Antrop. Filos. Ebooks
Antrop. Filos. Ebooks
Antrop. Filos. Ebooks
Filosfica
Perspectiva crist
(za Edio Revisada)
Merval Rosa
Antropologia
Filosfica
Perspectiva crist
(2
a
Edio Revisada)
.JUERP
Rio de Janeiro
D Merva! Rosa, 2004
Com todos os direitos de publicao reservados a
JUERP- Junta de Educao Religiosa ePublicaes
da Conveno Batista Brasileira
Caixa Postal, 320 - Rio, RI - 20001 -970
Direo Geral
Almir dos Santos Gonalves Jnior
Coordenao Editorial
Solange Cardoso A. d' Almeida (RP/l687)
Conselho Editorial
Carrie Lemos Gonalves, Celso Alosio S. Barbosa,
Ebenzcr S. Ferreira, Gilton M. Vieira,
Ivone Boechat de Oliveira, Iihon Moraes,
Joo Reinaldo Purin, Lael d' Almeida, Ldia de Oliveira Lopes.
Marelio Oliveira Filho, Margarida Lemos Gonalves,
Pedro Moura, Roberto A. Souza, Silvino C.F. Netto
e Tiago Nunes Lima
Produo Editorial
Arte Settc Marketing Editorial
Produo Grfica
Willy Assis Produo Grfica
Distribuio
EBDl - Marketing e Consultaria Editorial LIda
Tel.: (21) 2104-0044
Fax: 0800.216768
E-mail: [email protected]
[email protected]
Nossa misso; "Viabilizar (/ cooperao entre as igrejas
boris/as 110 cumprimento de sua misso como coml/nidade loca!."
Dados Internacionais de Catalogao na Pnblicao (CIP)
(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI, Brasil)
233 Rosa, Merval
Ros-Ant
Antropologia Filosfica - Uma perspectiva eristlMerval Rosa. - 2
a
edio revista
- Rio de Janeiro: JUERP, 2004
384 p. 16 x 23cm
ISBN 85-350-0238-3
1. Filosfica, Antropologia ~ Teologia crist - Antropologia - Histria. I. Ttulo
CDD 233
Sumrio
Apresentao 09
Dedicatria 11
Introduo 13
Captulo I. O problema antropolgico 17
1.1. As grandes linhas do pensamento filosfico 19
1.2. A centralidade do homem no pensamento moderno 20
1.2.1. A antropologia emprica 21
1.2.2. A antropologia filosfica 21
1.2.3. A antropologia teolgica 22
1.3. Aspectos bsicos do problema antropolgico 24
1.3.1. O conceito de natureza humana 25
1.3.2. A origem do homem: criao e evoluo 28
1.3.3. A relao corpo-alma .45
1.3.4. Autotranscendncia e imortalidade 51
1.4. Caos e Logos 59
1.4.1. O caos nas cosmogonias antigas 59
1.4.2. O logos divino e a ordem no universo 63
1.4.3. A "morte de Deus" e o retorno ao caos 66
Captulo 2. Viso geral dos humanismos 71
2.J. Conceito de humanismo 71
2.2. Humanismo clssico 75
2.2.1. Os pr-socrticos 75
2.2.2. Os sofistas 83
2.2.3. Scrates, Plato e Aristteles 89
2.2.4. Epicurismo c Estoicismo 102
2.2.5. O homem na tragdia grega 116
2.3. Humanismo renascentista J22
2.3.1. O esprito da renascena 123
2.3.2. Grandes vultos da renascena 125
2.3.3. Repercusses do humanismo renascentista 127
2.4. Humanismos modernos J28
2.4.1. O humanismo marxistal 128
2.4.2. O humanismo existencialista 145
2.4.3. Humanismo e atesmo 162
Captulo 3. Antropologia bblica 167
3. J. Conceito veterotestamentrio do homem 167
3.1.1. O contedo doutrinrio do Antigo Testamento
luz de dados da antropologia cultural 168
3.1.2. Termos bsicos da antropologia veterotestamentria 170
3.1.3. Conceitos fundamentais da antropologia
veterotestamentria I 174
3.1.3.1. O homem como criatura ou enquanto
ser finito 174
3.1.3.2. O homem como pecador 177
3.1.3.3. O homem como indivduo .181
3.2. O conceito neotestamentrio do homem 189
3.2.1. Antecedentes histricos do
conceito neotestamentrio do homem 189
3.2.2. Antropologia do periodo interbblieo 190
3.2.3. O ensino de Jesus Cristo sobre o homem,
segundo os evangelhos sinticos 192
3.2.4. Antropologia paulinal99
3.3. O homem no judasmo talmdico 208
3.3.1. O ser humano 209
3.3.2. A alma 211
3.3.3. F e orao 212
3.3.4. Os dois impulsos 213
3.3.5. O livre-arbtrio 214
3.3.6. O pecado 215
3.3.7. Arrependimento e expiao 215
3.3.8. Recompensa e punio 216
Captulo 4. Concepes do homem na histria do pensamento cristo...... 217
4.1. Antropologia no perodo patrstico .218
4.1.1. A importncia da patrstica
no pensamento cristo 218
4.1.2. Representantes do pensamento
antropolgico no perodo patrstico 220
4.1.3. Agostinho e a controvrsia pelagiana 223
4.2. Antropologia no perodo escolstico 230
4.2.1. A importncia filosfica da escolstica 231
4.2.2. Representantes do pensamento
antropolgico no perodo escolstico 232
4.3. Antropologia no perodo da Reforma 240
4.3.1. A importncia da Reforma Protestante
para o pensamento cristo 241
4.3.2. O pensamento antropolgico de Lutero 242
4.3.3. O pensamento antropolgico
de Calvino 246
4.3.4. O conclio de Trento e o Jansenismo 249
4.4. Antropologia na teologia contempornea 253
4.4.1. Atendncia antropocntrica da teologia
contempornea .254
4.4.2. Opensamento antropolgico
de Paul Tillich 255
4.4.3. O pensamento antropolgico
de Teilhard de Chardin 274
4.4.4. O pensamento antropolgico de Martin Buber 290
Captulo S. Imagens contemporneas do homem 307
5.1. O homem psicolgico: Ambigidade e ansiedade 311
5.2. O homem tecnolgico: Massificao.
automao e o problema da identidade 323
5.3. O homem sociolgico: secularizao 335
Concluso: Esperana e plenitude 351
Referncias bibliogrficas 363
Apresentao
A Juerp tem o privilgio de relanar para o nosso pblico essa obra que apresenta uma viso
panormica do estudo do homem atravs dos sculos, com nfase numa interpretao crist do
ser humano. No se trata de obra apologtica; mais um convite reflexo.
Trata-se de uma proposta ousada, em que o autor, depois de estudar o homem como problema
filosfico, incluindo sua origem, natureza e constituio, apresenta uma viso panormica dos
humanistas, desde os pr-socrticos at os contemporneos, como o existencialismo, o marxis-
mo c o atesmo. Num segundo momento, estuda-se a antropologia bblica, no Antigo e Novo
Testamento, incluindo uma viso geral do contedo antropolgico da literatura do perodo in-
terbblico e at mesmo do Talmude. Na parte sobre a histria do pensamento antropolgico do
cristianismo, inclui-se a patrstica, a escolstica, a Reforma protestante, e no pensamento teok-
gico contemporneo apresenta-se o catlico Teilhard Chardin, o protestante Paul Tillich e o judeu
Martin Buber.
Nas imagens contemporneas do homem, todas profundamente innuenciadas pelo antro-
pocentrismo que caracteriza o nosso sculo, estuda-se sobretudo o homem psicolgico. socio-
lgico e tecnolgico.
Concluindo, o autor apresenta um estudo da esperana do ponto de vista filosfico, psico-
lgico c teolgico c fala de plenitude conforme Omodelo ideal de Jesus Cristo.
Merval Rosa licenciado em Letras Clssicas pela Faculdade de Filosofia de Pernambuco.
Mestre em Teologia pelo Southern Ilaptist Theological Seminary (USA).
Doutor em Psicologia Educacional pela Kansas SuIte University (USA).
Docente na Universidade Federal de Pernambuco e no Seminrio Teolgico Batista do Norte
do Brasil, de onde hoje seu rcitor, e tem publicado pela Juerp tambm outro ttulo de grande valor
para nossa bibliografia: Psicologia da Religio.
Dedicatria
Este livro carinhosamente dedicado minha filha,
Rute Elisabete, cujos dons de inteligncia e devoo ao saber so
para mim motivo de justo orgulho.
Antropologia Filosfica
o Crist do Homem seria, portanto. inadequado. Da a opo pelo ttulo Antropologia Filos-
fica: Per"pectiva Crist, porque, de fato, o trabalho apresenta diferentes concepes filosfi-
cas sobre o homem atravs dos tempos, mas a maior parte do seu contedo se prende efetiva-
mente a uma viso crist do ser humano. Portanto, apesar de no satisfazer plenamente. o autor
acha que o ttulo escolhido ainda o que melhor traduz o objetivo do seu trabalho.
Outro problema que por certo o leitor notar. tambm resultante de uma opo do autor,
a forma compacta da diviso dos captulos do livro. Para fins didticos, talvez fosse melhor
desdobrar os captulos, fazendo-os, assim, mais numerosos. O autor, porm, optou pela reduo
do nmero de captulos. fazendo-os mais longos para incluir tpicos comuns mesma linha geral
de pensamento. Essa opo se justifica principalmente pelo fato de no se tratar de obra did;:-
tica, no sentido mais restrito da palavra.
Num trabalho desta natureza praticamente impossvel guardar-se a devida proporo entre
a importncia de temas e de autores, de tal maneira que cOlTesponda s expectativas de todos os
leitores. Inevitavelmente. a escolha de autores representantes de cada perodo ou de vrias
correntes de pensamento totalmente arbitrria e, consequentemente. pode no fazer justia a
muitos que poderiam e talvez deveriam figurar nestas pginas. A escolha do aulor obedeceu a
determinados critrios, tais como: relevncia para o tema proposto. acessibilidade s fontes do
pensamento dos autores, e possveis pontos de contato com a linha predominante que preten-
de expor. Houve, da parte do autor, uma tentativa de fidelidade ao pensamento dos autores ci-
tados. No h, porm, plena certeza de que o objetivo foi alcanado. possvel que haja aqui in-
terpretaes equivocadas ou m representao do pensamento de certos autores. Se isso ocor-
rer, entretanto, podemos assegurar que ser sempre o resultado de uma viso apenas parcial do
pensamento do autor apresentado e nunca de malcia intencional ou de parcialidade para forar
interpretafJes semelhantes ao famoso leito de Procusto. Da a necessidade imperiosa de crtica
por parte do leitor atento e interessado. O <-lutor receber com muito interesse qualquer observa-
o crtica e de avaliao procedente do leitor e a considerar como contribuio valiosa.
Apesar de conter apenas cinco captulos, o objetivo do presente trabalho levou o seu autor
a caminhos bem amplos e diversificados. O leitor notar o carter ambicioso da proposta apre-
sentada. Eis, em linhas gerais, o caminho a percorrer:
Depois de uma viso panormica do problema antropolgico, tanto na filosofia como na te-
ologia. revendo relevantes aspectos e questes que suscita, apresenta-se uma viso geral dos
humanismos, a partir dos pr-socnHicos, passando-se pela preocupao antropolgica dos so-
fistas, at chegar-se ao apogeu da filosofia tica, com seus representantes mximos. Estuda-se,
tambm a fase da decadncia da filosofia grega. representada pelo epicurismo e pelo estoicismo,
incluindo seus autores romanos. Da se parte para uma viso do humanismo renascentista, sa-
lientando-se o impacto que causou como movimento antropocntrico e de renovao do esp-
rito humano, para depois se chegar aos humanismos modernos, representados pelo existencia-
lismo e pelo marxismo. Nesse mesmo instante, fala-se do atesmo como forma radical de huma-
nismo antropocntrico e imanentista e de seus efeitos sobre o pensamento do mundo moderno.
14
Introduo
Num segundo momento, estuda-se a concepo bblica do homem, tanto no Antigo como no
Novo Testamento, levando-se tambm em conta a evoluo do pensamento antropolgico da f
bblica, tal como se apresenta na literatura do chamado Perodo lnterbblico. Ao fim do terceiro
captulo, apresenta-se o conceito do homem no judasmo talmdico, segundo as fontes mais
autorizadas desta linha de pensamento.
A seguir, apresenta-se uma viso geral do homem na Patrstica e na Escolstica, atravs de
seus vultos mais representativos, e que deixaram marcas profundas no pensamento cristo.
Estuda-se, ento, o pensamento antropolgico da Reforma Protestante, especialmente em Lute-
ro e Calvino, representantes mximos desta fase do pensamento cristo.
Na teologia contempornea, alm de telogos protestantes representativos, apresenta-se
tambm o pensamento antropolgico do catlico Teilhard de Chardin e do judeu Martin Buber,
ambos pensadores de grande repercusso no mundo moderno, quer do ponto de vista cientfi-
co, quer na perspectiva filosfica.
No ltimo captulo, apresentam-se algumas imagens contemporneas do homem, salientan-
do-se o problema psicolgico da ambigidade, o problema sociolgico da massificao do ho-
mem e a crise de identidade no mundo contemporneo, bem como o grave problema da secula-
rizao, que caracteriza a vida humana nos grandes centros urbanos do mundo atuaI. E, em
consonncia com o esprito e o propsito da obra, conclui-se com uma nota sobre a esperana,
como ponto central da mensagem crist, c a idia de plenitude da vida, inspirada no exemplo e
na mensagem de Jesus Cristo.
15
Captulo 1
o problema antropolgico
Alcanar compreenso adequada de si mesmo ainda o maior problema filosfico para o ho-
mem. Da a importncia sempre alual do desafio contido na mxima "Conhece-te a Ti Mesmo",
do orculo de Delfos, que serviu de base filosofia moral do genial Scrates.
Por sculos o esprito humano tem-se debruado sobre essa questo fundamental. Suas
conquistas nesse campo, entretanto, ainda so bastante modestas. Ser que se deve esse atra-
so natureza altamente complexa do problema antropolgico. ou teria sido. cm grande parte. uma
questo do mtodo utilizado nessa investigao?
Mesmo admitindo que a percepo do Eu posterior percepo do Tu, o que teria criado
a necessidade de o homem procurar em primeiro lugar o conhecimento do mundo objetivo, e s
depois se voltar para si mesmo, verificamos que a metodologia adotada por ele, na busca do
autoconhecimento, retardou consideravelmente sua aquisio. Podemos dizer que s recente-
mente na histria do homem que ele comeou a voltar-se para si mesmo, na nsia de encontrar
um ponto de sustentao para as outras formas de conhecimentos hauridos de diferentes fon-
tes e por diversos processos e mtodos.
Essa mudana de perspectiva do pensamento humano se deve em grande parte a trs impor-
tantes revolues cientficas operadas na histria recente da humanidade: a revoluo coperni-
cana, a darwiniana e. sobretudo, a revolu freudiana.
A primeira dessas revolues cientficas, apesar do seu carter estritamente objetivo. afe-
tau profundamente os destinos do homem enquanto homem. que, deixando de ser considera-
da como o centro do universo, a Terra e o seu principal e presumivelmente mais importante habi-
Antropologia Filosfica
tante - Ohomem - comearamaser interpretados por um prisma de acentuado relativismo, quanto
sua importncia no conjunto geral do imenso universo csmico. Segundo Emesl Cassirer (1972),
a nova cosmologia gerada pela teoria heliocntrica de Coprnico forneceu a base de uma nova
antropologia. Essa revoluo desafiou algumas das crenas tradicionais da humanidade. tais como
a filosofia estica, que ensinava que o homem racional era o fim supremo do universo, bem como
a doutrina crist de que existe uma providncia geral que governa o mundo e o destino do ho-
mem. Portanto. ainda que indiretamente. a revoluo copemicana contribuiu para o Dorescimell-
to do agnosticismo e do ceticismo filosficos que marcaram o sculo XVI e que. de uma forma
ou de outra, tm estado presentes no pensamento moderno e contemporneo. "A nova cosmo-
logia, o sistema heliocntrico inlroduzido na obra de Coprnico. a nica base slida c cientfica
para uma nova antropotogia" (Alltropologiafilosfica, 1972, p. 33).
A segunda grande revoluo cientfica operou-se no domnio geral do mundo biolgico e
aretou o homem de modo muito mais direto. O homem, que at ento se considerava uma esp-
cie sui generis, comeou a perceber semelhanas mais estreitas com outros nveis do mundo ani-
mal. a ponto de no mais poder negar a existncia de certo grau de continuidade entre o seu com-
portamento e o de outros animais. Arevoluodarwiniana, portanto, afetou profundamente a ima-
gem do homem no mundo moderno. Falando sobre impacto de Darwin em seu famoso livro-
Aorigem das espcies- Cassirerdeclara: "A partir deste momento, parece definitivamente fixa-
do o verdadeiro carterda filosofia antropolgica. Depois de um sem-nmero de tentativas in-
frutferas, a filosofia do homem pisa, afinal. terreno firme. J no precisamos entregar-nos a es-
peculaes vs, pois no estamos cata de uma definio geral da natureza ou da essncia do
homem. Nosso problema se resume em reunir as provas empricas que a teoria geral da evoluo
colocou nossa disposio, farta e ricamente" (Cassirer, 1972, p.39).
A revoluo freudiana, por sua vez, foi a mais dramtica em termos dos seus efeitos sobre
a imagem contempornea do homem. que Freud demonstrou que a maior parte do nosso com-
portamento, como seres humanos, determinada por fatores inconscientes e que a guerra c os
conflitos que se travam dentro de ns so bem maiores do que conscientemente queremos ad-
mitir. O homem nem sempre consegue ser aquele indivduo harmnico. lgico e racional que
pretende. Pelo contrrio, o homem um ser marcado pela ambigidade, pelos conflitos interio-
res e pela confuso.
Esse fato apontado pela teoria freudiana belamente ilustrado pelas mais variadas formas
das artes modernas. Nos estilos clssicos das artes predominam a harmonia, o ideal de beleza,
a busca da perfeio. Na arte moderna, pelo contrrio, verifica-se o predomnio do ambguo, do
catico, do desencontrado. que o catico, o ambguo, o desencontrado presentes na arte
moderna representam o mundo subjetivo do homem, medida que contempla e expressa o real,
em contraposio ao ideal que ele imagina e que. para ele, continua a ser um alvo inatingvel.
No prefcio que escreveu como tradutora do livro de Erich Fromm - Psicanlise e religio
- Iracy Doyle expressa magistralmente essa idia, quando afirma que o homem moderno encon-
tra-se cada vez mais alienado de si mesmo, cada vez mais pobre emocionalmente, apesar das no-
tveis conquistas de sua inteligncia no que concerne ao domnio sobre a natureza. O homem do
nosso sculo chegou, diz a referida autora, ao mximo do conhecimento da realidade objetiva,
porm, ao mnimo de sabedoria subjetiva.
18
o problema antropolgico
Da resulta a grande crise moral e espiritual por que passa o homem contemporneo: des-
confiana bsica nos valores tradicionais das culturas, desengano dos dolos criados pelo pr-
prio homem, que se revelam impotentes para na soluo dos seus mais graves proble-
mas existenciais. No entanto, conclui a tradutora, "ainda assim, mesmo que s encontremos horror
e confuso, e mesmo que o homem se agite desorientado, quase sem crena, quase sem valores,
devemos olhar com tolerncia compreensiva e com certo otimismo a agitao catica dos nos-
sos dias. O homem est finalmente olhando para dentro de si. Aarte assim o mostra. O grande de-
senvolvimento da psicologia, imbuda da tradio humanista dos filsofos da Antigidade, faz
do nosso sculo a era da grande descoberta - 'a descoberta do homem a si mesmo'" - (Erich
Fromm, Psicanlise e religio, 1956, p, X-XI),
Vejamos, a seguir, como o homem tem encarado o problema antropolgico atravs de sua
reflexo filosfica, em diferentes estgios da histria do pensamento.
1.1. As grandes linhas do pensamento filosfico
Os estudiosos da histria do pensamento humano identificam, em geral, trs grandes linhas
de reflexo filosfica, a saber: a cosmolgica, a teolgica e a antropolgica. Isso no significa,
evidentemente, que a ati vidade intelectual do homem se tenha limitado, cm dado momento da sua
histria, nica e exclusivamente a um desses aspectos do pensamento humano. No. Essas linhas
ou nfases so temas dominantes que se salientam mais em dados perodos da histria humana
do que em outros.
Tomando-se como exemplo ilustrativo o pensamento grego, verifica-se que a reOexo filo-
sfica dos pr-socrticos era predominantemente cosmolgica. Sua maior preocupao era a
natureza como dado objetivo do conhecimento. A pesquisa desses pensadores tinha por meta
principal a compreenso da estrutura do universo e dos seus elementos constitutivos. Tanto
assim que os filsofos pr-socrticos eram normalmente chamados de "fsicos", e o ttulo prin-
cipal das obras que escreviam era Sobre a natureza. evidente que a nfase cosmolgica do
sarnento no elimina o sujeito que percebe. Ou, como advogam Peter Berger e
Thomas Luckman - A construo social da realidade (1985) - aquilo a que chamamos de
lidade objetiva , em ltima anlise, uma construo social.
Rodolfo MondoIfo - O homem na cultura antiga (1968) -, grande conhecedor da histria
da filosofia, principalmente da filosofia grega, defende a tese de que a preocupao com o sujei-
to humano na reflexo filosfica bem mais antiga do que ordinariamente se imagina, corrobo-
rando assim a idia de que, mesmo quando a nfase do filosofar era fundamentalmente cosmo-
lgica, a preocupao antropolgica estava presente, como no podia deixar de ser.
Com os sofistas, a nfase do pensamento filosfico dos gregos comea a mudar da nature-
za, como dado objetivo, para o homem, como sujeito e objeto de sua prpria reflexo. Nos sofis-
tas a preocupao maior parece ser com a educao do homem e sua relao com o universo social.
por isso que esses pensadores so apontados por eruditos da estirpe de um Werner Jaeger
(Paidia, 1979) como verdadeiros fundadores da cincia da educao,
19
Antropologia Filosfica
Essa nfase antropolgica atinge, no pensamento grego, seu ponto culminante na chamada
filosofia tica, principalmente representada na figura imortal de Scrates, que parte do famoso
"Conhece-te a Ti Mesmo", do orculo de Delfos, como ponto fundamental de todo o fIlosofar.
o pensamento grego reflete tambm uma nfase teolgica, especialmente nos seus primr-
dios, como se pode ver atravs das obras de Homero e de Hesodo, para mencionar apenas os
vultos principais dessa fase evolutiva do gnio helnico. Aqui o mito precede a filosofia, e as
cosmogonias de Homero e de Hesodo so mais teogonias do que propriamente um esforo
racional de explicao do universo. Os deuses que explicam a origem e constituiO do mundo.
A razo humana ainda no ousa oferecer uma explicao natural para os fenmenos observados.
O prprio Tales de Mileto, considerado o primeiro filsofo do mundo, admitindo-se que a filoso-
fia como tal nasceu na Grcia, disse que "tudo est cheio de deuses".
Quando pensamos na histria da filosofia em termos mais gerais, isto , no limitados fi-
losofia grega, podemos identificar diferentes nfases do pensamento humano, em diferentes
pocas da histria da humanidade. Nesses termos, podemos dizer que a nfase dominante do pen-
samento do mundo antigo era basicamente cosmolgica. Durante a Idade Mdia, o foco da aten-
o do pensamento humano foi radicalmente mudado. Em virtude da desconfiana bsica da razo
que caracterizou a Idade Mdia, o pensamento humano nesse perodo da histria se torna essen-
cialmente teocntrico. O filosofar, na prtica, torna-se teologar. Amxima antiga theoloKia (lncl-
lIa philosophiae inverte-se paraphiloso]Jhia ancilla Iheologiae. No mundo moderno, por outro
lado, o pensamento filosfico tornou-se predominantemente antropolgico. Isto aconteceu no
somente no campo da filosofia, mas at mesmo na teologia contempornea, onde a reflexo an-
tropolgica se apresenta como ponto de partida da formulao e reformulao do pensamento.
Esses temas, como sugerimos acima, nunc() se apresentam de modo exclusivo ou isolada-
mente. Como dissemos, eles so predominantes em determinados momentos da histria da hu-
manidade. Observa-se tambm que esses temas da reflexo filosfica tendem a reaparecer. Toman-
do como exemplo a nfase antropolgica, verificamos que ela desponta marcadamente com a
sofstica, apresenta-se muito frgil durante a Idade Mdia, reaparece forte e decisiva no huma-
nismo renascentista, e vai num crescendo at atingir seu ponto culminante na histria contem-
pornea. semelhana da nfase antropolgica, outras grandes linhas da reflexo filosfica
podem reaparecer e se tornar dominantes no pensamento da humanidade, em dado momento do
processo histrico, desaparecer temporariamente, e reaparecer com grande mpeto.
1,2. A centralidade do homem no pensamento moderno
Desde que o homem comeou a refletir sobre a natureza das coisas Ce ningum sabe preci-
samente quando isso aconteceu), que ele mesmo tem sido a maior preocupao nesse processo
de reflexo. Exemplo dessa preocupao do homem consigo mesmo pode ser visto no chamado
"romance da paleontologia", em que ele se tem empenhado na busca incessante de suas razes
histricas, no desejo incontido de reconstituir sua evoluo, a partir dos seus mais remotos
antepassados. Cientistas contemporneos da estatura de Richard Leakey (1980, 1981), Carleton
Coon C1960), And r Senete (1959), e tantos outros, dedicaram seu tempo e inteligncia tentando
encontrar as origens do homem e os caminhos que trilhou no decorrer dessa longa jornada.
20
o problema antropolgico
ocomplexo e muitas vezes fascinante captulo da evoluo da espcie humana tambm sinal
evidente da preocupao do homem com sua prpria histria. Dada a relevncia desse tema,
retornaremos ao assunto ainda neste captulo.
1.2.1 A antropologia emprica
o prprio aparecimento da antropologia como cincia emprica um atestado do desejo
insacivel que o homem tem de conhecer a si mesmo.
Ora, como o homem pode ser estudado de diferentes ngulos, a antropologia contempor-
nea comporta vrias divises ou reas de especializao. Assim que podemos falar em antro-
pologia fsica, que seria o estudo da espcie humana, suas origens, evoluo e diferenciao em
tipos raciais, contando com disciplinas auxiliares, como a antropometria, que estabelece critri-
os de classificao dos tipos raciais, e a paleontologia, que se ocupa do homem fssil ou pr-
histrico.
Outro fascinante ramo das cincias do homem a antropologia cultural ou etnologia, que
estuda as criaes materiais e intelectuais do esprito humano, resultantes do processo de inte-
rao social, e que conta com a arqueologia e a lingstica como disciplinas auxiliares. Quem
desejar inteirar-se da relevncia da etnologia para a compreenso do homem e suas estruturas
mentais deve ler autores como BronislawMalinowski (1962. 1978). Claude Uvi-Strauss (1973, 1976,
1980), MargaretMead (1949.1956, 1960. 1962), Ruth Benedict (1934). Darcy Ribeiro (1979.1983),
para mencionar apena'> alguns dos mais representativos, sem falar em clssicos como Fazer (1978)
e Franz Boas (1940).
1.2.2 A antropologia fIlosfica
Por outro lado, existe a antropologia filosfica, que seria uma espcie de "coroamento" de
todas as preocupaes com o homem e sua relao com o universo. Esta no se subordina aos
mesmos mtodos da antropologia emprica. Ela de natureza essencialmente especulativa e se
volta mais para os aspectos subjetivos da experincia do homem. Justifica-se aexistllcia de uma
antropologia filosfica por causa da necessidade de uma viso global do homem e de seus pro-
blemas, bem como dos mistrios que envolvem sua existncia. Observa Raimundo do Carmo
(Antropologiafllosfica geral, 1975, p. 16):
"Quanto mais especializada for uma cincia, tanto menos capaz ser ela de fornecer uma
viso global da realidade. Odomnio do objeto c seu controle sempre mais perfeito, prmio
maior do cientista, s conseguido por seu isolamento da totalidade. De tal sorte que
podemos afirmar que as cincias particulares so cincias abstratas: o objeto ao qual elas
se referem nunca um ser concreto, autnomo, completo, mas um aspecto abstrado do ente
total que o ente realmente dado. De modo especial, no campo das cincias humanas, o ser
concreto do homem sempre foge ao enfoque de qualquer dessas cincias".
E, para justificar o argumento de que a antropologia filosfica tem por objeto o estudo do
homem como ser concreto, individual, o mesmo autor, baseado em Martin Buber, advoga que, ao
contrrio das cincias que falam sobre o homem como ele, na antropologia filosfica deve-se falar
21
Antropologia Filosfica
do homem na primeira pessoa. Portanto, o que est em foco no tanto o problema do homem
em geral, mas o meu problema como ser engajado na realidade que concretamente constitui O
mundo de minhas experincias pessoais.
Juan Mantovani, preocupado com uma viso antropolgica da educao e ao mesmo tem-
po com a necessidade de se levar mais a srio o projeto de uma filosofia antropolgica, afirma,
em seu livro Educacin y plenitud humana, citado por Theobaldo Miranda Santos (1954), que
"Assistimos a um duplo fenmeno, a um aparente paradoxo: enquanto conhecemos, pelas
cincias particulares, muitas coisas do nosso organismo psicofsico, ignoramos o que
totalidade, o que a essncia do homem, qual o sentido humano. Precisamente, essa essncia
c fundo so o objeto da Q11lropologiafilosfica, uma das disciplinas cujo estudo mais apai-
xona nossa poca. So grandes os esforos que hoje se realizam para estudar o homem nesse
terreno. Procura-se apresentar do mesmo uma nova imagem. Por isso a antropologiafilo-
sfica deve ser considerada como uma introduo a todas as cincias que estudam o homem"
(Noes de filosofia da educafio, p. 150).
Em face do paradoxo acima referido, muito apropriado o pensamento de Max Scheler,
expresso cm seu famoso ensaio filosfico sobre o lugar do homem no universo e citado por
Cassirer - Alltropologiafilosfica (1972, p.45):
"Em nenhum outro perodo do conhecimento humano o homem se tornou mais problem<I-
tico para si mesmo do que em nossos dias. Dispomos de uma antropologia cientfica. uma
antropologia filosfica c de uma antropologia teolgica que se ignoram entre si. Por conse-
guinte,j no possumos nenhuma idia clara e coerente do homem. Amultiplicidade cada
vez maior das cincias particulares, que se ocupam do estudo dos homens, antes confun-
diu e obscureceu do que elucidou nossa concepo do homem".
Diante dessa afirmao de Scheler, e considerando o enorme avano das cincias particu-
lares e dos instrumentos tcnicos de observao e de experimentao, que tornaram possvel o
acmulo de dados sobre o homem, Cassirer afirma:
"Cotejado com nossa prpria abundncia, o passado pode parecer pauprrimo. Entretan-
to, nossa riqueza de fatos no necessariamente uma riqueza de pensamentos. A no ser
que consigamos encontrar o fio de Ariadne I que nos tire desse labirinto, no poderemos ter
uma viso do carter geral da cultura humana, e continuaremos perdidos no meio de um
conjunto de dados desconexos e desintegrados, carente, ao que parece, de toda unidade
conceituai" (p. 45,46).
1.2,3 A antropologia teolgica
Finalmente, fala-se da antropologia teolgica, que seria uma espcie de confluncia entre
a filosofia e a teologia. Aqui, porm, encontramos uma limitao terica bem definida. Se na an-
tropologia filosfica podemos especular indefinidamente sobre a natureza do homem, seus pro-
I Ariadne, filha de Minas. de CreIa. Apaixonada por Teseu, deu-lhe. eomo pista, um fio de l que o levaria a sair
do labirinto, aps matar o Minotauro. (N. du A.)
22
o problema antropolgico
blemas e mistrios, na antropologia teolgica temos de estudar o homem luz dos elementos que
nos so fornecidos pela Revelao. Ora, a idia mesma da Revelao implica um ato de f, que
fornece ao homem um tipo de conhecimento diferente em sua natureza dos outros tipos de co-
nhecimento, quer os derivados dos mtodos empricos, quer os obtidos pelo exerccio da razo
natural. Isso no significa que a Revelao no nos d margem para especular, mas no podemos
afirmar, em nome dela, aquilo que evidentemente a extrapola. Portanto, quando nos dispomos a
estudar antropologia teolgica, podemos demonstrar esprito cientfico e filosfico, mas no
podemos nos afastar do seu ponto central de referncia. O resultado das pesquisas, no campo
da antropologia teolgica, pode encontrar equivalncia entre outras formas de investigao an-
tropolgica, mas ele s constitui doutrina para aqueles que acreditam na Revelao.
Como foi mostrado em pargrafos anteriores, nesta longa peregrinao do esprito huma-
no, a compreenso que o homem conseguiu alcanar da realidade objetiva bem mais confivel
do que o conhecimento que adquiriu de si mesmo. Amxima socrtica "Conhece-te a Ti Mesmo"
continua a ser o maior desafio para o homem contemporneo, assim como o foi para o homem do
tempo de Scrates. Mais do que isso, temos razo para crer que essa mxima continuar a ser um
constante desafio para o homem, enquanto ele viver sobre a terra.
A no-soluo desse problema filosfico se deve, em grande parte, ao fato de ser pratica-
mente impossvel estabelecer-se uma antropologia em bases totalmente objetivas. Mesmo quando
se advogue que isso possvel, em se tratando de uma antropologia fsica e, at certo ponto, de
uma antropologia cultural, certamente no o ser, quando se cogita de uma antropologia filos-
fica. No se filosofa parte do subjetivo. O "pensar" pressupe e, de certo modo, inclui o sujei-
to pensante.
A impossibilidade prtica do estabelecimento de uma antropologia totalmente objetiva re-
sulta do fato de, nessa tentativa, o homem ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da cincia. Isto
, o homem aqui o conhecedor e, ao mesmo tempo, o objeto a ser conhecido. Portanto, no estudo
do homem. o sujeito cognoscente e o objeto cognoscvel se identificam: so os mesmos.
S seria possvel uma antropologia completamente objetiva se o homem tivesse condies
de, por assim dizer, colocar-se fora de si mesmo, para, dessa posio estratgica, realizar seu
estudo. Ora, como isso no possvel, o conhecimento antropolgico ser sempre marcado pelo
subjetivo. A neutralidade valorativa e a objetividade nos estudos do homem continuam a ser o
ideal do cientista, mas nem por isso deixam de ser apenas um ideal. Alis, convm salientar que
completa objetividade parece ser um ideal praticamente inatingvel, no s em antropologia, mas
em todos os ramos do conhecimento humano, pois a chamada realidade objetiva sempre um fato
socialmente construdo, isto , o conhecido inclui, inevitavelmente, de algum modo, o conhece-
dor. (Apropsito do problema da completa objetividade e neutralidade subjetiva do conhecimento
cientfico, veja-se o importante trabalho de Hilton Japiassu em O mito da neutralidade cienti-
fica (1979), bem como O conhecimento objetivo (1975), de Karl Popper, e Nosso conhecimento
do mundo exterior (1956), de Bertrand RusselL)
A propsito da impossibilidade prtica de se excluir a dimenso humana do conhecimento
da realidade objetiva, em seu famoso livro Personal Knowledge: towards a post-critical philo-
23
Antropologia Filosfica
sophy (1964), Michael Polanyi, analisando o desafio copemicano de colocar o homem num pIa-
no totalmente objetivo, para obteno do conhecimento do universo, afirma:
"Pois, como seres humanos, inevitavelmente devemos vero universo de um centro que fica
dentro de ns mesmos e falar sobre ele nos termos de uma linguagem humana modelada pelas
exigncias das relaes humanas. Qualquer tentativa rigorosa de eliminaodessa perspec-
tiva humana de nossa viso do mundo dever conduzir-nos ao absurdo" (p.3).
Em outro trabalho - The tacit dimension (1967) -, no captulo sobre o que ele chama de
conhecimento tcito, dentre outras coisas, Polanyi afirma que nosso corpo ser sempre o instru-
mento decisivo, quer seja o de natureza intelectual ou de carter prtico. E diz enfaticamente: "Re-
pousar sobre uma teoria para a compreenso da natureza interioriz-la" Cp. 17).
Particularmente com respeito ao problema do conhecimento objetivo no campo da antropo-
logia filosfica, pertinente a observao de Edvino Rabuske -Antropologiafilosfica (1981)
-, quando diz:
"H um crculo hennenutico, na forma concreta de crculo antropolgico. Isto significa que
no h um ponto de partida totalmente sem pressuposto. sempre o homem concreto,
condicionado, que pergunta pela essncia do homem. J trazemos conosco ti ns mesmos.
a nossa situao, a nossa experincia, o nosso horizonte de compreenso. Este horizonte
no deve ser excludo, pois ele a condio da pergunta. Mas deve ser mantido aberto, para
uma compreenso mais profunda. E deve ser refletido, questionado com respeito base de
sua possibilidade" (p.IS).
1,3, Aspectos bsicos do problema antropolgico
Como foi dito anteriormente, o pensamento filosfico do mundo moderno predominante-
mente antropocntrico. Ainfluncia de Kant, neste particular, parece bastante bvia. Como se sabe,
Kant operou no campo da filosofia o chamado "giro copernicano". Antes dele, o centro da es-
peculao filosfica era o Ser. Filosofia, neste sentido, era essencialmente metafsica. Depois dele,
esse centro se torna o conhecer. Agnosiologia ou epistemologia torna-se a preocupao central
do filosofar, em contraposio ontologia.
Segundo Kant, os problemas filosficos se reduzem a quatro, a saber:
1.0 que podemos conhecer? Este seria o campo especfico da epistemologia.
2.0 que devemos fazer? Esta a pergunta de que se ocupa a tica.
3.0 que podemos esperar? Aqui nos defrontamos fundamentalmente com o problema reli-
gioso.
4.0 que o homem? Este o problema antropolgico. Segundo o prprio Kant, todos os
problemas filosficos se reduzem ao antropolgico, visto que as trs primeiras perguntas se
referem necessariamente ltima. Em sntese, para Kant, a filosofia torna-se essencialmente an-
tropologia. O objetivo supremo da filosofia seria o de proporcionar ao homem a possibilidade de
conhecer-se adequadamente.
24
o problema antropolgico
A simples reduo da filosofia antropologia, entretanto, como querem certos autores
antigos e alguns contemporneos. no elimina o problema em questo. Ochamado "problema an-
tropolgico" continua a ser um tema relevante, tanto na filosofia como na prpria teologia con-
tempornea, que tambm se tornou predominantemente antropocntrica.
Em face da enorme complexidade do problema antropolgico. quer do ponto de vista estri-
tamente filosfico. quer nas suas implicaes teolgicas, no teramos condies de trat-lo
adequadamente nos limites desta Introduo, e da competncia pessoal de seu autor. Assim, se-
lecionamos alguns aspectos desse importante problema, que passamos a apresentar de modo su-
cinto. Ao longo do presente trabalho outros aspectos do problema antropolgico aparecero na-
turalmente em outros contextos.
1.3.1 O conceito de natureza humana
A discusso do problema antropolgico, tanto do ponto de vista filosfico. como no seu
aspecto teolgico, conduz inevitavelmente questo da natureza humana. A pergunta que se
coloca : existe algo de essencial e permanente no homem, a que se possa chamar de natureza
humana? a natureza humana um conceito meramente sociolgico, ou existe nela algo que vai
alm do simples social e cultural'!
Erich fromm, em seu livro The nature ofman (i976), afirma que, desde os antigos gregos at
Kant, todos concordavam quanto existncia de uma "natureza humana" como algo fixo e per-
manente. H mais de um sculo, porm, essa crena vem sendo consideravelmente desafiada e
at mudada em muitos aspectos fundamentais. Fromm apresenta vrios fatores que contriburam
para essa mudana radical no pensamento humano. Dentre os fatores determinantes dessa
mudana, salientaremos os seguintes:
o estudo do homem em perspectiva histrica. Quando estudado ao longo do processo
milenar da histria, no fica difcil demonstrar que o homem hoje no necessariamente o que ele
foi no passado remoto. Foras externas, atuando sobre o homem, determinaram significativas
mudanas nas estruturas fsicas e mentais do ser humano. Vrias circunstncias condicionaram
seu pensamento e, consequentemente, seu comportamento. Anatureza humana, portanto, deve
ser entendida em termos do conceito da historicidade do homem.
Aantropologia cultural. Outro fator que contribuiu significativamente para mudar o con-
ceito tradicional da natureza humana como algo fixo e imutvel atravs de todos os tempos e
lugares foi o estudo cientfico da antropologia cultural. Atendncia dos antroplogos culturais
admitir que natureza humana um conceito sociologicamente determinado. verdade que
muitos, como Unton (1959), afirmam que "os povos e raas so em essncia muito aproximada-
mente os mesmos". Mas, acrescenta ele, o cientista "poder deduzir os denominadores comuns
para a sociedade e para o que vagamente denominamos de natureza humana, muito mais facilmen-
te destas observaes que dos estudos feitos dentro do quadro de uma nica sociedade" (O
homem: uma introduo antropologia, p,17).
A teoria da evoluo. A teoria da evoluo das espcies, elaborada por Charles Darwin
(1859,1876), contribuiu tambm para a mudana do conceito de natureza humana.
25
Antropologia Filosfica
Ora, uma vez admitindo que o homem resultante de um processo evolutivo, no h como
se defender uma constituio fixa e imutvel, para o ser humano, atravs dos sculos.
Admitindo, tambm, como postula a teoria darwiniana da evoluo das espcies, que a di-
ferena entre o comportamento humano e dos outros animais, em muitos casos, mais quanti-
tativa do que propriamente qualitativa, o que eqivale a dizer que existe uma continuidade na
escala zoolgica, at que ponto seria razovel dizer-se que o homem constitui uma espcie SUl
generis, com caractersticas absolutamente nicas e peculiares? A natureza humana, portanto,
estaria sujeita s variaes prprias de um processo evolutivo, a menos que se admita que a
evoluo afeta apenas os aspectos morfolgicos e no funcionais das estruturas do homem. Essa
hiptese parece bastante invivel. De onde se conclui que o conceito de natureza humana est
sujeito s variaes de um processo evolutivo.
Conceito dinmico do mundofsico. Na cincia, o prprio mundo fsico passou a ser visto
como processo, em vez de algo esttico que pode ser analisado sempre do mesmo ngulo ou da
mesma perspectiva. Assim, o prprio homem, como parte da natureza, deve ser entendido numa
perspectiva que admita o constante fluxo das coisas. Oclebre fragmento de Herclito - tudo muda
- tornou-se bastante atual na cincia contempornea. O clssico modelo da mecnica newtoni-
ana, baseada num rgido determinismo, est sendo substitudo com vantagem por modelos s i s ~
tmicos, como indicam, dentre outras, as obras de FrijofCapra, Otao daflsica (1983) e Oponto
de mutao (1982), tudo isso informado pelas modernas teorias da fsica quntica.
o uso abusivo do prprio conceito de natureza humana. Outro fator que contribuiu para
a mudana do conceito tradicional de natureza humana foi o uso abusivo do prprio conceito,
empregado para justificar injustias sociais como a escravido, o racismo e tantos outros tipos
de discriminao abominvel. At mesmo os to elogiados mestres do pensamento grego defen-
diam a escravido como sendo algo apropriado natureza humana de determinadas pessoas. Os
judeus tambm exploravam e desprezavam o chamado povo autctone, justificando esse trata-
mento indigno de seres humanos e achando que ele era prprio para a natureza dessa "escria".
Arecomendao talmdica, segundo citao de Morin - Jesus e as estruturas de seu tempo (1984,
p. 138) -, era: "No despose a filha de um homem do povo baixo, pois ele um monstro, e suas
mulheres so rpteis malditos". E, para evitar que sua filha se casasse com um homem dessa
camada social, o judeu aplicava o ensino da Escritura, que diz: "Maldito o que se deita com um
animal". Os clssicos sistemas de castas ostensivos na ndia e em outros contextos culturais, e
velados e camunados em muitos lugares, so evidncias do uso abusivo do conceito de natu-
reza humana, para justificar todo tipo de injustia contra o homem. Esse absurdo, mais cedo ou
mais tarde, tinha de ser contestado. Foi o que aconteceu no mundo moderno.
Convm salientar, entretanto, que a negao absoluta de algo fixo quanto essncia do homem
pode ser to perigosa quanto a idia de imutabilidade da natureza humana. Mesmo reconhecendo a
relatividade do conceito de natureza humana, bem como seus condicionantes sociolgicos, relati-
vamente fcil encontrar e reconhecer atributos essenciais do homem ou caractersticas que o distin-
guem de outros seres naturais. Dentre esses permanentes, Fromm salienta os seguintes:
Racionalidade. O conceito de racionalidade como algo que distingue o homem dos outros
animais tem sido defendido e tambm contestado por muitos autores, desde Herclito de feso
26
o problema antropolgico
at Freud e alguns pensadores contemporneos. O problema que se levanta aqui saber se
"racionalidade" peculiar ao homem ou se pertence tambm a outros animais, diferindo apenas
em questo de grau. Darwin, por exemplo, advoga que essa, bem como outras formas de compor-
tamento humano, compartilhada com outros animais, diferindo mais em grau do que em quali-
dade essencial. Freud, por outro lado, ao demonstrar que a maior parte do comportamento hu-
mano determinada por fatores inconscientes, ao menos indiretamenle, questiona a racionalidade
do homem como caracterstica dominante de sua espcie; Por outro lado so numerosos os au-
tores que se referem ao homem como ser racional, em contraposio aos animais irracionais. Ad-
vogam esses autores que s o homem pode conhecer o universal e o particular. Somente o ho-
mem possui a capacidade de abstrao, que lhe lorna possvel pensar em objetos que no po-
dem ser percebidos diretamente pelos rgos sensoriais.
A natureza social do homem. Afamosa declarao de Aristteles de que o "homem um ser
poltico" apontada como uma das caractersticas distintivas do ser humano. Isto no significa
que outros animais no tenham formas elementares de vida e de organizao social. Mas, no caso
do homem, a vida em sociedade fator substantivo. Sem esse elemento, a prpria vida humana
seria impossvel, e o fato poltico que define a posio do homem no mundo. Para o homem,
portanto, a vida em sociedade, de forma estruturada, condio indispensvel a seu autocon-
ceita. O homem cria a cultura e a estrutura social, e esta, por sua vez, modela o homem e o define
naquilo que o caracteriza como ser humano.
A capacidade de produzir e o uso de instrumentos. At onde sabemos, esta uma carac-
terstica peculiar ao homem. verdade que os animais inferiores tambm tm limitada capacida-
de de produzir, mas, como afinna Marx, ao se referir ao homofaber, o animal produz de acordo com
padres instintivos, enquanto o homem produz de acordo com planos por ele mesmo arquiteta-
dos. Quanto ao fabrico e ao uso de instrumentos, o homem se diferencia claramente dos outros
animais. Desde os mais elementares instrumentos construdos em poca remota de sua histria,
como simples extenso de seu prprio corpo, at a criao de mquinas que tornaram possvel
a revoluo industrial, que o homem tem se mostrado capaz de dominar a natureza, extraindo dela
as mais variadas formas de energia, quer para o seu bem-estar, quer para atacar e destruir seu
semelhante.
ouso de smbolos. Ernst Cassirer (1972) apresenta o smbolo como a chave para a c o m p r e ~
enso adequada do homem. Comenta que o esforo de definir o homem como sef racional expressa
um imperativo moral bsico, e conclui:
"Razo um tenno muito pouco adequado para abranger as formas de vida cultural do
homem, em toda sua riqueza c variedade. Mas todas estas formas so simblicas. Portan-
to, no lugar de definir o homem como um animal rationale, deveramos defini-lo como um
animal symbolicum. Deste modo podemos designar sua diferena especfica, e podemos
compreender o novo caminho aberto ao homem: o da civilizao" (p.51).
Parte relevante do aspecto simblico da cultura humana o uso da linguagem articulada. No
h dvida de que esta uma caracterstica exclusivamente humana. Os outros animais podem ter
formas de comunicao, mas nenhum deles dispe de uma linguagem articulada. Como se deu
a aquisio dessa extraordinria capacidade um problema praticamente insolvel. Foi o desen-
27
Antropologia Filosfica
volvimento do crtex cerebral humano que tornou possvel a linguagem articulada, ou foi a lin-
guagem articulada que tornou possvel o desenvolvimento do crtex cerebral do homem? De
qualquer maneira, graas a esse desenvolvimento, o homem tem a capacidade de acumular cul-
tura e de transmiti-Ia de forma econmica e eficiente. graas ao uso da linguagem articulada que
o homem deixou de viver num universo meramente fsico e passou a viver num universo simb-
lico, do qual o mito, a arle e a religio so partes integrantes. A linguagem tornou-se to impor-
tante para o homem que, sem ela, a prpria concepo do homem seria praticamente impossvel.
