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O mal-estar na cultura jurídica: tempo, sujeito e política
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E-book324 páginas4 horas

O mal-estar na cultura jurídica: tempo, sujeito e política

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Sobre este e-book

"Em 'O mal-estar na cultura jurídica', Pedro Henrique nos convida a uma jornada profunda e instigante pela complexidade da condição humana na modernidade. Este livro não se limita a um mero diagnóstico do desconforto que permeia nossas vidas; é uma análise filosófica que entrelaça direito e psicanálise, buscando compreender as raízes de um sentimento de mal-estar que ressoa em nossa sociedade contemporânea.
A partir de uma reflexão crítica e interdisciplinar, Pedro Henrique nos leva a refletir sobre como a incessante busca pelo progresso e a ascensão do individualismo têm moldado nossas subjetividades. Em vez de apresentar soluções simplistas, o livro convida o leitor a uma reflexão crítica sobre as heranças da modernidade e sobre a necessidade de novas formas de coexistência.
Pedro Henrique não ignora as promessas de liberdade da era moderna, mas revela seu paradoxo: o vazio existencial que essas promessas frequentemente acarretam. Contudo, é precisamente essa consciência do mal-estar que pode ser o motor da transformação e da emancipação.
Este livro é, portanto, um convite à reflexão e à ação para todas as pessoas que buscam entender e enfrentar os desafios da contemporaneidade, fazendo ecoar a voz de um autor que se posiciona com coragem diante das questões mais prementes de nossa época."

Soraya Nour Sckell
Professora Catedrática da NOVA School of Law, Universidade Nova de Lisboa
Diretora do CEDIS – Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de dez. de 2024
ISBN9786527041764
O mal-estar na cultura jurídica: tempo, sujeito e política

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    O mal-estar na cultura jurídica - Pedro Henrique Azevedo

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    Para vovó Xixa e tio Marcio,

    que me mostram o caminho.

    AGRADECIMENTOS

    É difícil fazer justiça, só com palavras, a todas as pessoas que possibilitaram que eu me tornasse quem concluiu este livro. Essa jornada, sobretudo, de autodescoberta, não seria possível sem a bondade de almas tão gentis como as que tenho o prazer e privilégio de compartilhar ideias, sonhos e sentimentos; de ter dividido a caminhada que se encerrou, mas também o horizonte à frente. Para não cometer o erro de esquecer alguém, sei que cada um se sentirá representado aqui!

    Em primeiro lugar, agradeço à Universidade Federal de Uberlândia que, por meio da sua riqueza de atividades de ensino, pesquisa e extensão, me deu a certeza de que frequentarei o ambiente universitário até a minha morte. Eu floresci nos meus anos na UFU e jamais escolheria um lugar diferente para passar minha juventude, mesmo que fosse obrigado a repeti-los eternamente (Ouroboros) - e repetir a escolha que fiz com apenas 17 anos de idade pelo bacharelado em direito. Por isso, não poderia deixar de agradecer, também, à cidade de Uberlândia, que abrigou os melhores anos da vida (por enquanto!) de um carioca; bem como às amizades que lá fiz e hoje transcendem tempo e espaço.

    Estendo o agradecimento à Universidade NOVA de Lisboa e à Associação de Universidades em Língua Portuguesa (AULP); pois sem a mobilidade acadêmica que realizei em Lisboa no ano de 2022, dificilmente as ideias e planos que nutro hoje - inclusive no livro - seriam pensáveis. Às amigas e amigos que lá fiz, sinto uma imensa saudade de vocês, e estou ansioso para reencontrá-las!

    Nos estágios na Subseção Judiciária da Justiça Federal e na Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, em Uberlândia, descobri que as instituições de direito podem fazer muito mais a fim de transformar, para melhor, a vida das pessoas. Pela generosidade e pelo encorajamento acadêmico, agradeço às minhas supervisoras e supervisores.

    Às amigas e amigos de graduação: vocês me deram a melhor turma de amigos que alguém pode ter, assim como me deram os melhores momentos! Mas também estiveram comigo para suportar os piores, ainda mais importante. Reservo-lhes o lugar mais especial no coração.

