, antes de responder pergunta feita, vou comentar sobre o que o Mee estava dizendo. Eu adoro o livro do Mee, Trevaterra, o mximo. Ele fez um trabalho muito atraente e serssimo, mas se o Mee falar de novo que nada se cria, tudo se copia, vou brigar com ele. Vai ser um escndalo, mas eu acho que tudo se cria. Acredito que o Mee est usando uma fora de expresso. Tudo se cria porque, na verdade, as histrias so as mesmas, o estoque de histrias pode ser limitado, mas voc cria maneiras de contar de formas diferentes. No existe cpia, tudo se renova. Se renova, uma outra histria. Quem tem um repertrio muito grande percebe rpido, como foi lembrado aqui sobre a lenda de buscar a noite. O Mee est repetindo o ditado popular, apesar dele ser autor. Lus Roberto Mee: claro que quando eu digo que tudo se copia uma aproximao grosseira da coisa. Eu estou dizendo isso pelo seguinte: estou revisando o segundo livro dessa saga, chamado Crnica da grande guerra. Est dando um trabalho danado, uma coisa infernal. Logo quando digo: "Ah, bobagem, nada se cria tudo se copia" uma aproximao grosseira. D um trabalho danado. Na verdade como se voc pegasse o esqueleto de um edifcio e aproveitasse esse edifcio para fazer um outro edifcio em estilo gtico, renascentista ou moderno, que so todos edifcios
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diferentes. O aproveitamento que voc faz das paredes, dos espaos tudo diferente. De igual, na verdade, eles s tm a estrutura. Snia Mota: Respondendo pergunta que o Henrique fez: "Por que os deuses no resolvem tudo?" Toda a fico, quer ela seja de fantasia, de terror, futurista, precisa manter uma relao com o real porque se no ningum l, ningum ouve, ningum assiste e ningum joga, porque fica uma coisa incompreensvel. E a questo que, por mais que algum tenha f, todo mundo sabe, at as crianas bem pequenas, que os deuses no resolvem tudo. As pessoas sabem disso. No adianta voc estar sem nenhum dinheiro, desesperado para surgir um deus e resolver toda a sua vida. As pessoas sabem que o sofrimento existe. No possvel criar uma fico sem este dado, porque ela se torna inverossmil. Eu acho que a razo pela qual precisa se manter a ao humana porque isso reconhecido pelas pessoas que vo usufruir da fico. Cludia Moraes: Eu acho que a gente precisa de intermedirios, que so os magos. O que eles tm de diferente? O que um mago? Uma mago um "cara" que est prximo da gente, humano, porque ele tem mil fraquezas e, em geral, pode morrer. No Tolkien, at h magos que morrem. Eles tm fraquezas que vo sucumbindo. O mago um intermedirio. No se consegue, como humano, falar com um deus direto. Voc precisa de algum que fique como intermedirio. E, at agora a melhor figura que a fico conseguiu criar e que todo mundo gosta, a do mago. Eles nunca so fortes fisicamente. Reparando a figura de um mago se observa que uma figura que estuda muito. Est sempre cheio de livros. Acho interessantssimo observar-se em vrios livros desse tipo a figura do mago. Ele o especialista, o "cara" que sabe mais. Muitas vezes sabe o futuro e geralmente conhece muito bem o passado. Ele sabe intervir no futuro. Uma coisa: Deus conhece tudo. Ento voc pegar um personagem deus no tem a menor graa. Ele no vai ter que fazer o menor esforo para saber o que vai acontecer e o que no vai. A voc cria um deus completamente bobo. Se voc tiver um deus para resolver os teus problemas voc no faz aventura nenhuma. Voc fica ali parado, chama o Deus e a ele resolve. E o negcio da f que Snia estava falando, se voc tiver uma f total, voc perde a liberdade. O mago, em geral, quando ele est do lado do bem, ele o defensor da liberdade. No Tolkien, o Gandalfi o ltimo defensor da
liberdade. Pode acontecer tudo, mas ele vai sempre defender a liberdade. Platia (Victor): Essa pergunta mais voltada para a Cludia, pois diz respeito ao Tolkien. Sempre que eu leio ou as vezes que eu li a trilogia, em especial, me deparo com um detalhe interessante. Relaciono muito a questo do anel com a questo do poder e obviamente ele no teve nenhuma inteno poltica, nada por trs, como voc j mencionou. Para voc que tem muito conhecimento sobre isso, qual foi a viso do Tolkien exatamente nesse sentido? O anel e o poder, qual era a viso dele para a questo do poder? Se voc puder falar alguma coisa sobre isso eu agradeceria. Cludia Moraes: Do que eu li sobre o assunto, o anel foi a nica forma do Tolkien conseguir achar alguma coisa no Hobbit que pudesse continuar uma histria. Ele leu e releu o Hobbit vrias vezes e no conseguiu pegar um personagem e crescer a partir dali. O Bilbo no tinha mais futuro. O Aragorn no era o que ele queria e o anel era. Ele no explicou exatamente o anel no Hobbit era apenas um achado. Ele acha que fica invisvel e volta com o anel para casa. E uma riqueza que ele conseguiu. Ele pega o anel e comea a trilogia com a frase do anel. O anel seria a criao do mundo para ele. O poder do mal tinha forjado e roubado dos elfos e dos anes os outros anis e esse anel era o Um. Ento era o poder em si. Ele dominaria todos os outros e era um anel dado como perdido e que, de repente, reaparece para o mal. Quem queria o anel? Era o mal. Eu no concordo completamente com as anlises que fizeram sobre isso, mas tambm no consigo descobrir uma outra razo. Fao a mesma pergunta que voc fez. Era o poder, com certeza. Agora, qual era o poder? O anel para o Asimov, por exemplo, a tecnologia. Tudo o que era contra a ecologia para o Tolkien era a tecnologia. Ele era contra a televiso, o automvel. incrvel voc imaginar uma pessoa no sculo XX que fosse assim. Mas o anel era isso. Ele achava que o mundo deixaria de ser o mundo quando a tecnologia avanasse. Para ele, o contrrio de lugares verdes e aprazveis eram chamins produzindo fumaa para todos os lados. E o anel era isso. Ele queria ter isso porque impossvel algum viver no sculo XX e no querer ter alguma coisa da tecnologia. E uma coisa inevitvel. Ao mesmo tempo voc querer isso era querer destruir o mundo. Platia (Victor): O Tolkien especifica muito bem o que o mal. Ele separa muito bem o que o bem e o que o mal. Colocando isso de lado,
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eu reparo muito na recusa dos personagens que so do bem em assumir o prprio poder. Eu tenho uma leitura sobre isso interessante, porque eu vejo que eles colocam o poder inclusive como uma coisa maligna. Fora o lado mal, que a a gente coloca de lado, que o nico que quer o anel. Todos que esto do lado do bem recusam, eles no querem o poder. Se for algo intrnseco, se for uma coisa sem querer, muito interessante essa recusa do poder como poltica. Cludia Moraes: Mas o que essa recusa? E a recusa do desejo. Eles tm medo de colocar o anel. Isso no Silmarillion voc v bem. Eles colocando o anel. Eles vo desejar mais do que eles podem ou do que eles controlam. Para serem pessoas controladas e que no tm uma ambio desmedida, eles no podem aspirar ao poder. Platia (Flvio Peanha): Estava querendo dizer o seguinte: acrescentando o que a Snia Mota colocou sobre o Monteiro Lobato, que ele trabalhou histrias interativamente, antes dos livros dele existiu um outro livro, o poema A divina comdia. E, de certa forma, um livro bem interativo e super representativo. Mostra um sonho de Dante em que ele visita o inferno, o purgatrio e o paraso e conversa com vrias personalidades. E isso, de certa forma, o remete ao passado e ele reconhece algumas personalidades da Itlia e de vrios outros lugares. E uma coisa bem ao modo doRPG. Snia Mota: Concordo inteiramente com voc. Ns colocamos no CD-ROM "RPG e Arte" um fragmento da Divina comdia por causa disso, porque existe essa interao. Platia (Flvio Peanha): E tambm interessante citar um livro que caracteriza bem o trabalho de Tolkien e me parece uma referncia: o Marabaratha. Muito daquele realismo fantstico foi tirado desse livro que, inclusive, no s pode ser reconhecido como livro de fico, um livro que fundamenta toda a religio hindu. Eu fao qumica e, de acordo com a lei de Lavoisier, acho que nada se cria, nem nada se copia, tudo se transforma. Platia (Maurcio): Eu quero fazer um comentrio sobre fantasia em geral, pegando mais para essa pergunta que o Lus Roberto Mee fez sobre o que a fantasia. Quando comecei a jogar RPG, no gostava de fantasia. Fui um dos poucos que s jogava no presente. Mas depois, comeando a jogar, mudei um pouco de idia. E como j foi colocado aqui por algumas pessoas: quando voc vai assistir a um filme de fantasia ou ler um conto
de fadas, voc entra em um acordo. No da mesma forma que assistir a um documentrio. Se voc vai jogar com um drago, um vampiro, tudo mais permitido. Voc voa muito mais alto, coloca muito mais criatividade na histria. Se um personagem de RPG pega um nibus, a gente sabe que no vai ser um nibus qualquer. Aquela velhinha que est no ltimo banco fazendo tric, trata-se de uma espi que vai deixar cair documentos secretos na pasta do personagem. O motorista uma ameba mutante aliengena. Enfim, vai ter alguma coisa. O nibus vai ser seqestrado por um disco voador. Eu acho que faz parte do jogo. Voc no pode separar RPG de fantasia. Algum pode dizer que fuga da realidade. Tambm no acho que seja por a. Acho que vrios autores, que trabalharam com fantasia, desde Homero at Monteiro Lobato, tinham muita coisa a dizer, so histrias muito bonitas, que passam alguma coisa assim como o Sandman. Deve haver muitos fs dele aqui. E acho que fantasia no s drago, no s feitiaria. Muitas sries de fico cientfica como Jornada nas estrelas e talvez um pouco Guerra nas estrelas tenham muita coisa de fantasia e assim como filmes de terror tambm. No toa que esses gneros so os preferidos dos jogadores de RPG, porque so nesses que voc pode ir mais longe e acho que o grande barato do RPG voc criar o seu universo, o seu mundo de sonhos, seu mundo de fantasia e, falando sobre esse negcio de nada se cria tudo se transforma, eu acho que o Mark Rein Hagen, o criador do Vampiro tem uma frase tima. Ele diz que o que a gente chama de criatividade realmente a evoluo, porque voc vai pegar a idia de uma outra pessoa e vai dar uma nova viso sobre isso. Vai passar o seu modo de ver o mundo sobre isso. Vai passar o seu modo de ver o mundo para aquela idia. Platia (Daniel Braga): Estou com a camisa do Sandman, por falar nisso. Eu estava sentado ouvindo a palestra sobre o Monteiro Lobato e desde criana ouvi muito Monteiro Lobato e, de repente, passou a ser um negcio que ficou estocado na minha biblioteca, aquele negcio que eu no pegava mais. Mas agora, ouvindo, lembrei do tempo de criana e, de repente, passei a ver o Srio, a situao em que o Monteiro passava para a gente, at como um grande RPG, no qual a Dona Benta o game master. O que no deixa de ser, porque ela coloca a histria para as crianas e elas se imaginam l. Elas imaginam, inclusive, como elas ou como os seus personagens ficdonais - porque o Visconde a sabedoria,
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o Pedrinho a conscincia e a Emlia a danao. A Tia Nastcia a parte do medo. O Pedrinho um "cara" muito valente, a Narizinho tambm. Mas a Tia Nastcia aquele negcio de: "No, cruz credo!" Ela a incorporao do medo. Eles colocam a parte do medo nela e eu agora estava vendo e queria que voc comentasse isso. Porque tem histrias fantsticas, como a histria do mundo. Ela contando a histria do mundo que, no caso, no um negcio to interativo. Ela conta e as crianas participam com perguntas: "Como isso?" Os doze trabalhos de Hrcules eu acho um negcio fantstico. O cara pegar um mito, reler esse mito... A primeira caracterstica que ele d ao Hrcules que ele um "cara" duro como pedra, mas de corao de banana. O cara que via um negcio e chorava. Eu acho fantstico isso. Eu queria que Snia tentasse fazer essa comparao do RPG com o mundo de Monteiro Lobato, que eu acho perfeito. Platia (Marco): Cludia, muito obrigado. Infelizmente eu cheguei a tempo s para a sua palestra. Perdi as outras duas, mas estou aqui babando com a palestra que voc deu sobre o Tolkien. Eu queria comentar trs coisinhas. Uma, sem querer ser PSD mineiro, conciliador demais, sobre essa histria do ou tudo se cria ou nada se cria, tudo se copia. Eu acho que so dois pontos de vista absolutamente complementares em qualquer criao. Por um lado, se eu fao uma coisa sempre baseada, obviamente, nas experincias, no que a gente j ouviu, no que se armazenou no inconsciente. Por um lado, a gente sempre no est trazendo nada que nunca foi dito. E como aquela histria do Salomo, "nada de novo embaixo do sol". Por outro lado, tudo que se escreve absolutamente novo, completamente novo. Sem querer ser PSD demais, eu acho que as duas coisas andam sempre lado a lado. Outra questo: quem foi que perguntou porque os magos no resolvem direto a situao? Os deuses? Eu achei essa pergunta um barato. Tem um livro que no sobre RPG, nem especificamente sobre contos fantsticos. um livro sobre yoga de um cara chamado Peter, que sensacional. E do mesmo ramo de yoga que eu pratico. Ele comea o livro com um papo que os RPGistas, eventuais ou no, esto cansados de conhecer que : qual seria a histria favorita da humanidade? Ns estamos cansados de saber que a histria favorita da humanidade inclui um heri, ou quase isso, um velho senhor mago, que d prendas mgicas a esse heri, perigos e mais perigos e um encontro ou
resoluo profunda no final, no qual o cara sai, apesar de todos os perigos, com os tesouros encontrados. Para muita gente, para esse autor e muitos outros isso tambm, como muita gente j falou aqui, o smbolo da nossa busca interior. Em vrias lendas chinesas, o heri o terceiro irmo, o irmo mais novo que simboliza a nossa pureza, a pureza com que voc se joga na busca dentro de voc mesmo e passa pelo seu autoconhedmento. As coisas que voc tem que ver at chegar a sua fonte amorosa ou, para os testas, seu contato com Deus. Bom, se o mago resolvesse toda a histria, no estaria simbolizada a nossa busca pelo heri, pelo irmo mais novo, como gostam os chineses. Ou, ento, so as coisas dos arqutipos tambm. Essa histria nos encanta tanto porque d tanta vontade de jogar essa histria tantas vezes, com tantas aparncias diferentes, cada uma mais bonita do que a outra. Eu conheo uma histria, que eu no queria discutir sobre isso, mas eu juro que verdade. Tenho testemunhas que eu poderia trazer aqui. Eu sou msico e o Walter, que o engenheiro de som que grava com a gente, tem uma irm e ela e o seu marido so quase to fs do Tolkien quanto a Cludia. A eles piraram depois que eles viram O senhor dos anis e leram os apndices todos e comearam a estudar a lngua que o Tolkien esboa. Eles me disseram que ela tinha a ver com o finlands. Eu queria perguntar isso para a Cludia. incrvel a coerncia com que ele coloca lingisticamente o trabalho dele. O casal comeou a trocar bilhetinhos s nessas lnguas lficas. Depois eles comearam a falar em casa s nessas lnguas o tempo todo. Tudo que eles falavam sozinhos era na lngua lfica. A, o que aconteceu - eu estou falando como um papo pitoresco, sem discusso a respeito - eles ficaram aterrorizados porque comearam a ver coisas. Eles tm uma experincia de vises de seres que eles no queriam ver. Ficaram aterrorizados e pararam com a brincadeira. Hoje ele s fala em portugus. A Cludia comentou, e eu no sei se entendi bem, que o Tolkien s vezes se colocava como se ele fosse um canal ou algo assim. E, de fato, a gente lendo a perfeio quase absurda como ele detalha o universo fsico, como voc disse, e as lnguas tambm. Se ele virasse e dissesse para voc: "Olha, eu sou mdium e recebi tudo", voc acreditaria? Porque o nvel de detalhamento da criao impressionante. Eu queria que voc dissesse para a gente se ele acreditava russo mesmo ou se fazia como gnero, como todo criador faz, um pouco de gnero, um pouco de histria.
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Platia (?): Eu queria fazer s um comentrio sobre esse assunto, que no rendeu tanto assim, sobre o que seria mais agradvel, o que dava mais jogo, se desenvolver um personagem mais louco da vida, mais voltado para o mal ou desenvolver um heri que luta pelo bem, puro. Eu no sei, tenho percebido sinceramente que o melhor no optar radicalmente por nenhum dos dois lados porque, na realidade, por mais que a gente tente voltar para o lado do bem, acredito que todo mundo acabe voltando, a gente sempre tem quedas. Se o seu personagem refletir isso, vai ficar muito mais real, porque nenhum personagem, por mais mau que seja, vai viver s fazendo loucuras, seno ele causa sua prpria destruio e nenhum personagem vai conseguir ser sempre o heri perfeito. Quanto mais prximo da fraqueza humana voc mantiver o seu personagem, mais interessante e mais possibilidade de jogo ele vai ter. At os heris brasileiros. Quem pegar a biografia de Lampio, o rei do Cangao, vai encontrar tantas verses, como a que ele luta pelos pobres e outras verses em que ele saqueador. Todo o personagem pode desenvolver tanto o lado de heri quanto o lado de vilo, sem que se escolha conscientemente se vai se fazer um grande vilo, que s vai criar problemas para os outros, ou se vai ser o heri que vai solucionar o problema de todo mundo. Acho que a melhor soluo tentar jogar esses dois lados porque no fundo, no fundo, a gente sempre vai jogar dos dois lados. Platia (Leonardo): Eu queria fazer um comentrio sobre esse lance do universo de Tolkien, onde o bem e o mal so bem definidos. Eu tambm andei conversando com os meus colegas sobre isso e discordo totalmente disso. Porque, a partir do comeo, da origem do mundo como no Silmarlion no existe o mal. O que existe a corrupo em torno do poder. Cludia Moraes: Eu vou responder primeiro ao Marcos. Eu arranjei um negcio do Tolkien Society na Inglaterra, que conta das reunies lingsticas onde so discutidas 16 lnguas, alm do finlands e de outras lnguas do mundo real. Eles se renem uma vez por ms para falar essas lnguas, para fazer exatamente o que voc disse. uma espcie de confraria. Agora, essa parte medinica, o Tolkien acreditava nisso. Ele usava a palavra quando ele via que alguma coisa estava incoerente no mundo dele. Ele no dizia que ia consertar. Ele dizia que ia descobrir o que estava errado. A postura dele como se ele tivesse procurando uma histria
real, um arquelogo achando alguma coisa que fosse real. Para ele, era absolutamente real o fato dele no estar criando. Achava que era o fato de algum bolando aquilo e ele s passava adiante. No ingls h as duas palavras: history e story. Ele dizia que a dele era a history e no era story. Ele era um historiador da saga dele. Agora, a resposta ao Henrique. No sou eu que penso assim sobre o bem e o mal. E o Tolkien que pensa. Ele, como um catlico dos mais fervorosos, achava que conhecia o bem e o mal. A gente no v, essa a grande crtica. O Saruman o personagem mais real de toda a saga do Tolkien porque quem cai. E esse negcio que voc colocou, at que ponto desejar o poder de Deus mal? Voc tem que ir alm e filosofar. A no Tolkien. Os anjos cados da gente, os demnios, isso o mal, voc querer mais? E o mal? O bem seria voc se contentar com o que voc tem? Eu acho que essa discusso uma longa discusso filosfica. Eu estou falando de bem e do mal no universo dele, no como um ponto de vista filosfico. Ele define, no interativo: o bem e o mal. O Saruman o que fica mais no meio disso. Os outros, como algum disse, no pegam no anel com medo de se corromperem. E o que essa corrupo? voc comear a desejar muito? Era o que eu estava respondendo do anel, quer dizer, qual o perigo do anel, na verdade? voc aumentar o seu desejo em um limite no supervel? Isso mal? Eu acho que eu no tenho como responder isso. Snia Mota: Eu li muito Monteiro Lobato quando era pequena, estudei Monteiro Lobato no mestrado e acho que por causa disso que propus ao Centro Cultural Banco do Brasil fazer esse projeto de "RPG e Arte". Deve ter sido a influncia do Lobato, aquela confiana extrema na juventude. Eu gostaria de indicar para vocs dois livros que eu acho muito interessantes para essa discusso, dentro dessa confiana que eu tenho na juventude e nos ficonistas de RPG. Um deles se chama Ptsescrito ao Nome da rosa, do Umberto Eco e o outro se chama Arte Potica, do Aristteles. Porque a gente discutiu muito se aqui se cria, ou copia, ou transforma. O Aristteles foi o primeiro autor na nossa cultura que tentou sistematizar como que as histrias so contadas. No s as histrias vm do mito como da cultura, do acervo de todo mundo. Elas tambm tm um processo. Acho interessante, para quem quiser, ler esses dois livros. uma experincia boa, vai ajudar a entender vrias coisas e acho
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que vai ajudar a mestrar melhor e a jogar melhor. Em relao a questo do Lobato, sua obra para crianas muito complexa, porque ela tem uma parte que interativa. Na verdade, no s para criana. E uma obra para a juventude, pois ele abriu mo da sociedade adulta, dos que estavam no poder. Ele tratava a juventude com mais respeito, tinha mais respeito pelos jovens do que pelos adultos. Ela tem uma parte que interativa e tem uma parte que de iniciao como A histria do mundo, A aritmtica da Emlia. Mesmo na parte de iniciao, existe muita interatividade, ele acreditava muito na importncia de interagir. Em Emlia no pas da gramtica, a Emlia viaja, conversa com conjuno, preposio. E uma coisa muito louca, pois nunca tinha sido pensado antes. Tem tudo a ver com RPG. Hoje, chego a acreditar que estudo RPG exatamente por causa do Lobato, ele me influenciou muito. Uma coisa importante no Lobato que ele muito prximo da fraqueza humana, nessa questo do bem e do mal dos personagens. A Tia Nastcia medrosa, mas ela muito sbia tambm. Ela tem a sabedoria popular. Quando ela raptada no final do livro O picapau amarelo, a Emlia, o Pedrinho e o Visconde vo ao orculo de Delfos e a resposta : "O trigo amansou o monstro dos pampas". Qualquer orculo enigmtico, nunca responde claramente as coisas. Quando eles chegam no labirinto do Minotauro para resgatar a Tia Nastcia, o monstro est obeso por causa dos bolinhos dela. Ela medrosa, mas to sbia que doma uma criatura terrvel pela boca. Eu escuto, s vezes, aqui nos debates, essa questo do bem e do mal. Eu queria ter mais tempo para comentar, inclusive o que o Marcos comentou do objetivo do heri. E citaram o Vampiro umas duas vezes e no foi s hoje, nos outros debates tambm. A Cludia citou um livro meu, Atentado, onde, segundo ela, no est claro o que o bem e o mal. Por acaso esse livro a histria de um game master. O protagonista um mestre de RPG, que "transa" bem com a fico. Talvez at em excesso, eu no sei. O que importa que, fora do conto maravilhoso, se a gente examinar muito bem examinado, o bem e o mal nunca esto to claros. Eu acho que todas as histrias, todos os enredos, tm uma certa mistura porque seno quem bom no faria besteira, por exemplo. O mago Ikrum de Trevaterra um "cara" que tem algumas caractersticas mesquinhas. um sujeito que no consegue dominar certas coisas da magia por falta de generosidade mesmo. Pelo menos, assim que eu li. Essas caractersticas tendem, em
uma histria mais densa, a ficar diminudas mesmo. Eu acho que o final feliz muda tambm. Ele no necessariamente a moa que casa com o prncipe encantado. O final feliz pode ser sobreviver a uma srie de adversidades. Quer dizer, a questo da busca interior e de enriquecimento interior. Dizer: "No, eu passei por isso, mas eu sobrevivi." Eu no sei se eu respondi a questo do Daniel. Lus Roberto Mee: Me parece que isso mesmo. Quando voc deixa muito claro o que o bem e o mal, a coisa fica um pouco ingnua. Pode ser que o final feliz seja simplesmente voc conseguir voltar para casa, que o que acontece em O senhor dos anis. A ltima frase do livro alguma coisa como: "Puxa, estou de volta em casa." Ou pode ser o casamento com o prncipe encantado ou uma coisa dessas. E uma soluo mais ou menos satisfatria para o enriquecimento interior. O padro do final feliz variado. Quanto mais difcil de determinar onde o mal termina - ou onde o bem termina - tanto mais complexa a histria e mais perto da realidade ela . Cludia Moraes: Quando a gente falou aqui no regresso do Tolkien, no exatamente um final feliz. o regresso do heri. E o regresso de todos, mas os bons vo embora. Os elfos vo embora. E como "ganhou, mas no levou". Voc tem essa sensao no final. O mundo no mais o mesmo. Todos os personagens j tm uma amargura que no tinham no incio da histria e perderam a inocncia. claramente um rito de passagem.
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FICO CIENTFICA: O FUTURO BATE NOSSA PORTA
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Eu sou leitor de fico cientfica h muitos anos e, nos ltimos 10 anos mais ou menos, comecei a trabalhar profissionalmente na rea. Em 1986 eu publiquei um livro pela Brasiliense na Coleo "Primeiros Passos", O que Fico Cientfica. Em 1989 publiquei em Portugal um livro de contos chamado A espinha dorsal da memria, pela Editorial Caminho e, em dezembro de 1994, publiquei pela Rocco um romance chamado A mquina voadora, que no fico cientfica, mas uma histria ambientada na poca medieval, na Pennsula Ibrica. Ele o primeiro livro de uma srie que eu estou planejando escrever, de vrias histrias, umas delas fantsticas, umas delas mainstream, outras de fico cientfica, ambientadas nesse mesmo universo imaginrio, que por volta do ano 1300, 1400 d . C , entre Portugal e a Espanha, no tempo em que aquilo estava ainda sob a dominao dos rabes. Entre outras coisas, o meu interesse pela fico cientfica - que comeou aos 9, 10 anos de idade - foi pelo fato de que a fico cientfica uma literatura da imaginao, e eu diria assim, da imaginao controlada. Isso foi uma definio que foi dada por um crtico norte-americano, h muitos anos, que eu acho uma definio muito boa. Se bem que a gente no pode querer que exista uma definio definitiva de qualquer coisa, principalmente de um gnero literrio. Por qu? Porque num gnero literrio, toda vez que voc escreve um livro novo, esse livro necessariamente introduz novos elementos que so elementos pessoais do autor. E todo um conjunto daquele gnero literrio tem que se rearranjar para dar lugar quele novo livro. Ento, cada obra que adicionada ao gnero contribui de alguma forma, pequena ou grande, para redefinir este gnero e para esticar, ampliar um pouco mais as fronteiras desse gnero. Definir uma coisa, seria limitar, passar uma linha e dizer: "Para dentro dessa linha , e para fora dessa linha no \ Isso uma atitude que existe muito dentro da comunidade de fico cientfica, no mundo inteiro,
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principalmente nos Estados Unidos, onde o mercado muito maior e as pessoas tm essa tendncia de dizer: "Mas isso aqui fico cientfica? fico cientfica, no . Tal livro , tal livro no . Esse livro tem elfos, ento no pode ser fico cientfica." A eu disse: "Sim, tem elfos, mas tem tambm espaonaves". "Ento, se tem espaonaves, fico cientfica." Isso uma discusso tipo o ovo e a galinha, que no vai acabar nunca. Na realidade, eu acho que se tem presentes duas coisas a. Primeiro, elementos de cincia, seja cincia conceituai - pode ser uma idia cientfica - seja uma mquina, no precisa ser um artefato, nem coisa nenhuma; mas uma idia, um conceito cientfico, que tenha uma importncia decisiva na transformao, na criao do ambiente da histria. E, segundo, se voc tem elementos fantsticos que pressuponham ou sugiram uma violao das leis naturais daquele universo que est sendo descrito, que a seria o elemento fantstico, a se tem meio caminho andado, ou quase todo o caminho andado para ter uma histria de fico cientfica. Existe muita gente que defende fico cientfica a partir da presena simplesmente da cincia ou da tecnologia. Ento, diz por que: "Olha, fico cientfica fico, tem que contar uma histria; cientfica, tem que ter uma relao com a cincia*. Esse termo fico cientfica um termo muito impreciso. Talvez o melhor termo para definir esse tipo em literatura fosse um termo que se usa em alemo, que um palavra enorme, impronuncivel mas que, traduzido para o portugus, significa "narrativa rientfico-fantstica". Eu acho que esse conceito cienttico-fantstico, juntando essas duas coisas numa palavra s, que d aquele atrito e a fagulha que gera as idias da fico cientfica. Se existe somente o elemento fantstico, o domnio o da fantasia. Se aparece somente o elemento cientfico, o domnio da literatura maimtream, da literatura voltada para a tecnologia, como o livro de Tom Wolfe, Os eleitos, que tem o filme tambm, sobre o projeto militar americano. Da mesma forma, se encontra livros como "Coma", "Transplante", Tomografia Computadorizada"... que se passam em hospitais, que tm roubo de rgos, que so histrias absolutamente baseadas em elementos cientficos e at com uma certa especulao cientfica. Mas eu no chamaria aquilo de fico cientfica, porque falta o outro elemento fantstico que para dar o atrito gerador de idias e de imaginao.
Um outro termo que eu acho muito melhor do que fico cientfica, em portugus, um termo que os italianos usam e que seria traduzido ao p da letra para o portugus como fantascincia, juntando numa palavra s fantasia e cincia. um termo muito interessante tambm. Esse tipo de literatura, em cada pas, designado por uma palavra bastante diferente e, no Brasil, pensamos que usamos o mesmo termo americano, mas o termo americano no seria cincia-fico, e sim sentific fiaion. Eu gosto de ver na fico cientfica a proposta de juntar o elemento fantstico com o elemento rigoroso. Por isso que eu falei antes de literatura da imaginao controlada. Temos um exemplo parecido com a fico cientfica na obra do Tolkien, que era um grande poeta, um grande imaginador de criaturas, um grande imaginador de histrias, um grande contador de histrias. Poeta, inclusive, no sentido do trato com a palavra. As palavras dele, as palavras que ele cria, os nomes de pessoas, os nomes de lugares, de criaturas e tudo mais, so to carregados de poesia quanto os de Guimares Rosa aqui no Brasil, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, ele era um cientista. No um cientista no sentido convencional que constri espaonaves ou computadores. Ele era um cientista da lngua, era um fillogo, um pesquisador de lnguas. Ele tinha uma formao cientfica, tinha uma formao classificatria, definidora. Ele tinha aquele trabalho de pegar vrios exemplos conflitantes de um fenmeno qualquer, no caso fenmenos lingsticos, e ir estabelecendo como que aquelas lnguas antigas, medievais, eram faladas, como era a sintaxe, como era a pronncia, como era a criao de palavras, como era a articulao do discurso e assim por diante. Essa era a formao dele, era uma formao enciclopdica e organizadora. Ele foi quem, melhor do que ningum dentro da literatura de fantasia, soube juntar esses dois elementos. A obra do Tolkien uma gigantesca enciclopdia, onde tudo tem o seu lugar, tudo est coerentemente articulado com os outros elementos, a geografia, a histria, a linguagem, as lendas, os mitos e todas as histrias que se passavam com aqueles personagens, e as criaturas, os animais, os seres naturais ou sobrenaturais, e assim por diante. Tudo coerente, tudo tem uma posio e tudo est perpetuamente em movimento. Ele classificatrio, mas ele no chato. Ele enciclopdico, ele completo, mas ele no cansativo. Essa tentativa de criar universos uma coisa que s depois de um
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certo tempo veio acometer os escritores de fico cientfica no sculo XX. Observando-se a obra do Jlio Verne e a obra do H.G. Wells, no sculo passado, cada livro deles comeava com uma premissa completamente diferente. Ento, O homem invisvel, do Wells, conta uma histria que morre ali, fim, acabou-se. E assim em A mquina do tempo, em O alimento dos deuses, em A guerra dos mundos e assim por diante: cada livro daquele lana mo de um universo, de uma situao completamente diferente. sempre a Inglaterra, aquela Inglaterra tradicional, mas como se cada histria dessas tivesse ocorrido numa Inglaterra paralela, onde os outros eventos no tinham ocorrido. A mesma coisa se pode dizer da obra de Jlio Verne que, com raras excees, no repete o mesmo universo de obra para obra. A nica coisa que podia unir a presena do Capito Nemo em mais de uma histria. Acho que o Capito Nemo aparece, alm de em Vinte mil lguas submarinas, em A ilha misteriosa. No sei se em mais algum tambm, porque no li tudo, j que so mais de 500 livros. Talvez haja personagens e situaes que ainda se repitam. Eu no sei. Essa coisa de criar universos organizados, universos mltiplos, complexos e coerentes dentro da fico cientfica uma coisa recente, eu diria dos anos 40, 50 para c e isso comeou nos Estados Unidos. Mas, at indo mais atrs do Tolkien, eu diria que a primeira tentativa literria de criao de um universo coerente, de um universo interligado, foi A comdia humana, de Balzac, no sculo passado, que foi, por sua vez entre outros valores que tem, outros mritos que tem - a primeira vez em que ocorreu a possibilidade de algum juntar 30, 40, 50 romances diferentes, passados num mesmo ambiente - que era a Frana urbana e a Frana rural - e misturando personagens, personagens que apareciam no livro como meros figurantes ou coadjuvantes e que, 10 anos depois, surgiam como personagens principais de outra novela. E todas essas histrias se entrecruzando, e um pequeno episdio que era mencionado num livro acabava sendo, 15 anos depois, mencionado com maior relevncia num livro posterior. De certa forma, iluminando e revelando nuances daquele livro mais antigo e assim por diante. As pessoas comearam a ver que Balzac no era simplesmente um cara que publicava um romance, depois um segundo, depois um terceiro, um quarto romance, um quinto romance. Ele estava escrevendo um
gigantesco romance, o que a gente poderia chamar hoje de um hipertexto, que era publicado em seqncia, na base de um romance por ano, s vezes at mais, porque ele era um cara caudaloso, ele mesmo dizia assim: Passei anos da minha vida e s fazia trs coisas: dormir, comer e escrever." E ele dormia muito pouco. Dormia quatro horas por noite. Devia comer umas trs horas sem parar, porque ele era imenso, mas o resto do dia era dedicado a escrever. E esse hipertexto de Balzac foi sendo criado de uma maneira quase que intuitiva. Os bigrafos e os estudiosos de A comdia humana ressaltam tambm o fato de que, depois de vinte anos de iniciado o projeto, quando se ia reeditar e reimprimir alguns dos livros mais antigos de Balzac, ele corria para o editor e dizia: "No! Espera a, porque eu quero corrigir uma poro de coisas." Ento, ele comeava a trocar nomes de personagens, para colocar naqueles livros mais antigos um personagem que ele tinha inventado h pouco tempo e dar, assim, mais continuidade, mais coerncia, mais interligao s histrias que estavam sendo contadas. Ele era o terror dos editores, o terror dos tipgrafos, que tinham que pegar aquela coisa que estava toda composta e fazer um monte de correes, adendos, modificaes e, com todas essas modificaes que fazia, ele ia interligando cada vez mais as obras de A comdia humana. Foi um esforo, muitas vezes, no muito bem-sucedido, segundo alguns crticos, mas muito parecido com o que Isaac Asimov resolveu fazer nos ltimos anos de sua vida tentando unificar, dentro de um nico universo, as trs sries principais de sua obra literria, que era a srie do Imprio, da Fundao e a srie dos Robs. Foram trs sries que o Asimov comeou a escrever independentemente e, depois que ele chegou aos 65, 70 anos de idade, disse: "Que tal se eu fizesse como o Balzac e provasse aos leitores que todas essas coisas estavam acontecendo num mesmo universo?" Assim, ele comeou a rearticular os romances antigos e a escrever romances intermedirios que seriam uma espcie de pea de domin ligando o universo mais antigo ao universo mais recente. Ele fazia um romance que pegava l e largava aqui, fazendo esse opo de interligao. Isso uma coisa que, depois que o Balzac fez, muitos outros escritores comearam a fazer. Talvez ningum tenha feito. Mesmo agora no sculo XX, no me lembro de algum que tenha feito uma obra interh-
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gada dessa, uma quantidade de personagens, uma quantidade de livros, de pginas de texto que o Balzac fez, que era uma coisa realmente impressionante. Se algum dissesse que aquilo foi uma obra de uma equipe de 4 ou 5 redatores j seria impressionante. Agora, um cara s fazer aquilo realmente d para acreditar at em fenmenos paranormais ou sei l o qu. A fico cientfica do sculo XX entrou nesse caminho porque havia a necessidade dos escritores de criar universos coerentes. Inventar universos, tirar um universo do nada, pois a literatura, invariavelmente, tira o seu texto do nada, por mais que ela se baseie, por mais que ela tenha a sua fonte de inspirao, por mais que ela at pretenda ser no fico cientfica ou fantasia, mas literatura realista. At um Erico Verssimo, um Machado de Assis, um Jorge Amado, um Rubem Fonseca, tira as suas histrias do nada. Na medida em que ele sente aquele impulso de contar uma histria, de colocar personagens em ao, esses personagens interagindo. Existe uma demanda qualquer em que esses personagens esto se engajando para chegar at um final de algum tipo de aventura ou algum tipo de conflito, ou seja l o que for. Na medida em que o escritor comea a contar essa histria, a ele tem que dizer aonde aquilo est acontecendo, em que tempo foi, como as personagens se deslocavam de uma casa para outra, de uma cidade para outra, o que eles comiam, como se vestiam, como era a casa deles e tudo mais. Por uma questo at de comodidade, a maioria dos escritores opta por aquilo que a gente diz a "chave realista da narrativa". Que o qu? No inventa nada, diz tudo que precisa usar num livro e abre a janela e tira do mundo l de fora. O sujeito mora aonde? Mora num apartamento em Copacabana, dorme numa cama, assiste a TV, fala pelo telefone. E quando ele vai para So Paulo, pega um nibus da Itapemirim ou pega a ponte-area ou, se ele tiver automvel, enche o tanque de gasolina e vai para So Paulo. O autor realista justamente porque toma a realidade como um dado em comum entre ele e os leitores, se dispensa de inventar todas essas coisas e inventa apenas os personagens e a histria. O autor de fico cientfica, como o autor de fantasia tambm, se sente na obrigao moral de fazer um pouco mais, de inventar um universo, de propor um universo, pois ele sabe que, para certos tipos de leitores - que somos ns que estamos aqui reunidos - isso excitante.
Conhecer um universo novo, onde as pessoas possam ir de nibus da Itapemirim daqui para So Paulo, mas se o cara no tem dinheiro para o nibus existe um sistema de diligncias que leva um dia e meio para chegar em So Paulo, mas so diligncias puxadas a cavalo e assim por diante. E essas diligncias, suponhamos, poderiam coexistir com o sistema de nibus, assim como os avies coexistem com os nibus. Se o escritor se sente levado a incluir novos elementos, a nica obrigao que tem fazer com que esses elementos sejam coerentes no com a realidade de fora, mas com a realidade que ele est contando no espao restrito do seu livro, porque ele que est dando as cartas. Quando uma histria comea, a gente est numa escurido total. Suponhamos que eu citando Balzac, algum vai na livraria e diz: "Me d um livro qualquer da Comdia humana". Esse algum leva para casa sem saber a histria daquele livro. Abre o livro e encontra: Captulo I - "Passava da meia noite e o eco da batida dos relgios de Paris ainda se dissipava na escurido quando - num sobrado que ficava numa esquina ainda mida pela chuva que acabara de cair - abre-se uma janela e uma pessoa aparece. Essa pessoa olha para um lado e para o outro, depois d um assobio e dois vultos embuados surgem do meio de uns arbustos e encaminham-se para o porto. Aquela figura joga um molho de chaves, os embuados abrem o porto, fecham e entram". Todo leitor tem o seu cinema privado dentro da cabea. A medida que lemos, visualizamos isso de alguma forma. Por exemplo, se uma pessoa apareceu na janela, o leitor v aquele vulto mais ou menos indistinto, porque eu estou narrando de uma maneira cinematogrfica, afastado, como se a cmera estivesse longe. Mas eu posso dizer tambm: Captulo I: "Estava janela, era noite e os sinos da igreja tinham acabado de tocar. O suor, denotando grande nervosismo, corria pelo seu rosto e havia um tic nervoso na sua face, denotando grande tenso." O leitor est visualizando uma pessoa com o rosto suado, com um tic nervoso, mas eu ainda nem disse se um homem ou uma mulher. Est visualizando uma pessoa, mas no est visualizando totalmente uma pessoa. uma imagem indiferenciada, onde se consegue enxergar o suor, o tic nervoso mas no se sabe se um homem barbado de 70 anos ou se uma garotinha com 18 anos, com as faces louas, para utilizar uma linguagem balzaquiana. A gente imagina sempre dentro de um limite. Vamos at o derra-
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deiro limite do que o autor nos prope. E, no momento em que o autor pe mais uma carta na mesa, a gente d um salto para frente e imagina mais um pouco. Porque se, depois dessa frase do tic nervoso, diz assim: "Ele afastou-se para dentro, cofiou a barba pegajosa de cerveja e gritou: 'Com mil diabos, taverneira! Traz-me mais um copo de vinho!'"... eu j modifiquei completamente a situao inicial, o leitor j sabe que era um cara que estava bebendo, que tinha uma barba, etc. A literatura sempre um universo onde o leitor entra no escuro e o autor vai levando-o pela mo e vai dizendo: "Pise aqui, agora tem isso, etc." Mas ns leitores, lendo Jorge Amado, Machado de Assis - no importa quem - sabemos nica e exclusivamente o que o autor nos informa e o que ele nos permite inferir ou deduzir, a partir da coerncia do que ele nos diz. Ao comear a ler um livro de Rubens Fonseca, ambientado no Rio de Janeiro de hoje, o leitor sabe que no vo aparecer elfos, nem aliengenas, nem amebas mutantes como disseram um dia desses. Existe um cdigo que o autor vai estabelecendo. Claro que nem tudo to rigoroso assim. Quando voc compra um Jorge Amado, j se sabe quem ele . Ou ento Umberto Eco. J se sabe o que ele escreve. Mas ao ler um autor que nunca foi lido antes, o leitor comea rigorosamente no escuro e esse escritor vai levando pela mo. Existe um compromisso de tica literria da parte do autor que diz assim: "No coloque pistas falsas na cabea do leitor". A no ser que seja para proporcionar-lhe mais adiante uma surpresa que seja extremamente gratificante do ponto de vista literrio. Existem, inclusive, gneros literrios onde enganar ou fraudar o leitor a regra principal do jogo: justamente o romance policial, onde voc joga com o leitor, dizendo: "Voc no vai adivinhar quem foi". E o caso de Agatha Cristhie, entre outros. O leitor desconfia de todas as personagens e quando Agatha Cristhie revela quem o criminoso a reao : "Eu pensei nessa moa, mas era to improvvel". Esse jogo de fraudar o leitor uma fraude prazerosa e gratificante que faz parte do jogo da literatura policial. a fraude por competncia, quando o autor consegue enganar o leitor e provar com isso sua competncia. No aquela fraude onde o autor, para mascarar a sua incompetncia, a sua incapacidade de resolver uma situao complicada diz: "E ento houve um terremoto e morreram todas as pessoas daquela ilha". E assim encerra, corta o n, ao invs de desat-lo.