Graas linguagem, o homem passou a viver num universo simblico. E, como afirma Cassirer,
a prpria realidade fsica, por assim dizer, se torna mais indireta para o homem, na medida em que
ele desenvolve sua capacidade de lidar com smbolos. E conclui o referido autor:
"Em lugar de lidar com as prprias cuisas, o homem, em certo sentido, est constal1lcmcn-
te conversando consigo mesmo. Envolveu-se de tal maneira cm formas lingsticas, em
imagens artsticas, em smbolos mticos ou em ritos religiosos, que no pode ver nem c-
nheeer coisa alguma seno pela interposio desse meio artificial. Tanto na esfera terica
quanto na prtica, a situao a mesma. Nem mesmo nesta ltima vive ohomem num mundo
de fatos indisputveis, ou de acordo com suas necessidades c desejos imediatos. Vi ve an-
tes no meio de emoes imaginririas, entre esperanas c temores, iluses c desiluses, em
seus sonhos c fantasias" (p. 50).
Em resumo, o conceito de natureza humana tema aberto, medida que se coloca o proble-
ma em termos de algo fixo e imutvel, bem como quando se estuda o assunto do ponto de vista
de caractersticas peculiares ao homem. Aparentemente, os existencialistas modernos, com ra-
zes no devir heracltico, tm algo importante a nos dizer sobre o tema, quando afirmam que so-
mos antes e primeiro que tudo uma existncia, isto , somos aquilo que fazemos de ns mesmos
durante o curso de nossa vida. Tornar-se, ao invs de ser, constitui a palavra-chave para a com-
preenso da natureza humana. Esse ponto se tornar mais claro, esperamos, quando mais adian-
te tratarmos da posio existencialista, principalmente em Jean-Paul Sartre.
1.3.2 Aorigemdo homem: criao e evoluo
Nem o evolucionismo nem o criacionismo podem ser empiricamente demonstrados. O pri-
meiro apresenta algumas evidncias significativas no domnio da histria natural. O segundo tem
a evidncia da f. Portanto, a origem do universo, da vida e do homem encerra um mistrio pe-
rante o qual cada um ter de se colocar de modo responsvel. Diante desse mistrio, todos de-
vem ter suficiente humildade e evitar atitudes dogmticas arrogantes.
Pela narrativa bblica, o problema da origem do homem relativamente simples. Otexto afirma,
numa de sllas verses: "Criou, pois, Deus o homem sua imagem; imagem de Deus o criou:
homem e mulher os criou" CGn 1.27). Ainda neste captulo voltaremos a falar sobre o assunto das
duas narrativas bblicas da criao do homem.
Acontece, porm, que, a partir do momento em que o homem comea a refletir sobre si
mesmo, o problema se complica. Para quem v o problema estritamente do ponto de vista da f
crist, ele praticamente no existe. Aquele, porm, que o encara de uma perspectiva cientfica ou
filosfica, ter necessariamente de defrontar-se com aspectos praticamente insolveis da ques-
28
o problema antropolgico
to. Em linguagem muito apropriada, logo no incio de seu livro A origem da humanidade (1979),
cujo ttulo original se traduz por A nova histria de Ado e Eva, Gnter Haaf, em resposta pre-
liminar pergunta "De onde viemos'?", diz:
"Quando ramos crianas, o mundo era compreensvel. certo que tnhamos dvidas e
temores. Mas tnhamos tambm nossos pais, cm quem acreditvamos quando nos falavam
do mundo exterior e espantavam nossos temores. As primeiras dvidas surgiram apenas
quando comeamos a nos libertar da protc(f.10 confortvel de nossa cndida ingenuidade:
quando, desesperados e insolentes, tentamos ocupar um lugar no centro do universo.
Compreendamos alguns fatos c logo julgamos ser oniscientes. Contudo, o oceano do sa-
ber mostrou ser demasiado vasto para deixar-se transformar numa mera poa; o mundo,
complicado demais para se deixar explicar de uma tirada. Hoje, com mais humildade e de
forma mais apropriada tentamos tirar o melhor partido possvel da situao e criar um com-
promisso de rotina entre a f c a cincia" (p.6).
Por sculos, o problema da origem do homem foi tratado de modo mais ou menos pacfico,
visto que, para sua prpria tranqilidade, o homem se considerava uma espcie SUl generis e. con-
sequentemente, parte do resto da natureza e particularmente do reino animal. No sculo XIX,
entretanto, surge o cientista ingls Charles Darwin, com sua teoria da evoluo das espcies, na
qual se inclua o prprio homem. Ora, se nessa tentativa terica de explicao do processo e v o ~
lulivo no se houvesse includo o homem, provavelmente tudo teria permanecido sem grande
alterao. Acontece, porm, que a ousada e revolucionria teoria de Darwin no se limitou s
formas mais simples da vida, pois incluiu o que h de mais avanado nela, ou seja, o prprio ho-
mem. Da o carter polmico e controvertido da teoria darwiniana que abalou os alicerces do
homem, produzindo nele srias dvidas e inquietaes.
Para o objetivo do presente trabalho, no h a preocupao de estudar exaustivamente os
problemas levantados pela teoria da evoluo, do ponto de vista rigorosamente tcnico e cien-
tfico. Nosso propsito colocar o problema da origem do homem em face da possibilidade de
estud-lo, quer do ponto de vista da doutrina bblica da criao, quer do ponto de vista do p r o ~
cesso evolutivo, sem que um exclua o outro. Da por que, no subttulo, dissemos criao e e v o ~
luo, e no criao ou evoluo.
Comearemos, portanto, com algumas observaes de carter geral sobre a teoria da evo-
luo.
o impacto causado pelo trabalho de Charles Darwin foi de propores gigantescas, desde
o seu aparecimento, e ainda hoje perdura. de uma forma ou de outra. As posies em relao
teoria evolutiva tm variado, desde a extrema e radical rejeio de uns aceitao apaixonada c
at mesmo fantica de outros. Combatida em certos meios acadmicos onde seu ensino foi proi-
bido e banido dos currculos universitrios, e anate matizada pela Igreja, tornou-se heresia. No
Protestantismo cm geral, principalmente nos Estados Unidos da Amrica do Norte, foi declarada
suprema heresia pelos fundamentalistas radicais e adeptos da interpreta<;o literal da Bblia. Na
Igreja Catlica, a teoria da evoluo passou por diversos estgios, que variam da veemente
condenao aceitao irrestrita, como o caso de Teilhard de Chardin, que a estendeu no
apenas ao mundo da Biologia, mas ao prprio universo como um todo, passando tambm por
29
Antropologia Filosfica
posies moderadas que admitem a possibilidade de conciliao entre criao como ato e evo-
luo comO processo.
importante no perder de vista o fato de que a teoria da evoluo uma proposta de carter
cientfico. e no um dogma infalvel. Ora, a cientificidade de uma teoria tem como condio b-
sica, lembra Karl Popper (1972), sua refutabilidade ou falseabilidade, Uma teoria que no puder
ser refutada no tem valor para a cincia. A tcoria cientfica um sistema aberto e, como tal, est
sujeita a constantes modificaes, medida que novas hipteses so testadas e confirmadas no
campo particular de conhecimento de que trata a teoria. O contrrio da teoria cientfica o dog-
ma, que um sistema fechado. que no admite mudanas ou modificaes em sua estrutura, pois
neste caso todo o sistema ruir. O dogma matria de f que constitui O esteio de um sistema
doutrinrio e do qual ningum pode a f a s t a r ~ s e sem apostasia. O dogma, o indivduo aceita ou
rejeita; no pode, porm, modific-lo. Por exemplo, ningum pode coerentemente declarar-se cris-
to, se negar o dogma da Trindade,
Como vimos, a teoria da evoluo no um dogma que deva ser aceito como artigo de f.
No , tambm uma lei cientfica ou princpio universalmente vlido e aplicvel a todas as circuns-
tncias conhecidas. Ela , como dissemos, uma proposta cientfica baseada na confirmao de
vrias hipteses nos diversos campos das cincias biolgicas. Ela continua a gerar hipteses
testveis Ce somente hipteses testveis tm valor para a atividade cientfica do homem), algu-
mas das quais podero ser confirmadas e outras podero ser rejeitadas por no encontrarem con-
firmao emprica na natureza.
Em sua forma original, a teoria da evoluo, tanto a de Darwin como outras que no tiveram
o mesmo destino, apresentava muitas lacunas do ponto de vista da solidez de conhecimentos
cientficos em reas correlatas. Particularmente no caso de Darwin, a maior lacuna se encontra no
desconhecimento dos mecanismos da hereditariedade ou dos fatores genticos, que mais tarde
Mendel iria estabelecer como ponto de partida da gentica contempornea.
Ao cair no domnio pblico, essa teoria produziu uma srie de mitos que foram aceitos como
fatos cientficos. Dentre esses mitos encontra-se a idia da mudana adaptativa constante, apon-
tada por Niles Eldredge e lan Tattersall, em seu livro Os mitos da evoluo humana C1984).
Com base em conhecimentos mais avanados e atualizados, os referidos autores contras-
tam a teoria antiga com a moderna teoria da evoluo e sugerem o que eles chamam de teoria
sinttica. Vejamos alguns dos pontos salientados por esses dois cientistas contemporneos.
Para a grande maioria das pessoas, evoluo significa mudana, que, por sua vez, implica
movimento e progresso. Essa mudana vista como algo inevitvel. Fala-se tambm no conceito
geral de desenvolvimento, que pode ser usado tanto para descrever o processo que vai do vulo
ao indivduo adulto, como histria evolutiva de grupos.
"Assim, o tipo de mudana que a maioria das pessoas tem em mente ao usar a palavra 'evo-
luo' no algo ao acaso, do tipo qualquer-coisa-serve, mas sim uma alterao de estado
muito mais definida, que segue um curso regulare compreensvel, seno inteiramente pre-
ordenado. Otipo de mudana considerado um desenvolvimento lgico. Parte do simples
30
o problema antropolgico
para o complexo. do primitivo para o avanado, do imperfeitamente formado para o per-
feito. A evoluo conota, acima de tudo, o aprimoramento progressivo" (Os mitos da
evoluo humana, p. 32).
Ora, como sabemos, a mudana sempre vista como ameaa ao homem e sociedade.
Portanto, para se tomar aceitvel, o conceito de mudana deve incluir a idia de aprimoramento
progressivo. Era este o clima intelectual do sculo de Darwin e que tomou possvel o aparecimen-
to e a expanso da sua teoria. A esse respeito, Eldredge e Tattersall dizem:
"Foi precisamente nesse tipo de atmosfera intelectual que as noes de evoluo do uni-
verso. da vida e da humanidade. tanto fsica quanto culturalmente, se incendiaram. Tendo
por combustvel as vises de uma riqueza econmica em permanente expanso, e sendo
talvez atiada pelo turbilho de rpidas mudanas tecnolgicas iniciadas pela Revoluo
Industrial, a noo de progresso passou a dominar a viso de mundo dos tericos sociais
do Ocidente durante o sculo XIX" Cp.33).
Bem informado sobre as questes do seu tempo, sobretudo em relao s noes e idias que
questionavama fixidez das espcies na Biologia, Darwin, depois de uma viagemde cinco anos ao redor
do mundo, a bordo do Beagle, e de posse de abundantes dados coletados, fonnulou a teoria que abalou
os alicerces do mundo cientfico, quer em relao s cincias biolgicas, quer a respeito da economia
e das cincias sociais. Hoje se fala, por exemplo, do chamado "darwinismo social", que nada mais
do que as noes bsicas da teoria da evoluo aplicadas ao estudo das estruturas da sociedade
humana. A idia da evoluo a bemda verdade no foi criada por Darwin, mas tambmno h dvida
de que foi ele que deu corpo e que a elaborou, de modo claro e convincente, no campo da Biologia.
A idia fundamental da teoria da evoluo expressa por Eldredge e Tattersall nos termos
seguintes:
"Para Darwin, evoluo era "descendncia com modificao". Ele viu um padro na natu-
reza, uma hierarquia de similaridades que ligava todas as formas de vida, um padro visto
por Aristteles e outros gregos daAntigidade e que fora objeto de uma pesquisa biolgica
sria desde que Lineu estabeleceu seu esquema de classificao, um sculo antes. Darwin
viu que a exp1ieao mais simples para esse padro de graus de semelhana entre os orga-
nismos era a simples noo de que eles estavam todos relacionados. Quanto mais estreita-
mente semelhantes sejam dois animais ou plantas, mais estreitamente relacionados deve-
ro estar. Em sua concepo, Darwin via todos os organismos como descendentes de um
nico ancestral comum num passado remoto. E, assim corno as histrias familiares podem
ser desenhadas num pedao de papel, a genealogia de todas as formas de vida poderia ser
retratada com um diagrama ramificado - uma rvore" (p.33).
Hoje quase todos os cientistas reconhecem que a teoria da evoluo, formulada por Darwin,
realmente uma idia muito lcida. Em vez de milhares de atas isolados de criao todo o con-
junto de formas da vida pode ser, pela teoria da evoluo, exemplificado a partir de um nico passo
inicial. Mas, para que sua teoria surtisse o efeito desejado, Darwin teria que destruir antes de tudo
a idia de fixidez das espcies. Ele argumentou, ento, que a aparente fixidez se desfaz quando
as espcies deixam de ser vistas apenas pelo prisma de seu presente e passam a ser vistas pela
tica de sua longa trajetria evolutiva. Portanto, para Darwin, evoluo significa muuana gra-
31
Antropologia Filosfica
dual e progressiva. Basicamente, esse conceito no difere de outros conceitos de mudana pre-
valecentes na poca. Para citar mais uma vez os referidos cientistas do Museu Americano de
Histria Natural:
"Um penado de tempo verdadeiramente vasto, ao longo do qual mudanas pequenas e im-
perceptveis pudessem acumular-se gradualmente, parecia ser a melhor maneira de atacar
a noo de fixidez das espcies. Aacumulao gradual e progressiva de pequenas mudan-
as cra uma idia muito mais sintonizada com as noes vigentes do progresso na mudana
social, pois, embora a noo de mudana houvesse prevalecido como explicao dos acon-
tecimentos ps-Revoluo Industrial na sociedade, ela estava estritamente vinculada com
a noo de progresso" (p. 34).
Note-se, observam os referidos aulres, que o conceito darwiniano de mudana ba-
sicamente vitoriano. Para ele e para o seu tempo, o conceito de mudana radical era incon-
cebvel ou at mesmo abominvel. E, por ironia do destino, nessa mesma poca Karl Marx
escrevia suas idias revolucionrias de mudana que afetariam profundamente o futuro da
humanidade.
A maior parte do contedo do livro de Darwin A origem das ejpcies (1859) dedicada
explicao do mecanismo da evoluo. As espcies, segundo o autor, no so fIxas. H um pro-
cesso causal que explica os padres de mudana atravs da ancestral idade e da descendncia.
Tomando por base o trabalho de economistas, como Malthus e Adam Smith. Darwin descobriu
a noo de competio pela obteno de recursos. Segundo esse princpio, cada gerao pro-
duz mais organismos do que os que podem sobreviver. Portanto, nessa luta h os que ganham
e os que perdem. Uns sobrevivem e geram filhos; outros simplesmente morrem. Os melhores
sobrevivem e. visto que sua prole se assemelha a eles, h natural aprimoramento da populao
como um todo, com o passar do tempo. Como se pode observar, essa a base da economia do
laissezjaire e da competio aberta de Adam Smith. Esse conceito a base das idias de mudana
social progressiva nas teorias de Herbert Spencer, que cunhou a frase "sobrevivncia dos mais
aptos", e a noo predominante da seJeo natural, esteio por excelncia da teoria evolutiva de
Darwin.
Segundo o bilogo americano Stephen Jay Gould, citado porGnter Haar (1979, p. 18), o prin-
cpio evolutivo se baseia em trs fatos inegveis na sua conseqncia inevitvel:
1."Nenhum ser vivo exatamente igual a outro, e as diferenas so sempre herdadas (pelo
menos parcialmente) pela descendncia";
2."os seres vivos produzem mais descendentes do que aqueles que poderiam sobreviver em
condies naturais normais, e"
3."cm geral, a descendncia que melhor se adaptou s condies do meio ambiente, graas
a pequenas mutaes, a que sobrevive e se multiplica. Mutaes vantajosas acumulam-se em
grupos de seres vivos (as chamadas populaes) atravs do processo de seleo natural. O m-
rito de Darwin foi ter sido o primeiro a reconhecer os dois componentes fundamentais da evo-
luo biolgica (mutao e seleo)."
Voltando mais uma vez a Eldredge e a TattersalI, observamos que:
32
...
oproblema antropolgico
"Darwin no conhecia nada de gentica tal como a entendemos hoje, mas apercebeu-se de
que os organismos variam dentro das populaes. de que os filhos tendem a parecer-se com
seus pais c que, ocasionalmente, novas caractersticas surgem de maneira inesperada em
alguns descendentes os trs nicos itens acerca da hereditariedade, necessrios para ti
teoria da sc\co natural. Assim, espera-se que haja um aprimoramento gradual e progres-
sivo numa comunidade reprodutora. mesmo que o ambiente permanea o mesmo durante
milnios. A sc1co atua constantemente no sentido de aperfeioar a raa" (p.3S).
Como se pode observar, a idia de mudana progressiva constitui a base da teoria evolu-
tiva de Darwin, mas, como tal, no explica o problema de como a vida surgiu da matria. Sobre este
assunto falaremos um pouco mais quando tratarmos do humanismo marxista.
Tradicionalmente, o problema da origem do homem estudado sob um trplice aspecto: na
mitologia, na cincia e na teologia. Seguiremos aqui o mesmo esquema.
A origem do homem na mitologia. O mito uma categoria linglistica a que se recorre para
explicar fenmenos que a linguagem comum no pode expressar.
At onde se tem conhecimento da histria, o mito universal; em todas as
civilizaes, desde as mais primitivas s de mais elevado nvel. Aparentemente, ele sempre exis-
tir, porque, como advoga Nicolas Corte, em As origens do homem (1958), sua verdade sua
utilidade. O referido autor justifica a utilidade do mito sob trs pontos essenciais, a saber:
1.0 mito foi o smbolo unificador do glUpo social emcujo seio foi elaborado. Satisfazia-lhe o anseio
intelectual de saber e compreender: servia-lhe de base religio, dando ao grupo uma regra de ao
litrgica e moral, e mantendo, entre todos os seus membros, a unidade dos sentimentos e das emu-
es religiosas. Era em tomo das mesmas narraes, das mesmas divindades e dos mesmos smbo-
los que as almas sentiam-se em comunho. Assim, mantinha o mito uma disciplina social.
2.0 mito alimentava essas emoes religiosas em perodos numerosos e longos, em que,
entre exploses de entusiasmo comum, teriam cado cm perigo de se abaterem e se esgotarem.
3.0 mito renovava e rejuvenescia a confiana religiosa nas grandes manifestaes do gru-
po cm torno de seus deuses. Sustentava a piedade no decurso dessas manifestaes, fazendo,
poderosamente. sentir a todos os participantes das festas religiosas a sua dependncia a um grupo
fratema!. (p.13).
Os mitos podem ser naturalistas, quando tm por finalidade explicar a natureza em suas
manifestaes astronmicas, meteorolgicas c agrcolas; so os chamados "mitos cosmogni-
cas". H tambm os mitos histricos, que servem para ligar um grupo social a seus heris, como,
por exemplo, Rmulo, que se relaciona com a histria de Roma, e Osris, que se liga histria do
Egito. Existem, finalmente, os mitos explicativos ou etiolgicos, que pretendem indicar as causas
dos ritos existentes em dado grupo social, ou as diversas representaes das divindades, inclu-
indo a etimologia dos seus nomes.
Dentre os vrios mitos sobre a origem do homem, o que mais nos interessa aqui, por causa
de sua semelhana com a narrativa do Gnesis, o babilnico contido no poema pico Enuma
elish, no qual se descreve a luta do deus Bel (Oll Marduque) contra o monstro Tiamate.
33
Antropologia Filosfica
o poema Enuma elish era recitado por ocasio das festas de Ano-Novo e trata das origens
do mundo e do homem, temas filosoficamente inseparveis. Segundo esse poema, no incio, era
o caos amorfo. O caos era constitudo de dois princpios: Apsu, que representava as guas do-
ces. e Tiarnate. que representava as guas salgadas. Destes dois princpios se originaram os
deuses, que correspondem, em geral, s potncias csmicas. Os deuses antigos representavam
o universo catico, enquanto os deuses jovens representavam o mundo organizado. Na guerra
entre os deuses, Tiamate representava os deuses mais antigos, e Marduque representava os
deuses mais jovens. O combate entre Tiamate e Marduque assim descrito:
(Marduque) assegurou seu domnio
sobre os deuses acorrentados
e voltou-se para Tiamate,
que ele tinha vencido.
Com sua clava inexorvel,
fendeu-lhe o crnio.
Acalmado, o senhor contemplou
o cadver (de Tiamate);
do monstro partido ele queria
fazer urna obra-prima.
Ele o separou em dois,
como um peixe seco;
estendeu a metade para fonnar
a abbada dos cus,
traou o limite, colocou guardas
e lhes ordenou que no deixassem
sair as guas.
(Citado por Grclot, Homem, quem ?, 1973, p. 30, 31)
Uma vez estabelecido o cu e o mundo divino, levanta-se a questo de como os deuses sero
servidos; cria-se, ento, o homem:
Marduque, ouvindo o apelo dos deuses,
resolveu criar urna obra-prima.
Farei canais de sangue,
formarei uma ossatura
e suscitarei um ser,
cujo nome ser: homem.
Sim, vou criar um ser humano,
um homem!
Que sobre ele recaia o servio
dos deuses, para o bem-estar deles.
(Grelot, p. 31.)
Para realizar essa obra-prima, o homem, Quingu, chefe dos deuses rebeldes, imolado para
fornecer seu sangue ao homem. Portanto, o homem tem em suas veias o sangue de um deus
decado. Eis como o poema descrevc csse ato criativo:
34
o problema antropolgico
Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia,
infligiram-lhe o castigo merecido,
cortando suas veias.
Com o seu sangue.
Eia criou a humanidade,
e lhe imps o servio dos deuses, para libert-los.
Depois que Eia, o sbio,
criou a humanidade
e lhe imps o servio dos deuses,
obra superior a toda inteligncia,
que realizou Nudimude,
graas aos artifcios de Marduque,
Marduque, rei dos deuses, dividiu
O conjunto dos Anunqui
Em deuses de cima e deuses de baixo,
e encarregou Anu
de velar pelas suas ordens..
Nos cus e na terra ele estabeleceu
seiscentos deuses.
(Grelot, p. 31.)
Depois de citar esses trechos do poema, Grelol conclui:
"V-se assim que o homem no somente sdito e escravo dos deuses, aos quais serve,
prestando culto, mas, tambm, o joguete das potncias csmicas, que fazem pesar sobre
ele uma fatalidade inexorvel" (p.3l).
Para uma viso mais ampla da origem do homem na mitologia, recomendamos a leitura do
excelente trabalho de Nicolas Corle, A,' origens do homem (1958), que trata do assunto desde as
culturas pr-literrias at os povos civilizados, como gregos e romanos, passando por povos
como os egpcios, persas, hindus, chineses, celtas e germnicos.
A origem do homem conforme as cincias naturais. Do ponto de vista das cincias natu-
rais, a origem do homem no envolve o problema metafsico. Oque est em foco aqui apenas
o corpo do homem, enquanto matria viva. Mas, de qualquer maneira, o problema vem tona por-
que no se pode separar no homem o corpo da alma. Alm disto, a reduo materialista a p r e s e n ~
ta tambm suas aporias, como indica Lucien Podeur em seu livro Imagem moderna do mundo e
f crist (1977), ao discutir o princpio "o mais no pode vir do menos". Mesmo admitindo que
a natureza disponha de mecanismos atravs dos quais consiga passar do menos ao mais, e da
desordem ordem, a situao se complica quando se trata de nveis mais complexos, sobretudo
quando se fala da presena de uma inteligncia no mundo.
A idia-mestra da concepo cientfica quanto origem do homem , sem dvida, a no-
o de evoluo. As vrias cincias biolgicas - anatomia, embriologia, histo10gia, citolo-
gia, fisiologia, gentica, e a paleontologia e geologia - constituem a base dessa viso cien-
tfica da origem do homem. No dizer de Vandebroek, "quanto melhor se conhece um ser vivo,
mais a noo de evoluo se torna evidente" (Deus, o homem e o universo, 1956, p. 174).
35
Antropologia Filosfica
Vejamos, a seguir, alguns dos principais argumentos derivados das cincias biolgicas em
apoio teoria da evoluo.
o dado fundamental fornecido pela anatomia a unidade de estrutura e de funo, tanto na
escala macroscpica como na microscpica. Essa unidade estrutural, dizem os especialistas, s
pode ser explicada pela existncia de uma origem comum.
Por sua vez, a embriologia confirma no apenas a identidade do desenvolvimento, mas
tambm atesta a unidade da organizao. Falando sobre esse dado da embriologia, principalmente
da organizao quase invisvel que os cientistas observam na transformao de uma clula em
um novo ser, Vandebroek diz:
"Nenhuma disciplina podc dar melhor idiado que a matria viva, ou do que a vida. Cada
fenmeno vital, analisado separadamente, parece no ser mais do que a soma de uma srie
de fenmenos fsicos e qumicos. idnticos queles que se podem provocar nos laborat-
rios. E, no entanto, estes fenmenos desenrolamm-se no quadro de uma organizafto de tal
maneira requintada, que seria anticientfico dizer que a vida no mais do que a soma de
fenmenos fsicos ou qumicos. Na vida, h mais que fsica e qumica" (1956, p. 174).
o argumento mais forte em favor da teoria da evoluo, entretanto, oderivado da paleon-
tologia. O estudo dos fsseis indica que faunas diversas se substituram no decorrer dos tem-
pos, e que os tipos mais desenvolvidos que surgiram depois, todos correspondem a uma ordem
que vai do simples ao complexo.
Esses e outros argumentos, derivados das cincias biolgicas. so, de fato, bastante for-
tes. No entanto, por mais convincentes que sejam, no nos autorizam a falar da evoluo, a no
ser como hiptese de trabalho. Da por que consideramos bastante sensata a declarao de Van-
debroek:
" to grande o nmero dc fatos conhecidos, relativos us consequncias da evoluo, que
alguns autores julgaram poder afirmar que a evoluo se deveria catalogar na categoria dos
fatos. No podemos, porm. partilhar desta opinio - e isto por motivos metodolgicos.
Um fato deve ser demonstrado. Ora, esta demonstrao direta, quanto filiao Jas esp-
cies, impossvel. Por isso, a evoluo no mais do que mera hiptese. alis verificvel
nas suas numerosas consequncias, pelo que no possvel rejeit-Ia, sem pr no seu lugar
outra igualmente plausvel, pelo menos. No nos iludamos. Um bilogo emdiacom mdados
atuais da Cincia no tem, praticamente, o direito de no ser evolucionista, a no ser que
possa explicar os fatos de outra maneira" (1956, p. 177 ).
Como dissemos acima, no temos a pretenso de estudar em profundidade todos os aspec-
tos cientficos implcitos na teoria evolutiva. Nosso objetivo demonstrar que no se pode sim-
plesmente descartar a idia da evoluo e nem mesmo consider-Ia corno algo que se ope ao ato
criador de Deus. Esperamos que o assunto fique mais claro ao fim dos prximos pargrafos em
que trataremos do assunto do ponto de vista da Bblia e da doutrina crist.
A origem do homem na Bblia e na dOlllrina crist. A Bblia no o nico documento escrito
sobre a origem do mundo e do homem. A narrativa do Gnesis apresenta semelhanas, por exem-
36
o problema antropolgico
pIo, com os relatos babilnicos da criao. No j mencionado poema Enuma elish tambm se diz
que o universo se originou da gua, e a afirmao do Gnesis de que as trevas cobriam o oceano
primordial tem semelhana com o Tiamate, ou mar tumultuoso, bem como com o oceano tenebro-
so da cosmologia fencia. Adiviso do cu e da terra da narrativa hebraica corresponde divi-
so do corpo de Tiamate, no poema Enuma elish. Em ambos os documentos, a criao do homem
representa o ponto mximo da criao do universo.
H, entretanto, considervel diferena entre a narrativa hebraica e as outras existentes
sobre o assunto. Por exemplo, nas narrativas babilnicas, os primeiros seres existentes eram
demnios; o deus criador s aparece depois. Na tradio hebraica, Deus o Ser eterno, o Todo-
Poderoso, acima do caos e do mal. A narrativa bblica fala de um nico Deus. que transcende
o universo, ao contrrio do politesmo das outras narrativas da criao. Outro fato singular
sobre a narrativa bblica da criao que ela no representa simples ordenao de matria pre-
existente. O mundo, segundo a f crist, foi feito do nada, pelo ato criador da palavra de Deus.
O fial divino deu origem a tudo o que existe. A idia da [Teatia ex nihilo parece ser peculiar
f crist. verdade que o texto do Gnesis no diz necessariamente que Deus criou do nada.
O nico texto bblico que explicitamente diz isso 2 Macabeus 7:28. onde a piedosa me, exor-
tando o filho a no temer o verdugo, diz: "Peo-te, meu filho. que contemples o cu e a terra,
e vejas tudo o que neles h, e penses que Deus os criou do nada e que tambm o gnero hu-
mano tem a mesma origem".
Falando sobre o assunto, Lorelz, em seu livro Criao e mito (1979), advoga que o proble-
ma aqui o lermo nada, e pergunta: "se, dentro do desenvolvimento, surge algo de completamente
novo, no melhor, talvez, falar de uma transformatioll cratrice (Theilhard de Chardin) ou de
uma Vo!lltion cratrice (Bergson), antes que de uma creatio ex nihilo'!" (p. 87). Diferentes res-
postas foram propostas. O telogo Schmaus, por exemplo, diz:
"A expresso facilmente meio inteligvel 'do nada' no significa que o nada seja o elemento
base do qual Deus formou o mundo. Ela indica, antes, a ausncia de qualquer concausa ex-
trudivina. A lei universal deve ser utribuda, por contedo e realidade, exclusivumente oni-
potncia da divina vontade de amor. No existe nenhuma causa eficiente diferente de Deus
e nenhuma cuusa exemplar ou final do mundo diferente dele" (citado por Loretz, p. RS).
Por essa interpretao, a criao representa uma doao do ser divino. Diz Kremer. tambm
citado por Loretz:
"A obra criadora de Deus significa doao do ser. um ato transcendental e no categorial.
A reulidade diferente de Deus existe, base da divina comunicao do ser, na 'participao'
do ser de Deus. O ser real do mundo diferente do ser de Deus, e por isto dessemelhantc
Dele. Embora em toda a sua profunda dessemclhana, Ele se lhe assemelha, de tal forma que
podemos cham-lo anlogo" (p.89).
O Conclio de Latro (1215) confirmou oficialmente a doutrina dacreatio ex nihilo. No obs-
tante, o problema continua em debate entre os telogos e intrpretes. Baseados em 2 Macabeus
7:28 e tambm em Joo 1:3, alguns alegam ser esta a doutrina bblica da criao. Mas, alegam
outros, o judasmo no conheceu tal doutrina e coube aos cristos formul-Ia.
37
Antropologia Filosfica
Com base em Gnesis 1.1, que diz "No princpio criou Deus o cu e a terra", fala-se de uma
criao de todas as coisas, que afasta a existncia de qualquer matria como condio prvia da
ao divina. Portanto, tudo quanto existe deve o seu ser ao ato criativo de Deus. Mas, no
obstante ser esta a posio mais comum entre os cristos, ainda existem os que advogam que a
criao ou ato criativo de Deus consiste na ordenao do caos primitivo, mesmo admitindo que
caos e criao so antteses absolutas e que tal posio resvala inevitavelmente na tese mate-
rialista da eternidade da matria. Alm disto, a narrativa bblica salienta a dignidade do homem,
quando afirma que ele foi feito imagem c semelhana de Deus e que devia exercer domnio sobre
toda a natureza. O texto do Gnesis 1:26: "E disse Deus: Faamos o homem nossa imagem,
conforme a nossa semelhana; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do cu, sobre
os animais domsticos e sobre toda a terra, e sobre todo rptil que se arrasta sobre a terra" ,
evidentemente, vazado numa linguagem mitolgica. Como observa Loretz, a divindade criadora
convida as divindades circunstantes a assistir formao do homem, que deve ser feito ima-
gem e semelhana da divindade.
A idia da semelhana de imagem entre o homem e Deus tem recebido as mais variadas
interpretaes. O ponto de partida, sem dvida, a interpretao de Agostinho, citada por 1..,0-
retz, nos seguintes termos:
"No se pode aqui csqueccrquc o santo autor, s palavras "segundo anossa imagem" pospe
de imediato "e ele deve dominar os peixes do mar e os pssaros do cu" e todos os outros
animais privados de razo. Da devemos entender claramente que o homem foi criado se-
gundo a imagem de Deus, justamente naquilo em que se diferencia de todos os outros seres
viventes privados de razo. E isto a razo como tal, seja ela denominada intelecto, inte-
ligncia, ou seja expressa por qualquer outro termo mais apropriado. sob este aspecto que
o apstolo diz: "Renovai-vos pela transformao espiritual da vossa mente, e revesti-vos
do homem novo, criado segundo Deus, najustia e santidade da verdade" (Ef 4.23 e Seg.;
CI 3.10), e, com estas palavras, o apstolo indica com suficiente clareza em que coisa o
homem foi criado segundo a imagem de Deus. No se trata de caractersticas fsicas, mas
de uma certa forma inteligvel de intelecto iluminado" (p. 73,74).
Battista Mondin corrobora esse ponto de vista, quando diz:
"Em que ento consiste a Imago Dei? Segundo alguns autores, a semelhana com Deus
consiste na "postura creta" (L. Khlcr); segundo outros, na intcrsubjetividade que, na opi-
nio de Barth, encontra expresso emblemtica na diferenciao sexual entre o homem c a
mulher; no entanto, segundo a maioria dos intrpretes antigos e modernos, a semelhana
resulta da capacidade de o homem agir como Deus; como Deus, cria c ordena o mundo, assim
o cultiva e o governa. Por isto, a semelhana no est em nvel ontolgico, mas dinmico;
no est no ser, mas no agir" (Antropologia teolgica, 1979, p. 93,94).
Segundo H. Gunkel, em seu comentrio do Livro de Gnesis, esta semelhana de imagem se
refere basicamente ao corpo fsico do homem, mesmo que isto no exclua o aspecto espiritual.
Na verdade, a nalTativa bblica se rcfcre apenas semelhana e no especfica nem o corpo nem
O esprito do homem. Da, a concluso dc Loretz de que "a semelhana de imagem entre Deus e
o homem a expresso simblica da semelhana existente entre Deus e Ohomem e da relao dela
decorrentc" (p.75). Neste sentido, advoga o referido autor, no faz sentido dizer que apenas uma
38
o problema antropolgico
parte do homem igual a Deus. "Tudo no homem igual a Deus, ti distino corpo-alma, corpo-
intelecto torna-se suprflua" (p.76). O autor advoga que, se a criao do homem consiste no Dom
da filiao/ amizade, isto significa que ele tem para com Deus uma relao existencial que nenhum
outro ser criado possui. Somente o homem pode ser amigo ou inimigo de Deus. E, na impossibi-
lidade prtica de se afirmar com preciso em que consiste a semelhana entre o homem c Deus,
Loretz conclui:
"Seria, pois, um grande erro interpretar- como freqentemente acontece - a descrio
mitolgica da igualdade de imagem de um ponto de vista cientfico (por exemplo, figu-
ra creta, capacidades intelectuais). De Gnesis I :26 c seguintes, , alm disso, impos-
svel deduzir como e atravs de que o homem se diferencia biologicamente de todos os
demais seres viventes. A famosa posio particular do homem continua, base deste
texto, cientificamente indefinvel, ainda que se identifiquem, ilegitimamente, o mito com
a cincia. Portanto, do mito no se pode tirar absolutamente nada dc concreto (em
sentido histrico-cientfico) a respeito do quando, do como e do onde da criao do
homem" (p. 76).
O estudo mais exaustivo que conhecemos sobre este assunto, em lngua portuguesa, o
trabalho de Battista Mondim, em seu livro Antropologia teolgica, captulo V, onde apresenta
as vrias teorias sobre a imago Dei, na Patrstica e na Escolstica. Recomendamos esse texto ao
leitor interessado no assunto.
Alm disso, a narrativa bblica se diferencia das outras ao ensinar a bondade original de
todas as coisas. Diz o texto: "E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom" (Gn 1.31).
Na verdade, no se pode falar de uma narrativa bblica da criao, pois, a rigor, existem duas
no Livro do Gnesis. Essas duas cosmologias so diferentes e aparentemente contraditrias.
A primeira, contida no primeiro captulo do Livro do Gnesis, chamada de narrativa s a c e r ~
dotaI. Essa cosmologia pressupe um ambiente babilnico e provavelmente foi redigida no s-
culo VI a,C. uma cosmologia aqutica, isto , uma explicao da origem do mundo a partir do
elemento gua. "No comeo no h seno a massa catica das guas primordiais. Deus ergueu
uma abbada slida, o firmamento, que separa as guas inferiores. Em seguida, Ele separa estas
ltimas em oceanos e assim aparece a terra firme. Aterra uma ilhota no meio das guas" (Grelot,
1980, p. 45).
A segunda narrativa, chamada de patriarcal oujavista, contida em Gnesis 2, foi provavel-
mente redigida no sculo X a.C. uma narrativa terrestre, no sentido de atribuir terra a origem
de todas as coisas,
"No comeo existe somente a terra rida e estril, porquc ainda no choveu. Deus faz ento
jorrar gua doce (fontes e rios), assim o homcm c os animais podem aparecer. Aterra um
osis no deserto" (Grelot, 1980, p. 45).
Por que a narrativa sacerdotal, mais recente, foi colocada em primeiro lugar no Livro do
Gnesis? Nicolas Corte apresenta o seguinte argumento:
39
Antropologia Filosfica
"Cousa notvel e, para ns, cheia de ensinamentos, no ter a equipe sacerdotal ~ por-
quanto se trata, provavelmente, no de um autor isolado c que no teria podido fazer
prevalecer sua redao contra a tradio de um povo inteiro -, que editou o Gnesis, se
assim podemos dizer, em uma edio revista e completa, tocado na redao de Moiss,
da qual, certamente, percebia as di versidades. que esta redao er<l sagrada. E tambm
porque os ensinamentos que dela derivavam apresentaram-se idnticos aos que reinavam,
ento, nos meios esclarecidos do povo judeu. Alm disto, no se pode conceber que estes
ensinamentos tenham nascido de um modo brusco. Constituam igualmente uma "tradi-
o", e esta tradio no era menos patriarcal. Foi, sem dvida, para maior clareza. para
muis perfeitamente distinguir a doutrina do povo de Deus de todas as doutrinas estran-
geiras, que. na "reedio" do Gnesis, a narrao sacerdotal foi colocada no incio do
11vro"(1958, p. 90,91).
De um ponto de visla mais crlico, representante da erudio contempornea, Grelot assim
se expressa:
"Ao autor que reuniu estes dois textos, cm uma s narrao, no escapou o seu aspecto
contraditrio. Se ele os justaps, foi porque, para ele, este aspecto 'cientfico' no era mais
do que um acessrio, um modo de se exprimir" (1989, p. 45).
E, citando Lohfink, conclui:
"Sentir-se-iam perturbados os autores bblicos se vissem que ns substitumos esses
esquemas pelo modelo muito mais aceitvel da formao evolutiva do mundo. da vida,
do homem, preparado pelas cincias da natureza? No creio. A prpria Bblia, justa-
pondo tranqUilamente modelos cosmognicas diferentes, mostra que eles so relativos.
As cosmogonias das narraes da criao no pertencem mensagem da Bblia; so
apenas um meio sem o qual essa mensagem dificilmente poderia ser enunciada" (1980,
p.45).
Em geral, podemos dizerquc a erudio contempornea tende a afirmar que as nan'ativas b-
blicas da criao do homem e do universo so mticas. Por exemplo, Loretz afirma:
"Veritica-se com clareza que, nos dias atuais, no se pode mais levar cm considerao o
homem primordial das narrativas bblicas, como indivduo ou como grupo, no sentido his-
trico-cientfico. O homem primordial da Bblia - seja ele indivduo ou grupo - pertence
esfera do mito" (1979, p. 25).
Conclui-se, portanto, que as narrativas bblicas das origens do mundo e do homem no so
interpretaes cientficas desses fatos. So o rcllexo de uma concepo religiosa que, em ltima
anlise, revela fatos essenciais sobre a existncia do mundo. Forar uma interpretao cientfica
dessas narrativas seria de efeitos desastrosos.
A doutrina crist da criao do homem, principalmente do ponto de vista da Igreja Catlica,
tem sido definida atravs de Credos e de outros documentos eclesisticos.
Uma leitura dos Pais da Igreja revela que seus principais pontos de vista, sobre a criao do
homem e do universo, podem ser resumidos no seguinte:
40
o problema antropolgico
"Foi Deus quem tudo criou. Esta criao foi feita ex nihilo, isto , sem matria alguma
preexistente. Somente Deus pode criar. Tal ao ultrapassa os poderes de toda a criatura,
seja ela qual for. Deus cria de modo inteiramente livre e segundo as "idius" que em si mesmo
concebe. Cria por pura bondade, isto , por amor e para manifestar Sllas perfeies. No
eterno o mundo. Teve um princpio. No Deus o autor do mal. A criao produziu,
primeiramente, espritos imateriais. os anjos, que so superiores ao homem, mas que, pelo
uso da liberdade, dividiram-se cm bons e maus, anjos ou demnios.
o homem a principal criatura no mundo visvel, sendo fonnado de um corpo e ele lima alma
imaterial e imortal. Foi o homem criado diretamente por Deus, sem intermedirio. Proce-
dem todos os homens de um Sl1 casal original. Nossos primeiros pais foram criados em
estudo sobrenatural. Eram dotados de justia original, isentos de concupiscncia e da ne-
cessidade de morrer. Foi peta sua desobedincia que o homem caiu no estado atual de de-
cadncia em que se encontra, c do qual s a graa de Cristo pode tir-lo" (Corte, 1958, p.
107, laR).
A posio fundamental da Igreja Catlica, apesar das diferentes interpretaes, principal-
mente depois do Conclio Vaticano II, tem sido a teoria das razes seminais, de Agostinho, Bis-
po de Hipona, expressa nas palavras seguintes:
"Assim como em um gro encontra-se, ao mesmo tempo, de maneira invisveL tudo quan-
to deve surgir na rvore, assim tambm deve-se conceber o mundo, quando Deus. ao mes-
mo tempo, tudo criou, no senti elo ele que tudo j trazia em si mesmo o que apareceu, quan-
do o dia surgiu. E no somente o cu e a terra, como o sol, a lua c as estrelas, eujas espcies
so arrastadas em movimentos circulares, mas tambm a terra c os abismos, que sofrem mo-
vimentos irregulares, constituindo a parte inferior do mundo. Igualmente, porm, tuelo
quanto a gua e a terra a seguir produziram, j em potncia o possuam, e de moela causal
- polelllialiter et causaliler - antes que tivesse aparecido, segundo as etupas dos tempos,
tudo o que conhecemos nestas obras, em cujo seio no eessu DeliS de agir" (citado por Cor-
te, 19S8,p.109, 110).
Mais recenlemente, duas encclicas expressam a posio da Igreja sobre o assunto. Na
Encclica Divino ajjlante Spiritu, de 30 de setembro de 1943, Pio XII chama a ateno para o
gnero literrio da narrativa bblica e reconhece os problemas lingsticos prprios do contexto
oriental em que foi produzida. Perante a Academia Pontifcia das Cincias, o papa reafirmou a
posio da Igreja quanto a trs pontos fundamentais:
I.Sobre a espiritualidade da alma e, consequentemente, a superioridade do homem em rela-
o aos simples animais;
2.Sobre o corpo da primeira mulher como tendo vindo do corpo do primeiro homem, e
3.Sobre a impossibilidade de o pai e ascendente de um homem no ser Lima criatura huma-
na, isto , a impossibilidade do primeiro homem ter sido filho de um animal, e verdadeiramente
gerado por ele.
Na Encclica Humal1i generis, de 12 de agosto de 1950, Pio XII reconhece que os primeiros
captulos do Livro do Gnesis no so histricos, no senlido restrito da palavra. Reconhece que
41
Antropologia Filosfica
os trs primeiros captulos do Gnesis nos do urna viso popular das origens do mundo e da raa
humana. Nesse documento, o papa distingue fatos de hipteses, recomendando que as hipte-
ses, por mais plausveis que sejam, devem ser estudadas com cautela. Se opostas Revelao,
devem ser rejeitadas. A Humani generis ensina que a alma humana criao imediata de Deus,
rejeitando assim a idia evolutiva de uma passagem do menos ao mais, ou seja, a idia de que o
espiritual pudesse resultar apenas de urna ordenao do material ou que dele fosse somente um
estgio mais complexo. Pio XII condena tambm o poligenisrno, como algo que contraria a Re-
velao, aparentemente tendo em vista a posio de Teilhard de Chardin, sem dvida alguma seu
partidrio, corno afirma o texto de Ofenmeno humano, citado por Corte, 1958, p. 127:
"Eis por que Cincia, como taL o problema do "monogenismo", no sentido estrito - n50
digo "monofiletismo" - parece "escapar" por sua prpria natureza. Nas profundezas do
tempo em que se coloca a "hominizao", a presena e os movimentos de um casal nico
so positivamente inucessvel e indecifrveis ao nosso olhar direto. Poder-se-ia. assim, di-
zer, que h lugar, "nesse intervalo", para tudo quanto vier exigir uma fonte de conhecimen-
to fora do experimental".
No h dvida de que, no sculo XIX, o maior desafio para a f crist foi a teoria da evolu-
o. Vejamos, a seguir, segundo Lucien Podeur (1977), qual o ponto central do problema e quais
as reaes do pensamento cristo.
As teorias da evoluo afirmam que a vida provm da matria. Isto parece ser contrrio
Bblia, da mesma forma que a teoria heliocntrica pareceu cristandade ao tempo em que foi
anunciada. Conforme a crena tradicional crist, as espcies foram criadas cada uma separada-
mente e de uma s vez. As teorias da evoluo, por sua vez, ensinavam que as espcies esto
sujeitas a mutaes e que se transformam ao longo dos tempos. Para o ensino cristo, o homem
representa a coroa da criao e regido por leis somente aplicveis a ele. Para o evolucionismo,
o homem nada mais do que um animal que alcanou um grau mais elevado de desenvolvimen-
to. Existe, portanto, entre o homem c os outros animais, um grau perfeitamente identificvel de
continuidade. Segundo Freud, a teoria da evoluo representou a "segunda humilhao" a que
o homem teve que se submeter. Aprirneira foi a revoluo copernicana, que tirou a Terra do centro
do universo, levando consigo o prprio homem. A terceira humilhao foi, sem dvida, a desco-
berta dos fatores inconscientes do comporlamento humano, que ameaou a ltima cidadela do
homem como espcie sui generis, a saber. sua racionalidade. Para o cristianismo, a vida pertence
ao domnio do sagrado. Portanto, atribuir-lhe origem puramente material, como o faz o evoluci-
onismo, seria um sacrilgio.
oponto central do problema, porm, o que se refere finalidade do mundo. O mundo no
obra do acaso, advoga o cristo. A vida mais do que a simples organizao da matria. O
animal-mquina de Descartes um conceito ingnuo. Mas, a bem da verdade, no existe posse
absoluta da verdade, nem de um lado nem de outro. Da por que, diz Podeur, houve uma espcie
de acordo tcito entre os crentes e os ateus:
"Se a cincia conseguir explicar intt:gralrnentc a vida, de sua origem aos nossos dias, apoi-
ando-se unicamente nas foras da matria, descobertas pelos seus mtodos, o atesmo se
tornar a hiptese mais plausvel, e Deus no ter mais nada a fazerem nosso mundo; mas,
42
o problema antropolgico
enquanto a cincia se mostrar incapaz neste domnio a hiptese Deus conservar toda a
sua fora" (1977, p. 78).
Diante desse problema, posto que nenhum dos lados pode proferir a ltima palavra, Podeur
aponta duas reaes crists.
A primeira reao consiste em analisar os resultados obtidos pela cincia, considerando seu
carter insuficiente e incompleto. Por exemplo, as explicaes do desenvolvimento do embrio,
a partir do vulo fecundado, e a origem da vida a partir da matria inorgnica, nunca foram for-
muladas de modo a no deixar dvidas. As teorias de Haeckel, por exemplo, no se baseavam em
hipteses cientificamente testveis, mas em sua tendenciosa imaginao. As experincias de
Pasteur mostraram ao mundo cientfico que no existe gerao espontnea. Partindo dessas falhas,
diz Podeur, "reafirma-se a existncia de uma finalidade irredutvel aos mecanismos puramente ma-
teriais, e a necessidade de uma causa inteligente e agindo em vista de uma finalidade" (p. 79). Acon-
tece, porm, que, luz de novos conhecimentos da modema biologia, j no se pode falar com
tanta segurana sobre finalidade estabelecida por Deus ou por um princpio vital (ver, por exem-
plo, a posio de Jacques Monod em O acaso e a necessidade, que ser mencionada no contex-
to da teoria de Teilhard de Chardin). Da por que essa posio hoje no um forte argumento usado
pelo cristo.