    Com o coletivo de teatro Brasil Ralé, em cima de um palco, tive a maior das epifanias. Vocês uniram meu corpo à minha voz e me mostraram que ser quem eu sou é possível, é bem-vindo e é extraordinário, e por isso jamais os esquecerei ou esquecerei da luta pela justiça social.

    No Polemos, construímos um lar dentro da universidade. Um refúgio para simplesmente sermos, e onde me senti seguro e acolhido. Somos uma família unida pelo espírito, e este livro é de vocês tanto quanto meu (exceto os erros, é claro). Hão de mudar o mundo, todos vocês.

    E com o orientador do trabalho, José de Magalhães, maestro, oh capitão, meu capitão, conheci o futuro; e só por este sempre breve, mas milagroso instante, acho que nunca serei capaz de agradecer o suficiente. Por tudo, quero agradecer especialmente pelo respeito à minha autonomia intelectual. Como Merlí, o senhor operou uma pequena revolução em nossas vidas, mostrando que a vida é filosofia e que filosofia é a vida. Espero honrar a confiança depositada anos atrás continuando (radicalmente) rebelde e criativo.

    Estendo o agradecimento às filósofas e professoras que me acolheram em diferentes momentos do percurso e são referências inesgotáveis no desejo de lecionar: por todos, as arguentes Luciana Reis, Raoni Bielschowsky e Soraya Nour Sckell, que gentilmente aceitou o convite para escrever a sinopse.

    E com a minha família, eu sou relembrado diariamente qual é o sentido da vida: amar. Vocês são a coisa mais importante para mim, passado, presente e futuro. Dani, que transformou nossas vidas uma década atrás. Para você, mãe, só consigo dizer obrigado por tudo. Só você sabe quão grande é o tudo. E Bentinho, geração de quem estamos apenas tomando o mundo emprestado; e em quem eu espero incentivar a sensibilidade pelas pequenas belezas da vida.

    Esse livro é um romance escrito a várias mãos. Vocês todos me inspiram a ser melhor. Espero que a obra final esteja à altura!

    Nascemos, e nesse momento, é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isto por mim.

    José Saramago, Ensaio sobre a lucidez

    A POTÊNCIA DO MAL-ESTAR(UM ANTI-PREFÁCIO)

    Que intrigante é essa capacidade humana de criar um mundo a partir de um vazio, de uma lacuna, de um hiato. Na maioria das vezes sem nome, frequentemente um cheiro do ralo. Coça o nariz, fede; a origem parece indeterminada: nos obriga!

    É assim que descobrimos o futuro. Nosso encontro com o mundo vem com o espanto — uma progressiva noção (porque raramente se converte em cognição) de que precisamos cumprir um pacto com um passado que não escolhemos, mas que podemos amar, e um pacto com o presente. Decidir por si mesmo exige uma atenção zen-budista de difícil conquista subjetiva e que a modernidade tornou objetivamente improvável. O presente em fluxo nos arrebata com a sensação de não opção, a face oculta das infinitas possibilidades modernas.

    Só nos resta, então, o futuro. Nele depositamos as imagens de tudo o que poderia ser; no porvir temos a esperança de que seremos mais de nós mesmos, para frequentemente nos depararmos com a constatação dolorosa de que ainda somos os mesmos.

    Nos flagramos, então, inadequados (Spinoza, corre aqui, por favor). O cheiro do ralo aos poucos invade nossos encontros com o mundo. Sofremos. Nos sentimos incapazes de nomear que o trânsito entre o Ego e o Alter dá muito trabalho — que há mais Alter em nós do que gostaríamos de admitir: daqui vem a inadequação, a sensação sofrida de que não somos causa de nós mesmos, somos causados pelo mundo, que nos forma, modifica, educa, potencia e também nos mata.

    À parte de toda a bem construída cinematografia de O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan e da já excessivamente saudada interpretação de Heath Ledger como o Coringa, há um momento em que o vilão, pendurado de cabeça para baixo, descreve a relação entre o palhaço e o morcego: o encontro entre uma força da natureza imparável e uma muralha indestrutível. A inclinação é ler o Coringa como essa potência caótica, enquanto o Batman representa essa defesa impenetrável da ordem. É nesse momento, porém, que fica mais visível a unidade existencial entre os antagonistas, eles compõem entre si um outro necessário.