A coerncia interna, que sempre tem que existir em termos de narrativa, precisa existir em tudo isso que narrado, em todo esse universo que o escritor de fico cientfica prope. Porque muitas vezes um planeta diferente, ou a nossa prpria terra, mas no ano 5000. Muitas vezes o Rio de Janeiro, mas no ano 2010. E se eu vou escrever uma histria sobre o Rio de Janeiro no ano 2010, claro que no direi assim: "Os sistemas de esgoto da cidade funcionavam maravilhosamente, no havia problema de trnsito, a moeda estava valorizada, no havia mais bandidos nos morros, nem os morros tinham sido todos aplainados." No simplesmente resolver os problemas e resolver na utopia. Se algum quer fazer essas histrias que chamamos de near future, "futuro prximo", s pegar a confuso, pr uns 20 problemas ali dentro e ver no que vai dar, porque a histria no faz outra coisa, a histria real nos d muito poucas solues e, na verdade, o que ela faz adicionar mais problemas. Algum perguntou a um escritor de fico cientfica certa vez: "Por que que todos os seus livros so ambientados num mesmo universo?" Ele disse: " muito difcil voc criar um universo, voc tem que pensar o planeta, a vegetao, a zoologia, a fora de gravidade, os efeitos, etc." Disse ainda: "Voc faz um trabalho de pesquisa to grande, se desgasta tanto e, s vezes, tudo isso para escrever um romance de 200 pginas. A, no prximo romance, voc faz tudo aquilo, tira outro universo do nada para mais um romancezinho de 200 pginas?... Espera a, eu vou escrever um romance de 600 pginas, que o que todos eles esto fazendo. E aquele planeta que eu inventei h 10 anos, por que no aproveitar tudo aquilo e desenvolver mais um pouco?" Realmente, para um escritor srio, ele se sente um pouco na obrigao de criar universos coerentes e depois fazer jus quele imenso esforo de pesquisa, criao e coerncia que ele teve que articular. Todos esses universos - como Heinlein e sua Histria do futuro. Ele foi um dos primeiros escritores deficocientfica que criou uma cronologia que tinha: ano 2000, 2010, 2050, 2100, 2200, a marcha da conquista do sistema solar de outros planetas, em tal ano chegaremos a Marte, a Vnus, etc, as invenes tecnolgicas do dia-a-dia, os personagens, nascimento e morte dos personagens do livro, criou uma carta, um mapa gigantesco, muito nesse clima do Tolkien. Vrios escritores comearam a usar esse modelo. A Ursula Le Guin, outra grande escritora que publicou aqui no
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Brasil Os despossuidos, A mo esquerda da escurido e outros livros maravilhosos, fez uma coisa interessante. Cada livro dela se passa num planeta completamente diferente dos demais, mas existe um background comum para todos eles. E uma raa aliengena, antropomrfica, que tem basicamente e geneticamente a mesma forma que a nossa raa e, num determinado momento de sua evoluo, viajou pela galxia escolhendo planetas que tinham condies propcias e colocando l ncleos de colonizao para que humanidades, fisicamente iguais a ns, se desenvolvessem em planetas diferentes. Como isso se deu de forma independente em cada planeta, em cada um existe uma humanidade diferente at biologicamente, sem dvida alguma, socialmente, culturalmente, etc. Cada livro da Ursula Le Guin se passa num planeta diferente, mas todos eles tm essa coerncia. Ou seja, so resultado de um experimento de fecundao galtica ou colonizao galtica, atravs de ncleos, "Ados e Evas" que so deixados em cada planeta. Essa tentativa de fazer universos coerentes no elimina, de forma alguma, a presena da fantasia, do elemento fantstico, do elemento de imaginao puro e simples, que o mais interessante, eu acho. A fico cientfica no deve se limitar a ser um realismo futurista, ou seja, pegarmos a realidade como ns a entendemos hoje em 1995 e dizer que no ano 2050 as pessoas entendero a realidade da mesma maneira que entendemos hoje. Eu tenho a impresso de que daqui a 5 anos, 10 anos, 6 meses, pode haver uma revoluo conceituai absoluta dentro do nosso conceito e as leis fsicas, como a gente as entendia at ento, comearo a no valer mais. Comeamos a ver que no era isso que a interpretvamos. Existem vrios escritores de fico cientfica que dizem assim: "A fico cientfica no pode romper as leis naturais como a cincia as define hoje." Mas a cincia, daqui a 10 anos, pode definir essas leis naturais, essas leis da fsica, da qumica, biologia, de uma forma completamente diferente. Logo, cabe ao autor imaginar o seu prprio universo. Desses universos, o que surgiu mais recentemente e um dos mais fascinantes foi o universo cyberpunk, porque ele prope exatamente a criao de um near future, um futuro prximo, que muitas vezes sequer os autores do uma data, mas onde o ser humano, atravs da informtica, da eletrnica e de outros recursos, capaz de criar um universo paralelo. Mas que no mais aquele universo paralelo do Philip K. Dick, que fica
interferindo na vida real dos personagens, ou pelo qual os personagens so subitamente transportados em funo de um problema qualquer: uma exploso nuclear, uma ruptura do contnuo espao-tempo que a melhor coisa para se usar numa histria de fico cientfica. Ento, subitamente, ele est aqui e h uma exploso a do lado. Ele se v projetado no Rio de Janeiro em 1995, mas o presidente da repblica o ex-ministro Magri, por exemplo. um universo paralelo, bastante diferente do que a gente tem aqui. Eu comecei uma vez a escrever um pequeno conto de fico cientfica onde, de repente, um sujeito aparece na sala do outro e diz: "Como que vai o Brasil?" Resposta: "O Brasil vai bem." "E o Governo Tancredo t legal?" A, o sujeito do nosso universo diz Tancredo morreu, o presidente Fernando Collor". O cara desmaia e jamais passaria pela cabea dele que, alguns anos depois, o presidente no seria mais o Tancredo Neves, que teria morrido de uma maneira misteriosa, e seria, depois de Sarney, Fernando Collor de Mello. Ns vivemos em universos que seriam universos paralelos para algum. Simplesmente a nossa histria brasileira que, num determinado momento, se colocou diante de duas ou mais alternativas. A vida real, a cincia do mundo material, como a gente entende hoje, prova que, diante de duas ou mais alternativas, o nosso universo acaba colapsando na direo de apenas uma. Quando duas coisas auto-exclusivas se colocam, uma delas acontece e a outra deixa de acontecer. Mas ela poderia ter acontecido tambm, e nesse universo em que ns vivemos no ocorreu por um triz. Ns vivemos sempre num universo definido por um "triz" de inmeros fatores aleatrios que a gente no tem ainda uma psico-histria do Asimov para definir. No caso da histria cyberpunk, criou-se uma possibilidade de se penetrar em universos paralelos atravs do que chamamos de uma "alucinao consensual". Alucinao uma coisa que s uma pessoa v. Ns estamos aqui, no Seminrio "RPG & Arte" e, de repente, algum d um salto e comea a gritar: "Meu Deus, um drago, um drago entrou na sala!". Mesmo dentro de um ambiente de malucos como esse, algum vai dizer: "Meu Deus, esse cara t maluco, no tem drago nenhum aqui, que histria essa?" Alucinao uma coisa que somente uma pessoa v. Agora, se duas pessoas vem isso, se so duas pessoas, uma ali e a outra na outra ponta da sala, que diz: "Meu Deus eu estou vendo um drago
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verde, com asas cor-de-rosa". Ento, uma terceira diz: "Esses dois caras esto malucos. Que coisa essa?" Ou eles so irmos gmeos ou existe algo de estranho, porque ambos esto vendo a mesma coisa. Se metade desta platia comear a ver um drago verde com escamas cor-de-rosa e a outra metade no, a a gente vai ter que sentar, discutir, propor um consenso ou uma maioria, porque assim que se decide democraticamente as coisas. No mundo da cincia, a realidade definida tambm por uma questo de consenso ou maioria. Se algumas pessoas dizem que certas coisas existem e outras dizem que no, ento vale a voz da maioria. Inclusive, no s uma maioria numrica, a maioria qualificada. Se a Academia de Cincias de Estocolmo e se o Royal College No-sei-de-qu da Inglaterra dizem que o tomo existe, eles devem entender disso mais do que ns que somos pobres mortais. Logo, vamos acreditar no tomo, na fsica quntica e em todas essas coisas. No caso do universo cyberpunk, ns temos uma alucinao consensual, ou seja, simultaneamente experimentada por vrias pessoas atravs de recursos tecnolgicos. Dessa forma, os indivduos se plugam e entram naquele mundo da matriz, que um mundo criado pela informtica, e l dentro eles interagem. E isso - eu acho - no importam as histrias que ali se contam. Podem ser as mais diferentes do mundo, mais contraditrias, malucas se, na realidade, o universo do William Gibson uma coisa, o do Bruce Sterling outra, etc. Cada escritor pega caractersticas bsicas mais a principal. A raiz geradora desse universo cyberpunk a possibilidade de utilizar meios tecnolgicos, criados pela atual situao da informtica do planeta, para que pessoas possam entrar em universos coerentemente estruturados e experimentar ali dentro alucinaes consensuais, criar histrias ali dentro, interagir umas com as outras. Por isso, acho que esse universo cyberpunk, esse universo da mente no mundo das matrizes dos computadores, o prximo passo, talvez, para o RPG. Porque - como que os jogadores fazem? Se sentam numa sala em volta de uma mesa e comeam com mapas, cartas, livros, dados e fichas e outras coisas. Comeam a criar uma histria mas, por mais que seja um envolvimento emocional, intelectual com aquela histria, do ponto de vista sensorial, os jogadores esto vendo a velha e boa sala, ou o velho e bom quarto onde esto acostumados a se reunir, as velhas caras de sempre dos colegas, dos amigos, dos companheiros.
Eles tm ali uma alucinao intelectual, no uma alucinao sensorial, porque o que voc v e o que voc sente o que seu corpo est sentindo. Mas, no momento em que se coloca aquele capacete, atravs dos recursos propostos no universo da realidade virtual pelas histrias cyberpunk, e coloca aquelas luvas, eletrodos e sensores no corpo, o cara se pluga numa hiper Internet do ano 2100 e comea, junto com cinco pessoas - uma no Brasil, outra no Nepal, outra na Sucia, outra no Mxico e outra no Canad, que se encontram dentro de um universo que pode ser de Tolkien ou de Monteiro Lobato - a viverem l - cada uma num continente diferente - uma alucinao consensual que torna-se tambm no apenas uma alucinao intelectual. Ou seja, da mente, mas tambm uma alucinao sensorial. O sujeito vai sentir que caiu no rio, ele sente se a gua est fria ou morna, se ele d uma topada sente a dor no dedo, se ele leva uma flechada sente a flechada no brao, etc. E se ele morre, ele morre de verdade. Seria essa a nica sugesto que eu faria para os RPG do futuro: que no momento que o cara morresse, ele morresse de verdade, e a famlia teria que desplugar ele do capacete e mandar para a cmara de incinerao. Acho at que seria um elemento extremamente enriquecedor para a responsabilidade dos jogadores.
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PR-CONDIES IDEAIS DE SOBREVIVNCIA NO ADMIRVEL MUNDO NOVO MAURO DOS PRAZERES Editor
Fui honrado com o convite para vir a este seminrio conversar sobre o tema do futuro, e sobre como as qualidades pessoais desenvolvidas em sesses de RPG possam ser importantes no mundo do amanh. Para poder tentar falar sobre este assunto penso ser preciso, em primeiro lugar, perguntar que futuro este, ou descobrir como que se pode tentar enxergar o futuro. A primeira vez em que fui convidado para falar sobre este assunto, o futuro, foi em uma universidade paulista, no final dos anos 70. A palestra at que no foi ruim. Nas perguntas, porm, escorreguei. Minha especialidade poca era informtica, este era o tema, e um rapaz ento, questionou: "O senhor acredita que em breve ns possamos ter computadores capazes de vencer qualquer ser humano em jogos de xadrez"? Eu respondi: "Olhe, o crebro humano, a criatividade de nossa mente, uma coisa que o computador nunca ter. O computador pode ser rpido ao repetir operaes mecanicamente, mas ele no pode ser criativo. Os computadores j jogam xadrez, e vo vencer um sujeito que no sabe jogar bem, como eu, mas no penso que venham a vencer grandes mestres". Foi o que eu disse. Hoje em dia, para quem no sabe, existem apenas dois ou trs homens andando pelo planeta Terra capazes de vencer qualquer computador. Prev-se que esta situao no perdure por muito tempo. Novos computadores sero em breve capazes de vencer qualquer mortal. O erro mais comum em previses a linearidade. Costumamos imaginar o futuro como uma continuao direta dos eventos que consideramos importantes no presente. Um exemplo: meu pai, quando menino, morava aqui em Quintino. H 60 anos ele subiu a um morro para ver um Zepelim passar. Era um monstro, uma coisa extraordinria que voando, era capaz de atravessar o planeta inteiro. Trinta anos depois
eu que era menino, estava em Santos e vi o homem chegar Lua. Eram duas maravilhas simultneas: uma, ver o homem chegar Lua,- outra, era podermos ver o passo mais importante da histria ao vivo, no momento real em que acontecia. Foi a que errei sobre o futuro pela primeira vez. Pensei: meu pai e o Zepelim, eu e o homem na Lua. Dentro mais 30 anos, o homem dever estar chegando em outras estrelas, no mnimo j ter construdo cidades em Marte. A histria demonstra que no h nada mais escorregadio do que tentar prever o futuro. E um sujeito, que j errou antes, provavelmente continuar errando. Assim, o que recomendo, que no acreditem em nada do que ouvirem sobre o futuro, pelo menos, em nada do que eu diga. Vamos ento fingir que nossa conversa hoje uma espcie de RPG, uma estria. A realidade, quando vier certamente surpreender a todos ns. Quando tentamos olhar a frente no tempo a primeira impresso que vem de que as coisas mudam, de que sempre sobrevem novas tecnologias, modas e padres, novas morais e religies, de que vivemos num espaotempo instvel, onde no se pode saber o que vai acontecer nos prximos 5 minutos. impossvel falar ou pensar sobre o futuro? Ser? s vezes me pergunto: as coisas mudam tanto assim? Por acaso, ano passado, vivi uma experincia estranha. Uma empresa me convidou para uma feira na Europa e tive a oportunidade de estar pela primeira vez em Roma. Uma amiga me disse: "Olha, voc no pode sair de Roma sem conhecer o Panteon que um templo do tempo onde o cristianismo ainda no existia, um templo antigo". Eu, que no conhecia nada da Europa, menos ainda de Roma, cheguei l ao Panteon s 5 da tarde e encontrei a porta fechada. Era uma porta!... Fiquei pasmo... eram como 8 metros de altura! Fui me afastando daquilo e percebendo o edifcio por fora. Era enorme, gigantesco. No dormi aquela noite, pensando na idia que temos sobre as Cruzadas, a Inquisio e movimentos religiosos similares do passado. Me lembrei das mortes e da destruio, dos ataques aos rabes, judeus e tudo que no parecesse cristo e, para meu susto eu estava vendo 2 mil anos de respeito por uma religio antiga??? Como aquele templo pago teria sobrevivido???? Pela manh, bem cedo, eu estava l na abertura do Panteon e en-
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to, entendi. Antes do Vaticano ser construdo, antes da Igreja de S. Pedro ser construda, a sede do cristianismo ou do catolicismo, foi o PanteonU! Comearam a vir heresias minha cabea. Eu sou cristo mas tive pensamentos que, talvez, no devesse ter. De repente eu vi uma luta entre Deuses, ou melhor dizendo entre Deus e os deuses dos antigos romanos. Os perdedores foram jogados para fora e o vencedor assumiu a residncia dos derrotados. Como um rei que toma o castelo dos inimigos. Ser que as coisas mudam? Um monte de raciocnios comearam a surgir. Lembrei-me ento que os romanos tinham Senado, e ns temos Senado. Para os romanos, governar era construir estradas, para Washington Lus tambm, e um dos temas mais comentados agora so as infovias. Percebi que uma srie enorme de instituies, mtodos, e maneiras de proceder e governar de hoje so incrivelmente similares s utilizadas em Roma h mais de 2000 anos. Mudou o qu? Me pareceu ali que, o Imprio Romano s se espalhou. Foi gerando cpias como franchising. A prpria Igreja Catlica de repente me apareceu como uma estrutura administrativa exatamente igual dos franchising, com franqueados master, os bispados, e uma matriz em Roma que a nica a poder decidir sobre alteraes importantes na estrutura. Por alguns minutos, me senti no passado e no futuro ao mesmo tempo, tive a impresso de que nada nunca mudava. Eu j no tenho tanta certeza se, ou, at onde as coisas mudam. Penso que num foco pequeno, de fato, elas parecem estar mudando muito rpido. A moda agora - sinto, porque fiz e fao parte - dizer que o fator mandatrio do futuro a tecnologia. ela que transforma o mundo, que cria o futuro. O maior arauto desta tendncia na futurologia tem sido Alvin Tofler. Ele escreveu um livro o A terceira onda, no final dos anos 70, uma obra que hoje ainda extremamente atual. espantoso o volume de profecias que ele acertou e possvel que ele ainda acerte muitas mais. Seu ponto de partida exatamente esta viso tecnolgica. Para Tofler, trs grandes revolues transformaram o mundo. A primeira, que ele chama "primeira onda", foi a agricultura. O mundo antigo, constitudo de brbaros nmades, teria sido destrudo pelos novos homens que dominavam as tcnicas de agricultura e pastoreio. Em alguns lugares do planeta esta transformao ainda estaria acontecendo: no interior da
Amaznia, por exemplo, a revoluo agrcola ainda estaria chegando e destruindo os ltimas povoaes aborgines. Muito tempo depois, mais ou menos 10 mil anos, apareceu uma nova revoluo, a industrial. Ela baseava-se na linha de montagem e em novas formas de energia e produo, chegava o tempo das mquinas a vapor, das fbricas, da produo em massa. As indstrias tomaram o lugar econmico da agricultura e foram transformando a vida humana pois precisava de gente capaz de trabalhar em linhas de montagem. Os primeiros operrios eram homens e mulheres vindos do campo que, por isto mesmo, mantinham seus costumes seculares. Se chovia, no saam para trabalhar, se tinham fome, paravam para comer, as linhas de montagem sofriam ento com paradas no programadas extremamente freqentes. No podiam funcionar assim. Era preciso gerar funcionrios que pudessem trabalhar por muitas horas seguidas e que s parassem para comer ou ir ao banheiro em intervalos programados. Um dos processos adotados para tentar gerar este tipo de trabalhador ideal foi a implantao da escola moderna com seus dois currculos: o visvel e o invisvel. O visvel: ensinar algo de matemtica, um pouquinho de ler e escrever, de histria. O invisvel: ensinar a chegar pontualmente na escola, a comer e ir ao banheiro apenas quando toca o sino, a respeitar o professor, o inspetor... Era este o tipo de homem de que a fbrica precisava. A tecnologia tem mudado no apenas o mundo que nos cerca. Alm de nos propiciar mais conforto, a tecnologia tem tambm mudado a ns mesmos, somos hoje homens diferentes, com padres de comportamento e ao muito diversos do de nossos tataravs. Somos homens educados para viver em uma civilizao que necessita de opernos. Gostemos ou no, este nosso perfil. Ainda segundo Tofler, estaramos passando por uma nova revoluo neste momento. Os computadores, a profuso de meios de comunicao, as novas tecnologias e o crescimento dos servios em substituio a fora econmica que um dia pertenceu indstria estariam criando uma nova sociedade, a chamada Terceira Onda*. Como o trabalho esta mudando, precisaremos tambm de pessoas com qualificaes diferentes. Daqui em diante precisamos de gente capaz de processar informaes, chegar s 8:00h no mais to crtico, preciso ter o poder de ouvir, digitar, compreender, responder, e cnar. E
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preciso saber conversar, ser capaz de aprender tarefas que mudam a cada minuto de acordo com regras fluidas, necessrio ser capaz de tomar atitudes no momento, e nem sempre obedecer s normas cegamente. E uma nova sociedade que no precisa de fora, mas de crebros. Pensei muito nessas idias e tenho uma impresso diferente: concordo que a tecnologia seja um fator de mudana, mas no tenho certeza a respeito do como a tecnologia determina esse futuro. Sei que so as inovaes tecnolgicas que nos trazem as mudanas, mas quais mudanas??? No raro, o futuro o contrrio, do que uma simples anlise das tecnologias envolvidas faria supor. Exemplo: estava certo de que o homem ia chegar, em Marte e que eu iria passear na Lua quando tivesse 40 anos. Estou aqui hoje e tenho certeza de que no vou Lua. O que que mudou? Por que no estou indo para o espao? Por que no deixaram o homem ir a Marte? Foi o fim da corrida espacial, mas por que ela acabou? Ibope. O motivo do fim da corrida espacial foi o Ibope. Em 68, quando o homem chegou Lua, o mundo parou para assistir. Poucos anos depois, nas ltimas viagens, ningum mais parava para ver, parecia algo corriqueiro. Todo o projeto, que tinha na propaganda um de seus aspectos principais, desapareceu. Ningum queria mais saber do homem chegando Lua, porque a evoluo da telecomunicao - causada exatamente pela corrida espacial com a advinda dos satlites - foi to violenta que, se em 66-67 no conseguamos ver um jogo de So Paulo no Rio, em 70, em nossa casa, pudemos ver a Copa do Mundo direto do Mxico. Em 72 no Brasil, vimos num mesmo sbado: os jogos pan-americanos de Cali, Colmbia, ao vivo, uma partida de tnis com Thomas Cook, diretamente de Porto Alegre, o programa do Chacrinha transmitido para todo o Brasil a partir do Rio, e o homem chegando Lua. Este ltimo, s nos intervalos, uns flashs, porque cansava, ningum queria ficar vendo aquele cara andando, parecendo um bobo. Foi a tecnologia que mudou o mundo? Sim. Que tecnologia, a que levou o homem ao espao? Sim, mas ela no mudou l no espao, no fomos a Marte, a mu-
dana veio na comunicao, quando ela propiciou o surgimento dos satlites... Dizer que a tecnologia muda o mundo correto, mas ajuda pouco.. Saber o que ela faz com a sociedade e como que ela ir transformar nossas vidas, a que est a complicao. Estamos ainda diante do mesmo problema. Adianta pouco saber que ela influi no futuro, porque apenas olhando para as tecnologias no possvel descobrir futuro algum. Fiz uma previso h 18 anos e esta acho que acertei. Eu pertenci a uma gerao que - mais ou menos no final dos anos 70 - comeou a olhar para o mundo e a se perguntar: o que que est acontecendo? Cad nosso tempo??? Explico. Nos anos 50 havia o Elvis, era o Elvis e mais ningum. Depois vieram os Beades. Eram os Beades e mais ningum. No final dos anos 70, havia apenas ningum e mais ningum. Tnhamos nascido num tempo onde ainda se falava de Stalin e Hitler, onde existiam Tito, Salazar, Kennedy, Mao, Peron, DeGaule, Churchil, Vargas, Ghandi... Grandes lderes, homens que pareciam capazes de levar o planeta nas costas, de arrebatar multides. No final dos anos 70, viu-se os ltimos velhos morrendo, e nada novo nascendo. No parecia haver um nico lder mundial que fosse digno de ser chamado de lder, em comparao aos antigos. No estou dizendo aqui que estes homens eram bons, nem que fosse bom ter lderes, o que digo que, de repente, no havia mais focos em torno dos quais as mudanas se processassem. Parecia no haver mais movimento. O mundo estava parado, tnhamos crescido em meio a grandes manifestaes polticas e sociais, em meio a lutas e transformaes, espervamos crescer para poder tambm, talvez, entrar para a histria, e agora que j estvamos grandes... nada. Eu e alguns amigos batizamos este fenmeno com o nome de revoluo silenciosa. A idia era a seguinte: aconteceram grandes movimentos polticos e sociais no mundo desde, pelo menos, o incio do sculo: o nascimento do fascismo, o nacional-socialismo, os vrios estilos de movimentos de esquerda, as lutas pelos direitos humanos, contra o racismo, o prprio movimento hippie. Naquele final dos anos 70, no havia mais movimento nenhum. Parecia que ningum queria mais saber de movimentos. Duas hipteses se impunham; a primeira e bvia (era o credo geral)
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dizia que vivamos apenas um momento de descanso na histria, um momento sem mudanas. A segunda (e na qual nos acreditvamos) de que estaria acontecendo uma das mais profundas revolues que a histria j vira, uma transformao quieta, que estaria ocorrendo e fermentando dentro de cada pessoa e no nos jornais e na TV. Uma revoluo que no possua um livro, nem dogmas, nem lderes gritando palavras de ordem. De repente parecia ser possvel ser feminista ou no, usar cabelo curto ou no, ligar para a moda ou nem saber que ela existia. Descobrimos assustados que estvamos agora envolvidos na construo de um mundo novo onde poderia vir a ser possvel exprimir opinies sem provocar discusses interminveis. Era uma nova e fantstica sensao de liberdade que, naquele momento, ainda era rara e s encontrvel em poucos lugares. Acreditvamos, porm, que com o passar do tempo a "Revoluo Silenciosa" se espalharia e que seria possvel um dia ir a qualquer lugar e conversar com qualquer pessoa sem ter de escolher entre ser grego ou troiano. Sei que para vocs que so jovens pode parecer inacreditvel, mas naquele mundo antigo no era possvel dizer: "Eu acredito em parte dessas coisas e parte daquelas outras". Tnhamos sempre que optar, que escolher um lado para defender mesmo que no concordssemos exatamente com nenhum dos dois. Quem no procedia assim, recebia tiro dos dois. A questo no era apenas poltica, pelo contrrio. Usava-se cabelo comprido ou curto. Se o rapaz com cabelo comprido entrasse em uma empresa em que todos tinham de usar cabelo curto, estava frito. Se por outro lado usasse cabelo curto e todos de sua rua ou escola estivessem usando o contrrio, poderia ter srios problemas tambm, inclusive apanhar, pois era diferente. Muitas fbricas proibiam a entrada de homens com barba, escolas pblicas no admitiam a entrada de mulheres com cala comprida, todos os homens que trabalhavam na maior empresa de computadores do mundo tinham de usar terno azul. Pensar nestas histrias hoje motivo para gargalhada. Mas no fiz ainda 40, e tudo isto eu vi e vivi, me sinto um Matusalm. Na verdade, penso que a tecnologia mudou o mundo sim, mas de uma maneira tortuosa. Na medida em que as pessoas passaram a consumir toneladas de histrias, contadas a partir de diversos pontos de
vista, comearam a perceber que cada tendncia, cada viso, possua certas faces boas, outras ruins, que havia vrios aproaches para cada questo. Comearam, no sei se pela primeira vez, a no seguir muito ningum. Comearam a ser como hoje os jovens so. Mais uma vez a tecnologia foi a responsvel pela mudana, mas de forma contrria ao que se supunha. Acreditava-se que a televiso e os meios de comunicao gerariam uma sociedade de "videotas" comandados por ditadores terrveis, ao estilo do "Grande Irmo" do livro 1984. O que vejo hoje, minha opinio pessoal, que aconteceu o contrrio. Vejo pessoas com opinies prprias e simultaneamente, com respeito pelas idias de outros. Nunca fomos to livres. Penso que nosso maior erro em futurologia no a dificuldade de adivinhar o futuro. a nossa incapacidade de lembrar do passado. Sem saber exatamente de onde viemos, no possvel formar um quadro geral do movimento, nem descobrir o sentido e a intensidade da fora que nos empurra para o amanh. Me parece que as principais dificuldades que temos em lembrar do passado advm, da mdia. Ela escolhe um mote que tenha apelo popular e o repete a infinkum, gerando graves erros de interpretao da realidade. Exemplo: tem-se sempre a impresso de que, quanto mais passa o tempo, maior a violncia, que antigamente vivia-se uma vida calma e despreocupada. Ser esta afirmao verdadeira? Vamos a alguns fatos que parecem demonstrar o contrrio. Ainda nos anos 60, era muito comum criana apanhar. Acreditava-se que as crianas tinham de apanhar "para aprender", "para ter disciplina", "para ter respeito". Se saa rua, apanhava de outras crianas, chegava em casa, apanhava da me e do pai; ia para a escola, apanhava do professor porque no sabia a lio, ou fazia baguna.... Era um tempo ruim? No sei. Sei que se apanhava, e muito. Neste tempo antigo, quase todos moravam em casas, no em edifcios, e estvamos todos submetidos a um tipo de comunidade, hoje extinta, conhecida genericamente pelo nome de Rua - (restos desta cultura antiga so ainda encontrveis hoje, em certas obras: ver revista da Turma da Mnica). O que curioso - olhando na perspectiva atual - que na Rua cada pessoa sabia quem morava em cada casa. Havia tambm uma
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entidade chamada vizinho, a Rua era definida ento como sendo o conjunto de todos os vizinhos. Nesta poca estranha, que o mundo j esqueceu, ocorria um fenmeno apelidado com o nome de escndalo. Entre uma e duas vezes por ano, uma mulher (uma vizinha) saa correndo pela Rua, gritando como maluca vestida em trajes sumrios, s vezes at pelada. No era sempre a mesma no, embora certas casas apresentassem uma freqncia maior de escndalos. Raramente se sabia o porqu, e sempre poucos tinham de fato visto mas, absolutamente todos, ficavam, sabendo. A nica conversa do dia era: fulana deu escndalo. No raro, esse escndalo era motivado por violncia domstica, marido versus esposa Um centro de convivncia muito utilizado naquele tempo era o chamado boteco, que hoje ainda existe. Mas o boteco de hoje em dia no bem como era naquele tempo. O perodo que as pessoas passavam no boteco era enorme e uma coisa certa era o quebra-pau. No havia um fim de semana em que no houvesse um quebra-pau no boteco. As vezes, havia dois ou trs. Era raro mas, s vezes, ocorria morte. Normalmente facada, ainda no existiam tiros como hoje em dia. A grande maioria das brigas comeava assim: um sujeito olhava para o outro e dizia : "O que que foi?", e a resposta padro era "O qu que foi o qu?", da sobrava pancada para todo lado. Era isso mesmo, o cara tinha que ser homem, se no fosse homem o negcio complicava. Algo de que eu sinto muito a falta dos campinhos de futebol. Havia muita "pelada". Uma em cada trs "peladas" acabava em quebrapau. Com o juiz ou entre os jogadores. Vi, uma vez, um nibus todo estraalhado, gente indo para o hospital, por causa de uma "pelada" que tinha acontecido atrs da minha casa. Lembro-me de ver homens bebendo nos botecos. A passava na calada do outro lado da Rua, um sujeito "veado", (muitas vezes no era homossexual, s parecia, e era o bastante). Alguns homens sempre saam do boteco e iam l dar um chute no "veado", no batiam muito, eram s alguns pontaps, no mximo um bofeto "que pr deixar de ser sem vergonha". Vi isso mais de uma vez : " bicha, d-lhe um cacete". Assim era So Paulo, em um bairro classe mdia, nos anos 60. Esse o mundo em que eu vivia.
A opinio geral, porm, de que o mundo hoje mais violento, de fato , sob certos aspectos. Existia um crime pelo qual rapazes eram condenados chamado seduo. Consistia em fazer sexo com uma moa menor de 18 anos, inocente, que teria sido levada na conversa a trair sua prpria honra. Hoje no existem mais muitas moas inocentes, e o crime sexual freqente o estupro. Eu comentava a pouco com o Brulio que termo pick pocket em ingls, ns traduzimos por punga, palavra que hoje se encontra j quase extinta. O punguista era um estilo de ladro que ainda existia nos anos 60. Ele passava por voc, um pequeno encontro, e pronto, sem perceber tnhamos perdido a carteira. O punguista desapareceu. Hoje o crime latrocnio, assalto mo armada. So Paulo sempre foi um lugar de gente simples, caipira. Quanta gente em So Paulo comprou o Viaduto do Ch, o parque do Ibirapuera? Isso acontecia. Hoje assaltam-se bancos, fazem-se seqestros. O crime tornou-se mais profissional, mais objetivo e produtivo. A verdade que a violncia no dia-a-dia das pessoas, na convivncia delas com seus amigos, irmos, filhos, esposa, professores, patres, essa violncia est em queda. O crime utiliza hoje de violncia pesada, mais o mundo como um todo muito mais cordato, e pacfico. A violncia fsica est rapidamente desaparecendo de nossa vida cotidiano. Cito estes fatos, ao invs de falar sobre Internet ou TV Computadorizada Interativa Via Satlite, porque considero ser muito mais produtivo - no sentido de tentar enxergar o futuro - olhar para o que o homem est construindo com a tecnologia do que para a tecnologia em si. Digamos que eu sou um fabricante de espadas e que consegui desenvolver um novo tipo de ao, no sculo V antes de Cristo. Eu sei quantas espadas aquele rei aqui est fabricando e sei que ele vai para uma batalha importante. Se tambm conheo a tecnologia e o nmero de espadas dos adversrios, posso predizer se este Rei vai ganhar ou perder a batalha. Mas, no terei a menor idia de como vai ser o reino que ele vai construir. Para isto seria preciso conhecer o povo e sua cultura, conhecer o Rei. Creio que a tecnologia causa a mudana, mas o futuro determinado pela natureza humana. Penso que seja um pouco mais fcil determinar o futuro quando olhamos para o homem.
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Tentando seguir por este caminho podemos fazer algumas consideraes sobre o futuro prximo: Aumenta desesperadamente nossa necessidade de lidar com quantidades abissais de informao. O homem ter poder para ir a Marte, mas utilizar este poder para reformar sua prpria casa. As novas tecnologias de informao nos traro uma diversidade profunda de vises e conceitos. Impossibilidade crescente de se obter unanimidades sociais, sejam polticas, artsticas ou sociais. Cresce o respeito pelo modo de viver e pensar do outro. Mtodos mais eficientes de violncia profissional. Desaparece a violncia fsica na vida privada. Grande aumento na quantidade e na sofisticao dos protocolos de convivncia social. Maior liberdade. Maior solido. Acho que o RPG tem a ver com este futuro. Quando decidimos trazer o RPG para o Brasil, h seis anos, acreditvamos em algumas coisas. Acreditvamos, por exemplo, que estava havendo um excesso de no-comunicao na sociedade. Havia a necessidade de as pessoas estarem mais juntas. Acreditvamos que praticamente todos os meios de comunicao existentes s diziam "receba, receba, receba". Senta-se em frente TV, ou a um livro, em posio de recepo, recebendo tudo que lhe querem passar, no podendo dizer nada, no podendo participar. Acreditvamos que houve um tempo na histria da humanidade onde a fala, associada imaginao foram a chave: contar histrias pode ter sido o amlgama que criou a civilizao. Acreditvamos no RPG como um reforo para a criao, como uma volta histria oral. Acreditvamos - especialmente no Brasil, que um pas tolerante e criativo - que as pessoas iriam gostar de reaprender a criar suas prprias histrias, e compartilh-las com os outros. J neste momento era bvio que o RPG trazia em si efeitos positivos: Estimular a leitura. Estimular a criatividade.
Fazer com que todos, brincando, se desenvolvam em redao e desenho. Levar os mais dedicados a expandir seus conhecimentos em histria, geografia, e literatura. Ajudar na soluo de problemas comportamentais, propiciando estmulos para a formao de amizades e convvio... Trazer em si mesmo, simulaes das situaes mais variadas, desenvolvendo a inteligncia e a capacite de lidar com o inesperado. Passaram-se seis anos e se eu olho para o RPG e sua relao com o futuro, como estou sendo solicitado a fazer nesta palestra, me sobrevm algumas idias novas. No futuro, haver uma necessidade imensa de homens capazes de manipular grandes quantidades de informao. As empresas necessitaro de profissionais com capacidade de buscar referncias, de entender os protocolos atravs dos quais essas referncias so alcanveis. O jogador de RPG um sujeito altamente treinado nesse sentido. Uma segunda qualidade que eu sinto, ser cada vez mais importante no futuro a capacidade de lidar com diferenas de personalidade. As pessoas no so iguais e todo praticante de RPG aprende a tentar harmonizar estas diferenas: s assim o jogo gostoso. Em uma partida, contando histrias coletivamente, nossas qualidades e defeitos so expostos de forma clara. Um bom jogador aprende a tentar relevar os defeitos dos outros, minimizar os seus, e a tentar encontrar um caminho na histria que est sendo contada, que possibilite extrair o melhor, que cada um de seus amigos possa dar. Um terceiro fator, o treinamento em liderana. A diferena clssica entre chefia e liderana se expe de forma extremamente clara em partidas de RPG. Apenas um mestre iniciante tem a atitude de "chefe", ou ele desenvolve rapidamente qualidades de lder, ou jamais ter com quem jogar outra vez. O bom mestre seduz, percebe que um jogador no est participando e ento procura uma maneira de traz-lo. Tem de tentar estar sempre abrindo espao para a criatividade dos outros, e ao mesmo tempo cerceando, para que o grupo possa agir como equipe. Se no final todos participaram um pouco, todos sorriram um pouco e todos ajudaram a criar podemos dizer que ele foi um bom mestre. Este rapaz um lder e este o nico tipo de chefia que o futuro admitir.
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Uma quarta caracterstica do RPG que eu considero chave, o desenvolvimento da capacidade de criao coletiva. O Brulio falou muito bem de uma das tendncias mais importantes da fico hoje em dia: os universos ficcionais. E quase absolutamente impossvel criar universos ficcionais como o fizeram Balzac, Tolkien. So obras para homens monstros. Mas nada h de impossvel em reunir 5, 6, 10 ou 50 autores trabalhando em uma mesma obra. Star Trek, Arquivo X, Universo Marvel, telenovelas... Ns estamos vivendo um mundo dos universos ficcionais coletivos. A criao cada vez mais compartilhada... Criar coletivamente, porm, um negcio altamente complicado. At h no muito tempo, acreditava-se que o trabalho mecnico era cooperativo e o trabalho criativo, isolado. O trabalho mecnico, seria o das fbricas, dos escritrios, das reparties. O criativo o dos gnios solitrios que passam a noite acordados at ter uma idia brilhante. O RPG est dizendo: "No, voc no precisa ficar fumando de madrugada para criar, voc pode sentar com seus colegas e criar ali mesmo". Os jogadores de RPG so mestres na arte de criar em conjunto, em reunir a criatividades. No futuro, boa parte dos empregos estar em funes onde esta qualidade ser chave: cinema, TV, propaganda, criao de softwares... Especialistas em educao tm ficado extremamente impressionados com o que tm visto neste sentido em sesses de RPG. Para falar da prxima devo citar antes um livro de Herman Hesse, O jogo dos avelrios (tambm conhecido pelo nome de o Jogo das Contas de Vidro. Nele se descreve um mundo no futuro onde os homens mais reverenciados eram os "jogadores de avelrios". No era bem um jogo, era mais uma espcie de quebra-cabea, um mosaico que ia sendo construdo, com pequenas pecinhas de vidro, e cuja forma final era apreciada pelos demais jogadores, como se fosse uma obra de arte. As peas tinham significados particulares e ento olhando para aquela obra, uma vez pronta, um msico via (e ouvia) uma sinfonia, um matemtico encontrava um teorema e sua demonstrao, um filsofo perceberia ali premissas importantes... Naquele mosaico estaria representado um raciocnio bsico inerente a muitas artes e cincias distintas, um arqutipo. Cada jogador o compreendia segundo sua prpria especialidade, segundo sua alma. Me parece que os jogadores de RPG passam por situaes de fico
e fantasia, de aventura e a, comeam a reconhecer padres reais de vida e comportamento. O RPG est treinando nossas mentes na compreenso de certas lgicas bsicas que esto por detrs da maioria das situaes. Quem joga desenvolve uma compreenso mais rpida e aguda, do mundo que lhe cerca. Antes de tentar falar da ltima, vou contar outra histria. conhecida como a fbula da Verdade e da Mentira. Era uma vez duas donzelas, uma se chamava Verdade e a outra Mentira. A Verdade, era bela e amada por todos. Da Mentira, ningum gostava. A Verdade chegava s cidades era bem recebida, a Mentira era expulsa. Um belo dia, a Verdade preparando-se para dormir em uma floresta, tirou a roupa e pendurou em um galho de rvore. A Mentira passava ali perto pensando em como era infeliz e solitria e de repente, deu de frente com a Verdade dormindo, em sono profundo. Teve ento uma idia, trocar de roupas, de roubar a roupa da Verdade. O truque funcionou, quando ela chegou primeira cidade foi bem recebida e ouvida. Da em diante, e desde este tempo, a Mentira passou a ser ouvida por todos como se fosse a Verdade. A pobre Verdade acordou, e percebendo o roubo, decidiu procurar amigos na cidade mais prxima. Ao chegar causou um grande tumulto, pois a Verdade nua, ningum queria ver. Recusada por todos, chorando, ela voltou ao lugar de seu sono e percebeu no cho a velha roupa da Mentira. Sem ter outra opo, vestiu-se e voltou a cidade. Ningum mais a maltratou, voltou a ser ouvida, mas j no tinha a mesma aparncia de antes, afinal estava vestida com a roupa da mentira. Dai em diante voltou a ser querida, mas no mais acreditada. At seu nome mudou, passou a ser chamada de Mito. Tenho a impresso de que, nas histrias de RPG, muitos dos mitos mais importantes voltam, ainda que sob novas roupagens. Penso que nestas histrias, atravs das fbulas e mundo fantsticos que apresentam, vamos tendo contato novamente com smbolos ancestrais e idias que permearam toda a histria da humanidade, idias que classicamente tm servido como correia de transmisso de uma sabedoria mais annga, de uma espcie de tica primai, bsica, que sempre teve papel deasivo na histria das civilizaes humanas.