Um segundo tipo de reao crist a esse problema o seguinte:
"O aparecimento da vida e a evoluo so passagens do "menos" para o "mais". Ora, o
"mais", como tal, no pode vir do "menos". Indcpcndentemente, portanto, do nvel da
explicao cientfica ~ mesmo supondo-a plenamente acabada em sua ordem -, nceess-
rio colocar-se em outro nvel: no nvel metafsico (opondo-se ao nvcl simplesmente em-
prico, que o da cincia) ou nvel do ser (em oposio ao nvel dos fenmenos). Neste nvel
fundamental, a ao de Deus exigida: ela torna inteligvel a passagem do menos ao mais"
(Podeur. p. 79, 80).
Essa forma de reao expressa diferentemente por vrios autores. Podeur cita, por exem-
plo, D. d'Hu/sl, quando diz: "No negamos o que h de profundo na questo da evoluo e nos
sentimos mesmo levados a faz-Ia nossa. Sim, com Deus na origem do ser, Deus no termo do pro-
cesso, Deus nos flancos da coluna, para dirigi-la c sustentar-lhe os movimentos" (p.SO). Men-
ciona, tambm, Bergounioux, que advoga que Deus dirige a evoluo, e acrescenta:
"De fato, dado ao nmero incalcul{lvcl das circunstncias necessrias para este harmonio-
so desenvolvimento da aventura biolgica, necessrio que intervenha um "antiaeaso", um
;'clcmento furtivo", para libertar energias at ento desconhecidas. Com esta afirmao,
passamos para a intcrpretao filosfica, mas parece-nos que a realidade cientfica, longe
dc se opor a cste passo, clama por ele" (p. gO).
Por outro lado, Jacques Maritain, em consonncia com o princpio instrumentalista defen-
dido por pensadores medievais, afirma:
;;Se (. .. ) considerando a gnese hipottica dos diversos filos em si mesmos, voltarmos nossa
ateno para a ao transccndente da causa primeira, podemos scguramente conceber que.
43
Antropologia Filosfica
principalmente nas idades de formao, nas quais o estado do mundo se encontrava no ponto
mximo de plasticidade e nas quais o influxo divino, passando pela natureza, terminava a
obra da criao, este impulso divino. que ativa para a existncia. penetrando os scres cri-
ados e usando-os como causas instrumentais. pde e pode ainda sobrelevar as energias vitais,
que procedem da forma no organismo animado por ela, de modo a produzir na matria-
quero dizer. nas clulas germin:.ltiv:.ls - disposies superiores s capacidades especficas
do organismo em questo, de modo que no momento da gerao aparea uma nova forma
suhstanciaL cspeci ricamente diferente e superior quanto ao ser. deduzida da matria. assim
mais perfeitamente disposta" (citado por Podeur, p. 80. 81).
Finalmente, Podcur apresenta nesse contexto a posio de Karl Rahner. considerado o maior
telogo catlico contemporneo. Usando uma linguagem tipicamente hegeliana, Rahner fala do
devir. no caso da evoluo. como "ultrapassagem de si mesmo, na qual o ser em devir se tOrna
mais do que era, sem que, no entanto, estc mais seja por si um elemento simplesmente acrescen-
tado do exlerior - o que destruiria o conceito de um autntico devir de carler natural". O ser
absoluto a causa e o princpio primordial desse movimento do ser em devir. Portanto, conclui
Podeur. "Dcus no age do exterior sobre a evoluo; isto no mais o puro esquema instrumen-
talista, e concede-se o mximo realidade em devir. Mas tambm a parece indispensvel o recurso
a outra coisa que o prprio real" (p. 81). Em face dos problemas levantados pelo mundo moder-
no, o cristo tem duas larcfas a realizar: aceitar a consistncia do real material e reencontrar o
sentido da "presena criadora" no munJo e no homem.
Comparando as concluses da histria bblica e as da teoria da evoluo que em si mesmas
no se contradizem, Rahner diz:
"Reduzindo o problema cm questo a um denominador forma\' podemos dizer o seguinte:
o comeo da humanid:.lde, segundo a antropologia cientfica, um comeo que estabelece
um vazio precrio como ponto ntimo de uma curva ascendente; j o comeo do homem.
segundo a Bblia e a Igreja. UIll comeo que estabelece uma "plenitude", a partir da qual
a "curva da evoluo" prossegue, antes, em linha descendente. O comeo "cientfico" do
homem um incio, do qual a evoluo cada vez mais se afasta:j o comeo "bblico" da
humanidade um incio que deve ser reencontrado no decurso da Histria. Para as cinci-
as, o Paraso fica relativamente no fim da "evoluo"; j para a Bblia, no comeo da
"Histria" que ele se situa" (/\ amropologia: problema teolgico. 1968, p. 91).
At aqui falamos da posio do cristianismo em face das teorias quanto criao do mun-
do e do homcm, mencionando. de modo cspeciaL a postura da Igreja Catlica. O que dizer. ento.
da posio do protestantismo?
Diante desse problema. muito difcil encontrar uma posio caracterstica do Protestantis-
mo. Podemos dizer que, em linhas gerais, () Protestantismo apresenta trs posies tpicas. A
posio fundamentalista ultracOllservadora condena qualquer idia de evoluo e adota lima po-
sio criacionista, normalmente caracterizada por uma interpretao literal da Bblia. Por outro
lado, existe uma corrente liberal do Protestantismo que vai ao outro extremo transformando tudo
em mito e revelando uma tendncia relativista em .'ma interpretao da Bblia. Finalmente, existe
uma posio intermediria, que advoga quc cincia e f pertencem a domnios diferentes e que
no so necessariamente opostas entre si. possvel conviver com a idia do ato criador de DeliS
44
o problema antropolgico
submetido a um processo evolutivo. A idia da evoluo aparentemente no contraria a f cris-
t, desde quc dela no se afaste o ato criador de Deus.
oproblema filosfico por excelncia, colocado pela idia da evoluo, saber como a vida
surgiu da matria e como da matria teria surgido o esprito. Este , de fato, um problema filos-
fico c, como tal, no encontra resposta definitiva nem na religio nem na cincia.
o problema da evoluo, no contexto do pensamento filosfico, pode ser estudado luz de
duas posies clssicas: Herclito c Parmnides. O primeiro, como se sabe, o defensor da idia
do devir. O segundo defende a tese de que o ser uno e imutvel. Se transferirmos o problema
para o campo biolgico, encontraremos semelhanas com os pontos de vista que defendem a
fixidez das espcies, bem como com aqueles que defendem a evoluo atravs de mutaes. Em
qualquer dos casos, existem inevitveis aporias.
Do ponto de vista cultural, a evoluo praticamente ilimitada. O que dizer, ento, da evo-
luo biolgica? Ao leitor interessado, recomendamos a leitura do sexto captulo do livro de Haaf,
mencionado no incio desta subdiviso de captulo, que trata especificamente do devir do homem.
1.3.3 A relao corpo-alma
o problema da relao corpo-alma tem sido uma constante preocupao para filsofos e
telogos atravs dos sculos. Nunca existiu e, aparentemente, nunca existir uma soluo uni-
versalmcnte vlida para o problema. Somente atravs de uma equao pessoal o indivduo po-
der encontrar uma resposta satisfatria.
Antes, porm, de discutir o problema da relao corpo-alma necessrio que se fale da
existncia e natureza da alma. Existe a alma'? O que a alma? Aresposta a estas perguntas tem sido
procurada na filosofia, na teologia e na psicologia racional.
A existncia da alma algo que no pode ser empiricamente demonstrado. Por outro lado,
simplesmente negar a sua existncia deixa muitas questes em aberto. A alma uma espcie de
constructo terico, ou seja, de algo cuja natureza ignoramos, porm, que necessrio como ex-
plicao daquilo que se conhece ou observa. Aparentemente, a idia da alma surgiu no homem
corno resultado de sua observao das manifestaes vitais, tanto no reino animal, como parti-
cularmente cm si mesmo.
O problema da existncia da alma no algo que tenha surgido num contexto de concepes
religiosas, no sentido estrito da palavra. Grandes filsofos. como Plato e Aristteles, tratam do
assunto como algo admitido, uma vez quc falam de sua natureza e funo, e no se pode falar da
natureza e funo daquilo que no existe.
Para Plato, a alma um ser eterno, de natureza espiritual, cuja funo principal conhecer
o mundo ideal e transcendental. Pelo fato de se encontrar unida a um corpo que tem funes sen-
sitivas e vegetativas, a alma racional desempenha essas funes atravs de outras duas almas:
a alma irascvel ou mpeto, que reside no peito; a alma concupiscvel ou apetite, que reside no
45
Antropologia Filosfica
abdome. Essas duas almas so subordinadas alma racional. Essa alma humana, de natureza
espiritual e inteligvel, sofreu uma espcie de queda original, causada por um mal radical (peca-
do, na concepo religiosa), e se uniu ao corpo, que uma espcie de crcere do qual deve liber-
tar-se. Na vida presente, essa libertao gradual se opera atravs da filosofia, que a separao
espiritual entre a alma e o corpo, e se realiza plenamente na morte, quando se separa definitiva-
mente do corpo. O corpo no oferece ii alma a condio adequada para a plena realizao de suas
verdadeiras funes.
"( ... ) a alma est no corpo como um crcere, o intelecto impedido pelo sentido na viso
das idias, que devem ser trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a
respeito das tendncias. E, apenas mediante uma disciplina asctica do corpo, que o mor-
tifica inteiramente, c medmtc a morte libertadora, que desvencilha para sempre a alma do
corpo o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplao intuitiva do mundo ide-
al" (Padovani, Histria daJilosojia, 1990, p. 118).
Por sua vez, a psicologia de Aristteles se prende ao mundo dos seres vivos, que tm
a alma corno princpio que o distingue do mundo inorgnico. O ser vivo possu internamen-
te o princpio de sua atividade, que a alma, forma o corpo. "A caracterstica essencial e di-
ferencial da vida da planta, que tem por princpio a alma vegetativa, a nutrio e a repro-
duo. Acaracterstica da vida animal, que tem por princpio a alma sensiliva, precisamen-
te a sensibilidade e a locomoo. Enfim, a caracterstica da vida do homem, que tem por
princpio a alma racional, o pensamento" (P3dovani, 1990, p. 130) . Discordando, portanto,
do seu mestre Plato, Aristteles advoga que em todo ser vivo existe apenas uma alma, que
exerce diferentes funes. Alega, outrossim, que o corpo no um empecilho, mas um ins-
trumento da alma racional, que a forma do corpo. Padovani resume a posio de Aristte-
les no seguinte pargrafo:
"O homem uma unidade substancial de alma c de corpo, em que a primcira cumpre as
funcs de forma em relao matria, que constituda pelo segundo. O que caracteriza
a alma humana a racionalidade, a inteligncia, o pensamento, pelo que ela esprito. Mas
a alma humana desempenha tambm as funcs da alma sensiti va e vegetativa, sendo su-
perior a estas. Assim, a alma humana, sendo embora urna e nica, tcm vrias faculdades
funes porquanto se manifcsta efctivamente com atos diversos. As faculdades fundamen-
tais do esprito humano so duas: terica c prtica, cognoscitiva e operativa, contcmpla-
tiva e ativa. Cada uma destas, pois, se desdobra cm dois graus, sensitivo e inlelectivo, se
tiver presente que o homem um animal racional, qucr dizer, no um esprito puro, mas
um esprito que anima um corpo animal" (p. 130).
Esses dois representantes mximos do pensamento filosfico falam no apenas da existn-
cia da alma, mas tambm de sua natureza e relao com o corpo. Mas, evidente que muitos
outros pensadores se pronunciaram sobre o assunto. O que faremos, a seguir, apresentar uma
viso panormica dos diferentes aspectos do problema, tomando por base o erudito trabalho de
Battista Mondin, em seu excelente livro Introduo filosofia, no captulo que trata do proble-
ma antropolgico, c, naturalmente, outras fontes bibliogrficas disponveis.
O problema fundamental, aqui, a questo da substancialidade da alma. Para os filsofos
de tendncia materialista, a alma no uma substncia.
46
o problema antropolgico
"O que chamamos de alma", dizcm eles, " apenas um epifenmeno da corporeidade. Anica
substncia que existe a matria. da matriu que se desenvolve tudo o que existe no mundo,
inclusive o homem. Portanto. at o conjunto daqueles aspectos superiores do homem, os
quais sUo explicados comumente postuhllldo-se a existncia da alma, no fruto de um
esprito que habitu a mquina, mas sim o resultado mais ou mcnos casual de um alto grau
de evoluo da matria" (Mondin, 19R I, p. 59).
Em seu erudito trabalho, A antropologia: problema teolgico, Karl Rahner indica vrias
aporias reveladas na tese materialista. Diz ele:
"Quando um materialista diz que s existe a matria, deve-se-Ihe perguntar o que ele en-
tende, ento, por esta coisa que ele pretende seja a nica realidade. Reconhecer-se-il que,
dentro do sistema materialista, nenhuma afirmao, da primeira ltimu, tem sentido v-
lido. As ufirmaes cientficas s podem estabelecer nexos funcionais entre coisas diversas,
segundo a frmula "se Aexiste, segue-se B". Se "tudo" matria, cientificamente impos-
svel afirmar-se e explicar-se o que seja este "tudo" c, por conseguinte, o que seja a prpria
matria. Efetivamente, em termos de definio, no existe nada como ponto de partida para
se determinar o que venha a ser este "tudo" ou sua funo em relaUo a outra coisa qualquer"
(p.45).
Prosseguindo em seu raciocnio, Rahner afirma que:
A frase "s existe a matria" (se lhe quisermos atribuir algum sentido), pode apenas expri-
mir o princpio ou postulado heurstico de que uma srie absoluta, totalmente irredutvel,
completamente dispurata , de coisas que, de um lado. no tm nenhum denominador comum
e, do outro, pretendem ser simultaneamente objeto do conhecimento humano, no passa
de uma afirmao apriorstica, lgica e praticamente impossvel, um mero absurdo meta-
fsico. Neste sentido. aquela sentena certa. Mas. ento "matria". sob o ponto de vista
simplesmente terminolgico, definitrio e apriorstico, se identifica com a idia de "ser".
Admitida essa identificao, a proposio deixa de ser falsa. pois. neste caso. no se afir-
ma seno que "s h coisas que existam" ou que sobre tudo o quc cogitvel podem fazer-
se pelo menos algumas afirmaes gerais, vlidas para todo o existente" (p.46).
Como vimos, essa posio materialista tambm negada por Plato. quando afIflna que a alma
uma substncia de natureza espiritual, incorruptvel e imortal. Para ele, a alma que constitui
a natureza essencial do homem. Podemos dizer que o homem a alma. O corpo apenas a priso
em que a alma cumpre uma sentena. Do corpo, a alma se livrar um diae realizar plenamente suas
funes.
Pensadores como Agostinho, Descartes e Leibniz advogam que a alma uma substncia,
e que sua substancialidade se identifica com a do homem. O argumento desses pensadores se
baseia numa razo de ordem moral e em outra de ordem gnosiolgica. A razo de ordem moral se
expressa pela aspirao do homem a uma vida de perfeita liberdade, no-atingvel neste mundo.
A razo de ordem gnosiolgica se manifesta no desejo que o homem tem de possuir verdades
absolutas, que ele sabe ser inatingveis.
Toms de Aquino e seus seguidores, mais na linha do pensamento aristotlico, advogam que
a alma por si s no tem condies de desenvolver todas as atividades tpicas do homem, como
47
Antropologia Filosfica
sentir, falar, trabalhar etc. Mas, como dotada de algumas atividades prprias, como desejar li-
vrcmente,julgar e raciocinar, esses pensadores argumentam que a alma possui um ato prprio de
ser e, portanto, uma substncia completa na ordem da existncia, mesmo que no o seja na ordem
da especificao. A alma s consegue sua prpria especificao, na escala dos seres, quando se
une ao corpo.
Uma vez discutida a questo da existncia da alma e sua substancialidade, estamos em C011-
de dizer algo sobre sua origem. evidente que, sobre este assunto, tambm no existe una-
nimidade de pontos de vista. Arigor, ningum possui uma resposta inteiramente adequada, a no
ser dentro do esquema da equao pessoal de cada um. Mondin (1981) apresenta algumas das
solues propostas, cada uma delas, como dissemos. atendendo apenas aos que se posicionam
a seu favor.
A posio clssica apresentada por Mondin o traducionismo, segundo o qual a alma dos
filhos se origina dos pais, da mesma forma que o corpo. Esta foi a posio defendida por Tertu-
liano e por Agostinho, para tornar inteligvel a transmisso do chamado pecado original.
Outra proposta de quanto origem da alma a que diz que ela representa uma ema-
nao do Ser Supremo. Agora, o que vem a ser este Ser Supremo que constitui parte do proble-
ma. Para os esticos, a alma emana do logos, princpio universal da criao. Para Platino c para
os neoplatnicos em geral, a alma provm do Uno, o Absoluto, identificado com Deus, de quem
tudo se deriva. Para os idealistas, a alma se origina do Esprito Absoluto, conceito difcil de ope-
racionalizar.
Plato, Filo de Alexandria e Orgenes, di reta ou indiretamente, indicam acreditar na criao
simultnea de todas as almas, antes ou no prprio momento da origem do mundo. corno se Deus
houvesse criado todas as almas e deixado, por assim dizer, um "estoque'" chamando cada uma
por vez, medida que os seres humanos fossem formados.
Outros acreditam na criao individual e diretade cada alma, no momento mesmo da forma-
o do corpo. Esta a posio mais comumente aceita por pensadores cristos e tambm defen-
dida por filsofos como Descartes, Locke e Leibniz.
Para os materialistas, como vimos, a alma nada mais do que a evoluo da matria; a resul-
tante de um crescente grau de complexidade da prpria matria e que ocorre por causa aleatria.
Uma vez colocadas s questes sobre a existncia da alma, slla origem e natureza, estamos
agora em condies de tratar do tema proposto no subttulo do captulo, isto , da relao cor-
po-alma.
Como dissemos, o problema da relao entre o corpo e a alma tem ocupado ti mente de fi-
lsofos e de telogos atravs dos sculos. O problema tem sido estudado tambm no campo da
psicologia, no tanto em termos de corpo-alma, mas do seu equivalente corpo-mente, ou seja, da
relao entre as funes fsicas e as psquicas ou mentais. No campo filosfico, duas teorias
clssicas se apresentam como soluo do problema: o dualismo interacionista de Descartes e o
paralelismo psicofsico de Leibniz.
48
o problema antropolgico
Para Descartes, o homem constitudo de duas substncias autnomas e heterogneas: res
extensa (corpo material) e res cogitans (alma ou mente). Pam ele. aalmae o corpo. apesar de serem
constitudos de substncias diferentes. apresentam uma misteriosa interao. isto . corpo e alma
se infiuenciam mutuamente. Aparentemente, Descartes sugeriu que a glndula pineal, mais co-
mumenle chamada de hipfise ou pituitria. seria esse ponto crucial de encontro Oll de interao
entre o corpo c a alma.
Mencionamos aqui o dualismo interacionista de Descartes apenas como dado histrico.
pois. na realidade, ele no tem valor cientfico. no contexto das cincias experimentais. As cin-
cias psicolgicas, em sua verso modema. tm do homem uma concepo unitria. holstica. Nada
de dualismos e de dicotomias. O homem um organismo e age como um todo unificado. Quando
seccionamos o comportamento humano ou dividimos o homem em segmentos para estudo par-
tiClIlar de determinados fenmenos. devemos conservar em mente que o fazemos apenas por ques-
to didtica e de natureza prtica. No existe um ato fsico e um ato psicolgico como entidades
isoladas. No comportamento do homem esto presentes os vrios aspectos que o constituem e
que o caracterizam como pessoa e como indivduo. No complexo campo da filosofia das cinci-
as. de nosso conhecimento. no mundo contemporneo, uma das poucas vozes a defender o
dualismo interacionista a do grande epistemlogo Karl Popper. No artigo "A linguagem e o
problema das relaes entre corpo e mente: uma reafirmao do interacionismo", em Conjectu-
ras e refutaes (1972), apesar de no se referir especificamente a uma alma substancial, o autor
se declara favorvel ao interacionismo e afirma textualmente: "No h razo (exceto por um de-
terminismo fsico enneo) para no haver interao entre estados fsicos e mentais. (O velho ar-
gumento de que coisas to diferentes no podiam interagir era baseado numa teoria da causa-
lidade h muito superada)" (p. 328). Por outro lado, FrijofCapra, baseado em dados recentes da
fsica quntica. que o levam a lima viso sistmica da vida e do mundo, no terceiro captulo de
seu li vro OpO/1to de mutao faz lima crtica extremamente lcida concepo dualista do mundo.
contida na viso cartesiana.
A segunda tcoria clssica sobre a relao corpo-alma o paralelismo psicofsico de Leibniz.
Leibniz rejeitou o dualismo interacionista de Descartes e sugeriu a hiptese de um parale-
lismo psicofsico, baseado na concepo filosfica da harmonia preestabelecida. que pode ser
interpretada corno finalismo ou concepo teleolgica do universo.
Conforme o paralelismo psicofsico de Leibniz, o homem . tambm, como no dualismo in-
teracionista de Descartes, composto de duas substncias heterogneas. A diferena que, ao
contrrio da tese de Descartes, que admitia a existncia de um ponto de interao entre res co-
gi/ans e res extensa, a tese de Leibniz que essas duas substncias independentes agem para-
lelamente e so completamente autnomas. De acordo com essa teoria, cada unidade da realida-
de age independentemente, mas criada por Deus para agir em harmonia preestabelecida com as
outras unidades da realidade. Ao observador menos avisado, essas unidades parecem interagir,
mas. na realidade, no interagem; elas funcionam paralela e independentemente.
No campo da psicologia, conforme o erudito trabalho de Boring. A hislory ofexperimental
psychology (1975). o paralelismo psicofsico pressupe que o crebro parte do mundo fsico
e que o mundo fsico um sistema fechado. Fenmenos mentais formam um segundo universo
49
Antropologia Filosfica
num dualismo, e estes fenmenos mentais coincidem com os fenmenos cerebrais, ou lhe so pa-
ralelos. Este foi o ponto de vista adotado por Hartley, Wundt e Mller, cujo primeiro axioma
psicofsico diz: "A base de todo estado de conscincia um processo material, um processo psi-
cofsico, por assim dizer, a cuja ocorrncia a presena de um estado de conscincia se junta"
(citado por Boring, p. 665).
Outra interpretao encontrada no campo da psicologia a teoria do duplo aspecto. Como
o nome sugere, esta teoria afirma que a mente e o crebro constituem uma nica realidade fun-
damentai e que a fisiologia v um aspecto e a psicologia, outro. Segundo Boring, uma ilustrao
disso seria o caso da hemiopia, em que o indivduo declara no poder ver nada naquilo que
normalmente seria a metade direita do seu campo visual. Isto constitui um fato psicolgico que
apresenta tambm o aspecto neuronal, como evidencia o exame post-mortem do lobo occipital
esquerdo do indivduo. Pergunta, ento, Boring: no poderamos dizer que estas observaes
representam diferentes aspectos do mesmo fato, que o indi vduo em certo sentido v que seu lobo
occipital esquerdo no est funcionando? Esse tipo de teoria, conclui Boring, representa uma
tendncia ao operacionalismo; ao mesmo tempo um monismo metafsico e um dualismo epis-
temolgico.
Existe, finalmente, a teoria da identidade, que, como o nome sugere, no faz distino entre
mente e crebro. Esta uma teoria monista, que faz da introspeco seu mtodo por excelncia.
Ao leitor interessado, recomendamos o estudo de dois importantes artigos sobre a teoria da
identidade, um expondo a teoria, e outro a ela fazendo restries. O primeiro Anellroidentity
theory ofmind, escrito por Stephen Pepper, da Universidade da Califrnia, e outro Doubts aboUl
the identity theory, escrito por Richard Brandt, do Swarthmore College, ambos encontrados no
livro Dimellsions ofmind, editado por Sidney Hook (1961).
Com exceo da teoria da identidade, todas as outras, de alguma forma, admitem que corpo
e alma so diferentes substncias. Persiste, ento, a pergunta: qual a relao entre o corpo e a alma,
ou qual a natureza dessa relao? Battista Mondin (1981) apresenta duas respostas clssicas:
unio acidental e unio substancial.
Pensadores como Pitgoras, Plato, Agostinho, Descartes e Leibniz advogam que a rela-
o alma-corpo acidental. Corpo e alma so substncias inteiramente estruturadas, dotadas
de um ato prprio de ser. So substncias absolutamente heterogneas e sem qualquer liga-
o profunda e duradoura entre si. Plato, que, como vimos, diz que o corpo urna priso da
alma, compara a relao entre o timoneiro e o navio, ou entre o cavaleiro e o cavalo. Essa
concepo platnica permeia os escritos do apstolo Paulo, como se pode ver principalmente
em sua Epstola aos Romanos.
Por outro lado, Aristteles, Toms de Aquino e seus seguidores advogam que existe uma
unio substancial entre corpo e alma. Battista Mondin, em abono tese aristotlico-tomista da
unio substancial, diz:
"A unio entre alma e corpo uma unio profunda, substancial, duradoura, pois no o
encontro entre duas substncias j dotadas de um ser autnomo antes de se encontrarem,
mas sim de dois elementos substanciais, dos quais, ao menos um, o corpo, no dispe de
50
o problema antropolgico
um ato de ser prprio. Asua unio semelhante da matria com a forma substancial: dois
elementos que se compenetram do comeo ao fim, de modo a formar uma s, nica subs-
tncia" (1981, p. 62).
Alm dessas duas posies tradicionais, Mondin apresenta tambm a teoria da identifica-
o a que j nos referimos. Essa a tese materialista que nega carter substancial alma, dissol-
vendo o seu ser na corporeidade. Fala tambm da posio agnstica de Hume e Kant, segundo
a qual, visto que nada se pode dizer da alma como coisa-em-si, logicamente no se pode falar da
natureza de sua relao com o corpo.
A propsito do problema do conhecimento das coisas-em-si, no contexto de sua discusso
do irracionalismo epistemolgico, Popper faz esta pertinente observao:
"Como sabemos, graas a Kant, que a razo humana incapaz de perceber ou conhecer o
mundo das coisas-em-si mesmas, devemos ou abandonar a esperana de chegar a conhec-
lo ou ento tentar o seu conhecimento por outros meios, que no o da razo; uma vez que
no podemos, nem queremos, abandonar essa esperana, precisamos empregar meios irra-
cionais ou supra-racionais, o instinto, a inspirao potica, as emoes. Segundo os irra-
cionais, isso possvel, porque, em ltima anlise, somos tambm coisas-em-si mesmas;
portanto, se pudermos de alguma forma alcanar um conhecimento imediato e ntimo de ns
mesmos. entenderemos o que so as mesmas" (1972, p.220).
Como dissemos no incio desta subdiviso do presente captulo, o problema da relao entre
o corpo e a alma continua a ser um desafio para a filosofia, para a teologia e at mesmo para a psi-
cologia, onde se discute o assunto em termos da relao mente-corpo, que, em ltima anlise,
resulta quase no mesmo, a no ser que se negue mente o ato prprio de ser. Aparentemente, esse
problema continuar a existir, por tempo indeterminado.
1.3.4. Autotranscendncia e imortalidade
o homem um ser aberto para o infinito. Tudo nele aponta para algo que transcende o tem-
poral. Parece existir nele a sede da eternidade. O brado do sal mista de Israel parece encontrar res-
sonncia no homem de todos os tempos, apesar das diferentes formas em que esse sentimento
se expressa: "Como o cervo anseia pelas correntes das guas, assim a minha alma anseia por ti
Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando entrarei e verei a face de Deus?"
(5142.1,2). tambm muito conhecida a afirmao de Agostinho, Bispo de Hipona, em suas Con-
fisses: "Vs nos fizestes para vs, e o nosso corao no descansa at que descanse em vs"
(Confisses, p. 5).
Que o homem um ser marcado pela autotranscendncia, aparentemente, algo reconhe-
cido praticamente por todos os filsofos. O problema aqui saber exatamente em que consiste
a autotranscendncia. Mondin afirma que a autotranscendncia o movimento pelo qual o ho-
mem supera sistematicamente a si mesmo, a tudo o que , tudo o que adquiriu, tudo o que quer,
pensa e realiza. Em trs diferentes obras: Antropologia teolgica (1979), Introduo Jilosofia
(1981) e O homem, quem ele? (1980), Battista Mondin apresenta as principais interpretaes da
autotranscendncia no mundo moderno, segundo autores existencialistas, marxistas e cristos.
51
Antropologia Filosfica
A primeira posio filosfica sobre o sentido da autotranscendncia a chamada interpre-
tao egocntrica. Para esses pensadores, quase todos de tendncias existencialistas, a auto-
transcendncia significa a superau daquilu que o homem no presente, com a finalidade de
atingir um estadu superior de existncia mais perfeita e mais feliz. Como diz Mondin (] 981, p. 65):
"A meta da autotranscendncia de reencuntrar a si mesmo por meio da aquisio de um ser mais
verdadeiro, mais prprio e mais autnticu, realizando uma ao mais plena e mais completa das
prprias possibilidades (... ). A autotranscendncia no uma imolau de si mesmo em benef-
cio de algum outro. Ela , antes e sobretudo, a busca de um ser pessoal mais perfeito".
oprincipal representante dessas correntes de pensamento Friedrich Nietzsche. Em seu fa-
moso livro AssirnJalava Zaratustra, o autor defende a idia de que a vida um constante esfor-
o de superao de si mesma. Zaratustra afirma: "Eu sou a contnua e necessria superao de
mim mesmo" (p. 115). E diz mais: "A vida quer subir, e subindo quer superar a si mesma". Para o
filsofo alemo, o alvo da autotranscendncia sempre o homem; mais especificamente o supcr-
homem. Diz ele, atravs do profeta: "Eu vos ensino o super-homem. O homem deve ser supera-
do" (p. 8). Para conseguir esse ideal, o homem deve livrar-se de tudo o que metafsica, da moral
e da religio e, sobretudo, deve eliminar a idia de Deus. A grande mensagem de Zaratustra ao
homem precisamente esta: "Deus morreu". Depois de dialogar com um santo homem que acre-
ditava em Deus, Zaratustra pergunta: "Ser possvel que este santo ancio ainda no ouvisse no
seu bosque que Deus j morreu? (p. 8). Somente admitindo a morte de Deus, o homem consegue
atingir o super-homem, vivendo alm do bem e do mal. Ainda neste captulo, retornaremos ao tema
da "morte de Deus".
O tema da aututranscendncia, no sentido aqui chamado egocntrico, retomado por Manin
Heidegger, para quem o homem um existente, isto algo que est fora de si mesmo. Segundo
o autor de O ser e u tempo, o homem se caracteriza por uma esperana essencial, rumo a ulteri-
ores possibilidades. Acontece, porm, que essa superao desemboca no nada, visto que a morte
a ltima possibilidade do homem. "O homem um ser para a morte" uma das afirmaes mais
conhecidas desse controvertido filsofo.
Karl Jaspers discute tambm o problema da autotranscendncia, advogando que o homem
toma dela conhecimento nas chamadas situaes-limite da existncia, como a dor, a ansiedade
e a morte. Para Jaspers, que era catlico, a transcendncia do homem lhe diz que seu ser est
imerso num "todo-circunstante" e que nunca se realizar plenamente nas coisas deste mundo.
Para outro filsofo cristo, Gabriel Marcel, a conscincia da transcendncia se d tambm
em situaes-limite que levam o homem a perceber a ambigidade e a contradio entre o que ele
e que deseja sec entre o ser real e o ser ideal. O homo viator, o peregrino, um projeto irre-
alizvel em sua plenitude nos limites do tempo.
A interpretao egocntrica da autotranscendncia, principalmente na verso de Nietzsche
e de outros filsofos ateus, tem o mrito de apontar para o ponto de tenso, que pode levar u
homem a livrar-se de muitas de suas limitaes imaginrias e escravizadoras, mas esbarra no
serssimo problema dos recursos para a realizao dessa superao do homem a si mesmo. que
essa posio radicalmente imanentista e consequentemente no recorre ao transcendente em
52
o problema antropolgico
busca de foras para ajudar o homem no processo da superao de si mesmo. Essa fora deve
ser procurada no prprio homem e, aparentemente, a longa histria da humanidade revela que essa
atitude gera sempre o "orgulho" (hybris), que pode levar o homem ao desnimo e ao desespero.
A segunda grande linha de pensamento sobre a autotranscendncia a chamada interpre-
tao filantrpica, que tem origens no pensamento marxista e no positivismo de Comte. Mais
recentemente esse pensamento expresso por marxistas revi sionistas, entre os quais se salien-
tam Ernst Bloch, Roger Garaudy e Herbert Marcuse. O grande mrito dessa interpretao que
ela inclui a dimenso social da autotranscendncia, sem excluir, evidentemente. seu aspecto
pessoal. Representa uma superao do individualismo egosta e prope uma nova humanidade,
livre das injustas desigualdades sociais.
Para Ernst Bloch, a superao de si mesmo ou a autotranscendncia do homem o "espao
utpico", que caracteriza a atividade humana. Em seu famoso livro Oprincpio da esperana, ele
diz que a raiz da autotranscendncia o "ainda-no", isto , o espao da possibilidade que o ho-
mem sempre tem. Do "ainda-no" surge a esperana que, para Bloch, a expresso caracters-
tica da autotranscendncia do homem. Convm salientar, entretanto, que o "espao utpico" e
o "ainda-no", da proposta de Bloch no tm o mesmo sentido que pensadores religiosos do
ao termo transcendncia. Como diz o prprio autor, citado por Mondin: "(... ) ns entendemos que
a transcendncia no existe". Logo, no se pode tratar seno de "um transcender sem transcen-
dncia" (1979, p. 80).
A influncia do pensamento de Bloch muito grande no mundo contemporneo e se faz sentir
na filosofia, na teologia e at mesmo na psicoterapia. Na teologia, por exemplo, foi inspirao para
Moltmann, que praticamente revolucionou o conceito tradicional de escatologia, com sua Teo-
logia da esperana (1965). Na psicoterapia, inspirou a teoria de Viktor Frankl, a logoterapia, que
rompe com O rgido determinismo do passado, que caracteriza a psicoterapia nos moldes freudi-
anos e se apoia na perspectiva de futuro ou de esperana, como possibilidade de manuteno
do equilbrio emocional do homem.
Dada a imporlncia desse tema, a ele retornaremos na concluso deste livro, onde falaremos
de esperana e plenitude.
Outro marxista revisionista que trata do problema da autotranscendncia do homem, do pon-
to de vista filantrpico, Roger Garaudy, cujo pensamento bastante divulgado no Brasil, visto
que algumas de suas obras principais foram traduzidas para a lngua portuguesa.
Para Garaudy, a transcendncia a dimenso do infinito, da qual o humano toma conscin-
cia ao verificar que no se realiza plenamente. No artigo "Materialismo e transcendncia", con-
tido no livro Ohomem cristo eo homem marxista (1964), citado por Mondin (1980, p. 252), o autor
resume seu ponto de vista nos seguintes termos:
"Ela um humanismo prometeico ou faustiano que precisamente afasta cada lado, sens-
vel ou inteligvel, para colocar oacento sobre a ao, sobre a criao contnua do homem por
parte do homem (... ). Assim, abre-se ao homem um horizonte infinito, que o define enquanto
homem; o homem no somente o que , tambm tudo o que no , tudo o que ainda lhe
53
Antropologia Filosfica
falta; na linguagem dos cristos, dir-se-ia que ele o que o transcende, isto , cm potncia
todo o seu porvir, pois que o futuro a nica transcendncia que o humanismo conhece (... ).
Trata-se de excluir ao mesmo tempo a transcendncia de baixo (a de uma coisa em si rea-
lizada e onhecida de maneira definitiva) c a transcendncia do alto (a de um Bem absoluto,
de um Deus e de uma revelaUo)".
A posio de Garaudy se tornou mais relevante no contexto dessa discusso, principalmente
a partir do seu gesto de aproximao entre marxistas e cristos, como atesta seu prprio livro Do
antema ao dilogo (1969). Para melhor conhecimento desse pensador social, recomendamos
a leitura de alguns dos seus livros, tais como Palavra de homem (1975), Perspectiva do homem
(1965) e Oprojeto esperana (1978).
Ainda dentro dessa corrente marxista de pensamento sobre a autotranscendncia, encon-
tra-se Herbert Marcuse, tambm bastante difundido no Brasil. Em seu livro Cultura e socieda-
de, diz que "o ser do homem sempre mais do que o seu ser atual, supera qualquer situao e en-
contra-se, portanto, em discrepncia inarredvel com esta: discrepncia que exige um constante
esforo de superao, ainda que o homem no chegue nunca a repousar na posse de si mesmo
e do mundo" (citado por Mondin, 1979, p. 79). E, no livro Ideologia da sociedade industrial: o
homem unidimensional (1978), Marcuse encontra evidncia da autotranscendncia do homem
na cincia, na tcnica e na ao. semelhana de outros pensadores marxistas, porm, a trans-
cendncia do homem em Marcuse tem carter puramente histrico e temporal. No existe nela a
idia metafsica do sobrenatural. Transcendncia para ele um projetar-se da sociedade para um
futuro melhor e de realizaes mais plenas.
Finalmente, existe a interpretao teocntrica da autotranscendncia do homem, represen-
tada por pensadores como Plato, Aristteles Plotino, Santo Agostinho, Toms de Aquino e
muitos outros. De acordo com essa interpretao, "o homem sai incessantemente de si mesmo
e ultrapassa os confins da prpria realidade, pois impelido por uma fora superior, Deus. Este,
graas Sua grandeza, bondade, perfeio e onipresena, polariza em Si todas as criaturas, em
particular o homem. Deus o ponto Alfa e mega da autotranscendncia" (Mondin, 1981, p. 67).
Talvez o maior representante dessa interpretao teocntrica da autotranscendncia, no ca-
tolicismo atual, seja Karl Rahner, para quem o homem um ser essencialmente aberto, que jamais
pode proferir a palavra "fim". Essa abertura do homem para o infinito consiste na autotranscendncia
que o leva a projetar-se para frente, em movimento contnuo. Ao contrrio de Heidegger, para quem
essa abertura se orienta para um futuro que nunca ser realidade, Rahner advoga que ela encontra
seu desfecho no Absoluto, pois somente este capaz de abrang-Ia e realiz-la plenamente.
A interpretao teocntrica da autotranscendncia se defronta com srias restries, s quais
filsofos e telogos cristos tm procurado contornar. Como se sabe para muitos filsofos moder-
nos, Deus incognoscvel; sua existncia no demonstrvel. Apartir de Feuerbach, em A essn-
cia do cristianismo (1988), via Freud, em Ofuturo de uma iluso (1974) e tantos outros, a idia de
Deus representa apenas a hipostatizao de nossos desejos e necessidades. Deus, para esses pen-
sadores, uma criao da mente humana. Como diz RubemAlves, em sua apresentao do livro de
Feuerbach - A essncia da religio (1989) -, "Deus, assim, o grande Plenum que corresponde ao
nosso Vazio" (p.8). Aesse problema, pensadores catlicos, como Rahner e outros, respondem que
54
o problema antropolgico
o movimento da autotranscendncia no pressupe a demonstrao da existncia de Deus, mas sim-
plesmente, em si mesmo, aponta para a realidade divina. "De fato, a autotranscendncia sendo um
movimento, exige um sentido, um alvo, uma meta. Masj foi visto, anteriormente, que nem o eu nem
a humanidade podem dar o sentido conveniente. Por isto, no resta outra possibilidade de que a
de reconhecer que o sentido ltimo da autotranscendncia Deus" (Mondin. 1981, p. 68).
Alm disso, os pensadores cristos rejeitam a idia de contrapor a transcendncia
tal vertical, como se fossem duas tenses antitticas. Para a concepo crist do homem, a
cendncia horizontal ganha fora e realidade exclusivamente por meio da transcendncia verti-
cal. Mondin conclui a discusso desse tema com dois breves pargrafos, nos quais inclui uma
citao de J. De Finance em Ensaio sobre a ao humana (1962):
"O homem no sai dos confins do prprio ser para mergulhar no nada, mas sai de si mesmo
para lanar-se para Deus, o qual o nico ser capaz de levar o homem realizao eterna
c perfeita de si mesmo." O que preciso reconhecer que o impulso para o Ideal no
possvel e no tem significado seno em virtude da presena fascinante e, de certo modo,
aspirante do Ideal subsistente ou, para lhe dar o nome sob o qual o invoea a conscincia
religiosa, de Deus. ele c somente ele - o Outro absoluto c ao mesmo tempo a fonte da
minha ipscidade - que, embora entregando-me a mim mesmo, arranca-me meu eu; a sua
presena que introduz em mim um princpio de tenso interior e de ultrapassagem".
"Assim, longe de fundar o Ideal, a autotranscendncia do homem encontra no Ideal o seu
fundamental ltimo" (1981, p. 69).
Intimamente ligada ao problema da autotranscendncia est a questo da imortalidade ou
do fim ltimo do homem. Novamente estamos diante de um problema filosfico, para o qual no
existe soluo universalmente vlida. As posies variam das mais moderadas s mais radicais
e, como temos indicado em diferentes contextos do presente trabalho, todas elas apresentam
inevitveis aporias. Vejamos, a seguir, algumas dessas posies.
Para os materialistas em geral, o ser do homem se extingue com a morte. Visto que o mate-
rialismo nega a substancialidade da alma, como realidade espiritual independente da matria,
de esperar que afirme que a morte representa o fim de todo o ser do homem. Segundo Feuerbach,
a crena na imortalidade da alma apenas a hipostatizao do desejo de eternidade existente no
homem. Na segunda preleo sobre a essncia da religio, Feuerbach diz:
"A imortalidade espiritual, tica ou moral a nica que o homem possui e que possui atra-
vs de suas obras. Tudo aquilo que o homem ama e exerce apaixonadamente que a sua
alma. A alma do homem to di versa e especfica quo diversos e especficos so os pr-
prios homens. Por isto, a imortalidade, no antigo sentido da palavra, aquela existncia eterna,
ilimitada, s aplicvel a uma alma indefinida. vaga, que no existe na realidade, que apenas
urna abstrao humana e uma fantasia" (p. 22).
E, mais adiante, comentando o contedo de seu trabalho - A questo da imortalidade sob
o ponto de vista da antropologia -, ele diz:
"O segundo captulo trata da necessidade subjctiva da crena na imortalidade, isto , dos mo-
tivos internos, psicolgicos, que produzemno homem a crena em sua imortalidade. Aconc\u-
55
Antropologia Filosfica
so desse captulo que a imortalidade , de fato. uma necessidade apenas para homens
dores, ociosos, que vivem na fantasia, mas no para homens ativos, que se ocupam com os
objetivos da vida real. O terceiro captulo trata da "Crena crtica na imortalidade", isto , do
ponto de vista no qual no mais se cr que o homem subsista aps a morte com pele c cabelos.
mas no qual ainda se distingue entre uma essncia mortal e imortal do homem. Essa crena, disse
eu, cai tambm necessariamente na dvida, na crtica: ela contradiz o sentimento imediato de
unidade e a conscincia de unidade do homem, que no admite uma tal separao crtica e uma
tal ciso da essncia humana. Oltimo captulo trata finalmente da f na imortalidade, tal como
ela ainda vigente em nossos dias, da f racional na imortalidade, que em sua e
dilacerao entre crena c descrena afirma a imortalidade aparentemente, mw; emverdade a nega
ao substituir a crena pela descrena, o alm pelo aqum, a eternidade pelo tempo, a divindade
pela natureza, o cu religioso pelo cu profano da astronomia" (p. 23).
E, no controvertido livroA essncia do cristianismo (1988), no captulo intitulado "O cu cristo
ou a imortalidade pessoal". Feuerbach discute o problema em termos de "alm" e "aljum". Diz ele:
"Assim como Deus nada mais do que a essncia do homem purificada daquilo que se mostra ao
indivduo humano como limitao, como mal, seja no sentimento ou no pensamento: assim tambm
o alm nada mais do que o aqum libertado do que se mostra como limitao do mal". E conclui:
"O homem religioso renuncia s alegrias deste mundo, mas somente para, cm compen-
sao, ganhar as alegrias celestiais, ou melhor, ele s renuncia a elas porque j est pelo
menos na posse espiritual das alegrias celestiais. E as alegrias celestiais so as mesmas
daqui, apenas libertadas das limitaes e contrariedades desta vida. A religio chega.
portanto. em linha curva meta da alegria, meta esta que o homem natural tem em vista
em linha reta. Aessncia na imagem a essncia da religio. Areligio sacrifica a coisa
imagem. O alm o aqum no espelbo da fantasia- a imagem encantadora. no sentido da
religio. o prottipo do aqum: esta vida real apenas uma iluso. um reflexo daquela vida
figurada, espiritual. O alm o aqum contemplado em imagem, embelezado, purificado
de qualquer matria bruta" (p. 221).
Por oulro lado, desde Plato, Scrates e Aristteles, grande nmero de filsofos tem defen-
dido a sobrevivncia da alma aps a morte do corpo.
Plato, principalmente em seu famoso dilogo Fdon, apresenta vrios argumentos a favor
da imortalidade da alma. Dentre esses argumentos, o mais forte o que se refere espiritualida-
de do ato intelectivo. Existe no homem urna atividade atravs da qual ele conhece o Bem. o belo,
o Justo etc. Segundo Plato, esse conhecimento no conseguido pelos sentidos, mas se afas-
tando deles. Existe, portanto, uma vida prpria ao esprito que se realiza independentemente do
corpo. Nossa alma, enquanto ser espiritual, feita para a Idia, que eterna e imutvel. Eis um
texto do Fdon, em que Plato explcita esse ponto de vista:
"Mas quando, pelo contrrio - nota bem! - ela (a alma) examina as coisas por si mesma,
quando lana-se na direo do que puro, do que sempre existe. do que nunca morre, do
que se comporta sempre do mesmo modo - cm virtude de seu parentesco com esses seres
puros - sempre junto deles que a alma vem ocupar o lugar a que lhe d direito toda re-
alizao de sua existncia em si mesma e por si mesma. Por isso. ela cessa de vaguear c,
na vizinhana dos seres de que falamos, passa ela tambm a conservar sempre sua iden-
tidade c seu modo de ser: que est em contato com coisas daquele gnero. Ora, este estado
56
o problema antropolgico
da alma no o que chamamos pensamento?" (Fdon, traduo de Jorge Paleikat e Cruz
Costa, 1955, p. I lO, II).
Agostinho, que. como sabemos, era adepto do pensamento de Plato. em seus Solilqui-
us, apresenta o seguinte argumento cm favor da imortalidade da alma:
"A alma atinge a verdade no conhecimento intelcetivo. Ora, enquanto sede da verdade. a alma
imortal do mesmo modo que a verdade. De fato, se o que se acha em um sujeito eterna-
mente duradouro, necessrio que o prprio sujeilo seja eternamente duradouro. Mas. dado
que cada cincia reside sempre cm um sujeito, necessrio que a alma dure sempre. caso
tambm a eincia dure para sempre. Mas dado que a cincia verdade e a verdade dura para
sempre, tambm a alma dura para sempre e no se poder jamais dizer que ela morre" (ci-
tado por Mondin, 1980, p. 303).
Toms deAquino, o chamado "Doutor Anglico", que lanou as bases da teologia sistem-
tica no mbito do catolicismo e que tem influenciado grandes segmenlos do pensamento ocidental.
formulou seu argumento a favor da imortalidade da alma com base em dois fundamentos: a na-
turezada operao intelectiva e o desejo natural que o homem tem de no morrer. Em vez de tentar
explicar esses dois argumentos, achamos por bem citar dois longos textos do autor. o primeiro
encontrado no seu livro De anima, captulo 14. e o outro na Suma contra os gentios, captulo 79,
ambos citados por Mondin (1980, p. 304).