    Eros e Thanatos, o desejo e seu oposto, o prazer e a realidade. Sintoma: é exigir demais do nosso incapaz e inadequado ego que saibamos canalizar todas as energias que se movimentam em nós e entre nós³. O cheiro do ralo então ganha corpo particular; o espírito do tempo, titereiro travesso, conduz o sujeito a ter que agir.

    Não dá. Para o moderno, saber disso é uma tortura, e a negação sempre foi uma baita porta aberta para a nossa mente. Por isso o moderno acelera ao futuro, na agora vã esperança (mais uma vez) de finalmente se converter em causa de si mesmo (quando a procrastinação deixar).

    Sempre foi uma prática humana extruir-se. Não só por ser impelido ao futuro como os modernos, mas também por, antes disso, ter inventado o futuro a ser organizado. Extrui-se em vários artefatos, em todos eles depositando uma fé de que conseguiríamos construir os quatro muros Wayne® que finalmente estabilizariam nossa força imparável.

    As religiões, instituições, formas políticas, o Direito, o Estado. A tradição hegemônica ocidental chama essas construções de racionais; algo que criamos para nos regular, organizar, aconselhar, comandar: um poder redentor que nos aliviaria do fardo de decidir, ponderar, enfim, pensar sobre cada ato da vida — insuportável.

    Isso tudo pode ser verdade, a depender do ângulo e da ordem que se coloca o problema: na tradição platônico-cristã, esses construtos ganham uma função em primeiro lugar repressora e só posteriormente estimuladora da potência humana. Há, nesse viés, um pessimismo acerca da experiência produtiva dos afetos — haveria de sermos fortes contra nossas paixões.

    Se os gregos já haviam criado a linguagem para cindir e hierarquizar o real — physis/nomos, correspondentes à escravidão e liberdade —, foram os modernos que conduziram esse princípio ao seu paroxismo. Foi a reelaboração da episteme grega em ciência moderna por Galileu, Copérnico e Newton que possibilitou não a compreensão da cultura como liberdade (como conceberam os gregos), mas da técnica como domínio (coativo) do natural — elemento definidor da discrepância militar entre o Ocidente e as demais civilizações.

    A Civilização da Técnica, regada a muito café e ética de trabalho protestante, progressivamente acelerou-se, e a pressa encurta o pensamento — para usar o jargão economês, o pensamento acelerado produz paulatinamente retornos decrescentes. Basta olhar para o século XX, o tempo dos Estados Unidos da América, da contabilidade, da Bomba, dos pós-modernos.

    Se já não era possível pensar em tudo sem a pressa, com ela, melhor não pensar em quase nada. Talvez no divã, na melhor das hipóteses, ou com um livro de autoajuda comprado em um aeroporto, na pior delas. Pensar, só um pouco, e em mim mesmo.

    Isso é resultado de uma lacuna epistêmica do Estado de Direito moderno. Apesar da história ter produzido Spinoza, Hegel e Nietzsche, a Kant (!) foi entregue o projeto de engenharia na transição moderno-contemporânea. Alguns arquitetos poliram sua estrutura sem graça, mas ela está lá, ou pior, está aqui.

    Com isso, quero dizer que o ambiente político para recepcionar esse novo ciclo histórico carece de Razão! Spinoza chamaria toda a produção de Kant de imaginação, Hegel de entendimento — todas modestas partes do que se poderia chamar de racional — já Nietzsche, ó glória, chamaria diretamente de escravidão.

    Toda essa efervescência acelerada, que poderia ser transformada, mediada, canalizada e compreendida pelo poder político, ganha uma resposta central: coerção, a muralha indestrutível do edifício kantiano, e que uma estupidez posterior identificará com o próprio direito.

    Não é nada surpreendente. A imagem do Estado que temos tem que coagir para funcionar. Essa imagem existe para que não precisemos parar para pensar. Vamos empilhando imagens para tentar tapar todas as fissuras do projeto. Tudo se torna urgente ao mesmo tempo que nada parece ter importância.

