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Residências em Saúde no Brasil: Uma Revisão de Escopo
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E-book552 páginas5 horas

Residências em Saúde no Brasil: Uma Revisão de Escopo

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Sobre este e-book

A formação de residentes na área de saúde interessa a toda sociedade. Saídos das residências estes assumem o cuidado especializado nas várias profissões da saúde. Inovações na formação favorecem o desenvolvimento de competências e o trabalho em equipe. Assim, aumentam as publicações científicas. A revisão do escopo aqui apresentada abrange currículo e competência; ensino de habilidades; comunicação; avaliação; gestão e governança, no contexto das políticas de saúde e educação superior.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de nov. de 2024
ISBN9786525060057
Residências em Saúde no Brasil: Uma Revisão de Escopo

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    Residências em Saúde no Brasil - Adriana Cavalcanti de Aguiar

    INTRODUÇÃO

    Adriana Cavalcanti de Aguiar

    A formação de profissionais de saúde é uma temática que vem crescendo em importância, contando com publicações científicas especializadas, algumas já consagradas, como o periódico estadunidense Academic Medicine. A Revista Brasileira de Educação Médica vem sendo publicada desde 1977 pela Associação Brasileira de Educação Médica, e atualmente congrega autores oriundos das várias profissões da saúde.

    No Brasil, o aparelho formador, conjunto de instituições que oferecem oficialmente cursos e certificações para profissionais de saúde, é vasto, e inclui a formação técnica e superior. Medicina, Enfermagem, Odontologia, Nutrição, Psicologia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Farmácia, Serviço Social, Medicina Veterinária, Terapia Ocupacional, Educação Física, Biomedicina e Biologia são as carreiras que compõem a lista de 14 profissões brasileiras¹ de nível superior na área da saúde, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde 287, de 8 de outubro de 1998 (Brasil, 1998). Com maior ou menor intensidade, todas vêm produzindo conhecimento sobre currículo, ensino-aprendizagem e avaliação, numa dinâmica de acréscimo regular de novos conhecimentos.

    A formação especializada em saúde no Brasil responde a um contexto jurídico-político, com marcos como a Constituição federal de 1988 e a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990), que estabelecem o Sistema Único de Saúde e o direito universal à saúde no Brasil (Brasil, 1990), sofrendo influência de programas e políticas de indução, especialmente nas últimas décadas, como será apresentado.

    No que tange à formação especializada em saúde, há particularidades. No Brasil coexistem duas vias para ascender ao título de especialista: a conclusão de curso de especialização (oferecido dentro de parâmetros legais por instituição credenciada para tal) e subsequente aprovação em prova específica (promovida pela respectiva sociedade da especialidade), e por meio de um curso de residência. A residência distingue-se pelo alto percentual de carga horária prática, em atividades de prestação de serviços de saúde. Com duração de pelo menos dois anos, a residência é considerada pelos estudiosos a modalidade mais desejável de especialização² (o chamado padrão-ouro), sendo oferecida originalmente para graduados em Medicina, mas atualmente abrangendo outras profissões, como a enfermagem e nutrição, sendo posteriormente oferecida a um conjunto de profissões, de forma integrada em um mesmo programa de residência multiprofissional.

    Com seu vínculo orgânico com o ambiente de prática, e oferecida por instituição de ensino ou serviço de saúde, ao longo das décadas o conjunto de residências produziu grande diversidade de processos formativos, o que suscita o estabelecimento de balizas regulatórias que, no caso da Medicina, têm um marco em 1977, ano da criação da Comissão Nacional de Residência Médica por meio do Decreto 80.281, de 5 de setembro de 1977 (Brasil, 1977), no âmbito do Ministério da Educação. Apesar da oferta regular de formação especializada para outras carreiras, a regulação de outras residências uniprofissionais e das residências multiprofissionais ocorreu apenas em 2005 (Brasil, 2005).

    No contexto das últimas décadas, de formulação de políticas de saúde voltadas para aprimorar modelos de assistência e processos de trabalho, avanços na formação especializada são de grande interesse social, levando em conta ainda a crise da força de trabalho em saúde e a necessidade de formar profissionais com novos perfis de competência capazes de avançar na atenção às necessidades de saúde da sociedade (Dal Poz, 2013; Scheffer, 2023).

    Em 2019, com apoio do Ministério da Saúde, a Diretoria de Planejamento (Coordenação-Geral de Planejamento Estratégico), instância da Vice-Presidência de Gestão e Desenvolvimento Institucional da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), propôs ao Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde a realização de um estudo de síntese sobre as residências em saúde no Brasil, no bojo de um conjunto de ações voltadas para o fortalecimento da Educação Permanente em Saúde. Sendo assim, nossa equipe de pesquisa voltou-se para sistematizar e sintetizar a produção científica disponível em periódicos indexados, nacionais e internacionais, sobre as residências em saúde no Brasil.