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Talvez por isto eu sinta, embora no possa demonstrar, que os jogadores freqentes de RPG, vo desenvolvendo um tipo de tica prpria, mais parecida com sistemas de comportamento tradicionais, antigos, do que com a aparente ausncia de padres de comportamento no mundo moderno. No uma tica simplria ao estilo "Isto certo e isto errado", ou "este faz sexo e legal, e aquele outro bobo e no faz". E uma espcie de multitica, talvez, um sistema complexo de avaliao de situaes que considera padres de moral e comportamento mltiplos. Tentando esclarecer melhor, creio que um bom jogador de RPG tenha uma facilidade acima da mdia em avaliar conjuntos de fatos e decidir o que justo, em perceber o que foi boa inteno e o que foi "sacanagem". Um jogador aprende a respeitar padres ticos diferentes do seu e a julgar dentro deles, sem necessariamente adotar ou classificar estes padres. Eles desenvolvem a habilidade de mudar de referencial sem perder o seu prprio. No passado recente, se algum tinha um padro moral diferente dizia-se "Isto mau". Hoje parece no haver mais padro, muitos afirmam que no h mais moral. Moral , por definio, costume. De fato, no presente, bem mais difcil atribuir uma moral padro a sociedade, parece que as famlias e pessoas esto desenvolvendo uma tica prpria, parece no haver mais "costumes". No fcil viver em mundo assim, um mundo em que, por exemplo, pessoas ultra religiosas compartilham com outras ultra libertinas a mesma classe na escola, a mesma sala de trabalho, a mesma cozinha. No sabemos mais o qual a moral vigente, qual o costume e, no raro, ficamos sem saber como proceder. Penso que o RPG nos ensine a respeitar outros valores, que o RPG nos ensine a rodar uma situao, e a ver os mesmos fatos por um outros pontos de vista, portanto, nos induz a encarar a vida com mais sabedoria. Repito que a tecnologia , sem dvida um fator determinante; mas defendo que a tecnologia transforma a realidade de uma maneira bastante diferente daquela que exposta nas previses mais lineares. O principal problema que a tecnologia, sendo obra humana, cativa nossos esforos e nossa imaginao de maneira quase absoluta. Se estivssemos, por exemplo, na Idade Mdia, e vssemos uma luz piscando
no cu, o que eu diramos? "E um anjo no cu, um anjo do senhor!". Hoje, perante a mesma situao dizemos "Olhem todos, um disco voador?". Daqui a pouco no ano de 2020, talvez digamos "Que luz esta, ser que estou no cyberespao, ser que eu estou plugado? O mtodo que utilizamos para tentar compreender a realidade est sempre ligado a nosso modo de vida, quilo que ns estamos focando. Se a minha obra for construir catedrais, procuro anjos; se for foguetes, vou olhar para disco voadores. Eu penso que para efeitos de previso, a tecnologia, pode ser encarada como ferramenta, como energia; tecnologia significa grau de liberdade. o que demonstram as transformaes sociais ocorridas nos ltimos anos. Somos cada vez mais livres. Quando existe carncia de energia, algum com fome, por exemplo, fcil predizer seus prximos passos: ele vai procurar comida. Quando se tem excesso de energia, de vitalidade, de fora, (e tecnologia tudo isto ao mesmo tempo), a situao muda radicalmente. Cada um procura seus prprios caminhos, todos querem liberdade. Como construir uma sociedade que compatibilize estes desejos individuais, dentro de um sistema de convivncia comum? Este parece ser o maior desafio a nossa frente e, talvez, o RPG possa nos ajudar como ferramenta de treinamento para homens que vivero neste novo tempo. O mundo do futuro no ser um mundo necessariamente tecnolgico, pois creio que inclusive, e paradoxalmente, muitos tentaro utilizar de sua liberdade para diminuir seu prprio grau de dependncia processos tecnolgicos. Penso que a nica coisa certa que se pode dizer que j temos hoje muito liberdade do que tnhamos h trinta anos e que o futuro, por enquanto, continua apontando na direo de mais liberdade. Um mundo de pessoas cada vez mais livres, como ser?? Penso que ser muito mais humano, pois o homem ter mais espao para permitir que sua natureza venha tona. O ser humano tem duas faces, uma terrvel, outra sublime. Penso que este novo mundo, este mundo humano, ser mais terrvel e sublime simultaneamente. Ser um mundo onde nossos sonhos e pesadelos tero mais oportunidades de se manifestar e, talvez, os jovens que desde meninos tenham aprendido a criar e produzir fico estejam mais preparados para enfrent-lo.
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DEBATE
Platia (Jordano): Eu tenho quatro perguntas para o Mauro. No incio do debate, voc falou sobre a superioridade do computador sobre o ser humano. Eu queria saber a sua opinio sobre isso. Se voc acha que o computador um dia ser ou se ele j superior ao ser humano. Criana tem que apanhar. Voc acha isso? Ser que existia menos violncia no passado do que existe hoje? Quero saber se existia realmente pouca violncia no passado ou se ela estava mais escondida. Ou seja, o pai era uma pessoa importante, mas batia na mulher e nos filhos. Voc acha que com a entrada de CDs e vdeos, essa tecnologia toda para, talvez, at melhorar o RPG, ele est perdendo essa caracterstica? Mauro dos Prazeres: Primeiro, eu no acho que o computador superior ao crebro, ele outra coisa. Ele to superior ao crebro quanto um trator superior a uma mo. Mas, algumas coisas que o crebro capaz de fazer, o computador faz extraordinariamente melhor. Segundo, no acho que criana tem que apanhar, sou contra criana apanhar. Agora, criana que apanha vira um psicopata? No, se no teramos um mundo de psicopatas. A questo da relatividade do julgameno tico, do mesmo ato hoje parecer ruim e amanh bom um problema crtico da filosofia, e que todos os filsofos trataram. No procure seguir a tica comtempornea, a tica do lugar onde voc vive. No se deve procurar esse caminho porque, se seguirmos este caminho, estaremos caindo em uma tica temporal, se todo mundo fizer besteiras teremos de fazer tambm. O que importa a nossa tica pessoal, nossa concincia. Temos sempre que tentar fazer nosso melhor. O mundo passado era muito mais violento do ponto de vista domstico e no era to violento do ponto de vista do crime profissional. Estou dizendo que as questes no so mais lineares, que eu acho errado dizer apenas "o mundo mais violento ou menos violento". So anlises muito simplrias da situaes. A terceira pergunta boa para jogadores de RPG. Na questo do adereo ao jogo, o que eu vejo o seguinte, opinio minha: no jogo infantil, no jogo de criana, 7, 8, 9 anos de idade, existe a necessidade tctil, uma necessidade de ver e tocar, at porque ela est chegando ao mundo agora, ela no conhece o
mundo. Ento, os chamados RPGs de tabuleiro so algo timo, excelente para esta faixa etria. Podem ser, tambm, extraordinariamente divertidos para gente de qualquer idade. Mas, tambm, no precisa ser RPG. Pode ser uma batalha de miniaturas que, quem conhece, sabe, no tem nada a ver com RPG. Agora, o RPG, lato sensu, um RPG de imaginao. A gente tem que, eu penso, tomar cuidado com a quantidade de adereos que usa, porque quanto mais acessrios eu uso, mais limito a imaginao, mais limito o poder do mestre. Por exemplo, se eu trabalho s com monstros que j vm desenhados. Uma vez eu estava vendo um jogo dentro de uma pirmide e a a menina falou assim: "Eu pus a mo na pedra". Na hora em que ela ps a mo, o mestre olhou para o rosto dela, teve uma idia e gritou: "E uma aranha!". E a menina pulou da cadeira. Uma coisa horrorosa, como se ela tivesse pegado a aranha mesmo. Snia Mota: No aconteceu o rolar do dado, no , Mauro? Mauro: No aconteceu o rolar do dado para saber se era uma aranha ou no. Ele podia ter rolado o dado mas a perdia o susto. Tudo que demais, atrapalha. Se ele s jogasse com monstros preparados, tinha perdido a oportunidade de pr a aranha na histria. Eu tambm sou contra o jogo excessivamente interrompido por dados, o jogo excessivamente rgido. Bem, no sou contra. No sou contra nada. Eu acho que tem mais gosto, mais prazer, no jogo voltado para criao de histrias e inveno de coisas, do que no jogo fixado e calcado em regras muito definidas. Eu gosto mais do outro tipo de jogo. Agora, eu acho o dado um elemento fundamental. Por exemplo, quando a gente comea a no jogar dado nenhum, comea a no ter elemento aleatrio na histria. O elemento aleatrio importante para a diverso do prprio mestre porque o mestre fica numa situao que ele est brincando tambm, porque o dado mandou ele abrir uma porta que ele no estava querendo abrir, ele no sabe o que tem l. Daqui para a frente, estamos todos em um mundo desconhecido que ningum sabe o que . Ento, eu acho que o dado tem o sua importncia.. Platia (Daniel): Eu queria falar um pouquinho sobre o computador e quando o computador vai superar o humano ou quando o computador no vai superar o crebro humano. O Isaac Asimov tem o livro, Vises de rob, que no final, tem uma srie de artigos que ele escreveu na revista dele, a Asimov Magazine, na qual ele fala justamente sobre isso. Ele dedica
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dois artigos sobre se o computador vai ou no superar o ser humano. E, numa das crnicas, ele defende a seguinte teoria: o pulso eltrico do crebro humano viaja mais ou menos a seis quilmetros por hora. O pulso eletrnico, que o que se usa na armazenagem de memria de CDRom, viaja na velocidade da luz. Ento, a velocidade do nosso crebro, se o nosso crebro fosse do tamanho de uma cidade, demoraria mais ou menos duas horas para chegar de uma ponta outra. Mas, se fosse o computador, iria demorar menos de um segundo. Ento, os computadores, do tamanho do planeta Terra, teriam mais ou menos a mesma velocidade do crebro humano e conseguiriam viajar mais ou menos mesma velocidade. Poderiam armazenar muito mais coisa. Ele diz que os computadores seriam, assim, digamos, mais aptos que os seres humanos a encarar o futuro. Teriam respostas melhores, seriam mais capazes. Quanto s pessoas - se as pessoas encaram isso como um perigo, a humanidade ser substituda por um computador - ele diz que, talvez, o verdadeiro perigo seria a gente no conseguir fazer isso a tempo de enfrentar os problemas. Preparar uma forma de vida, ou uma forma de encarar o mundo, ou alguma coisa que seja melhor do que ns. A nossa verdadeira contribuio seria esta. Essa uma das formas de encarar. O Daniel levantou uma outra proposio na qual ele fala que impossvel, porque o crebro humano tem um outro conceito diferente do computador. Quer dizer, eu no sei se voc leu essas crnicas. So bastante interessantes. Ele tem uma outra crnica na qual ele coloca que, talvez, o crebro humano e o crebro do computador possam ser coisas complementares, na qual vai ser uma autoajuda, os dois vo crescer juntos. A criatividade humana vai ajudar a racionalidade, a capacidade de armazenao do computador. bastante interessante conferir isso porque acho o Asimov genial e, nos livros nos quais ele faz essas colocaes, existem coisas que para ns parecem esdrxulas, absurdas, mas que so interessantssimas. O nome do livro Vises de rob, da Editora Record. Brulio Tavares: Na realidade, a gente discute muito a questo da capacidade do crebro humano e a capacidade do crebro do computador. O que eu acho que existe no questo de quantidade, uma questo de qualidade diferente. O crebro humano pensa qualitativamente diferente do crebro do computador pelo fato, principalmente, de que a grande maioria do input da informao que entra no crebro humano entra atravs
do corpo. Ns temos um corpo biolgico que extremamente sensvel e extremamente complexo e 99% do input que vai para o crebro do corpo. Voc teria que construir um equivalente em complexidade ao corpo humano. Ou seja, ns temos uma epiderme, acho que a quantidade de informao que entra o tempo inteiro, inconscientemente... A gente no est consciente disso. A no ser que o ar-condicionado fique muito forte. Mas, um centmetro quadrado de pele, tudo isso est indo continuamente para o crebro, est sendo processado, o crebro tem "algum" l dentro tomando conta. "Ih, rapaz, est frio aqui esse negcio". Ou, ento, "No estou gostando dessa meia que eu calcei hoje". Alguma coisa assim. Essas informaes esto indo o tempo todo para o crebro. E um nvel de complexidade muito grande. Se voc conseguir criar um equivalente fsico de um corpo biolgico, que extremamente sujeito a fatores aleatrios, como por exemplo, o que voc comeu hoje no caf ou sei l o qu... e a relao com o meio ambiente, com tudo que tem ao redor. Relao de temperatura, de efeitos fsicos, de viso, audio e tudo mais. Se voc conseguir criar isso, do ponto de vista fsico, ou uma simulao convincente para o computador, a ele vai comear a pensar bastante diferente. Mas, s criar isso, j muitssimo mais complicado do que criar o crebro que a gente conseguiu criar. Platia (Daniel): Voc acha que impossvel? Brulio Tavares: possvel. Quem sou eu para dizer o que o pessoal do futuro vai conseguir ou no... E possvel, sim. Snia Mota: Uma questo importante que o computador no imagina, o computador no sonha. Pelo menos os que foram fabricados at hoje. Eu acho que o fato de o computador no imaginar, no sonhar, uma limitao da espcie. Mauro dos Prazeres: A fico cientfica sonha com computadores que sonhem. Brulio Tavares: O sonho um desejo, e a grande maioria dos nossos desejos tem fundamentao biolgica. Ento, enquanto ele no tiver o lado biolgico, ele no vai ter desejos, nem sonhos, nem essa presena grande do aleatrio no processo dele. Platia (Flvio): Eu no ia falar sobre o computador e sim sobre RPG. Estava falando de outras coisas complementares, trazendo mais coisas sobre RPG. Eu acho que, com isso, se esquece um pouco que RPG
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Role>aying Game. Usa-se muito a sigla RPG, e as pessoas vo esquecendo o que significa RPG: o R, o P e o G, que Roleplaying, jogo de interpretao. Ento, por exemplo, chamam livro-jogo de RPG, chamam Magic, The Gathenng, de RPG, chamam jogo de computador Adventure de RPG. At criaram uma coisa meio absurda que RPG de mesa para diferenciar de RPG de computador. Bem, algum consegue chamar aquilo de RPG? Mauro dos Prazeres: Isso foi criado no Japo. Flvio: Foi no Japo que apareceu antes? Mauro dos Prazeres: Porque, n o Japo, o Adventure Game de computador nasceu antes. Uma informao para vocs: quando foram lanar, finalmente, o RPG l no tinham um bom nome para utilizar, porque chamavam o Adventure, os jogos de computador, de RPG. Da, inventaram a expresso table RPG. Flvio: Quer dizer, isso apareceu aqui no Brasil com as tradues das revistas de games. Ento, em vez de corrigir os japoneses, no, a gente comeou a absorver esse termo de RPG de mesa. Ento, comeou a ficar meio vago o que significa RPG. Porque, na verdade, s existem dois tipos de RPG: o RPG que todo mundo joga e o Live, o Live Acrion. So os nicos jogos nos quais realmente existe interpretao. Livro-jogo voc no interpreta. Voc joga dado e vai virando as pginas. E o Adventure nada mais que um livro-jogo passado para o computador. Em Magic, The Gathering, o jogador vive interpretando o mago que est lutando contra o outro. O pessoal s est jogando carta. A, ento, na pergunta que ele tinha colocado sobre a entrada da tecnologia de CD, de realidade virtual, eu acho que o RPG, como ele hoje, que voc sentar numa mesa e contar histrias com os amigos, s vai ser substitudo, ou melhor, s vai realmente criar uma diferena no que ele disse, quando todo mundo puder entrar junto na realidade virtual. Realmente, se olhar para o lado, eu vou ver o outro jogador andando na forma que ele imagina que ele seja dentro daquele jogo, onde houver essa interao completa, onde o que passa na viagem intelectual, na alucinao intelectual, for passada totalmente para o lado sensorial. Enquanto isso no acontecer - ainda no houve esse passo -, ainda o nosso RPG que a gente joga hoje. Ainda o grande lance que est valendo. Platia (Daniel): S para complementar aquela questo que ele
colocou, do computador versus ser humano. Tem um filsofo, chamado Gregory Bateson, que costumava contar essa histria sobre computador. Um sujeito criou um imenso computador, o melhor computador j feito, aquele troo enorme, aquela parafernlia toda. A, programou, colocou todos os dados possveis no bicho, tudo o mais. A, fez a pergunta a ele: "Algum dia voc vai conseguir pensar como ser humano?". O computador respondeu: "Ah, isso me lembra uma histria". Que quer dizer isso? Quer dizer simplesmente que, na minha opinio, o computador no tem capacidade de tirar - como o ser humano tem - de tirar uma coisa do nada, de criar alguma coisa completamente nova. A gente estava discutindo isso outro dia aqui. Em relao ao ser humano, nada se cria, tudo se copia. Isso um tanto simplista. Eu acho que ao contrrio. Embora a histria tenha elementos comuns, tem sempre alguma coisa nova e isso, provavelmente at hoje, no me parece, na histria do computador, da evoluo da informtica, tudo o mais, que tenha acontecido nenhuma inovao no sentido de dar ao computador alguma capacidade sequer parecida com isso, de chegar nesse nvel. Platia (?): Nosso amigo aqui falou que na dcada de 70, mais ou menos, houve uma revoluo interior no homem. Queria saber se voc concorda comigo: eu acho que a gente perdeu essa revoluo. A gente passou do silncio ao nada, alienao. Agora, a gente no se nega as modas. A gente aceita, passivamente, sem discutir se aquilo certo. A gente deixa o cabelo crescer, a gente raspa o cabelo, sem mesmo saber se aquilo tem alguma ideologia certa, se aquilo deve ser feito. Mauro dos Prazeres: Essa pergunta ultrapertinente. Ela vai ao mago daquilo que eu disse. Na verdade , talvez, a pergunta mais crtica a ser feita sobre esse assunto. A primeira coisa : eu no disse que foi uma evoluo. Disse que foi uma mudana. Evoluo pressupe uma melhoria. Eu no tenho certeza disso. verdade que, sob um certo aspecto, o que parece que est acontecendo hoje uma alienao, ou seja, as pessoas no discutem, as pessoas parecem no querer saber, no assumem. A gente olha anos incrveis e acha: "puxa, aquela turma tinha alguma coisa pela qual lutar". E ns no temos nada. Ns no sabemos nem o porqu vivemos. H uma mxima antiga que diz o seguinte: "O homem que no tem pelo que morrer, no tem pelo que viver". E eu pessoalmente acredito que esse tipo de mxima levou a "trocentos" milhes de guerras
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que mataram "trocentos" milhes de pessoas. No final, comeou a matar pessoas em fornos, sejam fornos de gs, sejam fornos nucleares. Eu vi o mundo onde as pessoas acreditavam que se alguma coisa lhes parecia certa, estavam no direito de empurrar essa coisa na cabea dos outros. E, se o outro no concordasse, ela tinha o direito de pegar o machado, rachar a cabea dele, pr a coisa l dentro, e depois tentar juntar os pedaos. Eu vi esse mundo e no gostei. Eu sei que d saudades. Eu sei que era herico. Especialmente na adolescncia, d saudades. Mas prefiro um mundo onde eu acredito nas minhas idias, voc acredita na suas, trocamos opinies mas respeitamo-nos mutuamente. Onde ningum se julgue com direitos de pegar um revlver e criar uma equipe de combate para empurrar na cabea de outro algo em que ele no acredita. Essa a minha opinio. Eu no acho que isso seja alienao, o fato de eu acreditar em alguma coisa e no me sentir no direito de obrigar as pessoas a acreditarem naquilo. E verdade que hoje a maioria das pessoas hoje no acredita muito em nada. Mas acho que, alem do que j disse, tambm porque se desiludiram, porque acreditaram no passado. Naquele tempo, as pessoas tambm no acreditavam em nada que fizesse muito nexo. Elas pensavam que acreditavam em alguma coisa. Uns tinham certeza de que aquele governo era a coisa mais diablica que j tinha existido e outros acreditavam - e um lado at que no foi bem mostrado no seriado "Anos Rebeldes" e que era a grande maioria da populao - que havia um bando de jovens comunistas que queria impor aqui um negcio similar ao terrvel regime de Stalin. Vejo equvocos graves nestas duas vises, e afirmo que as pessoas no sabiam bem o que estavam defendendo. Defendiam alguma coisa que tinha conquistado o seu corao, seja esquerda ou direita, mas no tinham muita certeza daquilo, se voc conversasse direitinho com elas, veria. Sou de uma gerao posterior, mas pude conversar com muitas.O problema principal que naqueles tempos, ramos obrigados a escolher entre lados, isto que me parece no existir mais hoje. Por outro lado, o que julgo ser mais importante no o aspecto poltico que no fim, envolvia de verdade apenas uma pequena parcela da populao. Voc era sempre obrigado a escolher, a obedecer um padro. Tinha de ser moa de famlia, tinha de casar virgem, tinha de ser homem, tinha de usar cinturo largo e cala boca sino, tinha de ter escolhido um time de futebol... difcil para vocs, felizes alienados
da dcada de 90, at imaginar como podia ser restritivo aquele mundo. Acho que os jovens hoje so um pouco mais focados em si prprios, em seus sonhos, em tentar encontrar meios de realizar seu potencial, no ligam muito para o que a vizinha pensa de seu comportamento, mas ligam mais para o que acham de si mesmos. Procuram solues morais dentro de si prprios. Neste sentido so mais introspectivos, mas muito menos alienados. Essa minha opinio mas, claro, posso estar enganado. Platia (Paulo): Eu queria fazer um comentrio e uma perguntinha. O comentrio que, um dia desses, um amigo meu estava me falando que viu um filme de fico. E ele disse que, no filme, uma andride, uma rob, teve um orgasmo. Ele me disse isso e eu no concordo com isso. Foi colocado aqui que o rob todo mquina. Ento, no tem emoes. Eu defendi que ela simulou um orgasmo. Ela no teve, ela simulou, pois ela uma mquina. Mquina s pode simular, no mximo. E a pergunta sobre quando o mestre de RPG tenta passar, fazer um mundo para fazer suas aventuras, montar uma realidade. No caso, eu gosto de fico. Eu estou tentando montar um mundo, mas eu estou meio boiando no que eu poderia usar como margem, como limite. Gostaria de entender essa experincia de fico como livro, que j um mundo pronto, uma histria, uma base, para no ultrapassar os limites para se montar um mundo que seja mais ou menos real. s. Brulio Tavares: Bom, primeiro, sobre a questo do orgasmo. H uma histria de uma terapeuta de casais ou coisa parecida. Isso saiu em revistas, tudo o mais, que a moa chegou l "Ah, eu tenho um problema" e tal. A, a terapeuta perguntou: "Voc j teve orgasmo?" Ela disse: "Olha, no sei." A terapeuta disse: "Ento, no teve. Porque, quando voc tiver, voc sabe que aquilo mesmo, pois uma experincia nica e que no se parece com mais nada". No caso da rob, ela pode ter tido um orgasmo porque uma andride, ela j uma simulo. Se ela foi simulada, construda, foi construda por algum. E algum pode ter previsto que, desencadeadas tais e tais reaes fsicas nela, a resposta fsica seria X e a resposta psquica e emocional seria Y. Dentro do universo dela, que o nico onde ela existe, ela teve um orgasmo, sim. Quanto questo da criao de mundos para RPG, eu queria deixar claro que o meu lado mais a fico cientfico-literria. Eu estava at comentando com o Mauro, com o pessoal aqui. Apesar de ter inmeros amigos que jogam RPG, eu
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nunca joguei. Vejo os amigos jogando, freqento, folheio os livros, leio, convivo muito, mas nunca cheguei a jogar, at por preguia mesmo. Mas, nessa coisa de definio de um mundo, voc tem que partir do seguinte: voc tem que estabelecer onde o centro do mundo, o que que voc acha o principal daquele universo que voc quer criar, e at onde isso pode ir. Voc tem que definir um centro e um limite. E que tudo isso seja coerente. Agora, claro, se voc quer criar um mundo que seja Estados Unidos ano 2300, uma coisa. Se colnia marciana no ano 3000, vai ser uma coisa completamente diferente. Se Rio de Janeiro ou So Paulo no ano 2050, j vai ser um outro tipo de coisa. Voc tem que partir de uma raiz. A, onde eu digo que sempre a gente parte do mundo real. A gente vai recheando aquilo com imaginao, mas a gente tem que partir de alguma coisa real porque voc no pode criar absolutamente tudo. Platia (Alan): Eu queria fazer uma pergunta. Primeiro, s para saber se voc est falando a mesma coisa. Voc citou Admirvel mundo novo, do Huxley. Voc falou, tipo ironia, perguntou se a gente j tinha ouvido falar de vizinho. Isso pareceu muito com o Huxley: o diretor descreve para os alunos. Eu queria saber se isso era uma crtica irnica ou o que que era com relao a ns. Mauro dos Prazeres: Eu quero dizer o seguinte: no meu prdio, em So Paulo, eu conheo algumas pessoas, talvez 20 ou 30%, de ver no elevador. No existe o conceito de vizinho que existia quando eu era pequeno, onde as pessoas se visitavam, trocavam acar, conversavam, se ajudavam. So Paulo est ficando assim. Eu percebo que o Rio ainda no est to assim, no sei se vai ficar ou, talvez pela geografia, pelo esprito da cidade, nunca fique. No existe mais a relao de vizinho. Antigamente seu universo de relaes podia ser classificado em trs categorias : parentes, amigos e vizinhos. Hoje s sobraram duas. Hoje, h pessoas que eu conheo de dar bom dia, que moram ali no prdio, mas s. Descobri outro dia que um sujeito que eu conheo h cinco anos e vejo toda semana, mora no prdio em frente ao meu. No ironia, a realidade. Platia (Alan): Entendi. Queria saber se voc estava criticando a gente com essa ironia, se a gente j ouviu falar de vizinho, ou pelo menos mostrando que a nossa sociedade est ficando parecida com a que Huxley props.
Mauro dos Prazeres: A sua pergunta complicada. Claro que eu estou criticando. Eu acho que a relao humana tem que vir, tem que aparecer, tem que vir tona. por isso que eu defendo RPG. um gerador de relaes humanas. Voc pergunta se a nossa realidade est ficando igual realidade do Huxley. Eu vou te dar uma resposta que muita gente no vai concordar. A minha resposta no. Eu acho que existem dois tipos de fico cientfica. Eu no sou especialista em fico cientfica, como o Brulio, sou um mero leitor, mas eu tenho a seguinte impresso. Tem a fico que sempre fez sucesso com a crtica, que fico catastrfica, tipo 1984, tipo Admirvel mundo novo, ela mostra sempre um futuro terrvel, negativo, horroroso, miservel, desgraado, outro exemplo terrvel Blade Runner. E tem uma fico muito light, que simplesmente mostra que o mundo avana e os problemas mudam. So livros como os de Asimov; filmes como Star Trek. uma fico extremamente otimista porque a parte do princpio de que o mundo existente no futuro, que no foi destrudo por uma guerra atmica, que os planetas, os mundos se uniram, no h mais guerra entre os pases da Terra, no h mais problemas com comida. O personagem chega e diz "Quero uma canja" e a mquina cria canja. Eu dou graas a Deus que Huxley tenha escrito o Admirvel mundo novo, porque graas a ele ns pudemos evitar este tipo de sociedade. Ele ajudou a mudar o mundo com esse livro. um livro extraordinrio. Da a dizer que ele acertou o futuro, no. um livro extremamente datado no sentido de que foi escrito quando um gnio, chamado Henri Ford, tinha aperfeioado a linha de montagem par carros. O livro todo calcado no que aconteceria com o mundo se as idias do Henri Ford fossem aplicadas sociedade. Mas eu acho que elas no foram. Platia (Luiz Felipe): Eu gostaria de fazer uma pergunta para o Brulio. Voc trouxe a idia do computador com imaginao, a idia do computador com criatividade. Tem um conto, numa coletnea aqui no Brasil chamada Mquinas que pensem, compilado pelo Isacc Asimov e mais uns outros nomezinhos que aparecem pequenininhos, chamado Circuito de McColley, onde contado em primeira pessoa e ele fala do camarada narrando que destruiu um diagrama pelo qual voc conseguina fazer um computador com capacidade criativa. Ele era um analista de sistemas, um cara que trabalha com tecnologia, tem toda a histria no meio e fala "Destru, sim. Vocs podem me chamar de retrgrado, de ser
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contra o progresso da civilizao, mas pensem: o computador, ele faz coisas muito mais rpidas e muito mais precisas do que os seres humanos e a criatividade prerrogativa do homem. A partir do momento em que ns temos um competidor mais rpido e to criativo como ns, ns ficaremos obsoletos". Quer dizer, at que ponto sensato voc criar, tentar fazer um computador com criatividade? Voc tem o andride, criado pelo ser humano, e a? Mas a pergunta a seguinte. Mais voltada para a fico cientfica, o movimento cyberpunk, em termos de literatura. No quadrinhos, videogame, RPG, e sim como literatura. At onde eu li, at onde eu soube, estava j esgotado nos Estados Unidos. O que que est se fazendo agora em termos de fico cientfica l? Brulio Tavares: Bom, em primeiro lugar, a coisa do computador inteligente. Sempre vo existir limites. Se existem limites para a inteligncia humana, por que no existiriam limites para a inteligncia dos computadores tambm? claro que eles podem se tornar muito superiores mas, no atual estgio da tecnologia de computao, tudo que a gente pode fazer escrever contos de fico cientfica, imaginando at onde eles podero chegar. Talvez isso no ocorra no nosso tempo de vida. Eu acho que, quanto mais coisas, vidas inteligentes, criaturas inteligentes tiver no planeta, melhor. Porque a gente pode entrar em conflito e guerra com elas, claro. Como podemos entrar em conflito e guerra com os vizinhos do pas ao lado e do continente ao lado. Mas poderemos tambm conviver com eles, ensinar a eles e eles nos ensinarem. Eu tenho um conto em que o protagonista tem como lazer um computador em casa com vrios programas, que so programas que reproduzem o pensamento, a personalidade e o estilo literrio de vrios escritores. Quando noite e ele est sem ter o que fazer em casa, ele se senta e comea a escrever cartas para Machado de Assis e Machado responde s cartas dele com aquele estilo, com aquela filosofia, aquela ironia, sarcasmo e ceticismo que so caractersticas de Machado de Assis. Isso seria uma forma de voc conviver com criaturas inteligentes. Snia Mota: Uso quem faz um programa de computador? Quem escreve no estilo de outros, de certos autores um programa de computador? Nesse conto um programa de computador que faz isso? Brulio Tavares: Exatamente. Snia Mota: Bom, escritores j fizeram isso.
Brulio Tavares: , h escritores, mas se h uma pessoa que possa aprender, voc pode, tambm, criar um programa com determinadas caractersticas lingsticas, sintticas, estilsticas e tudo o mais. Voc tem, hoje em dia, programas verificadores estilsticos. Assim como voc pode ter um corretor ortogrfico, voc pode ter corretor gramatical, que j uma coisa mais complexa, e h corretor estilstico. Existe processador de texto que voc faz um clculo e ele te informa assim: "Voc usa mais verbos na voz passiva do que Hemingway", por exemplo. Eu j usei um negcio desses. muito engraado. Ele pode informar que "O seu estilo 32% mais fluente do que o do William Faulkner". Eu digo: "Mas que timo, isso deve ser um elogio". E assim por diante. Dentro desses processadores de texto existem embutidas caractersticas sintticas do estilo de fulano e sicrano. Qual era mesmo a outra pergunta? Luiz Felipe: Sobre Estados Unidos. Como est a fico cientfica. Brulio Tavares: O movimento cyberpunk comeou em 1984 - com a publicao do Neuromancer, do William Gibson, que foi o primeiro livro -, logo depois saram os outros livros do Gibson, do Bruce Sterling, de vrios outros. O que acontece o seguinte: o mercado da fico cientfica norte-americano um mercado muito fechado. Apesar de ser imenso, um mercado fechado, no sentido de que tem limites bem traados. As informaes ricocheteiam l dentro, por ser um universo pequeno, e ricocheteiam com velocidade muitssimo maior. Ento, o ponto de surgimento, clmax e esgotamento de um gnero, ou de um modismo literrio dentro da fico cientfica, em torno de 5, 6 anos, no sentido de que a quantidade de informaes que circulam, de histrias que os escritores inventam, de informaes que os leitores absorvem, at chegar quele ponto de dizer: "Ai, meu saco, eu no agento mais ouvir falar em tal e tal coisa". Uso um perodo de 5, 6, 7 anos. Ento, por exemplo, eu me lembro que, j em 1991, algum perguntou uma vez para o editor da haac Asimov Magazine, o Gardener Dusoir: "O movimento cyberpunk ainda est na moda?". Ele disse: "No, isso j acabou h muito tempo. O que est na moda e j est comeando a encher o saco nanotecnologia". So as micromquinas, mquinas do tamanho de molculas e tudo o mais, que voc injeta no corpo, ou que o cara contaminado quando chega num pas e diz: "Meu Deus, esse pas, esse planeta, esse asteride desabitado". E os habitantes esto entrando por todos os poros do corpo
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dele, os robs de l. Ento, nanotecnologia foi um negcio cujo auge foi por volta de 90, 91 e que, agora em 95, j deve estar caindo. Agora, uma coisa que no cai de moda e que vem desde os anos 70, cresceu demais nos anos 80 e est cada vez mais forte nos anos 90, na fico cientfica mistura de enredos de fico cientfica com personagens da Histria, com personagens reais da histria do sculo passado, da histria desse sculo e tudo o mais. Inclusive, teve um escritor uma vez, acho que foi o Kim Stanley Robinson, que ele disse certa vez: "Me parece, cada vez mais, que assim como antigamente as cincias tpicas da fico cientfica eram a Astronutica, a Cosmologia, a Astronomia, hoje a cincia tpica da fico cientfica a Histria (com H maisculo), tanto a Histria tradicional quanto a Histria contempornea". Uma coisa que nunca sai de moda na fico cientfica so as histrias de viagem no tempo, onde voc encontra com Hitler, Jlio Csar, Jesus Cristo. Vai assistir Crucificao e tudo o mais ou, ento, histrias que se passam no sculo passado em que Jlio Verne foi aos Estados Unidos ver o Edgar Allan Poe, que ainda estava vivo e no tinha morrido em 1849 e tal. E assim por diante, e vrias outras histrias com personagens contemporneos, personagens do mundo de hoje. Essa uma tendncia que me parece, inclusive, muito mais frutfera porque no uma moda passageira. Comea a parecer que uma coisa que est na raiz do prprio conceito de fico cientfica. Platia (Camila de Melo Andrade): Voc falou de Mquinas que pensam. Eu nunca li esse livro, nem ouvi falar, mas voc falou que o homem se tornaria obsoleto e a mquina seria criativa. S que a mquina foi criada pelo homem. Ento, quem reproduziria a mquina, se foi o homem quem criou a mquina? O jogo de RPG, de computador ou videogame, j tem imagens prontas, isso anula a criatividade. Voc contra, ento? Mauro dos Prazeres: Eu no sou contra nada, pelo contrrio. Snia Mota: Deixa de ser "murista", Mauro. No contra nada? Mauro dos Prazeres: Antigamente, eu me considerava um radical anti-radicais. Agora, nem mais isso eu sou. Eu j admito o radicalismo. Eu j acho que o sujeito tem direito de ser radical. Eu no sou contra. que eu acho que uma coisa bacana, gostosa, assim como bacana e gostoso jogar bilhar. Agora, tem um sabor no RPG, onde voc imagina, onde voc cria, que no tem nesse outro tipo de brincadeira que, se
algum quiser chamar de RPG, pode chamar, mas como j disse o outro rapaz, no . Platia (Camila de Melo Andrade): Eu acho tambm que no RPG. E s um jogo. Mauro dos Prazeres: E gostoso. E legal. E bacana. No sou contra. Mas no igual ao exemplo da aranha que eu estava contando aqui. Platia (Maurcio): Eu estudo Engenharia na UFRJ. Alis, uma das coisas que me fez ir para l foi justamente essa discusso sobre robtica e tal, que era uma coisa que, na poca que eu fiz vestibular, estava muito difundida. At tinha sido criado o curso de Mecatrnica na Unicamp. Computadores pensam, sim. Eu vi um programa de inteligncia artificial em que o computador desenvolveu um raciocnio criativo atravs de uma seqncia em um jogo. Era um jogo simples, de colocar. Ele desenvolveu uma estratgia diferente da que tinha sido programada nele. S que esse tipo de pensamento s funciona num pensamento que pode seguir um raciocnio lgico. Quer dizer, uma coisa criativa, atravs de emoo, de alguma coisa sensorial - como a gente no desenvolveu a tecnologia de computao atravs de componentes orgnicos, quer dizer, voc usar a qumica orgnica para fazer um componente, voc fazer um chip de hidrognio, voc s usa componentes inorgnicos. Voc faz um diip e, como no tem essa teoria, essa tecnologia para trabalhar com componentes orgnicos, voc nunca vai atingir a complexidade do crebro humano. Ento, o neurnio, ele pode no se comunicar muito rpido com outro neurnio, mas o processamento de informao que um neurnio faz e passa para outro muito mais complexo de que um diip. Voc, para simular um neurnio, precisa de uma rede enorme de chips. Tanto que a tecnologia mais moderna na inteligncia artificial de rede neuronal, que simulando o neurnio. Isso uma coisa, uma discusso que rola. Vou falar rapidinho aqui sobre o negcio cyerpunc. Talvez no seja mais to moderno como fico cientfica por causa da Internet, que quase uma realizao desse ideal do cyberpmk, s que com a diferena que na Internet voc no tem todos os sentidos. Voc est ligado via computador. Quer dizer tambm, voc depende daquilo que a mquina est te trazendo. Brulio Tavares: uma ligao texto e imagem, mais nada. Platia (Maurcio): Mas eu acho que isso talvez seja uma das grandes revolues que a gente tem agora. Como a revoluo da informao no
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s por acaso. Voc pode conversar, como ele estava falando, de voc estar ligado aqui, falando com o cara da China, o outro cara de outro lugar, com os negcios no corpo. Voc no tem aquilo no corpo inteiro, mas voc est ligando, vendo aquilo pela tela. Fico desesperado quando vejo aquilo tudo: estou no computador, estou batendo um papo com o cara na China, outro na Austrlia, outro no Alasca. Voc se perde completamente. Um negcio fantstico. O Mauro estava falando justamente dessas trs revolues: da revoluo agrcola e da industrial. A terceira seria a revoluo da informao ou da tecnologia? Mauro dos Prazeres: No. Todas as trs so tecnolgicas. Agricultura tambm uma tecnologia. A terceira seria a revoluo produzida no nosso modo de viver atravs das novas tecnologias, principalmente a tecnologia de informao. Principalmente, mas no s. Essas so as definies do Alvin Tofler. Platia (Maurcio): Voc concorda? Mauro dos Prazeres: No. Eu concordei durante muito tempo. Hoje, o que eu penso - acabei dizendo muito rpido na palestra - o seguinte: tecnologia energia, grau de liberdade. Se voc der tecnologia para um sujeito que no tem o que comer, eu sei exatamente o que ele vai fazer: ele vai trabalhar e vai comer. Agora, se o sujeito tem dez milhes de dlares no banco, eu no tenho a menor idia do que ele vai fazer com a tecnologia. Se eu te der toda a tecnologia do mundo, nada me garante que voc vai usar. Se voc s tiver um computador com uma Internet pequenininha, tenho certeza de que voc vai usar. Mas, se voc tiver toda a tecnologia do mundo, voc no vai usar. Porque as pessoas, a partir de um certo ponto de satisfao de necessidades, procuram outras coisas. O que eu acredito que a tecnologia est dando graus de liberdade assustadores. Dentro desses graus de liberdade, o que vai acontecer que, o que humano vai voltar a aparecer e os comportamentos que nos foram induzidos pela sociedade industrial tendem a desaparecer. Eu tenho a impresso de que a gente vai voltar, de certa maneira, do ponto de vista de conceito, um pouco a viver como nas aldeias antigas. S que numa era eletrnica. E a minha impresso. Platia (Frederico Augusto): Eu tenho uma pergunta para o Brulio. Voc falou que os autores de fico cientfica comearam a criar universos nos quais eles podiam contar as suas histrias e voltar a esses universos.