    * * *

    Pedro Henrique Azevedo tem consciência — muitas vezes por outras vias — de todo esse imbróglio. Maneja como poucos a proposta macrofilosófica de Gonçal Mayos. Essa é uma obra inter, trans, multi e, quiçá, pós-disciplinar (ainda que o prefixo ‘pós’ muitas vezes soe como prenúncio de um vazio).

    Por isso mesmo, a leitura pode ser desconcertante. O autor não é nem um dedutivista típico que encontramos nas dogmáticas, nem um indutivista (quase) niilista que encontramos nos estudos empíricos. O texto que ora se apresenta ao leitor é especulativo na mais profunda acepção: um speculum, um espelho, ou, já que macrofilosófico, uma sala de espelhos onde o pensamento testa, complementa, nega e ascende a si mesmo.

    A própria estrutura triádica — uma influência do culturalismo de Nelson Saldanha — entrelaça modernidade, mal-estar e cultura jurídico-política de uma maneira especular: as micro e macro ideias se implicam permanente e rizomaticamente.

    Alerto ao leitor do perigo de ingressar no texto crendo-o linear. Definitivamente não o é, como não é a vida, que os moralistas tanto temem e por isso tentam endireitar. Por isso a obra é fundamental, porque ela verbaliza que a potência do mal-estar reside em sua capacidade de nos confrontar com as contradições da modernidade. Ao reconhecermos e explorarmos essas tensões, abrimos caminho para novas formas de compreender e transformar nossa relação com o mundo.

    Faço um último alerta: o perigo de se apaixonar. O texto de Pedro Henrique Azevedo é feito com paixão e apaixona — também convence, informa. E, se tiverem a oportunidade de conhecer o autor, o risco é ainda maior.

    Essa é a obra de inauguração de uma grande carreira.

    A star is born.

    José de Magalhães Campos Ambrósio

    Professor Associado de Fundamentos do Direito na Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

    Coordenador do grupo de pesquisa Polemos: Cultura e Imaginação

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    PARTE I

    TEMPO

    CAPÍTULO 1

    ONTEM: MODERNIDADE NO TEMPO PRETÉRITO

    CAPÍTULO 2

    HOJE: MODERNIDADE NO TEMPO PRESENTE

    CAPÍTULO 3

    AMANHÃ: MODERNIDADE NO TEMPO FUTURO

    PARTE II

    SUJEITO

    CAPÍTULO 4

    LIVRES: MAL-ESTAR NA COR AZUL

    CAPÍTULO 5

    IGUAIS: MAL-ESTAR NA COR BRANCA

    CAPÍTULO 6

    FRATERNOS: MAL-ESTAR NA COR VERMELHA

    PARTE III

    POLÍTICA

    CAPÍTULO 7

    AUTORIDADE: DEUSES

    CAPÍTULO 8

    REBELIÃO: ESTADOS

    CAPÍTULO 9

    QUEDA: DEMOCRACIAS

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.

    Mário Quintana

    Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da crença, foi a época da incredulidade. Foi a estação da Luz, foi a estação das Trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós. Todos estávamos indo direto para o Céu, todos estávamos indo direto no sentido oposto.

    Charles Dickens, Um conto de duas cidades

    Este livro se debruça sobre uma possibilidade pouco reconhecida ao conhecimento do direito: enfrentar grandes dilemas do espírito humano. Dito de outra forma, embora não menos arriscada, O mal-estar na cultura jurídica¹ é um chamado aos juristas para responder aos anseios e enigmas do tempo em que vivemos, incluindo a sua radicalidade, aceleração e agravamento. Presente que logo deixaremos de legado para as gerações futuras.

    Tal chamado é, devo reconhecer, em grande medida pessoal e político,² decorrente de uma visão de mundo (e de mundo jurídico) que só pode ser compreendida como o resultado de uma vivência na graduação e do estudo da filosofia do direito e do Estado que me acompanhou e me abrigou desde o primeiro dia nela. Uma vivência, friso, dentre tantas possíveis; algumas divergentes, outras convergentes, como as que tive a felicidade de encontrar no Polemos, grupo de pesquisa coordenado pelo professor José de Magalhães Campos Ambrósio.