    Nosso histórico de pesquisas com residências apontou parâmetros de análise para o presente trabalho, destacando-se a pesquisa Preceptoria em programas de residência: ensino, pesquisa e gestão (Aguiar, 2017), que investigou as práticas de preceptores de residência no Brasil e na Espanha. Para situar o ensino nessa modalidade de oferta, escutamos preceptores (mediante questionário on-line e entrevistas), coordenadores de programas e residentes. Obtivemos, assim, uma fotografia do ensino de residentes nos dois países, com a Espanha destacando-se na institucionalização de mecanismos de gestão e governança. O estabelecimento desse paralelo internacional foi muito informativo, permitindo mapear muitos avanços obtidos no Brasil, mas dificuldades.

    Ao debruçarmo-nos sobre essa complexa modalidade certificativa, buscamos contemplar necessidades de conhecimento de distintos públicos interessados: residentes e egressos de programas de residência, profissionais de saúde, em especial os que atuam na preceptoria de residências, coordenadores e supervisores de programas e membros das instâncias gestoras das instituições ofertantes (Coremes e Coremus)³, além de tutores e docentes, lideranças da educação superior e formuladores de políticas públicas.

    No presente trabalho, analogamente à pesquisa anterior, nosso grupo utilizou métodos quantitativos e qualitativos para indagar aos dados o que aconteceu e acontece nas residências brasileiras. Para tal, compusemos uma equipe diversa, com pesquisadores oriundos de Medicina, Odontologia, Enfermagem, Estatística, Biblioteconomia e Comunicação Social. Num rico e intenso debate, estabelecemos as balizas e elegemos estratégias para coleta e análise de dados do escopo de publicações disponíveis em seis grandes bases de dados bibliográficos, desde que a residência começou a ser objeto de publicação. A primeira referência indexada que identificamos data de 1969, e as últimas que analisamos foram publicadas em 2021.

    Como será problematizado ao longo do trabalho, nosso grupo de pesquisa percorreu encruzilhadas e cristas dos caminhos da investigação, nessa temática que remete, simultaneamente, à teoria e à prática, inserida no campo da saúde, mas dependente da chancela das instâncias certificadoras da Educação, e que se beneficia ainda de aportes dos estudos do trabalho, num contexto institucional dinâmico e tensionado.

    Consideramos uma grande oportunidade poder nos dedicar a examinar todo o material que, após a devida triagem, compõe nosso escopo de 237 publicações sobre residências em saúde no Brasil (Apêndice A)⁴. Este livro apresenta e discute nossas premissas, nossos métodos e resultados, com o desejo de inspirar mais grupos a pesquisarem sobre as residências, e também de subsidiar a formulação e implantação de políticas voltadas para seu aprimoramento.

    No capítulo 1, apresentamos as balizas conceituais e político-institucionais que direcionam nosso olhar sobre o escopo, apresentando nosso mapa conceitual, e destacamos as seis ênfases analíticas que informam a análise. A metodologia de pesquisa, com base nas decisões de escolha da revisão de escopo, bem como as etapas que realizamos são apresentadas no capítulo 2. Os capítulos 4 a 10 apresentam resultados, iniciando pela caracterização do escopo de 237 publicações incluindo os métodos de pesquisa adotados pelos autores (capítulo 4), passando pelo mapeamento das principais temáticas estudadas (capítulo 5), aprofundando como o escopo trata as questões relativas e currículo e competência (capítulo 6), avaliação do desempenho dos residentes (capítulo 7), ensino-aprendizagem de habilidades profissionais (capítulo 8), comunicação (capítulo 9), e gestão e governança com consequências para as residências (capítulo 10) O capítulo 11 sumariza nossa discussão do escopo, identificando lacunas e temas emergentes. Assim esperamos fomentar o debate sobre as residências e estimular novas pesquisas.

    Boa leitura!

    Referências

    AGUIAR, A. C. (org.). Preceptoria em programas de residência: ensino, pesquisa e gestão. Rio de Janeiro: Cepesc Editora; IMS, Uerj, 2017. Disponível em: https://preceptores.icict.fiocruz.br. Acesso em: 27 set. 2022.

    BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 fev. 2022.

    BRASIL. Decreto nº 80.281, de 05 de setembro de 1977. Regulamenta a Residência Médica, cria a Comissão Nacional de Residência Médica e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 1977. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-80281-5-setembro-1977-429283-normaatualizada-pe.pdf. Acesso em: 19 fev. 2022.

    BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 19 fev. 2022.