Mas, o que voc acha da crtica que o Harlan Elison faz, dizendo que isso est sendo responsvel por uma avalanche de produes literrias no mercado de fico cientfica dos Estados Unidos, onde voc acaba tendo sries interminveis nesses universos e como se fosse uma sada fcil para um autor, que no tenha tanto talento assim, e acaba prejudicando os outros, inclusive ele menciona o Piers Anthony que tem aquela srie Xanth. Ele tem vrios livros e tudo o mais. Queria que comentasse isso Brulio Tavares: A medida final de tudo em literatura uma coisa chamada talento, que tambm to difcil de definir quanto, sei l amor liberdade, outras grandes palavras. A medida de tudo talento. Se voc d condies, como o Mauro estava dizendo, se voc d dez milhes de dlares para algum, o que essa pessoa vai fazer com isso? Ento, se voc d um universo pronto para um escritor, o que que esse escritor vai fazer com esse universo pronto? Se voc cede a ele direitos autorais do universo dos robs e da Fundao do Asimov para ele escrever o que quiser, ele pode usar Hari Seldon como personagem principal de um livro. O que que ele vai fazer com Hari Seldon, que seja melhor que Asimov ezl E essa questo que se coloca. Existem muitos universos partilhados, dentro da fico cientfica americana, que isso. O sujeito concebe um universo, contrata quatro ou cinco escritores e o pessoal fica l escrevendo e esses livros so publicados e vendidos aos milhares e tem quem compre e tem quem leia. Em termos de mercado, como escritor profissional, acho isso maravilhoso porque, quanto mais oportunidades tiver, melhor voc tem a certeza de que vai poder viver de escrever. Se, de uma hora para outra, algum me chamar para escrever um livro de Star Trek, eu vou e escrevo. Entende? No o universo onde eu quero trabalhar. Eu quero trabalhar o universo ligado ao Brasil e tudo o mais. Mas, se me contratam para escrever o Star Trek, eu vou e escrevo. Procurarei fazer o melhor, como se eu tivesse concorrendo a um prmio Nobel. Vou dar o melhor de mim. Agora, a crtica do Harlan Elison fundada. Agora, por exemplo, o Harlan Elison foi o mesmo que teve a idia de fazer um universo, um planeta chamado Media - se no me engano - onde ele convidou Poul Anderson, ele convidou o Frederik Pohl, ele convidou uma srie de escritores para escrever episdios baseados nesse planeta. Ento, esse grupo de escritores bolou a Biologia, a Botnica, a gravidade, todas as caractersticas fsicas do planeta e escreveram histrias
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a. Quando voc pega pessoas que querem dar o mximo, o melhor de si literariamente para partilhar o universo, isso o ideal. Agora, dentro da fico cientfica vigora e sempre vai vigorar aquela lei enunciada pelo Theodore Sturgeon. Ele diz que 90% da fico cientfica so uma porcaria. Mas, pensando bem, 90% de tudo na vida uma porcaria tambm. Platia (Abel): Eu cheguei um pouco atrasado e tal, mas o que deu para sentir aqui foi uma discusso clara entre o que vai sobreviver no futuro o homem ou a mquina? Ser que o homem vai sobreviver sua criao? Ser que ns estamos fazendo, assim como o Frankenstein escrito pela Mary Shelley, h cem anos? Ou seja, ns criamos um monstro que ns no podemos domar. A grande questo essa. Eu acho o seguinte: quando comearam a falar sobre a possibilidade do rob ser melhor que o homem, que a tecnologia pode fazer um crebro to desenvolvido quanto o nosso ou melhor, e tal, eu acho que a gente, primeiro, deve pensar o seguinte: a gente s usa cerca de 10% do nosso crebro. S 10% da nossa massa ceflica. Ainda tem 90% para usar. Est tudo vazio, esperando a gente. Est tudo l, preso. Agora, querer comparar o nosso crebro a um CD-ROM? "Ah, porque o CD-ROM armazena mais informaes e tal". No verdade. O crebro capaz de gravar no uma seqncia de imagens, mas, inclusive, uma seqncia de sensaes humanas. Quando voc est sonhando certos sonhos, voc pode inclusive ter uma leve sensao do que voc est vendo, do que voc est sentindo. Se algum te d um soco no sonho, dependendo do sonho, voc pode ter aquela leve sensao de que realmente levou o soco. Algo que no acontece nem na realidade virtual, por mais moderna e mais eficiente que ela seja. Outro ponto que disseram aqui justamente este de tecnologia que, se possvel ser criado daqui a cinqenta anos o computador criativo. Bom, cinqenta anos atrs ningum imaginava CD-ROM. Assim como no imaginava videogame, assim como no imaginava vrias outras coisas e que teve algum, humano, que chegou e pensou: "Por que no fazer isso? Por que as coisas acontecem? Por que no fazer um modo com que elas aconteam sempre, independente de ser boa, de ser m?" O que difere a gente dos computadores no a questo de rapidez, no a questo de eficincia, no a questo de nada. No. Futuro no existe, cara. O presente existe. E ns que vamos fazer o futuro. Quer dizer, vamos fazer o presente de outras pessoas.
Utilizando mquinas, utilizando rob, utilizando computador, seja l o que for, porque ns temos a nossa criatividade e por isso ns estamos aqui, porque ns desenvolvemos essa criatividade atravs de um jogo, atravs de um jogo que lida justamente com o inesperado. Todo mundo estava falando aqui sobre o Adventure, dos computadores e dos videogames Qual a principal diferena do Adventure para o RPG de mesa? O RPG de mesa, como ele falou - vou usar essa expresso justamente para definir uma coisa da outra. O RPG de mesa, o RPG legtimo aquele em que voc pode chegar aqui e, de repente, comear a interpretar e, de repente algum chegar e quebrar essa vidraa. Imagine que algum, uma tropa de elite quebrou essa vidraa. Eu j vou fazer assim e todo mundo j vai entrar no clima. Computador, no. Computador frio. Simplesmente vai mostrar aquela imagem digitalizada. A imagem digitalizada da tropa de elite entrando, lenta. Dependendo do computador, vai at numa velocidade razovel. Mas voc no pode fazer nada, nada contra isso. Voc no pode chegar e, de repente: "no, eu no quero isso". Eu quero que entre um monstro espacial ao invs da tropa de elite. Muda isso. Eu acho que a gente est aqui para questionar esse tipo de coisa e jamais pensar que o computador pode ser melhor do que a gente. No, o computador nunca vai ser melhor do que a gente. O computador sempre vai precisar de algum na frente dele para dizer o que fazer. Algum que vai dizer, algum que vai dizer o inesperado. Platia (Rodrigo): Bom, infelizmente a discusso hoje passou para o lado do homem e a mquina. Homem contra mquina, quem melhor, no sei o qu. Tudo bem. Isso discutvel, se bom ou ruim falar sobre isso. Agora, uma coisa que eu digo, j disse no dia em que a gente viu o filme Frankenstein, eu prefiro o ser humano ao monstro, no caso do Frankenstein, ou ao computador, ou crebro artificial, ou qualquer coisa que possa acontecer. As pessoas gostam muito de cultuar o computador, os monstros, as baleias e as focas. Tm que tentar salvar, preservar o homem, s vezes, de vez em quando. O que as pessoas esto fazendo, a civilizao inteira, esto dando muita importncia para a porcaria do computador que , no fundo, uma ferramenta para voc fazer outra coisa. um martelo que bate num prego tetradimensional ou qualquer coisa do tipo. s isso que tenho a dizer. Alis, no. Eu tenho mais uma coisa a dizer, sim. O Alan falou sobre o Aldous Huxley e Mauro disse "Ah, se
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ele no tivesse escrito o livro! Com o livro ele mudou o mundo", no sei o qu. Eu concordo com isso. Eu quero saber a sua opinio. Porque, se eu fao uma previso: "Ah, com os acontecimentos na Europa, nego expulsando os turcos, no sei o qu, daqui a pouco vai aparecer um novo Hitler e nego vai destruir tudo de novo*. Automaticamente, as pessoas vo tomar conscincia e esse fato vai ganhar 20, 30, 40% de chance de no existir. Ento, qualquer coisa prevista j no mais possvel. E possvel, mas j aumenta a sua dificuldade. Mauro dos Prazeres: E. Este um problema clssico de previso temporal. Aparece em muitos livros de fico cientfica. O melhor nessa rea que eu li, e li pouco comparando com o Brulio, o Fim da eternidade, de Asimov. O que eu quis dizer foi o seguinte: eu acho o Admirvel mundo novo um livro excepcional e ele est entre os livros que ajudam a nos advertir sobre as tragdias que podem acontecer se fizermos bobagem. Um filme que no tem valor artstico, que ningum gostou, O dia seguinte, era um filme americano sobre o dia em que o mundo acabou numa Guerra atmica. Ser que aquele filme no ajudou a acabar com a guerra atmica? Quer dizer, o valor literrio de uma obra, o valor histrico, e o quanto ela acerta em previses so trs coisas diferentes. Trs fatores totalmente diferentes. Eu concordo com tudo que voc disse. Eu sou engenheiro eletrnico, fui analista de software quase toda a minha vida. S para encerrar esta discusso: computador um martelo. Pode vir a ser o martelo mais lindo que a gente j fez, mas um martelo. Vocs esto aqui, vocs so jogadores de RPG. Por que vocs no esto jogando videogame? No lindo? No colorido? No fantstico? No tem 64 megas? O que vocs esto fazendo aqui? Se a tecnologia o futuro, eu pergunto: o que vocs esto fazendo aqui? Esto contando histrias um para o outro, em vez de usar a tecnologia. Vo para casa usar tecnologia. No vo. Esto aqui. E prova daquilo que eu estou dizendo: tecnologia s grau de liberdade. No transforma nossas vidas apenas porque existe. Transforma apenas se, e na medida que, quisermos utiliz-la, e quem tem tecnologia demais, no usa. Platia (Rodrigo): J que eu estou encerrando, s para ser um pouco piegas, eu gostaria de parabenizar a Snia pela entrevista que eu li ontem na revista The Universe of RPG, que eu achei muito legal. Snia Mota: Obrigada.
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EXPERINCIAS NOVAS NA RELAO ENTRE ROLEPLAYING GAME E ARTE
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A DIFUSO DO
RPG NO BRASIL
DOUGLAS QUINTA Editor
Ns, da Devir, estivemos desde o princpio fortemente envolvidos com a difuso do RPG, at porque isso fazia parte de nosso trabalho como importadores de material de RPG e, mais tarde, editores. Quando ns entramos em contato com o RPG, mais ou menos em 1988 - e quando eu digo entrar em contato quero dizer olhar para o RPG, descobrir o que que ele significa e o que a gente tinha na mo - percebemos que se tratava de uma brincadeira muito diferente da maioria das outras atividades ldicas. Ele tinha duas caractersticas marcantes: A primeira era o fato de se tratar de uma atividade no competitiva. Em geral todos os participantes estavam do mesmo lado e trabalhavam em conjunto para alcanar um objetivo comum. Essa uma diferena importante com relao maioria das outras atividades ldicas. A segunda caracterstica o fato de o RPG provocar uma certa paixo naqueles que o praticam e essa paixo acabar se transformando numa tendncia a procurar mais informao para melhorar a brincadeira. O problema bsico que ns enfrentamos na poca foi o que fazer com isso? Ficamos maravilhados com o RPG e achamos que deveramos trabalhar no sentido de mostr-lo a todas as pessoas que no o conhecem. E vocs podem ter certeza que o RPG era e continua sendo uma coisa muito difcil de se vender, porque ele diferente de um jogo de xadrez ou de um videogame junto com os quais existe um manual que diz "Pegue a fita ou o cartucho, coloque em seu videogame e aperte a tecla X". No existe nenhum manual que ensine a jogar RPG. Noventa e nove por cento das pessoas aprende a jogar jogando. E difcil dizer: "Olha, como mestre voc deve fazer isso, isto e aquilo". J vi muitos textos tentando explicar como o RPG funciona mas nunca encontrei nenhum que fosse mais ou menos razovel no sentido de ensinar uma pessoa que nunca assistiu ou participou de uma aventura o que uma sesso de RPG. Como que a gente faz para formar um mestre ou um jogador? Estava
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claro para ns que a nica maneira de popularizar o RPG seria ensinando pessoa a pessoa. Por isso, o mtodo que adotamos desde o incio foi dar palestras e fazer sesses de demonstrao em todos os clubes, bibliotecas e escolas, pblicas ou particulares que se dispusessem a ceder um espao onde pudssemos conversar com os futuros jogadores. Nesse processo a Gibiteca Municipal Henfil, em So Paulo, desempenhou um papel importantssimo porque eles acreditaram desde o princpio no RPG como uma atividade importante e trabalharam como uma espcie de ponta de lana na difuso dessa experincia. A abertura do Incomum Encontro Internacional de RPG, por exemplo, foi uma palestra e uma demonstrao para as quais foram convidados os bibliotecrios de de todas as bibliotecas infanto-juvenis da cidade de So Paulo. Durante todo esse tempo, tivemos sempre o cuidado de mostrar o RPG no s para os candidatos a jogador, mas tambm para os professores e bibliotecrios na expectativa de que eles percebessem que aquela era uma atividade que podia ajud-los, que ela no ia competir com a escola pelo tempo dos garotos e poderia sim ser uma forma de entusiasm-los com algum assunto especfico que fosse do interesse da escola. Em so Paulo, isso foi bastante produtivo. Quem fizer uma pesquisa hoje em dia encontrar pelo menos uma dzia de bibliotecas que tm ou tiveram grupos de jogadores que vo at l regularmente para jogar. A Gibiteca Henfil, por exemplo, um lugar praticamente impossvel de se ler qualquer coisa nas sextas-feiras tarde porque existe ali uns cinco ou seis grupos de jogadores que fazem um barulho infernal. Mas, apesar deste distrbio para uma biblioteca, os bibliotecrios acham que vale a pena ter os jogadores de RPG. Primeiro porque eles passaram a usar a biblioteca como espao de jogo e uma biblioteca no apenas um depsito de livros. Ela deve gerar atividades culturais para seus freqentadores. E, se existem atividades bem definidas que atraem um pblico infantil, o mesmo no necessariamente verdade para o pblico juvenil. Para isso, o RPG vem bem a calhar. Segundo porque na medida que precisam de informao para preparar suas aventuras, os mestres e jogadores passam a usar o acervo da biblioteca: os mapas, as enciclopdias, os livros de histria, os romances e as revistas de histrias em quadrinhos so material de referncia para eles. Existem hoje vrias escolas em So Paulo que usam o RPG como um
instrumento de trabalho. O professor tem a lousa, o giz, o globo, o atlas e agora o RPG. Ele o usa como uma maneira de interessar o aluno por um determinado assunto. 'Agora, ns vamos brincar. Vamos fazer uma aventura que se passa em So Paulo em 1560." E, atravs do jogo, eles procuram passar as informaes ou despertar o interesse que vai levar os alunos a estudarem para obter as informaes que o professor deseja que eles obtenham. E claro que voc tambm pode usar o processo inverso. A professora Cludia Malancone, do Colgio Fernando Pessoa, descobriu que tinha um grupo de alunos que gostava muito de RPG. Depois de se familiarizar com o assunto ela pediu que os alunos desenvolvessem uma aventurasolo. Eles passaram um ano escrevendo a aventura e durante todo esse tempo fizeram a melhor coisa que existe para se aprender a escrever leram e escreveram. Alm disso, uma aventura-solo tem uma estrutura exatamente igual de um programa de computador. E o processo de desenvolver a aventura-solo faz com que a pessoa que o faz passe a compreender melhor como funciona um programa. Mais recentemete, quando comeamos a organizar o I Encontro Internacional de RPG, a Folha de So Paulo publicou um artigo sobre o evento. Fomos ento procurados pela Companhia de Engenharia de Trnsito de So Paulo porque eles haviam lido a matria e se interessado pelo assunto. A, eles foram Devir e participaram de algumas sesses de jogo para entenderem como ele funcionava. A partir da, criamos em conjunto uma aventura para alunos de segundo grau. A aventura procura transmitir os conceitos bsicos de cidadania no trnsito. Eles acharam a idia do RPG fantstica porque em vez da pessoa sentar e ouvir uma srie de conceitos sobre o trnsito - o que para um garoto de 14 anos pode ser uma coisa muito chata -, a pessoa participaria da criao de uma histria onde as oito pessoas envolvidas tm de sair do escritrio de um advogado e atravessar a cidade o mais rpido possvel para conseguir receber uma herana. O que chegar primeiro fica com a herana. Obviamente, neste trajeto eles encontram todos os tipos de problema que se quer discutir: gente que fecha o farol, pra em fila dupla, etc... O jogador com pressa, enfrenta todos os problemas gerados pela falta de educao no trnsito. A tendncia isso marcar muito mais do que ouvir algum dizendo exatamente a mesma coisa. Hoje eles tm doze mestres que freqentam
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escolas todos os dias usando esta aventura. Alm de ensinar as regras de trnsito, estres mestres ensinam todos dias a um certo nmero de garotos os princpios bsicos do RPG. Esto ensinando duas coisas ao mesmo tempo. Alm disso, temos em nossa livraria, um espao que reservado todos os sbados para aqueles que desejam aprender a jogar RPG; ou seja, a funo principal deste espao ensinar as pessoas a jogarem. A medida que elas comeam a ganhar experincia, comeamos a empurrlas para fora para darmos espao para os novos. Acho estes lugares onde se ensina RPG muito importantes. E foi isso, de certa forma, que nos guiou na organizao dos eventos de RPG que produzimos. Eles so completamente diferentes dos eventos que existem no exterior. Se algum for a uma conveno de RPG nos Estados Unidos ver que ela um evento para iniciados, elas so preparadas para pessoas que j jogam e j sabem o que querem. Elas no abrem espao para quem no sabe o que e gostaria de saber. Procuramos uma tendncia exatamente oposta. Nos dois primeiros, tivemos eventos voltados principalmente para principiantes. E, graas colaborao de mestres mais experientes fomos bem sucedidos, ensinamos um monte de gente a jogar. S a partir do III EIRPG que paramos para nos preocupar seriamente com os jogadores mais experientes. Hoje o Encontro tem uma estrutura que recebe de seis a oito mil pessoas, das quais dois ou trs mil so com certeza principiantes. Sempre procuramos atrair o maior nmero de pessoas possvel que no conhecem o assunto. Por isso procuramos a imprensa e os meios de comunicao. Muita gente que no sabe o que v no jornal e pensa "Hum, Isso parece interessante" e vai at l para dar uma olhada. Por isso, a partir de um evento chamado "Um dia de Aventura" realizado no SESC Pompia passamos a ter um grupo de mestres sentado debaixo de uma plaquinha onde est escrito "O Que RPG?" cuja nica funo receber pessoas que no conhecem a brincadeira. Elas perguntam "O que isso?" E eles respondem "Ah, RPG isso, isso e aquilo, voc quer experimentar?", "Quero". "Ento , senta a que a gente ensina."
RPG E RDIO:
A RADIONOVELA DA F M - U S P
LUCIANO ALVES
Eu queria comear, agradecendo, rapidamente, a todos os que esto produzindo o evento "RPG &. Arte", porque sempre bom ter uma oportunidade de divulgar o RPG. O meu tema a experincia da radionovela "Labirinto", da FM-USP. Para comear, vou mostrar um pequeno trecho, em K-7, de uma das aventuras que produzimos, para o pessoal no ficar "boiando" na hora em que eu comear a comentar o assunto. "O castelo mal-assombrado de Lorde Carnavon, beira do turvo rio Sprint que o rodeia, um castelo inexpugnvel. Em seu interior, esto guardadas algumas das maiores riquezas produzidas pela mo do homem. Rezam as lendas que Lorde Carnavon, para no morrer e se separar das suas riquezas, pactuou com as foras do mal e se tornou um lendrio feiticeiro, controlador das foras que regem a vida e a morte. Desde ento o castelo e seus arredores permanecem eternamente cobertos pelas brumas misteriosas da morte. As rvores perderam a vida, o cu ostenta um cinza fatdico. E, mesmo os animais, deixaram aquelas bandas. Apenas os ratos ainda ousam se aventurar. E, por falar em ratos, em meio a um nevoeiro que cerca o castelo, protegidos pela escurido da noite..." - "Entre sem fazer barulho, Burt. Qualquer som pode nos denunciar". - "Mal posso esperar para colocar as mos naquelas gemas, Spike. Dizem que o rubi de Samam to grande que levanta at um morto." - "Sim, me disseram tambm que o ltimo infeliz que tentou roubar a jia apareceu esfolado e esquartejado..." Este um trecho de uma das aventuras que ns produzimos para a rdio. E o comeo dela, a ambientao, e como a gente fez isso. Eu vou continuar depois. E s para vocs terem uma idia do que se trata. Como a maioria dos participantes desse seminrio, eu acredito, ns ramos um grupo de cinco pessoas que jogava RPG. E queramos ter uma oportunidade de poder ter uma realizao profissional com RPG. Ento
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em 1994, h mais ou menos um ano, ns comeamos com dois projetos. Esse, de criar um programa de rdio, baseado em aventuras de RPG, e um outro, de trabalhar com os menores de rua da Praa da S, l em So Paulo, ensinando-os a jogar RPG e poder usar RPG de modo pedaggico tambm. Ns fizemos um trabalho com a Pastoral do Menor, l. S que, por falta de tempo, por uma srie de incompatibilidades, comeamos a trabalhar somente com a rdio. A gente acabou abandonando, mas pretendemos retomar o projeto. No projeto da rdio, ns no sabamos exatamente como fazer um programa. O Maurcio Gibrin, que faz parte do grupo, jornalista e fez uma matria sobre RPG. Ele gravou trechos de jogos de RPG e mostrou para uma professora dele, que deu a idia do programa. "Por que vocs no fazem um programa inspirado em aventuras de RPG, uma radionovela?". E, a, a gente se animou. Primeiro fizemos uma anlise do jogo. Vamos ver o que o RPG tem de interessante. O que que mais anima as pessoas no jogo? A imaginao, por exemplo, essencial porque, se formos ver bem, um jogo de RPG no passa de um bate-papo. Cinco, seis pessoas sentadas numa mesa, falando. E haja imaginao. Todo mundo aqui, acho, j conversou com algum que joga RPG, e at engraado ver a pessoa falando assim: "No, porque eu era um guerreiro e ns entramos num castelo e tal", como se fosse realidade. E, ento, ns falamos assim: imaginao era a palavra chave. Como que ns amos lidar com isso? O rdio foi uma unanimidade, descobrimos que era a melhor forma de se fazer isso, porque voc trabalha s com a audio, como no jogo mesmo. Ento, a gente pe uma trilha sonora, um efeito sonoro, e o programa ficou baseado na imaginao das pessoas mesmo, como num jogo. Pegamos outras coisas tambm, pegamos a interao. Como que podamos trazer isso para o rdio? Fizemos um programa do tipo da T V Globo, o "Voc Decide". As aventuras que produzimos chegam em situaes em que o ouvinte convidado a participar. Por exemplo, os trs personagens se encontram numa emboscada, o que eles devem fazer? Eles devem tentar salvar a princesa, desistir, procurar uma outra sada? Ou, ento, os ouvintes podem sugerir que as personagens participem da aventura de uma outra maneira. Por exemplo, est havendo uma investigao: quem ser o culpado do assassinato do famoso jornalista?
As pessoas tambm ligam para dizerem o que que elas acham da trama mesmo. Conseguimos aliar a interatividade ao rdio, tambm. O fator interpretao o que vocs podem ouvir na fita K-7, cujo trecho foi reproduzido aqui para demonstrar o que a gente faz na radionovela. basicamente interpretao, porque voc s tem o rdio, o outro s ouve. Se voc no conseguir diferenciar bem as vozes, fica uma coisa muito confusa. Por isso, a gente faz um tipo de voz bem caracterstico. Chega a no ser uma voz comum, justamente para diferenciar. Por ltimo, o fator que foi o que no pretendamos e no conseguimos realizar, infelizmente que a improvisao. No projeto inicial, no teramos os finais da aventura' pr-gravados. Os ouvintes ligariam e ns tentaramos improvisar no ar o final mais curioso, ou seja, fazer uma encenao no ar, com um final criado pelo pblico. Obviamente, ns teramos alguns finais mais ou menos pensados. O problema veio porque constatamos que, justamente para a aventura ficar boa, precisaria de efeito sonoro, trilha sonora. E fazer isso ao vivo foi invivel, realmente. Foi necessrio abrir mo da improvisao, do final gravado na hora. Planejamos como executar isso, como escrever as histrias. O pblico de RPG, em geral, gosta da fantasia, gosta do pico, de terror, tudo que tenha muita ao. Ns procuramos escrever histrias desse tipo. Eu vou mostrar outro trecho de uma histria. O que eu vou mostrar trecho de uma aventura que fizemos baseada numa das batalhas vencidas por Napoleo, quando ele estava invadindo Viena. um dos momentos em que o ouvinte convidado a participar, o meio de uma batalha: - "Vamos, homens! Avancem! Avancem!" - Com uma rpida olhada, o sargento Lafith percebe o desespero dos soldados austracos principalmente do soldado que segura a bandeira do exrcito. - "Meu Deus! Eu posso, eu vou tentar capturar a bandeira. Isso pode decidir a batalha em nosso favor". (Narrador) "As flmulas e bandeiras eram o smbolo maior da tropa da poca. Perd-las, significava mais do que a simples derrota; significava a mais completa humilhao. O sargento Lafith avana rumo bandeira inimiga quando... - "Ah, fui atingido!" - Lafith ouve o grito do capito Arnaud, atingido por um disparo.
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- "Arnaud! Se eu no salv-lo ele vai morrer". Lafith hesita por alguns segundos. O soldado que segura a bandeira austraca comea a recuar e as fileiras inimigas tentam se reorganizar. Mas, ao olhar para o Imperador Napoleo... - "Oh, no!* Um disparo atinge o cavalo do general que, agitado, derruba o comandante. - "Napoleo, preciso socorr-lo!"- Lafith se detm por um instante. (Narrador) E agora, o que deve ele fazer? Deve tentar tomar a bandeira adversria? Deve salvar Arnaud da morte certa? Ou deve acudir o Imperador Napoleo? E agora, o que deve acontecer? Deve o sargento Lafith socorrer o capito Arnaud? Deve ele acudir o general Napoleo? Ou deve capturar a bandeira adversria? Ligue. Decida! 818-3945 e 8183960. Se ligar, estar concorrendo a um magnfico Lobisomem, o Apocalipse, oferecido pela Devir Livraria". Vocs podem observar que a h uma escolha absolutamente moral. Uma escolha em que o ouvinte colocado na parede. Ele salva o chefe, salva o amigo ou tenta dar um fim na batalha? Nesses intervalos, a gente coloca msica. Enquanto isso, os ouvintes vo ligando. Uma das coisas que o pessoal mais gosta de participar. O que a fomos percebendo que comeou a ligar muita gente e foi descoberta uma outra forma de participar que no contvamos, no comeo: geralmente falamos o nome de todo mundo que ligou, no ar. Ento, o pessoal passou a dar pseudnimos, em vez de nome. H, at, uns nomes muito curiosos aqui que eu anotei para mostrar. J ligaram para ns Vito Brocolho Doido, o prprio Napoleo Bonaparte j ligou, Condor da Montanha, Conan, o Barbeiro, Bolha Assassina Cintilante, entre outros. H uma lista enorme. O pessoal descobriu uma outra forma com a qual, no comeo, no contvamos. Virou uma outra forma de interao com o programa. No diretamente na aventura, mas na imaginao de cada um. Cada um se imagina. Tem um outro trecho que eu acho interessante mostrar. Essa, aqui, uma aventura mais cmica. Ela fala de homens das cavernas. (Narrador) Nossa histria comea quando nossos heris Uga, Buga e Bum se perdem de seus semelhantes durante uma caada. - "Uhmm, droga! Uhmm, droga! Uhmm!". - T a r e de reclamar, Uga. Logo, logo encontraremos nossa tribo." - "Droga, droga. Eu j estar cansado. Estamos andando h umas 4 horas".
- "Como que voc sabe? Ainda no inventaram o relgio". - "Uhmm. Tem razo". - "Ns no tinha que correr atrs daquele bicho. Ele era muito rpido. Perdemos o animal e tambm o nosso grupo". - "Uhmm. Desgraa. Que que ns vai fazer?". - "Uhmm. Espere a. Eu reconhecer aquele rochedo. Estamos perto do acampamento*. - "Buga tem razo. Vamos". (Narrador) Rapidamente, nossos heris procuram o local onde se encontram seus companheiros. De repente... - "Olha, ali". (Narrador) Uga reconhece o local onde os pr-histricos acampavam. S que... - "Oh, no. O local foi abandonado". - "Raios, quem mandou a gente ser nmade?". (Narrador) E agora, onde eles estaro?" Essa foi uma aventura mais cmica. Tem outras piadas a, mas mostrar toda a aventura agora no d tempo. Uma das coisas de que mais gostamos escrever as histrias, realmente. A execuo mesmo, fazer isso, demanda trabalho, porque temos de elaborar duas histrias por semana, porque temos dois programas semanais. Gravamos as falas e gravamos efeitos sonoros como passos, trovo, chuva, tudo isso e a trilha sonora porque, sem trilha sonora, perderia realmente muito. Uma das coisas de que mais gostamos de fazer, tambm, interpretao. Podermos fazer uns personagens desses. Alis, quando vocs ouvem essas vozes grossas, parece que um homem forte falando. tudo mentira. Esse outro fator que o rdio ajuda muito. O saldo final foi um programa em que a gente conseguiu, realmente traduzir o RPG. Trabalhamos com todos os estilos de histrias: pico cmico, futurista. Existe outro trecho onde o ouvinte convidado a decidir, por exemplo, a adivinhar quem foi o assassino de uma trama. A o pessoal se empolga. H pessoas que chutam at aquele personagem de ponta que apareceu no comecinho da aventura, que no tinha nada a ver com a histria. Vamos ouvir um desses momentos: - "Voc est despedido, Lane". (Narrador) Sbito, Lane muda o seu tom de voz:
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- "No. Eu no estou despedido, no". (Narrador) A resposta do reprter surpreende a todos na sala: - "Oh, mas como no?!!* "Sou eu que mando por aqui". - "Sim, senhor. Mas o senhor no seria idiota de mandar embora a nica pessoa que sabe quem matou e qual foi o motivo do assassinato do juiz Roland Barthes." - "Como? Esse pode ser o maior furo do sculo. Muito bem, Lane. Explique-se. Quem matou o juiz e por qu?" A o ouvinte convidado a decidir quem foi que matou e por qu. Quem acerta, concorre a um prmio concedido pela... Bom, vou deixar o merchandising de lado. Basicamente isso. Para finalizar gostaria de citar os outros componentes do grupo, o Fabiano Ona, o Rupak Patitunda, Rafael Gomez e ns aqui presentes, eu e o Maurcio Gibrin.
ORPG
BRASILEIRO
LUIZ EDUARDO RJCON Autor do RPG Desafio dos Bandeirantes
Antes de mais nada, gostaria de agradecer ao Centro Cultural Banco do Brasil, um dos espaos culturais mais expressivos do pas, por ter dedicado esse evento ao RPG. uma coisa muito importante para todos ns estarmos aqui, debatendo o RPG - que at muito pouco tempo atrs era visto como um jogo de malucos, como uma simples diverso de adolescentes. Talvez as pessoas no tenham se dado conta ainda, mas eu acho que, depois desse evento, no h mais como reverter o crescimento do RPG no Brasil. O tema da minha palestra "o RPG brasileiro e as relaes entre o RPG e a arte". Dentro disso, eu pretendo mostrar um pouco da minha experincia pessoal, da experincia do grupo com o qual eu trabalho e das pessoas que colaboram com a gente. Para comear, na minha viso, a histria do RPG brasileiro tem dois momentos distintos: at aqui e daqui para a frente. Mas antes vamos voltar um pouco para o comeo do RPG brasileiro. Talvez vocs no saibam, mas o RPG brasileiro surgiu do inconformismo. Surgiu do simples fato dos jogadores no concordarem com alguma regrinha de um RPG qualquer. Uns jogadores simplesmente mudam a regra. Outros so mais inconformados e querem mudar ainda mais. Ento depois de mudar bastante as regras, eles acabam criando seu prprio sistema de RPG. E claro que esse questionamento no se prende somente s regras, mas tambm dirigido ao ambiente, ao tema do jogo, etc. De qualquer maneira, o que explica o surgimento do RPG brasileiro isso: "eu quero fazer do meu jeito". Por qu? No meu caso, j disse isso vrias vezes, foi por preguia. Porque ns (eu e o grupo que criou comigo o Desafio dos Bandeirantes), no tnhamos pacincia para ler o Dungeon Master's Cuide, ler o Player's Handbook, ler o Monscrous Compendium ler mais um mdulo de ambientao e gastar mais de 75 dlares para poder jogar RPG. No, eu no preciso gastar 75 dlares! Eu vou apenas sentar
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com meus amigos em volta de uma mesa, vou contar uma histria e a gente vai se divertir e vai rolar os dados. S isso. Ah, claro, com cocacola e outras coisas... A partir da foi que surgiu o RPG brasileiro. A partir do momento em que o jogador chegava na loja e via aquelas capas maravilhosas, aquelas caixas incrveis, olhava no bolso, no tinha os dlares para comprar e pensava: "puxa vida, talvez eu possa fazer isso em casa." E acabava conseguindo. claro que a minha experincia foi gerada, tambm, por coisas que vieram antes. Pelo trabalho da Editora Devir, que trouxe os RPGs para o Brasil e os colocou venda nas lojas de revistas em quadrinhos; muito tambm pelo pessoal do Tagmar, que foi o primeiro RPG criado no Brasil. Alguns deles, por acaso, eram meus amigos pessoais antes de trabalharmos juntos. Eles mostraram que era possvel se fazer um RPG no Brasil, e eu acredito que muita gente se surpreendeu com isso. Agora, voc no precisava mais ficar sentado esperando a TSR ou a White Wolf, ou seja l quem for, lanar os livros para voc, "bitoladamente", comprar e jogar de maneira limitada. No, agora voc podia criar. Agora voc podia botar sua criatividade para fora, mais do que era possvel at ento. Porque eu deveria simplesmente criar as aventuras e me adequar ao modelo que foi criado por uma outra pessoa? Por que eu no posso criar o meu prprio modelo? Por que eu no posso criar o meu ambiente ficcional, contar a minha histria, com os meus personagens, no meu mundo e no no mundo de outra pessoa? Eu acho que tudo partiu da. Comigo, pelo menos foi assim. Depois que saiu o Tagmar, eu percebi que, se eu sentasse frente de uma mesa, escrevesse alguma coisa e testasse isso milhes de vezes com meus amigos, eu teria meios de publicar a minha idia. Hoje, usando um computador, voc faz o livro em casa. E depois, atravs de uma impressora a laser, voc imprime isso numa folhinha de laserfilm - no sei se estou falando grego, mas acredito que no - e depois voc leva at uma grfica e pronto. Isso, h 20 anos, era impossvel. H 5 anos, ainda era impossvel. Mas hoje, isso j possvel. Hoje, quase todo mundo que joga RPG teria acesso a essa tecnologia. E ningum se d conta de que isso uma tremenda liberdade que a nossa criatividade conquistou. Quer dizer, hoje voc tem a liberdade de
criar e de mostrar a sua criao para outras pessoas, em qualquer nvel que voc conseguir. Se voc tiver acesso a uma grfica, para imprimir o livro, e tiver acesso a uma editora para publicar esse livro e distribuir em todas as livrarias do pas, timo. Seno, voc imprime o livro na sua impressora, vai na esquina, encaderna numa espiral, tira no sei quantas cpias, leva nas lojas especializadas e fala : "Posso vender o meu RPG aqui?". E tem gente que faz assim. No sei se vocs conhecem o RPG Abismo, mas ele feito dessa maneira. Ou seja, hoje em dia h uma liberdade enorme que a gente conquistou de botar para fora a nossa criatividade. O Desafio dos Bandeirantes nasceu, tambm, de um outro inconformismo. Alm do inconformismo do "eu posso fazer isso do meu jeito" havia um outro questionamento. Quando comecei a jogar RPG obviamente com temas de fantasia medieval, surgiu um problema: um amigo meu no conseguiu, por exemplo, entender o que era um ore. Ele olhou o livro, falou "O que esse O-R-C?". Eu expliquei que o ore era um ser com tais e tais caractersticas e ele ficou achando que os oro tinham apenas 50 centmetros de altura. E por que esse engano? Porque o ore no tem nada a ver com a gente. Ento por que diabos eu tenho que enfrentar drages, trolb e ores? Por que eu no posso enfrentar o boitat, em vez do drago? O RPG pode ser feito de outra maneira? Ora, o que um drago? O drago um rptil enorme, que solta fogo e terrvel. O que o boitat? O boitat uma serpente (um rptil) enorme que solta fogo e terrvel. O que um pbe, um brownie, um sei l o qu desses? um duendezinho da floresta que faz brincadeirinhas, truques, que atazana a vida das pessoas. E o que um saci perer? um duendezinho que vive na floresta e atazana igualmente a vida das pessoas. O que ns percebemos foi que os mitos so arqutipos universais so idias, sentimentos que vo ser retratados da maneira que a cultura em que voc vive traduzir aquilo. Ento, ns fizemos a seguinte experincia: "vamos tentar jogar com boitat para ver se d certo". E deu certo. "Vamos tentar jogar com o saci perer." E deu certo. claro que, nas primeiras aventuras em que apareceu o saci perer, a coisa fica meio sem graa. Afinal, usar o saci perer apenas como um duendezinho que faz brincadeiras no interessante. Mas por que no usar o saci perer como uma criatura demonaca, envolta em mistrio?
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No sei se vocs conhecem a lenda, mas quando o saci aparece, ele precedido por uma ventania, o chamado p de vento. Alm disso, ele invisvel, tem uma risada estranha. Ora, esses so elementos dramticos que voc pode utilizar para colocar "um tempero" nessa criatura mitolgica, para adequar esse mito ao RPG. Este foi o nosso segundo passo: adequar a cultura brasileira maneira de pensar do RPG. E isso uma coisa que l fora eles fizeram tambm. Quando se joga um RPG de fantasia medieval, no se est jogando na Idade Mdia histrica; voc pode at pensar que est jogando na Idade Mdia, mas voc est redondamente enganado. Voc est jogando "fantasia medieval". O que isso? E a mitologia traduzida a partir da viso do homem da Idade Mdia. Por que ento no fazer isso aqui tambm? Foi o que tentamos fazer: pegar a mitologia brasileira, a Histria do Brasil e traduzir, adequar isso ao RPG. Ns nos perguntamos, o que que tem num RPG? Qual a sua estrutura? Bem, o RPG tem heris, o RPG tem aventura, tem monstros, etc. O nosso RPG teria que manter essa estrurura para ser um sucesso, mas teria que encontrar esses elementos na cultura brasileira. A gente criou inclusive uma srie de categorias para os monstros: monstro fraquinho, monstro mais ou menos, monstro muito forte, monstro terrvel. E depois foi pesquisando no folclore brasileiro quais criaturas se adequavam a cada um dos espaos que a gente determinou que existiriam. E escolheu tambm o ambiente, o momento da Histria do Brasil que fosse mais adequado ao jogo. As pessoas, por exemplo, retratam a Idade Mdia nos mundos de fantasia porque este o tempo das grandes batalhas, das grandes buscas, de todas aquelas histrias clssicas do Rei Artur, etc. Ns tivemos de buscar, na Histria do Brasil, um momento que fosse mais puxado para o herico e para o mtico. E chegamos poca dos bandeirantes porque esta uma poca em que o Brasil ainda completamente desconhecido. H somente uma estreita faixa no litoral que ocupado, o resto um imenso matagal do qual no se sabe nada. E este o momento onde h a presena bastante forte das trs raas que formaram a cultura brasileira. Se situssemos historicamente o jogo um pouco antes, o negro no estaria to presente culturalmente. Se escolhssemos um pouco depois, o ndio j estaria muito enfraquecido dentro do imaginrio nacional. No momento do bandeirantismo, no.