    O livro reúne uma série de reflexões que desenvolvi entre 2018 e 2023 no âmbito do Programa de Iniciação Científica Voluntária (PIVIC) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Seu conteúdo foi apresentado pela primeira vez em junho de 2023, com vistas à obtenção do título de bacharel em direito, em banca examinadora formada pela Prof.ª Dr.ª Luciana Silva Reis (UFU/MG), pelo Prof. Dr. Raoni Macedo Bielschowsky (UFU/MG) e pela Prof.ª Dr.ª Soraya Nour Sckell (UNL/PT).

    O desafio específico que dá corpo ao livro, imerso naquele vago horizonte dos grandes dilemas do espírito humano, é o mal-estar. Misterioso, ambíguo, impreciso e surpreendentemente volátil (o que justifica o caráter muitas vezes figurado e metafórico da escrita), mal-estar pode receber significados aqui muito diferentes daqueles que lhe emprestaram, no último século, as várias literaturas e áreas do conhecimento que fizeram dele um conceito específico - penso, em especial, a psicanálise.

    É preciso reconhecer no mal-estar seu caráter refratário a toda nomeação, sua dimensão indiscernível.³ Isso não será um problema se tivermos delimitado um conceito que tenha sido proveitoso para o propósito perseguido - novamente, um chamado: princípio de movimento, esboço, ponto de partida - e que se revele, ao final, em sua devida magnitude à luz do local do qual o pesquisador parte e para o qual pode contribuir (ainda que não só para ele, espera-se): o direito.

    Com apoio no excelente trabalho de Christian Dunker,⁴ podemos tomar como definição apenas provisória - ou como conceito de trabalho - a seguinte: o mal-estar é uma ideia existencial, filosófica, categoria fundamental da modernidade,⁵ que diz respeito à nossa condição no mundo. Por isso, ele é uma experiência - muito ligada à natureza e origem da angústia(especialmente naquilo que ela tem de incurável) - com implicações importantes para a teoria social, a ética, a teoria da cultura, entre outros.⁷ O mal-estar é essa ausência de lugar ou essa [...]impossibilidade de ‘uma clareira’ no caminhar pela floresta da vida.⁸ As inúmeras querelas de tradução da Unbehagen, no original freudiano, decorrem da própria natureza do conceito, como se mal-estar remetesse a algo que não pode ser propriamente designado; há um "sentido de inescapabilidade e de densidade existencial condensado na ideia freudiana de Unbehagen".⁹

    Este livro não pretende, contudo, especular relações apenas entre direito e mal-estar. Há um terceiro elemento merecedor de atenção a ser inserido nessa equação: a modernidade. Isto é, o tecido no qual as figuras do mal-estar e do direito moderno foram produzidas e que elas mesmas contribuem para fiar. Só assim, com a tríade completa,¹⁰ poderemos extrair, do movimento inerente à história do direito, ensinamentos para imaginar um futuro; tarefa eminentemente criativa do qual todo trabalho ensaístico e filosófico se incumbe.

    A psicologia do direito já se acostumou a ocupar-se da intersecção entre os temas de interesse, de um lado, dos psicanalistas e, de outro, dos juristas, estes faxineiros da modernidade¹¹. Ela o faz por meio do auxílio forense a juízes e tribunais no processo de tomada de decisões e acompanhamento das partes em litígios com conteúdo emocionalmente sensível (mas, sabemos, o direito é mais e é maior do que o Judiciário, este hospital do direito¹² - o direito, nos relembra Paolo Grossi, é mais aplicação do que norma¹³); por meio da crítica ao sistema ou à justiça penal/punitiva; por meio da proteção do interesse dos vulneráveis em casos envolvendo famílias, infância e juventude etc. Este livro, contudo, prefere tomar emprestadas as hipóteses que a psicologia historicamente elaborou com vistas a outro propósito: explicar nossa estável, embora precária, aceitação ou adesão aos valores e imperativos da ordem social.