Em favor do primeiro argumento, Toms de Aquino diz:
'- manifesto que o princpio pelo qual o homem conhece intelectivamente (a alma) uma
forma que tem o ser em prprio c no simplesmente como isso pelo qual uma coisa . So
provas disso dois fatos:
a)O pensar, como diz Aristteles, em seu ensaio Sobre a alma (III, 6), no um ato realizado
mediante um rgo corpreo. De fato, no se poderia achar um rgo que esteja em condies
de receber todas as naturezas sensveis, sobretudo porque oreceptculo deve ser esplioda forma
da coisa recebida; como a pupila para ver carente de core, por sua vez, cada rgo corpreo
constitudo de uma natureza sensvel particular. O intelecto pelo qual pensamos cognitivo
de todas as naturezas sensveis, pelo que impossvel que a sua ao, que o pensamento, seja
exercida mediante um rgo corpreo. Por isto, o intelecto tem uma operao prpria, de que
no toma parte o corpo. Ora, o agir sempre proporcionado ao ser: as coisas que tm o ser de
per si, operam de per si; aquelas que no tmo ser de per si. no operamde per si. Por exemplo,
o calor no aquece por si, enquanto aquece por si o corpo quente. Por isto. o princpio intelec-
tivo pelo qual o homem pensa ter o ser elevado, aeima do corpo, no depende do corpo.
b)Alm disso, tal princpio intelectivo no algo composto de matria e de forma, porque
as espcies intencionais so recebidas nele imaterialmente: de fato, intelecto diz respeito
aos universais, que se consideram abstraindo da matria e das condies materiais. Portan-
to, o princpio intelectivo pelo qual o homem pensa forma que tem o ser in proprio, pelo
qual necessrio que seja incorruptvel. O que se ajusta com o que diz Aristteles, segun-
do o qual o intelecto algo de divino e perptuo".
Quanto ao argumento baseado no desejo natural de imortalidade, Toms de Aquino diz o
seguinte:
57
Antropologia Filosfica
" impossvel que uma tendnia natural seja v. O homem anseia, por natureza, a perdu-
rar perpetuamente. Isto aparece claro pelo fato de que o ser aquilo que por todos de-
sejado; o homem pode, atravs do intelecto, perceber o ser, no somente num dado momen-
to (como se realiza hic ef n/inC, semelhante aos animais irracionais), mas de forma absolu-
ta. Portanto, o homem logra a perpetuidade em seu lado espiritual, ou seja, na alma, pela
qual percebe ser absolutamente c conforme cada momento".
Em favor da imortalidade da alma tambm conhecido o argumento de Ren Descartes,
considerado o Pai da filosofia moderna. Em Meditaes, Descartes declara:
"No temos nenhum argumento e nenhum exemplo que nos persuada que a morte ou
o aniquilamento de uma substncia, como o esprito, deva seguir-se a lima causa to in-
significante quanto uma mudana de figura, a qual no outra coisa que uma forma, e
alm disto uma forma de corpo e no de esprito C.. ) No temos nenhum argumento nem
exemplo que possa nos convencer da existncia de substncias sujeitas a serem aniqui-
ladas".
Mas nem todos pensam assim como esses grandes filsofos que defendem a imortalidade
da alma. Existem, como vimos, os que a negam. e tambm existem os que se negam a discutir o
assunto, alegando ser este um problema insolvel. Essa posio agnstica defendida, sobre-
tudo por Hume e por Kant, que alegam que a realidade objetiva, seja material ou espiritual,
inacessvel mente humana.
Entre os protestantes, telogos como Karl Barth e Oscar Cullmann advogam que a idia da
imortalidade da alma incompatvel com o ensino bblico, principalmente do Antigo Testamen-
to, e alegam que o cristianismo primitivo cometeu um erro imperdovel ao confundir a doutrina
bblica da ressurreio dos mortos com a teoria grega da imortalidade da alma. Esta parece ser
tambm a posio de Feuerbach, que provavelmente influenciou o pensamento desses telogos
protestantes, ao declarar:
"Os antigos filsofos ensinavam, pejo menos em parte, a imortalidade, mas somente a imor-
talidade da parte pensante em ns, somente a imortalidade do esprito distinto do sentido
humano. Alguns ensinavam at mesmo claramente que a prpria memria ou a lembrana
se extingue e s o pensamento puro permanece aps a morte, uma a b s t r a ~ o que na reali-
dade no existe. Mas, exatamente por essa imortalidade, uma imortalidade abstrata no
religiosa. Por isso condenou ocristianismo essa imortalidade filosfica e colocou em seu lugar
a imortalidade do homem total, real, corporal, porque somente essa uma imortalidade na
qual o sentimento e a fantasia encontram c1emento, mas exatamente por ser uma imortali-
dade sensorial. O que vale para essa doutrina em especial vale para a religio em geral. O
prprio Deus uma entidade sensorial, um objeto da contemplao, da viso, no da con-
templao corporal, mas da espiritual, ou seja, uma contemplao da fantasia. Podemos
ento reduzir a diferena entre a filosofia e a religio simplesmente em que a religio sen-
sorial, esttica, enquanto que a filosofia algo supra-sensvel, abstrato" (A essncia da
religio, p. 20).2
:! Recomendo a leitura da traduo inglesa de A essncia do cristianismo (1957), principalmente por causa do
prefcio de Richard Niebuhr e do ensaio introdutrio de Karl Barth (N. do A.).
58
o problema antropolgico
No terceiro captulo deste livro, ao tratar dos conceitos fundamentais da antropologia b-
blica, voltaremos a este assunto.
1.4 Caos e Logos
Nesta subdiviso do captulo, trataremos de dois assuntos que marcaram profundamente
o pensamento humano em seus primrdios, e que ainda hoje constituem, de uma forma ou de outra,
motivo de reflexo. Falaremos sobre o caos nas cosmogonias antigas e sobre o logos como
princpio ordenador do universo. Concluiremos o captulo com uma nota sobre a teologia radi-
cal da morte de Deus, como sintoma de retorno ao caos.
1.4.1 O caos nas cosmogonias antigas
Em vrias cosmogonias antigas, o caos aparece como elemento primordial do universo. o
vazio primitivo que precede a existncia de qualquer coisa. Significa tambm o abismo do Trta-
ro - o inferno ou mundo sublunar. Posteriormente, a palavra caos usada para designar o esta-
do original das coisas. O sentido mais recente da palavra se deriva do poeta latino Ovdio, que
entende o caos como a massa original e disforme, da qual o criador do cosmo produziu o univer-
so ordenado (ver Metamolfoses /, p. 69 e ss).
Aparentemente, neste sentido que os Pais da Igreja usaram o conceito em sua interpreta-
o da histria da Criao no Livro do Gnesis.
Mais do que qualquer outro autor conhecido, Hesodo, em seu poema Teogonia, apresen-
ta o assunto de modo relevante.
Segundo Croiset, citado por Estevo Cruz em Histria universal da literatura, vol. I (1939),
a Teogonia de Hesodo
"tem porobjetivo expor, numa ordem metdica, a filiao dos deuses, desde a origem das
coisas at constituio definitiva do mundo divino. O autor nada inventa e nada quer
inventar: recolhe tradies; mas essas tradies eram divergentes, confusas, algumas ve-
zes contraditrias; aproxima-as, concilia-as, rene-as num vasto conjunto. Sua inteno
manifesta constituir uma histria genealgica de todos os deuses do mundo grego, de
maneira a fixar as suas relaes mtuas. Eleva-se ento acima do ponto de vista cantonal
ou regional; quer fazer e o faz de fato um panteo verdadeiramente helnico. Sua inspira-
o vem simultaneamente da piedade e do senso histrico" (p. 221).
Em seu erudito trabalho, O pensamento antigo, volume I, Rodolfo Mondolfo (1971) apre-
senta o pensamento de Hesodo na Teogonia, atravs do prprio texto por ele comentado com
a competncia de sempre. Citaremos aqui dois textos comentados por Mondolfo. O primeiro trata
das origens dos deuses e diz:
"Dizei-me, Musas das moradas olmpicas, qual dos Deuses foi o primeiro. Antes de todas
as coisas surgiu o Caos; depois a terra (Gea) de vasto seio, assento sempre firme de todos
59
Antropologia Filosfica
os imortais que habitam os cumes do nevado Olimpo, C o Trtaro tenebroso nos recessos
da Terra espaosa, e Eras, o mais belo dos Deuses Imortais, que livra de cuidados todos os
Deuses e domina no corao de todos os mortais o nimo e o conselho prudente. Do Caos
nasceram rebo e a negra Noite (Nix); e da Noite foram gerados o ter e o Dia (Emera), pois
ela os concebeu ao unir-se a rebro. E primeiro a Terra gerou, semelhante a si prpria cm
grandeza, o Cu estrelado (Urano), para que tudo cobrisse, para que fosse a morada segura
para os Deuses ditosos. E gerou depois os grandes Montes, habitaes agradveis aos
Deuses e s Ninfas, que habitam as montanhas cheias de vales. Concebeu depois Ponto, o
mar indomvel e estril, que, ao intumescer-se, se lana furioso, sem (o concurso do) amo-
roso amplcxo" (Teogonia, p. 113 e segs; citado por Mondolfo, 1971, p. 16).
Como se pode observar, na cosmogonia de Hesodo, o elemento primordial o Caos. Que
sentido que o poeta deu a esse termo urna questo discutvel. Kirk e Raven, em Osfilsqf'os pr-
socrticos (1966), contestam o significado de espao atribudo por Aristteles, alegando que este
conceito mais tardio do que a Teogonia, tendo sido pela primeira vez usado por Pitgoras, depois
por Zeno de Elia e de modo mais claro ainda no Tneu, de Plato. Rejeitam tambm a posio
dos esticos que interpretam o Caos como aquilo que derramado, isto , a gua. Rejeitam igual-
mente c significado de desordem usado pelo poeta latino Luciano, que interpreta o Caos de
Hesodo como matria desordenada e sem forma. Os autores concluem que a palavra caos, na
Teogonia de Hesodo, descreve a regio entre a Terra e o cu. Concordam tambm com a obser-
vao feita por Cornford, quanto ao fato de, no texto, Hesodo usar o verbo tornar-se e no o verbo
ser, sugerindo com isto que o Caos no tem existncia eterna, mas veio a existir.
claro que esse texto no esgota toda a longa histria da origem dos deuses e dos seres
csmicos. O poeta descreve, em detalhes, as guerras entre os vrios deuses, lutas das quais sai
vitorioso o grande Zeus, que representa a fora csmica que impe ordem ao universo.
o articulista da Enciclopdia Britnica, falando sobre os mitos de origem, diz que eles re-
presentam uma tentativa de traduzir o universo cm termos compreensveis aos homens. Os mi-
tos gregos da Criao (cosmogonias) e seus pontos de vista sobre o uni verso (cosmologias), eram
mais sistemticos e especficos do que o de outros povos antigos. No obstante, a arte potica
usada para transmiti-los serve de impedimento sua interpretao, visto que o verdadeiro mito
era normalmente adornado de elementos folclricos e fictcios, narrados como fim em si mesmo.
Assim, mesmo que o objetivo da Teogonia de Hesodo seja descrever a ascenso de Zeus, ela
inclui a naITativa de temas familiares, como a hostilidade entre geraes, o enigma da mulher (Pan-
dora), as chantagens do embusteiro (Prometeu), tudo isto para tornar a narrativa pica mais in-
teressante.
O segundo texto da Teogonia, citado c comentado por Mondolfo, o que trata da persis-
tncia do Caos como continente do cosmos. O texto no nos parece to claro quanto o anterior,
mas sua exegese revela a grande importncia que tem. Diz o texto;
"Ali, alm de todas as cousas, acham-se as fontes e limites da terra escura, e do Tr-
taro nebuloso e do mar infinito e do Cu estrelado; fontes e limites terrveis, tenebro-
sos, que os Deuses odeiam: o Grande Abismo (casma); e no bastaria ainda todo um
perodo astronmico para que as cousas chegassem a tocar o fundo, aps haverem
transposto as suas porras em princpio, mas daqui para ali seriam levadas por tremen-
60
o problema antropolgico
das tempestades, prodgio espantoso tambm para os Deuses imortais: e as terrveis
moradas da Noite tenebrosa esto cobertas de nuvens profundas" (Teogonia, p. 736 e
segs., ln: Mondolfo, 1971, p. 17).
oque est implcito aqui a idia de que o Caos no terminou com a criao do mundo. Ele
continua a existir como fonte de todas as coisas. Os cosmlogos jnicos. diz Mondolfo. defen-
diam a idia do infinito primordial como continente do cosmos, fonte e fim do seu devir. Por outro
lado. a tempestuosidade do Caos vista como ameaa conservao do cosmos:
"E muito mais ainda, porque as tempestades do Caos podiam sugerir tambm a idia que
parece ter extrado delas Anaximandro, da formao de redemoinhos tempestuosos, por cujos
movimentos rotatrios seria distribuda a matria, de acordo com a densidade e a gravida-
de, em uma ordem concntrica, que mostra a formao de um cosmos: formando-se assim
um cosmos em cada turbilho, resultam cosmos coexistentes em multiplicidade infinita da
infinita multiplicidade dos turbilhes, surgidos entre as mltiplas tempestades que agitam
o Caos" (Mondolfo, 1971, p. 18).
Temos aqui provavelmente o embrio de uma idia cclica da histria do homem e do mun-
do, mais tarde formulada no pensamento grego em termos do eterno retorno. Mas, somente em
Os trabalhos e os dias que Hesodo se aproxima da proposta de uma filosofia da histria, ex-
plicando a decadncia do homem pelo mito das Cinco Idades, depois imitado por Ovdio.
No reinado de Cronos, os deuses criaram os homens na Idade de Ouro. Nela os homens no
ficavam velhos, no trabalhavam e passavam seus dias em [esta contnua. Quando morriam,
tornavam-se espritos guardies aqui mesmo na Terra. Hesodo no esclarece o motivo por que
a Idade de Ouro chegou ao fim. O fato que ela foi sucedida pela Idade de Prata.
Os homens da Idade de Prata, depois de uma prolongada infncia, deixaram-se dominar pela
presuno e abandonaram os deuses. Como conseqncia desse comportamento, Zeus os es-
condeu na Terra, onde se tornaram espritos na regio dos mortos.
A seguir, Zeus criou os homens da Idade de Bronze. Estes eram homens violentos, que se
destruam mutuamente em guerras interminveis. Aqui, sem motivo aparente, o poeta intercala
a raa dos heris. Alguns destes heris, parentes dos deuses, eram agraciados com o retorno a
uma espcie de Idade de Ouro restaurada sob o governo de Cronos, submetido por seu filho Zeus
a um exlio na Ilha das Bem-Aventuranas. Essa representa a Quarta Idade.
Por fim, vem a Idade de feITO, que a anttese da Idade de Ouro. O prprio poeta teve a pouca
sorte de viver nessa terrvel idade. Para ele, porm, esse ainda no era o ltimo estgio na hist-
ria da decadncia do homem. Acreditava que haveria um tempo em que os homens nasceriam
velhos e nada seria capaz de deter o declnio moral universal. Aparentemente, a presena do mal,
que torna essa decadncia inevitvel, foi explicada pela ao inconseqente de Pandora ao abrir
a urna fatal, na qual se encontrava a Esperana.
Ao leitor interessado numa viso mais ampla do trabalho de Hesodo, recomendamos o ex-
celente estudo do professor Robert Aubreton, Introduo a Hesodo (So Paulo, 1956).
61
Antropologia Filosfica
Para Homero, Oceano o gerador dos deuses. Na Rapsdia XIV da Ilada, ele pe nos l-
bios da venervel Hera as seguintes palavras:
"Preciso ir s extremidades da alma Terra ver Oceano, origem dos deuses, e Ttis, me dos
deuses: foram eles que me receberam em sua morada, quando Rea me entregou aos seus
cuidados: trataram-me muito bem e em sua casa nada me faltava; foi isto quando Zeus, pers-
crutador astuto, cujos clculos vo muito longe, assinalou para os domnios de Cronos a
regio que fica debaixo da Terra e do mar marinho, onde no h po nem vinho, nem bafo
de menino" (A Ilada, traduo de M. Alves Correia, vaI. II. p. 47).
O mito da origem do cosmos, a partir de um princpio aquoso, era comum a vrias civiliza-
es orientais, como a babilnica, a egpcia, a fencia, entre outras, inclusive a hebraica. Os poemas
homricos renem uma vasta tradio, em que o mito ainda o elemento central. Admitem, com
toda naturalidade, a diversidade dos deuses c mostram uma tendncia na direo da superiori-
dade de um deles ~ Zeus.
O que mais nos impressiona em Homero, entretanto, sua tentativa de humanizar os deu-
ses. Como diz Aubreton (1956), ao comentar a teologia da Ilada:
"Homero deu aos deuses um car!er humano. Vimos que esse era um dos traos fundamentais
de sua obra e principalmente da Ilada que, por assim dizer, uma comdia humana entre os
deuses, mas atravs da qual os deuses se revelam profundamente decepcionantes. Seres pode-
rosos? Certamente o so, mas seu poder s existe em funo dos mortais. Quantos conflitos em
seu meio! No h seno concorrncias, lutas pouco cavalheirescas. Nesses seres divinos, nenhu-
ma outmgrandeza h alm da fsica: suas paixes so das mais descomedidas. Parecem viver num
Olimpo majestoso; entretanto, quantas desordens no se ocultam sob essa aparncia: dios
teniveis que no se contentamcom meias medidas, conflitos latentes que irrompem menor opor-
tunidade. Esses deuses no se poupam: as misrias de um deles provocam risos inextinguveis,
sejamenfermidades fsicas ou sofrimentos fsicos e morais. Neles os homens s podem encon-
trar modelos para seus vcios. So s paixes elevadas a um grau divino" (p. 187).
Estes deuses esto sujeitos a perder sua categoria de seres divinos, e alguns deles se trans-
formam em simples heris, cada vez mais prximos dos homens mortais. Os heris, entretanto,
so modelos para a humanidade, principalmente por suas vitrias contra as foras adversas. O
maior desses heris , sem dvida, Aquiles, modelo tico por excelncia.
Comentando esse aspecto da obra de Homero, Otto Maria Carpeaux, em sua monumental
Histria da literatura ocidental, vol. I, p. 44, diz:
"Por isso, a Ilada no vai alm desta ltima vitria, que essencialmente uma vitria do
heri sobre si mesmo. A presena dos deuses homricos, que so, por definio, ideais
humanos, revela no s a condio humana, mas tambm a capacidade dos homens de
super-la. Na Odissia, os deuses agem como instrumentos da Justia no mundo: da, o happy
end, a substituio do desfecho trgico peIo idlio. Esses "exemplos" aplicam-se - e Ho-
mero acentua isso - aos temperamentos mais diversos e aos homens de todas as condies
sociais. Os gregos de todos os tempos encontraram em Homero respostas quanto con-
duta da vida; o contedo e at a arte perderam a importncia principal, considerando-se a
fora superior da tradio tica".
62
o problema antropolgico
semelhana do que fizemos com referncia ao trabalho de Hesodo, recomendamos, aqui,
o estudo de Robert Aubreton: Introdu"o a Homero (1956).
1.4.2 O Logos divino e a ordem no universo
Logos, em grego, significa palavra, razo ou plano. Tal cornO usada na filosofia e na teo-
logia, basicamente o termo logos significa a razo divina implcita no cosmos, ordenando-o e
dando-lhe forma e significado.
Talvez o estudo mais completo dessa palavra numa nica fonte bibliogrfica se encontre no
famoso Dicionrio teolgico do Novo Testamento. editado por Gehard Kittel.
Aqui o autor estuda as duas significaes bsicas do conceito. Primeiro, temos o uso de
logos significando palavra, fala, discurso, revelao, no no sentido de algo proclamado e ou-
vido, mas no de algo exposto, reconhecido e compreendido; logos como poder racional de cal-
cular, em virtude do qual o homem v a si mesmo e o seu lugar no mundo; logos como indicao
de um contedo inteligente no mundo, e logos como base e estrutura da lei. Segundo, o uso de
logos como realidade metafsica, tenno estabelecido na filosofia e na teologia, do qual se desen-
volveu na AntigUidade uma entidade cosmolgica e hipstase da divindade - o segundo Deus.
Os gregos admitiam a existncia de algo no mundo - um logos primrio, uma lei inteligvel
e reconhecvel, que tomava possvel a compreenso do logos humano. Mas este logos no algo
meramente terico. Ele exige uma pessoa. ele que determina sua vida e seu carter. O logos
lima norma. Para os gregos, o conhecimento sempre o conhecimento de uma lei e, conseqen-
temente, do seu cumprimento.
Servindo-se dessa e de outras fontes, mencionaremos, a seguir, alguns dos mais relevan-
tes aspectos desse conceito c suas interpretaes.
No pensamento grego, a idia do logos remonta pelo menos o sculo VI a.C., aparecendo
em Herclito de feso, que discerne no processo csmico um logos anlogo capacidade raci-
onal existente no homem. O logos, para Herclito, constitui o ser do cosmos e do homem. o prin-
cpio de ligao entre o homem e o cosmos e que torna possvel sua compreenso. Ele liga o
homem ao mundo, a Deus e ao seu semelhante. Faz tambm a ligao entre esta vida e a vida alm.
o logos que estabelece no homem o seu verdadeiro ser em virtude dessas ligaes com Deus,
com o mundo e com o outro. Dentre os fragmentos de Herclito, editados por Diels, na traduo
de Gerard Bornheim (1977), citaremos trs referentes especificamente ao logos
Fragmento n 1. "Este logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o
compreendem. Ainda que tudo acontea conforme este logos, parece no terem experincia ex-
perimentando-se em tais palavras e obras, como cu as exponho, distinguindo e explicando a
natureza de cada coisa. Os outros homens ignoram o que fazem em estado de viglia, assim como
esquecem o que fazem durante o sono".
Fragmento n 2. "Por isso, o comum deve ser seguido. Mas, a despeito de o logos ser co-
mum a todos, o vulgo vive como se cada um tivesse um entendimento particular".
63
Antropologia Filosfica
Fragmento n 45. "Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrars os limites
da alma, to profundo o seu logos" (p. 36, 38).
A quem desejar um estudo mais profundo sobre o pensamento de Herclito, alm dos exce-
lentes livros sobre os pr-socrticos, de Bornheim (1977) e Kirk e Raven (1966), recomendamos
a leitura do erudito de Damio Berge, O logos "eraelfico (1969).
Posteriormente, os esticos, seguidores dos ensinamentos de Cntion (entre os sculos IV
e III a.C.) definiram o logos como principio ativo espiritual e racional que permeia a realidade. Os
esticos denominaram o logos de providncia, natureza, deus e alma do universo, que o c o n ~
junto de muitos logoi seminais contidos no logos universal.
Para Filo de Alexandria, filsofo judeu do sculo I a.c., o logos era intermedirio entre Deus
e o mundo. Era o agente da criao e o elemento atravs do qual a mente humana pode apreen-
der e compreender Deus. Para esse filsofo judeu, o logos era imanente ao mundo, mas, como
mente divina, era transcendente. Indica a manifestao dos poderes divinos e de suas idias no
universo. Deus um ser abstrato, mas dele procede o logos que representa seu pensamento
racional, que primeiro existiu, como o mundo ideal, na mente divina, e ento formou e habita no
cosmos atual. O logos , portanto, o criador do mundo a partir da matria amorfa, e atravs do qual
Deus pode ser racionalmente reconhecido. O logos existe eternamente em Deus e se tornou ati-
vo no mundo, e se revelou de modo especial aos hebreus, nas Sagradas Escrituras.
O conceito expresso pelo termo logos se encontra nos sistemas filosficos e teolgicos dos
gregos, egpcios, persas e hindus. Mas, no h dvida de que ele se tornou particularmente
significativo nos escritos cristos, que tinham por objetivo descrever e definir o papel de Jesus
Cristo como princpio ativo na criao e contnua estruturao do cosmos, e na revelao do plano
divino para a salvao do homem. Como veremos mais adiante, a palavra logos a base da doutrina
crist na preexistncia do Filho de Deus - Jesus de Nazar.
O Dicionrio de Kittel aponta algumas das diferenas entre as especulaes helensticas
sobre o logos e o conceito do Novo Testamento.
Em primeiro lugar, os autores chamam a ateno para o aspecto racional e intelectual do logos
no pensamento grego, em contraste com o fato de que, no pensamento cristo, o que importa
a mensagem para a vida do homem aqui e agora. Em segundo lugar, observa-se que o pensamen-
to grego, principalmente dos esticos e dos neoplatnicos, dividia o logos em muitos logoi,
enquanto que para o cristianismo o logos um princpio de harmonia: a ligao espiritual que
conserva a unidade do mundo. Em terceiro lugar, observa-se que a manifestao do logos grego
no historicamente singular. Para ela no se pode apontar uma data. No cristianismo existe um
evento histrico relacionado com o logos. Em quarto lugar, logos grego tomou-se o mundo, ou,
como no estoicismo e no neoplatonismo, o mundo. Como tal, ele chamado filho de Deus, mas
no primognito. No Novo Testamento, entretanto, logos se tornou este homem historicamente
singular - fez-se carne.
O texto fundamental para o estudo do logos no Novo Testamento , sem dvida, o do pr-
logo do Quarto Evangelho, onde lemos: "No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus,
64
o problema antropolgico
e o Verbo era Deus. Ele estava no princpio com Deus. Todas as coisas foram feitas por interm-
dio dele, e sem ele nada do qne foi feito se fez" (10 1.1-3).
Este e outros textos do Quarto Evangelho, mostra que o autor identifica Jesus Cristo com
a palavra encarnada. Ele o logos que se fez carne. A identificao de Jesus de Nazar, com o logos
se baseia no conceito de revelao do Antigo Testamento, tal corno ocorre na frase "a Palavra
do Senhor", que expressa (] idia da atividade e do poder de Deus. semelhante ao ensino judai-
co sobre a Sabedoria como agente divino que conduz o homem a Deus, e identificado com a
Palavra de Deus. O autor do Quarto Evangelho usa essa expresso filosfica, amplamente conhe-
cida no mundo helenista, para salientar o carter redentor da pessoa de Jesus Cristo, a quem o
autor descreve como: "o caminho. a verdade e a vida". Assim corno os judeus consideravam a
Torah como algo preexistente com Deus, assim tambm o autor desse evangelho afirma a pree-
xistncia de Jesus Cristo. Para Joo, o evangelista, Jesus a fora personificada da vida e a ilu-
minao da humanidade. Para ele. o logos inseparvel de Jesus e no apenas a mensagem por
ele proclamada. Jesus Cristo a encarnao de urna pessoa divina e eterna.
De onde o apstolo Joo teria derivado esse conceito? O autor do verbete sobre logos no
Dicionrio da Bblia; de James Hastings, sugere duas fontes principais:
Aprimeira fonte seria oAntigo Testamento e a litemturajudaica do perodo interbblico. Como
se sabe, no Gnesis, a Criao atribuda ao comando da Palavra de Deus, que se apresenta de
modo quase que personificado. Expresses cumo: "E veio a Palavra do Senhor", e declaraes,
como: "a Palavra de ISJas viu", apresentam a fala de Deus como seu objeto conlnuo e separa-
do da palavra escrita ou oral (ver passagens como Is 2.1, Mq 1.1, Am 1.]). A tendncia do povo
hebreu, no sentido de ver a revelao corno sendo feita alravs de uma pessoa, se expressa no
conceito de sabedoria, como se pode ver em J 28.12-28 e, principalmente, em Provrbios 8.22-
31, no que pese a fora potica da expresso. A crena hebraica num Deus vivo, que mantm
relao imediata com o mundo e com Israel, no exigia seres intermedirios entre Deus c o homem.
A automanifestao de Deus, no pensamento hebraico, era mediada por um agente, concebido
como um ser pessoal e ligada prpria personalidade divina. O tema descritivo de uso mais comum
para expressar essa idia era "Palavra", provavelmente a principal fonte da fraseologia de Joo.
neste sentido que o autor do Quarto Evangelho usa o terno logos aplicado a Jesus de Nazar.
Em seu erudito trabalho A interpretao do quarto evangelho, C. H. Dodd diz:
"Conclumos que,junto com outros. usos bastante comuns do termo, quarto evangelista usa
o termo IORO. num sentidoespecial, para indicar ueterna verdade (aletheia) revclada aos homens
por Deus - esta verdade enquanto expressa em palavras (remata), quer sejam as da Escritu-
ra, quer, especialmente. as palavras de Cristo. Logos neste sentido distinto de lalia e ])110-
fie. O logos divino no simplesmente as palavras anunciadas. alethcia. Isto , um con-
tedo racional de pensamento, correspondendo realidade ltima do universo. Mas conce-
be-se a realidade como revelada, no - como emcerta doutrina contempornea - nu contem-
plao ou na viso esttica, mas como falada e ouvida. Esta fonna de expresso preserva a
distncia entre Deus e o homem. que uma caracterstica da religio bblica em geral e Ganu-
viada em muito pensamento helenstico. Aidia de revelao em Joo dominada pela cate-
goria de "ouvir a Palavra do Senhor", seja qual for a eXlenso desta categoria. Ento, embora
o logos de Deus seja um contedo racional do pensamento, ele sempre, cm certo sentido,
proferido, e porque proferido, torna-se um poder vivificante para os homens" (p. 375).
65
Antropologia Filosfica
A outra fonte do pensamento de Joo sobre o logos a filosofia Alexandrina, representada
especialmente por Filo. Desde o tempo de Herclito, a doutrina do logos, entre os gregos, surgiu
como necessidade de explicao da relao da divindade como o mundo. O logos aqui a razo
universal. Em Herclito, o logos a lei universal que rege a evoluo do universo. Quando se
comeou a fazer clara distino entre mente e matria, o logos se torna o princpio racional ma-
nifesto no cosmos. Plato, para descrever essa idia, usava mais a palavra flOUS (mente), mas s
vezes usava logos para significar a fora divina da qual o mundo surgiu (ver a esse propsito O
texto do Timel/, p. 380).
A idia de logos, explcita no Quarto Evangelho e implcita em vrios textos no Novo Tes-
tamento, foi ampliada na Igreja Primitiva, mais base da filosofia grega do que da revelao do
Antigo Testamento. Esse desenvolvimento foi ditado pela tentativa, por parte dos telogos cris-
tos dos primeiros sculos, de expressar a f crist em termos inteligveis ao mundo helnico. bem
como a de impressionar seus leitores com a idia de que o cristianismo era superior a tudo que
existia na filosofia pag. No trabalho polmico e apologtica dos Pais da Igreja, defende-se a tese
de que Cristo o logos preexistente, que revela Deus a humanidade. Ele a razo divina da qual
participa toda a raa humana, de tal forma que os filsofos e sbios, que viveram sculos antes
de Cristo, eram cristos por extenso. O logos a palavra divina, peja qual os mundos foram criados
e que sustenta tudo quanto existe.
1.4.3 A"morte de Deus" e o retorno ao caos
A teologia radical da morte de Deus um fenmeno cultural tipicamente norte-americano,
apesar de suas razes europias, tanto na filosofia como na teologia. Ela , ao mesmo tempo,
um sintoma e uma advertncia ou protesto. Como advertncia, ela chama nossa ateno para
o fato de que estamos vivendo uma era ps-crist, que reclama uma nova atitude de ajustamento
a urna nova realidade. Como sintoma, mostra que a humanidade se encontra em processo r-
pido de decomposio das suas estruturas mentais tradicionais, incluindo a idia de Deus c seu
lugar diretor na vida humana. As certezas de sculos passados foram substitudas pela dvi-
da e pela ansiedade dela decorrente. O plenum encontrado na f se transforma no vazio de um
mundo sem Deus.
Para os objetivos do presente captulo, apontaremos apenas alguns dos antecedentes his-
tricos da teologia radical da morte de Deus, indicando a seguir seu significado fundamental, e
suas conseqncias na vida do homem contemporneo.
No mundo moderno, a voz que explicitamente anuncia a morte de Deus a do filsofo ale-
mo Friedrich Nietzsche. Em seu famoso livroAssimfalava Zaratustra, j citado neste captulo,
depois de se despedir de um santo ancio com quem dialogara, o profeta pergunta: "Ser pos-
svel que este santo ancio ainda no ouvisse, no seu bosque, que Deus j morreu?" Aqui a morte
de Deus declarada como conditio sine qua rum do aparecimento do super-homem. Em vrios
outros textos e circunstncias, Zaratustra volta ao tema e anuncia ao homem que Deus morreu.
Mas, o anuncio da morte de Deus feito por Nietzche se torna mais dramtico no famoso
aforismo n 25, de A gaia cincia. Eis o longo e contundente texto:
66
o problema antropolgico
"Nunca ouviram falar de um louco que em pleno dia acendeu sua lanterna c ps-se a correr
na praa pblica gritando sem cessar: - Procuro Deus! Procuro Deus! - Como l se en-
contravam muitos que no acreditam em Deus, seu grito provocou uma grande hilarida-
de - ter-se- perdido? - Perguntou um. - Ter-se- perdido como criana? - perguntou
outro. Ou estar escondido? Ter medo de ns? Ter partido? - Assim gritavam e riam
todos ao mesmo tempo. O louco saltou em meio a eles e traspassou-os com o seu olhar.
- Para onde Deus foi? - bradou. - Vou lhes dizer! Ns o matamos, vs c cu! Ns todos,
ns somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como pudemos esvaziar o mar?
Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos quando desprendemos
a corrente que ligava esta Terra ao Sol? Para onde vai agora? Para onde vamos ns? Lon-
ge de todos os sis? No estaremos caindo incessantemente? Para frente, para trs, para
o lado, para todos os lados? Haver ainda um acima, um abaixo? No erramos atravs de
um nada infinito? No sentiremos na face o sopro do vazio? No far mais frio? No
surgem noites, cada vez mais noites? No ser preciso acender as lanternas pela manh?
No escutamos ainda o rudo dos coveiros que enterram Deus? No sentimos nada da
decomposio divina? Os deuses tambm se decompem! Deus morreu! Deus continua
morto! E ns o matamos! Como nos consolaremos, ns os assassinos dos assassinos? O
que o mundo possui de mais sagrado e possante perdeu seu sangue sob nossa faca. O que
nos limpar deste sangue? Com qual gua nos purificaremos? Que expiaes, que jogos
sagrados teremos que inventar? Agrandeza desse ato no muito grande para ns? No
seremos forados a tornarmo-nos deuses para parecermos, pelo menos, dignos de deu-
ses? Jamais houve ao to grandiosa, aqueles que poder nascer depois de ns perten-
cero por esta ao a uma histria mais alta que o foi at aqui qualquer histria. - O
insensato calou aps pronunciar estas palavras e voltou a olhar para seus ouvintes; tam-
bm eles se calavam como ele o fitavam com espanto. Atirou, finalmente a lanterna ao cho,
de tal modo que se espatifou, apagando-se. - Chego muito cedo - disse. - Ento meu
tempo no chegado. Este evento enorme est a caminho, aproxima-se e no chegou ainda
aos ouvidos dos homens. preciso tempo para o relmpago e o raio, preciso tempo para
a luz dos astros, preciso tempo para as aes, mesmo quando foram efetuadas, serem
vistas e entendidas. Esta ao ainda mais longe deles que o astro mais distante e, todavia
foram eles que o cometeram! Conta-se ainda que esse louco penetrou nesse mesmo dia
em diferentes igrejas e entoou seu Rquiem aetemam Deo. Expulso e interrogado, no
cessou de responder a mesma coisa: ;'De que servem estas igrejas se so tumbas e mo-
nllmentos de DeliS?" (A gaia cincia, traduo de Mrcio Pugciesi, p.133,135).
Comentando esse notvel texlo de Nietzsche, Eusbi Colomer, emAmorte de Deus (1972), diz:
"A grandeza e originalidade deste texto consiste em nele se encontrarem os mais diversos
e opostos sentimentos: o horror pelo deicdio consumado e a alegria pela liberdade conse-
guida, uma angstia csmica, metafsica, por um mundo que perdeu o seu fundamento
transcendente e a vontade humana de ocupar o lugar que Aquele deixou vazio, o medo da
noite e o pressentimento de um novo dia, de uma nova e mais grandiosa histria, longe j
de todos os sis, por fim, a caminho para o reino do homem" (p. 50).
A morte de Deus proclamada por Nietzsche significa o desmoronamento do mundo trans-
cendente. Acreditar no Deus cristo j no historicamente possveL
No campo da teologia, os antecessores da "Morte de Deus", geralmente indicados, so: Karl
Barlh, Paul Tillich e Dielrich Bonhoeffer.
67
Antropologia Filosfica
A posio de Barth, quanto aO tema em foco. expressa em seu "no" religio e renete a
tendncia humanizante de sua teologia, principalmente no seu livro A humanidade de Deus (1961),
Esse famoso telogo suo advoga que a religio um esforo intil do homem, no sentido de
chegar a DeliS. uma espcie de torre de Babel, e como tal deve ser destruda. O transcendente
se tornou imanente. Deus se fez carne em Jesus de Nazar. Deus nosso irmo. H valores no
homem porque h uma humanidade em Deus.
Em Tillich, aponta-se o conceito do Deus da profundidade, como de algum modo reduzido
o transcendente experincia ontolgica-existencial do homem. Em seu livro Tlze Shaking o/lhe
.fol/lldaliolls (1948), ele diz:
"Se sabeis que Deus quer dizer profundamente, j sabeis muito de Deus. E ento j no vos
podeis chamar ateus Oll descrentes, porque j vos ser possvel dizer: a vida no tcm ne-
nhuma profundidade, a vida trivial, o ser no c mais do que a superfcie. Se pudsseis dizer
isto com total seriedade. sereis ateus; mas se o no podeis, no o sois. Quem conhece al-
gumas coisas da profundidade. conhecc alguma coisa de Deus" (p. 87).
BonhoelTer apontado como o precursor da teologia da morte de Deus, principalmente por
suas idias de um cristianismo sem religio, provavelmente eco das idias de Barth e que foram
interpretadas corno secularismo, como indica o ttulo de um livro de um dos principais telogos
da morte de Deus na Amrica do Norte - Paul M. Van Burcn (The secular meaning o/the gospel,
19(3). Alm disso, Bonhoeffer defendeu tambm a tese correlata de que, num mundo adulto, o
homem prescinde das categorias transcendentes como necessidade de explicao da vida e do
mundo. (Esse conceito semelhante tese de Freud, em Ofuturo de uma iluso, que diz que a
religio uma espcie de dependncia infantil completamente desnecessria a um adulto normal-
mente desenvolvido em suas potencialidade).
feitas essas breves consideraes sobre os pressupostos da teologia radical da "morte de
Deus", passemos agora a discutir brevemente o seu significado.
O que se quer dizer, quando de afirma que Deus morreu? Certamente o significado teolgi-
co desse movimento cultural no se prende idia popular que supe ser a "morte de Deus" a
negao da existncia de um ser chamado Deus. Visto no termos o propsito de discutir o as-
sunto em detalhes, vamos apresenta-lo de modo resumido, adotando trs pontos salientados por
Harvey Cox em On not leaving it to lhe snake (traduzido para o portugus sobre o ttulo Nao deixe
a serpente decidir por voc).
Em primeiro lugar, diz Harvey Cox. a teologia da morte de Deus significa uma posio no-
testa ou atesta. Citando Paul Van Buren, em The secular nzeaning ofthe gospel, que diz que o
cristianismo tem a ver com o homem e no com Deus, e que ftil se fazer qualquer declarao
sobre Deus porque esta palavra no tem qualquer referencial emprico. Advoga que se deve
construir uma forma de teologia em que no se fale em Deus. Aposio de Van Buren obvia-
mente influenciada pela filosofia analtica resultante do positivismo lgico.
Nessa mesma corrente de pensamento se situa Thomas Altizer, que diz que j existiu um Deus
real, transcendente, mas esse Deus se tornou imanente em Jesus e morreu crucificado. Ao contrrio
68
o problema antropolgico
de Van Buren. Altizer diz que devemos usar a palavra Deus. mas devemos fazer do anncio de
sua morte o terna central de nossa proclamao hoje. Advoga tambm que somente o cristo pode
conhecer a morte de Deus. A experincia da morte de Deus. para Altizer, corresponde ao concei-
to tradicional de converso.
o segundo significado da expresso "morte de Deus" ocorre no contexto da anlise cultu-
ral. Para autores como Gabriel Vahanian e \Villian Hamilton, a morte de Deus significa que a maneira
culturalmente condicionada como as pessoas conheciam o sagrado simplesmente se desgastou.
A experincia religiosa, transmitida culturalmente de gerao em gerao, perdeu seu significa-
do em face das profundas mudanas por que passa o mundo moderno, ern termos de tecnologia
e de urbanizao.
Em terceiro lugar, a "morte de Deus" representa uma crise em nossa linguagem religiosa e
em nossas estruturas simblicas, que torna ambgua a palavra Deus. No que a palavra Deus
nada signifique para o homem moderno. que ela significa coisas muito diferentes para diferen-
tes pessoas, de tal forma que difcil saber o que ela, de fato, significa.
Acho que h outro sentido para a expresso "morte de Deus", de algum modo implcito nos
significados acima descritos. Para a chamada civilizao ocidental, tradicionalmente considera-
da crist, a palavra "Deus" no tcm relao concreta com a vida e as decises do homem moder-
no. O homem moderno pode ainda usar a palavra Deus, mas, de fato, o conceito que ela traduz
no inOuencia profundamente sua vida, a no ser no caso das pessoas que levam a srio suas
convices religiosas. e estas constituem uma infinita minoria. Concordamos, pois com a decla-
rao de Allizer (1967):
"Devemos entender que a morte de Deus um acontecimento histrico, que Deus morreu
no nosso cosmos. na nossa histria, na nossa I:.\istenz. No h nenhuma necessidade ime-
diata de aceitarmos que o Deus morto o Deus da f; por outro lado, no podemos deixar
de concluir que o Deus morto no o Deus da idolatria, ou ela falsa piedade, ou da religio,
mas o Deus da Igreja Crist histrica c da cristandade" (p. 28).
Nosso propsito, ao estudar o movimento cultural chamado teologia radical da morte de
Deus, mostrar que ele um sintoma de nosso sculo. A morte de Deus significa retomo ao caos.
Assim como a morte do pai, indicada pelos estudos de Freud, produz o inevitvel sentimento de
culpa, a morte de Deus conduz o homem ao vazio existencial.
No obstante, h possibilidade de se ver esse retorno ao caos como algo positi voo Creio ser
este o significado do texto de Altizer, que passamos a citar:
"O Cristianismo tinha ingressado na categoria do tempo c da histria. Assim, modificando
sua crena original, o Cristianismo se tornara uma religio de "afirmao do Inundo". E,
desde ento. a teologia crist se tornuu pelo menos em seu aspecto Olto-
doxo e dominante. Mas agora o Deus cristo morreu! Atranscendncia do Ser se trans-
formou na imanncia radical do Eterno Retorno: no nosso tempo, existir viver no meio
do caos, fora de qualquer sigoi ficado cosmolgico ou sentido de ordem. Amorte de Deus
trouxe a ressurreio do autntico nada; portanto, a f no pode mais aceitar o mundo como
69
Antropologia Filosfica
a criao! Mais uma vez, a f deve ver no mundo o caos. No entanto. teologicamente, o
mundo que o homem moderno chama de caos ou de nada semelhante ao mundo que a
f escatolgica intitula de velha era ou velha criao (aeofl), palavras essas que no tem
mais qualquer significado ou valor positivo. P0I1anto, a destruio da existncia do mundo
possibilitou a renovao da cra da f escatolgica; e uma negao definitiva e final em
relao ao mundo pode dialeticamcntc transformar-se numa afirmaao de f escatolgi-
ca" (A Morte de DeliS, 1967, p. 129, 130).
o prprio Zaratustra pode ver, na morte de Deus, a possibilidade da plena realizao do
super-homem, mas, dificilmente deixar de se inquietar com as perguntas do louco, ao des-
cobrir que Deus estava morto: "Para onde vamos ns? (... ) No estaremos caindo incessan-
temente? (... ) Haver ainda um acima, um abaixo? No erramos como atravs de um nada
infinito? No sentiremos na face o sopro do v a z i o ' ~ ( ... ) No ser preciso acender as lanter-
nas pela manh?".
Aparentemente, o homem precisa de um mnimo de ordem para conservar sua integridade
fsica e mental. O caos, como condio permanente, intolervel.
70
Captulo 2
Viso geral dos humanismos
Neste captulo apresentaremos uma viso geral dos humanismos, comeando com os pr-
socrticos e os sofistas, passando por Scrates, Plato e Aristteles, representantes do apogeu da
filosofia grega, e chegando ao epicurismo e ao estoicismo, que representam a fase de decadncia
caracterstica do helenismo. Concluiremos esta parte do captulo com uma palavra sobre o homem
na tragdia grega, por entender que os autores dessa literatura captaram, de modo singular, alguns
aspectos mais profundos do esprito humano. A seguir, falaremos sobre o humanismo renascentista,
salientando o pensamento de alguns dos seus mais notveis representantes, e indicando suas re-
percusses no mundo moderno. Concluiremos o captulo com urna breve exposio dos humanis-
mos marxista e existencialista, e do atesmo como forma de humanismo radical.
2.1. Conceito de humanismo
Historicamente, Humanismo o termo que descreve o movimento intelectual, literrio e
cientfico ocorrido do sculo XIV ao sculo XVI da nossa era crist, e que procurou fundamen-
tar todo o conhecimento nos valores culturais e literrios da Antigidade clssica. Os adeptos
desse movimento chamavam-se humanistas, em contraste com os escolsticos, termo designa-
tivo dos pensadores e mestres da Idade Mdia, tipicamente seguidores do sistema aristotlico-
tomista prevalecente ao tempo.
Os humanistas acreditavam que somente o conhecimento dos clssicos greco-romanos po-
deria formar o homem ideal e prefeito. A descoberta das grandes obras literrias e filosficas des-
ses antigos pensadores deu acesso ao pensamento original dos mestres da Antigidade clssica
at ento conhecidos apenas atravs de fontes secundrias. Essa nova fonte do saber, por sua vez,
Antropologia Filosfica
produziu uma nova cosmoviso, caracterizada, sobretudo, por um conceito secular da vida e do
homem. () secularismo implcito no humanismo provocou considervel mudana no pensamento
humano, partindo inicialmente da Itlia e se estendendo ao continente europeu, com repercusses
em todo o mundo modema. A viso transcendental da vida, que caracterizou o pensamento medi-
eval, deu lugar ao conceito naturalista centralizado nos valores humanos. Como era de esperar, o
novo esprito do homem rompeu com a teologia e a prpria Igreja, sem que isto representasse, ne-
cessariamente, uma forma de atesmo. O princpio do livre exame se tomou a tnicado humanismo,
possibilitando-lhes a reforma da Igreja e das estruturas scio-econmicas da sociedade.
Do ponto de vista filosfico. humanismo qualquer sistema de pensamento, que conside-
ra a interpretao da experincia humana como preocupao bsica de todo filosofar, e afirma a
adequao do conhecimento humano para esse propsito, sem depender de conceitos transcen-
dentais ou melafsicos. As razes desse pensamento podem ser encontradas no movimento in-
telectual do sculo V a.c., iniciado na Grcia pelos sofistas, e que tinha por objetivo criticar o estilo
pedante caracterstico da especulao estril dos sistemas metafsicos da poca.
Colocando o homem no centro do universo intelectual e dando a toda cincia e literatura uma
referncia vida humana, o humanismo representa um retorno ao relativismo crtico de Protgo-
ras. expresso em sua famosa afirmao de que "o homem a medida de todas as coisas, das que
so enquanto so e das que no so enquanto no so". Note-se, entretanto. que apesar de seu
declarado relativismo, que implica na negao da transcendncia do real e do verdadeiro, e de sua
oposio a qualquer forma de absolutismo, quer metafsico, quer epistemolgico, que ignore ou
destrua sua relao com o homem, o humanismo nega que seu relativismo seja sinnimo de ce-
ticismo. Ao contrrio, o humanismo, afirma que a verdade e a realidade atingvel pelo homem so
suficientes, alegando que o ceticismo produto inevitvel do Absolutismo, medida que ensi-
na que a verdade e a realidade "ahsolutas" no podem ser alcanadas pelo homem.
o humanismo difere tambm do positivismo, na medida que se dispe a admitir a adequa-
o do conhecimento humano, criticando a metafsica, porm sem ridiculariz-la dogmaticamen-
te e, sobretudo, admitindo qualquer hiptese que tenha interesse humano. A clebre frase de
Terncio "Homo sum, humani l1ihil a me alienum puto" (sou homem e nada do que humano me
indiferente) resume o esprito do humanismo moderno.
o uso do termo humanismo se generalizou de tal forma em nossos dias, que se tornou quase
impossvel descreve-lo adequadamente, visto que abrange tantos conceitos diferentes e se aplica
a tantas ideologias. Em geral, podemos dizer que o humanismo o tenno que se aplica a qualquer
filosofia que coloca o homem como centro do seu sistema de valores, ou que torna os valores
humanos como centro de interesse. Anfase do pensamento humanista recai sobre a singulari-
dade do indivduo, a dignidade do homem, como pessoa. a liberdade em todos os seus aspectos
e na luta pela realizao das potencialidades humanas. Em seu Humanismos e anti-humanismos:
introduo antropologiafilosjica (1988). Pedro Dalle Nogare apresenta trs sentidos funda-
mentais da palavra humanismo:
I.Humanismo histrico-literrio, que no dizer do autor "caracteriza-se pelo estudo dos gran-
des autores da cultura clssica, grega e romana, dos quais tenta imitar as formas literrias c as-
similar os valores humanos" (p. 15).
72
Viso geral dos humanismos
2.Humanismo especulativo-filosfico, que se refere aqualquer princpio doutrinrio que trate
da origem, natureza e destino do homem; a qualquer doutrina que tem por objetivo a dignifica-
o do homem.