As trs raas quase que se eqivalem. H, inclusive, uma coisa muito interessante. Nessa poca, em Piratininga (que era So Paulo), a mistura das culturas era to grande que a lngua que se falava ali tinha muitas expresses e muita influncia do tupi-guarani. As pessoas falavam um misto de portugus com tupi-guarani. Alm disso, os homens e as mulheres se enfeitavam com penas e com colares, a exemplo dos indgenas. uma coisa que, quando se assiste a uma minissrie de TV, no se v. Voc sempre v as pessoas vestidas como se estivessem na Frana de Napoleo e as pessoas acabam no conhecendo o Brasil como realmente era. Voltando Histria do RPG nacional, o momento da criao, do aparecimento do RPG brasileiro, foi o do surgimento do Tagmar e do Aventuras Hericas, que vieram em 1991. Em 1992 surgiu o Desafio dos Bandeirantes. Depois, vieram outras experincias como Abismo, Demos Corporation (que um jogo de espionagem, publicado em Santa Catarina). Porm, at agora, o mercado de RPG era assim: "vamos aproveitar que o RPG est se expandindo e vamos entrar". A partir de agora, no entanto, a coisa muda de figura. E por isso que eufiza distino entre os dois momentos. A partir de 1994, as grandes empresas, as grandes corporaes (para quem joga cyberpunk) esto entrando no cenrio. A Estrela entrou h algum tempo, a Grow tambm j entrou, meio timidamente. Agora a coisa comea a pesar. Entra a Ediouro, com bastante fora e a Abril Jovem tambm vai entrar no mercado da mesma forma. A coisa comea a ficar um pouco mais sria. Hoje em dia, a gente j v o RPG como uma coisa grande. E no para menos. A Editora Abril, que publica a Revista Veja (a revista mais vendida da Amrica Latina), est interessada em RPG. Ou seja, se esses gigantes esto se preocupando com RPG, porque o RPG tem alguma coisa que justifica esse interesse. No acredito que eles vo ganhar rios de dinheiro com RPG, at porque eu no vejo tantos jogadores assim. Mas com certeza existe alguma coisa no RPG que est interessando as pessoas e tem muito a ver com o momento pelo qual o mundo est passando. Porm, para o autor de RPG, a questo hoje de marketing. Se voc no tem uma editora grande para publicar seu livro e empurrar esse livro no mercado, o jeito improvisar, como o jogador de RPG sabe muito bem fazer. Um dos caminhos para isso eu j comentei. chegar em casa
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e produzir voc mesmo, na esttica do punk, dos anos 70: faa, imprima e distribua, com o livro embaixo do brao, como puder, deixando a coisa crescer aos poucos. Quanto aos temas, a minha viso do RPG brasileiro, daqui para a frente, um pouco diferente do que foi at aqui. At agora, a gente podia buscar uma coisa mais tpica brasileira, como o Desafio dos Bandeirantes. Buscar a cultura brasileira e retratar isso de uma maneira mais fiel e mais literal at. Lanar outro do mesmo tipo eu no aconselho. "Ah, tive uma idia maravilhosa. Vou lanar um jogo em que os jogadores so bandeirantes em busca de riquezas". No, esse j existe. No d. Voc vai lanar o "Bandeirantes II, a misso"? No pode. E preciso criar uma coisa que ainda no exista. Que ainda no esteja por a. Mas, como fazer isso? Bem, voc pode delirar. Criar o mundo no sculo XXXV, no planeta Zeist... Mas a no vai ter nada a ver com o que estamos vivendo agora. Todos ns vamos olhar o livro na livraria, e dizer: "Que viagem. Isso no tem nada a ver comigo". Se voc quer criar um RPG nacional, voc tem que buscar no mais o que existe de tpico na cultura ou que seja tpico no Brasil, mas uma coisa que seja mais universal, no sentido de que seja mais profundo do ser humano mesmo. Voc tem que buscar um tema que seja importante, um tema psicolgico, um tema social e, depois, retratar isso atravs do ambiente ficcional que voc quiser. E isso que faz o bom RPG. Ento, se voc fascinado por velho oeste, talvez voc quisesse lanar um jogo de velho oeste. Talvez desse certo, se voc conseguisse encontrar alguma caracterstica, alguma problemtica muito forte, muito vital, uma questo crucial da humanidade hoje em dia. E, se voc conseguisse depois retratar isso atravs do velho oeste, tenho certeza de que seu jogo faria sucesso. Porque todo mundo veria o seu jogo e se reconheceria naquele velho oeste. Isso o mais importante hoje em dia para o RPG, tanto brasileiro quanto estrangeiro. E tentar encontrar uma temtica universal e profunda e, depois, escolher o ambiente ficcional onde isso vai acontecer. E claro que preciso colocar elementos brasileiros. No d para situar o jogo na Finlndia onde os jogadores seriam todos vikings. at possvel se imaginar como um viking. Mas, voc j esteve num fiorde? Voc sabe o que um fiorde? Voc sabe que animais vivem na Finlndia? Voc sabe
com que se parecem as mulheres na Finlndia? complicado. preciso mostrar uma coisa que as pessoas reconheam. Que todo mundo saia na rua e veja, que seja verdadeiro. Isso no precisa ser tipicamente brasileiro no sentido de ser "brazuca", de ser tupiniquim. Tem que ser algo que tenha a ver com o momento do Brasil, mesmo que seja importado. Algo que todos, brasileiras e brasileiros, parafraseando o Sarney, reconheam Quanto criao propriamente dita, at agora eu tive uma tima experincia com o Desafio dos Bandeirantes, que foi a de publicar uma coisa baseada na cultura brasileira. que, de alguma maneira, eu tenho o sonho louco de estar contribuindo para melhorar as pessoas. E gratificante quando acontece como outro dia, em que um garoto de 14 anos me contou que esteve na Biblioteca do Folclore, passou uma tarde inteira l estudando e descobriu sete tipos de saci que no esto no meu livro. Vejam bem, um garoto de 14 anos saiu da sua casa, foi para a Biblioteca do Folclore - eu acredito que todo mundo aqui, quando ouve falar Biblioteca do Folclore, sente at calafrio -, sentou na cadeira e pesquisou durante vrias horas sobre o saci perer! Isso uma coisa que me deixa muito feliz. No pela biblioteca, no pela coisa intelectualide de dizer que o livro vai melhorar esse garoto. a iniciativa! o fato do garoto ter tomado a iniciativa de buscar o que queria. Isso fundamental num mundo em que a gente to idiotizado. Todo dia, toda noite, voc forado a ser um idiota completo. A diverso que essa garotada tem, hoje em dia, o videogame, que a coisa mais idiotizante do mundo. No videogame, se voc no segue o padro, se voc no igual, voc morre. a coisa mais absurda! E as revistas sobre videogames ento? Elas te ensinam a ser idiota, a fazer o que todo mundo faz. Afinal de contas, se voc no faz as coisas exatamente de um jeito, voc no consegue avanar no jogo. Por isso eu odeio videogame. Por que eu tenho que fazer as coisas desse jeito? No posso fazer outra coisa? Eu sei que o caminho mais rpido outro, mas no adianta. Se voc no fizer daquele jeito, no vence. Eu acho que isso est errado. E por isso que o RPG d margem para se criar pessoas mais legais, mais inteligentes, mais "safas". Porque ele nos d a oportunidade de tomar a iniciativa. Se eu quero fazer uma aventura com o saci, vou l, abro um livro e pronto. Qual o problema? No vou ficar doente por causa disso, no vai crescer espinha, no vou ficar com miopia...
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Ou, mais do que isso, imagine que eu tenho que ir l para o outro lado da cidade fazer a inscrio no vestibular. Mas eu no vou porque muito longe, porque no conheo o caminho, no sei que nibus pegar, etc. Jogador de RPG no tem isso. Ele pensa: tenho que chegar no outro lado da cidade mas eu no sei onde fica - e a ele traa um esquema da aventura na cabea. Bom, a primeira coisa pedir informao. Quando se comea uma aventura no RPG e se chega numa cidade, s vezes, a primeira coisa a se fazer pedir informao. Onde? Na taverna. E na vida real? Ora, voc vai ao bar da esquina e pergunta para o taverneiro, isto , para o dono do botequim. "Moo, onde que fica tal rua?" Pronto, voc resolveu a aventura e ganhou seu pontinho de experincia na vida. E por isso que eu acho o RPG to importante.
RPG E CINEMA:
A EXPERINCIA DO FILME ' E R A U M A V E Z , . . '
ARTURO URANGA
Diretor de cinema
Imagino que todo mundo se pergunta o que faz um cara to velho quanto eu numa palestra de RPG, que formada por gente to jovem. Antes de mais nada, eu queria fazer uma homenagem ao RPG, por resgatar a aventura num mundo to idiota quanto o nosso; a fantasia, num mundo to materialista quanto o nosso; o sentido da camaradagem na aventura num mundo to individualista quanto o nosso; e por dar nova oportunidade aventura. Acredito que uma necessidade urgente do jovem, do homem em geral, a de reviver a aventura. Ou seja, a liberdade e o direito de viver a aventura num mundo, num sistema que programa a pessoa a cumprir uma funo durante toda a sua vida e a morrer agradecendo porque ganhou um relgio de ouro. Eu acho que um dos motivos inconscientes da existncia e da expanso do RPG pelo mundo inteiro, compensar esta deficincia. Por outro lado, queria falar justamente o porqu da coincidncia do meu filme com o RPG. Eu confesso que, inicialmente, tendo conhecimento do RPG, admirando o RPG e conhecendo muitos jogadores e mestres de RPG, no pensei imediatamente no RPG quando fiz o filme. Mas a coincidncia - e essa outra homenagem que eu quero fazer - , que temos todos um antepassado em comum. Porque muita gente fala que tudo comeou com Tolkien, e no assim. falso. Nos anos 67, 68 - anos de mudanas violentssimas, de ditaduras militares, de revoltas estudantis, de revolues populares contra o sistema que tnhamos herdado do sculo passado, de um conservadorismo materialista, burgus, vitoriano e repressor - saiu um livro que foi um best-seller, que explodiu como uma bomba no mundo e todos corremos a comprar. Era O despertar dos mgicos, de Pauwells e Berger. Temos que fazer uma merecida homenagem a ele porque, realmente, foi um livro criticadssimo pela cincia oficial, mas abriu nossos olhos, nos informou - alis, pela primeira vez a ns, sul-americanos - de aquilo que era
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considerado o antigo conhecimento, a sabedoria total, que nos chegava em forma esparsa, incompleta, enigmtica na memria de todas as civilizaes primitivas do mundo, de todas as doutrinas esotricas, de todas as religies pagas pr-crists, de todas as sociedades secretas europias que mantiveram vivas as tradies celtas, druidas, da Cabala e da Alquimia, das pedras runas e do Tarot e tantas, tantas coisas mais. O despertar dos mgicos pesquisou, classificou e relacionou toda aquela informao e nos a serviu em bandeja, concluindo numa hiptese final, apaixonante e que provocou o escndalo entre os cientistas, de que existia um conhecimento muito antigo, paralelo e secreto, aquele roubado da rvore da cincia no paraso e que a bblia fala que os anjos cados transmitiram aos homens, que a cincia oficial ignorava, e que demostrava, que j desde o incio dos tempos, existia um saber profundo tanto cientfico quanto filosfico sobre temas que o nosso mundo moderno s veio a redescobrir e saber milnios depois. Esse livro foi impressionante. Sem ele, no saberamos quem Tolkien; sem ele, no saberamos quem Lovecraft e seu Necronomicom, aquele livro escrito por um rabe maluco, que inspirou ao Giger o seu primeiro livro de ilustraes a ser publicado e que o fez conhecido para o mundo e para o diretor de cinema, Ridley Scott, que o convidou para criar seu Aien I. E a partir de a universalizou o estilo Giger com sua impondervel influncia nas artes e no cinema. E tudo isso foi provocado por esse nico livro, O despertar dos mgicos. Mais lhes digo: Conan um livro dos anos 30. Foi graas a este mesmo livro que soubemos de Conan e graas apenas a ele que foram reeditadas a coleo de Conan e a obra completa de Tolkien e Lovecraft. E de tantos outros autores antigos e modernos, mitos e lendas, livros secretos e pergaminhos esotricos, tratados de magia e alquimia, e no sei quantas coisas mais que Pauwells e Berger desenterraram dos sebos e das bibliotecas do mundo todo, onde jaziam esquecidos para sempre. Graas a eles tambm existe Os caadores da arca perdida. O despertar dos mgicos fala de uma experincia feita numa universidade, no lembro se americana ou europia, em que reproduziram a Arca Santa, aquela que guiou a Moiss pelo deserto e deu ao povo judeu o poder sobre seus inimigos. E quando acabaram o trabalho, seguindo apenas as especificaes dadas primitivamente na Bblia, descobriram que era uma espcie de grande
batena receptora e carregadora de energia. Mas de que energia se tratava' E Spielberg e Lucas usaram esse tema para fazer Os caadores da arca Perdida. Tenho certeza de que eles leram tambm O despertar dos mgicos Raul Seixas um produto dele e no existiria um Paulo Coelho sem esse livro. E impressionante, porque foi uma bomba que atingiu o mundo todo e toda uma gerao. Star Wars um produto desse livro. Eram os deuses astronautas de Von Danniken, seguidor de Pauwells e Berger uma antecipao da trilogia de Lucas. Este, no refgio dos rebeldes m Star Wars, at coloca uma pirmide da Amrica pr-colombiana e no coloca sua h.stna num passado muito, muito remoto? Tudo isso herana desse livro extraordinrio. Para o RPG traz um material e uma informao ideal e extremamente importante. Pois o livro tambm fala de coisas como o Tarot que a sntese grfica e simblica, e talvez a raiz ignorada de todas as estrias de cavalaria, dos contos de fadas e at, talvez, do RPG - e da eterna, compulsiva e arquetpica necessidade do homem, em pocas de grandes crises sociais e espirituais, de transmitir os ensinamentos dos mais sbios atravs de estrias aventurescas, fabulosas e simblicas, como no romance moral ou nas infinitas, lendas, mitos e fbulas usadas para o aprendizado e crescimento interior do ouvinte ou leitor, atravs de toda a histria da literatura mundial oral ou escrita. Aqui no Brasil, na to popular literatura de cordel" dos estados do Norte, h esse mesmo espritoo de destacar a coragem, a esperteza e a fortaleza interior necessrias para enfrentar o rito da passagem. Ou seja, todas ou quase todas as estrias primitivas de tradio oral original, tm esse mesmo esprito, esse mesmo sentido, esse mesmo destino. Tanto seja o popular e to brasileiro O Pavo Misterioso, como as aventuras de Pedro Malazarte, ou o ciclo de Arthur e o Santo Graal e o arcaico Beowulf , todos tm esse mesmo sentido e funo. E os contos de fadas como Os trs cabelos do diabo, dos irmos Grimm ou o clssico oriental Alan, todos, todos contam uma nica e mesma estria, repetida uma e outra vez, do garoto pouco esperto e frgil, - muitas vezes o menos apto de trs irmos ou um rfo abandonado a sua sorte, quando no diretamente acusado de efeminado como Lohengrim, Beowulf e Aquiles - que sai de casa, encontra ou ganha uma espada mgica, uma lmpada maravilhosa ou conhece um extico companheiro de viagem - sempre a eterna viagem primordial e necessria
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- que, seja um ano, um urso, pssaro ou raposa falante ou as vezes um mago disfarado de mendigo como Merlin, ser sempre a causa de que nosso jovem cresa em esperteza, fora moral e coragem, tenha todas as respostas necessrias e vena todas as provas que as foras do Mal ou a prpria vida lhe imponha, e por fim ganhe o amor da princesa de turno ou a coroa que lhe espera. Ou, as vezes, - as menos, graas a Deus! - por no estar ainda preparado interiormente, pela sua fraqueza diante de uma situao inesperada ou por uma ao desonrosa, fracassar na sua aventura, no virar prncipe consorte, nem achar o to desejado graal. Tudo exatamente igual. Sempre o rito da passagem da infncia, genealgica ou psicolgica, para a madurez. A necessidade da viagem: sair da proteo do lar familiar para no retardar o crescimento, das muralhas psicolgicas que nos prendem ou apenas desligar o aparelho de TV. Achar tua fora interior. s vezes o despertar da prpria virilidade, o smbolo flico da espada mgica ganha meramente pelo encontro com uma mulher especial, aquela que vai ajud-lo a alcanar sua meta superior. Outras, pelo contrrio, da perda da virilidade - a quebra da Espada -, pelo encontro com uma fmea destrutiva e feiticeira. E precisa ser bruxa para ser feiticeira? No, apenas t-lo enfeitiado, t-lo convertido no seu escravo, fazendo-o mudar de rumo numa viagem para a qual estava predestinado ou paralisando-o na sua ao ou proposta de vida. E depois, sempre se tm que estar pronto e preparado para responder eterna e fatal pergunta: s vezes um enigma a ser elucidado, uma charada apresentada por uma bela e desejada mulher, outras por um ano, uma velha ou um ancio cavaleiro em agonia e guardio da espada ou do graal. Quando no por um monstro devorador de homens, como dipo enfrentado com a Esfinge. Esta pergunta parece ser to importante que na tradio da cavalaria britnica e do ciclo arturiano, da mais pura raiz pre-crist e cltica, a misso a cumprir pelo cavaleiro chamada de quest. Palavra derivada de question, pergunta em ingls. E sempre deviam estar prontos para responder the question, mas tambm e em outros casos, estarem prontos para no esquecerem de fazerem a pergunta. Muitos perderam o graal tendo-o ao seu alcance, por esquecerem de fazerem a bendita pergunta. Mas qual o sentido e importncia daquela pergunta? Se tomamos o exemplo de dipo e a charada que a Esfinge lhe props, e que nenhum
homem antes soube responder e por isso foram devorados pelo monstro metade mulher, metade leo, Qual o bicho que na infncia caminha em quatro ps, na madurez em dois e quando velho caminha em trs' - a resposta era: "- O homem", j que de velho precisa do apoio de uma bengala para caminhar. E talvez, esta seja, de uma forma ou outra a resposta para todas aquelas perguntas das histrias e lendas. Ter alcanado a condio, o estgio final do crescimento, aquele do homem com H ma.usculo. Mas qual essa condio limite a ser alcanada s podemos imagin-la, pois apenas os poucos escolhidos que chegarem l, conhecero e vivero a diferena de possuir o graal. Aquela taa milagrosa que quem beber dela nunca mais ter fome ou sede, nunca mais sofrer ou ser ferido, em sntese, nunca mais ser fraco. O descenso aos infernos j outra histria. O terrvel caminho perigoso, oposto ao caminho longo, seguro mas dificultoso, da santidade. o atalho fcil e sedutor, onde voc destrudo de vez ou, as menos das vezes, sai purificado. uma das primeiras fases do processo alqumico: queimar o lobo, lhe chamam. consumir pelo fogo a matria impura (o chumbo), para liberar sua alma purificada e deix-la alcanar seu estgio de metal nobre (o ouro). E temos o assunto dos vampiros, o mundo dos vampiros. Tudo isso j existe e foi estudado naquele livro. O Livros dos mortos, o das Transformaes e mutaes, o estudo dos Smbohs arquetpicos da humanidade que sempre se repetem, exatamente os mesmos. como uma espcie de coisa compulsiva, inconsciente, talvez aquele Inconsciente coletivo de que falam, ou talvez a mais pura magia da energia universal a nos reger sem ns percebermos. Todos os livros do mundo, todos os livros malditos, todas as cincias e filosofias, todos os pesquisadores do misterioso, todas as mitologias, todas as sagas e enigmas, todas as perguntas sem responder, todos os caminhos da sabedoria dentro de um s livro: O despertar dos mgicos , de Pauwells e Berger. uma leitura qual eu rendo homenagem e recomendo. Eu o li em 1967, em um perodo em que voltei Argentina, e me fechei na fazenda da minha famlia. Fiz uma espcie de retiro espiritual e um revisionismo da minha vida. Eu tinha passado 8 anos aqui no Brasil, fazendo e vivendo dos desenhos animados publicitrios, pensando s em sobreviver e me divertir. J tambm era pintor e ilustrador, fantico de
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histrias em quadrinhos e desde sempre queria fazer cinema. E, nesse perodo, l na fazenda dos meus pais, comecei a pensar: que lindo seria fazer um filme, assim, fantstico, de mitos clticos e magia, com guerreiros poderosos, inspirado na pintura fantstica dos pintores ingleses do sculo passado - que anos depois influenciariam a todos os ilustradores da gerao de Frazetta, Froud, Roger Dean & Cia. - e tudo por causa daquele livro. Comecei a escrev-lo e chegou a ganhar um nome: Saga. Depois a loucura se apoderou do mundo. Apareceram os livros de Corum, Lovecraft, reedies de Dracula, O senhor dos anis de Tolkien, O mistrio das catedrais de Fulcanelli, antigos tratados sobre Alquimia, Cabala e Tarot, O mistrio dos templrios, O livro de Enoch expurgado da bblia, o Popol-Vuh, Beowdf... Tantos livros para ler, tanta informao nova e apaixonante, que eu ficava to ansioso por acumular todo aquele novo conhecimento que chegava a ler sete livros por semana. Era como se minha cabea fosse uma computadora reprogramando-se. E a idia do filme foi postergada. Alm de no ter nesse momento os meios para realizlo, nenhum produtor argentino seria convencido por uma idia dessas. Quando chegam as primeiras notcias e imagens de Conan 1, o corao me doeu um pouco: eu tinha tido aquela idia primeiro. Mas tudo bem... Como sempre digo, a gente no nasceu no lugar certo, no momento certo, para ter as oportunidades certas... Mas a gente sobrevive a isso e a muito mais! E s no se dar por vencido, nunca! E assim, anos se passaram e muitos. Volto ao Brasil j casado, crio dos filhos adultos j, trabalho para um monte de filmes de outros e para a TV... Mas chegado meu momento fao meu primeiro filme, e aquele mesmo filme longamente postergado com um novo nome: Era uma vez--Por que essefilme?Houve uma poca em que eu apresentei um monte de projetos Embrafilme. Eu no era da turminha conhecida, como tantos outros, e todos os meus projetos adultos foram rejeitados. Projetos extraordinrios, que a Embrafilme rejeitava. Quando o governo do Presidente Collor acabou no s com a Embrafilme como com todo o cinema nacional, toda a produo parou de vez, os tcnicos ficaram desempregados, os estdios de cinema vazios, as fornecedoras de equipamentos paradas, uma verdadeira tragdia. Mas na noite de Natal daquele ano de 1990, estvamos reunidos em casa, a minha famlia com um grupo de amigos. A minha famlia, aqui no Brasil, muito pequena:
minha esposa, Maria Anglica, eu e nossos dois filhos, Pablo e Candelria, assim que gostamos de receber em casa amigos nossos e dos nossos filhos que estejam deriva na noite de Natal. E estavam naquela noite um grupo de jovens, amigos todos de meu filho Pablo, a maioria atores da TV Globo, como Eduardo Felipe e Rodrigo Penna, ou de teatro, como Anna Cotrim - que depois seria premiada no Festival de Cuiab como Melhor Atriz pelo seu trabalho no nossofilmee contratada nessa mesma noite pela TV Globo. E amigos deles como Rodrigo Monte, primo da Marisa Monte, que se inaugurou como assistente de fotografia nofilmee me assistiu em todas as fases da produo, incluindo a montagem. Rodrigo Conti, que junto com Eduardo Felipe, o Grilo dofilme,fizeramas pesquisas defigurinose armas, e acabaram produzindo todas as armas e armaduras do filme. E assim como devo ressaltar a importncia fundamental para o projeto da ajuda, o trabalho e o entusiasmo deles dois desde o primeiro dia, devo dar um destaque especial para o talento e o refinamento artesanal de Rodrigo Conti que produziu entre tantas coisas, aquele magnfico alade que Pablo, como Prncipe Tudur, toca no filme. E a nasceu uma idia. Era o momento em que todo mundo discutia da validez de fazer-se cinema no Brasil. Muitos falavam, includos jornais, que o cinema brasileiro no prestava, que tinha perdido todo contato com o pblico e que ningum queria assistir a filmes brasileiros. E ento Eduardo Felipe, Rodrigo Conti e Rodrigo Penna lanaram a idia. Por que no fazer um filme que fecha a boca aos que pensavam assim? Demostra-lhes que se nos deixassem poderamos fazer um filme, que sem pretender concorrer com o cinema americano,tivessetodos os elementos to na moda entre as produes de Hollywood e que eram to do gosto do pblico. E que agradasse a todos, adultos e crianas. Fazer um Family Fm, como lhe chamam os americanos. E nasceu a idia de um filme fantstico, j que eu sou especialista em efeitos especiais no cinema e na TV. Fui a primeira pessoa, aqui no Brasil, a criar efeitos especiais e visuais para a televiso brasileira. Na TV Globo,fizas trucagens de "Armao Ilimitada", vrios seriados e especiais de Xuxa e Roberto Carlos. Tambm no filme A princesa Xuxa e os Trapalhes e muitos outros, inclusivefilmespublicitrios. E tinha que ser uma comdia, um filme que no se leva muito a srio. Uma stira ao filme americano. Pegaramos todos os lugares-comuns do filme americano,
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at fizemos uma lista dos lugares-comuns para planejar o filme. Filme americano tem monstro? Bota monstro, ento. Tem gente voando? Bota gente voando. Tem nave voadora? Bota. E tudo isso, sem nenhum capital milionrio nas nossas mos. Eu fui avisando: Gente, eu no tenho sessenta milhes de dlares, nem trinta, nem vinte, nem dois, nem um, nem m e i o Mas chega um momento em que a gente se cansa de entusiasmar-se com projetos lindos e vlidos, e de imediato desencantar-se mais uma vez, porque no pode realiz-lo. E pensei, se no desta vez, nunca mais... E decidimos: vamos faz-lo. No sei como, mas vamos faz-lo. E fizemos uma cooperativa. Sem roteiro, sem histria, sem nada, resolvemos fazer o filme. Nessa mesma noite resolvemos fazer um concurso de roteiros. Cada um apresentaria um rabisco de argumento nessas bases: uma comdia fantstica satirizando o cinema americano, mas com um humor inteligente e que desse um filme bonito, com msica bonita, que todo mundo sasse feliz e emocionado do filme, e votaramos democraticamente para escolher a melhor idia. Nessa mesma noite ao deitar, comecei a pensar no filme e no seu possvel argumento, e conhecendo bastante intimamente os rapazes que seriam os protagonistas, Eduardo, Rodrigo Penna e Anninha... Bem, no quero contar a intimidade dos atores, mas vou contar um pouquinho. Eduardo Felipe, que j fez um monte de trabalhos na TV Globo - "Riacho Doce", o primeiro captulo de "Voc decide", "A Prxima Vtima* -, de jovem sonhava com ser Conan. Ele no sonhava, ele assumia que era Conan. Ele vivia como Conan, amava como Conan. Casou com Mrcia, uma moa encantadora, mas que tambm o prottipo da fmea "conaneana". E lgico que hoje ele mudou, j no resta nada de tudo isto que falo. Mas na poca do filme, Eduardo gostava de viver luz de velas, amar luz de velas, fazia musculao, usava o cabelo igualzinho a Conan e gostava de roupas e adereos meio punks, meio heavy metal. Ele era o prprio Conan em embrio. E assim, a partir dos atores que tinha comecei a criar personagens engraados. E no parei mais. Naquela noite bolei toda a histria. E no me deixaram fazer o concurso. Todos eles falaram: "Pronto, essa a histria". Eu insisti, talvez algum viesse com uma estria melhor... Mais no teve jeito e foi aquela a estria. E no por coincidncia - voltamos aqui ao RPG - era um conto de fedas. Era o rito da passagem. A sempitema estria daquele garoto ingnuo
que se acredita Conan, que ainda no Conan, no tem a fora e a experincia de um Conan, mas quer enfrentar a aventura. E, como nos contos tradicionais, encontra seus companheiros na sua viagem de iniciao. Trs personagens extraordinrios, todos eles maravilhosamente encarnados pelo talento dos jovens atores: Grilo, Eduardo Felipe; Grude, Rodrigo Penna; e Gralha, Anna Cotrim, uma piada aos sobrinhos do pato Donald. Grilo, um apelido que se d na Argentina quelas pessoas incmodas, chatas, que se te grudam e estragam uma noite de fim de semana. Pensei que o meu Grilo, que um obcecado pelos livros de fantasia e aventuras, deve ler at bem avanada a noite e ter estragado muitas das noites de Grude, j que moram juntos em um moinho. O apelido Grude vem justamente do trabalho no moinho: muito suor e farinha de trigo misturados e uma certa tendncia falta de higiene. A Gralha um pssaro que tem mania compulsiva de roubar, qualquer coisinha, qualquer objeto que seja atrativo para os seus olhos. A Gralha, a ladra do meu filme, uma homenagem aos meninos de rua, a sua luta e esperteza para sobreviver. Ela to desesperanada da vida que carrega um sapo no bolso, porque acha que a nica oportunidade que tem de mudar de condio, que o sapo vire prncipe e case com ela. Ento, Gralha vive beijando o sapo espera do milagre e os garotos a reclamar dela insistir em beijar aquele bicho nojento, aconselhando-a a trocar de sapo, porque "j est visto que esse a no presta". A travs do conto de fadas, eu fao um retrato da realidade atual, satirizada talvez, humorstica, mas a realidade crua e dolorosa do garoto pobre que procura, desesperadamente, algum jeito de sair dessa pobreza. A Gralha beijando infinitamente o seu sapo; o Grilo sonhando salvar uma Princesa enfeitiada, virar heri e casar com a Princesa, convencido de que tudo o que prometem os contos de fadas e as estrias de cavalaria que carrega, se cumprir; e Grude, que um cara totalmente materialista, s est interessado nesse negcio da aventura procura de "fama, fortuna e glria", e em ganhar o dinheiro suficiente para comprar seu prprio moinho e virar to capitalista e explorador como o seu atual patro. Ou seja, que nestes trs personagens esto representados os sonhos, as preocupaes e a luta da maioria dos jovens de hoje em dia; e por qu no dizer, de todos ns. E assim, ao longo do filme, fao uma piada constante ao mundo
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moderno, onde o conto de fadas parece j no mais se cumprir, no mais ter lugar. Luar (Gabriela Alves), a princesa enfeiriada, isto , a Bela Adormecida que Grilo quer salvar com um beijo, porque est no livro e ele acredita nos livros, apenas sai de farra todas as noites e dorme todo o dia para recuperar-se da noitada. A princesa no est enfeiriada, est de porre. Tudo isso vai destruindo, de certa forma, todas as normas, os lugares comuns, as promessas dos contos de fadas. O rei guerreiro e conquistador j no existe, porque Turbio (Tnico Pereira) descobriu que mais negcio virar fabricante de armas e provocar guerras entre os pases vizinhos, para que se vejam obrigados a compr-las, do que sair a guerrear e arriscar sua vida. Logicamente, se converte no rei mais poderoso da regio. Uma clara citao ao Capitalismo Selvagem que "reina" hoje no mundo. O Prncipe Tudur (meu filho, Pablo Uranga), o jovem, bonito e sombrio feiticeiro que seduz a Princesa, um punk dark e com evidentes conflitos freudianos de personalidade - quase com certeza, "edipianos". Como falou um surfista na noite da pr-estria: "Esse cara a no me engana: cheira e veado". E uma declarao um pouco radical demais, mas no a nego, pode ser. Mas tambm um cara talentoso, criativo, inovador, uma personalidade rica e rebelde. Pelo fato de ele ser destrudo no final do filme, alguns crticos me tildaram "de um moralismo reacionrio". No, eles no entenderam nada; eu no estou contra Tudur, pelo contrrio, eu estou com Tudur. Como falou Flaubert de sua Madame Bovary, no Processo que seu romance sofreu por considerasse-lo imoral: "Eu sou Emma Bovary"; pois bem, eu sou Tudur. O seu monlogo nos pores do castelo de Mag Mor - e que alguns dos meus scios insistiram para que eu tirasse -, sou eu falando. Minha mais autntica e honesta declarao de princpios na minha condio atual, cada dia mais prximo da morte e com um desejo profundo de transcender de algum jeito, ter servido para algo ou para algum. Por outro lado, em todo o filme, eu me mantenho muito fiel aos smbolos tradicionais do rito da passagem e da Iniciao, aqueles arqutipos universais de que falava Jung. A espada de Grilo quebra no primeiro combate, porque ele ainda no est pronto para a aventura, no alcanou o estgio de madurez necessrio. Sua ingnua suficincia e pedanteria, seu ar pretensioso e infantil so provas mais do que suficientes disso, e por isso nada d certo para ele no incio. Ele recebe a espada mgica de
uma mulher muito especial e belssima, a tradicional dama da rvore seca, tirada da mais pura tradio medieval e encarnada maravilhosamente pela modelo e atriz, Andra Fetter. Eu me tomei a liberdade de acrescentar e sugerir a viso pscanaltica do smbolo, fazendo uma piada no jeito que Grilo iniciado pela bela feiticeira e se converte no escolhido para ganhar a espada mgica, smbolo de sua madurez e virilidade recm adquiridas pelo "contato" com a fmea especial. Essa piada me custou que o filme no fosse aceito em todos os festivais infantis do mundo - de alguns recebi cartas muito amveis e pesarosas de terem que tomar essa deciso, pela beleza e alta qualidade do filme - e que no Festival de Havana, Cuba, o filme fora proibido para menores de 17 anos! Mas os risos e aplausos dos 1.800 maiores de 17 anos que encheram as duas sesses oficiais, compensaram os reclamos da crianada que me culpavam de tlos defraudado. Continua a ser uma das piadas mais festejadas pelo pblico adulto e, lgico, mais ainda pela crianada de hoje, que agradece ao filme no serem tratados como babacas ou dbeis mentais. Pelo contrrio, o caminho de Tudur o do descenso ao inferno. Aquele de "queimar o lobo" de que eu falava antes: de fazer arder, consumir pelo fogo dos prazeres, excessos e dores do "inferno" o nosso lado escuro. Queimar e esgotar as paixes e sensualidade da nossa matria para, correndo o risco de sermos destrudos nesta experincia da alquimia Filosfica, talvez, sendo com sorte o escolhido, renascer purificados e sublimados. O smbolo da ave fnix renascendo de suas prprias cinzas. Isto o que acontece com Tudur. E a espada mgica, a madurez viril, ao alcan-lo e atravessar o peito do monstro escapado do seu interior, materializao do seu lado escuro dominante e descontrolado, libera a Energia pura de seu interior, a sua alma j livre do inferno. Por isso ele ressuscita diferente, superado, sublimado, mas temo que tambm um pouco menos genial e mais quadrado... Mas a j escapa de mim, a vida... E engraado e admirvel conferir com o pblico infantil, que os meninos preferem o Tudur roqueiro, dark, rebelde e neurtico,- e as meninas, pelo contrrio, fazem uma gritaria quando meu filho Pablo reaparece como o Prncipe Azul ideal, bem arrumadinho e penteado, todo de branco, bonitinho e quadrado. E o "Que gato!!" tradicional, ressoa na sala. Tudur um msico genial, graas a um alade mgico que as foras da Eescurido lhe entregaram e que seduz a juventude do reino das fadas,
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atraindo-a para o seu castelo. Grilo vai l para resgatar a princesa Luar e invade violentamente o lugar, com sua espada mgica pronta para o combate, convencido de que ter que enfrentar na batalha com todas as foras do mal. Mas o que encontra, em realidade, o maior show de rock rroll. toda uma stira constante. Para mim, o Grilo, o heri por excelncia, s vezes, chega a ser chatssimo. Ele to quadrado, to radicalmente idealista, to preconceituoso e intransigente, especialmente no final do filme, que chego a no atur-lo. E engraado, mas na minha puberdade eu fui um pouco assim. Na realidade o filme, eu vim a descobrilo depois de feito, extremamente autobiogrfico. E uma das coisas que mais me apaixonam de minha criatividade - e no me vanglorio disso, porque totalmente alheio a mim, inconsciente e compulsivo e que sempre me surpreende - que ela pe para fora, sem nenhuma possibilidade de controle meu, desavergonhadamente, todo o meu mais ntimo e secreto inconsciente e subconsciente. Quem tenha um conhecimento bsico da psicanlise, tanto freudiana quanto jungiana, pode divertir-se beca com meu filme. Alis, um filme que nos impusemos fazer com cuidado, fazer bem, fazer bonito, fazer o mais dignamente possvel, nunca fugirmos para a soluo mais fcil ou mais simplista, mas sempre mantendo um ar ingnuo, de ilustrao de livro infantil e de stira. Hoje a maioria das pessoas conhece a expresso fake, para definir "um estilo ou visual falso, procurado de propsito, como reao esttica ao excessivo realismo americano", mas naquela poca ningum, aqui no Brasil, tinha ouvido falar dela. Mas j existia em mim, no como expresso, mais como uma preocupao esttica saudosa do encanto ingnuo dos primitivos filmes em preto e branco. Filmes como o primeiro e nico King Kong de 0'Brien, A Bela e a Fera de Jean Cocteau - que tambm inspirou assumidamente os Estdios Disney -, O Anel dos Nibelungos e a Morte de Sigfrido de Fritz Lang e tantos outros, e muitos a cores tambm, como O Mgico de Oz de Fleming. E eu tinha muito claro desde os primeiros dias da criao do filme que, no s pela verba mnima de que dispnhamos mas por puro exerccio esttico, a gente tinha que arriscar e investir nesse estilo teatral, ingnuo e at onrico dos filmes antigos e fazer uma homenagem, to merecida, a eles. Mas nada me garantia que o pblico pensasse igual e gostasse. As aventuras do capito Tornado, o Dracula de Coppola e o seu sucesso de
pblico e crtica, chegaram no momento oportuno. Foram dois filmes extraordinrios, com uma linha mais teatral, mais artesanal, mais fake, e a expresso nasceu para o mundo. E o filme nosso estava na mesma linha que o deles. Ento estvamos no caminho certo, no momento certo. Outra coisa que hoje acho muito engraada, mas que no momento me provocou surpresa e um principio de pnico, foi que a maioria dos tcnicos mais experientes e capacitados do Rio para um filme de aqueles, especializados em tcnicas de ltex e fibra de vidro, muppets, monstros, maquiagem de efeitos especiais, cenografias fantsticas e que eu convidei para entrar no projeto - que me perdoem a expresso, j que muitos so meus amigos ou temos trabalhado juntos no cinema ou para a TV Globo, mas a mais pura verdade - fugiram apavorados. Ningum acreditava no projeto, nem que algum no Brasil pudesse realizar um filme daqueles. "Voc maluco", me diziam, "Voc no vai conseguir fazer nunca esse filme". "Eu vou fazer", insistia eu decidido. E fizemos. Fizemos a partir de uma turma jovem e muito talentosa - maquetistas, cengrafos e cenotcnicos - que j trabalhava comigo por alguns anos, mais um pequeno exrcito ("... uma pequena armada Bbrancaleone..." a apelidou com simpatia e admirao o Jornal do Brasil) de garotos amadores que foram aparecendo, com suas pastinhas embaixo do brao com um curto curriadum e mostras de seus trabalhos, medida que os meios de comunicao comeavam a interessar-se e a espalhar aquela loucura que - pese aos sombrios vatidnios "dos que sabiam"- ia nascendo rpida, organizada e entusiasticamente nos Estdios da Magnus Filmes em So Cristvo. Esta garotada talentosa e desconhecida chegava de todos lados: da zona dos lagos, dos subrbios, de Santa Cruz, funcionrios de correio, alunos de teatro, artesos de escolas de samba... "Por favor, me deixe trabalhar no seu filme de graa." Assim nos chegava a informao que precisvamos, a tcnica que nos faltava: o garoto que gostava de trabalhar em ltex industrial e mais barato, o que se divertia criando figurinhas de RPG ou esculturas em Durepox, o surfista que sabia trabalhar em fibra de vidro, a dona artes que dominava a tcnica do papier mach, apareceram e comeou-se a completar uma equipe muito jovem e entusiasta, que nunca tinha participado de um filme mas, a maioria, estava alimentada com aquelas revistas americanas especializadas em efeitos especiais, felizes de fazer parte do primeiro filme do gnero feito no Brasil e vidos de ter a
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possibilidade de mostrar o seu talento. Poucos chegavam aos 30 anos, e a maioria destes faziam parte dos tcnicos de cinema: fotgrafo, cmara, eletricistas, maquinistas, figurinistas, costureiras e os encarregados e organizadores da produo que, estes sim, foram escolhidos entre os melhores e mais experientes profissionais da indstria. E a comeamos a fazer o filme. Aos poucos comeou a chegar gente de todos os lados para visitar as filmagens e oferecimentos de ajuda, de que tanto precisvamos. ramos, um pouco, os heris do cinema nacional: em um momento em que o cinema brasileiro tinha sido declarado morto, nos estvamos encarando aquela loucura. Tcnicos e profissionais do cinema se ofereceram para trabalhar de graa no filme, fornecedores de equipamento os cediam de graa ou por valores mnimos, instituies que no posso numerar agora pois seria uma lista interminvel -, escolas de samba, estdios de cinema, grupos de teatro, firmas, industrias, prestadores de servio, nos deram tambm generosamente sua ajuda em pessoal, materiais, figurinos, tanta coisa. Porque aquilo virou um caldo de cultivo, o caldeiro alqumico, o "despertar dos mgicos", dia a dia a constante e apaixonante reinveno do cinema ao nosso alcance. Era uma fantasia, um delrio terceiromundista. Revivamos a experincia dos pioneiros do cinema mudo, experimentando pela primeira vez tcnicas arcaicas, trucagens em cmara, que nunca antes tinham sido experimentadas no Brasil. E de tudo isto saiu o filme Era uma vez.-- Um filme que inegavelmente diverte e emociona. Sei de muitos adultos que se emocionaram, j vi muito homem disfarar para secar as lgrimas quando se acendem as luzes: dizem que porque o filme transmite, no fundo, um certo desencanto pela vida, pelos sonhos no cumpridos; e hoje acho que eles tm razo, que eu deixei escapar um pouco de meu prprio desencanto, daquele desencanto que todas as pessoas de minha idade carregam no final da vida. Nada trgico demais, at tem um gosto doce e pode ser expressado com um certo e muito especial sorriso. No toua juventude se cumpriram, mas a vida valeu a pena de ser vivida, a grande aventura de viver continua a ser apaixonante e nica. E, pelo contrrio, a garotada que est menos atentas a essas sutilezas, ri e se diverte pra valer com um filme cheio de aventuras, fadas, elfos e gnomos, monstros, barcas e princesas voadoras, personagens de bonecos animados to perfeitos quanto os americanos,
maquetas gigantescas e extraordinrias e efeitos especiais a granel pela primeira vez vistos em um filme brasileiro. Como os belssimos efeitos em luz animada, Light Animation, ou as pinturas inseridas opticamente nas cenas ao vivo: paisagens fantsticas, pontes inexistentes ou partes da cenografia. Feitas, logicamente, com uma tcnica hoje considerada pnminva, mas esto a, pela primeira vez no nosso cinema. E gosto de ver a cnanada aplaudir entusiasmada a cada trucagem nova apresentada pelo filme como se fosse uma obra de arte, porque sua homenagem orgulhosa ao cinema de sua terra por ter chegado l e mostrado que podia fazer igualzinho aos americanos. O filme tem tambm o atrativo de uma trilha musical belssima, criada e arranjada pelo meu filho Pablo na parte do rock e Roger Henri, diretor musical da TV Globo, na composio arranjos e direo geral, - muitos me tem perguntado porque no editar em CD, mas cad do interesse das gravadoras? - e na que se mistura o Heavy Rock com o Progressivo e temas mais clssicos no estilo de John Williams. Uma trilha realmente fora de srie, que at inclui uma balada minha, "Sonhos", cantada maravilhosamente por Cludia Telles. Conseguimos aquele filme que queramos fazer. Um filme que as pessoas assistem com prazer, tiram uma ou duas concluses novas sobre a vida que as faz pensar e em cima podem soltar algumas lagriminhas emocionadas no final, e sair da sala com aquele sorriso beatfico que o melhor prmio que podemos esperar pelo esforo e paixo que pusemos ao faz-lo. O filme, se bem lanado na poca errada, este para os nossos filmes e que nos impe o primeiro horrio da tarde, quando os desenhos animados da Disney ou filmes como Histria sem Fim so passados sem restrio de horrio, incluindo a sesso da noite - foi um sucesso. Encheu salas de cinema aqui e no interior, muitas vezes em uma nica sesso superou a renda do filme americano de turno nas quatro sesses restantes, teve crianas que j assistiram at sete vezes ao filme, mas foi retirado de' exibio assim mesmo, ainda enchendo salas. Coisas do cinema nacional! Presente j nas locadoras, algumas viram-se obrigadas a comprar mais de uma cpia devido a procura. Sucesso de pblico em todos os festivais em que participou, sempre com duas ou trs exibies extra-oficiais a pedido do prprio pblico, ganhou alguns prmios e foi indicado para outros quando concorreu. Mas o mais importante e gratificante de tudo isso o lugar de destaque que Era uma vez.... tem ocupado junto da juventude
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brasileira como umas das expresses cinematogrficas nacionais mais prxima dela, da sua linguagem jovem e mais a seu gosto, acabando por converte-se num cut moine para muitos, e um exemplo animador de que, sim!, a gente pode encarar e fazer qualquer coisa neste nosso pas maravilhoso com a suficiente garra e determinao, porque: A Fora est com ns! O filme ser exibido no sbado e no domingo com ingresso livre. Convido a todos vocs a assisti-lo... Obrigado.