    O filósofo mineiro Henrique C. de Lima Vaz argumentou que as sanções externas que acompanham o não-cumprimento do dever – notadamente, o caráter coercitivo das normas jurídicas -, codificadas socialmente nas legislações, não podem ser apontadas como causa explicativa da experiência da obrigação. Antes, o cumprimento ou não do dever trazem consigo uma noção interna na forma de louvor, autocensura, remorso; noções essas que integram a Ética, ciência do ethos.¹⁴ Em outras palavras, os deveres adquirem proporção relevante no interior da vivência do sujeito: arrependimento, regeneração, a finitude e a falibilidade humanas, o mal e a culpa... Todos esses são temas eminentemente éticos¹⁵ e, por isso, ao menos em alguma medida, de interesse jurídico ou jusfilosófico.

    A psicanálise, no seu rico diálogo crítico com os problemas da ética e da filosofia (também Foucault, por exemplo, elaborou explicações desta sorte disciplinadora)¹⁶, elaborou alguns conceitos importantes para dar conta do fenômeno, a nível individual - e, em parte, inconsciente -, da reprodução e manutenção social.¹⁷ O mal-estar na civilização é precisamente sobre um deles: a culpa.¹⁸ Nas palavras tomadas emprestadas de Vladimir Safatle:

    Normalmente, acreditamos que uma teoria dos afetos não contribui para o esclarecimento da natureza dos impasses dos vínculos sociopolíticos. Pois aceitamos que a dimensão dos afetos diz respeito à vida individual dos sujeitos, enquanto a compreensão dos problemas ligados aos vínculos sociais exigiria uma perspectiva diferente, capaz de descrever o funcionamento estrutural da sociedade e de suas esferas de valores. [...] No entanto, um dos pontos mais ricos da experiência intelectual de Sigmund Freud é a insistência na possibilidade de ultrapassar tal dicotomia. Freud não cansa de nos mostrar quão fundamental é uma reflexão sobre os afetos, no sentido de uma consideração sistemática sobre a maneira como a vida social e a experiência política produzem e mobilizam afetos que funcionarão como base de sustentação geral para a adesão social. [...] Mas, em vez de ver sujeitos como agentes maximizadores de utilidade ou como mera expressão calculadora de deliberações racionais, Freud prefere compreender a forma como indivíduos produzem crenças, desejos e interesses a partir de certos circuitos de afetos quando justificam, para si mesmos, a necessidade de aquiescer à norma, adotando tipos de comportamentos e recusando repetidamente outros.¹⁹

    Ao pôr o afeto no centro, a própria existência deste livro já ironiza a necessidade de seguir os objetos de estudo esperados do direito, como pretendem os positivismos mais ortodoxos e paroquiais; sem também deixar de satirizar as racionalidades cartesiana e ilustrada que olham com maus olhos tal tentativa (afinal, se o direito é puramente razão, o vazio seria "a-jurídico" - e é dele que estamos falando aqui).

    No plano da filosofia constitucional, o professor Raoni Bielschowsky também enfatiza a importância da dimensão emotiva para a experiência jurídica, em oposição à exacerbada racionalidade ligada ao formalismo. A racionalização e formalização são indispensáveis ao direito, mas não suprimem a necessidade e operabilidade do sentir jurídico, pois é graças a este que a normatividade jurídica se torna capaz de enraizar-se profundamente na sociedade. Uma adesão interiorizada à Constituição permite que aqueles que a sentem obedeçam às normas jurídicas não em virtude do aparelho coercitivo existente, mas porque tomam como seu próprio o projeto comum do grupo social. Em outras palavras, a normatividade jurídica apenas se imporia a partir do momento em que os cidadãos passam a tê-la e senti-la como sua.²⁰

    Trata-se de um problema espinhoso atinente à ética da liberdade e à filosofia da história que, desde Kant e Hegel, suscita insights inspirados e discussões acaloradas. Nos nossos dias, Joaquim Carlos Salgado o pensará a partir do rico conceito de consciência jurídica²¹, com franca inspiração no itinerário filosófico que o liga a Lima Vaz (Padre Vaz, como o chamam, carinhosamente, muitos de seus discípulos na escola jusfilosófica mineira) e, este, à divulgação do idealismo alemão no estado da inconfidência mineira.

    Diz Bielschowsky que um ponto crucial para a compreensão da experiência constitucional é o seu elemento

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