3.Humanismo tico-sociolgico. Neste sentido, se "considera humanista aquela doutrina
que atribui ao homem, a sua realizao na sociedade e na histria, o valor de tIm, de forma tal que
tudo esteja subordinado ao homem, considerado individual e socialmente, e que o homem nun-
ca sejn considerado como meio ou instrumento para algo fora de si" (Dali e Nognre, p. l6).
De modo mais amplo, porm no fundamentalmente diferente, Augusle Etchevery apresen-
ta vrios conceitos de humanismos e os reduz a quatro tipos fundamentais, baseado na defini-
o de homem encontrada em diferentes sistemas de pensamento.
Para o humanismo racionalista, o homem pensamento. "um Esprito que se basta a si
prprio, uma Conscincia livre em perptuo progresso (... ). Tudo imanente ao homem: a verda-
de, ajustia, o dever, o prprio Deus. O homem, segundo a antiga mxima, a medida de todas
as coisas. Guardn no ntimo a regra soberana do Seu pensamento e da sua ao" (Etchcvery, ()
conflitu alllal dos humanismos, 1958, p. 14).
No existencialismo, a liberdade que define o homem. O homem e somente o homem res-
ponsvel por aquilo que ele se torna. " ao homem c unicamente ao homem que compete abrir
espontaneamente o seu caminho e segui-lo sem guia, sem auxlio, percorrendo-o at o fim (... ) O
bem e o mal no exisle antes de sua escolha. Sob um cu vazio, est abandonado na Terra, no
podendo contar seno consigo mesmo, em face de responsabilidade infinita. Est separado do
mundo por um abismo e dos outros por um muro de hostilidades. S um sentimento de angstia
preenche esta solido" (Etchcvery, p. IS). Dada a importncia do existencialismo para o mundo
moderno, voltaremos ao assunto, ainda neste captulo, ao tratarmos dos humanismos contem-
porneos.
No humanismo marxista, o homem visto como () produto da evoluo material e social.!\
histria da humanidade, incluindo obviamente o seu futuro, dominada por fatores econmicos.
So os fatores econmicos (infra-estrutura, que modela as superestruturas (instituies polti-
cas e jurdicas, sistemas filosficos, moral e religio). No presente cstgio, o homem ainda no
conseguiu as condies necess<'rias plena realizao de suas potencialidades. "O homem
conseguir sacudir o jugo que lhe pesa sobre os ombros, vencer pela revoluo a sua misria aluaI
de indivduo egosta, e adquirir, no triunfo coletivo, uma personalidade transfigurada. O adven-
to do comunismo far nascer uma nova humanidade" (Etchevery, p. 15). Este assunto tambm ser<
objeto de mais ampla discusso ainda nesse captulo.
O quarto tipo fundamental de humanismo discutido por Etchevery o cristo, a respeito do
qual h enormes divergncias. O prprio autor pergunta: "No ser, portanto, paradoxal a unio
destes dois termos, humanismo e cristo?" (p. 271). Se, por um lado, o cristianismo afirma o valor
e dignidade do homem como pessoa singular, por outro afim1a categoricamente que ele no pode
realizar-se plenamente sem Deus. Como se v, so conceitos que, se tomados at s ltimas con-
seqncias, so irreconciliveis. Portanto, s se mantendo considervel distncia, da definio
fundamental dos dois conceitos, que se conseguir unir os termos humanismo e cristo de modo
mais ou menos confortvel.
73
Antropologia Filosfica
o grande telogo Karl Rahner, no captulo sobre humanismo cristo, em seu livro Teologia
e antropologia (1969), diz: "Talvez devssemos acrescentar a este ttulo um ponto de interroga-
o" (p. 155). Admite o referido autor a impossibilidade de se chegar a uma concluso plenamen-
te satisfatria, quer para o humanista, quer para o telogo cristo.
Mesmo reconhecendo a legitimidade do conceito de "humanismo cristo", Rahner reconhe-
ce tambm a aparente contradio da idia. Ao longo de sua erudita discusso do assunto, o autor
formula duas questes pertinentes e inquietadoras. A primeira pergunta : "No devemos acaso
reconhecer: aquilo que sabemos do homem, sabemo-lo a partir dele mesmo c no a partir de Deus,
de quem apenas sabemos a partir do homem'?" (p. 165). Aparentemente, essa questo tem a ver
com o antropocentrismo implcito do humanismo, que torna desnecessria a busca do conheci-
mento e significado fora do prprio homem. Ora, a mensagem por excelncia do cristianismo um
constante apelo no sentido de o homem buscar no Outro, isto , em Deus, a possibilidade de sua
plena realizao. O homem deve se abrir ao Sagrado como condio da plenitude de sua vida como
pessoa humana.
A segunda questo proposta por Rahner esta: "(... ) a teologia algo mais do que a antro-
pologia negativa, isto , a experincia de que o homem se escapa continuamente para dentro do
mistrio incompreendido e indisponvel?" (p. 165, 1(6). No seria a teologia crist uma completa
negao da proposta do humanismo? Ao invs de se refugiar no mistrio, por que no buscar em
si mesmo as possibilidades de sua plena realizao'? Mais adiante, Rahner declara: "Deste modo,
todo homem realiza necessariamente o seu humanismo, isto , a sua maneira concreta de enten-
der e de realizar a existncia". E concluiu: "O cristianismo no , portanto, a criao de um deter-
minado humanismo concreto, mas a constante crtica e superao de seu pretenso carter de
absoluto, a aceitao da experincia do prprio humanismo como um humanismo que perma-
nece constantemente criticvel" (p. 167).
Acredito que esse telogo catlico encontrou, aqui, uma forma convincente de falar do
cristianismo como forma de humanismo.
Provavelmente, a crtica mais severa que se faz pretenso de se falar do cristianismo,
como forma de humanismo, sua nfase sobre a indigncia do homem, sua fragilidade e intei-
ra dependncia de Deus. Por exemplo, Inocncio III escreve Do desprezo do homem, em que,
como cristo, salienta a culpa e a degenerescncia do homem. Pico della Mirandola, como
humanista, escreve Da dignidade do homern, em que defende a tese de que o homem cria seu
prprio destino.
A crtica demolidora de Nietzsche, principalmente em O crepsculo dos dolos c em O an-
ticristo, sugere que o cristianismo jamais poder ser considerado como humanismo, pois repre-
senta, na opinio do autor de Assim/alava Zaratustra, sua contundente anttese. Em O creps-
culo dos idolos, Nietzche diz: "(... ) fazer da humanitas uma contradio, uma arte de poluio, urna
averso, um desprezo por todos os instintos bons e retas! Foram estes os benefcios do cristi-
anismo (... ). conspirao contra a beleza, a rctido, a audcia, o esprito, a beleza da alma, contra
a prpria vida (... ). Considero o cristianismo a nica grande calamidade, a nica perverso i n t e ~
riar, o nico grande instinto de dio" (citado por Etchevery, p. 272).
74
Viso geral dos humanismos
Mesmo sem o radicalismo de Nietzche, temos dificuldade em harmonizar os termos huma-
nismo e cristo. Blackman diz que "o humanismo um esforo do homem para pensar. sentir e agir
por si prprio e aceitar a lgica dos resultados" (Objees ao humanismo. 1969. p. 4). Ora. enten-
demos que o cristianismo parte de um pressuposto teocntrico e ensina claramente que o homem
um ser carente que no se basta a si mesmo. Portanto, a rigor, o cristianismo algo diferente de
humanismo. O cristianismo uma religio e, por extenso, uma filosofia de vida. "O humanis-
mo". diz Blackman, " uma posio filosfica e precisa de uma sustentao filosfica. mas no
uma filosofia" (p. 16). Advoga tambm que "tornar-se urna religio, bem corno tornar-se uma
filosofia, seria a morte do humanismo". E conclui: "Talvez a nota caracterstica do humanismo seja
um materialismo altrusta, telTeno e <lpaixonado" (p. 17).
Em face de tudo isso, conclumos que o cristianismo uma religio revelada e no um sis-
tema filosfico especulativo. Ele parte do pressuposto de que o homem no pode redimir-se a si
mesmo, mas tem que depender da graa de Deus, para sua realizao. Portanto, a rigor, o cristi-
anismo no mero humanismo, a no ser que se d ao termo o significado de realizao plena do
homem, independentemente da indicao dessa fonte de realizao - Deus ou o prprio homem.
2.2. Humanismo clssico
Usamos aqui o tenno humanismo clssico para nos referir ao pensamento sobre o homem entre
os gregos, compreendendo o perodo que vai dos pr-socrticos at ao peiodo da decadncia grega,
com o epicurismo e o estoicismo. Incluiremos aqui uma nota sobre a tragdia grega, por entender
que este um dos mais contundentes aspectos das concepes antropolgicas entre os gregos.
evidente que essa viso panormica se prende a autores e temas que tratam mais especi-
ficamente do problema antropolgico. No se trata, portanto, de urna histria da filosofia. Mui-
tos pensadores importantes no sero sequer mencionados. Outros sero apresentados apenas
no que se refere ao aspecto antropolgico de seu pensamento, deixando de lado outros conte-
dos relevantes, por no serem parte essencial de nosso objetivo no presente trabalho.
2.2.1 Os pr-socrticos
Os filsofos pr-socrticos ocupam lugar relevante na histria do pensamento humano. A
rigor. eles representam a primeira tentativa de compreenso racional do universo. Com eles a mente
humana ousa explicar o mundo sem depender do mito e do transcendente.
Em sua famosa Histria de laJilosoJia, Nicolas Abbagnano aponta algumas das caracters-
ticas da filosofia pr-socrtica, que passamos a comentar.
Observa-se na filosofia pr-socrtica o predomnio do problema cosmolgico. Como foi dito
no incio do primeiro captulo deste livro, os filsofos desse perodo eram chamados de Fsicos.
precisamente porque seu pensamento se concentrava na natureza como dado objetivo. claro
que isso no exclui o homem, mas, para os pr-socrticos, ele apenas um elemento da natureza
e no o centro do filosofar. A constituio do homem explicada pelos mesmos princpios que
75
Antropologia Filosfica
constituem o mundo fsico. Nesse estgio do pensamento no se reconhece ainda o carter
especfico da existncia humana. O objetivo da filosofia pr-socrtica encontrar e reconhecer,
alm das aparncias mltiplas e em constante mutao, a unidade que constitui a natureza do
mundo, a substncia nica que constitui () seu ser, nica lei que rege seu devir.
Para Os pr-socrticos. a substncia a matria da qual todas as coisas so compostas.
a fora que explica a composio, o nascimento, a morte e a eterna mutao do mundo. Asubs-
tncia o princpio que torna inteligvel a unidade do mundo, mesmo em face de sua multiplici-
dade. Para eles, a natureza algo dinmico. Pensavam na substncia como princpio de ao c
de inteligibilidade de tudo o que mltiplo e em processo de se tornar. Entre os pr-socnticos
prevalecia o hilozosmo, isto , a idia de que a substncia primordial de que so constitudos os
corpos tem, em si, uma fora que d vida c movimento a todas as coisas.
A filosofia pr-socrtica se preocupou com a possibilidade do conhecimento da natureza,
tendo como ponto da partida o conhecimento da substncia, concebida como princpio do ser
e do devir. No h dvida de que essa conquista do pensamento humano se prendia, inicialmen-
te, apenas ao mundo fsico. Mas tambm evidente que dela no se pode separar o homem c seu
mundo interior. O homem no pode buscar o conhecimento do mundo objetivo sem de alguma
forma envolver sua subjetividade - o reconhecimento do mundo interior ou do eu. O homem no
pode reconhecer uma suhstncia que constitua o ser e o princpio das coisas externas sem reco-
nhecer ao mesmo tempo a substncia de sua existncia, como individuo, em sua singularidade
ou na sociedade. A investigao do mundo externo pressupe ou est ligada busca do conhe-
cimento do mundo interior. O conhecimento pressupe o conhecedor.
Verificamos, ento, que os filsofos pr-socrticos tornaram a natureza algo objetivo, con-
dio fundamental para seu estudo cientfico. Aobje-tividade da natureza, entretanto, no exclui
a subjetividade. Portanto, apesar da nfase cosmolgica, podemos detectar, nos filsofos pr-
socniticos, uma preocupa<;o antropolgica j distinta da viso mstica e mitolgica de pocas
anteriores do pensamento humano.
Para o estudo atuaI dos pr-socrticos, contamos com trs fontes principais, a saber: os frag-
mentos, a doxografia, e a crtica moderna de alguns filsofos. Lamentavelmente no existem obras
completas desses pensadores. O que nos resta so fragmentos, frases mais ou menos soltas e iso-
ladas, que nem sempre nos deixam perceber aextenso do seu pensamento. Oque restou dos escritos
dos pr-socrticos, foi coligido por Hermann Dicls em "Os fragmentos dos pr-socrticos", traba-
lho citado em todos os livros que tratam do pensamento desses filsofos antigos.
Grande parte do que se conhece do pensamento dos pr-socrticos nos vem por meio da
doxografia, ou seja, de textos de autores antigos citando a doutrina desses filsofos. Por exemplo,
Aristteles, na Metafsica, faz referncia ao pensamento de Tales de Mileto; na Fsica, se refere a
Anaximandro, e assim por diante. Convm salientar que essas citaes no so necessariamente
textuais e que quase sempre representam a interpretao dada ao pensamento do filsofo citado.
A terceira fonte para o estudo atual dos pr-socrticos so comentrios feitos ao pensamen-
to desses autores por filsofos modernos como Nietzsche, Hegel e Heidegger, para mencionar
76
Viso geral dos humanismos
apenas alguns dos descobridores da importncia da filosofia pr-socrtica. Mais uma vez, se sa-
lienta aqui o fato de que esses filsofos modernos comentam o pensamento dos
a partir dJ doxografia, cuja autenticidade reconhecem.
Salientaremos, a seguir, aspectos do pensamento de alguns dos filsofos pr-socrticos,
especialmente dos que tratam mais diretamentc do problema antropolgico.
TALES DE MILETO (c. 64(}625 a.C:!). Considerado um dos "Sele Sbios" da Grcia, Tales.
de antecedncia fencia, era natural da lnia, na sia Menor. Por volta de 585 a.c., a1canl aponto
mximo de sua carreira como poltico, astrnomo, matemtico, fsico e filsofo. Aparentemente
nada escreveu. No h sequer fragmentos de sua obra. O conhecimento de sua doutrina
de inteiramente da doxografia existente.
Por que comear com Tales de Mileto? Para Aristteles, ele foi o primeiro filsofo, no sen-
tido prprio do termo. foi ele que tentou estabelecer o conceito do fundamento primeiro de todo
ser. comeando assim os alicerces da metafsica. O saber por ele procurado no o saber
nrio. mas o metafsico, o filosfico. Ora, se Tales o primeiro filsofo e se no se pode filosofar
parte do homem, evidente que, mesmo sem urna doutrina especfica sobre o homem. ele deve
ser includo neste estudo. Se a metafsica a cincia do ser, no pensamento de Tales est impl-
cito o estudo cientfico do homem.
Para Tales, a gua o elemento primordial da natureza; ela o princpio dos seres. Essa
darao atribuda a Tales de Mileto por Aristteles, em sua Metafisica, onde diz:
A maior parte dos primeiros filsofos considerava como os nicos princpios de todas as
coisas os que so da natureza da matria (... ) pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do
que uma, onde as outras coisas engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao nmero
e natureza desses princpios, nem todos dizem o mesmo. Tales, o fundador de tal filosofia, dil'o
ser a gua "o princpio" ( por este motivo tambm que ele declarou que a terra est sobre a gua),
levado sem dvida a esta concepo por ver que o alimento de todas as coisas mido, e que
o prprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de que as coisas vm , para todos. o seu
princpio (citado em Os de Jos Cavalcante de Souza, p.7).
A idia da gua como princpio primordial parte da longa tradio mitolgica, comum s
teogonias c cosmogonias do Antigo Oriente, em que o caos aquoso seria o elemento do qual o
cosmos roi gerado. Em Tales, entretanto, a glJa lima realidade sensvel, o substrato e a fora
geradora de tudo quanto existe.
Hegel, em suas Prelees sobre a histria dafi/osofia, interpreta essa doutrina de Tales nos
seguintes termos: "A proposio de Tales de que a gua o absoluto ou, como diziam os anti-
gos, o princpio, filosfica; com ela a Filosofia comea, porque atravs dela chega conscin-
cia de que o um a essncia, o verdadeiro, o nico que em si e para si" (citado em Os pr-
socrticus. de Jos Cavalcante de Souza, p. 9).
Comentando essa teoria de Tales de Mileto, Nietzsche diz o seguinte:
77
Antropologia Filosfica
"A filosofia grega parece comear com uma idia absurda, com a proposio: a gua a
origem e a matriz de todas as coisas. Ser mesmo necessro deter-nos nela e lev-Ia a s-
rio? Sim, e por trs razes: em primeiro lugar, porque essa proposio enuncia algo sobre
a origem das coisas: em segundo lugm, porque o faz sem imagem c fabulao; e, enfim, em
terceiro lugar, porque neta, embora apenas em estado de crislida. cst contido O pensamento:
"Tudo um". Arazo citada em primeiro lugar deixa Tales em comunidade com os religi-
osos c supersticiosos: a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador
da natureza, mas em virtude da terceira, Tales torna-se o primeiro filsofo grego" (citado
em Os pr-socrticos, de Jos Cavalcante de Souza, p.l O).
Mais prxima ainda do tema antropolgico est a frase atribuda a Tales: "Todas as coisas
esto cheias de deuses". Essa declarao tambm atribuda a Tales por Aristteles, em seu
tratado sobre a alma. Diz o texto: "afirmam alguns que ela (a alma) est misturada com tudo. por
isto que, talvez, tambm que Tales pensou que todas as coisas esto cheias de deuses. Parece
tambm que Tales, pelo que se conta, sups que a alma algo que se move, se que disse que
a pedra (m) tem alma, porque move o ferro" (Da a/ma, S, 411 a 417).
Na interpretao de Werner Jaeger, a frase atribuda a Tales quer dizer que tudo no mundo
est cheio de foras vivas e misteriosas; tudo no mundo, por assim dizer, tem uma alma. No mesmo
contexto de interpretao, Franois Chtelet diz: "Por isso, cremos que dizendo que tudo ple-
no de divindades e que o mundo divino em seu conjunto, Tales quis muito mais afirmar a au-
tonomia e a homogeneidade do mundo, contra todas as formas de separao que implica a ordem
do sagrado, do que manter um tema mtico e teolgico" (Histria dafilosqfia, Vai .r, p. 26). Por
sua vez, Hirschberg diz que aqui o divino se afirma como uma realidade prpria. Mesmo que o
pensamento racional no ratifique os deuses da crena popular, a nova experincia da natureza
atesta o divino do qual tudo est cheio. E, depois de afirmar da doutrina de Tales, conclui com
uma citao de Jaeger: "Na porta de entrada do conhecimento cientfico do ser, que comea com
Tales, est a inscrio visvel de longe dos olhos do esprito: 'Entra, tambm aqui h deuses'"
(His/ria daji'losofia na antigidade, 1969, p.36.).
HERCLITO DE FESO (540-480 a.c.). Descendente dos fundadores da cidade de fe-
so, Herclito era um tipo arrogante, misantropo e melanclico. Escreveu um livro - Sobre a
natureza -- que. segundo Digenes Larcio, seu doxgrafo, d i v i d e ~ s e em trs partes: Do uni-
verso, poltica e leologia. No dizer de Brehier (1977), essa obra a primeira em que nos defron-
tamos com uma verdadeira filosofia, isto , com uma concepo do sentido da vida humana in-
serta numa doutrina reflexiva do universo. Aobra foi escrita no dialeto jnico e num estilo pouco
acessvel ao homem comum. O estilo de Herclito lhe angariou o epteto de "o obscuro", que ele
nem sequer tentou abrandar durante toda a vida.
Herclito considerado o mais notvel pensador pr-socrtico, por haver formulado o pro-
blema da unidade permanente do ser, diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particula-
res e transitrias. Estabeleceu a existncia de uma lei universal e fixa - o 10ROS - que reage todos
os acontecimentos particulares e fundamenta a harmonia universal, harmonia essa feita de ten-
so, "como a do arco e da lira".
De sua obra restam numerosos fragmentos (cerca de 130), que so, no dizer de Hirschberg
(1969), como pedras preciosas, raras e cheias de um brilho obscuro. O pensamento de Herclito
78
Viso geral dos humanismos
est muito presente no mundo moderno, principalmente na obra de Hegel. No existe frase de
Herclito que ele no tenha integrado em sua Lgica.
Salientaremos a seguir alguns pontos principais do pensamento de Herclito.
o ponto de partida do pensamento de Herclito de feso a verificao do incessante devir
de todas as coisas. O mundo para ele um Ouxo perene. O famoso fragmento n 91 diz: "No se
pode entrar duas vezes no mesmo rio". Da segunda vez que entrar nas guas, o rio no mais
o mesmo ro. e o homem no mais o mesmo homem. No se pode tocar duas vezes numa mesma
substncia mortal num mesmo estado; devido velocidade do movimento, tudo se dispersa e tudo
se recompe de novo; tudo vai e tudo vem. Esse Ouxo eterno do ser constitui a essncia do
mundo. Para Herclito o elemento primordial do universo no nem a gua, nem o ar, nem o apei-
ron de Anaximandro, mas o devir. A substncia. elemento primordial do mundo, deve explicar seu
constante devir, mediante a prpria mobilidade. Para ele, substncia afogo, no como elemen-
to corpreo, mas como princpio ativo, inteligente e criador. O fragmento n 90 explicita o assun-
to: "O fogo se transforma em todas as coisas e todas as coisas se transformam em fogo, assim
como se trocam as mercadorias por ouro e o ouro por mercadorias". O fogo, para Herclito, o
smbolo da eterna agitao do devir e, portanto, da razo universal ou do logos. O fogo a forma
dos fenmenos. Como diz o famoso fragmento n 30: "Este mundo, igual para todos, nenhum dos
deuses e nenhum dos homens o fez: sempre foi, e ser um fogo eternamente vivo,
se e apagando-se conforme a medida".
o devir heracltico se encontra sempre entre os contrrios e so estes que o conservam em
constante fluxo. Em ns, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: "vida e morte, viglia e sono,
juventude e velhice. Pois a mudana de umad o outro, e reciprocamente" (fragmento n 88).
vez o fragmento mais expressivo desse ponto de vista seja o de nmero 53, que diz: "a guerra
o pai de todas as coisas e de todos o rei: a uns aponta como deuses, a outros como homens; a
uns faz escravos, outros livres". Jos Trindade dos Santos, em seu livro Antes de Scrates: in-
troduo ao estudo dafllosofia grega (1948), diz que este fragmento nos abre duas perspecti-
vas: de um lado, mostra-nos a relati vidade dos contrrios (deuses/homens, homens li vres/escra-
vos), e do outro, aponta-nos o princpio gerador da oposio. O fragmento nos apresenta a com-
plementaricdade entre trs planos em contlito, como forma de causalidade: por causa da guer-
ra que os deuses se opem aos homens, c os homens livres aos escravos. Mas, na condio de
escravos dos deuses, os homens s vem o sofrimento. Da o esclarecimento de Herclito, no
fragmento n 111: "Doena faz a sade boa e agradvel, fome a saciedade, fadiga o repouso". "A
primeira lio a retirar da contraposio desta srie de plos opostos a de que o bem que um
representa depende do mal do outro. Sem a ameaa da doena, a sade seria no to apreciada,
o mesmo se dando com a saciedade e o repouso" (Santos, p.85). No mundo tudo se explica pelos
contrrios. O nascimento e a conservao dos seres se deve a um conflito de contrrios que mu-
tuamente se opem e se mantm. "Desejar, com Homero, que se 'extinga a discrdia entre os
deuses e os homens' pedir e destruio do universo. Esse fecundo conflito, que , ao mesmo
tempo, harmonia, no no sentido de relao numrica simples, como entre os pitagricos, mas no
sentido de ajustamento de foras agindo em sentido oposto, como as que mantm tensa a corda
de um arco: assim se limitam e se unem, harmnicos e discordantes, o dia e a noite, o inverno e
o vero, a vida e a morte" (Brhier, 1977, p. 51).
79
Antropologia Filosfica
S se une o que se ope: do diverso que brota a mais bela harmonia. Para Herclito. o
prprio Deus a conjuno de todos os contrrios.
Outro ponto relevante do pensamento de Herclito,j mencionado no primeiro captulo deste
livro. o conceito de logos como lei divina que rege todo o universo. O logos para Herclito
a lei reguladora do mundo e do devir; a razo universal. Mas, ao contrrio do ensino cristo que
diz que o logos Deus e o identifica com Jesus de Nazar, para Herclito o jogos no um es-
prito pessoal transcendente, mas a imanente legislao do devir.
O ponto central do nosso interesse, no pensamento de Herclito de feso, est em sua
antropologia. Na filosofia heracltica, o problema antropolgico deixa de ser algo perifrico e passa
a ocupar o centro do sistema. o que sugere o fragmento n 101, que diz: "Procurei-me a mim
mesmo", que, de certo modo, lembra u famoso "Conhece-te a ti mesmu", do templo de Delfos,
ponto de partida da filosofia moral de Scrates.
Comentando-se as tendncias da filosofia da poca, Werner Jaeger, em seu famoso livro Pai-
dia: aformao do homem grego, diz que us milesianos, principalmente Parmnides, procuram
uma intuio objetiva do Ser e dissolvem o mundo humano na imagem da natureza, enquanto quc
em Herclito u corao humano constitui o centro emocional e apaixonado, para onde conver-
gem os raios de todas as foras da natureza. E diz mais: " impossvel exprimir o regresso da
filosofia ao homem, de modo mais grandioso du que aquele que nos aparece em Herclito" Cp. 207).
Mais adiante, o autor sintetiza o assunto, dizendo:
"A doutrina de Herclito surge como a primeira antropologia filosfica, em face dos filso-
fos primitivos. Asua filosofia do Homem , por assim dizer, o mais interior de trs crculos
concntricos, pelos quuis a sua filosofia se pode representar. O crculo antropolgico est no
interior do cosmolgico e do teolgico; estes crculos no se podem, contudo, separar. De modo
nenhum se pode conceber o antropolgico independentemente do cosmolgico e do teolgi-
co. O Homem de Herclito lima purte do cosmos. Nessa condio cst[\ igualmente subme-
tido s leis do cosmos, lal como as suas restantes partes. Quando, porm, ganha conscincia
de que truz no seu prprio esprito a lei eterna da vida do todo, adquire a capacidade de
participar da mais alta sabedoria, cujos decretos procedem lei divina" (p. 211).
No h, portanto, exagero quando de afirma que, dentre os filsofos pr-socrticus, Her-
clito de fesu ocupa lugar de relevo no que cuncerne sua preocupao com o homem como
objeto central ao ato de pensar.
DEMCRITO DEABDERA(460- 370 a.c.). Conhecido como o "filsofo que ri", Dem-
crito foi contemporneo e antagunista de Plato. A rigur, no devia ser colocado entre os pr-
socrticos. mas, na impossibilidade prtica de separar na doutrina atomista o que dele e o que
do seu mestre Leucipo, costume dos historiadores da filosofia coloc-lo neste perodo.
Considerado como o sistematizador du atomismo, concepo materialista do mundo, Dem-
crito se ops ao idealismo de Plato, bem cumu ao conceito teleolgico, a que contrape a cuncep-
o mecanicista. Confonne o testemunho dos antigos, Demcritu de Abdera foi um grande escri-
tor. Dentre as obras que trazem o seu nome, as seguintes: A grande urdenatio, A
80
Viso geral dos humanismos
pequena ordenao, Do intelecto e das/armas. Obras de contedo moral, como: Do bom nimo.
Preceitos, e outras, provavelmente representam a realizao conjunta da prpria escola que dirigia.
O pensamento de Demcrito marcou poca e teve enorme repercusso na histria da humanidade.
O atomismo representa o amadurecimento do naturalismo que caracterizou o pensamento
da escola filosfica de Mileto. As bases do atomismo foram lanadas por Leucipo, mas seu
desenvolvimento formal coube a Demcrito, o maior naturalista de seu tempo. O atomismo con-
corda com os pensadores da escola eletica, quando afirmam que somente o Ser , mas prope
levar este princpio experincia sensvel e se servir dele para explicar os fenmenos. Para De-
mcrito, o Ser o Pleno e o No-Ser o Vazio, e advoga que o Pleno e o Vazio so os princpios
constitutivos de todas as coisas. O Pleno, porm, no um todo compacto; formado por um
nmero infinito de elementos invisveis, por causa da pequenez de sua massa. Se estes elemen-
tos fossem divididos infinitamente, eles se dissolveriam no Vazio. Devem ser, portanto, indivis-
veis, e por isto so chamados de tomos. Somente os tomos so contnuos em seu interior.
Todos os demais corpos no so contnuos, porque resultam de simples cantata dos Momos e
por isto podem dividir-se. Os tomos no diferem entre si quanto natureza, mas somente quan-
to forma e ao tamanho. So os tomos que determinam a vida e morte das coisas, mediante a
unio e So eles tambm que determinam a diversidade e a mudana das coisas,
mediante slla ordem e posio. Na interpretao de Aristteles, os tomos so semelhantes s
letras do alfabeto. diferentes entre si pela forma, mas capazes de originar palavras e discursos
diversos, mediante diferentes combinaes. Todas as qualidades dos corpos dependem, portan-
to, da figura dos tomos e da ordem de combinao dos mesmos. Por isto, nem todas as quali-
dades sensveis so objetivas e pertencem, de fato, s coisas que as provocam em ns.
Os tomos esto sujeitus a um movimento espontneo, pelo qual se chocam entre si, dan-
do origem ao nascimento, morte e mudana das coisas. O movimento dos tomos determi-
nado por leis imutveis. O muvimento original dos tomos. fazendo-os rodar e entrechocar em
todas a direes, produz um turbilho por meio do qoal as parles mais pesadas so levadas ao
centro, e as leves so lanadas na periferia. Deste modo se formam mundos infinitos, que inces-
santemente se conSlroem e se destroem. Temos aqui, portanto, uma explicao mecanicista do
mundo. A natureza no mais concebida corno estando cheia de deuses, como nas concepes
mitolgicas. Esta uma viso completamente materialista do mundo.
O movimento dos tomos explica tambm o conhecimento humano. Asensao provm das
imagens que as coisas produzem na alma, mediante os fluxos ou correntes de tomos que delas
emanam. A sensibilidade, portanto, se reduz ao tato, visto que todas s sensaes so produzi-
das pelo contato, com o corpo do homem, dos tomos que provm das coisas. O acesso do homem
ao conhecimento limitado. o que diz Demcrito, no fragmento n 7: "Esta demonstrao torna
claro que, na realidade, nada sabemos de nada, mas a opinio de cada um consiste na influncia
(dos tomos ou imagens da percepo)". E, do mesmo teor, o fragmento nO 6, que diz: "O hu-
mem deve reconhecer, segundo esta regra, que est afastado da realidade (Verdade)".
As sensaes das quais o conhecimento se deriva variam de pessoa a pessoa. inclusive na
mesma pessoa, de acordo com as circunstncias, de tal forma que no oferecem um critrio ab-
soluto do certo e do en'ado. Note-se, porm. que essas limitaes no afetam o conhecimento in-
81
Antropologia Filosfica
telectual. Se bem que sujeito s condies fsicas do organismo, o conhecimento intelectual
superior ao conhecimento sensvel, porque permite apreender, alm das aparncias, o ser do mun-
do: o vcuo, os tomos e seu movimento. Onde termina o conhecimento sensoriaL a comea o
conhecimento racional, que um rgo mais sutil e que alcana a realidade em si. Aanttese entre
o conhecimento sensorial e o racional to marcante como a existncia entre o carter aparente
e convencional, das qualidades sensveis, e a realidade dos tomos e do Vazio. o que sugere
parte do fragmento n 125, que diz: "(.,,) conforme a conveno dos homens existem a cor, o doce,
o amargo: em verdade, contudo, s existem os tomos e o vazio".
Um dos pontos mais importantes da filosofia de Demcrito de Abdera referente tica. Para
ele, o bem maior a ser buscado pelo homem a felicidade, que no reside nas riquezas materiais,
mas na alma. "A felicidade no reside nem em rebanhos nem em ouro: a alma a morada do di-
mon" (fragmento nO 171). O fragmento n 191 resume a doutrina tica de Demcrito:
"Pois, para o homem, a tranqilidadc provm da moderao no prazer e dajusta medida na
vida. Aeficinciae o exesso provocam mudanas e grandes movimentos na alma. As almas
agitadas por grandes movimentos perdem o seu equilbrio e a sua tranqilidade. Deve-se,
portanto, aplicar o esprito ao impossvel e contenta-se com o presente, sem dar demasi-
ada ateno ao que se inveja e admira ou prender nisto o pensamento: deve-se ao wnlrrio,
ter sob os olhos a vida dos miserveis e atentar aos que sofrem; assim, a tua situao e as
tuas posses parecero grandes e invejveis, e, cessando ento de desejar mais, evitars sofrer
o mal na alma pois quem admira os ricos e aqueles que outros homens louvam felizes, no
desprendendo deles o seu pensamento de toda hora, ver-se- forado a empreender cons-
tantemente novos meios, fazendo renovadas tentativas, levado pelo desejo de agir contra
as proibies da lei. Por isto, no se deve cobiar, mas contentar-se com o que se possui,
comparando a nossa vida com a dos mais miserveis, e, considerando os seus sofrimentos,
julgar-se feliz por sofrer menos. Adotando esta maneira de pensar, viver-se- mais tranqi-
lamente, evitando no poucas calamidades na vida: a inveja, a ambio, a inimizade",
ofragmento na 69 faz diferena entre o bem e o simplesmente agradvel. "Para todos os ho-
mens, o bem e o verdadeiro so o mesmo; agradvel uma coisa para um e outra para outros". O
prazerem si mesmo no um bem; devemos escolher o que belo, como sugere o fragmento n0207.
A tica de Demcrito no corresponde ao hedonismo que se esperaria como corolrio do seu
materialismo. Aseu objetivismo naturalista corresponde um subjetivismo tico ou moral. Para ele,
a regra da ao moral o respeito prprio, como indica o fragmento n 264: "No se deve temer
mais aos outros do que a si prprio, como no se deve praticar o mal sob o pretexto de que nin-
gum ou a humanidade inteira o saber. Muito mais, a ns prprios que devemos temer, e nada
fazer de mal deve ser a lei da alma". Atica de Demcrito se caracteriza tambm por seu contedo
cosmopolita. "Para um sbio todas as terras so acessveis; pois a ptria de uma alma virtuosa
o universo" (fragmento n 247). Valoriza, tambm, a democracia e condena a escravido. Diz ele:
"A pobreza de uma democracia melhor do que a assim chamada felicidade no pao dos prnci-
pes, assim com a liberdade melhor do que a escravido" (fragmento n 251). O idealismo tico
de Demcrito se expressa muito bem no fragmento n 174, que diz: "Quem se sente inclinado a
praticar aes justas e conforme as leis, para ele alegre, forte e livre de preocupaes tanto o
dia como a noite; mas quem no obedece justia e no faz o que deve fazer, a este tudo se torna
desagradvel, quando lembra o passado, e sofre o medo e se atormenta".
82
Viso geral dos humanismos
Friedrich Nietzsche, em O nascimento da filosofia na poca da tragdia grega, faz uma
avaliao do atomismo de Demcrito e, dentre outras coisas, afirma:
"De todos os sistemas antigos, o de Demcrito o mais lgico: pressupe a mais estrita
necessidade presente em toda parte, no h nem interrupo brusca nem interveno es-
tranha no curso das coisas. S ento o pensamento se desprende de toda a concepo an-
tropomrfica do mito; tem-se, enfim, uma hiptese cientificamente utilizvel; esta hip-
tese, o materialismo. sempre foi da maior utilidade. a concepo mais terra-a-terra; parte
das qualidades reais da matria, no procura Jogo de incio, como a hiptese de Naus ou
as causas finais de Aristteles, ultrapassar as foras mais simples. um grande pensa-
mento reconduzir s manifestaes inumerveis de uma fora nica, da espcie mais
comum, todo esse universo cheio de ordem e de exata finalidade. Amatria que se move
segundo as leis mais gerais produz, com o auxlio de um mecanismo cego, efeitos que
parecem os desgnios de uma sabedoria suprema" (ln: Os pr-socrticos, de Jos Caval-
cante de Souza, p.349, 350).
2.2.2 Os sofistas
Os sofistas so "filsofos malditos" que tiveram a pouca sorte de cair na antipatia de S-
crates e de seus discpulos e continuadores, como Xenofonte, Plato e Aristteles.
Para Plato, refletindo o pensamento de Scrates, o sofista o indivduo que se vangloria
de tudo saber, e que, na realidade, no passa de um simulador que desconhece a verdadeira
cincia. No dilogo em que ironiza a sofstica., Plato recapitula e resume sua definio do sofis-
ta, na discusso entre o Teeteto e o Estrangeiro. Eis o trecho do dilogo travado entre os dois:
"Estrangeiro: Primeiramente descansemos e durante esta pausa vejamos o que dissemos. Sob
quantos aspectos se apresentou a ns o sofista? Creio que, em primeiro lugar, ns descobrimos
ser ele um caador interesseiro de jovens ricos".
Teeteto: - Sim.
Estrangeiro: - Em segundo lugar, um negociante, por atacado, das cincias relativas alma.
Teeteto: - Perfeitamente.
Estrangeiro: - Em seu terceiro aspecto, e em relao s mesmas cincias, no se revelou ele
varejista?
Teeteto: - Sim, e o quarto personagem que ele nos revelou foi o de produlore vendedor destas
mesmas cincias.
Estrangeiro: - Tua memria fiel. Quando ao seu quinto papel, eu mesmo procurarei lem-
br-lo. Na realidade, filiava-se ela arte da luta, como um atleta do discurso, reservando, para si,
a erstica.
Teeteto: - Exatamente.
Estrangeiro: - O seu sexto aspecto deu margem discusso. Entretanto, ns concordamos
em reconhece-lo, dizendo que ele quem purifica as almas das opinies que so um obstculo
s cincias.
Teeteto: - "Perfeitamente" (O sofista. traduo de Jorge Paleikat e Cruz Costa. Porto Alegre.
Editora Globo, 1955. p. 198).
83
Antropologia Filosfica
Em A repblica, o genial discpulo de Scrates refere-se tambm aos sofistas cm tom desfa-
vorvel. Diz ele: "Que todos esses indivduos mercenrios, aguem a multido chama sofistas c con-
sidera como seus adversrios outra coisa no ensinam seno o que o vulgo expressa em Sllas reu-
nies; e a isso que chamam cincia" (A repblica, Livro VI, traduo de Leonel Vallandro, p. 1(3).
Aristteles, por sua vez, no menos crtico em relao aos sofistas. Em seu tratado Dos
argumentos sojsticos, ele diz: "Ora, para certa gente mais proveitoso parecer que so sbios
do que s-lo realmente sem o parecer (pois a arte sofstica o simulacro da sabedoria sem a re-
alidade. o sofista aquele que faz comrcio de uma sabedoria aparente. mas irreal): para esses,
pois. evidentemente essencial desempenhar, em aparncia, o papel de um homem sbio em lugar
de s-lo atualmente sem parece-lo" (Aristteles, VaI. I - Os pensadores. Traduo de Leonel
Vallandro e Gerd Bomheim, p.156). Essa atitude de Aristteles, para com os sofistas, se revela tam-
bm no fato de que, em sua viso histrica da filosofia, ele no os inclui entre os filsofos.
Xenofonte, discpulo e bigrafo de Scrates, apesar de no ter grande importncia como
filsofo, amplia o coro dos que alam a voz contra os sofistas. Veja a sua opinio: "Os sofistas
falam para enganar c escrevem em proveito prprio e no beneficiam ningum; nenhum deles se
tornou sbio nem o , mas a qualquer deles basta que seja chamado sofista, o que entre gente
de senso uma injria. Recomendo a necessidade de p r e c a v e r ~ s e contra o ensino dos sofistas
C no desvalorizar os raciocnios dos filsofos" (citado por Mondolfo, 1971, p.137, 138).
Felizmente esta no a nica verso sobre os sofistas. Principalmente a partir da monumental
obra de Werner Jaeger - Paidia -, os sofistas passaram a ocupar lugar mais respeitvel na his-
tria do pensamento humano.
Para Jaeger, os sofistas so os verdadeiros fundadores de uma cincia da educao. Foram
eles que fundamentaram racionalmente a educao. Eles so os verdadeiros criadores da cons-
cincia cultural na Grcia. Vejamos a erudita opinio de Jaeger:
"Os sofistas constituem, sob este ponto de vista, um fenmeno central. So os criadores
da conscincia cultural cm quc o esprito grego akanou o seu telas e a ntima segurana da
sua prpria forma e orientao. O fato de terem contribudo para o aparecimento desse
conceito e desta conscincia muito mais importante que a circunstncia de no terem
logrado a sua expresso definitiva. Numa altura em que todas as formas tradicionais da
existncia se esboroavam, ganharam e deram ao povo a conscincia de que a formao
humana era a grande tarefa histrica que lhe fora confiada. Descobriram, assim, o centro em
redor do qual toda a evoluo se processa e do qual deve partir toda a estruturao cons-
ciente da vida. Adquirir conscincia uma grandeza, mas a grandeza da posteridade. cstc
um outro aspecto do fenmeno sofstico. Talvez no seja preciso justificar a afirmao de
que o perodo que vai da sofstica a Plato e Aristteles alcana uma vasta c permanente
elevao na evoluo do Esprito grego; ainda assim, porm, conserva toda a sua fora a frase
de Hegel, que diz que a coruja de Atenas s levantou vo ao declinar o dia. Foi s custa
da sua juventude que o Esprito grego, cujos mensageiros so os sofistas, alcanou o dom-
nio do mundo" (Paidia, p.329).
Comentando o trabalho de Plutarco -A educao dajuventude -, que renete os trs pon-
tos essenciais da pedagogia dos sofistas, a saber, a natureza, o ensino e o hbito, Jacger diz:
84
Viso geral dos humanismos
"Para a educao, o terreno a natureza do Homem; o lavrador o educador; as sementes
so as doutrinas, e os preceitos transmitidos de viva voz. Quando as trs condies se
realizam com perfeio, o resultado extraordinariamente bom. Quando uma natureza
escassamente dotada recebe, pelo conhecimento e pelo hbito, os cuidados adequados,
podem ser cm parte compensadas as suas deficincias. Em contrapartida, at uma nature-
za exuberante decai e se perde, quando ao abandono. isto que torna indispensvel a arte
da educao" (Paidia. p.337).
"To importante foi a contribuio dos sofistas, que Jaeger conclui: "Do ponto de vista
histrico, a sofstica um fenmeno to importante como Scrates ou Plato. Mais: no pos-
svel concebe-los sem ela" (Paidia, p.316).
Chtelet compartilha desse ponto de vista e diz, textualmente:
"Resumindo, a importncia desses vendedores ambulantes de sabedoria prtica determi-
nada por seu duplo estatuto de estrangeiro sem direitos polticos e de profissionais sem
prestgio religioso: para vender sua arte, deviam se fazer compreender claramente a ao que
lhes cra recusada no restringia para eles o cio e a liberdade da reflexo. ASophia come-
ava, assim, a se aprofundar, mesmo nas matrias prticas, numa teoria pensada claramen-
te com vagar, no certamente sem a preocupao de agradar aos auditrios, mas sem a
urgncia das decises c dos atos. Se a noo de 'precursor' nos for concedida por esta vez,
a despeito do que dissemos no incio de nossa exposio, diremos que os sofistas prepa-
raram de perto o nascimento da filosofia no sentido prprio. Eles a prepararam'mesmo nisso
que chamaremos de desviamento constitutivo, por terem dado armas sobretudo aos aris-
tocratas opulentos, inimigos da democracia, sem a qual no teriam sido possveis nem
Scrates, nem Plato, nem Filosofia" (Histria da Filosofia, voU, p.63).
Historicamente, os sofistas se situam entre os sculos V e VI a.C. So, portanto, contempo-
rneos de alguns pr-socrticos e do prprio Scrates e de Plato. Surgiram num perodo de
grande prosperidade, que caracterizou a Atenas de Pricles, depois da vitria sobre os persas.
Na sofstica verifica-se o predomnio do problema antropolgico como conseqncia do desen-
volvimento democrtico da cidade grega. A polis com suas assemblias e tribunais, com suas discus-
ses jurdicas e ticas, tomou necessria a preparao de lima elite poltica de dirigentes. O dirigente
precisava conhecer a poltica e a sociedade, cujo elemento essencial o homem. A cultura assume,
ento, valor prtico. Aeducao agora deve girar em tomo de valores humanos. Adialtica, como arte
de argumentar e discutir, torna-se instrumento indispensvel. O sofista o mestre dessa nova edu-
cao requerida por uma nova situao histrica. Ele o professor ambulante que vai da cidade em
cidade ensinado a arte do uiunfo e do xito. Disso resulta, argumenta Brhicr, dois aspectos essen-
ciais da sofstica: de um Jado, tcnicos que se vangloriam de conhecer e ensinar todas as artes teis
aos homens; de outro, professores de retrica, que ensinam como captar a benevolncia do ouvinte.
O nmero dos chamados sofistas realmente muito grande. Nem todos evidentemente,
alcanaram relativa notoriedade. Apresentaremos, a seguir, alguns dos mais conhecidos.
PROTGORAS DE ABDERA (485 - 411 a.c.). tido como discpulo de Demcrito e,
conforme o testemunho de alguns, iniciou-se nas doutrinas secretas dos persas, o que explica-
85
Antropologia Filosfica
ria seu agnosticismo. Depois de algum tempo de vida errante, chega aAtenas, onde se torna amigo
de Pricles, que o escolheu para elaborar a Constituio de Trios, colnia grega, substituta de
Sbaris, destruda por Cretone. Por causa do que disse sobre os deuses, Protgoras processa-
do pelo crime de impiedade e foge para Atenas, para logo depois encontrar a morte.
Das obras atribudas a Protgoras, restam-nos apenas alguns fragmentos. Os principais
ltulos so: A verdade, Do ser, Raciocnios demolidores, Grandes discursos, Sohre os deuses,
alm de tratados sobre a Matemtica, o Estado, a Virtude, as Artes e Antilogias.
o pensamento antropolgico mais comumente citado e discutido de Protgoras a mxima
contida no incio de seu livro Sobre (J verdade: "O homem a medida de todas as coisas, das que
so enquanto so, e das que no so enquanto no so".
Essa mxima interpretada por Plato, no Teelelo, como significando a relatividade do co-
nhecimento, visto que, conclui ele: "Da mesma maneira que cada um sente as coisas, assim lhe
aparecem ser elas a cada um". E, provavelmente refutando Protgoras, no livro V de Leis, Plato
diz: "Para ns Deus que deve ser a medida de todas as coisas em grau supremo, muito mais, a
meu modo de ver, do que o homem, como alguns pensam".
A mesma interpretao relativista dada por Sexto Emprico, quando afirma que: "por me-
dida entende o critrio do juzo; por coisas, os fatos; o que quer dizer que o homem o meio do
juzo de todos os fatos, dos que so enquanto so e dos que no so enquanto no so. E por
isso, admite somente aquilo que parece a cada um, e assim introduz a relatividade" (citado por
Mondolfo, 1971. p. 141). como se Protgoras estivesse antecipando oprincpio assumido por
Pirandello: "a cada um a sua verdade", to caro aos filsofos existencialistas. Para Sexto Emp-
rico, portanto, a frase de Protgoras significa que o homem o juiz da realidade das coisas. Tudo
aquilo que parece aos homens ; e o que no parece a nenhum homem, no .
Na Metafsica, Aristteles segue a mesma linha de interpretao, e diz:
"A mxima de Protgoras igual aos pontos de vista que mencionamos; ele diz que o ho-
mem a medida dc todas as coisas, significando simplesmente que o que parece a cada um
o para ele com certeza. Se assim, segue-se que a mesma coisa e no , e boa e m, que
os contedos de todas as afirmaes opostas so verdadeiros, porque freqentementc uma
determinada coisa parece bonita para uns e o contrrio para outros, c o que parece a cada
um a medida" (Metafsica, Livro XI, p. 6).
Dois elementos, em especial, tm merecido ateno nessa famosa afirmao de Protgoras.
O primeiro o termo medida (mtron). Como vimos, Sexto Emprico d ao termo mlrol1, aqui
usado, o sentido de "critrio". Essa a interpretao mais comum entre diferentes autores. Em
seu estudo sobre os sofistas, Mrio Unterstein traduz a expresso " a medida" por "domina",
apoiando-se em exemplos de vrios autores gregos. Neste caso, a frase de Protgoras significa
que o homem tem domnio sobre todas as coisas, o que no parece ser a inteno do autor.