DEBATE
Platia (Jordano): O Douglas colocou a experincia do uso do RPG como uma espcie de educao, para ensinar regra de trnsito, Histria, etc. Gostana de saber se, na opinio do Douglas, o RPG, nessa funo pode ser alterado de alguma forma, se pode perder o seu valor. Douglas Quinta: Claro que o RPG mal utilizado pode ficar to chato quanto uma aula ruim. Se for transformado numa obrigao para a garotada, ele perder seu valor. Ser to ruim quanto algum que gosta de futebol e obrigado a jogar vlei, como acontece muitas vezes na escola. O que eu tenho visto uma utilizao muito mais sutil e em praticamente todas as reas de conhecimento. Tenho um amigo, por exemplo, que d aulas de aritmtica para garotos entre 8 e 10 anos'que muitas vezes, usa o RPG para levar a garotada a fazer as contas que ele quer que elas faam. Ele usa um sistema bem complicado chamado Hrn Master que exige uma quantidade bastante grande de clculos durante o desenrolar da aventura. Com isso a meninada faz as contas porque quer brincar e acaba estudando sem perceber durante a brincadeira. Muitas vezes no necessrio abordar diretamente o assunto que se quer discutir. s uma questo de se conseguir colocar a mensagem desejada de uma forma sutil, quanto mais sutil melhor. Acho que isso valoriza o RPG no sentido de que eu tenho uma brincadeira que pode ser usada como uma ferramenta. Mas no acho que ele deva ser obrigatrio. No acho que a gente deva transformar o RPG num audiovisual. Luciano Alves Ona: Quando comeamos a trabalhar em equipe, estvamos com um projeto desse com as crianas de rua e ele era usado no s para passar informaes, era para obter informaes tambm. Aquelas crianas eram muito maltratadas e, ento, elas tinham muito medo de se abrir. Tnhamos o projeto de usar RPG, chegamos a aplicar durante uns dois meses. Num jogo em que aparecia uma situao moral no jogo, dava para ver como a criana agia e como a criana no agia. uma forma de aprender como agir com aquela criana. No RPG, as pessoas se colocam muito. E um outro uso. Platia Gordano): O Lus Eduardo Ricon comparou a criatura da
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mitologia brasileira com a da americana e a da medieval. Existe uma desvalorizao do RPG brasileiro em relao ao americano, ao ingls, o de fora do Brasil? Queria saber o que voc acha sobre isso, se voc concorda, se discorda. Lus Eduardo Ricon: Eu sofri isso na pele durante quase dois anos. No ltimo ano, graas a Deus, as pessoas pararam de torcer o nariz para o Desafio. Mas uma coisa chata voc ir todo sbado s lojas e falar "Oi, voc gostaria de conhecer o RPG que eu criei?" e ser ignorado. Quando eu falo isso, pode ficar parecendo piegas, mas no . A cultura brasileira, a mitologia brasileira so coisas que mexem muito comigo, temas pelos quais sou apaixonado mesmo. E o Desafio dos Bandeirantes, para mim, uma coisa importante. Eu tenho a opinio maluca de que isso vai mudar as pessoas de algum jeito. Estou certo disso. Mesmo que vocs nunca sejam modificados pelo meu jogo, eu acho que ele vai mudar vocs e pronto. Mas sobre essa diferena da mitologia, demora mais ou menos trinta segundos para a pessoa perder o preconceito. Antes de comear o jogo, ela pode at torcer o nariz. Mas se eu consigo convenc-la a sentar e esperar cinco minutos, eu explico as regras e pronto. Comea a aventura, o jogador j esqueceu se est no Brasil, na Finlndia, nos Estados Unidos, na Lua... No interessa. E aventura. E emoo. Ele arrebatado imediatamente tambm, como em qualquer outro RPG, se for bem feito. E claro que se voc tiver um mestre ruim, vai ficar um horror. Mas existe gente que no gosta mesmo. Tem gente que vai achar que o boitat nunca vai ser o drago, porque na cabea dele, na formao dele, a referncia que existe o drago, no o boitat. Tudo bem. Eu respeito, dou parabns a ele. Mas eu s acho que o mesmo respeito que se tem com o drago, tem que se ter com o boitat, por que no? Se voc espera para ouvir a histria do drago, por que no espera para ouvir a histria do boitat? Foi o que eu j falei antes. Os dois tm a mesma raiz. Os dois so o mesmo mito. O mito do drago e o do boitat representam, psicologicamente, a mesma coisa. Se voc estudar a fundo a mitologia, a psicologia do mito, voc vai reparar que o mito do drago o mito do primitivo, do poder que no pode ser conquistado, o poder do fogo, da terra, da pedra. o poder do desconhecido e da natureza indomvel. O boitat a mesma
coisa. L/ma serpente que vem das entranhas da terra, coberta de fogo. um drago.' E a mesma coisa! Na China, eles cm drago, no Japo eles tm o mesmo drago. Na frica, eles vo ter outra serpente de fogo. Os ndios americanos vo ter um animal parecido. So mitos que esto presentes em todas as culturas, pois eles so universais. Eles esro presentes em cada um de ns. E importante as pessoas terem a cabea aberta para isso. Acredito que o Desafio tem um pouco essa funo, a de abrir a cabea das pessoas, a de mostrar que o boitat no to feio assim, que o saci-perer pode ser divertido tambm. Por que isso? Por que eu quero vender o boitat? Por que eu acho o boitat o mximo? No, porque eu quero que voc se aceite. Eu quero que voc olhe no espelho e fale assim: "Eu sou brasileiro. Eu no moro em Nova Iorque. Eu no falo ingls. Eu sou brasileiro''. Voc pode at gostar dos Estados Unidos, adorar os vdeos da MTV, o cinema americano e tudo. Mas voc tem que se reconhecer como brasileiro, para poder se aceitar, se melhorar e melhorar o pas. Eu no posso pensar: "Sou o Tom Cruise". Se eu fizer isso, vou olhar o espelho e vou ser infeliz o resto da vida. Eu tenho que aceitar o fato de que nunca vou ser o Tom Cruise. Voc tem que aceitar o que est dentro de voc para poder modificar o que est fora. No estou falando isso s em relao ao RPG. Em toda a sua vida voc vai aplicar isso. Isso uma coisa universal. De repente, voc aspira muito uma coisa que no pode ter na sua vida. Voc tem de saber lidar com este fato. Qualquer RPG ensina muito, neste sentido. o caso de um personagem que est na situao de precisar saltar um abismo para se salvar, mas no consegue. Como lidar com essa frustrao de no ter conseguido? Da mesma maneira que se lida com a frustrao de procurar emprego, fazer uma entrevista e no conseguir a vaga. Ou, talvez, se apaixonar perdidamente e no ser correspondido. Ou, ainda, estar na rua, ser assaltado e perder o relgio. E a mesma coisa. O RPG nos ensina como lidar com as situaes da vida. Douglas Quinta: H algum tempo atrs, uma amiga me pediu que eu desse uma aventura de RPG para um grupo de amigos que queriam conhecer o RPG. Estavam curiosos, at porque o filho de um deles estava comeando a jogar e os pais queriam saber do que se tratava. O grupo de jogadores tinha adultos e crianas. Eu dei uma aventura que eu chamaria
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de "Horrores Infantis." A histria se passava no interior de So Paulo no incio da dcada de 30 e os monstros enfrentados pelos personagens eram justamente os monstros das canes de ninar. Claro que eu no dizia "Agora vocs encontraram o boi-da-cara-preta, eu descrevia a criatura que eles tinham pela frente. A garotada se entusiasmou muito com a histria. Para eles no importava se era um drago ou no. Como disse o Lus Eduardo, depois de cinco minutos, eles tinham um monstro pela frente e trataram de cuidar dele. Arturo Uranga: Eu queria complementar a resposta de Lus Eduardo. Gostaria de passar para vocs a minha preocupao com uma conscientizao que eu adquiri tarde e, talvez, vocs ganhem tempo tomando essa conscincia mais jovens. Existe uma preocupao, no mundo inteiro, nos Estados Unidos, na Europa, em todos os pases, com o risco da perda de identidade. Eu sou um produto americano; eu uso cala jeans, eu sou da gerao de James Dean, eu imitava James Dean at quando caminhava. As meninas enlouqueciam, porque eu imitava ele. Hoje, tenho que assumir que na minha adolescncia fui um produto cultural totalmente americano. Adorava cinema americano, literatura americana, comics e musica americana, me vestia como americano e meus dolos eram todos americanos. Quando, nos anos cinqenta, para proteger a indstria cultural argentina, o governo peronista limitou a entrada do cinema, dos comics e da musica americana, eu fui dos primeiros a reclamar indignado. E, no entanto, aquilo criou uma Idade de Ouro para a msica, o cinema e as histrias em quadrinhos nacionais que, de alguma maneira, subsiste at hoje. As revistas de HQmais populares continuam sendo as produzidas no pas. E uma coisa muito importante, que bom que vocs descubram mais cedo do que a minha gerao. Se a gente s consome produtos de fora e no deixa um certo espao para o feito aqui, arriscamos ento que esse produto nacional morra por falta de mercado. E como se vocs mesmos fechassem os seus prprios caminhos e oportunidades para o futuro. A tecnologia hoje em dia to universal que ns poderamos fazer, atualmente, aqui no Brasil, filmes com uma tecnologia semelhante americana. E s um problema de custos. Mais ainda quando a trucagem em computao grfica veio substituir a complexa e custosa trucagem ptica. Tudo isso j est nas nossas mos. E problema de dinheiro e nada mais. Hoje, o cinema brasileiro vive uma grande preocupao em alcanar
uma qualidade tcnica o mais prxima possvel do cinema internacional, em que pese os pequenos oramentos com que temos de trabalhar. Se vocs assistiram ao meu filme Era uma vez---, devem ter notado o cuidado do filme com a qualidade da imagem, da iluminao, na produo da cenografia, na utilizao de filtros de cor, aquela coisa toda que faz um visual internacional, dentro do nosso pequeno oramento. No Festival Internacional de Gramado (RS), um americano, admirado com a qualidade e riqueza de recursos do filme, veio nos perguntar quanto nos tinha custado produzi-lo. "- Quanto voc acha?", lhe perguntamos. "No menos de 5 milhes de dlares!", respondeu ele sem duvidar. A gente fez por menos de 400 mil dlares! Ns, aqui, com 2 milhes de dlares, podemos fazer um filme do nvel de um filme americano de cinco milhes de dlares ou mais. Voc j pode fazer suas trucagens em computao grfica aqui, no Rio de Janeiro, mandar para os Estados Unidos, e eles a transferem para filme negativo l. E a mesma tecnologia que usa George Lucas e sua industriai Light &Magic e todas as outras produtoras americanas hoje em dia. E, s vezes, no to cara assim, porque l a concorrncia muito grande e h um monte de firmas que cobrem esse servio. O importante, com respeito ao que falou Lus Eduardo, ter cuidado com a ameaa que representam os produtos que vm de fora se s escolhermos ou preferirmos eles para nosso consumo. estarmos fechando nossos prprios caminhos. Pois imagino que muitos de vocs talvez queiram, no dia de amanh, criar e produzir um RPG nacional. Ento, pelo seu prprio bem no futuro, devem ter, ao menos, a curiosidade de ver o que se est fazendo no pas. No digo que devam aplaudir o que ruim ou medocre s porque nacional; gritem, chutem, xinguem, joguem tomate podre, faam o que bem quiserem. O que no devem fechar a cabea, o preconceito de ignorar ou subestimar de vez, apenas porque nacional: ento inferior, ruim, no presta. Tentem manter as suas cabeas abertas, como ensina o RPG. Abertas para a aventura da vida, da criao, da liberdade de serem originais, para a curiosidade por tudo que os rodeiam, para a procura de maior informao, maior conhecimento, para estarem atentos s experincias dos outros e prontos para se arriscarem as suas prprias e novas experincias. Porque, do contrrio, a gente fica de mos amarradas. A gente se autocastra, se autolimita, a gente no , nem vai ser nunca.
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Na semana de inaugurao da EuroDisney, as redes ferrovirias francesas entraram em greve, em um claro boicote quilo que a Europa considerava uma invaso cultural. Antes disso, j havia ocorrido protestos pblicos e pesquisas negativas intromisso da Disney na indstria turstica europia. Porque a Europa , na verdade, um grande museu, uma grande criadora e exportadora de cultura. Vinho francs cultura, perfume francs cultura e assim tambm a moda, a pera, o whisky escocs, o rocie europeu, o vanguardismo artstico, as suas runas e histria milenar, tudo ou quase tudo comercivel na Europa cultura. Ponhamos como exemplo a Capela Sistina. Imaginem vocs se, daqui a poucos anos, ningum lembrar quem Miguel ngelo? A Itlia em massa se suicida! Por que visitar a Capela Sistina? "E o que me importa daquela capela?", diriam. Tomem muito cuidado, pois esto defendendo seus prprios valores, suas prprias razes culturais, sua identidade como pas e raa, o que vocs so, gostem ou no. Seu direito a existir no concerto das naes do mundo, a ser. E vocs ocuparo um espao no mundo se vocs estiverem representados nesse mundo, se existir uma presena solidamente estabelecida. Por que fazer cinema brasileiro? Porque todos os pases medianamente, digamos, avanados do Primeiro e Segundo Mundos e at alguns do Terceiro fazem cinema. No dia em que vocs no fizerem mais cinema, temo que no vo existir mais a nvel da cultural mundial. Sentenciado morte tantas e tantas vezes, o cinema continua to forte como sempre. Se bem que a televiso muito forte, ela tem uma certa vocao para a intranscendncia, para o descartvel, para o perecvel... O cinema no, ruim ou bom, j tem uma tradio bem fundamentada de transcendncia. Engraada a relao do cinema com a televiso. Existe de parte da TV, no mundo todo, inclusive aqui no Brasil, uma relao muito especial com o cinema. Por um lado, gosta de mostrar uma certa indiferena, um certo desdm altivo em relao ao cinema, seus profissionais e at a sua obra, entanto no sejam s consabidas superprodues hollywoodianas. Por outro, parece esconder um mal resolvido complexo de inferioridade com ele, mostrando um respeito levemente invejoso pelos que fazem cinema e a contratao quase imediata, para seus quadros, de todo tcnico e ator talentosos lanados recentemente pela indstria cinematogrfica. Platia (?): O Uranga citou a parte do filme em que se inspirou, na
criana sonhando ser algum que melhor. Ser aquela pessoa seria melhor para ela. Esse um problema que envolve o RPG. Ser que o RPG, alm de ser um jogo, uma diverso, no uma forma de escapar da realidade? Arturo Uranga: Existe este perigo. O que eu disse sobre o rito de passagem que uma das tradies mais antigas e comuns a todas as culturas. Desde os antigos mitos, lendas e mistrios, das civilizaes primitivas europias aos ritos de iniciao das tribos africanas; desde os contos orientais de As mil e uma noites at as cerimnias dos ndios de toda a Amrica. Fosse atravs de ritos mgicos ou atravs de uma narrativa aventuresca e fantstica, transmitida de gerao em gerao, se preparavam as crianas para aquela passagem entre a infncia e a maturidade, to cheia de provas, lutas e desafios, inmeros obstculos a vencer, triunfos enganosos e passageiros, plena de mistrios desconhecidos e perigosos abismos ameaadores para a integridade fsica e emocional do futuro aventureiro. Era uma aula de preparao para a vida e seus mistrios e muitas vezes transcendia esta funcionalidade bsica para transmitir, em uma linguagem disfarada, s legvel pelos mais aptos, os escolhidos, verdades mais transcendentes e s dignas daqueles que "soubessem ler o livro." Algum muito sbio, no lembro quem, falou alguma vez: "A vida est a e um livro aberto para quem souber l-lo..." O RPG positivo em relao a isso. O Lus Eduardo e os amigos dele so muito conscientes disso. O RPG, pela sua raiz literria, fomenta a leitura nos jovens jogadores, a fantasia, a criatividade, ensina a enfrentar situaes inesperadas e improvisar solues para elas, a adaptar-se a circunstncias exticas e difceis de lidar. Mostra que as batalhas nem sempre so vencidas pela fora bruta, porm muito mais pelo uso inteligente das prprias limitaes e mostra a importncia da ajuda alheia, do trabalho de equipe, da fraternidade humana. Tudo isso muito positivo no RPG. Isso de educar e ajudar a crescer o jovem verdade; de ensinar, de preparar para a vida. Suas fontes literrias so das mais tradicionais e puras: a prpria literatura oral anterior descoberta da escrita, os contos de fadas que tinham a mesma origem e funo. Aquela literatura que se deu chamar muito vitorianamente no sculo passado - e que ela, coitada, no merecia - de estrias, contos ou romances morais, porque davam exemplos de moral e boa conduta para as crianas burguesas, aspirantes a serem futuros gentlemen.
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Eu acho que o RPG tem tudo para fazer isso, sem cair naquela educao arcaica, repressora e de uma moral quadradinha. Pelo contrrio, atravs da aventura a pessoa aprende a escolher e a valorizar aquelas aes que a dignificam e a engrandecem como heri, que o fazem crescer como Homem, no verdade? E no aqueles mdios que lhe faam triunfar por meios desonestos e vergonhosos. Quer dizer, uma forma de alcanar no, digamos, uma moral, mas uma tica... Mas a vida nos leva um pouco a isso. O homem procura crescer como ser humano; e chegar a triunfar, pelo seu crescimento, sobre o medo morte, que o jeito de venc-la. Quer seja como homem guerreiro, quer seja como homem pacfico. Como guerreiro ter de enfrentar, com certeza, a violncia, ter que saber enfrentar a possibilidade da violncia, mas sempre com uma concepo e posio ticas diante dela. Por outro lado, existe o perigo, tanto no RPG como na literatura e tambm hoje no computador, da pessoa se fechar dentro do RPG e no viver. E isso, na realidade, a negao do prprio princpio e esprito do RPG, que preparar-nos para a vida. Porque a aventura, a verdadeira aventura, nos espera l fora. Por isso o baralho do Tarot comea com a carta do Louco, jovem e inexperiente, partindo para a aventura de viver. E a primeira carta, no a segunda nem a terceira. E o incio de tudo. No h incio nenhum sem partida, como o Lus Eduardo falou muito bem. a pousada que vira o boteco da esquina. O RPG magnfico como uma forma de experimentar, intelectual e interiormente, a vida, as decises antes de p-las em prtica. Um laboratrio da vida: aprender a descobrir as decises certas para alcanar uma meta certa. Mas tambm na literatura existe o perigo do medo vida. Temos o "rato de biblioteca", aquele que acabou "vivendo" a vida atravs dos livros. No meu filme Era uma vez... h essa situao, quando Grilo, um rapaz que s vive e atua de acordo com o que os seus livros lhe dizem, perde eles e se sente incapaz de tomar uma deciso sem sua ajuda. E ento um companheiro de aventuras lhe diz: "- Teus livros j te ensinaram tudo o que deviam... Agora vais ter de encarar a vida sozinho." Nisso tambm o RPG extraordinrio. Potencialmente pode se converter num vcio, mas isso j um problema individual. No gostaria de pensar que o RPG, como a TV a cabo, o computador, os vdeogames, a Internet ou qualquer outra coisa que viesse a ser inventada no futuro, virassem este mundo
numa coisa paranica, que todo mundo virasse louco de vez, fechado dentro das casas, vivendo uma vida mais fcil de ser vivida, escolhida e programada por ns mesmos. Espero que no. Snia Mota: Gostaria de complementar o que o Uranga disse. A fuga atravs do RPG no um problema do jogo. O problema da pessoa que foge, no de onde vai se procurar a fuga. Eu quero perguntar ao Uranga sua opinio sobre o livro jogo que est sendo criado a partir do filme Era uma vez... Do Luciano, gostaria de saber mais dados sobre o trabalho com meninos de rua. Aqui no Rio existe uma psicanalista que faz um trabalho, tambm, com meninos de rua, usando o RPG. Luciano Alves Ona: Quando fizemos esse trabalho, no ficou restrito s crianas que ficavam na instituio, que era a Pastoral do Menor. Essas crianas eram menores de 8, 9, 10 anos. Nos aventuramos mesmo, na Praa da S, em So Paulo, e l comeamos a conversar com as pessoas que trabalhavam e moravam na praa. Essas pessoas, que no tinham a mnima facilidade de se abrirem. Quando perguntvamos alguma coisa, eles j olhavam desconfiados. S faltavam perguntar se ramos policiais. Sempre numa postura muito defensiva, porque elas sofreram muito na vida. O RPG serviu justamente para conseguirmos que essas pessoas se abrissem. Um dos organizadores da Pastoral nos deu parabns, porque foi a primeira vez em que algum conseguiu fazer com que essas crianas ficassem sentadas duas horas seguidas, sem querer levantar, sem ficar tirando sarro do que a gente estava falando. O pessoal da Pastoral usa aquela pedagogia, que atrasada, tipo: "Olha, vocs devem fazer isso. Vocs devem amar o prximo". No d para falar isso para um cara que apanhou de todo mundo, que apanha de policial noite, que ningum d comida para ele, que passa fome o dia inteiro. No d para amar o prximo que est passando com dinheiro ali ao lado. No vai amar. Esses valores tm de ser passados para as crianas no jogo porque, a partir do momento em que elas passam a vivenciar o jogo, elas vo passar por situaes do tipo precisar salvar algum no jogo. Eles passam a dar valor para esse tipo de sentimento, de uma outra maneira, no simplesmente falando. E uma pena no termos continuado. Trabalhamos com vrios grupos diferentes de crianas e tivemos resultados gratficantes quanto capacidade das crianas de trabalharem situaes adversas. Pretendemos retomar esse projeto; que est todo mundo fazendo faculdade, fazendo
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o programa, que toma muito tempo nosso. Acabamos dando prioridade para o programa, porque achamos que talvez fosse um trampolim para conseguir desenvolver as outras atividades que tnhamos em mente com o RPG. Mas vamos retomar o projeto com as crianas. Acho que este tipo de iniciativa deveria ser tomada no s por ns, mas por todo mundo que tivesse oportunidade, pois essas so pessoas como quaisquer outras que voc olha na rua, e deveriam ter mais ateno da sociedade. Arturo Uranga: Quando bolei o filme pensei, ingenuamente, que poderia tentar fazer um merchandising, paralelo ao filme, de objetos, bonecos, tudo; como fazem George Lucas e companhia. S que isso no aconteceu. Ningum, nenhum empresrio, acreditava no filme. Ningum acreditava. Tanto que durante 3 anos com o filme incompleto, tivemos que parar por falta de dinheiro. J extraordinrio ter acabado o filme! O convite da Editora GSA, uma das pioneiras em criar e editar RPGs nacionais como a srie de Tagmar ou o Desafio dos Bandeirantes do prprio Lus Eduardo, e o pedido que me fizeram para ceder-lhes os direitos dos personagens de meu filme e a possibilidade de criar uma continuidade histria e o universo de Era uma vez... foram provocados naturalmente, pela sintonia, pelas mais que coincidncias com o RPG. As nossas fontes so as mesmas. A editora pretende lanar uma seqncia de trs livrosjogos que do continuidade s aventuras do filme. (O primeiro livro foi lanado nesse mesmo ano com o titulo de Era uma vez-- - A Vingana de Mag Mor, autoria de Lus Eduardo Ricon e Ygor Morais Esteves da Silva, e est venda nas livrarias do ramo.) Platia (Ygor): Eu gostaria de voltar a um assunto que j foi um pouco morto pela mesa, que sobre esse preconceito que as pessoas tm contra o RPG nacional. Eu tambm sou um autor de RPG no Brasil e eu vi muito de perto e muito pessoalmente esse tipo de preconceito. No s contra o RPG brasileiro, o tema brasileiro, que eu e Lus Eduardo levamos anos e anos trabalhando para mostrar para as pessoas que to bom ou melhor do que o RPG importado, porque mais prximo da gente, mais prximo da nossa cultura. O preconceito tambm existe contra o prprio fato do RPG estar em portugus. Estive com diversos jogadores, de todas as partes do pas, para mostrar os RPGs criados no Brasil, os nossos. E muita gente virava a cara simplesmente por estar em portugus. Houve o caso de um rapaz culto, um cara inteligente, e chegou ao ponto de falar
que no conseguia se sentir bem jogando RPG escrito em portugus, ainda que fosse o RPG importado, como era o caso do Gurps. Ele disse que no conseguia ler o Gurps em portugus. E a mesma coisa. E o RPG americano que est em portugus. Quer dizer, essa uma desvalorizao prpria da nossa cultura, das nossas coisas, da nossa prpria lngua e do que ns mesmos produzimos. Eu vejo muita gente falar mal do Tagmar, o RPG que eu escrevi, simplesmente pelo fato de ter sido escrito no Brasil. Meu interesse saber as crticas das pessoas para poder melhorar no futuro, bvio. Ouo muitas crticas e agradeo as crticas construtivas. O problema que as pessoas simplesmente diziam: "No, eu nunca joguei, mas me contaram que...". E uma coisa terrvel. Vo passando os "me contaram que" ou "falaram que", simplesmente as pessoas no acreditam no RPG, no produto, porque ele brasileiro e no americano, no uma traduo, ou pior, porque est em portugus. Arturo Uranga: No Castelinho do Flamengo, quando passaram o meu filme em vdeo, estava l um grupo de umas trinta e poucas pessoas, todas muito jovens, assistindo a um velho seriado de desenho animado japons que virou cult. Cpia pssima. A sala estava cheia. Quando comearam os ttulos do meu filme, uma muito boa cpia, com som excelente, magntico e as pessoas viram os ttulos em portugus, a sala esvaziou. Ficaram oito, sete ou oito pessoas. Eu sentei l no fundo. Apenas sete ou oito pessoas no preconceituosas pelo filme ser brasileiro. Acabaram curtindo o filme ao mximo, no pararam de rir durante todo ele e saram comentando: "Quefilmegenial! Que engraado, que safado...". Mas 80% das pessoas levantaram-se, retiraram-se antes de comear o filme, ainda nos ttulos. No deu a mnima chance ao filme de mostrar se valia a pena ou no. Tem que se entender, repito mais uma vez, que esse um grande perigo que esto criando para vocs mesmos. No sejam to preconceituosos com o nosso, porque um dia vamos desaparecer do mapa e ningum vai saber porque. No podem deixar de defender o futuro de vocs mesmos e daquilo que vocs produzem. Vou dizer mais uma coisa: muita gente que assistiu a meu filme, tanto pblico comum como profissionais de cinema, no acreditava que o filme fosse feito no Brasil, pensaram que fosse europeu. Foi feito aqui por brasileiros, por tcnicos e at jovens artesos amadores brasileiros, e ningum queria acreditar. Platia (Arthur): Antes de mais nada quero fazer a propaganda dos
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criadores de jogos. Meu livro deve estar saindo em setembro. O tema de hoje sobre novas experincias na relao entre RPG e arte. Eu gostaria de saber qual o futuro panorama que o Douglas e o Lus Eduardo enxergam para o RPG no pas e para a estticas do jogo tambm. Douglas Quinta: Vou comear pelo fim da pergunta, a questo esttica, para depois dizer o que eu vejo como futuro do RPG no Brasil. Como se sabe, o RPG nasceu como uma variao dos jogos de estratgia e desde ento vem tentando se livrar do sistema de combate, ou seja, do foco do jogo em cima da luta em si. No a luta para se alcanar um objetivo, mas a luta corporal. Dentro dessa tendncia existem vrios jogos novos com sistemas bastante interessantes. Vampiro: a mscara, por exemplo, uma tentativa de se livrar um pouco disso, uma tentativa de colocar a histria em primeiro plano e as regras em segundo. Alm disso, existe um jogo bastante recente e pouco conhecido, chamado Caste of Falkenstein. Este jogo tem duas coisas interessantes: A primeira que ele na verdade a histria de um jogador de RPG que, por um acaso, vai parar numa realidade alternativa que igual Europa vitoriana dos romances de Jlio Verne e H. G. Wells e tenta ensinar o jogo aos habitantes daquele mundo. E, obviamente, ele no pode usar dados pois as pessoas elegantes desta poca no jogam dados. Nosso personagem vive na corte. Por isso ele usa cartas de baralho que eram o tipo de jogo mais elegante. Mas isso simplesmente uma mudana na forma de trabalhar com o fator aleatrio. O aspecto mais importante do Castle of Falkenstein o fato dele no ter fichas de personagem. Ou seja, os personagens no so descritos de uma forma objetiva e na maioria das vezes numrica como acontece em todos os outros sistemas. Cada personagem tem um dirio que era uma coisa que estava na moda na Europa vitoriana. O jogador escreve o dirio de seu personagem e o resultado das aes julgado de acordo com o que existe no dirio. E uma coisa muito mais trabalhosa, tanto para o mestre quanto para o jogador. Mas do ponto de vista esttico, do ponto de vista de expresso, muito mais avanado do que qualquer coisa que j havia sido feita at agora. Acho fantstica essa mudana da ficha do personagem para o dirio. E uma espcie de passagem da descrio objetiva do personagem para uma descrio mais subjetiva, mais sujeita interpretao na hora. Acho que, do ponto de vista esttico, essa a grande modificao que est se desenvolvendo.
Quanto ao futuro do RPG no Brasil, como o Lus disse, grandes empresas entraram no negcio. O que aconteceu quando a Grow e a Estrela entraram foi que elas fizeram o mercado crescer. Quando me perguntavam se eu estava preocupado com o lanamento de Dungeons & Dragons pois ele poderia vir a competir com o Gurps, eu dizia que no. Na verdade, o que a Estrela e a Grow fizeram foi um trabalho maravilhoso na medida em que elas colocaram o Hero Quest e o Dungeons & Dragons num milho de lojas que a gente nunca atingiria - at porque eles no trabalham com livros e sim com brinquedos - e ensinaram um monte de garotos a brincar de RPG. E hoje esses garotos esto deixando de jogar Hero Quest para jogar outras coisas. Essa uma evoluo natural. A primeira linguagem de computao que aprendi foi Fortran - porque eu estava na universidade. S mais tarde que eu fui aprender outras coisas mais interessantes. Acho que Dungeons & Dragons e Hero Quest so pontes maravilhosas para quem quer jogar RPG. O garoto, que tem dez anos, no vai ler - acho at que na maioria dos casos - no tem bagagem nem maturidade para enfrentar um livro tipo Vampiro. A preocupao dele outra e acho que Hero Quest maravilhoso para isso. Essas empresas, na verdade, fizeram o mercado crescer para as pequenas mesmo, como ns. Acho que agora com o Advanced Dungeons & Dragons vai acontecer a mesma coisa. claro que num primeiro instante, ele vai se transformar no sistema mais jogado e, talvez, fique assim para o resto da vida. Mas, com certeza, ele vai dar uma movimentada muito grande. Vai, outra vez, fazer muita propaganda, muita promoo e trazer gente nova. Acho que isso importante. Eu discordo quando o Lus Eduardo disse que ia ser uma guerra, digamos dos jogos brasileiros com as grandes empresas. Acho que quanto mais jogo tiver no mercado melhor. Lus Eduardo Ricon: No, no, Douglas. O que eu quis dizer foi o seguinte. Se voc vai entrar no mercado agora, voc tem que estar consciente de que a Editora Abril est concorrendo contigo. Voc vai ter que lanar um produto no nvel do produto que a Editora Abril est lanando. Ou, ento, voc vai ter que procurar uma estratgia de marketing alternativa. Foi isso que eu quis dizer. Voc no pode entrar nesse mercado ingenuamente, pensando que era o mercado que havia h trs anos atrs, porque ele no . Hoje em dia, o mercado est completamente diferente. Douglas Quinta: No, acho que no. O contra exemplo disso est
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claro para quem acompanha o mercado americano. Isso aconteceu duas vezes seguidas em 2 ou 3 anos. A maior empresa do mercado era a TSR e, de repente, de um ano para o outro, a White Wolf que era a maior empresa no negcio. E no ano seguinte, no era mais. Era a Wizards of the Coast. Lus Eduardo Ricon: Sim, mas, de uma certa maneira, todas essas empresas traziam coisas inovadoras. A White Wolf entrou exatamente para fazer o que a TSR no fazia, ou seja, ela pegou uma estratgia alternativa. A Wizards of the Coast entrou para fazer o que as outras duas no faziam, porque se a White Wolf chegasse para lanar um livro igualzinho ao Dungeons and Dragons para competir com elas, ia dar com os burros n'gua, porque a TSR j estava l sentada confortvel na poltrona. Foi isso que eu quis dizer. Se voc vai enfrentar esses caras, tem que ter jogo de cintura. Tem que saber que precisa publicar uma coisa que no exista similar no mercado. Muita gente me prope, nos eventos, lanar um RPG de fantasia medieval e eu respondo que bom que seja uma idia completamente revolucionria, seno perda de tempo. Douglas Quinta: Concordo. A pessoa que mais ajudou a Devir a se colocar como uma empresa dentro do mercado de RPG foi o Steve Jackson. Se voc der uma olhada em seu manual para escritores de suplemento vai encontrar na primeira pgina a seguinte frase: "Se voc no capaz de fazer um drago melhor que a TSR, no faa!" Acho que isso, como premissa. Lus Eduardo Ricon: Bom, respondendo pergunta do Arthur, eu vejo o futuro do RPG em duas direes distintas. Numa direo, ele vai ficando cada vez mais elaborado, tanto tecnicamente quanto artisticamente e estilisticamente, atingindo um nvel quase que de literatura mesmo; e a parte da arte tambm, cada vez mais aproveitando tcnicas de pintura, de ilustrao, de computao grfica, de multimdia. E o outro ponto, o outro extremo dessa linha, seria o qu? Tornar o RPG cada vez mais simples. Por qu? Porque acho muito chato, ainda, voc ter que ler um livro de no sei quantas pginas para jogar uma coisa to simples, que sentar em volta da mesa com seus amigos e se divertir. Ento, acho que esses dois extremos esto abertos. E fazer uma coisa l nos pncaros do desenvolvimento estilstico ou, ento, fazer uma coisa que o jogador chega em casa, abre a caixa e joga RPG e se diverte com todo mundo, de uma
maneira interessante. E procurar, tambm, temas ainda no explorados. Acho isso uma coisa muito interessante. No d para ficar simplesmente nos temas que j existem por a, de aventura e de magia. Deve-se buscar outras temticas. Temticas, talvez, mais humanas, mais sociais, polticas, talvez. Por a, o campo est aberto. E, quanto entrada das grandes empresas, tambm concordo com o Douglas. Elas abrem muito o mercado. Quem tiver, como eu falei, a viso estratgica, pode se dar muito bem no mercado. Porque so empresas que entram e deixam um caminho muito grande, aberto, atrs delas. Quer dizer, muita gente comea a jogar RPG por causa dessas empresas. Eu conheo poucas pessoas que jogam um RPG s. E, mesmo assim, essas no so as pessoas mais interessantes. As pessoas mais interessantes jogam vrios jogos e esto sempre vidas por conhecer coisas novas. So aquelas pessoas que esto toda semana na loja perguntando se tem coisa nova. Esses so os caras que vo levar o RPG para frente. Platia (Abel): Queria voltar um pouco questo de RPG fazer mal. Tudo o que demais faz mal. Comer, beber, fazer sexo demais, faz mal. J tive a experincia de jogar videogame o dia inteiro e sa dessa atravs do RPG. Enquanto o RPG faz voc ser algum, o videogame faz voc ser alguma coisa. Quanto questo do RPG nacional, alguns dizem que o Tagmar uma porcaria, outros acham timo. Quanto mais jogadores criarem seus prprios sistemas, melhor. Platia (Felipe): E preciso correr atrs de uma produo bem feita, para concorrer com a produo estrangeira, para conquistar um pblico novo, que no conhece o RPG nacional. Luciano Alves Ona: Vou discordar de voc porque, por exemplo, capas maravilhosas, estrangeiras, desenhos fantsticos, atraem para a compra pessoas que nunca jogaram RPG e esto curiosos para saber. Se voc quer saber o que uma coisa, voc v um desenho, voc acha maravilhoso. S que o RPG justamente o contrrio, justamente voc criar as suas imagens, voc criar os seus desenhos, voc usar sua imaginao. Na hora em que voc escolhe por causa de uma capa pronta, voc est padronizando. E a mesma coisa que videogame. Platia (Alan): Primeiro, queria fazer a crtica que voc pediu, do RPG Tagmar. Com relao lngua, tem muita gente que prefere a lngua britnica. Eu, por exemplo, prefiro jogar em ingls. Eu me sinto melhor,
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me sinto mais vontade. Acho essa lngua mais potica e acho que fica melhor para jogar RPG. Muitos dos meus amigos concordam, tambm. Isso uma crtica. Eu ouvi muita gente dizer que no quer jogar por causa disso. Por isso que eu comprei Vampire em ingls, em vez de em portugus. Arturo Uranga: Quero acrescentar uma coisa: amo a lngua inglesa, a literatura inglesa e a americana. Coloco apenas a importncia de vocs terem conscincia de que no somos ingleses. E apenas isso. Eu gosto do ingls desde criana. No uma crtica lngua. Platia (Alan): Vou aproveitar isso que voc falou para engatar na segunda pergunta, que sobre voc. Quando voc respondeu primeira pergunta, falou de um jeito que parecia querer dizer que melhor jogar um RPG brasileiro do que jogar um estrangeiro, mesmo que eu goste mais de representar um mafioso italiano. E melhor eu jogar um RPG brasileiro, onde vou representar um caador de ndio no um mafioso italiano, mesmo se eu preferir jogar o RPG estrangeiro? Foi essa a impresso que me deu. Posso estar errado. Arturo Uranga: Foi um mal-entendido. Eu gosto de ler romance italiano ou ver filme francs, filme americano. Sou f do filme americano, gosto de ver filme japons. O que importa a universalidade das coisas. Mas no concordo com o fato de uma s cultura ser a nica vlida no mundo. Isto o que me preocupa. Platia: Pareceu que voc estava protegendo a cultura brasileira de um jeito como se a gente devesse jogar RPG na cultura brasileira para proteger esta cultura, ao invs de jogar uma coisa que a gente prefere. Arturo Uranga: No para vocs deixarem de ver filme americano. Mas que vocs, com a mesma inquietude com que vo assistir ao filme americano, ou jogar um RPG americano, tambm se abram para a experincia de umfilmeou RPG francs, ingls, brasileiro, o que seja. Eu defendo uma atitude multicultural. Snia Mota: Acho timo que o Alan venha aqui na frente dizer isso. Primeiro, porque o que ele pensa e o que muita gente pensa. Quem joga RPG, prefere jogar o RPG estrangeiro. Segundo, porque no tem nada demais as pessoas terem preferncias. Elas preferirem outros universos, universos que no so os do pas delas. Ao mesmo tempo, importante esse esclarecimento que o Arturo fez agora, da questo de estar aberto para mulu-influncias, para vriostiposde influncia, inclusive
para a nossa. Na verdade, pelo que entendo, o que o Arturo est defendendo no a xenofobia, o horror ao que estrangeiro. Ele defende, sim, uma posio anticolonialista, de voc no ser colonizado pela cultura estrangeira. E s essa pequena observao. Agora, timo que Alan tenha vindo falar aqui porque, seno, poderia ficar a falsa impresso de que todo mundo aqui tem uma posio nacionalista em relao a RPG. Sabemos que isso no verdade; h pessoas que gostam mesmo de RPG estrangeiro. No tem nada demais gostar do RPG estrangeiro. Pelo menos o territrio deste seminrio o de uma democracia. Platia (Alexandre Cabral): Eu queria colocar duas coisas rpidas. Primeiro, discordar do Douglas e do Lus Eduardo na seguinte questo: o Luiz est simplificando o RPG. Realmente, uma das tendncias atualmente e o Coste Falkenstein o exemplo de voc ter menos regras e mais cenrio, menos dados e mais interpretao. Coste Falkenstein usa cartas, tem outro sistema alternativo, Amber, que no usa nenhum tipo de aleatoridade; nem dado, nem carta. A minha discordncia que acho legal um garoto de 12 anos pegar um livro de 300 pginas e dizer que leu. Hoje isso muito difcil, at um adulto dizer que leu um livro. Me lembro quando lanaram o Gurps em portugus, eu nem o jogava em ingls. No conhecia nem o sistema. Eu jogava o Call of Cthulhu, um jogo no muito jogado nos Estados Unidos. E posterior ao ADcVD, mas no um jogo de massa. Quando o Gurps saiu, dei para o meu irmo de presente e ele perguntou se no dava para jogar sem ler o livro porque era muito grande. O medo do tamanho do texto tpico de quem no tem o hbito da leitura. E o hbito da leitura importante porque, com a leitura desde jovem, voc aprende a imaginar. E imaginando o que voc l, voc vai imaginar aquilo que voc vai escrever, voc vai imaginar aquilo que voc vai jogar. Outra observao sobre o que a Snia colocou em relao ao RPG estrangeiro: bvio que nenhum jogador de RPG desgosta do RPG em ingls. A grande maioria, pelo menos o pessoal da antiga, comeou jogando com RPG em ingls porque no tinha outra opo. O que acho que o Lus quis colocar e eu concordo plenamente que voc no pode criticar um RPG s por ele ser em portugus, s porque nacional. Se voc no gosta do Tagmar, voc chega para o Ygor, por exemplo, e diz: "Olha, Igor, eu acho aquela regra de descrio de personagens um lixo". No a minha opinio. Espero, inclusive, que os quetiveremessa opinio
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a coloquem, de preferncia, com mais tato. Me lembro que, quando saiu o Desafio dos Bandeirantes, a primeira coisa que me ocorreu foi que algum teve uma idia que eu j tinha pensado. Legal. E muita gente estava criticando. "P, Bandeirante? Vou fazer o qu? Vou at So Paulo? Que saco! Vou enfrentar o qu, ndio?". E, no entanto, eles curtem muito combater goblins. E lgico que eu tambm curto o combate. Por isso tambm curto lutar contra os ndios do Bandeirantes, timo, no jogo, apesar de politicamente incorreto. Eu acho isso. Aqui no Brasil se fala muito em RPG americano, em RPG em ingls, mas quais so os RPGs que se joga no Brasil, fora Tagmar e Bandeirantes, que so nacionais? Ns s temos RPGs americanos. O nico RPG no americano que ns jogamos, por incrvel que parea, o ingls, que o Aventuras fantsticas, da Marques Saraiva, um RPG muito simples, mas britnico. Existe um movimento hoje no mercado internacional de RPG de aproveitar o que vem de fora. O prprio Steve Jackson Games, do Gurps, vai lanar um jogo agora, um outro sistema que o In Nomine, um jogo europeu, se no me engano, francs. O Kuk, por exemplo, um jogo sueco, de horror, pesadssimo. Os personagens podem ser viciados em drogas, podem ser criminosos, saiu nos Estados Unidos pela Meoropolis, que uma editora pequena. A Fasa, para citar uma grande editora, que faz o Shadowrun agora no Brasil pela Ediouro, editou o mdulo Germany, a Alemanha no futuro do Shadowrun, que foi escrito e publicado primeiro na Alemanha. E a White Wolf deve fazer o Rio by Night, escrito por autores brasileiros e que vai ser lanado nos Estados Unidos e no Brasil ao mesmo tempo. Mais ou menos como a Fase fez com o Germany. Quanto a esta coisa de dizer que no se l o RPG em portugus porque se prefere em ingls eu, pessoalmente, prefiro RPG bem feito. H nos Estados Unidos, ou houve h muito tempo e agora volta, uma certa perseguio a quem joga RPG. No Brasil ns, felizmente, ainda no tivemos isso. RPG bem aceito culturalmente. Eu queria saber o seguinte: como vocs, Douglas e Luiz, um autor e outro editor de RPG no Brasil, vem isso, se j tiveram alguma experincia com isso, se se depararam com essa realidade. Essa incompreenso do nosso hobby. E importante debater isso tambm. Lus Eduardo Ricon: Alexandre, eu no critiquei o fato da pessoa ter que ler um livro de trezentas pginas, no. Eu acho timo que exista
o RPG de trezentas pginas. Mas preciso existirem as duas coisas. O mercado pequeno porque ainda difcil comear a jogar RPG. Eu acho que precisamos ter, cada vez mais, jogos em que a pessoa chega e, de bate pronto, comea a jogar RPG. Para qu? Para, a partir da, desejar uma coisa mais elaborada. Para subir a escada. Eu acho que se deve esticar isso para os dois lados, para pegar o maior nmero de pessoas possvel. Douglas Quinta: Alm disso, Alexandre, os dois sistemas que voc citou como coisas simples do ponto de vista de jogo, que so Amber e Casde of Falkenstein, so livros imensos. Para jogar Amber a pessoa precisa ler pelo menos cinco romances da srie escrita por Roger Zelazny antes de comear. E o prprio Castle tem mais de duzentas pginas. A simplificao est na maneira de resolver os impasses que ocorrem dentro do jogo, como que o mestre resolve se um personagem consegue ou no escalar uma muralha ou atravessar um rio a nado. E nessa estrutura que est a diferena. E a existncia dessa diferena no significa necessariamente que o livro vai ser mais curto ou mais longo. E, talvez, apenas uma questo de diminuio da quantidade de regras e no de uslas com mais ou menos freqncia. Platia (Daniel): Antes de mais nada, eu estou aqui superfeliz nesse debate. Achei fantstico. Acho que tem que ter uma considerao final porque o seminrio "RPG 6*. Arte" foi um negcio que lotou o auditrio do CCBB. O pessoal mostrou que a fim de conhecer mais o que esse jogo. Quem no conhecia muito ou quem conhece para caramba, ainda tem muita coisa para aprender. Eu aprendi muito com vocs todos. Eu gostaria de fazer um comentrio: h um bom tempo eu jogo RPG e venho observando a mudana, o crescimento do pblico. E uma coisa que, a priori, me assustou um pouco. Antes, o RPG tinha aquele estigma do jogador ser um cara degenerado, que vai na casa do amigo jogar aquele negcio que ningum entende, todos ficam gritando. E, de repente, voc encara um auditrio cheio, voc est numa festa. No comeo, eu me senti assustado, mas, depois, vi que no era bem por a. Eu queria que o Luciano comentasse se existe mesmo uma mudana do pblico de RPG, se ele sente essa mudana nos nove meses do programa na FM-USP. Luciano Alves Ona: Acredito que exista essa mudana, sim. Constatamos isso porque, no comeo, as pessoas s ouviam porque achavam engraadinha a histria. Depois, muita gente ligava para o programa
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falando assim: "Eu fui semana passada na casa do meu primo e ele estava jogando RPG e a fiquei interessado na hora em que ouvi o programa, vocs falando de RPG. Eu achei superlegal". Ento, cada vez mais liga gente perguntando onde se pode aprender RPG, quando, como, com quem e tal. A partir da, constatamos que h um crescimento considervel mesmo. Lus Eduardo Ricon: O Desafio dos Bandeirantes foi lanado em 92, ns j temos quase 2 anos e meio e realmente o pblico mudou bastante. Tanto aqui no Rio quanto fora do Rio. Em So Paulo, Belo Horizonte, Londrina, Florianpolis, Vitria, em todo lugar. As pessoas que jogavam RPG tinham um perfil e hoje em dia tm outro. No comeo, eram pessoas bem fechadas, introvertidas. Hoje, o RPG j ficou uma coisa mais alternativa. Existe um outro tipo de pessoa jogando RPG. O RPG comeou a chegar livraria da esquina, uma coisa que antes era impossvel de acontecer. E, hoje em dia, voc vai l e encontra o RPG. Isso uma prova de que o mercado cresceu bastante. O fato de estarmos sentados aqui no Centro Cultural Banco do Brasil uma prova dessa mudana. A prova de como o pblico se modificou. O RPG assumiu uma outra identidade. Pode ser que nem seja a nica identidade dele, mas uma identidade muito boa para ns. Douglas Quinta: Gostaria apenas de acrescentar uma informao ao que Lus disse. Existe uma livraria de arte chamada Avant Gard num shopping center de So Paulo que tem um cartaz na vitrine dizendo "Temos RPG." Como ele disse, a coisa mudou muito. Sbado passado tivemos uma reunio na Devir com o pessoal que vai participar do Live Action de Castle of Falkenstein no III Encontro Internacional de RPG. Quando a reunio terminou, um garoto de uns 14 anos me chamou e disse: "Voc lembra de mim?" Eu olhei para ele e, de fato, ele no me era estranho, s no sabia de onde o conhecia. "Eu sou o sobrinho do Edgar." Eu no via aquele garoto h muito tempo, h 5 ou 6 anos. Mas, de repente, muita gente que eu conheo, filhos de amigos que no vejo h muito tempo, esto jogando. A impresso que eu tenho, da posio em que estou, que o mundo inteiro est jogando. Sei que no verdade mas... Platia (Paula): Minha questo tem a ver com o pblico de RPG. Por que as garotas no se interessam tanto por RPG? Porque a gente chega, por exemplo, no Castelinho do Flamengo, e est aquele bolo de garotos
gritando que "mataram os monstros". O RPG no pode ser s isso, tem que ser algo mais. E preciso interpretar. O pessoal s quer saber de ponto, de ganhar ponto, experincia. No bem assim. Eu, pelo menos, no acho que isso seja RPG. Ainda bem que a mentalidade das pessoas est mudando. Quem joga RPG h muito tempo est chegando ao nvel de interpretar mesmo o personagem, at fazer o personagem fraco, mas viver aquele personagem. Isso essencial. Se vocs querem que o RPG melhore, tm que largar essa mentalidade de matar monstro, porque a o pblico vai aumentar, o interesse das editoras vai aumentar, as mulheres vo jogar. Vai chover na horta de vocs.