    BRASIL. Lei nº 14.725, de 16 de novembro de 2023. Regula a profissão de sanitarista. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14725.htm. Acesso em: 27 nov. 2023.

    BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Portaria Interministerial nº. 2.117, de 3 de novembro de 2005. Institui no âmbito dos Ministérios da Saúde e da Educação, a Residência Multiprofissional em Saúde e dá outras providências. Brasília, DF: MS, 2005. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15432-port-inter-n2117-03nov-2005&Itemid=30192. Acesso em: 20 jan. 2021.

    BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução nº 287, de 08 de setembro de 1998. Brasília, DF: MS, 1998. Disponível em:https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1998/res0287_08_10_1998.html. Acesso em: 19 fev. 2020.

    DAL POZ, M. R. A crise da força de trabalho em saúde. Cad. Saúde Pública, Brasília, DF, v. 29, n. 10, p. 1924-1926, out. 2013.DOI 10.1590/0102-311XPE011013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/F5vfm6dCsVbm9qfngypZ54t/?lang=pt. Acesso em: 19 fev. 2022.

    FREIRE, J. M.; INFANTE, A.; AGUIAR, A. C.; CARBAJO, P. Características e perspectivas do modelo espanhol de formação de médicos residentes. In: AGUIAR, A. C. (org.). Preceptoria em programas de residência: ensino, pesquisa e gestão. Rio de Janeiro: Cepesc Editora; IMS, Uerj, 2017. p. 49-59. Disponível em: https://preceptores.icict.fiocruz.br. Acesso em: 27 set. 2022.

    SCHEFFER, M. (coord.). Demografia médica no Brasil 2023. São Paulo: FMUSP; AMB, 2023. Disponível em: https://amb.org.br/wp-content/uploads/2023/02/DemografiaMedica2023_8fev-1.pdf. Acesso em: 15 maio 2023.


    ¹ Em 16 de novembro de 2023, foi sancionada a Lei 14.725, que regulamenta a profissão de sanitarista para graduados, mestres, doutores e ou profissionais que cursaram pós-graduação, especialização ou residência multiprofissional em Saúde Coletiva ou Saúde Pública (Brasil, 2023).

    ² Há países em que a residência é a única via para ascender ao título de especialista (Freire et al., 2017).

    ³ Comissão de Residência Médica e Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde.

    ⁴ O Apêndice A apresenta as referências selecionadas, analisadas e incluídas em nossa revisão de escopo, e que estão indicadas em sequência alfanumérica crescente, em subscrito, a cada citação nos capítulos do presente livro.

    1

    ELEMENTOS DE CONTEXTO TEÓRICO E INSTITUCIONAL DAS RESIDÊNCIAS EM SAÚDE NO BRASIL

    Adriana Cavalcanti de Aguiar

    O conceito de contexto frequentemente refere-se, na pesquisa científica, aos elementos teórico-conceituais que os autores privilegiam para situar seu objeto de investigação. Essa acepção de contexto será abordada na sequência, cabendo, no entanto, apontar outra camada de contexto que também incide na produção de evidências e na análise do nosso escopo de publicações sobre residências em saúde no Brasil: o contexto político-institucional.

    Nossa síntese das publicações selecionadas mediante critérios está situada num dado momento histórico: dispomos de material bibliográfico publicado que engloba temáticas tradicionais e emergentes, adota diversos recortes e estabelece objetivos, lançando mão de vários métodos de pesquisa.

    A análise da bibliografia que realizamos valorizou elementos contextuais da produção e implementação de políticas de saúde e educação superior, em especial das últimas duas décadas. Para abordar os principais elementos de contexto político-institucional, estabelecemos quatro períodos: o primeiro abarca a produção bibliográfica prévia a 1990, abrangendo referências que antecedem a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). A década de 1990 (até a virada do século) é nosso segundo período de interesse, tendo como marco inicial a homologação da Lei Orgânica da Saúde (com princípios oriundos da Constituição federal de 1988). Nessa lei de 1990, o SUS aparece como ordenador da formação profissional, e várias políticas e programas influenciaram, direta ou indiretamente, a especialização em saúde. Com a regulação e certificação sendo prerrogativas do Ministério da Educação, cabe enfocar também políticas de educação superior. Nosso terceiro período estudado abrange a primeira década do século 20, e o quarto período tem início em 2010 e vai até 2021, ano da busca de referências (realizada em 13 de abril) com as quais elaboramos a revisão de escopo.

    Assim, as principais políticas e programas de interesse estão indicadas na Linha do Tempo (Figura 1.1) distribuídas nas décadas de até 1990, entre 1991 e 2000, entre 2001 e 2010, e de 2011 até abril de 2021.