O segundo elemento a considerar o termo homem. Para os antigos, homem, na frmula de
Protgoras, significa o homem singular, o indivduo. No sculo XIX, este sentido foi ampliado e,
86
Viso geral dos humanismos
em vez de se falar na singularidade contingente, falava-se no universal, na humanidade. "Homem"
passou, ento, a significar humanidade. Hegel advoga que em Protgoras, ainda no se havia
realizado essa distino de sentidos. Diz ele: "Para eles (os sofistas), o interesse do sujeito, na
sua particularidade, no se distingue ainda do interesse do sujeito na sua racionalidade substan-
ciaI" (citado por Romeyer-Dherbey. Os sofistas, p. 24).
Afinal, qual o significado dessa frase de Protgoras? Quase todos, se no todos. concor-
dam que o sofista no quis dizer que o homem que determina a realidade das coisas. Mas, no
h dvida de que o homem o critrio, atravs do qual o valor das coisas aferido. Sem o sujeito
humano, como se poderia definir valores? Nietzsche parece oferecer-nos uma resposta bastante
adequada, quando afirma que "ns no podemos compreender seno um universo modelado por
ns mesmos". Segundo Nietzsche, o homem superior cria o valor, que no existe como dado
natural. E, como se sabe, o homem um ser que vive num mundo de valores. Portanto, num sentido
muito apropriado, podemos dizer que o homem superior cria o mundo tal como ele vivido pelo
homem. Oaforismo 301 cmA gaia cincia um belo exemplo da tese segundo aqual o homem
que cria o mundo humano em que vive:
"Ns que pensamos e sentimos, ns que fazemos realmente c sem cessar alguma coisa que
no existe ainda ~ todo esse mundo que sempre aumenta em apreciaes, de cores, de va-
loraes, de perspectivas, de graus, de afirmaes c de negaes. Esse poema inventado por
ns e sempre aprendido, exercitado, repetido, traduzido em carne e em realidade, sim,
mesmo em vida quotidiana, pelos que so chamados homens prticos (nossos atares, como
euj o indiquei). Nada que possua valor neste mundo o possui por si mesmo, segundo sua
natureza - a natureza sempre sem valor: atribui-se-Ihes certa feita um valor e fomos ns
que os demos, ns, os atribuidores! Ns criamos o mundo que interessa ao homem.''' (A
gaia cincia, p. 196, 197).
Para Hegel, a afirmao de que a verdade das coisas se encontra mais no homem do que nos
objetos caracteriza a descoberta da subjetividade. Para ele, Protgoras operou "esta converso
deveras notvel, a saber, que todo o contedo, todo o elemento objetivo, s existe relativamen-
te conscincia, visto que o pensar anunciado como momento essencial para todo o verdadei-
ro; o absoluto adquire assim a forma da subjetividade pensante" (citado por Romeyer-Drerbey,
1970, p. 30).
E, numa interpretao simptica filosofia de Protgoras, Romeyer-Drerbey conclui:
"O princpio fundamental da filosofia de Protgoras , portanto, a afirmao de que o ser
do objeto fenomenalidade, e que todo o fenmeno determinado pela conscincia que o
percepciona e pensa. O ser no est, pois, em si, mais existe pela apreenso do pensamen-
to s por meio do qual algo aparece, e aparece tal. O ser pensante, isto , o homem, confere
a sua medida s coisas porque o seu ser consiste em um aparecer e porque o sujeito huma-
no a fonte deste apareeer" (p. 30. 31).
Se h dvida sobre o relativismo gnosiolgico de Protgoras, seu agnosticismo teolgico
bastante claro. Ele comea seu livro Sobre os deuses, dizendo: "Sobre os deuses, nada sei, nem
sei se existem, nem se no existem, nem qual a sua forma. EfetivamenLe, numerosos so os
obstculos para o sabermos: o seu carter obscuro e o fato de a vida do homem ser curta".
87
Antropologia Filosfica
GRGIAS DE LENCIO (entre 485 e 480 a.C.). Outro sofista bastante conhecido. Em Ate
nas, teve discpulos famosos, como Alcebades, Tucdides e Iscrates, fundou uma escola rival
da Academia de Plato. Grgias morreu aos 109 anos de idade, justificando sua longevidade por
"nunca ler feito nada com vistas ao prazer" e que, segundo Demtrio de Bizfmio, foi por "nunca
ter feito nada com vistas ao prazer dos outros".
Grgias escreveu muitos livros, dentre os quais se salientam Sobre o no-ser, ou Sobre a
natureza, Elogio de Helena, A defesa de Palamedes. Na primeira obra, expe seu ceticismo ra-
dical, e nas duas ltimas serve-se de sua extraordinria capacidade verbal para fazer o elogio pa-
radoxal do adultrio de Helena de Tria e provar sua inocncia, e para demonstrar a impossibi-
lidade lgica de condenar o general Palamedes, traidor da ptria.
No tratado "Sobre o Grgias expe seu ceticismo radical atravs de trs teses, a
saber:
1. Nada h;
2. se houvesse alguma coisa, no poderamos conhece-la, e
3. se pudssemos conhece-la, no poderamos comunicar nosso conhecimento aos outros.
Essas trs teses so demonstradas atravs do raciocnio seguinte:
1."O ser no existe, seja ele no gerado ou gerado. De fato, se se considera o ser como no
gerado, portanto eterno, necessrio admitir que ele infinito; se infinito, no est contido em
nenhum lugar; e se no est em nenhum lugar, no existe. Se se considera o ser como gerado,
necessrio admitir aquele que o gerou, e outro que gerou a este, e assim por diante, sem que nunca
se chegue ao ser.
2.Uma coisa o pensar, outra o ser. De fato, pode-se pensar em coisas inexistentes, corno
a quimera. Logo, o pensamento diferente do ser, o qual, se fosse admitido como existente, no
poderia ser pensado.
3.Finalmente, a palavra dita diferente da coisa significada, de modo que a realidade, se fosse
admitida, no poderia ser traduzida em palavras nem ser manifestada aos outros" (Battista
Mondin, Curso defi/asoJia, vol. I, p.42).
Conclui-se, portanto, que, no se podendo chegar ao conhecimento das coisas, resta-nos
apenas a possibilidade de persuadir os homens quanto ao que aparente. Da a importncia da
retrica como arte de persuadir. Neste sentido, podemos dizer que o ceticismo absoluto de Gr-
gias a negao da filosofia como busca da verdade.
Quanto alma do homem, Grgias advoga que ela completamente passiva: inteiramente
determinada pela percepo sensvel do mundo. No Elogio de Helena, ele diz: "Com efeito, aS
coisas que vemos possuem uma natureza, no a que ns prprios queremos, mas a natureza
particular que lhes tocou em sorte. Portanto, tambm a alma, por meio da vista, recehe o cunho
das suas diversas formas" (citado por Romeyer-Dherbey, Os sofistas, p.45).
Alm da percepo sensvel, a alma tambm moldada pela linguagem, que se torna seduo
na arte sofstica da persuaso. Diz Grgias, no mesmo texto: A persuaso, quando se mistura nos
88
Viso geral dos humanismos
discursos, modela tambm a alma a seu gosto. A persuaso cria um clima afetivo, que d peso aos
argumentos, tornando-os aceitveis ao ouvinte. "Ela participa da natureza, da poesia e da msica,
mas age, sobretudo, como o feitio com suas fnTIu1as encantatrias dos ritos e da magia. Assim
como o feiticeiro com suas frmulas mgicas removia pedras, tambm o sofista, com a arte da per-
suaso, move o corao do homem. Com efeito, os encantamentos, que utilizampalavras, do prazer
e afastam a dor. Porque, misturado com a opinio da alma, o poder do encantamento fascinou-a,
metamorfoseou-a porenfeitiamento" (citado por Romeyer-Dherbey, 1970, p.47).
N o t e ~ s e , entretanto, que a persuaso, que pode curar a alma, pode tambm envenena-la. "Com
efeito, tal como certas drogas expulsam dos corpos certos humores, outras, outros humores e
umas suprimem a doena, outras a vida, lambm assim que acontece com os discursos: uns
afligem, outros alegram, uns aterram, outros levam a confiana aos ouvinles, outros, finalmente,
envenenam e enfeiliam a alma por uma m persuaso" (Romeyer-Dherbey, p.47,48).
Finalmente, encontramos em Grgias de Lencio uma idia de profundo interesse antropo-
lgico, que o conceito de tempo como kai rs ou momento oportuno.
Como observa Romeyer-Drerbey:
"A concepo lgica do mundo, o princpio da no-contradio, repousam inteiramente no
postulado do tempo contnuo, de um tempo que dura e que permite, pela sua durao
contnua, comparar os instantes uns com os outros e denunciar o seu no-alinhamento. O
que verdadeiramente deve estar num tempo alinhado, isto , deve ser idntico a si ao longo
da durao. Ametafsica platnica ir deri var daqui a necessidade para que o scr scja ple-
namente ser, de ser eterno: o ser nau existe apenas devido a esta ou quela circunstncia;
existe sempre cm si" (pAS).
Grgias concebe um tempo descontnuo. que no se deixa perspectivar. Rejeita a idia que
faz da eternidade a verdade do tempo. Para ele, a realidade contraditria e o homem tem que tomar
uma posio unilateral. Nesta espcie de temporalidade prtica, a escolha de um dos dois con-
trrios feita de acordo com o kairs, ou o momento oportuno. No h subterfgio do sofista;
ele apenas segue os saltos do tempo, de acordo com as circunstncias da vida.
Evidentemente, o ceticismo radical ou absoluto se anula a si prprio. "Afirma que o conhe-
cimento impossvel. Mas com isto exprime um conhecimento. Por conseqncia, considera o
conhecimento como possvel de fato c, no entanto, afirma simultaneamente que impossvel. O
ceticismo cai, pois, numa contradio consigo mesmo" (Johannes Hessen, Teoria do conheci-
mento, p. 40).
2,2.3 Scrates, Plato e Aristteles
Depois da crise do esprito grego, demonslrada na sofstica com sua retrica, seu relativis-
mo e ceticismo, a filosofia tica atinge seu apogeu com os grandes gnios da humanidade: S-
crates, Plato c Aristteles. Estes filsofos elevaram a filosofia ao ponto mais alto de sua hist-
ria, e seu pensamento ainda hoje ressoa onde quer que o esprito humano se dedique rdua tarefa
da busca da verdade.
89
Antropologia Filosfica
Neste perodo da histria da filosofia grega, o problema antropolgico torna-se o ponto
central do filosofar. Apresentaremos, a seguir, alguns pontos da preocupao antropolgica da
filosofia tica, no pensamento desses trs representantes mximos.
SCRATES (470-399 a.C). Apesar de nada haver escrito, Scrates , sem dvida, um dos
pensadores mais influentes de toda a histria da humanidade. Sua existncia real foi questiona-
da por sculos, mas o chamado "problema socrtico" parece hoje definitivamente resolvido na
histria da filosofia, pelo menos no que concerne veracidade histrica do indivduo chamado
Scrates. Outros problemas, como, por exemplo, saber quem fala nos dilogos de Plato - se o
mestre, se o discpulo -, aparentemente no assunto de crucial importncia.
Por nada haver escrito, praticamente impossvel dizer-se o que Scrates realmente ensi-
nou. um caso semelhante ao que acontece com os ensinos de Jesus de Nazar. Tudo o que sa-
bemos sobre a doutrina de Jesus de Nazar o que nos foi comunicado pelos Apstolos, refle-
tindo a interpretao da comunidade crist primitiva. medida que aceitamos a autenticidade
dessa fonte de informao, podemos dizer ser este o Evangelho de Jesus Cristo. medida que
acreditamos na autenticidade das fontes sobre o ensino de Scrates, dizemos ser esta a doutri-
na que ensinou.
No caso de Scrates, identificamos trs fontes principais de infonnao sobre sua vida e sua
doutrina. Duas dessas fontes apresentam uma imagem altamente positiva do mestre, feita por dois
dos SeUS discpulos: Plato e Xenofonte. O primeiro foi um dos maiores gnios da humanidade
e teria condies de se afinnar por si s, mas prefere aparecer como reflexo do mestre, a quem con-
sidera o mais sbio, o mais santo e o melhor de todos os homens. Os famosos Dilogos de Pla-
to refletem a filosofia socrtica e seu mtodo de comunicao. Na Defesa de Scrates, Plato
retrata a grandeza moral de seu grande mestre ao enfrentar, corajosamente, a morte. O segundo,
Xenofonte, sem grandes vos do intelecto, vale mais pela afeio e lealdade ao mestre. Os ditos
e feitos memorveis de Scrates e Apologia de Scrates so escritos de Xenofonte que nos
permitem uma viso de aspectos relevantes da vida e dos ensinos de Scrates. A terceira fonte
de informao sobre Scrates, Aristfanes, representa um ponto de vista discordante. Ele faz de
Scrates uma apresentao algo ridcula, mostrando o lado sonhador e desligado de um homem
mais preocupado com detalhes abstratos do que com os problemas reais da vida. Essa caricatu-
ra de Scrates apresentada por Aristfanes, em sua pea As nuvens, em que o filsofo visto
como um indivduo alheio aos problemas do cotidiano humano e preocupado com abstraes
inteis.
Ahistria do pensamento humano se encarregou de demonstrar que Aristfanes estava er-
rado. O filsofo no um contemplativo, mas um homemde ao, que deve ter a coragem de levar
seu pensamento at s ltimas conseqncias. A coragem moral de Scrates, perante a vida e
perante a morte, e sua paixo pela verdade deram-lhe um lugar pennanente na histria do esp-
rito humano.
Em Scrates, a preocupao antropolgica atinge seu ponto culminante. O centro do filo-
sofar no mais o cosmos como dado objctivo da natureza, mas o homem como subjetividade.
Sua busca filosfica tem por objetivo nico o homem e o seu mundo. Sua misso, confiada pela
divindade que orientava seu comportamento - seu dimon -, promover no homem a busca de
90
Viso geral dos humanismos
si mesmo, a fim de se tomar justo e solidrio com o prximo. Da o lema de sua filosofia: "Conhe-
ce-te a Ti Mesmo". Esta frase, escrita na entrada do templo de Delfos, torna-se o fundamento da
filosofia moral de Scrates e o desafio que faz a si mesmo e aos outros que queiram ouvi-lo.
Scrates parte do pressuposto de que a vida no-refletida, no examinada, no digna de
ser vivida. Ora, a condio primeira, deste exame, o reconhecimento da prpria ignorncia.
Refletindo sobre o orculo que disse ser ele o mais sbio dos homens, Scrates convenceu-se
desse fato ao se comparar com vrias pessoas que supunham saber, enquanto que ele sabe que
no sabe. Com diz Roland Corbisier: "A sentena do orculo foi decifrada, Scrates sabe que no
sabe, e, por isto, pergunta, verificando, ao longo do dilogo, que sua sabedoria (cm relao aos
interlocutores) consistia em saber que no sabia, ao passo que os interlocutores no sabiam e
ignoravam que ignoravam, quer dizer, no sabiam e no sabiam que no sabiam. Sua sabedoria
consistia na conscincia da prpria ignorncia" (Introduo filosofia, p.lI O, 111). Ou, como diz
o prprio Scrates, em sua defesa: "O mais sbio dentre vs, homens, quem, como Scrates,
compreendeu que sua sabedoria verdadeiramente desprovida do mnimo valor" (Defesa de
Scrates, traduo de Jaime Bruna, p.IO). Scrates , portanto, a anttese dos sofistas e de to-
dos os que presumem ser os donos da verdade.
O mtodo socrtico da busca da verdade, que indutivo por natureza, consiste essencial-
mente da ironia, da maiutica, e da definio ou induo.
Atravs da ironia socrtica o homem chamado ao autoconhecimento, do qual resulta sua
libertao da ignorncia. Infelizmente, porm, ou por culpa do modo como Scrates usou a iro-
nia, ou pela vaidade ferida dos seus contemporneos ao serem confrontados com sua prpria ig-
norncia, os atenienses o condenaram morte, na tentati va de se livrarem daquela presena que
os incomodava.
A maiutica, exposta principalmente no Teeteto, a arte da busca comum. A parturio das
idias no , para Scrates, um ato exclusivamente individual; ela no prescinde do outro. Da a
necessidade do dilogo, caracterstica do mtodo socrtico em oposio ao individualismo ra-
dical da sofstica.
Por seu mtodo indutivo, Scrates prope o homem universal, que no deve ser confundi-
do com um homem-razo, algo abstrato que no possui as qualidades do indivduo e nem est
ligado a seu contexto histrico real, mas um homem que participe de modo solidrio de tudo o que
humano. Como diz Abbagnano (1955), pgina 51: "O universalismo socrtico no significa a
negao do valor dos indivduos, quando garante a cada um a liberdade da busca de si mesmo,
uma relao fundada na virtude e na justia. Portanto, nisto consiste o interesse de Scrates:
enquanto se prope a promover em cada homem a busca de si mesmo, ele se dirige naturalmente
ao problema da virtude e da justia".
O "Conhece-te a Ti Mesmo" no um filosofar incuo. Sem conhecer-se a si mesmo, qual-
quer saber destitudo de valor para o homem. Somente atravs do autoconhecimento o homem
pode alcanar a virtude. Sem esse conhecimento o homem permanece na ignorncia, que sin-
nimo de erro, vcio e pecado.
91
Antropologia Filosfica
Apesar do aspecto aparentemente negativo da filosofia socrtica, para ela a virtude no
representa a negao da vida humana. Pelo contrrio, a virtude significa a vida humana perfeita.
Virtude o prazer elevado a seu grau mximo. O erro a expresso inferior da vida humana. Fazer
mal ao prximo, fruto exclusivo da ignorncia. significa fazer mal a si mesmo e se privar do bem.
Filosofar, para Scrates, um imperativo divino. Ele fala de um dimon que inspira suas aes.
Nos Ditos eJeitos memorveis de Scrates, Xenofonte diz que "Scrates falava o que sentia, di-
zendo-se inspirado por um demnio. E, de acordo com as revelaes desse demnio, aconselha-
va os amigos a fazer certas coisas, abster-se de outras" (p. 33). Mas, acima de tudo, para Scra-
tes, filosofar aprender a morrer. Esta faceta admirvel de Scrates apresentado no Fdon, bem
como nas ApoloRias de Plato e de Xenofonte.
o Fdon comea com o problema da dor e do prazer. Logo a seguir, traIa do problema da
morte, defendendo a tese de que a filosofia LIma espcie de aprendizagem para a morte. No se
trata, obviamente, de uma atitude lgubre, e sim, de um posicionamento realista perante a vida.
Filsofar amar a verdade e a viJ1ude. desligar-se dos liames que prendem a alma ao corpo.
fugir das paixes que escravizam a alma ao mundo dos sentidos.
Em suas ltimas horas de vida, Scrates aproveita a oportunidade para falar da imortalida-
de e do bem supremo da existncia humana. Impressiona a todos com sua serenidade perante a
morte e perante a injustia de seus contemporneos. Como filsofo sente a dor, mas capaz de
super-Ia, porque capaz de compreend-Ia. Crton, que narra esse momento a Equcrates, en-
cerra o dilogo, dizendo: "Tal foi, Equcrates, o fim de nosso companheiro. O homem de quem
podemos bem dizer, que entre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, era o melhor,
o mais sbio e o mais justo".
Scrates continua vivo no pensamento da humanidade. Ccero disse que ele trouxe a filo-
sofia do cu para a Terra. Muitos o consideram o mrtir pr-cristo, e sua morte guarda semelhana
com a de Jesus de Nazar. O alcance universal da mensagem de Scrates levou alguns idia de
que a alma humana naturalmente crist (Anima naturaliterchristiana). Erasmo de Roterd, um
dos maiores humanistas de todos os tempos, chegou ao extremo de lhe dirigir a prece: "Sancte
Socrate, ora pro nobis".
Ortega Y Gasset, citado por Mondolfo (1972), afirma que Scrates encerra em si a chave da
histria europia, chave sem a qual o nosso passado e o nosso presente so um hierglifo inin-
teligvel. E Maier, tambm citado por Mondolfo na mesma obra, afirma que, para entender a es-
sncia ntima da civilizao moral moderna, devemos, sem dvida, remontar a duas personalida-
des: Scrates e Jesus.
Comentando a lugar de Scrates na Histria, Jaeger (1979) diz: "Scrates torna-se guia de
todo o Iluminismo e de toda a filosofia moderna: o apstolo da liberdade moral, separado de todo
O dogma e de toda a tradio, sem outro governo alm do da sua prpria pessoa e obediente
apenas aos ditames da voz interior da sua conscincia; o evangelista da nova religio terrena e
de um conceito da Bern-Aventurana atingvel nesta vida merc da fora interior do homem e
baseada no na graa, mas na incessante tendncia ao aperfeioamento do nosso ser" (p. 457).
92
Viso geral dos humanismos
De nosso conhecimento, somente duas grandes vozes se ergueram contra a filosofia socrti-
ca: Saren Kierkegaard, que viu na ironia destruidora de Scrates a afirmao da negatividade
absoluta da razo, que torna impossvel a idia crist da revelao, e Friedrich Nietzsche, que acusa
Scrates de haver destrudo com seu raciocnio, sua moralidade e seu otimismo apolneo, o mundo
da paixo, do instinto e do pessimismo dionisacos, caracterstica da tragdia e da filosofia pr-
socrtica, expresso por excelncia do esprito helnico.
Roland Corbisier (1984) afirma que o socratismo operou, na filosofia grega, uma revoluo
comparvel ao cartesianismo da segunda metade do sculo XVII. Mudou o foco de ateno da
filosofia do mundo fsico para o mundo humano. Preocupou-se com a educao do homem, sua
vida na cidade e, conseqentemente, com a poltica. E conclui:
"Mas, porque encarnava um novo princpio, como vimos, o socralismo, ao operar ii con-
verso da filosofia ao humano, correspondeu a urna revoluo, pois, a partir de Scrates,
a razo humana toma conscincia dela prpria, e se reconhece como cssncia do humano,
como instncia ltima do conhecimento e da verdade. A filosofia passa, ento, a ser a cr-
tica radical, quer dizer, , antes de mais nada, a negao de qualquer dogmatismo. Crenas,
doutrinas, idias, opinies, usos e costumes, instituies, tudo pode e deve ser discutido, posto
cm questo, tudo deve passar pelo crivo da razo, ser submetido ~ I crtica, ao tribunal da
razo. A inspirao pode ser de ordem religiosa, demonaca, e a razo de ser da investidura
a salva() das almas, no importa, porque a misso, cm si mesma, estritamente racional.
o homem Scrates, enquanto portador da razo, que, por meio de sua razo, que no
apenas sua porque de todos, empreende a reviso e a crtica das crenas. idias, valores,
usos e costumes, aceitos irrefletidamente, na sonolncia dos hbitos quc tornam as condutas
humanas mecnicas e inconscientes. O socratismo o despertar da conscincia, a emergn-
cia do esprito, que se concebe a si mesmo como negatividade infinita" (p.124, 125).
Rodolfo Mondolfo encerra seu erudito trabalho sobre Scrates, com os pargrafos que
passamos a citar:
"Deste modo, Scrates associava Jocta ignorncia ou conscincia permanente dos pro-
blemas - nica fonte de todo progresso cognoscitivo - a superao do dio e a afirmao
do amor e da solidariedade humana que, pelo reconhecimento da liberdade espiritual de cada
um, procuravam a cooperao de todos no esforo por alcanar o bem comum. Fim huma-
no por excelncia, isto , a elevao intelectual e moral que constitui o verdadeiro bem e a
satisfao ntima de cada um e de todos, lei de autonomia e fonte da verdadeira felicidade.
De todas essas experincias, que enquanto existir a humanidade so e sero sempre uma
necessidade e um imperativo categrico, Scrates foi, em seu pensamento e na Slla ao, uma
personificao incomparvel: nisto consiste a eternidade de seu ensinamento"( 1972. p.II O).
"Por sua viso universal da vida e do homem, por seu apego verdade, por sua coerncia,
por sua coragem moral perante a vida e diante da morte, mesmo discordando de alguns pontos
do seu pensamento, dificilmente se pode fugir ao desejo de apontar para Scrates dizendo: Ecce
Homo".
PLAT (429348 a.c.). Plato foi o maior discpulo de Scrates. Inspirado pelos ensina-
mentos do mestre e contando com enorme talento pessoal, desenvolveu um dos mais vastos e
93
Antropologia Filosfica
duradouros sistemas de filosofia. Viajou bastante e conheceu muitas culturas. Fundou a famosa
Academia, a primeira universidade do mundo, cujo objetivo essencial era preparar os lderes
polticos da polis grega. Tentou influenciar governantes, como Don e Dionsio, mas infelizmen-
te, suas teorias polticas no foram aceitas e assimiladas, e aparentemente nunca esqueceu esse
fracasso. No obstante, teve suficiente nimo para elaborar As leis, em que reafirma as teses
principais de sua obra-prima A repblica. O relato dessas experincias se encontra na famosa
Stima carta, cuja leitura recomendamos ao leitor interessado.
praticamente impossvel separar o socrtico do platnico. Isso verdade, principalmente
em respeito s obras da juventude de Plato. No h dvida, porm, de que ele no se limita a
repetir o mestre. As obras da maturidade, mesmo sem perder a presena de Scrates, refletem mais
da contribuio do genial fundador da Academia.
A maioria absoluta das obras de Plato foi escrita em fonna de dilogo, com exceo d a A p o ~
logia e das Cartas. E, nos dilogos, exceto emAs leis, o interlocutor principal sempre Scrates.
Por que teria Plato preferido o dilogo? H pelo menos duas razes apontadas pelos estudio-
sos do assunto: o "dilogo" reflete o gnio artstico do autor e compatvel com o mtodo so-
crtico da ironia, da maiutica e da induo. No Teeteto, lemos que "Pensar um discurso que a
alma faz para si mesma sobre os assuntos que examina. Parece-me que quando pensa, a alma no
faz mais do que dialogar consigo mesma, interrogando-se e se contestando, afirmando e negan-
do" (p.189, 190). O dilogo , portanto, a forma adequada expresso do pensamento que Plato
quer comunicar.
At que ponto a forma literria do dilogo permite a sistematizao do pensamento, visto
que se trata essencialmente de uma obra de arte? Aparentemente, isso no preocupava Plato.
Como sugere Abbagnano, Plato nunca se preocupou em fazer uma exposio completa de um
sistema de pensamento. Seus dilogos no so mais que fases ou etapas diversas, pontos pro-
visrios de chegada que, de fato, so pontos de partida de uma busca que no pode deter-se em
nenhum resultado. Essa recusa em sistematizar o pensamento expressa em Plato de modo ai Il-
da mais claro na Carta VIl. Ao saber que Dionsio havia escrito algo baseado nas lies que dele
recebeu e que apresentava como trabalho pessoal, ele diz:
"Ouvi tambm que ele, desde ento, escreveu sobre o que de mim ouviu, compondo o que
diz ser de sua prpria autoria, bem diferente, diz ele, das doutrinas que de mim ouviu; mas
ignoro o contedo desse escrito. Sei, de fato, que outros escreveram sobre o mesmo assun-
to, mas o que so mais do que eles mesmos sabem. Isso, pelo menos, posso dizer sobre
todos os escritores, passados ou futuros, que dizem saber as coisas a que me dedico, seja
por ouvir o ensino de mim mesmo ou de outros, ou por sua prpria descoberta - que de
acordo com o meu ponto de vista no lhes possvel ter qualquer conhecimento da mat-
ria. No h e nunca haver um tratado meu sobre o assunto. Pois este assunto no admite
exposio semelhante a outros Tamos do saber; mas depois de muito falar sobre a matria
em si mesma e viver uma vida de cantatas pessoais, de repente, uma luz, por assim dizer.
acesa na alma por uma centelha que salta do outro". (Servimo-nos aqui da traduo ingle-
sa de J. Harward, Great hooks ofthe western word, VaI 7, p. 809).
A forma dialogal, entretanto, no significa ausncia absoluta de sistematizao do pensa-
mento. Os dilogos de Plato nos permitem a identificao de sua doutrina. Atravs dos dilo-
94
Viso geral dos humanismos
gos podemos estudar a ontologia, a gnosiologia, a antropologia, a tica e a poltica do sistema
de Plato.
evidente que no temos a pretenso de apresentar aqui toda a abrangncia do sistema fi-
losfico de Plato. Para nosso objeti vo, apresentaremos alguns pontos de maior interesse.
Na teoria do conhecimento, chamaremos a ateno do leitor para a diferena entre o mundo
das idias eternas e imutveis, e o mundo dos sonhos e das aparncias - o mundo sensorial, tal
como ilustrado na "alegoria da caverna", descrito no stimo livro de A repblica. Transcreve-
remos, aqui, parte desta famosa alegoria, para melhor compreenso de seu contedo:
"E agora. - disse eu, - compara com a seguinte situao o estado de nossa alma em respei-
to educao ou falta desta. Imagina uma caverna subterrnea provida de uma vasta entrada
abcrta para a luz e que se estende ao largo de toda a caverna, e uns homens l dentro se acham
desde meninos, amarrados pelas pernas e pelo pescoo de tal maneira que tenham de per-
manecer imveis e olhar to s para a frente, pois as ligaduras no lhes permitem voltar a
cabea; atrs deles c num plano .'>uperior, arde um fogo a eerta distfmcia, e entre o fogo e os
encadeados h um caminho elevado, ao longo do qual faze de conta que tenha sido constru-
do um pequeno muro, semelhante a esses tabiques que os titeriteiros colocam entre si e o
pblico para exibir por cima deles as suas maravilhas.
- Vejo daqui a cena. - Disse Glauco.
- E no vs tambm homens a passar ao longo desse pequeno muro, carregando toda es-
pcie de objetos, cuja altura ultrapassa a da parede, e esttuas e figuras de animais feitas
de pedra, de madeira e outros materiais variados? Alguns desses carregadores conversam
entre si, outros marcham em silncio.
- Que estranha situao descreves, e que estranhos prisioneiros!
- Como ns outros, - disse eu. - Em primeiro lugar, crs que os que esto assim tenham
visto outra coisa de si mesmos ou de seus companheiros seno as sombras projetadas pelo
fogo sobre a parede fronteira da caverna?
- Como seria possvel, se durante a sua vida foram obrigados a manler imveis as cabeas?
- E dos objetos transportados, no veriam igualmente apenas as sombras?
-Sim.
- E se pudessem falar uns com os outros, no julgariam estar se referindo ao que se pas-
sava diante deles?
- Forosamente.
- Supes ainda que a priso tivesse um eco vindo da parte da frente. Cada vez que falasse
um dos passantes, no creriam eles que quem falava era a sombra que viam passar?
- indubitvel.
- Para eles, pois, - disse eu, - a verdade, literalmente, nada mais seria do que as sombras
dos objetos fabricados.
- Tambm foroso.
- Torna a olhar agora e examina o que naturulmcnte sucederia se os prisioneiros fossem
libertudos de suas cadeias e curados da sua ignorncia. Em princpio, quando se desate um
deles, c se obrigue a levantar-se de repente, a virar o pescoo e a caminhar em direo luz,
sentir dores intensas e, com a vista ofuscada, no ser capaz de perceber aqueles objetos
cujas sombras via anterionnente; c se algum lhe dissesse que antes no via mais do que
sombras inanes e agora que, achando-se mais prximo da realidade e com os olhos volta-
dos para objetos mais reais, goza de uma viso mais verdadeira, que supes que responde-
ria? Imagina ainda que o seu instrutor lhe fosse mostrado os objetos medida que passas-
95
Antropologia Filosfica
sem, e obrigando-o a nomc-los: no seria tomado de perplexidade, e as sombras que antes
contemplava no lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que agora lhe mostram?
- Muito mais - disse ele.
~ E se o obrigassem a fixar a vista da prpria luz, no lhe doeriam os olhos c no se esca-
paria, voltando-se para os objetos que pode contemplar, c considerando-os mais claros. na
realidade, do que aqueles que lhe so mostrados?
- Assim - respondeu" (A repblica, p.18!, 1H2).
A alegoria da caverna representa a condio humana. a natureza humana no iluminada
pela filosofia. Ns somos os prisioneiros que no podem ver seno as sombras da realidade.
O filsofo o prisioneiro libertado. Ele se eleva do mundo sensvel- sombras das idias -
luz das idias mesmas. Nesla posio privilegiada, a misso do filsofo lentar libertar os
outros prisioneiros. Para tanto, ele volta caverna ou desce ao Hades, como os rficos e pi-
tagricos, ou corno o fez Jesus Cristo (IPe 3.18-20). O prprio Plato interpreta a alegoria da
caverna nos seguintes termos:
"A caverna-priso o mundo das coisas visveis, a luz do fogo que ali existe o Sol, e no
me ters compreendido mal se interpretares a subida para o mundo l de cima e a contem-
ph.lflO das coisas que ali se encontram com a ascenso da alma para a regio inteligvel; essa
a minha humilde opinio, que expresso porque assim o pediste, c que s a divindade sabe
se est certa ou errada. Seja como for, a mim me parece que no mundo inteligvel a ltima
coisa que se percebe a idia do bem, c isto com grande esforo: mas, uma vez percebid<l.
foroso concluir que ela a causa de todas as coisas retas c belas, geradoras de luz e do
senhor da luz no mundo visvel e fonte imediata da verdade e do eonhecimento no inteli-
gvel; e que h de t-Ia por fora diante dos olhos quem deseje proceder sabiamente em Slla
vida privada ou pblica" (A repblica, p.IS3).
A extraordinria lio da alegoria da caverna que em nenhum ser sensvel a essncia co-
incide com a existncia. Precisamos de algum que nos aponte o caminho; precisamos de algum
que nos possa libertar, no sentido filosfico, ou que nos possa salvar, no sentido teolgico.
"Por ns mesmos, jamais nos poderamos evadir, pois nem sequer sabemos que estamos
na caverna e que somos prisioneiros. E as aparncias c as sombras serao sempre, para ns,
a realidade, enquanto no nos vierem dizer que vivemos um sonho, pois a realidade, a
verdadeira realidade, outra e, para conhece-Ia, preciso libertar-se. sair da caverna. Ora,
essa precisamente a funo da filosofia, libertar da prisao. trazer das iluses e das apa-
rncias ii realidade, das trevas da ignorncia claridade do saber" (Corbisier, p.155).
A antropologia platnica apresenta o homem corno um microcosmo inserido na polis, que
, por assim dizer, o mundo humano propriamente dito. A essncia do homem a alma que se
manifesta de modo trplice, como indicamos noutro contexto do presente trabalho. Aalma con-
cupisevcl representa a vida vegetativa, reside no abdome e se refere a aspectos inferiores da vida,
corno a volpia e a covardia. A alma irascvel, que representa a vida sensitiva, reside no peito e
se manifesta em comportamentos, como a generosidade e o entusiasmo. A parte mais nobre, por
assim dizer, a alma racional, que reside na cabea e que dirige as aes C os sentimentos do
homem. Essa concepo da alma ilustrada, no Fedro, por um carro puxado por uma parelha ala-
da e guiado por urna auriga ou cocheiro. Um dos cavalos belo e bom, representando a alma
irascvel. O outro mau e representa a alma concupiscvel. O cocheiro representa a alma racio-
96
Viso geral dos humanismos
nal, que tem a responsabilidade no s de evitar que o cavalo ruim imponha sua direo ao ca-
valo bom, mas, sobretudo, de conduzir o carro a seu destino colimado.
o argumento de que o homem a alma se encontra do dilogo maiutico Alcebades, nos
seguintes termos:
"Ento, que o homem? - No sei dizer. - Mas sabes dizer que ele aquele que usa do corpo,
sabes dizer isto? ~ Sim. - E talvez seja algum outro quem usa do corpo. e no da alma?-
No. a alma... - E talvez a alma governe o corpo juntamente com o corpo? Esses dois silo
o homem? - Pode ser. - De modo algum: pois se o um, isto . o corpo. no governa. no h
maneira de que possam governar os dois. - Exatamente. - E como o homem no s o corpo,
nem o corpo e a alma juntos, conclui-se, ento, que o homem no nada, ou se alguma
cousa. no pode ser outra cousa seno a alma". (Alcebades, citado por Mondolfo. 1971
p.254, 255).
A imortalidade da alma e seu destino eterno so discutidos principalmente no Fdon, que,
como sabemos, a narrativa das ltimas horas de vida de Scrates, na companhia de alguns
discpulos. O primeiro argumento o da gerao recproca infinita dos contrrios, que leva
concluso de que se morresse tudo o que vivo, assim permanecendo e no revivendo mais,
no seria necessrio que igualmente tudo estivesse morto e nada vivo? .. Sim, verdade que
se ressuscita, c que os vivos nascem dos mortos, e que as almas dos mortos existem". O argu-
mento da reminiscncia formulado assim: "Tambm de acordo com essa razo de que o nos-
so aprender no seno recordar, preciso ter aprendido antes o que se recorda no presente.
E isto no poderia ser. se a nossa alma no tivesse vivido em outro lugar, antes de haver en-
trado nesta forma de homem; pelo que, ainda por esta razo, se torna evidente que a alma algo
imortal" (Fdon, 72,73, citado por Mondolfo, 1971, p.258) O argumento mais [orte, porm, parece
ser o encontrado em A repblica, segundo o qual nenhum mal, prprio ou de outro ser, pode
destruir a alma. Eis o texto:
- "Pois bem: ou refutemos tudo isso, ou sustentemos, enquanto no esteja refutado, que
nem pela febre nem por qualquer outra molstia, nem pelo degolamento, nem mesmo que
o corpo inteiro seja cortado cm pedacinhos, h de a alma perecer ou destruir-se um pouco
que seja. Isto sustentaremos at que algum nos demonstre que, por tais pedacinhos do
corpo, ela se torna mais injusta ou mpia; pois que a alma ou qualquer outra coisa possa ser
destruda pelo aparecimento de um mal que lhe estranho, se a esse no se acrescente o mal
prprio, algo que ningum tem o direito de afinnar.
- E seguramente. - Respondeu ele. ~ N i n g u m demonstrar jamais que a alma dos que se
encontram s portas da morte se torne mais injusta por esse motivo.
- Mas, se algum quc prefira no admitir a imortalidade da alma se atrever a negar isso,
dizendo que os moribundos realmente se tornam mais perversos e mais injustos, nesse caso
julgaremos que, se tal homem diz a verdade, a injustia algo fatal para o injusto, como uma
doena, e os que a levam em si morrem pelo poder natural de destruio inerente ao mal,
que a uns mata de imediato e a outros mais devagar; mas de maneira diversa aquela porque
morrem agora os injustos s mos dos que os fazem pagar seus crimes.
- Por Zeus! - Exclamou ele. - A injustia no pareceria to terrvel se fosse fatal ao injus-
to, pois lhe ofereceria uma sada para escapar aos seus males. Creio antes que bem o con-
trrio, e a injustia, que mata os outros quando pode faz-lo, conserva o matador com a vida
- c, alm de vivo, bem acordado. To longe est, segundo parece, de produzir a morte.
97
Antropologia Filosfica
- Dizes bem, - observei, - se o mal ou perverso conatural alma incapaz dc mat-Ia ou
destru-Ia, o mal prprio de um outro ser estar longe de tcr csse efeito sobre ela ou qual-
quer outra coisa, exccto aquela para que foi destinado.
- Bcm longe. mesmo.
- E assim, se nao perece por mal nenhum, nem prprio nem alheio, evidente que h de existir
sempre: e o que existe sempre imortal.
- Por certo (A repblica, traduo de Leonel Vallandro, p. 271,272).
o destino das almas no o mesmo para todos os homens, Aqueles que se dedicam ao bem
e busca da verdade, atravs do filosofar coerente, tero um destino de glria. "Uma alma que
se ache em tais condies, ento, ir para o que se lhe assemelha, para o que invisvel, para o
que eterno, divino, intelectual e imortal, aonde, chegando, ser bem-aventurada, livre dos er-
ros, da insensatez, dos temores, dos selvagens amores e das outras desgraas humanas, passan-
do todo o seu tempo com os Deuses" (Fdon, p.SI). Os que vivem no erro, entretanto, estaro
sujeitos ao juzo e ao sofrimento. o que diz o mesmo texto do Fdon: "E partindo do corpo man-
chadas c imundas (... ) preocupadas com os desejos corporais (... ) tais almas (... ) dos malvados
(... ) esto condenadas a errar em torno destes lugares, expiando a pena da sua m vida passada,
e vagam at que, arrastando-as o desejo corporal que possuem, se unem novamente a um corpo.
E, como natural, tomaro as formas e costumes a que se afeioaram em vida" (citado por
Mondolfo, 1971, p.261, 262).
Como se pode ver. h semelhanas entre a idia platnica do destino da alma e aquilo que
mais tarde seria a doutrina crist da vida eterna.
Intimamente ligada doutrina da alma encontra-se a tica platnica, cujo imperativo funda-
mental a liberdade daquilo que "h de mais elevado no homem. Como diz Corbisier: "A tica
o caminho que o homem deve seguir para vir-a-ser. ou tornar-se, o que deve ser, realizando ple-
namente o que nele propriamente humano. E, como no pode deixar de querer o bem, em cuja
contemplao consistem a sabedoria c a felicidade, no poder alcana-lo vivendo de qualquer
maneira, mas de maneira determinada, de acordo com a razo, a verdade e ajustia". (p.159).
O tema tico discutido por Plato no Filebo, em que apresenta o prazer como critrio do
bem para o filsofo, a vida ideal seria a combinao da sabedoria e do prazer, com a predominn-
cia da primeira. que conduz a inteligncia temperana e virtude. Em Obanquete, Plato apon-
ta o amor como o caminho para o Divino e, conseqentemente, para a Beleza e para a Verdade.
O platonismo uma das foras vivas do pensamento humano, desde suas origens at hoje.
Dominou, atravs de Agostinho, as principais concepes doutrinrias do cristianismo, pelo
menos at o sculo XIII de nossa era. E, mesmo com o impacto do pensamento tomista baseado
em Aristteles, at hoje ainda se faz presente em muitos aspectos da doutrina crist. Sua intlu-
ncia na formao do homem modemo est presente em todas as grandes naes do mundo, como
salienta Jaeger:
"A histria da Paidia, encarada como a morfologia gentica das relaes entre o homem e
a polis, o fundo filosfico indispensvel, no qual se deve projetar a compreenso da obra
platnica. Para Plato, ao contrrio dos grandes filsofos da natureza da poca pr-socr-
98
Viso geral dos humanismos
tica, no o desejo de resolver o enigma do universo como tal que justifica todos os seus
esforos pelo conhecimento da verdade, mas sim a necessidade do conhecimento para a
conservao e estruturao da vida. Plato aspira a realizar a verdadeira comunidade, como
o espao dentro do qual se deve consumar a suprema virtude do homem. Asua obra de re-
formador est animada do esprito educativo da socrtica, que se no contenta com contem-
plar a essncia das coisas, mas quer criara bem. Toda a obra escrita de Plato culmina nos
dois grandes sistemas educacionais que so Arepblica e As leis, e o seu pensamento gira
constantemente em redor do problema das premissas filosficas de toda a educao, c tem
conscincia de si prprio como a suprema fora educadora de humens (... ). Ofundador da
Academia com razo considerado um clssico onde quer que se reconhea e professe a fi-
losofia e a cineia como foras formadoras de homens" (Paidia, p.549, 550).
ARISTTELES (384-322 a.c.). Nascido em Estagira, na Trcia, foi discpulo de Plato
desde os 17 anos de idade, permanecendo ali at a morte do mestre, 20 anos depois. Apesar de
sua profunda admirao pelo mestre, discordou dele principalmente quanto doutrina das Idi-
as, crticaj iniciada pelo prprio Plato na fase de sua maturidade, quando j se havia libertado
mais da imagem de Scrates.
Aconvite de Felipe II, da Macednia, foi preceptor de Alexandre, o Grande, em quem pro-
curou infundir os ideais da cultura grega, levada ao mundo atravs das conquistas militares desse
gnio irrequieto, que morreu antes de ver realizado seu grande sonho.
De volta a Atenas, depois da ascenso de Alexandre ao trono, em 336 a.C., funda a escola
peripattica, cujo nome se deve ao fato de suas prelees serem dadas num corredor (perpato)
do Liceu. O Liceu como tambm conhecida a escola deAristtclcs, era igualmente uma univer-
sidade, porm diferente da de Plato, por se dedicar mais enfaticamente ao estudo das cincias
naturais.
As obras de Aristteles so numerosas, e a humanidade se tem por venturosa, porque quase
tudo que ele escreveu ainda existe. Convm salientar, entretanto, que muitos dos escritos deAris-
tteles carecem de uma forma literria bem definida e bem trabalhada. Muitos dos seus livros do
a impresso de ser apontamentos ou roteiros para as prelees que ministrava, cujas lacunas eram
preenchidas oralmente, ou at mesmo apontamentos de aulas tomados por discpulos, ao ouvi-
rem as prelees do mestre. Porm, as obras filosficas, propriamente ditas, tm atravessado os s-
culos como um dos maiores patrimnios intelectuais da humanidade. Dentre essas obras, destacam-
se a Metafsica, a Fsica, a tica a Nicmaco, a Poltica, a Potica, Da alma, e, evidentemente,
a Lgica ou Organon, que por sculos foi o modelo das leis do pensamento correto.
Ao contrrio de seu mestre Plato, que se recusava a sistematizar seu prprio pensamento ou
sua doutrina filosfica, Aristteles o filsofo que faz questo de apresentar suas idias de forma
sistemtica. Essa atitude faz do Estagirita, o modelo por excelncia do pensador sistemtico.
Do pensamento de Aristteles, salientaremos dois aspeclos principais, por estarem mais di-
retamente relacionados com o propsito de nosso trabalho ~ -- a psicologia e a tica.
Aristteles foi o primeiro filsofo a tratar, de modo sistemtico, dos problemas referentes
natureza humana, disposies e inclinaes do homem, operaes da mente, mecanismos do
99
Antropologia Filosfica
conhecimento e dos problemas relativos sensao, memria, ao sono e assuntos correlatos.
Estes assuntos so apresentados, principalmente, no pequeno tratado Da alma, que servir de
base exposio a seguir.
Para Aristteles. o homem constitudo de matria e forma: A matria o c o r p o ~ a forma
a alma. Mas, ao contrrio do dualismo platnico, que fazia clara distino entre o corpo e a alma,
Aristteles advogou a unidade substancial entre corpo e alma, como constituinte da pessoa
humana. Para ele, a alma no o epifenmeno das condies fisiolgicas, mas a forma que d ao
corpo o ser e o agir.
o homem diferente dos outros seres vivos pelo fato de possuir uma alma racional. As
plantas e os animais no possuem o atributo do pensamento.
A alma do homem exerce trs funes bsicas: a vegetativa, a sensitiva c a intelectiva.
A funo vegetativa da alma tem por objetivo a nutrio e a conservao do corpo
"A alma vegetativa (nutritiva) (... ) a primeira e a mais comum faculdade da alma, por meio
da qual possuem a vida todos (os viventes); as suas funes so gerare nutrir-se, porque
a mais natural entre todas as funes dos viventes, acabados e no malogrados, ou nos quais
a gerao no espontnea, produzir outro ser semelhante a si: o animal, um animal, a
plunta, uma planta, a fim de que participem do eterno e divino em tudo o que lhes seja
possvel. Efetivamente, todos tendem para ele, e este o fim de toda a sua atividade con-
forme a natureza" (Da alllla, II, 4).
A funo sensitiva exercida pelo conhecimento e pelo apetite:
"A sensao tem lugar quando somos movidos ou sofremos uma ao, pois parece ser uma
espcie de alteraflo C..). evidente que a faculdade de sentir no tal cm ao, mas somente
em potencial; por isto acontece como ao combustvel. que no queima por si mesmo sem
aquilo que tem a propriedade de queimar (...). As coisas que fazem com que a sensibilidade
chegue ii ao acham-se no exterior, ou seja, o visvel, o audvel e assim os outros objetos
de sensaes. A sLla causa que a sensao em ao tem por objeto os seres particulares,
enquanto que a Cincia tcm por objeto os uni versais: estes, de certo modo, esto no p r ~
prio esprito; por isto compreender depende de ns mesmos. quando queremos; porm,
sentir no: pois necessria a presena do sensvel" (De anima, II, 5, citado por Mondol-
fo, 1971, p.50,51).
Finalmente, a funo intelecliva da alma, que exercida pela abstrao, pelo juzo e pela
argumenlao:
"Se o pensar como o sentir, ser um receber, uma ao da parte do inteligvel ou algo
semelhante. preciso, ento, que (o intelecto) seja a um tempo impassvel e capaz de
receber a forma (idia), e semelhante a ela em potncia, porm distinto dela: ou seja, na
relao mesma em que se encontra a faculdade sensitiva a respeito dos sensveis, assim deve
sero intelecto uos inteligveis (... ) De modo que a sua natureza no pode ser seno esta: estar
em potencial (...) e tem razo quem diz que a alma o lugar (receptculo) das idias, no
se compreendendo, porm, a alma inteira, mas somente a intclectiva, e no idias cm ao.