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VII
TERROR: MIL FORMAS DE SE MORRER DE MEDO
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A ESSNCIA D O GNERO
VICTOR GIUDICE
Escritor
A primeira coisa a se observar sobre o terror que existem dois tipos de terror: o que aterroriza e o que faz rir. O que faz rir no terror. O mesmo fenmeno ocorre com o erotismo. H o que erotiza e h o erotismo engraado, que no autntico. Quando, num filme ertico, ou pornogrfico, percebe-se que a inteno do diretor tornar a paixo uma coisa ridcula, pode-se at rir, mas jamais algum se sentir erorizado diante desse filme. A finalidade da tcnica literria, no caso do terror, criar um estado emocional no leitor que satisfaa inteno do autor. Vou contar um episdio ocorrido em minha casa que eu considero um timo exemplo de elaborao com intenes de provocar o terror. Quando me casei, eu morava numa casa muito grande. Havia muitas cunhadas, cunhados, sobrinhos e sobrinhas. Uma das sobrinhas era muito imaginativa, muito brincalhona. Estava com quinze anos nessa poca. Entre as cunhadas havia uma recm-casada, grvida do primeiro filho e muito nervosa. A criana nasceu, um menino. Quando completou um ms, minha cunhada levou-o l em casa. Um domingo, Apareceu com aquela bolsa das mes recentes, cheia de mamadeiras, fraldas e outros apetrechos. A bolsa ficou num quarto do primeiro andar. Mesmo durante o dia, era um quarto escuro, porque tinha apenas uma janela pequena. Volta e meia a jovem me precisava de uma fralda e ia at esse quarto. Ento, minha sobrinha tramou o seguinte: numa das camas ela arrumou alguns travesseiros e cobriu-os com uma colcha, como se fossem um corpo morto. No primeiro travesseiro, onde estaria localizada a cabea, ela colocou uma dessas mscaras de papel mach, que se fazem no carnaval, com o formato de um crnio. E dentro do crnio ela encaixou um abajur sem a cpula, s com a lmpada. Depois, ficou do lado de fora, com o interruptor do abajur na mo. Assim que a me entrou no quarto, a sobrinha ligou a luz sob o crnio. E claro que o susto da cunhada foi astronmico. Mas a que entra
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a genialidade do terror. Depois do susto, minha sobrinha procurou acalmla, explicou tudo, mostrou os travesseiros, a mscara, e a calma voltou a reinar. E a veio o golpe de gnio. A sobrinha voltou ao quarto, tirou os travesseiros, enfiou-se embaixo da colcha e colocou a caveira no rosto. Quando a outra voltou, no deu importncia porque j sabia da verdade anterior. Nesse ponto, minha sobrinha se ergueu de modo fantasmagrico, emitindo aquele som caracterstico das almas do outro mundo. A cunhada desmaiou. Muitas pessoas riram, mas eu senti a grandeza do verdadeiro terror. Logo tentei analisar o fato. Houve uma reverso de expectativa, confirmando os significados anteriores que pareciam falsos. Os significados, que eram falsos, passaram a ser reais. E o seguinte: numa narrativa, quando se toma conhecimento de um determinado elemento, um revlver numa gaveta etc, este elemento passa existir como uma realidade ou uma probabilidade. No se pensa mais nele, mas ele logo arquivado em nosso crebro como uma forma de realidade. A partir da, se algum acontecimento sugere o uso do revlver da gaveta, possvel que se forme um foco de suspense ou de terror. At certo ponto, o terror pode surgir de um mecanismo muito simples. O terror visual adotado nos filmes atuais, por meio de efeitos especiais a partir de computadores, acaba se tomando cmico. O espectador no se aterroriza, mas passa a desempenhar um papel, que muito comum no RPG, que o papel de pessoa falsamente aterrorizada. S est aterrorizado quem, desconhecendo quaisquer mecanismos narrativos de terror, pega, por exemplo, um livro de Lovecraft para ler e se deixa envolver. Quando algum l um livro dele, possvel que em dado momento interrompa a leitura e diga: se eu continuar esse livro, alguma coisa pode acontecer e eu no tenho como me defender". Isso o terror autntico. O terror causa uma sensao incmoda, da mesma forma que o erotismo causa uma sensao de ansiedade. Eu associo sempre o terror ao erotismo porque so sentimentos muito prximos. Muitas pessoas da platia so jovens, crianas inclusive, que ainda no passaram ainda pela sensao do erotismo. A sensao do erotismo to forte quanto a sensao do terror. O terror se aplica a vrias formas de expresso artstica. Por exemplo, um compositor russo, Rachmaninoff, conseguiu transmitir terror atravs da msica, de um poema sinfnico chamado A ilha dos mortos. Todos deviam se interessar em ouvir esse poema sinfnico. Ele o comps quando
viu um quadro de um pintor amigo, Victor Hartman, cujo nome era A ilha dos mortos. Rachmaninoff tentou reproduzir musicalmente essa pintura ttrica, que representava uma ilha habitada por seres estranhos. Logicamente esses mortos se locomoviam, tinham um aspecto visual meio duvidoso, mas no eram aquelas caricaturas que se vem hoje no cinema, cobertas de sangue. Aquilo no causa mais terror nenhum. Essa idia da Ilha dos Mortos gerou, nos anos 40, um filme do Boris Karloff chamado A ilha dos mortos. Boris Karloff, morador de uma ilha deserta, recebe visitantes. De repente, morre uma jovem muito bonita. A morta fica deitada na cama. Quando todas as pessoas se retiram do quarto, a cmera se aproxima lentamente do rosto da moa at surpreender um estremecimento facial. A platia fica aterrorizada. A imobilidade cadavrica outra forma de terror, porque gera a expectativa de um sbito movimento. E esse sbito movimento, feito por um morto, pode ser fatal para quem que est vendo. Os interessados nesses efeitos narrativos deviam ler o livro Melmoth, o viajante, de Caries Mathurins. Melmoth um personagem obrigatrio para quem est interessado em terror. Depois de alguma pginas, compreende-se que Melmoth uma reencarnao do demnio. S que em nenhum momento ele vai aparecer sob uma forma declaradamente demonaca. Mas o leitor sabe, por informaes subliminares, todas as origens do personagem. E o demnio na terra. E esse demnio em ao na terra, que vai viver diversas aventuras, incluindo at casos amorosos. O leitor fica na mesma posio de um espectador dos filmes de Hitchcock. Qual a diferena do espectador de Hitchcock e o espectador de outrosfilmes?E que o espectador dos filmes de Hitchcock sabe das coisas que vo acontecer na tela, mas como ele espectador no pode alertar o personagem em perigo. Por exemplo: ele v que o assassino entra num quarto e se esconde num armrio embutido. Ele, o espectador, sabe, mas o personagem no. Quando o personagem entra no quarto e vai abrir o armrio, o espectador se aterroriza mas nada pode fazer. No caso do Melmoth das aventuras amorosas, ele consegue infundir a mesma sensao. O leitor sabe que aquela mulher est ficando apaixonada pelo demnio. Mas nada pode fazer porque um simples leitor. So esses mecanismos inteligentes, psicolgicos, que, na realidade, criam o terror. H um outro livro chamado O livro da imaginao. E bastante curioso.
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Infelizmente, no existe venda no Brasil. Trata-se de uma coletnea de pequenos fragmentos literrios onde se v o trabalho de grandes mestres. Todos as historinhas, todos os textos so muito pequenos: cinco linhas, dez linhas, s vezes, uma linha. H uma histria terrvel com trs linhas: um homem est sozinho em sua casa e sabe que no mundo no existe mais ningum, s ele. De repente batem na porta. Essa forma de imaginao relmpago fantstica. H uma outra muito interessante, dentro daquele mecanismo de um elemento que o leitor conhece e que, de repente, se transforma: uma moa sonha vrias noites que anda de carro por uma estrada. De repente, surge uma bifurcao direita. Ela entra na bifurcao. A estrada chega a uma colina. No alto h uma casa branca. Ela salta do carro e bate na porta. Surge um velho de barbas brancas. Assim que vai falar com ele, a moa acorda. Um dia ela vai a uma festa, em outra cidade e o motoris a de seu pai resolve lev-la. Sbito ela d de cara com aquela estrad direita que lhe aparecia nos sonhos. Salta do carro, sobe a alevao e encontra a casa branca. Nesse ponto o leitor j sabe o que vai acontecer. Ela bate na porta e aparece o velho de barba branca. Finalmente a moa consegue falar. "Boa tarde". Ele responde: "Boa tarde". Ela fica sem saber o que fazer: "O senhor poderia me informar se essa casa est venda?" O velho diz: "Est". Ela pergunta: "Quanto custa?" E ele responde:" No cara, mas eu aconselho voc a no compr-la. "Mas por qu?" "Porque essa casa mal assombrada. As vezes, vem um fantasma noite e bate na porta". Ela diz: "Quem o fantasma?" Ele conclui: "Voc". So esses mecanismos simples, esses jogos de linguagem inteligentes, que levam ao terror. Vou dar outro exemplo que no chega a ser terrorfico, mas mostra como o jogo da linguagem cria uma revelao que faz o leitor pensar. O autor do exemplo Jorge Lus Borges, o escritor argentino Ele escreve: "Detesto igualmente os espelhos e a cpula, porque ambos multiplicam o nmero de homens." atravs dessa pequena observao, todos os defeitos, todos os vcios, todos os atos condenveis que ns, homens, praticamos, so sugeridos. So esses mecanismos, onde o terror pode estar includo, que vo criar em quem l, uma sensao de descoberta da inteligncia. E no aquele terror gratuito como se v hoje no cinema, aquele terror que no conduz a nada. Filmes como Sexta-feira 13, 1, 2, 3 no dizem nada. So
bobagens que levam a rir e o riso nada tem a ver com o terror. Rir outra forma de prazer. Todas as formas narrativas j abordaram o terror. At a pera. O Navio Fantasma, pera de Wagner, pode ser considerada uma pera de terror. Wagner escolheu como argumento a histria de um holands amaldioado que depois de morto foi condenado a vagar sem destino e solitrio, em seu navio. De sete em sete anos, o holands tem o direito de parar num porto a fim de encontrar uma mulher que o ame to desesperadamente que se sacrifique por ele, que renuncie a tudo por ele. No dia em que encontrar essa criatura, ele se salvar. Mas s vezes, uma simples palavra pode destruir toda uma inteno terrorstica. Vou justamente me referir ao caso do navio fantasma. Em mil novecentos e sessenta e poucos, a Metro fez um filme baseado na lenda do Navio Fantasma. As pessoas iam ao cinema e ficavam geladas de terror. Naquela poca, o cinema no Brasil surgiu com uma inovao: o filme no era dublado, mas a narrao do filme era feita por um locutor de voz impostada, em portugus. H uma seqncia em que o holands maldito acorda e vai ao convs do navio fazer uma inspeo. Numa sesso de sbado meia-noite, quando a cena acontece, o locutor comea a narrar: "Naquela manh, ao se levantar, o comandante verificou que o barco se encontrava deserto." No filme, o holands olha para as partes do navio indicadas pelo narrador: "Ningum na gvea, ningum no leme." E a, na platia um espirituoso tomou a palavra do locutor e emendou: "Ningum no Leblon." A platia inteira riu e o terror foi por gua abaixo. Antes de agradecer a vocs por sua ateno, gostaria de declarar que essa palestra foi um fracasso, justamente porque vocs acabaram rindo ao invs de se aterrorizarem, mas tudo bem.
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Vou comear apresentando minhas credenciais em relao ao gnero. Fui crtico da revista Cinemim entre 86 e 89, onde criei a coluna de Cinema Fantstico, escrevendo sobre terror e fico cientfica clssica. Era uma batalha pessoal antiga, pois a maioria dos crticos de cinema sempre teve uma opinio preconceituosa em relao ao gnero, at hoje. Para eles, os filmes de terror ou FC estaro eternamente excludos de um suposto cinema de qualidade, simplesmente por pertencerem a esses gneros, salvo rarssimas excees como Blade Kurmer ou Possesso ou O Iluminado. Apesar do sucesso que o terror sempre fez o pblico, quer seja no cinema, na literatura, ou em outras mdias, os crticos em geral continuam a desprezlo. Talvez seja uma reao a esse estouro de bilheteria que o gnero angaria. Porm, a crtica (quase sempre) tem razo quando aponta seus torpedos para um tipo de cinema o qual eu chamo de "sangue-e-tripas", mas vamos isso para mais tarde. Antes, vamos voltar no tempo para conhecer as verdadeiras razes do cinema de terror, e tambm de grande parte do Cinema Fantstico. H muito tempo, na Alemanha do incio do sculo, final do sculo passado, surgiu um importante movimento artstico que tem influncias at hoje: o Expressionismo. Nascido em meio a Repblica de Weimar, um momento social e poltico bastante crtico na Alemanha, o Expressionismo deformava a realidade, enfatizando os sentimentos e as reaes diante dos fatos. A emoo sobrepujando a razo, essa era a principal caracterstica do movimento. O Expressionismo se deu nas artes plsticas (no trabalho de Munch e Kandinsky, por exemplo), na literatura (nos textos de Franz Kafka e Ernst Toller, entre outros), e no cinema. Aqui, seus principais representantes criaram obras fortes, com cenrios distorcidos, uma iluminao e uma maquiagem carregadas, com luzes e sombras marcantes, e interpretaes angustiadas. As histrias eram sinistras e transmitiam medo e tenso platia. O Expressionismo foi a base do terror, o legtimo
av do cinema de terror que conhecemos hoje em dia. Era uma coisa que, vendo com olhos atuais, lembram muito o teatro do absurdo, ou os teatros N e Kabuki do Japo, com os tons do preto e do branco muito fortes, muito bem definidos. O movimento no cinema comeou com O estudante de Praga, de que j era um filme de terror muito angustiante. Outros exemplares se seguiram, como Nosferatu, de F. W. Murnau, O homem que ri, de Paul Leni, Metropolis e M - 0 vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang (que j era falado e se apoiava numa trama policial). Mas a obra que melhor representa o Expressionismo no cinema , sem dvida, O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene. A histria se passa numa cidadezinha do interior, mas foi totalmente filmado em estdio. Por qu? Porque num estdio, o artista podia transformar a realidade conforme o esprito da trama, lanando um olhar psicolgico sobre os fatos, um olhar emocionalmente mais profundo que refletisse toda a perturbao dos personagens. E incrvel a distoro que Wiene conseguiu em todo o filme, nos atores e nos cenrios (que alis no deve ter nenhum ngulo reto!). E um marco da Histria do cinema de todos os tempos. Aps o advento do som no cinema no fim dos anos 20, os grandes estdios americanos comearam a crescer e a se dedicar, cada um, a um gnero diferente. Dois deles decidiram seguir a experincia do Expressionismo Alemo e se desenvolveram a partir da. Eram eles a Warner Brothers, com seus filmes de gngster (que aos poucos iria se lapidar at chegar ao Fm Noir), e a Universal, que marcou poca com seus filmes de terror. Os produtores da Universal pegavam clssicos da literatura ou lendas conhecidas e adaptavam para a tela grande. Assim surgiram vrias obras-primas, precursores de muitos sucessos do cinema atual, como Drcula, de Tod Browning, Frankenstein, de James Whale, A Mmia, de Karl Freund, O Lobisomem, de George Waggner, e vrios outros. A produo deu uma parada no final da dcada de 40 e voltou nos anos 60 com outras prolas do gnero, dessa vez com um pezinho na fico cientfica. Vieram O monstro da lagoa negra e O incrvel homem que encolheu, de Jack Arnold, e Guerra entre planetas, de Joseph Newman, lembrando que a Universal ainda era a casa do terror em Hollywood. Nos anos 40, um produtor de Hollywood chamado Vai Lewton resolveu investir pessoalmente em filmes de terror e acabou se transformando num dos maiores nomes do gnero. Maior em termos de
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genialidade, no de oramento. Atravs da produtora RKO, Vai Lewton nos deu filmes onde duas caractersticas se destacavam: os baixos oramentos e o terror implcito. Ele sabia reverter uma aparente desvantagem - a falta de dinheiro - em vantagem. Os poucos recursos tcnicos de que dispunha obrigavam ele e seus diretores a serem criativos. Isso fez com que o terror em suas histrias fosse apenas sugerido, nunca revelado, o que levava o espectador a imaginar seus piores medos, diferentes em cada pessoa. Fiel a essa linha nobre de fazer cinema, Vai Lewton produziu algumas das maiores prolas do terror: Sangue de pantera, The Leopard Man, 1 Walked withaZombie (dirigidos porjacques Tourneur), The Body Snatcher, The Seventh Victim, Maldio do sangue de pantera (codirigido por Robert Wise, que veremos adiante)... Sangue de Pantera, sua primeira produo, resume toda a essncia do seu jeito de pensar e fazer cinema. O filme apresenta uma personagem, uma mulher misteriosa. Vrios dados sobre ela vo sendo mostrados, levando a crer que essa mulher est envolvida numa srie de crimes que esto acontecendo na cidade, na verdade um envolvimento sobrenatural. Tudo indica que quem mata uma pantera, ou algum que se transforma numa pantera, mais claramente, essa mulher. Mas, em momento algum do filme isso mostrado. Duas seqncias mostram muita coisa, sem mostrar absolutamente nada. Na primeira, uma rival da suposta mulher-pantera espera o nibus num parque noite. O parque est todo escuro, apenas com pontos de luz dos postes, e a moa caminha sozinha at o ponto. De repente, sente que h algum ou alguma coisa por perto. Ela pra a toda hora para olhar para trs e a cmera s mostra a luz dos postes iluminando alguns pontos do parque e mais nada, todo o resto est escuro. Comea a se criar um clima de incmodo muito grande com isso, porque ela sabe, a personagem tem certeza absoluta de que h alguma coisa ou algum atrs dela. E o espectador, acha o qu? Que a pantera vai pular em cima dele e retalh-lo. Mas termina com a moa entrando no nibus que finalmente chega, deixando simplesmente aquele clima estranho no ar. O que realmente havia naquele parque? Essa curiosidade um estmulo para a imaginao do pblico e um alvio para os produtores que no precisaram mostrar efeitos especiais nem gastar dinheiro com isso. Se revelar demais, perde a graa. Na outra cena, a mesma moa encurralada na piscina subterrnea de um clube por algo que ela (e o espectador)
acredita ser uma pantera. Ouvem-se rosnados e vemos apenas sombras diludas pelo reflexo da gua da piscina. No fim, surge a mulher misteriosa, que ainda ironiza o medo da rival. Tudo elegante e assustador, realmente assustador. Na obra de Vai Lewton no h lugar para sustos baratos, risos ou repulsa por monstros ou mortes sanguinolentas. Outro bom exemplo dessa verdadeira filosofia cinematogrfica Desafio ao alm, baseado num livro de Shirley Jackson e dirigido por Robert Wise - o ecltico diretor de Novia rebelde, Amor sublime amor (West Side Story) O Dirigvel Hindenburg, Jornada nas estrelas - o filme e o grande clssico da fico cientfica O dia em que a Terra parou. O primeiro pargrafo do livro - publicado no Brasil com o ttulo de A assombrao na casa da colina, pela Editora Francisco Alves - tido por muitos como o melhor primeiro pargrafo da literatura de terror. E a histria de uma casa mal-assombrada onde as portas se fechavam sozinhas, o vento passeava por dutos secretos, torta a ponto de no possuir ngulos retos em sua arquitetuta. Enfim, uma casa verdadeiramente anormal. Segundo Shirley Jackson, "o que quer que andasse por ali, andava sozinho*. Tudo isso j cria um clima muito forte. O filme comea exatamente com a leitura desse primeiro pargrafo em off, mostrando a casa no alto da colina, recortada por um cu escuro e nebuloso. A seguir descobrimos que um grupo de paranormais e um cientista vo at a casa para descobrir o que realmente h de estranho com o lugar. Eles reviram todo o passado da casa: as pessoas que j morreram ali, as pessoas que enlouqueceram l dentro. Sabendo disso, sem conhecer o filme, e com todo esse background de cinema "sangue-e-tripas" que existe hoje em dia, cheio de efeitos especiais nojentos, d para imaginar que devem aparecer mil fantasmas, monstros medonhos, durante o o filme. Na verdade, em toda a durao do filme s h um efeito especial, que a almofada de uma porta que "respira". A porta vai e volta sem sair da tranca, num simples efeito mecnico. Somente isso. Contudo, ao contrrio do que os mais jovens e "rrash junkies" podem pensar, um dos filmes de terror mais apavorantes da Histria do cinema. Existe uma seqncia, onde duas mulheres esto num quarto ouvindo apavoradas uma srie de batidas incessantes do lado de fora, no corredor. O estrondo cada vez mais forte e vemos sombras passando por debaixo da porta. As duas gritam sem parar. Aos poucos, a cmera se aproxima de uma das personagens, enquanto ela fala para a amiga ao lado: "Por
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favor, aperta a minha mo porque eu no sei se consigo agentar de tanto medo do que possa estar atrs dessa porta!". Ento a cmera fecha em seus olhos, o barulho cessa e a luz acende. Vemos que a luz foi acesa pela amiga, que supostamente deveria estar ao lado dela. A, a mulher percebe: "Se voc estava no outro quarto e acendeu a luz, quem que estava segurando a minha mo?" Ela olha para a mo e seus olhos se arregalam de pavor. No preciso mais nada, nenhum efeito especial. Isso o que eu chamo de "terror em estado puro". E como fica o RPG dentro dessa discusso? Antes de tudo, o RPG um jogo que mexe com a imaginao e trabalha com narrativa, com criao de histrias e de personagens. Para os mestres e os jogadores de RPGs de terror, eu recomendo enfaticamente que vejam e revejam esse tipo de cinema, que apenas sugere e no explicita a fonte do medo, que deixa muito mais para a imaginao do espectador, e conseqentemente, para os participantes de um Roleplaying Game. O terror psicolgico deveria ser mais explorado, tanto no cinema atual - que anda cheio com a vulgaridade do "sangue-e-tripas" - como nos RPGs do gnero. Porm preciso saber trabalhar com esse clima soturno. Para isso importante assistir mais filmes, ler mais livros de autores clssicos de terror, ouvir mais trilhas sonoras de filmes de terror, obras eruditas que sirvam ao tema. Para criar um bom clima sinistro em sesses de RPG, eu recomendo algumas musicas. Para comear, uma pea de Bela Bartk de 1936, chamada msica para cordas, percusso e celesta, utilizada por Stanley Kubrick na trilha sonora de O iluminado. Essa msica de arrepiar os cabelos; no recomendo ouvir noite, em hiptese alguma. uma pea de oito, dez minutos mais ou menos, sombria, apavorante e perfeita para um jogo de Ca ofCtkulku, por exemplo. Para quem prefere algo semelhante clssica (e batida) Carmina Burana, eu indico as msicas de A profecia e Damien A profecia 11, duas grande trilhas de terror, compostas pelo mestre Jerry Goldsmith. So bem diferentes de Bartk, fazem uma linha mais "diablica". Outro autor contemporneo extraordinrio, que faz msica erudita, e muito utilizado em filmes de terror, entre os quais O iluminado e O exorsta, o polons Krzysztof Penderecki, que j se apresentou duas vezes no Brasil nos ltimos 10 anos. Uma de suas peas j uma carta de intenes a partir do ttulo: Dies lrae - Oratrio em memria dos assassinados de Auschwitz- Os trabalhos de Penderecki so bastante lgubres, so peas
que criam um bom clima para RPGs de terror. Msicas que fazem um leitor desistir no meio de um livro de terror, se ousar ouvi-las como trilha de fundo. Realmente no d para seguir adiante. Voltando ao cinema, depois de Vai Lewton, pouco se fez de significativo na linha de terror psicolgico. Aps o fim da Segunda Guerra Mundial, Hollywood comeou a se preocupar com dois outros tipos de medo: o terror atmico - trauma derivado do pavor real que o mundo, e principalmente o Japo, conheceu em 1945 - e mais tarde a ameaa vermelha - com o comeo da Guerra Fria e a histeria anti-comunista. Filmes com insetos gigantes, aliengenas terrveis, formas de vida estranhas que punham em risco a vida na Terra, viravam moda naquele momento. The Thing From Another World, Them!, A bolha assassina, Invasores de Marte , A guerra dos mundos, e outros nessa linha comearam a surgir nas telas, transformando os anos 50 na dcada que foi buscar subsdios na situao poltica e social para seu cinema de terror e fico cientfica, mais do que qualquer outra poca. Aqueles filmes nada mais eram do que a ressonncia do que amedrontava o governo americano, a "ameaa comunista", e que teve como conseqncia a nefasta e paranica perseguio macartista, a verdadeira inquisio americana moderna. Talvez o filme que melhor retrate essa loucura seja Vampiros de almas, de Don Siegel, que antes de mais nada um filme poltico, e que trata exatamente da ameaa que vem de fora". Os viles aqui so uma espcie de "vagens" que caem do espao, esperam sua vtima humana dormir e geram uma rplica fiel da pessoa, no s no fsico, mas tambm em todas as suas lembranas e conhecimentos. A rplica acorda enquanto a pessoa real se dissipa no ar. So cpias perfeitas, com a diferena de no possurem emoes, sentimentos humanos, reagindo automaticamente, sempre iguais. Ningum maior ou melhor do que ningum. Isto , a prpria ditadura da insensibilidade e da igualdade, o maior medo da Amrica naquele momento, a ameaa que precisava ser combatida. Vampiros de almas um filme de terror e fico cientfica mas, antes de tudo e acima de tudo, um filme poltico, que retratou como nenhum outro o que acontecia naquela poca. Em relao ao terror atmico, o j citado O incrvel homem que encolheu um representante perfeito. Um casal est num barco; a mulher dentro da cabine, o sujeito est tomando sol do lado de fora. De repente, no
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meio do mar, surge uma nuvem colorida por cima deles. A mulher est protegida, mas ele comea a sentir uma mudana. Em questo de horas o homem vai encolhendo, cada vez mais rpido, at que fica reduzido ao tamanho de um rato. Numa seqncia memorvel, ele luta com o prprio gato. Esconde-se numa casa de bonecas, acossado pelo gato e encolhendo cada vez mais. No desaparece, vai simplesmente encolhendo, fica menor que uma bactria, menor que um tomo, se isso possvel. O medo da radiao, das conseqncias do uso indevido da energia nuclear a molamestra desta pequena obra-prima escrita por Richard Matheson, um dos autores mais brilhantes do gnero. Outro subgnero importante veio do lado de l do Atlntico, mais precisamente da Inglaterra, em fins dos anos 50: o terror gtico, feito principalmente pela Hammer Films. Talvez as novas geraes no conheam muito esses filmes, devido s raras reprises na televiso, mas a turma dos RPGs de terror certamente conhece. A Hammer marcou poca com seus filmes de Drcula, sempre com Christopher Lee no papel do Conde e Peter Cushing vivendo o Dr. Van Helsing, o matador de vampiros. Lee ficou para sempre imortalizado como o melhor Drcula do cinema (os fs de Bela Lugosi que me desculpem). Cushing, outro grande ator ingls, no se prendeu a personagens especficos mas sua ossuda fisionomia tambm ficou associada ao cinema de horror. Havia tambm outra produtora importante, a Amicus, especializada emfilmesde episdio, que tentava concorrer com a Hammer mas que na verdade seguia por um caminho diferente. Seus filmes geralmente contavam histrias curtas muitas delas baseadas em contos de terror famosos - dentro de um longametragem. A Amicus chegou inclusive a adaptar as histrias em quadrinhos escabrosas da editora EC de William Gaines em dois filmes, dcadas antes dos gibis ganharem a TV no seriado Tales From the Crypt. Na verdade, os trabalhos da Hammer e da Amicus se completam, dando uma contribuio inestimvel Histria do cinema de horror. No final dos anos 60, incio dos 70, o cinema de horror comeou a ficar cada vez mais hardcore, a se transformar em algo violento, e acabou gerando um subgnero que transmite tudo menos medo, e que eu chamo muito apropriadamente de "sangue-e-tripas". Naquele momento, o gnero sofreu uma significativa modificao. Os produtores deixavam de lado o medo de criaturas estranhas e lendrias e de lugares sombrios e abandonados
para se dedicar a um horror mais humano, mais cotidiano, que colocasse o homem comum diante de suas fobias urbanas mais violentas, onde a ameaa quase sempre era o prprio Homem, ou mutaes da espcie. Essa mudana pegava em cheio o pblico adolescente, com sua violncia explcita, efeitos especiais nojentos e maquiagens impressionantes, e os mantm como platia cativa at hoje. Como j disse, esses filmes no causam medo - no o medo primordial de um Desafio ao alm ou de um Drcula, por exemplo - mas sim nojo, repulsa pelos corpos despedaados que vulgarmente eles mostram em todos os detalhes. O cinema "sanguee-tripas" no acelera o batimento cardaco do espectador; acelera seu movimento peristltico, criando um desconforto estomacal que faz com que o espectador procure um saco de vmito ou algo que o valha. Entretanto ainda existem bons exemplares desse tipo de cinema, exatamente dessa poca, que conseguem misturar a crueza do "sangue-etripas" e causar um medo intenso. Um deles o impressionante O massacre da serra eltrica, dirigido por Tobe Hooper (o mesmo que mais tarde faria Poltergeist para Spielberg) em 1974. O diretor no mostra tudo de forma escancarada como faz a srie Sexta-feira 13, por exemplo. Ele consegue um bom equilbrio entre o nojo e o pavor, estabelecendo gradativamente um mal-estar psicolgico graas montagem seca, fotografia dura e lavada, propositalmente mal cuidada, msica estranha e ruidosa, que incomoda o mais resistente espectador. O filme, baseado em fatos reais, comea com o plano de um cadver em decomposio que foi encontrado num cemitrio, com uma narrao jornalstica por cima como se fosse um documentrio, contando que vrios corpos foram roubados dali por algum no-identificado. Esta introduo j cria um clima estranho na platia. Depois o clima de pesadelo vai crescendo. O massacre da serra eltrica um daqueles filmes que, apesar de seus mritos perturbadores (ou talvez por causa deles), a gente no pensa em rever to cedo. Outro exemplar marcante dessa linha de cinema de horror A noite dos mortosvwos, do especialista George Romero. Feito em 1968, num momento em que grandes mudanas agitavam o mundo, o filme foi surpreendentemente influenciado pelo que ocorria no mundo - a Guerra do Vietn o movimento dos estudantes na Frana, os hippies em Woodstock' o assassinato de Martin Luther King, a Revoluo Cultural na China a violncia das ditaduras na Amrica Latina, etc. A represso poltica a
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luta por liberdade esto l, entre os fotogramas. A noite dos monos-vivos conta a histria de um grupo de pessoas encurraladas numa casa de campo por uma horda de mortos-vivos que s pensa (pensa?) em devor-los. No rdio e na TV eles ouvem que os ataques esto ocorrendo em todo o pas, e supostamente so causados pela radiao de um satlite que voltou de Vnus. Durante toda a noite o grupo discute, briga, e luta para manter os zumbis afastados. Quase todos os sobreviventes morrem antes do amanhecer, menos Ben, um vendedor negro que liderou a resistncia noturna. No fim, um grupo de policiais aparece, liquidando os ltimos zumbis, e mata Ben sem pestanejar, achando que ele uma das criaturas. A ltima imagem mostra a polcia jogando o corpo de Ben - o heri do filme - numa fogueira, como se ele fosse um morto-vivo. Esse polmico eplogo reflete bem as convulses sociais que eclodiam por todo o planeta, numa mostra de que o cinema de horror tambm pode ser poltico. Outra tendncia bastante discutvel do cinema de terror o medo aliado ao riso. Mais conhecida como "terrir", essa linha de filmes surgiu em meados dos anos 80 com A hora do espanto, de Tom Holland, e imediatamente conquistou o pblico, recolocando o terror em destaque na mdia. Na minha opinio, o sucesso do "terrir" se deve ao fato de que o gnero, naquele momento, estava totalmente saturado e mais prximo do nojo, cheio de escatogias e efeitos pegajosos, do que do medo. Ento, a fim de resgatar os fs e angariar novos adeptos, os produtores resolveram apostar nessa mistura. Porm, o riso pode acabar completamente com uma cena ou com um filme de terror. E s imaginar o que seria de O Lobisomem ou O iluminado se o pblico casse na gargalhada quando seus protagonistas fossem atacar uma vtima. Mesmo assim ainda existem alguns representantes dessa tendncia hbrida que merecem respeito. Um Lobisomem Americano em Londres um deles, pois apavorante, embora tenha vrios momentos engraados. No uma comdia de terror. E um filme que se divide, brilhantemente, entre os dois gneros. Uma coisa muito difcil de fazer, sem cair no pattico. No podemos esquecer outro subgnero importante do cinema de horror: os filmes que tm o demnio como "protagonista". Na verdade no existem muitos representantes dessa linha, mas os poucos que temos, em geral, so filmes muito bem feitos e extremamente eficientes, pois alm de fazerem terror implcito, eles mexem com um dos temores
primordiais do ser humano. O exorcista, de William Friedkin, por exemplo, foi o nico filme de terror feito em Hollywood a concorrer ao Oscar de melhor filme e o maior sucesso de bilheteria da Histria da Warner Brothers. Todo mundo queria ver a histria da menina Regan que possuda por Pazuzu, um demnio assrio, supostamente libertado numa escavao Iraquiana. No importa se voc acredita ou no no demnio: o filme poderoso e assustador, com a msica, os silncios, a fotografia e a montagem precisa criando um clima impressionante, de gelar a espinha. Um clssico, sem dvida. O demnio tambm teve seu momento de glria no j citado A profecia, de Richard Donner. A infncia do Anti-Cristo, prevista na Bblia rendeu duas continuaes razoveis e, os trs filmes formam um bom momento do cinema de horror, com uma atmosfera de mistrio e fatalidade, aproveitando o gancho com o Apocalipse de Joo, da Bblia. Outro filme que tirou o sono dos cristos durante a dcada de 70 foi O beb de Rosemary, do genial Roman Polanski, to marcante que at hoje tem gente que jura que viu o beb, que nunca foi mostrado no cinema. As pessoas acham que Polanski deixou o filme explcito demais no fim, mostrando os olhos do beb. Mas em nenhum momento ele mostrado. Ele s citado naquela cena final, quando os satanistas se renem. O beb est no bero e um deles fala para Rosemary, a me do beb: "Seu filho muito bonito. Ele tem os olhos do pai". O espectador viu, rapidamente, os olhos do pai na seqncia em que o demnio tem relaes com ela. Junta esta informao visual com o comentrio sobre os olhos do beb e sai do cinema com a ntida sensao de ter visto o beb, que no mostrado em momento algum. E um timo exemplo de como bem mais impressionante no mostrar uma coisa e apenas sugeri-la, do que gastar dinheiro com efeitos especiais para mostrar algo que corre o risco de se tornar risvel. E importante repetir: o medo revelado na tela nunca vai chegar aos ps do medo do inconsciente de cada um, pois cada espectador tem um medo diferente. Jamais vai se conseguir sintetizar todos esses medos num s efeito especial ou numa s maquiagem medonha. O pior pesadelo do mundo muito particular a cada pessoa. Para encerrar, gostaria de falar de um filme extraordinrio, legtimo exemplar do filme de horror psicolgico, e que considero o melhor exemplo de como fazer cinema, no sentido mais amplo possvel. O filme Psicose, o maior sucesso comercial de Alfred Hitchcock, no qual o diretor no s
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deixa as coisas implcitas o tempo todo, como faz algo que pouqussimos conseguem fazer: manipula o espectador. Hitchcock disse: "O filme no me interessa, a histria no me interessa, no interessa grandes atores, no interessa nada disso. O que interessa em Psicose a montagem, a trilha sonora, a fotografia, a luz, os ngulos e os movimentos de cmera e a estrutura do roteiro". Desprezado na poca pelos crticos (sempre eles...) mas com uma narrativa to complexa e bem-elaborada quanto seus contemporneos europeus A aventura, de Antonioni e O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, Psicose se transformou numa referncia para tudo o que veio depois em matria de horror e suspense, tanto para os cineastas, como para o pblico, que a partir da aprendeu a decodificar os cdigos do gnero. Eu tive o prazer de t-lo assistido pela primeira vez no cinema numa cpia tima, sem nunca ter ouvido falar em Norman Bates. Hoje em dia, todo mundo conhece a histria, sem contar as continuaes medocres. Mas incrvel a sensao de "ter sido dirigido" por Hitchcock. Na verdade o filme um jogo traioeiro com o espectador. Na primeira meia-hora, ele se identifica com Marion, em sua fuga desesperada com os 40 mil dlares roubados. De repente, quando tudo parece acertado, quando ela pra no motel e decide voltar e consertar as coisas, o inesperado acontece. Marion esfaqueada no chuveiro, no assassinato mais brutal da histria do cinema (onde em nenhum momento a faca toca seu corpo). O espectador perde o referencial e passa a se afeioar a Norman, o jovem doce, dedicado e problemtico que tenta apagar as provas do crime que a me cometeu. E quando surgem a irm de Marion e o detetive particular, o pblico teme que a morte da moa seja descoberta. At que, no final, descobre estarrecido que era cmplice de um assassino psicopata. Com Psicose, Hitchcock nos induz a ter sentimentos terrveis, a nos defrontar com nosso lado negro, que tambm o dos personagens. No h heris aqui; s um jogo perverso onde o pblico o protagonista. Sua estrutura muito semelhante a de um RPG, onde o mestre cria uma histria e vai levando os jogadores para onde quer, manipulando-os sem que eles percebam, at o desfecho previamente imaginado. Porm, o cinismo da narrativa - no dos personagens, da narrativa - no tem precedentes. E por fim, uma pequena informao para quem acha que a realidade desinteressante diante dos delrios da fico. Tanto Psicose quanto
O massacre da serra eltrica foram baseados num mesmo fato verdico, ocorrido nos anos 50 em Wisconsin com um tal de Ed Gein. Se voc acha que estes filmes so fortes e impressionantes, no queira conhecer a macabra histria deste homem. Acontece que ele - um caipira tpico do interior dos Estados Unidos, que morava numa fazenda afastada - matou, esquartejou, esfolou e devorou mais de uma dezena de pessoas, enquanto convivia pacificamente com a comunidade local, at ser ser descoberto. Em sua casa, a polcia encontrou mveis feitos de ossos e forrados com pele humana, e uma coleo de "mscaras" de rostos reais esfolados, entre outros pesadelos que no convm citar aqui. E se voc ainda pensa que Norman Bates assustador por ter matado a prpria me e usado suas roupas, saiba que Ed Gein fez o mesmo, mas se vestia... com a sua pele. Bem, como eu disse, a fico fascinante, porm a realidade sempre mais aterradora e perversa.