100
Viso geral dos humanismos
mas cm potencial C.. )poder-se- perguntar: se o intelecto simples c impassvel e sem nada
de comum com algo (como diz Anaxgoras) de que modo poder pensar, se o pensar sig-
nifica receber uma ao? Pois, somente enquanto h algo de eomum entre dois seres. pare-
ce que um possa exercer e o outro receber uma ao (...) Mm; (...) j se fez esta distino
de que o intelecto , de certo modo, os inteligveis em potencial. mas nJo nenhum em ao
de pens-Ia. Deve ser nele, pois, como na tabuleta, em que nada se eneontraj escrito em
aJo: c este , precisamente. o caso do intelecto" (De animo, TIL 4, citado por Mondolfo.
1971, p.53).
Como o texto revela, Aristteles empirista. Para ele, o conhecimento humano depende da
experincia sensorial. Originalmente, a alma uma tabula rasa, na qual vo sendo feitos os regis-
tros da experincia a que o indivduo exposto. Conseqentemente, no existem idias inatas.
como sculos depois queria Ren Descartes. Os sentidos so a primeira fonte de conhecimento.
So eles que fornecem inteligncia o material do qual forma as idias universais, construdas
base da abstrao. No processo da abstrao, Aristteles identifica dois tipos de intelecto: o
agente, ou intelecto ativo, e o paciente, ou intelecto passivo. O intelecto agente, iluminando os
dados sensveis, produz as idias. O intelecto passivo simplesmente recolhe e conserva a idia.
semelhana de Plato, Aristteles tamhm ensinou a imortalidade da alma. Mas, coeren-
te com seu ponto de vista, advogou que somente o intelecto agente divino, e, portanto, imor-
tal. Aalma em suas funes vegetativas e sensitivas, no imortal. S a alma racional participa
desse atributo. Isto equivale a dizer que a imortalidade advogada por Aristteles impessoal.
O segundo aspecto da doulrina aristotlica, de que nos ocuparemos aqui, a tica. Aprin-
cipal obra do Estagirita sobre este assunto a tica a NicmClco, que existe cm portugus, na
traduo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim.
Logo no incio do primeiro livro dessa obra, Aristteles diz que "o bem aquilo a que todas
as coisas tendem". A felicidade o bem que o homem deve buscar acima de todas as coisas. A
felicidade s pode ser alcanada com a realizao plena das potencialidades do homem enquan-
to ser racionaL A virtude o nico caminho para se alcanar a felicidade. "A virtude , pois, uma
disposio de carter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto , a mediania
relativa a ns, a qual determinada por um princpio racional prprio do homem dotado de sa-
bedoria prtica. E um meio-termo entre dois vcios, um por excesso e outro por falta; pois que.
enquanto os vcios ou s aes e paixes, a virtude encontra e escolhe o meio-termo" (tica a
Nicmaco, 1.I07a, p,73).
Aristteles classifica as virtudes em dianoticas, ou do intelecto, e morais. As primeiras so
as que contribuem para o desenvolvimento e funcionamento das faculdades intelectivas. So elas:
a cincia intuiti va (Naus), a cincia intelecti va (epistme), a sabedoria (Sophia), a arte (tchne)
e a cincia prtica (phrnesis). As virtudes morais so as que controlam as paixes e escolhem
os meios para atingir os fins. Destas, h quatro consideradas cardiais: a prudncia, que ajuda o
intelecto ajulgaro carter moral de uma ao: a temperana, que corrige o apetite concupiscvel;
a fortaleza, que controla o apetite e ajustia, que regula as relaes sociais dos homens.
A justia distributiva. quando trata da justa distribuio das honras, dos bens materiais, segun-
do os mritos de cada um no Estado. corretiva, quando impe penas ao transgressor da lei e
101
Antropologia Filosfica
quando restitui, ao legtimo dono um bem do qual foi privado. A prtica das virtudes morais tor-
na o homem feliz, mas o que se dedica ao exerccio das virtudes dianoticas felicssimo.
Depois de identificar "a felicidade como uma espcie de boa vida e boa ao". Aristteles diz:
"Tambm se ajusta nossa concepo a dos que identificam a felicidade com a virtude em
geral ou com alguma virtude particular, pois que virtude pertence atividade virtuosa. Mas
h, talvez, uma diferena no pequena cm colocarmos o sumo bem na posse ou no uso, no
estado de nimo ou no ato. Porque pode existir o estado de nimo sem produzir nenhum
bom resultado, como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade
virtuosa, no: esta deve necessariamente agir, e agir bem. E, assim como nos jogos Olm-
picos, no so os mais belos c os mais fortes que conquistam a coroa, mas os que compe-
tem (pois dentre estes que ho de surgir os vencedores), tambm as coisas nobres e boas
da vida s so alcanadas pelos que agem corretamente" (tica a Nocmallo, 1.099, p.57,58).
A influncia do pensamento aristotlico, semelhana do platnico, ainda hoje se faz sen-
tir, principalmente no mundo ocidental. Um dos motivos dessa influncia, no o nico, o fato
de ela haver sido considerada, por Toms de Aquino, como o instrumento filosfico mais ade-
quado para a apresentao acadmica da mensagem do cristianismo. Assim como Agostinho se
serviu de Plato para formular alguns dos pontos fundamentai de sua teologia, incluindo a A
Cidade de Deus, verso crist de A repblica, assim tambmToms de Aquino construiu sua fa-
mosa Summa Theologicae, com base na lgica e na metafsica de Aristteles. Portanto, podemos
dizer que, atravs do cristianismo, o pensamento dos principais representantes do apogeu da
filosofia tica tem permanecido e aparentemente permanecer entre ns por mais alguns sculos,
ou, quem sabe, para sempre.
2.2.4. Epicurismo e estoicismo
Depois de Plato eAristteles, a filosofia grega entra numa fase de decadncia, da qual nuca
mais se recuperaria. As condies sociais e polticas da Grcia mudam completamente e com elas
tambm a natureza e o mtodo de filosofar. Atenas perde sua autonomia poltica e passa a ser
dominada sucessivamente por Tebas e pelos macednios. Depois do domnio macednio, a Grcia
cai sob o jugo de Roma.
Alexandre expande seu domnio e com ele difunde a cultura grega. a esta expanso que se d
o nome de helenismo. Alngua grega se espalha pela sia Menor, pelo Egito e pela Prsia. o koin,
dialeto ou lngua comum, em que o livro sagrado do cristianismo, o Novo Testamento, seria escrito.
Surgem novos centros culturais, como Prgamo, Antioquia e, sobretudo, Alexandria, no Egito.
Na filosofia helenstica verifica-se o desenvolvimento das cincias particulares em discipli-
nas independentes. A matemtica, a astronomia, a geografia, a medicina, a histria e a filologia
definem seu objeto material e se impem como cincias particulares.
No helenismo, a filosofia deixa de ser vista como busca desinteressada do saber, do conhe-
cimento per se, e passa a ser vista como norma de vida, busca racional da felicidade, princpio de
102
Viso geral dos humanismos
conduta capaz de proporcionar ao homem a paz de esprito. O filsofo deste perodo o homem
que enfrenta a angstia de mudanas radicais. Ele j no conta com as estruturas e a segurana
da polis grega. Acidade est em declnio. E o que significa isto para o homem do perodo hele-
nstico? "O declnio da cidade o declnio da vida pblica, sntese do universal e do particular,
e a afirmao do particular abstrato, porque separado do universal. Acidade deixa de ser sntese
e passa a ser um agregado de singularidades meramente justapostas. Deixando de haver vida em
comum, h apenas, a vida de cada um, do indivduo isolado, que procura resolver seus proble-
mas por conta prpria, revelia da Res PhliCl1 que no mais existe" (Corbisier, 1984, p.28l).
Visto que a sociedade no oferece este ponto de apoio, o homem tem que buscar essa n-
cora em si mesmo. um perodo catico e incerto da histria do esprito humano. "Envolvido no
turbilho das paixes e das foras que vm forjando a nova histria, ele (o filsofo) procura por
todos os modos uma via de salvao. E refugia-se em si mesmo, em sua solido interior. Pergun-
ta razo em que consiste a to desejada felicidade, qual o seu bem supremo; pede filosofia
uma orientao para conseguir aquela serena tranqilidade, aquela independncia das vicissi-
tudes deste mundo, aquele domnio de si mesmo que constitui o ideal do sbio" (Battista Mon-
din, 1981,p.l00).
A filosofia do perodo helenstico , portanto, essencialmente tica. Consiste na busca de
um summum bonurn, que para os epicuristas consiste na ataraxia, isto , na ausncia de preo-
cupao e de perturbaes do esprito e na obteno do prazer. Para os esticos, o bem supremo
consiste na apatia ou controle das emoes c das paixes outros acham que o bem supremo
inatingvel- so os ('ticos; e h aqueles que acham que no possvel encontrar uma resposta
adequada seno valendo-se de uma combinao de solues propostas - so os eclticos.
Para nosso objetivo, trataremos aqui apenas do epicurismo e do estoicismo, por serem
correntes marcantes desse perodo da histria da filosofia e por terem considervel peso no que
se refere aos conceitos antropolgicos. Sobre o ceticismo, diremos algo ainda neste captulo,
quando tratarmos do atesmo como forma radical de humanismo.
EPICURISMO. Afigura central e praticamente nica do epicurismo seu fundador, Epicu-
ro de Samos (341-270 a.C).
Segundo Benjamim Farrington, em A Doutrina de Epicuro (1968), a doutrina epicurista se
espalhou, rapidamente, por todo o mundo mediterrneo e influenciou O pensamento humano por
cerca de 700 anos. Essa doutrina apareceu num mundo dilacerado pela guerra e dominado pela
superstio, ao qual Epicuro prope um retorno felicidade. O epicurismo atraiu a elite intelec-
tual e o povo com sua proposta de uma sociedade feliz, baseada na amizade e najustia entre os
homens.
Epicuro era urna personalidade atraente, caracterizada pela bondade, pela ternura e p r o f u n ~
da lealdade aos amigos. Dado vida simples e frugal, profundamente dedicado cincia, era exa-
tamente o oposto da figura sensual e vulgar que lhe pintavam os adversrios. Sua memria foi
registrada por ardorosos discpulos, que lhe prestaram verdadeiro culto pessoal, como Dige-
nes Larcio, Digenes de Einoanda e, sobretudo, Lucrcio, que, em seu poema De rerum natura
103
Antropologia Filosfica
(Sobre a natureza das coisas), o considera praticamente um deus. Vejam o que diz Lucrcio, nos
primeiros pargrafos do Livro III de seu poema:
" tu que primeiro pudeste de to grandes trevas fazer sair um to claro esplendor, escla-
recendo-nos sobre os bens da vida, a ti cu sigo, glria do povo grego, e ponho agora meus
ps sobre os sinais deixados pelos teus, no por qualquer desejo de rivalizar contigo, mas
porque por amor me lano a imitar-te. De fato, como poderia a andorinha bater-se com o
cisne, que poderiam fazer de semelhante em carreira os cabritos de trmulos membros e os
fortes, vigorosos cavalos? Tu, pai, s o descobridor da verdade, tu me ofereces lies
paternais. e nos teus livros que ns. semelhantes s abelhas que nos prados floridos tudo
libam. vamos de igual modo recolhendo as palavras de ouro, de ouro mesmo. as mais dig-
nas que houve desde que o tempo tempo. Logo que a tua doutrina, obra de um gnio divino.
comea a proclamar a natureza das coisas, dispersam-se os terrores do nimo, apartam-se
as muralhas do mundo, e vejo como tudo se faz pelo espao inteiro".
Aparece o poder divino e as manses tranqilas que nem os ventos abalam, nem as nuvens
regam com suas chuvas, nem a branca neve, reunida pelo frio agudo, caindo, e que
um lmpido eu sempre protege que sempre riem na luz largamente difundida. Tudo lhes
fornece a natureza, nada lhes toca em tempo algum a paz da alma. E. pelo eontrrio,jamais
aparecem as regies do Aqueronte, a temI no impede que se veja tudo o que, sob nossos
ps, sucede nos espaos vazios; perante tudo isto me tomam divina volpia e temeroso
respeito, pelo fato de a natureza, descoberta pelo teu gnio, assim se ter manifestado aber-
tamente em completa nudez" (De rerum natura, Livro III, p.5-30, traduo de Agostinho
da Silva, p,63).
Atravs deste poema, o epicurismo, que representa uma nova verso do atomismo de De-
mcrito, introduzido em Roma, e da passa filosofia moderna.
Segundo Digenes, Epicuro teria escrito cerca de 300 obras sobre vrios temas, mas delas
nada nos resta a no ser alguns fragmentos e trs Cartas que resumem sua filosofia. Na primeira
Carta, endereada a Herdoto, que no deve ser confundido com o historiador, ele trata da
constituio e estrutura do universo, argumentando base da teoria atmica. Em outra, dirigida
a Ptocles, trata dos corpos celestes e, na terceira, destinada a Meneceu. trata de problemas ticos
ou de conduta da vida, mostrando que o prazer e a paz de esprito constituem o objetivo por
excelncia da vida humana. Duas dessas cartas, a Herdoto e a Meneceu, se encontram na co-
leo - Gareway to the great books, volume 10.
Epicuro se prope a combater dois terrveis adversrios do homem: o medo dos deuses e o
medo da morte. No primeiro caso, combateu a superstio em suas mais variadas formas; no
segundo, deu um belo exemplo pessoal, semelhana de Scrates, enfrentando a morte com ab-
soluta serenidade.
A filosofia epicurista abrange a Lgica ou a Cannica, a Fsica e a tica. No nos preocu-
paremos aqui com a Lgica. Da Fsica nos interessa apenas a doutrina do clinamen como expli-
cao do alO livre do homem. Nosso maior interesse se concentra na tica de Epicuro.
Pelo atomismo de Demcrito, existe um determinismo absoluto, visto que os tomos caem
sempre em linha reta, segundo uma lei inflexvel que no permite a ocorrncia de nada novo ou
104
Viso geral dos humanismos
inesperado, nem mesmo na ao humana. Mas, segundo Epicuro, os tomos podem desviar-se
da direo vertical. o clinamen ou declinatio, sem o qual nenhum tomo poderia encontrar-se
com outro, dando assim origem a um novo conglomerado. A ser verdadeiro o ensino de Dem-
crito. cada tomo cairia eternamente ao lado de outro, de acordo com leis imutveis. Lucrcio expe
essa teoria nos seguintes termos:
"H neste assunto um ponto que desejamos que conheas: quando os corpos so levados
em linha reta atravs do vazio e de cima para baixo pelo seu prprio peso, afastum-se um
pouco da sua trajetria, cm altura incerta e cm incerto lugar, e to-somente o necessrio para
que se possa dizer que se mudou o movimento. Se no pudessem desviar-se, todos eles, como
gotas de chuva, cairiam pelo profundo espao, sempre de cima para baixo, e no haveria para
os elementos nenhuma possibilidade de coliso ou de choque; se assim fosse, jamais a
natureza leria criado coisa alguma" (De rerum natura, Livro II, 216- 224, p.50).
A doutrina do clinamen livra o homem da idia da fatalidade, implcita no estoicismo e nas
vrias supersties antigas e modernas, e garante ao homem epicurista a liberdade da vontade.
Falando da luta de Epicuro contra o fato, Hirschberg diz:
"O que ele busca com a idia do acaso, , particularmente, libertar o homem do despotismo
do la/um. Os epicuristas professam a liberdade da vontade. Mas, se como ensinam os
esticos, h umfatum, ento desaparece a liberdade da vontade, c pende, sobre a vida do
homem, como "espada de Dmocles", a perptua fatalidade. Urna tal mundividncia coisa
impossvel para os hedonistas: perturba todo o gozo da vida. Da a tentativa de salvar a
liberdade, mediante o conceito de acaso e da ausncia de causalidade. PareIe, o homem escapa
ao nexo causal universal, pode comear por si mesmo, e com atividade criadora, uma srie
de causas; , portanto, senhor da sua vida e pode constru-la como lhc aprouver "(l/istria
da filosofia na an/i{:idade, p.289,290).
E Lucrcio, mais uma vez, expe e defende a doutrina do mestre: "Mas, se 11 prpria mente
no tem, em tudo o que faz, uma fatalidade intema, e no obrigada, como contra a vontade,
passividade completa, porque existe uma pequena declinao dos elementos, sem ser em tem-
po fixo, nem fixo lugar" (De rerum natura, Livro II, 290-294, p.SO).
Do movimento dos tomos resultam homens e deuses. Os deuses habitam os espaos vazios
entre os corpos celestes. So constitudos de tomos leves e passam a vida em eternos banque-
tes, sem dar a menor ateno ao que acontece aos homens. O homem, por sua vez, constitudo
de tomos pesados (o corpo) e de tomos leves (a alma). A morte ocorre quando os tomos le-
ves se separam dos tomos pesados.
Atica a tnica da filosofia de Epicuro. A essncia dessa filosofia consiste em afirmar que
o bem moral reside no prazer. Demcrito j falava da euforia, mas deAristipo que Epicuro adota
o hedonismo, que leva at s ltimas conseqncias. Pamo epicurismo, apalavra "bem" no quer
dizer seno o que agrada e causa prazer. O mal o que nos desagrada. O prazer subjetivo o
princpio do bem.
O hedonismo da tica epicurista tem por objetivo a ataraxia ou ausncia de dor e de qual-
quer perturbao. a paz da alma que no conseguida no turbilho das atividades, mas na
\05
Antropologia Filosfica
quietude do crculo ntimo de pessoas amigas. No o prazer do movimento, como em Aristipo,
mas o prazer do repouso. No o prazer do corpo, se bem que importante, mas o prazer do espri-
to. A filosofia de Epicuro uma tica de afirmao da vida:
"Assim, tem o epicurista os olhos bem abertos p,ua a riqueza e a beleza do mundo, afirma
a vida na sua plenitude, na sua pujana, na sua fora vitoriosa. Por a supera-se i1 si mesmo,
sobrepuja-se aos lados sombrios da vida e no se deixa tolher por eles, ficando-se assim livre
para urna positiva concepo da existncia. Nem o pensamento da morte consegue abute-Io.
A prova tola, de que "a morte no nos importa" - enquanto vivemos ela no vem, e quando
vem,j no vivemos- oculta algo de muito valioso: o sim alegre dado vida, que s v o positivo
e assim pode realmente utilizar o dia. O horaciana carpe diem* no tem a sua origem numa avi-
dez insacivel dos prazeres da vida, mas em uma viso ampla dos valores da existncia. E
Vnus era o smbolo disso, para os epicuristas. Como ela, a existncia nos pode proporcio-
nar tais coisas, e s ela, vale a pena ento viver e "colher" o dia" (Hirschberg, 1969, p.294).
Esta vida se afirma na comunho de amigos, pois, como diz o prprio Epicuro: "De todas
as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior a aquisio da
amizade".
Apresentaremos, a seguir, sem comentrios, algumas frases de Epicuro, que bem expressam
aspectos relevantes de seu pensamento. Servimo-nos aqui da pequena antologia de textos de Epi-
curo, organizada por E. Joyau e traduzida por Agostinho da Silva, So Paulo, EditoraAbril Cul-
tural, 1980:
"Todo desejo incmodo e inquieto se dissolve no amor da verdadeira filosofia"
"Deves servir filosofia para que possas alcanar a verdadeira liberdade"
"Habitua-te a pensar que a morte nada para ns, visto que todo o mal e todo o bem se
encontram na sensibilidade: e a morte a privao da sensibilidade"
"O limite da magnitude dos prazeres o afastamento de toda a dor. Eonde h prazer, enquanto
existe, no h dor de corpo ou de esprito, ou de ambos"
"Quando dizemos, ento, que o prazer fim, no queremos referir-nos aos prazeres dos
intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crem certos ignorantes, que se
encontram em desacordo conosco ou no compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres
de sofrimentos do corpo e de perturbaes da alma."
"Quando te angustias com as tuas angstias, te esqueces da natureza: a ti mesmo te impes
infinitos desejos e temores."
"No realizes na tua vida nada que, se for conhecido por teu prximo, te possa acarretar
temor."
"O homem que tenha alcanado o rim da espcie humana ser honesto mesmo que ningum
se encontre presente."
"Deus ou quer impedir os males e no pode, ou pode e no quer, ou no quer nem pode, ou
quer e pode. Se quer e no pode, impotente: o que impossvel em Deus. Se pode e no quer,
invejoso: o que, do mesmo modo, contrrio a Deus. Se nem quer nem pode, invejoso e impo-
* "Aproveita o dia", frase de Horcio, poeta latino, usada para expressar um dos fundamentos da filosofia dc
Epicuro. (N. do A.)
106
Viso geral dos humanismos
tente: portanto, nem sequer Deus. Se pode e quer, o que a nica coisa compatvel com Deus,
donde provm ento a existncia dos males? Por que razo que no os impede?"
o pensamento de Epicuro exerceu considervel influncia sobre a histria da humanidade.
A comear por Digenes Larcio, a quem devemos o pouco que nos resta dos escritos do "fil-
sofo do Jardim", a Digenes de Einoanda, que esculpiu em 10 metros de muro um sumrio dos
ensinamentos de Epicuro, e Lucrcio, em seu famoso poema De rerum natura, que se tornou um
poderoso veculo de comunicao de suas idias, vemos essa influncia em Ccero, em Sncca,
c em muitos outros pensadores romanos.
Em seu encontro com o cristianismo, a princpio epicuristas e cristos partilhavam idias co-
muns como, por exemplo, o mtodo de propaganda a viva voz, e a manuteno de comunidades
espalhadas por vrios lugares e unidas por literatura epistolar. E, visto que o epicurismo trs
sculos mais antigo que o cristianismo, provvel que oferecesse o modelo para essas comu-
nidades. Epicurismo e cristianismo compartilhavam, tambm, a hostilidade contra a idolatria dos
cultos oficiais e mitos das religies tradicionais. Combatiam igualmente a astrologia e demais su-
persties reinantes. Em certos aspectos, o cristianismo foi mais fraco do que o epicurismo,
acomodando-se opinio prevalecente, como o caso do dia do Sol, que se tornou o Dia do
Senhor, e a escolha da data astrolgica de 25 de dezembro para o Dia do Natal. Rejeitou, em
qualquer hiptese, como o epicurismo, a adorao dos astros.
Mas, com a Escola de Chartres, no sculo XII, principalmente na pessoa de Joo de Salis-
bury, o epicurismo foi hostilizado pelo cristianismo corno sendo ateu, materialista e hedonista,
no sentido vulgar do termo.
No sculo XV, porm, o prestgio do epicurismo reaparece no seio da cristandade. Em 1431,
Lorenzo ValIa escreve Do prazer, comparando os conceitos esticos e epicuristas sobre o assun-
to, colocando-se nitidamente ao lado do epicurismo. Em 1519, Erasmo de Roterd, em Colloquia
familiaria, afirma que os epicuristas viviam como piedosos cristos. Montaigne (1548- 1600) nos
Ensaios, defende a doutrina epicurista do prazer.
Farrington (1968) argumenta que o que esses autores defendem no o epicurismo como
volpia, mas como revolta contra a falsa religio, que exaure a importncia da vida neste mundo
em detrimento de um futuro problemtico, alm da morte. Aidia epicurista da imortalidade, no
como durao interminvel no tempo, mas como imortalidade subjetiva, qualidade de existncia
ating vel nesta vida e que, se no alcanada aqui, nunca ser, comea novamente a ser compre-
endida por esses pensadores.
Acompleta recuperao de Epicuro se d com Gassendi (1592-1655), doutor em Teologia,
cnego de Grenoble, autor de Da vida, carter e ensinamento de Epicuro e Compndio sobre
afilosofia de Epicuro. Gassendi afirma que h duas motivaes para se adorar a Deus: o amor
filial e os benefcios que Deus nos concede. Ele atribui a primeira atitude a Epicuro e mostra o
carter servil e errneo da segunda.
A concepo epicurista da natureza como algo regido por leis cientficas, e no pelo capricho
dos deuses, abriu o caminho para o progresso da cincia a partir do sculo XVII de nossa era.
107
Antropologia Filosfica
Rodolfo Mondolfo, em O homem na cultura antiga (1968), aponta a nfase epicurista sobre
a vida interior como algo que d um aspecto revolucionrio a seu humanismo. FalTington conclui:
"A compreenso da sua doutrina do prazer, que vence a disputu entre o corpo c u alma,
colocando mais os scntimentos sociuis do que a razo fria para controlar os apetites, .
atualmente. importante para ns, Em suma, seu pensamento to humano e vive cm tal
profundidade. que tem uma espcie de qualidade eterna c pode comover a mente moderna
como comoveu a mente de Lucrcio na Roma pag, a de Gassendi na renovao dos estu-
dos na Europa crist e ii ansiosa contempornea, crist ou marxista, que tenta avaliar as
perspectivas da raa humana" (p.JSl).
Jean Brun, em O Epicurismo (1959). diz que Epicuro aparece na histria como longnquo
antecessor do positivismo moderno, estudando a Natureza como dado objetivo e abrindo os olhos
do homem at ento presos aos mitos das explicaes pr-lgicas. E, citando, A. F. Bailot, diz:
"Epicuro esforou-se. como Augusto Comte mais tarde, por fechar durante algum tempo
a era da metafsica, virando o pensamento para a explicao cientfica, criando um positi-
vismo antes da letra. Reagiu poderosamente contra as dedues a priori cm que Scrates
e seus discpulos se perdiam muitas vezes. Ao substituir por um mtodo experimental ainda
grosseiro as tendncias metafsicas que dominavam uma filosofia "extra-temporal"', intro-
duziu nas cincias a idia de sucessilo, incompatvel com a idia de causa final. Viu muito
bem que, se consideramos a srie dos fatos de um ponto de vista intemporal, o fato ltimo.
que menos importante para a Natureza, pode parecer o fato primitivo e dominante.
Mostrou assim que a ordem das coisas no deveria estar sujeita ordem do pensamento.
Pode dizer-se que, nas cincias da Natureza, assim como na moral c na sociologia, Epicuro
abriu o caminho ao pensamento moderno. O seu positivismo exerceu mais influncia sobre
o esprilo humano do que o positivismo moderno (...). Adoutrina epicurista exerceu umu
influncia considervel sobre o desenvolvimento do pensamento. Est na origem das cin-
cias modernas. O epicurismo contrihui poderosamente para desembaraara domnio moral
das velhas supersties e dos preconceitos enraizados. Libertou o esprito da crena no
maravilhoso e no providencial. Minou o cristianismo e foi nele que a incredulidade do s-
culo XVIII se apoiou" (p.120).
oepicurismo, portanto, desde sua origem at hoje, tem sido um constante desafio ao esp-
rito humano.
ESTOICISMO. Ao contrrio do epicurismo, que praticamente a filosofia de um homem s
- Epicuro o estoicismo teve vrios pensadores importantes.
Antony Long (Lafilosojia helenstica, 1977) diz que o estoicismo foi o movimento filos-
fico mais importante do perodo helenslico. Durante mais de quatro sculos, influenciou o pen-
samento de homens cultos do mundo e no se limitou Antigidade clssica.
Muitos Pais da Igreja foram influenciados pelo estoicismo, e desde a Renascena, at hoje, a moral
estica lem estado presente na cultura ocidental. O desmo e o naturalismo, que caracterizaram
o pensamento do sculo XVIII. mostram acentuada simpatia filosofia estica.
O estoicismo apela tanlo para o filsofo, como Kant ou Spinoza, como para o homem comum.
Provavelmente, isto se deve a algumas das suas caractersticas, que passaremos a mencionar.
108
Viso geral dos humanismos
Todos reconhecem que o estoicismo se apresenta como sistema filosfico coerente. Os
esticos estavam convencidos de que o universo pode ser reduzido a uma explicao racional
e que o prprio universo uma estrutura racionalmente organizada. O logos, faculdade que habilita
o homem pensar, est plenamente incorporado ao universo. O ser humano individual, na essn-
cia de sua natureza, compartilha desta propriedade que pertence Natureza no sentido csmico.
E, porque a natureza csmica abrange todo o existente, o homem individual parte do mundo no
sentido mais pleno e cabal do termo. Para o estoicismo, acontecimentos csmicos e aes huma-
nas no so fatos pertencentes a duas ordens diferentes. Em ltima anlise, ambas so conse-
qncias da mesma coisa, a saber. o logos. Sendo assim, a Natureza csmica ou Deus (que para
os esticos significa a mesma coisa) e o homem se relacionam um com o outro, no ntimo do seu
ser, como agentes racionais. Se o homem reconhece as implicaes desta relao, agir de acor-
do com a racionalidade humana. No viver conforme a Natureza consiste o ser sbio, que um passo
alm da racionalidade, e o objetivo da existncia humana a completa harmonia entre as prpri-
as atitudes e as aes do homem e o curso efeti vo dos acontecimentos. Para viver de acordo com
a Natureza, o homem deve conhecer e saber como uma proposio verdadeira se relaciona com
outra. A coerncia do estoicismo se baseia na crena de que os eventos naturais esto relacio-
nados causalmente de tal forma, que possvel estabelecer uma srie de proposies que habi-
litaro o homem a projetar sua vida com completa unidade com Deus ou com a natureza que, como
vimos, para o estoicismo significam exatamente a mesma coisa.
O estoicismo aconteceu durante um longo perodo da histria, abrange cerca de cinco s-
culos, desde a decadncia grega, a ascenso de Roma e o declnio e queda do Imprio Romano.
Tradicionalmente, identificam-se trs perodos na histria do estoicismo. O estoicismo an-
tigo, no sculo III a.C., tem seu centro de atividades em Atenas e conta com os nomes de Zeno,
Cleanto e Crisipo. O estoicismo mdio, no sculo na.C., com Pancio e Possidnio, e que j in-
dica acentuada tendncia a latinizar-se. Finalmente, temos o estoicismo imperial, nos sculos I
e II d.C., predominantemente romano e voltado quase que exclusivamente para a moral, em de-
trimento da lgica e da fsica. Os principais representantes desse perodo so Sneca, Epicteto
e Marco Aurlio.
Na viso panormica que faremos do estoicismo, mencionaremos os principais representan-
tes de cada um dos perodos e salientaremos os pontos fundamentais da moral estica, conclu-
indo com uma palavra a respeito de sua influncia sobre o pensamento humano, em diferentes
pocas da histria.
ZEN (336-264 a.c.). Natural de Ction, na ilha de Chipre, chega a Atenas depois de um
naufrgio, quando vinha da Fencia para o Pireu. Assim, depois de haver lido os Memorveis, de
Xenofonte, e de ter consultado um orculo, converteu-se filosofia que professou at morte. Zcno
uma pessoa simples e de hbitos frugais, socivel, mas preferia a vida solitria. Falava pouco. e
criticava a vaidade e a presuno do saber. Depois de um acidente, em que quebrou um dedo,
cometeu suicdio por estrangulamento. Por seu valor pessoal e pela contribuio vida da cidade,
os atenienses lhe prestaram expressiva homenagem, segundo relato de Digenes Larcio:
"Dado que Zeno de Ction, filho de Mnaseas, viveu muitos anos na cidade filosofando.
sempre fui um homem de bem, e sempre aconselhou como exemplo de virtude sua prpria
109
Antropologia Fjlosfica
vida. que sempre conformou seus atas e suas palavras, o povo, para sua felicidade, decide
elogiar Zcno de Ction, honr-lo com uma coroa de ouro, segundo a lei, cm recompensa de
sua virtude e de seus bons costumes, e de lhe construir um tmulo custa do Estado" (citado
por Corbisier, 1984, p.335).
CLEANTO (331-232 a.C.). Nascido emAssas, em Trade, o sucessor de Zeno no Pr
tico. Dotado de enorme robustez fsica, fez trabalhos pesados para ganhar a vida e poder estu-
dar. Foi escolhido como sucessor mais pela fidelidade doutrina do mestre do que por seu talen-
to intelectual. Por causa de um tumor na gengiva, os mdicos o proibiram de comer por dois dias.
Ele continuou ojejum e morreu, de fome, aos 99 anos de idade. De seus escrilos s restam alguns
versos de um Hino a Zeus.
CRISIPO (280-210 a.c.). Nascido em Rodes, clebre por seu modo errado de falar, Crisipo
recupera o prestgio da Escola quase destrudo pela desorganizao de Cleanto. Crisipo foi um
hbil polemista e versado na dialtica. Vaidosamente, dizia que se os deuses usassem a dialti-
ca, no poderia ser seno a de erisipo. Com ele o estoicismo torna-se verdadeiramente sistem-
tico, de tal forma que se dizia: "Sem Crisipo no h Prtico". Morre aos 80 anos de idade, numa
crise de riso, ao ver um burro comendo figos, segundo uns, ou por haver bebido muito vinho doce,
segundo outros.
PANCIO (185-112 a.c.). Nascido em Rodes, aprende filosofia com Antpater, em Atenas.
Vai a Roma, onde se torna amigo de Cipio Emiliano, a quem acompanha na viagem costa oci-
dental da frica. Roma, que nesse tempo se heleniza a passos largos, encontra no humanismo
cosmopolita dos esticos a doutrina adequada s suas aspiraes. Em Roma, Pancio orienta o
estoicismo, lransformando-o num humanismo da razo, completamente adequado ao esprito
prtico dos romanos. Com ele, a doutrina estica perde seu rigor sistemtico e toma-se mais ecl-
tica, usando ao mesmo tempo as obras dos discpulos de Aristteles e as da NovaAcademia. Mo-
derando as teses do antigo Prtico, Pancio apelou mais para a probabilidade do que para a
cerleza, colocando, assim, o estoicismo num prisma mais relativista.
POSIDNIO - (135-51 a.c.). Nascido em Apamia, na Sria, Posidnio foi discpulo de
Pancio. Fundou uma escola em Rodes, onde exerceu elevadas funes polticas. Em 86 a.C. vem
a Roma como embaixador de Rodes. Em Roma, foi amigo de Pompeu e mestre de Ccero, o grande
orador, a quem inspirou, dentre outras, as obras De natura deorum e De divinatione.
SNECA(ap. 4 a.c. - 65 d.C.). Nascido em Crdoba, na Espanha, Lcio Aneu Sneca es-
tudaem Roma sob a influncia de pitagricos e de esticos. Por algum tempo foi advogado, mas
logo torna-se corteso. Suas obras filosficas incluem Da providncia, Da clera,
de, Da brevidade da vida, entre outras. Em portugus, dispomos das seguintes obras: Conso-
lao a minha me Hlvia, Da tranqilidade da alma, Medeia (tragdia) e Apocoloquntese
do divino Cludio, publicados pela Editora Abril Cultural, na coleo Os pensadores. Na cole-
o Clssicos lnolvidables, temos um volume dedicado s obras de Sneca. Os livros de Sneca
no so obras de grande flego ou de originalidade. So mais conselhos de moderao e de pru-
dncia no viver. Esto cheios de advertncias sensatas sobre as paixes e sobre virtude. O es-
toicismo de Sneca bastante indulgente: mais um epicurismo moderado. Apesar de lentar
apresentar um retrato psicolgico do homem bastante aceitvel, o homem Sneca em si mesmo
110
Viso geral dos humanismos
no parece modelo digno de imitao. Parece um carter frgil, oportunista e at bajulador. Exi-
lado na Crsega durante oito anos por cair no desagrado de Messalina, primeira esposa de Clu-
dio, retornou a Roma sob a proteo de Agripina, e provavelmente escreveu a carta que Nero leu
perante o Senado para justificar a morte de sua me. Implicado na conspirao de Pison, Sneca
recebe ordens de Nero para suicidar-se, o que faz, abrindo as prprias veias.
EPICTETO(60-140 d.C.). Escravo nascido em Hicrpolis, na Frigia, Epicteto comprado por
Epafrodito e trazido para Roma. Conhece o estoicismo atravs de Musnio Rufus e o resume em
duas palavras: "abstm-te" e "suporta". Liberto por Epafrodito, vive em Roma, em uma cabana
aberta e simples. A lmpada que usava nessa cabana foi posteriormente comprada por um rico
pedante, que nutria a esperana de ser porela "iluminado". Expulso de Roma por Domiciano, abre
uma Escolaem Nicpolis, no piro. Epicteto nada escreveu. Dizem alguns que era analfabeto. Ar-
rianos de Nicomdia coletou apontamentos que formam duas obras: Dissertaes e Manual ou
Enchiridion, principal fonte de informao sobre o seu pensamento.
Jean Brun (O estoicismo, 1986) diz que a obra de Epicteto possui unidade e continuidade,
que no se encontram em outros escritos esticos desse perodo. Sua obra despojada de pa-
radoxos, sutilezas dialticas, de especulaes sobre a natureza do cosmos e se concentra no
domnio da reflexo moral. A serenidade do tom e as frmulas sbrias, mas profundas, so res-
ponsveis pela influncia de Epicteto atravs dos sculos. "Epicteto prega a liberdade interior
e a submisso razo que cada homem deve preocupar-se unicamente pelo que depende dele
mesmo, isto , pelas suas opinies, movimentos, desejos ou inclinaes; quanto s coisas que
no dependem em nada de ns, nada as pode deter ou obstaculizar e, por isto, devemos aceit-
las tal como so, e no esperar que sejam conforme os nossos desejos" (p.25). Existe em Epic-
teta um sentimento religioso na forma de submisso ordem do mundo, e na crena na Providncia
que o torna bem prximo da doutrina crist.
Transcrevemos, a seguir, sem comentrios, alguns trechos do Enclziridion de Epicteto, a
ttulo de ilustrao. Usaremos o texlo do Gateway to the great books, volume 10, Londres,
El1cyclopaedia Brilannica, Inc., J963, traduzido do ingls por Thomas W. Higginson.
"H coisas que dependem de ns, isto , esto em nosso poder, c h coisas que no esto
em nosso poder, isto , no dependem de ns" (236).
"Os homens so perturbados no pelas coisas, mas por seus pontos de vista sobre elas.
Assim, a morte no nada terrvel. pois se assim fosse Scrates assim a havia percebido.
Mas o terror consiste em nossa noo da morte, que terrvel. Quando, portanto, somos
impedidos ou perturbados. ou afligidos, nunca imputemos isto a outros, mas a ns mes-
mos - isto , aos nossos pontos de vista. Apessoa sem instruo atribui seu infortnio a
outros; a que comea a ser instruda culpa-se a si mesma; a pessoa perfeitamente instruda
no condena nem os outros nem a si mesma" (238).
"No exija que as coisas aconteam como voc deseja; mas deseje que aconteam como
acontecem, e voc viver bem" (23R).
MARCOAURLIO (121-180 d.C). Nascido emRoma, Marco Aurlio perde o pai muito cedo
e educado pelo av. Aos 10 anos de idade admitido no Colgio dos Sacerdotes Slicos. Teve
111
Antropologia Filosfica
vrios mestres e desde cedo mostrou interesse pela filosofia. Aos dez anos veste o manto
co, que manter at o fim da vida. No primeiro livro das Meditaes, indica os nomes das pes-
soas que contriburam para a sua formao; de seu av, Vero, teria aprendido a honradez e a
serenidade: do pai nio Vera, a discrio e a varonilidade: da me, Domcia Lucila, a
dade, a generosidade e a absteno no s de praticar o mal, mas at de se demorar em semelhante
pensamento". Mas um agradecimento especial vai para Rstico, filsofo estico e conselheiro
que o instruiu nos caminhos do estoicismo. Diz ele:
"De rstico, a compreenso de que deveria corrigir e cultivar o meu carMer; o no me en-
tregar paixo da sofistica, nem compor tratados tericos, redigir arengas de exortao ou
exibir-me, pam suscitar admiraes, como pessoa operosa e benfazeja; a absteno da re-
tri<.:a, da poesia, do preciosismo: o no andar de toga cm casa, nem alimentar vaidades que
tais; o usar de simplicidade nas minhas cartas, como ele na que mandou de Sinoessa a minha
me; a presteza em responder ao apelo de reconciliao dos que se irritaram comigo e me
ofenderem, to logo de si mesmos queiram voltar s boas; o ler acuradamente, no me sa-
tisfazendo com uma viso d' olhos superficial; o no assentir precipitadamente s indiscri-
es; o conheceras comentrios de Epictcto, que me emprestou de sua biblioteca" (Medi-
taes, traduo de Jaime Bruna, So Paulo, Editora Abril Cultural, 1980, p.263).
Com a morte de Adriano, sobe ao trono Antonino, cuja filha Faustina casa-se com Marco
Aurlio. Com a morte de Antonino, Marco Aurlio torna-se Imperador, ao irmo
aclotivo Lcio Vera, e mais tarde, a seu filho Cmodo. O reinado de Marco Aurlio foi marcado
por guerras e insurreies. Em todas as situaes esteve com o seu povo e lutou como pde para
evitar a derrota do imprio. As condies histricas, entretanto, forma-lhe desfavorveis. Ado-
ece no campo de batalha e morre, talvez de peste, em 180 d.C., com 58 anos de idade.
As Meditaes de Marco Aurlio so anotaes dirias feitas nos momentos livres de que
dispunha ou que criava. No se trata de mera anlise interpretativa do tipo confisso. So refle-
xes sobre a existncia humana, sobre a Providncia e sobre a morte, como indica o pargrafo 17
do Livro II:
"Da vida humana, a durao um ponto; a substncia fluida; a sensao apagada: a com-
posio de todo o corpo, putrescvel; a alma, inquieta; a sorte, imprevisvel; a fama, in-
certa.
Em suma, tudo o que do corpo um rio: o que da alma, sonho e nvoa; a vida, uma guerra,
um desterro; a fama pstuma, olvido.
o que, pois, pode servir-nos de guia? S e unicamente a Filosofia. Consiste ela em guar-
dar o nIUlle interior livre de insolncias e danos, mais forte que os prazeres e as mgoas,
nada fazendo com leviandade, engano e dissimulao, nem precisando que outrem faa ou
deixe de fazer nada, acatando, ainda, os eventos e quinhes que lhe tocam, como vindos
da mesma origem qualquer donde vcm cle prprio; sobretudo, aguardando de boa mente
a morte, qual mera dissoluo dos elementos de que se compe cada um dos viventes"
(Meditaes, p.269).
Feita essa rpida apresentao dos principais representantes do estoicismo nos trs per-
odos de sua histria, passemos agora ao ponto central dessa filosofia - a tica.
112
Viso geral dos humanismos
A tica estica parte da doutrina dos instintos ou das tendncias. O instinto pertence alma
sensvel. O que significa a alma para o estico? Em certo sentido, a alma a vida, pois ela que d
ao homem a faculdade de se mover. Ela a parte do trptico corpo-alma-razo, correspondente
classificao aristotlico-platnica da alma vegetativa, sensitiva e racional. Arazo a parte reito-
ra da alma e se identifica com o logos. No existe, entretanto, uma idia clara sobre o que seja a alma
para o estoicismo. Ora se fala dela como algo material, ora como algo imaterial. apresentada como
sendo constituda de partes e ao mesmo tempo como unitria. Somente neste ponto todos concor-
dam: a alma racional que deve dominar no homem. Quanto imortalidade da alma, os esticos
tambm no so unnimes. Zeno, Cleanto e Crisipo ensinaram que somente a paI1e mais elevada
da alma - a razo - imortal. Pancio no acredilava na imortalidade da alma; Epicteto e Marco
Aurlio ensinaram que no existe imortalidade individual. Posidnio aceita a prova platnica da imor-
talidade, e para Sneca a imortalidade da alma praticamente um dogma, razo pela qual foi freqUen-
temente citado pelos Pais da Igreja. De qualquer maneira, a espcie de eternidade que o homem
consegue no uma imortalidade pessoal, mas uma identificao com o logos.
O instinto fundamental o de conservao, presente em todos os seres vivos. O prazer j
est implcito nesse instinto. ele que leva o animal a procurar o que lhe convme o que lhe permite
viver de acordo com a sua natureza, que a mesma coisa que viver de acordo com a Natureza.
No estoicismo, Natureza e Logos so sinnimos perfeitos. Logo, o instinto, que algo natural,
essencialmente racional. Viver segundo a razo viver segundo a Natureza.
o bem supremo para o homem consiste em viver conforme a Natureza. A felicidade consiste
essencialmente nessa harmonia. No dizerde Digenes Larcio, o Bem aquilo pelo qual ou a partir
do qual pode ser obtido o til. Em outras palavras, o Bem aquilo de que o til resulta: aquilo
que pode ser til, e til aquilo que est de acordo com o sentido da vida, do destino que nos
foi traado, da vontade de Deus, que em nenhu ma hiptese pode ser contrria Natureza, pois
neste caso Deus seria contrrio a si mesmo.
o naturalismo estico reconhece a existncia de coisas boas, coisas ms e de coisas neu-
tras ou indiferentes. A coragem e a sabedoria so coisas boas. A injustia a covardia so coisas
ms. A vida, a morte, a sade, a doena, a riqueza, a pobreza, o prazer, a dor etc. so coisas indi-
ferentes, pois dependem da opinio que o homem fizer delas. Essas coisas podem trazer felicida-
de ou desdita, dependendo da maneira como so vistas pelo homem. Em si mesmas, no so nem
boas nem ms.
Atica estica identifica o bem como o belo. O bem a expresso da harmonia interior, e o
bem supremo se identifica com a virtude. Avirtude, por sua vez, a presena do bem numa pessoa:
a perfeio da harmonia com oTodo.A virtude umae total. No se mais ou menos virtuoso.
Ou se virtuoso ou no se virtuoso.
Outro aspecto relevante da tica estica o relativo s paixes. Para eles, a paixo um
movimento irracional da alma, contrrio natureza. Zeno a define como o abalo da alma oposto
reta razo e contra a natureza. A paixo, ou emoo, o que nos afasta do equilbrio natural.
Andrnico diz que "a paixflo um movimento irracional da alma margem da natureza, ou uma
tendncia tirnica" (citado por Brun, p.8l).Aqui surge um problema para o filsofo estico. Se
113
Antropologia Filosfica
a paixo pertence ao domnio do instinto, que natural, como pode ela ser irracional? Como pode
a natureza opor-se a si mesma? Crisipo oferece a resposta: "o mal no s nocivo como neces-
srio beleza do mundo e no bom suprimi-lo". EJean Brun conclui: "A sabedoria estica fun-
dada numa tica da ascese; no reforada por uma metafsica descendente: o mal necessrio
para que exista uma subida em direo ao Bem" (p.82)
Os esticos estudaram amplamente as paixes, ou as emoes. A lista de paixes deixadas
por eles inclui a dor, o medo, desejo sensual c o prazer. Jean Brun descreve essas paixes nos
seguintes termos:
"A dor uma contrao irracional da alma: ela compreende a piedade (dor semelhante da-
queles que sofrem sem o terem merecido), a inveja (que nasce da exibio dos bens de
outrem), o cime (nasce do fato de vermos os outros possurem tambm o que ns possu-
mos), o desgosto (dor profunda que nos atormenta), a aflio (dor aumentada pela nossa
reflexo), o sofrimento (dor penosa), e a confuso (dor irracional).
omedo a expectativa de um mal. Ele compreende o pavor (medo que faz nascer o terror),
a hesitao (medo da ao de 1cvar a cabo), a vergonha (medo da ignomnia), o espanto (medo
de uma representao inabitual), o pasmo (medo que paralisa a palavra) e a angstia (medo
de uma coisa desconhecida).
odesejo um apetite irracional. Compreende a indigncia (desejo daquilo que no pode-
mos ter), o dio (desejo de ver cair o mal sobre algum), a rivalidade (desejo a propsito
de uma escolha), a clera (desejo de punir quem cometeu uma injustia), o amor (desejo de
captar a amizade de algum cuja beleza nos toca; um tal desejo no perturba os sbios), o
ressentimento (desejo de se vingar de quem se tem rancor) e a irritao (que o incio de
uma clera). O prazer um ardor irracional, que se apresenta como qualquer coisa de de-
sejvel. Compreende a seduo ( um prazer que deleita o nosso ouvido), o prazer que
extramos do mal ( o prazer que extramos da infelicidade dos outros), a voluptuosidade
(impulso da alma para o abandono) c o desregramento (relaxamento da virtude)" (p.R2).
As paixes so doenas da alma com as quais o homem tem de viver. No so obras dos
deuses, mas dos homens. A nica maneira de domin-las viver de acordo com a razo.
O ideal tico do estico o sbio, isto , o homem que vive segundo a natureza, segundo
a razo. O sbio estico isento de paixo e de vaidade. sincero e piedoso. impassvel diante
do sofrimento. Tem comando sobre seus desejos e sabe o que depende e o que no depende dele.
O sbio estico suporta tudo corajosamente e no se abala com as ondas da adversidade. Amorte
para ele no nenhuma ameaa. A respeito dos acontecimentos da vida, ele pode dizer, como
Scrates, citado na ltima linha do Enchiridion de Epicteto: "Anitos e Meleto podem, de fato,
matar-me, mas ferir-me, nunca".
O estoicismo surge no momento histrico em que a polis grega est se desintegrando. Ele
, portanto, cosmopolita por natureza e condio. O fato de haver medrado, principalmente, em
solo romano, foi talvez um dos motivos de sua influncia praticamente universal.
Servindo-nos principalmente do valioso trabalho de Corbisier (1984) e de Jean Brun (1986),
apontaremos os reflexos do estoicismo em vrios autores e correntes de pensamento.
114
Viso geral dos humanismos
A influncia do estoicismo sobre o pensamento judaico se faz sentir em obras como Sabe-
doria de Salomo, Livros dos Macabeus e, principalmente, no pensamento de Filo de Alexandria,
que incorpora a noo estica de logos em sua teologia.
notria tambm a influncia do estoicismo sobre o cristianismo, atravs de alguns Pais da
Igreja, comoTertuliano, Clemente deAlexandria e Agostinho. Brhier, citado porCorbisier, diz: "Seria
impossvel compreender os Padres da Igreja, que estabeleceram os dogmas cristos, sem remontar
a fontes esticos, a tal ponto estreito o parentesco entre a histria do estoicismo e a histria das
religies propriamente ditas (... ) os escritores cristos, do sculo III ao V, tomaram (de emprstimo)
ao estoicismo todos os preceitos morais que no encontravam nos livros cannicos" (p.385,386).
A idia da "religio natural, de fundo estico, foi adotada no Renascimento por Marslio Fi-
cino. Aparece tambm na Utopia, de Thomas Morus, que ensina que a virtude consiste em viver
de acordo com a natureza, e est tambm presente no direito natural fundamentado na natureza
racional do homem, como expressa John Locke em seu Ensaiofilosfico sobre o entendimento
humano" (1690).
Michel de Montaigne (1533-1592) em seus famosos Ensaios, apresenta muitas idias seme-
lhantes s dos esticos, e em certos trechos fala praticamente a mesma linguagem. "A fortuna no
nos faz bem nem mal; (do Bem e do Mal) nos oferece apenas a matria e a semente, as quais, nossa
alma, mais poderosa do que elas, envolve e aplica como lhe apraz; causa nica e senhora de sua
condio feliz ou infeliz" (citado por Corbisier, p.387).
Descartes tambm adota idias esticas, como o conceito de Providncia Divina, a idia de
Deus e da alma, e nos Princpios defilosofia parece repetir Epicteto, ao dizer: "Parece-me que o
erro mais freqente em relao aos desejos consiste em no distinguir suficientemente as coisas
que dependem apenas de ns, daquelas que no dependem (... ) pois seguir a virtude fazer as
coisas boas que dependem de ns" (citado por Corbisier, p.388).
Montesquieu (1689-1755) em O esprito das leis (1748), revela profunda simpatia ao estoi-
cismo, dizendo que nunca houve filosofia capaz de produzir tantos homens de bem, e conside-
raria uma desgraa para a humanidade se algum destrusse a "seita" de Zeno de Ction. Em Ros-
seau tambm patente a influncia do estoicismo, principalmente na idia bsica de pedagogia
do Emlio, segundo a qual a natureza fundamentalmente boa e que, se o homem for educado
por seus princpios, alcanar os objetivos de sua natureza. A tica de Kant tem pontos seme-
lhantes aos da estica, principalmente no conceito de autonomia da vontade. O mesmo se pode
dizer em relao ao conceito do homem como razo de ser do universo.
Recentemente, nos Estados Unidos, fora dos meios da filosofia acadmica, surge a Terapia
Racional, que, apesar de sua fundamentao tipicamente behaviorista, basicamente uma apli-
cao dos ensinos de Epicteto soluo de problemas comportamentais, oferecendo ao homem
uma viso de mundo mais compatvel com sua condio de ser racional. (Ver a este respeito os
trabalhos de Albert Ellis e de Maxie Maultsby. entre outros.)
Ao encerrar esta viso panormica do estoicismo, dizemos com Jean Bmn: "Quer o estoi-
cismo seja uma etapa determinante no progresso de um humanismo do saber, em que alguns pem
115
Antropologia Filosfica
toda a sua confiana, quer seja aquela perda do sentido trgico que Nietzsche deplora - o estoi-
cismo -, de qualquer modo, atesta que o triunfo do homem que encontra no nos pode fazer
esquecer a inquietude do homem que procura" (p. 10J).
2.2.5 O homem na tragdia grega
A tragdia foi a mais elevada expresso literria do chamado Sculo de Pricles (sculo V
a.C). Em sua forma mais evoluda, a tragdia trata dos. grandes problemas das relaes dos homens
com os deuses e dos homens entre si. Problemas como piedade e a religiosidade, o orgulho, a
presuno ou a insolncia para com a divindade e ajustia so tratados perante milhares de es-
pectadores, vidos de participao. Autores como squilo, Sfocles e Eurpedes, dentre outros,
cumprem relevante tarefa, interpretando os valores morais e espirituais da cultura grega.
As tragdias eram representadas nos festivais dionisacos, que, segundu Nietzsche, rene-
tem o que houve de mais humano no esprito helnico e, indiretamente, no esprito da humani-
dade. No Nascimento da tragdia (1871), primeiro livro de Nietzsche, ele distingue na filosofia
grega dois estilos, cOITespondentes a duas concepes de vida: o apolneo, caracterizado pela
harmonia, e o dionisaco, representando as paixes do homem. Para ele, a tragdia nasceu da fuso
dos dois e foi morta pelo racionalismo e pelo otimismo de Scrates e de seus seguidores. Nessa
obra, Nietzsche revela sua emancipao de Schopenhauer, a quem admirava por seu reconheci-
mento da existncia da dor no mundo. Na tragdia grega, ele viu a possibilidade de enfrentar os
horrores da existncia e de afirmar a vida no porque ela boa, mas apesar do trgico que ela
encerra. Alm de Scrates, Nietzche viu tambm no esprito do cristianismo a negao do dioni-
saco, que encerra a possibilidade de fazer da vida urna celebrao.
o tema da tragdia se fundamenta na histria sacra dos gregos. Um desses elementos, ine-
vitavelmente, o mito. Mas, na tragdia, o mito e o logos se encontram face a face, representan-
do a problemtica do ser. A tragdia se prende vitalmente condio humana no universo. Se na
epopia os deuses decidem pelos homens e agem cm seu favor, na tragdia os homens so ar-
quiletos do seu prprio destino e decidem por si mesmos, a seu prprio risco, seus erros e acer-
tos. Como sugere Maria Helena Pereira, em Estudos de histria da cultura clssica (1979), na
epopia prevalece o plano divino e na tragdia os fatos so vistos de uma perspectiva humana.
Os autores trgicos procuram equacionar o problema da medio de foras humanas com as do
destino. Como diz Pohlenz, citado pela autora supramencionada: "Um contraste entre a forte ne-
cessidade de autodeterminao do heleno e o sentimento da existncia prvia de poderes sobre-
humanos que externamente o limitam e atravessam C.. ). A problemtica do Ser comea para o
tragedigrafo s quando o homem reconhece como seus antagonistas esses poderes (... ). Para
os gregos, era evidente imaginar o mundo na natureza como um Kosmos bem-ordenado, sujeito
a leis estveis (... ) trgico C.. ) o conllito entre a vontade individual e a ordenao do mundo"
(p. 339). Atragdia, portanto, como diz Jaeger, abarca a unidade de todo o humano.
o conceito de tragdia apresentado por Aristteles na Potica:
", pois, a tragdia, imitao de aes de carter elevado, completa em si mesma. dc cerla
extenso, em linguagem ornamentada c com as vrias espcies de ornamentos distribudas
pelas diversas partes do drama, imitao que se efetua, no por narrativa, mas mediante
116
Viso geral dos humanismos
atares, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificao desses sentimen-
tos" (Potica, VI, 1449,24, traduo de Eudoro Sousa, p. 76).
Nosso objetivo aqui, evidentemente, no o de estudar a tragdia grega em todos os seus
elementos. O que nos interessa, no caso, mostrar que os trgicos gregos captaram algo sutil
do esprito humano e colocaram a deciso do homem nos seus prprios limites, contando com
os elementos ou recursos do prprio homem. Neste sentido, a tragdia grega lima das mais
vividas expresses do humanismo clssico.
Para nosso objetivo. selecionamos a tragdia de squilo - Prometeu acorrentado - por en-
tendermos ser cla um dos retratos mais fiis da condio humana em todos os tempos e lugares.
SQUILO (525 - 456 a.C.) um dos principais criadores da tragdia grega,juntamente com
Sfocles (496 - 406 a.c.) e Eurpedes (480 -406 a.c.). squilo representa um dos pontos altos da
criatividade do esprito humano. Como diz Jaeger, "a tragdia de squilo a ressurreio do homem
herico dentro do esprito da liberdade. o caminho direto e necessrio que vai de Pindaro a
Plato, da aristocracia do sangue aristocracia do esprito e do conhecimento. S passando por
squilo possvel andar nesse caminho" (Paidia, p. 265). E, mais adiante, o autor acrescenta:
"Na forma acabada que lhe vemos em squilo, (a tragdia) aparece como o renascimento do mito
na nova concepo do mundo e do homem tico a partir de Slon, cujos problemas morais e re-
ligiosos atingem em squilo o seu mais alto grau de desenvolvimento" (Paidia, p. 271).
O que afinal, o trgico? Este conceito s aparece de modo explcito no pensamento grego
depois da fixao da tragdia como gnero literrio. No h, entretanto, uma definio geral entre
os vrios autores gregos. Cada um dos grandes trgicos, diz Jaeger, daria a essa pergunta uma
resposta diferente. Somente a histria vividamente representada nas tragdias que traduziam
atravs do coro, do canto e da dana o sofrimento e o mistrio da dor enviada aos homens pelos
deuses. "O especfico efeito religioso da vivncia do destino humano, que squilo desperta nos
espectadores com a representao das suas tragdias, o que a sua arte tem de especificamente
trgico. Se quisermos compreender o autntico sentido da tragdia esquiliana, foroso que p o ~
nhamos parte os modernos conceitos sobre a essncia do dramtico e do trgico e a e n c a r e ~
mos apenas por aquele prisma" (Jaeger, Paidia, p. 276).
O que significa o "Prometeu Acorrentado'?" Primeiro, apresentaremos o retrato, e depois a
interpretao.
Prometeu um tit que rouba dos deuses o fogo para entreg-lo aos mortais, sob o pretexto
de benefici-los. Por este crime Zeus ordena a Hefesto que o prenda a um rochedo, onde ser
eternamente castigado. No inicio do drama, fala Poder:
"Aqui estamos, chegados ao solo de urna terra distante, o pas dos citas, em um deserto sem
a marca de humanos. Hefesta, cabe a ti a execuo das ordens que te foram dadas por teu
pai, acorrentando esse celerado sobre escarpados rochedos com indestrutveis cadeias e
liames de ao. Pois a chama do fogo teu atributo, esse fogo pai de todas as artes que ele
roubou e entregou aos mortais. preciso que pague aus deuses por esse crime e que apren-
da a se curvar perante o reinado de Zeus, deixando de favorecer os homens dessa maneira".
117
Antropologia Filosfica
Apesar da imposio de Zeus atravs de Poder e Fora, Hefessto hesita em cumprir a ordem,
e mesmo ao cumpri-la, ainda, de certo modo, se desculpa perante Prometeu:
"Ilustre filho da sbia Tmis, contra a minha vontade e contra a tua tambm que vou
prender-te nessa pedra desolada com ferros indissolveis; aqui no chegar mais aos teus
ouvidos qualquer voz, c teus olhos tambm no iro enxergar a figura de qualquer mortal;
aqui, castigada pelo sol causticante, que arde devagar, tua pele ficar abrasada. Tu fica-
nis aliviado quando a noite esconder a luz intensa, com seu manto estrelado, e quando o
sol regressar para dissolver o orvalho da manh. Mas o peso dessa dor presente estar
sempre a oprimir-te, pois ainda no nasceu aquele que vai libertar-te. Eis o lucro da tua
bondade para com os homens. Como um deus que no se deixa aterrorizar pela clera dos
deuses, tu foste alm de todos os direitos que poderias possuir, presenteando aos homens
com prerrogati vas dos deuses. Eis teu prmio, nessa rocha ficars montando guarda a con-
tragosto, em p, sem poder dormir, sem conseguir deitar o corpo. De tua garganta sairo
lamentos sem fim e queixumes sem efeito; o corao de Zeus inflexvel. Um novo se-
nhor sempre severo".
Prometeu sofrer para sempre os efeitos de sua hybris, de sua presuno. Desafiou os deu-
ses e agora sofrer eternamente. Mas, aparentemente, para ele nada disso era novidade. Ele diz:
"No cair sobre mim nenhuma desgraa que no tenha previsto. preciso suportar to bem
quanto possvel a sorte que o destino nos reserva e saber que no se pode lutar contra a fora
da necessidade". O que ele aparentemente no compreendia, como ns no compreendemos,
a ausncia de uma lei de justa retribuio. justo ser castigado por tentar fazer o bem? "Vede
como est preso em correntes o miservel deus que sou, o inimigo de Zeus, que incorreu no
dio de todos os deuses que freqentaram a corte de Zeus, porque amou demasiado aos
homens". E diz mais: "por compaixo para com os mortais, fui julgado indigno de compaixo".
Mas, como disse Hefesto: "o corao de Zeus inflexvel". E Poder acrescenta: "pois ningum
livre seno Zeus".
Prometeu fez mais pelos mortais do que simplesmente lhes ensinar o uso do fogo. Diz ele:
"Acabei com os terrores provocados nos homens em vista da morte. Concedi-lhes imensa espe-
rana no futuro".
Um dos aspectos mais dolorosos do sofrimento de Prometeu que o seu destino no morrer
jamais. Argumentando com lo, vtima do amor de Zeus, Prometeu diz: "Que fora terias ento para
suportar minhas provaes, a mim, a quem o destino marcou para no morrer, pois a morte seria
a dissoluo de todos os meus males". Prometeu experimentou, ento, na pele, aquilo a que
sculos depois Soren Kierkegaard chamaria de "doena mortal", isto , uma doena da qual no
se pode morrer.
Prometeu reconhece sua culpa e sabe que ter de assumi-la. Mesmo assim no se dobra aos
deuses. Diz ele: "Saibas bem que no trocaria minha felicidade contra a tua escravido. Estou
melhor servido neste rochedo do que sendo o fiel mensageiro de Zeus. Assim que preciso
responder ultraje com ultraje". E diz mais: "Faas o que fizeres, no conseguirs fazer perecer o
deus que sou".
Este o Prometeu Acorrentado. Oque significa ele para ns? Olhando para ele, o que nos diz?
118
Viso geral dos humanismos
Dodds, citado por Maria Helena Pereira, diz que se trata da tenso entre dois plos opos-
tos: um o protagonista, Prometeu, o saber sem o poder; o outro, invisvel mas onipotente, Zeus,
o poder sem o saber. E a prpria autora comenta:
"Prometeu apresenta-se corno o sal vador da humanidade, qual ensinou todas as artes.
pela sua filantropia que castigado_ Esses fatos tm-lhe valido ser considerado. alternada-
mente, um smbolo da humanidade e da cultura humana, da liberdade cm luta contra a
opresso, da rebelio da natureza contra as regras, do sonho dos artistas. da elevao do
poeta ao lugar de deus criador, do atesmo etc. - fascinando os poetas das vrias pocas,
que nele procuram encarnar as preocupaes de seu tempo" (p. 345,346).
Jaeger chama a ateno para o fato de que, em muitos personagens da literatura grega, o
trgico vem de fora. Em Prometeu, porm, os erros e sofrimentos se originam nele mesmo, na sua
natureza e ao. Ele reconhece que pecou voluntariamente e que, por querer ajudar aos outros,
criou seu prprio tormento.
"Prometeu o que traz luz humanidade sofredora. O fogo, essa fora divina, torna-se o
smbolo sensvel da cultura. Prometeu o esprito criador da cultura, que penetra c conhe-
ce o mundo, que o pe ao servio da sua vontade por meio da organizao das foras dele,
de acordo com os seus fins pessoais, que lhe descobre os tesouros e assenta em bases seguras
a vida dbil e oscilante do Homem" (Jaeger, Paidia, p.287).
oPrometeu Acorrentado o smbolo da dor humana. Ele a imagem trgica da humanida-
de. Em todos os tempos os homens se sentiram acorrentados a um rochedo, e como Prometeu
lanam seu grito de dio impotente. Jaeger conclui magistralmente:
"Estava reservada ao gnio grego a criao deste smbolo do herosmo doloroso e militante
de toda a criao humana, como a mais alta expresso da tragdia da sua prpria natureza.
S o Ecce Homo, sado de um esprito completamente diverso, com a sua dor peIos peca-
dos do mundo, conseguiu criar um novo smbolo eternamente vlido de humanidade, sem
no entanto roubar nada verdade do anterior. No sem razo que o Prometeu tem sido
sempre, dentre as obras da tragdia grega. e pea preferida dos poetas e filsofos de todos
os povos; e continuar a s-lo enquanto arder no esprito humano uma centelha do fogo
prometeico" (Paidia p. 288).
o homem revoltado se espelha no exemplo do Prometeu Acorrentado, e diz: "Na minha luta
com os deuses, eles sempre vencem; mesmo assim, no desisto de enfrent-los". A luta do ho-
mem revoltado no necessariamente contra os deuses. Ele no , de fato, contra os deuses. Sim-
plesmente, semelhana do tit rebelde, ele se recusa a aceitar sua pretensa superioridade.
Enfrenta-os de igual para igual, mesmo sabendo que no tem a fora que eles tm. No se curva
diante deles, como recomenda a escritura sagrada. Na realidade, se a descrio que temos
verdadeira, alguns deles so incomparavelmente piores do que os homens. Prometeu no um
ateu militante. Dificilmente se encontra algo mais ridculo do que um ateu militante. Ora, se o in-
divduo no acredita na existncia de Deus, como vai, ento, combat-lo? quixotesco; parece
uma completa insensatez. A militncia atia um absurdo lgico. Prometeu, smbolo do homem
que tem coragem de assumir sua condio humana, mais prximo de Jac, que lutou com Deus
e por isto foi chamado de Israel, do que da figura de J, que sofre com resignao.
119
Antropologia Filosfica
Em sua tese de doutorado, Karl Marx identifica sua filosofia com a de Prometeu. Diz ele:
"Numa palavra, eu odeio todos os deuses". E acrescenta: "O discurso que a filosofia mantm, e
h de manter, dirige-se contra os deuses do cu e a Terra, que no vem na conscincia humana
a mais alta divindade". Para Marx, o Prometeu Acorrentado o primeiro santo e o primeiro ml1ir
do calendrio filosfico.
E Albert Camus, em seu O homem revoltado, que em muitos aspectos um retrato do ho-
mem contemporneo, mesmo admitindo que aqui no se trata se um revolta metafsica, d esta
interpretao ao Prometeu Acorrentado:
"As primeiras teogonias mostram-nos Prometeu acorrentado a uma coluna nos confins do
mundo, mrtir eterno para sempre excludo de um perdo que se recusa a implorar. squilo
aumenta ainda a estatura do heri: toma-se o lcido ("nenhuma desgraa me atingir que eu
no tenhaj previsto"); f-lo bradar o seu dio aos deuses e, mergulhando- num "tempes-
tuoso mar de fatal desespero", oferece-o por fim ao furor dos relmpagos e dos raios: "Ah!
Vede a injustia de que sofro!". No se poder, portanto, dizer, que os Antigos hajam ig-
norado a revolta metafsica. Criaram muito antes de Satans uma dolorosa e nobre imagem
do Rebelde e deram-nos o mais elevado mito da inteligncia revoltada. Oinesgotvel gnio
grego, que tantos mitos criou ligados adeso e modstia, soube, no entanto, fornecl:r-nos
o seu modelo de insurreio. No h dvida de que traos de Prometeu perduram ainda na
histria revoltada que andamos a viver; a luta contra a morte ("Libertei os homens da
obsesso da morte"), o messianismo ("Instalei entre eles as cegas esperanas"), a filantro-
pia ("Inimigo de Zeus (... ] por ter amado aos homens em demasia").
Mas no se poder esquecer que o "Prometeu portador do fogo", ltimo termo da trilo-
gia esquiliana, anunciava o reinado do Rebelde j senhor do seu perdo. Os gregos no in-
terpretam malignamente coisa alguma. Mesmo nas suas maiores audcias. mantm-se fiis
a esse equilbrio que haviam deificado. O seu Rebelde no se revolta contra toda a cria-
o, mas contra Zeus, que no passa de um dos seus deuses e cujos dias se eneontram
contados. O prprio Prometeu um semideus. Trata-se de um ajuste de contas particu-
lar, de uma contestao acerca do bem e no se uma lUla universal entre o mal e o bem"
Cp. 45,46).
Para representar o homem trgico naAntigidade clssica, escolhemos o Prometeu Acor-
rentado, de squilo. Como representante do homem trgico no mundo moderno, escolhemos o
Hamlet, de Shakespeare.
WILLIAM SHAKESPEARE (1546-1616). Provavelmente mais do que qualquer outro es-
critor no mundo moderno, William Shakespeare captou as sutilezas da alma humana, que ele
representa, sobretudo, em suas tragdias. Cada limadas tragdias de Shakespeare representa uma
faceta do esprito humano. Por exemplo, Otelo representa a tragdia do cime. Macbeth revela
a tragdia da ambio, enquanto que o Rei Lear descreve a tragdia da ingratido, para citar
apenas algumas das mais conhecidas peas do genial autor ingls.
Para o nosso caso, escolhemos Hamlet, a tragdia da indeciso. "Ser ou no ser, eis a ques-
to" o famoso solilquio que traduz uma das verdades mais terrveis com que o esprito huma-
no tem se confrontado.
120
Viso geral dos humanismos
Hamlet, Prncipe da Jutlndia, uma figura semilendria. Alendaconhecidadesde osculo XIII,
atravs da Histria Danica, de Saxo Gramtico. Na Inglaterra, tomou-se conhecida a partir de 1559,
atravs das Histrias trgicas, de Francisco Belleforest, originalmente escritas em francs. Shakes-
peare imortalizou a figura de Hamlet atravs de sua famosa pea teatral. Averso de Shakespeare
mais ou menos livre para se adaptar ao formato do gnero teatral, e pode ser assim resumida:
Na Dinamarca, o Rei Hamlet morto por seu irmo Cludio. Antes do assassinato, Gertru-
des, esposa do rei, havia sido amante de Cludio, e, agora, imediatamente, casa-se com o crimi-
noso, preterindo assim o legtimo herdeiro do trono - Hamlet, o filho. Ojovem Hamlet encontra-
se com o esprito do pai, que conta-lhe o "sujo e antinatural assassinato" e, de acordo com os
costumes do tempo, pede vingana imediata. Hamlet jura obedincia ao pai, mas sua natureza
introspectiva o faz hesitar e vacilar. A ento ele finge estar louco para evitar suspeitas de que po-
deria representar perigo para o novo rei. As pessoas da corte, vendo o jovem Hamlet agir como
louco, pensarem que ele estava simplesmente apaixonado. Na verdade, Hamlet havia cortejado
Oflia, filha de Palnio, camareiro-moro O pai instrui Oflia a daro fora em Hamlet. Ele se ofende
com a atitude de Oflia e muda sua poltica adocicada para uma atitude mais amarga. Hamlet
apresenta a histria do fantasma perante o usurpador do trono numa pea reproduzindo as cir-
cunstncias do crime. O rei, percebendo tudo o que havia feito, sendo fielmente representado no
palco, entendeu que Hamlet sabia da sua culpa e imediatamente planejou mand-lo em misso
Inglaterra, onde seria morto. A, ento, Hamlet vai ter com sua genitora e lhe incrimina pelo ca-
samento com o assassino. Nesse instante, ele ouve um barulho e, pensando que era o rei que o
espionava, lana uma espada atravs de uma cortina, matando sem querer, Palnio, pai de Of-
lia. Hamlet enviado Inglaterra, mas seu navio capturado por piratas e ele volta Dinamarca,
sem ser esperado. Chegando, descobre que Oflia, diante de tantos sofrimentos, havia morrido
afogada, provavelmente por suicdio, e que seu irmo Laertes est em terra para vingar a morte
do pai. O rei decide usar a ira de Laertes para livrar-se de Hamlet. Marca, assim, um duelo entre
os dois. Instrudo pelo rei, Laertes envenena a ponta da espada e, no caso de isto falhar, o rei
coloca veneno na taa de vinho que Hamlet beber para se refrescar, aps o duelo. No duelo, La-
ertes fere Hamlet, mas se fere a si mesmo com sua espada envenenada. Reconhecendo que ia
morrer, Laertes conta a Hamlet o que o rei havia planejado. Hamlet, ento, usa a espada envene-
nada para seu ltimo golpe contra o rei. Gertrudes, me de Hamlet, para priv-lo do gosto da
vitria, bebe o vinho envenenado e morre. Apea termina do modo tpico das obras trgicas de
Shakespeare: cadveres espalhados pelo cho e o sentimento da negra tragdia que teria sido
evitada se Hamlet houvesse tomado uma deciso.
Hamlet representa a conseqncia da indeciso causada por conflitos internos no homem.
Ou seria o contrrio, so os conOitos internos que levam o homem indeciso? semelhana
da Mona Lisa, cujo sorriso enigmtico de difcil interpretao, o Hamlet continua a ser um mistrio
para o homem. Ele nos ensina, todavia, uma importante lio: no podemos evitar a existncia de
conflitos internos, pois somos seres ambguos e experimentamos vividamente a diferena entre
o ideal e o real. Mas o homem dividido no pode perdurar por muito tempo. Sem um mnimo de
integridade e autoconscincia o homem no pode viver.
A indeciso do homem pode causar danos permanentes a si mesmo e aos outros. No caso
da tragdia de Hamlet, pelo menos oito pessoas morreram, quando somente uma teria morrido
121
Antropologia Filosfica
se ele tivesse tomado uma deciso. Se Macheth e Otelo representam a tragdia de uma paixo
forte, Hamlet a tragdia da paixo insuficiente, isto , da paixo que no tem fora para ir at
s ltimas conseqncias. Como observa Ernest Howse (Spiritual values in Shakespeare,
1955), a tragdia de Hamlet no a culpa pelo que faz, mas a de nada fazer. Ele se perguntava
"ser ou no ser?", mas nunca perguntou "fazer ou no fazer?". Seu drama portanto, essen-
cialmente subjetivo.
Bradley, citado por Howse, diz que Hamlet nos comunica o senso de infinitude da alma e ao
mesmo tempo o sentido de sua tragdia. Para ele "nada importa", isto porque no h sentido no
mundo; nada que externo corresponde aos grandes sentimentos ntimos. Nenhumajustia eterna
atende nosso clamor por justia neste mundo. Somos, de fato, "loucos da natureza... com pen-
samentos alm do alcance de nossas almas". E Howse conclui: "A tragdia de Hamlet no a de
um homem insignificante guerreando contra Deus; nem mesmo a de um homem em guerra com
a sociedade. antes a tragdia de um homem em guerra consigo mesmo, num mundo em que no
existem valores dignos de se lutar por eles" (p. 32).
Hamlet revela que a pior deciso do homem a indeciso. Da a propriedade do dito sartre-
ano de que "o homem um ser condenado a decidir". Ou como sugere o ttulo de uma das obras
de Harvey Cox - On nol leaving it to lhe snake - inteligentemente traduzida para o portugus
sob o ttulo de No deixe a serpente decidir por voc. Ou ainda, parafraseando o genial Fernan-
do Pessoa, poderamos dizer: "Decidir preciso: viver no preciso".
O esprito trgico, presente no indivduo, tambm se manifesta nos povos e nas cultu-
ras, como salienta Miguel de Unamuno, em seu famoso livro Dei sentimento tragico de la
vida, banido na Espanha ditatorial de Franco, porm ainda hoje exercendo sua influncia
positiva. Unamuno argumenta que o povo prefere a tragdia comdia. Ao apresentar Cris-
to multido, Pilatos queria fazer comdia. Mas o povo grita: "Crucifica-o, crucifica-o". A
tragdia est impregnada no esprito dos povos. Dante escreve A divina comdia, a com-
dia mais trgica que j foi escrita, e a figura comicamente trgica de Dom Quixote representa
no somente a alma espanhola, mas o esprito do homem, pois, argumenta Unamuno, todas
as almas humanas so irms.
2.3. Humanismo renascentista
A Renascena ou Renascimento marca o fim da Idade Mdia e o incio da Idade Moderna.
Representa a renovao literria, artstica, cientfica e filosfica que aconteceu na Europa, co-
meando na Itlia, nos sculos XV e XVI, sob a influncia da cultura clssica greco-romana.
A Renascena foi um momento crtico e decisivo na histria do esprito humano, de carter ir-
reversvel, cujos efeitos ainda esto conosco e aparentemente algumas de suas conquistas so
permanentes.
Nesta viso resumida que faremos desse acontecimento cultural, diremos algo sobre as
caractersticas da Renascena, apontaremos alguns dos seus grandes vultos, e mencionaremos
algumas de suas repercusses sobre a histria do pensamento humano.
122
Viso geral dos humanismos
2.3.1 O esprito da renascena
Como qualquer outro fato histrico, a Renascena tem seus antecedentes e suas causas.
Eventos que tornaram possvel a Renascena comearam a se manifestar a partir do sculo XII:
uma srie de transformaes sociais, polticas e intelectuais culminam no Renascimento. Dentre
esse eventos, salientam-se a incapacidade da Igreja Catlica e do Santo Imprio Romano de pro-
videnciar um ponto de referncia estvel para a organizao da vida material e espiritual do homem
medieval, o surgimento das cidades-Estados e as monarquias nacionais, o desenvolvimento de
lnguas vernculas nacionais em substituio ao latim, lngua universal da cultura, e a ruptura das
estruturas do feudalismo.
A Renascena se afirma como oposio Idade Mdia e a tudo o que ela representou. Ao
dogmatismo medieval, o Renascimento ope a liberdade de pensamento. Ao homem universal
abstrato ela ope o individualismo ou individualidade criativa e espontnea do homem. Se o
homem medieval buscava o bem e o bom como categoria universal abstrata, o Renascimento queria
chegar categoria do indivduo concreto.
A arte, expresso maior da Renascena, proclama sua liberdade. Florena, na Itlia, torna-
se a capital cultural do Ocidente. Surgem numerosos artistas, dentre os quais Leonardo, Miguel
ngelo e Rafael, que representam a sntese desse novo esprito. Leonardo da Vinci (1452-1519)
a mais notvel expresso desse novo homem: um gnio solitrio que abrange praticamente todas
as reas do saber. Miguel ngelo (1475-1564), esprito criativo que se inspira no corpo humano
como veculo de expresso emocional. Rafael (1483-1520), cuja obra expressa com perfeio o es-
prito clssico: harmonia, beleza e serenidade. Apintura e a escultura na Renascena expressam
a beleza do corpo humano que, de certo modo, havia sido negado ou escondido pelo esprito me-
dieval. Exemplo disso so os nus de Miguel ngelo. Por outro lado, o interesse pelo indivduo
concreto se expressa atravs da pintura de auto-retratos, como e de Drer (1500) e do prprio
Leonardo da Vinci.
A Renascena , sobretudo, o movimento intelectual que coloca o homem como centro de
interesse. No nega Deus, mas afirma corajosamente o homem e o humano. Ao contrrio do
esprito medieval, que fazia depender tudo da graa de Deus, o Renascimento afirma que com-
pete ao homem a plena realizao de sua capacidade pessoal e de sua dignidade. Se de um lado
Inocncio III representa o esprito medieval, em De miseria humanae vitae, em que dizia: "Tu,
homem, andas pesquisando ervas e rvores; estas, porm, produzem flores, folhas e frutos, e tu
produzes lndeas, piolhos e vermes; daquelas brotam azeite e blsamo, e de teu corpo escarros,
urina e excrementos", Giznnozzo Manetti, em De dignitate et excellentia hominis, representan-
do o esprito renascentista, argumentava que no so as matrias sujas que constituem os fru-
tos do homem, mas as obras de sua inteligncia, de sua criatividade como aperfeioador da
natureza atravs de suas invenes. E diz mais:
"Nossas, quer dizer, humanas, so todas as casas, os castelos, as cidades, os edifcios
da Terra (... ) Nossas as pinturas, nossa a escultura, nossas as artes, nossas as cincias,
nossa a sabedoria. Nossos (... ) em seu nmero quase infinito, todos os inventos, nos-
sos todos os gneros de lnguas e literaturas (... ) nossos, finalmente, todos os mecanis-
mos admirveis c quase incrveis que a energia e o esforo do engenho humano (dir-se-
123
Antropologia Filosfica
ia antes divino) conseguiram produzir c construir por sua singular e extraordinria
indstria" (citado por Rodolfo Mondolfo, Figuras e idias dafilosojia da Renascen-
a, p. 12).
Note-se, entretanto, que como dissemos acima, o humanismo renascentista como um todo
no representa a negao de Deus. "Todos celebram o homem como essncia intermediria entre
o mundo da matria e o mundo do esprito e como resumo e miniatura do Universo: microcosmo.
Mas, ainda, o homem participa do divino e s em Deus atinge a plenitude da perfeio e felici-
dade" (Deli a Nogare, Humanismos e anti-humanismos, II' ed., 1988, p. 63).
Na Idade Mdia, a vida do homem orientada para o sobrenatural. Aexistncia humana
a simples preparao para a vida eterna. Anatureza, como espelho do Criador, deve ser apenas
contemplada e objeto de inspirao do louvor a Deus. AIgreja depositria da verdade e inter-
mediria nica entre o cu e a Terra. Para o homem medieval, crer conditio sine qua non de
conhecer. A cincia est subordinada f. Afilosofia serva da teologia.
A I.iade Moderna, iniciada com o Renascimento, apresenta caractersticas exatamente opos-
tas s da Idade Mdia. Em vez do teocentrismo medieval, prope-se um antropocentrismo. Em
lugar do autoritarismo, surge a idia de liberdade e de autonomia. Em vez de subordinao do
conhecimento f, prega-se a supremacia da evidncia racional. Apessoa humana representa um
valor absoluto, e a misso do homem a posse plena deste mundo.
o Renascimento tornou possvel o aparecimento da cincia moderna. A natureza no
apenas para ser contemplada. Ela passvel de ser conhecida, e mais do que isso: deve ser posta
a servio do homem. Aexperincia deve ser o guia desse conhecimento e no o famoso magister
dixit. Francis Bacon (1561-1626) prope o mtodo cientfico baseado no raciocnio indutivo, ao
contrrio do principio da autoridade ou da simples deduo que dispensava a evidncia da ex-
perimentao. o germe do empirismo que caracterizaria a cincia moderna e contempornea.
Nicolau Coprnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642) desmoronam a teoria geocntrica de
Ptolomeu e operam a primeira grande revoluo cientfica da poca. O saber pelo saber, do ho-
mem medieval, substitudo pelo saber para poder, ou seja, pelo saber com o propsito de con-
trolar a natureza.
Nessa renovao da cincia. alm do gnio de Leonardo da Vinci, o nome mais impor-
tante sem dvida Galileu Galilei, que marcou um lugar definitivo na histria do pensamen-
to humano. Galileu mais do que um cientista: terico e metodlogo da cincia, fato que
o faz nosso contemporneo. Para Galileu, a cincia indutiva, isto , deve fundamentar-se
na experincia. tambm fenomenal, isto , procura estabelecer leis que regem os fenme-
nos e no as relativas s essncias. O mtodo cientfico pressupe a observao, a hipte-
se e a experimentao ou verificao das hipteses. As hipteses, quando experimentalmente
confirmadas, se prestam generalizao ou formulao de leis cientficas. A cincia quan-
titativa, isto , o princpio racional matemtico; fsico-matemtico. O que no pode ser
quantificado subjetivo, e como tal escapa ao domnio da cincia. Para ele, a natureza
governada por leis matemticas, princpio estabelecido mais tarde por Newton com a lei da
gravitao universal.
124
Viso geral dos humanismos
2.3.2 Grandes vultos da renascena
Em seu erudito trabalho Figuras e idias dafilosofia da Renascena, Rodolfo Mondolfo,
apresenta quatro grandes vuhos do Renascimento: Leonardo da Vinci. Giordano. Bruno, Galileu
Galilei c Toms Campanela. H, entretanto, muitos outros pensadores renascentistas que pode-
riam ser objeto de amplo e acurado estudo. Para o nosso caso. escolhemos apenas trs: Leonar-
do, por representar o universo do cientfico e do humano; Erasmo, por revelar a amplido e a
profundidade do esprito do saber culto. e Morus, por significar, quem sabe, o ideal humanstico
para a sociedade.
LEONARDO DA VINCI (1452-1519). Leonardo o gnio multiforme do homem universa!.
Talvez o homem mais completo da histria da humanidade. Exerceu mltiplas alividades como
urbanista. engenheiro, matemtico, fsico e qumico. Foi precursor da aviao. da balstica e da
hidrulica. Mas. acima de tudo, foi arlista, e nas artes se distingue como pintor e escultor. No
de estranhar, ento, que como todo esse talento tenha sido chamado de "o divino Leonardo".
"Divino, desde ento, pela excelncia das suas criaes imortais, que, no obstante, no
significavam para ele conscincia e gozo de uma perfeio acabada e satisfatria de si mesma,
como a que se costuma atribuir aos deuses, mas insatisfao constante do realizado, exigncia
contnua de superao, mas nsia de pesquisa do desconhecido, para captar, entender c ex-
plicar os mistrios da nalUreza, tormento de uma inspirao inextinguvel para o inating-
vel infinito" (Mondolfo, 1967, p. 13).
Para Leonardo. a pintura a mais nobre das artes, e a ela dedicou um Tratado. Diz ele que
"o pintor por si mesmo. sem o auxlio de cincia ou de outros meios, realiza imediatamente a
imitao das obras da natureza", significando que "o pintor deve transformar-se na prpria
natureza" e que "a necessidade obriga a mente do pintor a transformar-se na prpria mente da
naltire/.a". Mondolfo argumenta que isso significa que o pintor, antes de se tornar discpulo
dos cientistas. deve ser cientista, deve ele mesmo reconhecer e compreender a natureza, a fim
de se ensimesmar nela e poder reproduzi-Ia. Deve compreend-Ia em sua mente para faz-Ia
compreender depois, mediante a obra de suas mos, por cuja criao "a mente do pintor se
transmuda em uma semelhana da mente divina", isto , o pintor cria porque possui as razes
das cousas" (p. 19). Exemplos de sua valorizao da pintura so suas famosas obras: a Gio-
conda e a Ceia. A obra de arte, entretanto, por mais bela que seja, deve ser criticada at
perfeio. Leonardo exige isso de si mesmo. Diz ele que "a obra nunca termina de aperfeioar-
se" e que " mau mestre aquele cuja obra se coloca acima do seu prprio juzo crtico, e somente
se dirige para a perfeio da arte aquele cuja obra superada pelo juzo" (citado por Mondol-
fo. p. 13). O artista tambm cientista e filsofo. Ele penetra os segredos da natureza, e por-
que a compreende, c capaz de domin-la.A arte de Leonardo uma tentativa de expressar a idia
da humanidade e toda a sua beleza. Em suas linhas e cores deseja captar, como ele mesmo diz,
"a razo da humanidade que est na mente divina".
ERASMO DE ROTERD (1467 -1536). Vulto controvertido que. cm sua modstia, pertur-
bou muitas conscincias. Para uns foi "o sol intelectual do mundo". "o astro da cristandade". Para
outros. como Lutero, foi o Anticristo, principalmente por haver discordado de seu ponto de vista
sobre o livre-arbtrio.
125
Antropologia Filosfica
Dotado de vasta cultura, Erasmo dominava perfeitamente o grego e o latim. Seu nome est
ligado ao chamado Textus Receptus, o Novo Testamento grego, que serviu de base a muitas
tradues modernas. Foi tambm responsvel pela reedio das obras de So Jernimo, influen-
te Pai da Igreja, mais conhecido por sua traduo da Bblia, a Vulgata Latina.
Conhecedor profundo da teologia e da filosofia, estudou correntes pags de pensamento,
como o epicurismo e outras fontes do saber antigo. De acentuada tendncia racionalista e do-
tado de esprito crtico, Erasmo foi sobretudo um mestre da ironia, como expressa sua obra-pri-
ma: O elogio da loucura (1509).
Nessa obra dedicada a Thomas Morus, seu amigo pessoal, e escrita em tempo recorde, cerca
de uma semana, Erasmo critica instituies e costumes, principalmente as eclesisticas. Com
finssima ironia ridiculariza certos tipos humanos e deixa no esprito do leitor a pergunta: como
possvel a humanidade se deixar enganar por tanto tempo, por formas to grosseiras de embuste?
o elogio da loucura , talvez, uma das obras mais lindas que o esprito humano produziu
at hoje. Mas a coragem de seu genial autor foi duramente castigada. Lutero, que em princpio
pensou haver encontrado em Erasmo um aliado, depois o critica severamente e o trata como he-
rege, inimigo de Cristo. A prpria Igreja, claro, o considerou hertico e o lanou no ostracismo.
Analisando essa situao, Della Nogare conclui:
"Assim o homem, que toda a vida pregara a paz, a tolerncia, a concrdia, c levantara a ban-
deira do humanismo como sinal de uma nova Europa e de uma nova humanidade, unida pelo
amor e colaborao recproca, acima das diferenas de lnguas, raas e crcdos, terminou sua
vida em 1536, atacado c bostilizado de toda a parte e - o quc mais grave - j com a evi-
dncia do fracasso do "erasmismo", porquanto a Reforma luterana havia acabado com todos
os rebentos humansticos e tinha lanado a Europa na revolta e no dio sangrento das guerras
religiosas e polticas" (p. 75).
THOMAS MORUS (1478 -1535). Amigo ntimo e protelor de Erasmo de Roterd, que lhe
dedicou O elogio da loucura, Morus um humanista prtico, que associa a filosofia atividade
poltica. Defensor da liberdade como condio da felicidade humana, Thomas Moros decapi-
tado por Henrique VIl por se recusar a reconhecer o rei como chefe espiritual e por reprovar seu
divrcio de Catarina de Arago para casar-se com Ana Bolena.
A Utopia, obra-prima de Morus, a descrio de uma ilha imaginria dividida em 54 cidades,
todas iguais em estrutura urbanstica e em sua forma arquitetnica. A principal atividade da ilha
a agricultura. A terra dividida em fazendas-modelo, onde trabalham todos os cidados, por
turnos. A famlia a base da estrutura social da Utopia. Cada grupo, de 30 famlias, elege um
filarca, e cada grupo de dez filarcas elege um protofilarca, que, juntos, elegem um presidente, cujo
mandato vitalcio. Afuno do filarca a de verificar que ningum fique ocioso. Todos devem
trabalhar seis horas por dia. O lazer de livre escolha. A vida deve ser vivida em comum e o in-
divduo deve procurar o equilbrio entre os prazeres do esprito e a sade do corpo. A religio
um fato da conscincia e livre para todos. A nica coisa que no permitida o atesmo, visto
que a negao da imortalidade da alma e da existncia de Deus destruiriam as bases morais e
126
Viso geral dos humanismos
espirituais do Estado. "Tais so, em resumo, os temas fundamentais da Utopia. PareIes se v que
tm nela uma brilhante expresso as instncias fundamentais da Renascena e da Idade Moder-
na: a liberdade de qualquer presso natural, social, poltica, religiosa; a promoo da cultura e a
formao de uma personalidade humana completa, atingida mediante o desenvolvimento harmo-
nioso de todas as faculdades da alma e do corpo" (Mondin, 1981, p, 18,19),
2.3.3 Repercusses do Humanismo Renascentista
o impacto do Renascimento fez-se sentir em vrios setores da vida humana.
Um dos efeitos da nova antropologia foi sobre a vida poltica. Com o enfraquecimento da
Igreja Catlica e do Santo Imprio Romano, surgem os Estados nacionais e as repblicas e se-
nhorias; estas na Itlia, e aquelas em outras reas da Europa. Os Estados nacionais e as repbli-
cas so instituies mais democrticas e mais preocupadas com o bem material dos cidados, e
no apenas com a vida alm. Nelas, o sdito ocupa lugar central, ao invs de Deus e da Igreja.
oprncipe, de Nicolau Maquiavel (1469 - 1527), bem como seu Discurso sobre a primeira
dcada de Tito Lvio, representam a nova concepo de Estado. No se trata aqui de um Estado
ideal ou utpico, mas de algo baseado na experincia histrica. a instituio jurdica baseada
em fatos concretos que permitem o estabelecimento de nexos causais e a elaborao de leis
normativas.
Maquiavel tem da natureza humana uma viso pessimista, parte herdada do ensino cristo,
parte de sua observao pessoal. O homem, segundo ele, segue suas paixes de modo cego.
Essas paixes devem, portanto, ser controladas por leis. A cobia, os prazeres, a preguia, a
duplicidade e a insolncia so as principais mazelas da humanidade. Adisciplina, a educao e
os bons costumes que podem ajudar o homem a venc-Ias. Cabe ao Estado o controle do
comportamento do homem. O Estado no organismo tico, mas estrutura de [ora e poder de
mando e coero que no considera os valores de ordem superior. O Estado criado pela " v i r ~
tude" (sentido latino) de poucos homens superiores que exercem a ordem poltica por qualquer
meio. A ordem traduzida de [arma concreta em instituies teis e vitais sociedade. Essa
"virtude" se comunica aos cidados atravs da conscincia do dever.
At certo ponlo, o Estado moderno se assemelha ao conceito de Maquiavel; e em que a s ~
pectos se aproximam do Levat de Hohbes (l651), algo que no temos competncia parajul-
gar. Uma coisa certa: o carter dinmico das instituies sociais tira delas, ipsofacto, o concei-
to de eternidade.
Outra repercusso relevante da Renascena foi sobre a religio. Areligio da Idade Mdia
era totalmente hierarquizada. Para chegar a Deus, o homem tinha que passar por muitos interme-
dirios. Primeiro havia o padre, o bispo, o papa. Havia a missa, a confisso, a indulgncia,jejuns,
abstinncias e peregrinaes. Com o descrdito geral da instituio, esses intermedirios foram
duramente questionados.
Esse descrdito da Igreja se acentua no fim do sculo XIV, comeando com a autoridade do
Papa, que provoca o cativeiro de Avinho e o Cisma do Ocidente, que deu origem Igreja Orto-
127
Antropologia Filosfica
doxa grega. A venda de relquias e as indulgncias forneceram combustvel para a Reforma lu-
terana, baseada na idia do livre exame c do sacerdcio universal do crente, ou da competncia
da alma. AReforma protestante do sculo XVI fruto do Renascimento e seus efeitos afetaram
profundamente a histria da humanidade.
Finalmente, como fizemos notar, o Renascimento exerceu profunda influncia sobre o desen-
volvimento da cincia, principalmente atravs de Galileu Galilei, e na filosofia moderna praticamente
onipresente, no s atravs do acentuado antropocentrismo que caracteriza a filosofia contempo-
rnea, como no caso especfico de Kant c seu "giro copemicano", que mudando o filosofar da
metafsica para a gnosiologia, termina por reduzir todas as questes ao problema antropolgico.
2.4. Humanismos modernos
o humanismo domina a cena do pensamento filosfico contemporneo. Afilosofia contem-
pornea basicamente antropocntrica. De uma forma ou de outra, o pensamento filosfico atual
se dirige ao homem. difcil, portanto, falar hoje sobre humanismo, porque logo vem a pergunta:
que humanismo se pretende expor?
Das vrias expresses do humanismo contemporneo, escolhemos trs de interesse espe-
cial do presente trabalho: o marxismo, o existencialismo e o atesmo.
2.4.1 Ohumanismo marxista
Um estudo do marxismo deveria incluir suas fontes de inspirao, sua formulao atravs
da trajetria do desenvolvimento do prprio Marx, bem como as diversas revises que tem so-
frido em diferentes momentos de sua histria. Seria obra, quem sabe, para muitos volumes e que,
sem dvida, exigiria especializao no assunto.
Evidentemente, esse no o nosso caso. No disporamos neste livro de suficiente espao
e nem temos conhecimento especializado dessa complexa rea do saber contemporneo. O que
tentaremos fazer aqui uma apresentao sumria do humanismo marxista, indicando suas prin-
cipais fontes de inspirao, seus conceitos fundamentais como sistema filosfico, e nos concen-
traremos em sua antropologia, com base nos conceitos de natureza humana e no de alienao.
Notaremos, tambm, a concepo do homem como agente e modelador da histria, e salientare-
mos o fato de que o humanismo marxista ateu.
Queremos deixar bem claro, logo de incio, que nosso trabalho no apologtico. Portanto,
no faremos nem a defesa nem a acusao da filosofia marxista. Ao leilor interessado, recomen-
daramos obras que, alm da exposio do humanismo marxista, fazem a anlise crtica de alguns
conceitos controvertidos. Dentre elas, salientamos: O pensamento de Karl Mao: (dois volumes),
de Jean-Yves Calvez, El marxismo: expusicin y crtica (dois volumes), de Gregrio Rodrigues
de YUlTC, /l1tmduo crtica ao mm:""smo, de Emile Bass, e Marxismo e cristianismo, de Jlio
Girardi. Alm dessas, recomendamos tambm a leitura de livros de Roger Garaudy, principalmen-
te Perspectivas do homem e Do antema ao dilogo.
128