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DEBATE
Victor Giudice: H uma pera tambm do sculo XX, que tem em vdeo, e uma beleza, do compositor ingls chamado Benjamin Britten, que inspirado em um livro que vocs deveriam ler que A volta do parafuso, do Henry James, que deu um grande filme de terror implcito que Oi inocentes. A pera tambm de um terror muito impressionante. Na minha idade, quando eu vi a pera na televiso pela primeira vez h uns 8 anos, estava sozinho em casa e interrompi com quinze minutos. Eu no consegui chegar at o fim. Fiquei amedrontado. Disse: "No vou ver isso agora porque vai me fazer mal. Vou desligar. Vou esperar a casa estar cheia de gente para conseguir ver." No deixem de ler o livro, ver o filme que ele falou e assistir pera. Platia (Fernando): Eu queria s citar que senti falta de comentrios aqui sobre o Z Mojica Marins. Oswaldo Lopes Jr.: O Z Mojica o dolo mximo do terror brasileiro. Ele criou o personagem Z do Caixo, que um coveiro, um papa-defuntos que no acredita em Deus, no tem religio, completamente ateu. E com isso o Mojica brinca com as questes da religio com seus personagens. Ele trabalha com a cultura popular para fazer filmes em que os efeitos especiais so os mais pobres e realistas possveis. Eu digo realista porque h um filme dele, vrios filmes alis, onde o Z do Caixo pega vrias aranhas caranguejeiras e coloca por cima de mulheres. Para fazer isso ele teve que conseguir atrizes que topassem isso. Houve at um recrutamento, bastante singular. Vrias atrizes passaram pelo teste. No podia ter medo de aranha, de cobras, essas coisas, porque as filmagens eram pesadas. O Mojica trabalha muito com essa questo de cultura popular, com crenas do cotidiano, crenas de cidade do interior e faz filmes baratos, simples. Filmes timos, eficazes, que inclusive nos remetem muito linguagem das histrias em quadrinhos. Uma cena brilhante dele, do filme A meianoite levarei tua alma, tanto pela criatividade cinematogrfica como pela ironia em relao religio, a do Z do Caixo sentado em uma janela devorando um pernil enorme, numa sexta-feira santa. Pelo enquadramento, podemos ver uma procisso de beatas passando na rua embaixo
da janela, escandalizadas com a atitude do Z, enquanto ele continua comendo o pernil, no maior desprezo. Mais tarde no filme, o personagem tem de enfrentar seu castigo, porque em todos os filmes do Z do Caixo existe essa questo muito forte de moralidade, e que um ponto comum a vrias obras do gnero. Uma grande parte dos filmes de terror se estrutura sobre a questo moral, mostrando que para cada crime existe um castigo. No so todos, mas bom lembrar que este um tema recorrente no gnero. Para terminar, voltando ao Mojica, ele um legtimo exemplar do nosso cinema de terror, e isso muito importante. Seus filmes merecem ser vistos, porque so bons, so bastante imaginativos. Bons at naquele sentido (j bem desgastado) de "quanto pior, melhor". O "pior" aqui quanto produo, um tanto precria, porque quanto s histrias, so bem cuidadas, os roteiros so bem escritos (a maioria pelo Rubens F. Lucchetti, famoso roteirista de quadrinhos de terror). Felizmente agora, antes tarde do que nunca, os norte-americanos esto descobrindo o nosso Z do Caixo. Na Amrica ele conhecido como Coffin Joe, e anda fazendo um tremendo sucesso por l. Daqui a pouco os americanos estaro produzindo filmes dele. Platia (Lcio): O Z do Caixo est sendo filmado agora pelo Roger Corman. Platia (Paulo): Quando eu era pequeno, assisti a um filme que me deixou com muito medo. Foi Poltergeist. Eu queria uma anlise, por favor. Oswaldo Lopes Jr.: Eu coloco Poltergeist entre os quatro filmes de terror mais importantes do final dos anos 70 e incio dos 80. Os outros so Alien, de Ridley Scott, O iluminado, de Stanley Kubrick e Possesso, de Andrej Zulawski. Po/tergeist, dirigido por Tobe Hooper, de 82 e retoma a questo da casa mal-assombrada. um subgnero famoso, mas sem muitos representantes. Existem alguns famosos, mais antigos, como Desafio ao alm e A casa da noite eterna. Outro exemplar mais recente Alien, que antes de ser uma fico cientfica um filme de casa malassombrada. Basta olhar a estrutura: so sete pessoas dentro de uma nave acossadas por um monstro. Na verdade um legtimo filme de terror numa roupagem de fico cientfica. Mas voltando ao assunto, Poitergeist trabalha com as supersties, as crenas do americano mdio, da cultura popular americana. A questo dos cemitrios ndios, do que se esconde por baixo do cho que a gente pisa. O filme brinca muito bem com isso.
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O patro do personagem prindpal, que um agente imobilirio, estava vendendo casas, mas ele sabia que ali havia um cemitrio ndio. Ele tinha simplesmente tirado as lpides, aplainado o terreno e construdo as casas. O filme tambm faz uma crtica ao capitalismo, questo da gannda imobiliria. Alm disso, mexe uma das maiores instituies americanas, a televiso, que aqui se transforma numa verdadeira Caixa de Pandora, a origem de todos os males. Poltergeist vai alm do simples terror, apesar das cenas expldtas. Existe uma que toda vez que o filme passa na televiso cortada, por mostrar demais. E uma cena onde um dos tcnicos que est dormindo na casa, a fim de registrar em vdeo os efeitos dos fantasmas que saem da televiso, dedde ir ao banheiro de madrugada. Quando ele chega na frente do espelho, comea a sentir uma estranha coceira no rosto e vai descarnando o prprio rosto. At que, desesperado, o sujeito v pedaos sangrentos do rosto caindo na pia e a prpria caveira descarnada refletida no espelho. At que pisca uma luz e ele percebe que nada daquilo aconteceu. Foi um delrio. E o homem volta apavorado para a sala. Victor Giudice: Ns falamos aqui no Lovecraft. Ele tem um livro chamado O estranho caso de Charles Dexter Ward que li em uma edio portuguesa. O problema desse livro o seguinte: uma histria terrvel, mas durante essa histria no h nenhum efeito espedal. O que significa no haver efeito espedal em um livro, no que escrito? No momento em que se domina a palavra no computador, na mquina de escrever, na caneta possvel descrever o que se quiser e, no entanto, isto foge do sentido de efeito espedal. Pode se dizer o seguinte: "Fulano entrou no quarto, ficou dnco minutos e, ao sair, estava de cabelos brancos. No vou descrever o que ele viu l dentro. O que ele viu l dentro indescritvel.* Uma pergunta importante: na vida real nunca vimos fantasma, certo? Temos medo de fantasmas, sabemos que eles aparecem noite, vm a nossa casa e nos apavoram. Mas, se eu perguntar: "J viram algum fantasma?" A resposta no. Vou contar mais uma histria. Em 1941, eu j era nasddo. Nasd em 1934. Em 1941, os Estados Unidos sofreram uma ataque dos japoneses em Pearl Harbour. O porto de Pearl Harbour foi atacado pelos japoneses. Comearam a fazer filmes nos quais havia uma referenda ao ataque. Era assim: o cara estava jantando em casa e a mulher ligava o rdio e dizia assim: "Ateno, ateno. Os Estados Unidos
acabaram de sofrer uma terrvel e covarde agresso dos japoneses." A famlia americana ficava toda ouvindo. Houve um filme, dez, vinte, trinta, dnqenta com cenas em que apareda o ataque a Pearl Harbour. Eu, nessa poca com 15, 16 anos de idade, chegava no dnema e comprava a entrada. Era um filme de guerra. "Vai haver alguma referenda ao ataque ao Pearl Harbour?" eu perguntava. O cara dizia: "No sei." "Se houver eu saio e quero o meu dinheiro de volta porque eu j vi isso em 60 filmes e no quero ver mais". O que eu acho do Poltergeist o seguinte: ele teria sido um filme excelente se no tivesse o efeito espedal. O efeito espedal foge do mbito do terror e passa a pertencer ao mbito do efeito espedal. Marshall McLuhan, que um dos papas da comunicao do sculo XX , ele diz que o meio a mensagem. O que significa, por exemplo, que o computador a mensagem. E preciso ter muito cuidado, porque o computador se transforma na prpria fonte da mensagem. O espectador perde o medo quando v no filme o efeito especial. Passa a admirar o efeito espedal. "Veja o que que o dnema capaz de fazer agora." Isso computador. O cara pe a mo e ela se transforma em metal e se derrete. Isso no existe. O que existe o seguinte: o terror impldto. Ele muito mais aterrorizante, porque ele s tem uma finalidade: aterrorizar. O nosso terror de ser humano impldto. No se dorme noite com medo de assombrao, mas o medo da assombrao no significa que a assombrao aparea para voc durante a noite. O filme americano transforma o mundo objetivo em uma fonte incessante de efeitos espedais. Assim, o efeito espedal perde a condio de aterrorizante e passa a ser apenas o efeito espedal. Oswaldo Lopes Jr.: Dois exemplos para complementar o que o Giudice colocou. Um, sobre a questo do efeito espedal. Uma srie americana chamada Alm da imaginao, dos anos 50 e 60, priorizava as boas idias e a forma de cont-las. Era um seriado de roteirista. Os pouqussimos efeitos espedais que existiam na srie inteira eram discos voadores, que deixavam transparecer o fato de serem efeitos. Havia tambm efeitos de maquiagem, quando era necessrio narrativa. O mais importante em Alm da imaginao era que os efeitos espedais s existiam em funo da narrativa, quando eram essendais ao fundonamento da histria, e no para serem uma demonstrao de pirotecnia. O fundamental ao se contar uma histria no dnema e na televiso - ou em qualquer mdia - a forma de cont-la. O que pode contribuir para isso - a fotografia,
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a msica, a montagem, a interpretao dos atores, a cenografia, os efeitos especiais - precisa ser funcional, deve estar ali servindo narrativa. Tudo precisa servir histria. Imagine uma cena de terror, onde um personagem se defronta com seu maior pesadelo, e ao fundo ouve-se uma trilha sonora de discoteca? Seria um desastre (a no ser que o maior pesadelo do personagem seja esse!). Como acontece muito, o produtor patrocina um cantor e enche a trilha sonora de um filme com as msicas daquele cantor, s para vender. No vai vender nunca, pois o importante para a histria do filme que a musica ajude a criar um clima adequado, ajude a lev-la para a frente. Outra coisa fundamental colocada pelo Victor o terror implcito. Um bom exemplo disso uma cena de terror feita em quatro planos, em O iluminado, quando o garotinho est brincando com seus carrinhos no corredor do hotel. S esto ele, a me e o pai naquele hotel gigantesco de trs andares. O menino est sozinho naquele andar. No primeiro plano, vemos o hotel visto de fora, isolado, cercado pela neve. Em seguida, j dentro do hotel, a cmera mostra o garoto por cima e se afasta devagar. De repente, uma bola de tnis entra no quadro em sua direo. O menino olha aquela bola, a imagem corta, fica por trs dele. Ele est sozinho, diante de um enorme conedor vazio. No quarto plano, o garoto se levanta, de frente para o corredor, e pergunta: "Mame, voc est a?" Por cima de tudo isso, a sinistra msica The Awakening of Jacob, de Penderecki. Isso o que eu chamo de "terror em estado puro*. A histria segue adiante, mas apenas com esses quatro planos, Kubrick j constri uma cena poderosa, que transmite uma sensao de terror to forte, que nenhum efeito especial capaz. Platia (Felipe): Uma vez eu fui assistir uma pea de Nelson Rodrigues, O anjo negro, e, antes de comear a pea a iluminao, o cenrio e a msica de fundo me causaram uma sensao profunda de desconforto. Acho que nenhum filme conseguiu me passar esta sensao to forte. A pea nem tanto, mas at comear a pea, enquanto ela no comeou, todo mundo foi sentindo uma certa ansiedade. Existem, no teatro, exemplos fortes de terror que podem ser passados? Victor Giudice: Na Frana, existe um gnero chamado grand guignon que era justamente o teatro de terror. S que, apesar de no contar com os efeitos especiais do cinema, ele passou a criar efeitos especiais dentro
do prprio teatro. Mostrava cabeas sendo cortadas e tal. Bom, em 1977, 78, eu cheguei em um curso para a aula e o cara disse: "Olha, no vai haver aula porque os caras foram para o Teatro Joo Caetano ver A lanterna mgica de Praga. Eu, ento, fui tambm ver a pea e quando cheguei no teatro, percebi que estava diante de um dos maiores espetculos que vi na minha vida. Havia uma tela panormica de cinema que ocupava todo o palco. Quando a cortina abria, o palco se transformava em uma tela de cinema. A tela terminava ali. Do lado de fora da tela, no pedacinho que restava do palco, havia uma mesinha de madeira. Voc no ligava para a mesinha, que estava ali por acaso. A primeira apresentao foi assim. Uma msica tocou alegre, um filme ocupou toda a tela e aparecia escrito assim: "A Lanterna Mgica de Praga se prepara para vir ao Rio", e voc via os trabalhadores encaixotando os objetos, colocando os refletores na tela toda. De repente, via-se que do lado mais da extremidade esquerda da tela, entre todas as pessoas trabalhando, havia um homem que estava montando um caixote. E, de repente, ele pegava um prego e colocava no caixote. A platia via que ele olhava, ele procurava o martelo e no achava. Era a que se percebia. O martelo estava naquela mesinha de madeira que estava fora da tela. Ele via o martelo na mesinha e via-se os braos dele sarem da tela, pegar o martelo, bater no prego e colocar o martelo de novo na mesinha. Comeava-se a a perceber que A lanterna mgica de Praga ia mostrar criaes extremas entre personagens e coisas. Isso grand guignon misturado com cinema. Em O condenado, o condenado vai para a guilhotina, mas tudo filme. Ele entra na guilhotina, ela corta a cabea dele e a cabea cai no palco. Quando o cara corta, voc v a cabea com sangue cair na frente do palco. O grand guignon era teatro mas j havia no teatro, no sculo passado, o desejo de fazer o efeito especial, com muito sangue e esse negcio todo. E h aquele negcio da caixinha. A caixinha um grand guignon. Platia (Raul): Eu acho que deve haver muita gente aqui que joga RPG do tipo storyteller de terror, como o Rodrigo. Quem joga RPG de terror sabe a complicao que transmitir o clima tenso de terror para uma aventura. Imagina chegar-se a um lugar iluminado, um lugar tranqilo, e jogar uma aventura onde se enfrenta monstros, lobisomens, vampiros. Quem acha que Vampire no terror, nunca jogou a srio. Vai-se para uma casa, um luar escuro, acendem-se umas velas, espalham-se uns crnios,
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bebe-se algumas cervejas e acha-se que rola um certo clima. Se o mestre gerar um alimentao da histria, do roteiro, gera uma histria de terror, sim. Se chegar s e jogar Vampire, rola ataque, mas a no tem terror. Acho que se podia falar alguma coisa sobre tipos de narrativas de terror, tanto em nvel de RPG quanto em nvel de representao, j que meio difcil passar um clima para o jogador. Fala-se de uma coisa sobrenatural, totalmente sinistra, sobre uma pessoa que morreu, um cara que teve que se afastar da famlia, dos amigos, que no pode mais levar a vida dele como ele levava. Ele est morto porque a besta, a fome por sangue, pode tomar o cara a qualquer momento, ele pode acabar perdendo o controle e matando as pessoas que ama. Existe o lado psicolgico que explora toda uma problemtica, todo um clima que, s vezes, as pessoas no pegam. Platia (Maurcio): Eu gostaria de agradecer ao Giudice por ter falado sobre o Lovecraft. Ele fantstico, maravilhoso e se existe alguma coisa que possa ser citado aqui Call of Cthulhu que, sem duvida, o que se tem de melhor em RPG. Vampire realmente muito bom, um obra muito bem feita, mas no h comparao. Ser humano ser humano, vampiro vampiro. Vamos jogar com o ser humano. O terror humano. Monstro monstro. Platia (Elisa): Deixando um pouco de lado essa questo do RPG, eu queria saber do Oswaldo o por qu do terror ser to explcito nos filmes de hoje. Voc acha que deixou de ser comercial ou as pessoas no tm mais a capacidade de criar o medo nos outros? Oswaldo Lopes Jr.: Acho que isso se deve indstria de efeitos especiais. Ela cresceu de um jeito tal que "p rec isa" mostrar do que capaz, desde uma pessoa derretendo at coisas mais impossveis. Os tcnicos se esmeram em gastar dinheiro com a parafernlia dos efeitos e no deixam nada para a imaginao do espectador. Eles se esquecem que o seu trabalho deve atender histria. So como crianas mostrando um brinquedo novo. Isso acaba contando pontos contra o Cinema Fantstico. E por esse motivo que eu defendo tanto o terror implcito, o terror psicolgico. Quando eu era pequeno, lia muito Edgar Allan Poe e, mais tarde comecei a ler Lovecraft. Os dois so geniais, importantssimos, a base referencial para qualquer um que goste de terror. Porm h uma diferena bsica entre eles: Poe trabalha com o terror gtico, e revela mais as coisas, como
em O caso do Sr. Valdemar, onde ele mostra um homem derretendo, meses depois de morto, em alto estado de putrefao. Em questo de segundos ele descreve a cena. Lovecraft um autor que j deixa mais para a imaginao do leitor. Ele criou uma dinastia de seres, de monstros, que so coisas inimaginveis e aterradoras. S que, em seus contos, existe espao para a imaginao, oportunidade para o leitor trabalhar com os prprios medos internos, criando mais interao com o que est lendo. Isso importante no s na literatura, mas no cinema tambm. uma coisa que faz muita falta atualmente. muito raro. Quando vejo O iluminado, tenho vontade de aplaudir, porque uma superproduo, com um oramento alto, mas nem por isso cheio de efeitos nojentos e pirotcnicos. Pelo contrrio, um filme que deixa muito para a imaginao. Essa linha de trabalho, quase filosfica, que est faltando no cinema de terror. E esse tipo de cinema que as novas geraes precisam conhecer. Platia (Daniel): interessante o que o Raul falou, pois a dificuldade que temos para passar o terror muito grande. difcil voc tentar contar uma histria de terror, porque as pessoas esto acostumadas no RPG a jogar dados. Contar uma histria muito difcil, um problema muito srio. Eu nunca tinha conseguido contar uma histria e me senti realizado na primeira vez em que consegui, num RPG que saiu h pouco tempo, Castle Falkenstein, que um sistema sensacional. Este sistema facilita bastante o ato de contar histrias, mesmo porque o personagem construdo da forma mais detalhada possvel. No tem ficha de personagem. Escreve-se um dirio e, a partir da, tem-se todos os detalhes da histria do personagem. Os objetos que ele mais gosta, a pessoa que ele mais ama no mundo, por quem ele daria a vida, o que ele nunca poderia perder. Quanto questo do terror sobre-humano e humano, gostaria de discordar de voc, porque h um aspecto que no humano. Voltando para o que o Lus Antnio Aguiar disse na primeira palestra sobre o Drcula, que seria uma coisa no humana, porque no tinha nenhuma memria da humanidade. A morte sempre aparece no terror, porque o terreno do desconhecido. As pessoas conhecem o ser humano. O que no humano desconhecido. O desconhecido desperta mais medo do que aquilo que conhecido. O desconhecido a essncia do medo. Uma pergunta que eu gostaria de fazer para o Oswaldo: Porque ser
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que as pessoas gostam tanto de terror? Seramos todos masoquistas? O terror um desconforto. Para sentir terror, a pessoa tem que se sentir mal. O bom terror aquele que faz a pessoa se sentir mal, que leva a um desconforto? Oswaldo Lopes Jr.: Muita gente pensa dessa forma, acha que quem gosta de terror masoquista, mas eu discordo totalmente dessa idia. Tenho uma amiga que no consegue ver filme de terror de jeito nenhum. Se a colocam para assistir um, em cinco minutos ela desliga a televiso ou sai do cinema porque se sente mal. O mundo inteiro gosta de terror porque terror catarse. Ao assistirmos a um filme de terror, ou ao lermos uma histria de terror, colocamos para fora os nossos demnios, fazemos um tipo de catarse. E uma forma de extravasar o que se est sentindo. Por isso eu defendo o terror implcito, porque cada um vai se identificar da forma que for e vai fazer uma catarse cada vez melhor, alm de ser bem mais sutil e elegante como forma de arte. Eu acho que quem gosta de terror muito suscetvel a ele ou muito tranqilo. Podemos ver isso em entrevistas com atores, cineastas: ou ele se diverte muito, ou est fazendo aquilo porque tem muitos medos. Hitchcock - que no fazia propriamente terror, mas mexia com as emoes do pblico com o suspense - era um sujeito extremamente medroso. E Stephen King no consegue dormir com o p para fora da cama. Platia (Maurcio): Ao contrrio do meu xar, eu queria fazer a defesa do Vampire aqui e do tipo de terror que ele representa, porque acho que a grande sacada do livro colocar voc do outro lado, quer dizer; voc o monstro, porque qualquer filme de terror que se v, pelo menos 90% deles, mostra humanos sendo amedrontados por fantasmas, ou por vampiros, ou por lobisomens, qualquer coisa assim. Em Vampire o contrrio, entra-se num personagem bem construdo, vive-se o conflito entre o que humano nele e o que monstruoso. Eu concordo que muito difcil passar isso para o jogo. O que se tem de fazer? Trabalhar mais as histrias. As melhores histrias de terror, como foi dito aqui, so as histrias que no parecem de terror, pelo menos no no incio. Por exemplo, a melhor histria de terror que eu j joguei no RPG foi uma histria de Vampire que parecia ser uma histria sobre um pintor que queria ficar isolado do mundo e depois o pessoal viu que no era bem isso, mas, a princpio, era uma histria totalmente comum. Acho que se
pode encontrar isso no cinema tambm - por exemplo, usando msica -, uma cena totalmente banal em que se coloca uma msica mais sinistra e j fica imaginando coisas. A impresso que eu tive dos ltimos filmes de terror que saram - Drada de Bram Stoker, Entrevista com o Vampiro, Lobo - que eram filmes fracos. Uma ou outra cena assustava, mas, no geral, o filme no dava susto, no era assustador. Agora, Alien um grande filme de terror, apesar de ser um filme de fico cientfica, ou 200/ - Uma odissia no espao, que tem aquela cena apavorante, quando o computador comea a mentir para a tripulao, um computador que deveria ser perfeito. Eu acho que so esses os caminhos que devemos seguir no jogo, fugir daquele negcio mais tradicional e buscar outros caminhos. Snia Mota: Sou escritora e fico meio agoniada com colocaes que defendem o que se deve ou no se deve fazer em termos de arte. No cabe a palavra dever, porque atrapalha a criao artstica. Tudo o que est sendo dito aqui so opinies, no vamos tirar uma receita. E polmico, porque as pessoas podem jogar com dados no RPG e fazer uma boa fico tambm. Platia (Lus Felipe): Aproveitando um pouco o gancho do que foi falado de jogar o dado ou no jogar o dado no RPG, acho que RPG uma coisa meio bastarda. O que o RPG? jogo de interpretao. Jogo e interpretao. H o lado de contar a histria, o lado de seguir o personagem e ao mesmo tempo voc tem jogo, o elemento da sorte, o conseguir ou no conseguir. Sinceramente, qualquer um, desde a turminha que adora dar pancadaria em sistemas que favorecem isso at o oposto, como os que jogam Vampire, cada um se diverte como quer. A grande sacada nos jogos foi exatamente a de resgatar esse lado mais da histria, da narrao do personagem da histria, da histria ser contada, mas eu acho que pode ser contada uma boa histria de terror ou uma histria mais dramtica; independente do sistema, possvel fazer uma histria com qualquer sistema de jogo. basicamente isso. Oswaldo Lopes Jr.: Concordo plenamente e, na minha opinio de leigo - s joguei RPG uma vez e estou tentando construir algumas histrias -, o RPG isso, construo de narrativa, estrutura de roteiro, enfim, a criao de uma histria; logo, no interessa o sistema em que se est jogando, se com dado ou sem dado. Interessa que se crie uma
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histria em grupo. Um mestre d uma idia inicial e o grupo comea a desenvolver a sua parte, cada um com a sua responsabilidade dentro do todo, at chegar a algum lugar, at ter uma histria construda. Vrios livros foram escritos assim. Platia (Rodrigo): Eu queria fazer um comentrio sobre a questo do monstro ser o desconhecido e o desconhecido atrair mais medo. Pode at ser que o monstro, um cara de dois metros, com asa e tentculos na boca, d mais medo ao pessoal; e, ao humano, o conhecido amedronte menos. Pode ser. Mas o que pode ser explorado melhor justamente o que conhecido. Enquanto monstro, cada um vai ter sempre a sua imagem. Esse medo vai ser uma coisa muito pessoal e muito diferente. O que se pode explorar mais, fica mais forte. O Maurcio - que fez a defesa do Vampire - disse que, na maioria das histrias, o monstro est de um lado e o humano do outro, fugindo. E justamente por isso que a maioria dessas histrias so as melhores. Todo mundo quer ver esse tipo de histria. A histria em que voc um monstro, no faz sentido, ningum aprecia, ningum quer ver isso. A respeito do Drcula, nunca considerei uma histria de monstro. Para mim Drcula um romance sobre um amor que eterno, o amor que nunca morre. O Drcula um vampiro, podia ser um cara imortal, ia dar na mesma. Queria tambm perguntar se existe e qual a diferena entre o suspense e o terror? Oswaldo Lopes Jr.: Boa pergunta. So gneros narrativos de cinema, de literatura ou de teatro. O suspense - como o prprio nome diz e como podemos ver nos filmes de Alfred Hitchcock - quando uma situao deixa o pblico num estado suspenso, numa expectativa. Um bom exemplo - e que talvez ajude a explicar a diferena entre suspense e terror - dado pelo prprio Hitchcock: "Quando um cineasta deseja mostrar que um personagem vai viajar, ele coloca o sujeito num txi e este pede ao motorista que siga para o aeroporto. A, corta e ele j est no aeroporto. Eu, para mostrar uma situao de suspense, faria assim: o homem entra no txi, pede ao motorista que v para o aeroporto, olha para o relgio e diz 'Meu Deus! Estou atrasado!'. A partir da, cada parada em sinal ou em engarrafamento que o txi fizer, deixar o espectador tenso." Est criada uma situao clssica de suspense, onde no existe terror algum. O suspense pode existir em qualquer coisa, numa brincadeira infantil, numa compra de supermercado, em qualquer situao corriqueira onde se crie uma
expectativa. Em sntese, o suspense a criao de uma expectativa. Hitchcock dizia que essa situao de tenso no podia se estender durante muito tempo, caso contrrio o pblico perdia o interesse. O terror j um gnero que trabalha com os medos das pessoas, com o desconhecido, como foi falado aqui. Segundo Lovecraft, "a emoo mais antiga e mais intensa da humanidade o medo, e o mais antigo e mais intenso dos medos o medo do desconhecido". O desconhecido, em geral, vem de um ambiente externo, porm tambm pode vir de uma fonte interna. Estvamos discutindo que o humano o conhecido e o no-humano o desconhecido. Mas quem disse que o humano conhecido? E possvel saber se a pessoa que est andando ao seu lado, na rua, que sobe no elevador com voc, que mora no mesmo andar, no capaz de esquartejar uma criana com um sorriso nos lbios? A gente nunca sabe. Voc mesmo no se conhece. Portanto, o medo gerado por esse desconhecido pertence ao mbito do terror. O filme Os Pssaros tem um pouco de suspense e de terror. De terror, j que ningum sabe o porqu dos pssaros atacarem aquela cidade, o porqu da ferocidade desses ataques, e pelo sentimento inexorvel de destruio e morte. E de suspense, que usado na construo da narrativa, que uma ferramenta usada em prol da histria. Apesar de ter definido antes o suspense como um gnero, eu o considero mais uma ferramenta narrativa, enquanto o terror sem dvida um gnero. Da mesma forma que em uma comdia voc pode ter drama, nmeros musicais e humor. A comdia tanto pode ser um gnero como uma ferramenta a ser usada dentro de um filme, independente do gnero a que pertena. O suspense a mesma coisa. E possvel ter suspense num filme infantil, numa comdia, num melodrama, enfim, em qualquer tipo de filme. Platia (Gustavo): Eu jogo RPG faz algum tempo e a coisa que eu vejo que, em qualquer ripo de histria, desde terror at comdia, s se precisa saber quando se quer fazer alguma coisa, o sistema de dados que se vai lanar. A melhor histria aquela em que no se lana dado nenhum. O dia em que se chegar ao ponto de no se precisar lanar nenhum dado, chegou-se ao sistema perfeito de RPG. E a vem algum e defende o Vampire, que tem o mesmo sistema do Lobisomem e todo mundo que eu vejo jogando esses jogos s pancadaria. Vampire a coisa mais complicada que existe para jogar. Toda a gerao nova no RPG est comeando a jogar com o Vampire e as pessoas falam que muito fcil de
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jogar. Realmente o sistema banal, uma pessoa que no entenda o sistema do jogo porque tem problema ou est na terceira srie. A dvida : quantas aventuras decentes de Vampire j se viu? Um cara vampiro da maneira que ele , humano como todos. A nica diferena que no pode ver a luz do sol, esta a nica diferena. No interessa se o cara tem superpoderes de pegar: "eu te controlo, agora voc est sobre o meu poder". Se for passado um argumento legal para a pessoa, ela vai estar mesmo. assim que funciona na vida real, ele est usando poderes de todos ns, ele fala e todo mundo fica calado, ouvindo. Acho que a aventura perfeita aquela em que no interessa o gnero usado. Rola-se dado para saber se o cara ficou convencido ou no. Pode se falar: "Eu gostaria que voc matasse tal cara", o cara vai virar e responder: "No, no vou matar ningum". Ter de haver argumentao com o cara. Eu s queria que todo mundo que joga RPG no esquecesse desses pequenos detalhes. Eu me amarro em lanar dado, mas tambm acho muito importante a parte em que se tem de falar. Afinal de contas, voc um personagem. No voc que est l lanando dado, uma pessoa que est falando com outra pessoa. Ento, os dados no importam absolutamente nada. E quando todo mundo for jogar, s lembrar disso: o pessoal que gosta de jogar dados, joga dado legal, divertido; o pessoal que gosta mais de interpretar, interpreta. Vamos acabar com essa bitolao de que esse melhor do que aquele, e s funciona se for desse jeito porque RPG para todo mundo jogar o gnero que preferir, e se divertir nos finais de semana. Snia Mota: Gostaria de lembrar a todos que no CD-ROM "RPG & Arte" h um fragmento do livro do Marcos Rey sobre roteiro, que um livro indicado pela oficina de roteiro da T V Globo. E um fragmento sobre personagem em construo, onde h exatamente essas coisas do dirio citado aqui, o dirio que aparece no Castle Falkenstein. E bom conhecermos tambm o produto nacional. O que est sendo feito no exterior, h autores brasileiros fazendo tambm. Isso no uma inveno que surgiu agora, um elemento bsico do roteiro que o roteirista e ficcionista deve conhecer. Platia (Jlio): Eu queria que o Oswaldo fizesse uma anlise do filme Uma noite alucinante, principalmente aquela coisa do personagem ser atacado pelo monstro, ficar possudo, tentar resistir e s voltar ao normal quando v o pingente da garota que ele gosta.
Oswaldo Lopes Jr.: Esse filme basicamente uma brincadeira com o cinema, com a linguagem de cinema. Nele se usa muito cmera subjetiva, os efeitos de cmera so espetaculares, os efeitos especiais so pobres e muitos deles so bem sanguinolentos. Esses elementos so usados para criar o clima estranho que h no filme. Foram utilizadas solues de cmera e de montagem, como aquele em que a cmera sai correndo pelo meio do mato, sobe, desce, d mil voltas dentro da casa... Isso tudo so recursos cinematogrficos que o diretor precisa dominar para criar o clima que julgue necessrio histria que est contando. Quer dizer: quando quer fazer comdia, o diretor tem que conhecer os recursos que podem ajud-lo para criar humor. Uma noite alucinante um grande pequeno filme, e nesse sentido ele se assemelha a outro filme de horror j citado, O massacre da serra eltrica. Pequeno no sentido de ser um filme barato, com um oramento baixo, com alguns problemas, mas sem grandes pretenses e com uma histria muito bem contada. Isso o que nos interessa no filme. Os efeitos especiais funcionam em funo dessa narrativa e a narrativa cria uma sensao muito forte no espectador. E um filme amedrontador. Vale dizer aqui que o segundo Uma Noite Alucinante praticamente uma refilmagem do primeiro, com efeitos especiais mais sofisticados e tudo o mais, e transmite muito menos terror do que o original. Platia (Flvio): Eu no sei se isso funciona exatamente assim: tem monstro, a coisa terror. Acho que no, porque, quem imagina que Vampire terror por causa da ambientao, est muito enganado. Primeiro, porque uma ambientao ps-moderna e na cultura ps-moderna no existe muito terror, a criatura uma coisa existencialista, mais um drama, uma coisa pessoal de agonia diante da existncia. No tem nada a ver com terror. Terror uma outra coisa bem diferente. E claro que possvel usar o Vampire para fazer uma histria de terror. Acho que o que importa o mestre. Pode-se fazer um bom jogo com qualquer ambientao e pode ser feito um jogo de terror, tambm com qualquer ambientao. O terror mais o enfoque que dado na histria, no tem a ver com a ambientao. Vampire no terror, com certeza. Foi perguntado como que se faz um jogo de terror, como que se faz para passar o terror numa sesso de jogo. O mais importante o que no contado. Quando se tenta passar as coisas desesperadamente para o jogador, mais longe esse jogador vai
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estar de sentir o terror. O terror aparece mais no que voc no fala para o jogador. Sugerem-se umas coisas, omitindo-se ou escondendo-se outras. Uma vez que o mestre est com toda a ateno voltada para ele, pode usar mais o terror, deixando o jogador cada vez mais na ignorncia. E claro que, quanto mais um cara for um z-nngum, mais fcil vai se controlar. No que seja a nica soluo, simplesmente a soluo mais fcil. Quanto menos o jogador puder fazer, mais o mestre tem o jogador na mo, o jogo na mo. O cara pode ser nvel 15. E s deixar ele cada vez mais na ignorncia, deixar ele cada vez mais impotente diante do que o mestre est fazendo, no importa o quo poderoso ele seja. E atravs disso que ser criada uma sensao de terror, um clima de terror. Platia (Daniel): Acho que o RPG deve ser feito, as pessoas devem us-lo apenas para se divertir. O sistema no importa. Uso o jogo a meu favor, no uso para jogar na cara dos outros e falar: esse jogo bom. O prprio Mark Rein Hagen usa uma frase que excelente, onde ele escreveu numa dedicatria para um amigo meu num evento que houve aqui, de RPG. E a seguinte: "No acredite em tudo que l". Acho isso fantstico, porque o mximo do terror, o desconhecido, aquilo que no se sabe. Pode-se ter quinhentos mil livros sobre todos os mundos, mas h uma partezinha ali em que no se sabe o que que h atrs. Acho essa uma boa sacao do terror.
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...E o Banco do Brasil rendeu-se magia dos Roleplaying Games. Desde o ano passado, com o evento R?G & Arte acontecendo no Centro Cultural Banco do Brasil, estamos fazendo contato com um grupo muito especial de jovens - os jogadores de RPG. So adolescentes vidos de oportunidades de se encontrarem, discutirem e tomarem conhecimento de tudo o que puderem a respeito do assunto que ocupi os seus fins de semana e muitas horas livres. Agora, no momento que realiza o "I Encontro BBteen de RPG", consolidando a imagem do Banco do Brasil que rejuvenesce com seus novos correntistas adolescentes, a Superintendncia Estadual do Rio de Janeiro, em parceria com o CCBB, traz a pblico a instigante experincia que deu origem escolha desta atividade como o principal vnculo com o seu pblico jovem. Banco do Brasil Superintendncia Estadual do Rio de Janeiro
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