    Figura 1.1 – Elementos de contexto político-institucional relacionados com as residências no Brasil

    A close-up of a document Description automatically generated

    Fonte: a autora (2022)

    Essa cronologia buscou registrar elementos de políticas públicas implicados na formação superior em saúde⁵. Existe uma concentração de elementos da linha do tempo a partir da virada do século. Destacamos elementos com impacto nas práticas em saúde, por induzirem mudanças nos arranjos institucionais, na gestão e na governança da formação, por induzirem inovações na formação de graduandos e residentes — como o Programa Nacional de Apoio à Formação de Médicos Especialistas em Áreas Estratégicas (Pró-Residência) (Brasil, 2009a).

    No setor Educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) provocou um debate da comunidade acadêmica da saúde voltado para a produção de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os distintos cursos de graduação. Pelo que ficou prescrito nas DCN [homologadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) entre 2001 e 2004], egressos da graduação devem dispor de competências como capacidade crítica e sensibilidade para a integração de aspectos biopsicossociais no cuidado. A medicina, carreira com maior tradição na formação de residentes, teve suas diretrizes curriculares revistas pela Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior (CES) 3, de 20 de junho de 2014 (Brasil, 2014), a qual reforçou a importância de aspectos socioculturais e da gestão do cuidado na formação médica (Aguiar et al., 2017a). Cabe destacar que egressos das graduações em saúde, formados já na vigência das DCN, ocupam posições na preceptoria de residentes e exercem papéis de liderança na gestão de serviços e sistemas.

    Apesar da noção de competência nortear as DCN, o termo só aparece conceituado na segunda edição das DCN da Medicina (Resolução CNE/CES 3/2014). Ainda assim, a competência (nas suas várias acepções) veio informar projetos político-pedagógicos, deixando aos estudiosos a tarefa de investigar até que ponto sua adoção (no nível formal) se traduz em aplicação curricular na prática.

    As exigências regulatórias estabelecidas para cursos de graduação demandaram detalhamento, pelas instituições de ensino superior, de elementos dos currículos, ensino e avaliações. Nas residências, outros elementos regulatórios se somam, mas a distância entre planejamento curricular e oferta do ensino sofre impacto direto da assistência à saúde, e de políticas públicas que incidem no funcionamento de sistemas e serviços de saúde.

    Cabe comentar como a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Brasil, 2004) buscou dinamizar a interlocução entre instituições formadoras, gestores de sistemas de saúde e representantes da sociedade civil, na pactuação sobre alocação de recursos públicos no desenvolvimento profissional. Seus polos de educação permanente foram posteriormente substituídos pelas Comissões de Integração Ensino-Serviços (Brasil, 2007a), instâncias com atribuições de identificar necessidades formativas e promover a participação de coletivos na problematização dos processos de trabalho. Novas vozes e perspectivas sobre o que demanda aprimoramento foram convocadas, buscando problematizar os limites de iniciativas de educação continuada tradicionais.

    Posteriormente, os Contratos Organizativos de Ação Pública Ensino-Saúde (Coapes), instrumentos de ordenação das relações entre o aparelho formador e as redes de serviços de saúde, estão voltados para balizar relações e interesses dos entes interessados na formação em serviços, como é o caso das residências (mas abrangendo também atividades de graduação e educação continuada e permanente) (Brasil, 2015a). A construção de parcerias ensino-serviços-comunidade, que permeou iniciativas inovadoras desde a década de 1990 (Kisil; Chaves, 1994), delineou um caminho para a educação permanente, na interlocução entre representantes das redes de saúde (especialmente em nível municipal), e o aparelho formador. Nesse esforço de governança, destaca-se a necessidade de diversificação de cenários de ensino-aprendizagem já estabelecida desde 2001 com o Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed), programa de indução que visou à reorientação na formação do profissional médico incentivando a adoção das DCN (Ceccim; Feuerwerker, 2004; Feuerwerker; Costa; Rangel, 2000).

    Nos avanços e descontinuidades que caracterizam a ordenação da formação especializada, um marco institucional foi a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde na estrutura do Ministério da Saúde (Brasil, 2003). Embora a Constituição federal (1988) estabeleça o SUS como ordenador, a chancela do setor educação é indispensável, pois a regulação e certificação dá-se pelo Ministério da Educação, que conta com a Diretoria de Desenvolvimento da Educação em Saúde (na qual se insere a Coordenação-Geral de Residências em Saúde, que abarca a Comissão Nacional de Residência Médica e a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde).

    No contexto atual os esforços de ordenação, regulação e gestão de pessoas estão inseridos num macrocontexto já bastante bem documentado, o da chamada crise da força de trabalho em saúde (Dal Poz, 2013; Scheffer, 2023), que traz consequências para a formação e o provimento de especialistas. O Brasil avançou, por exemplo, na interlocução interministerial, mas ainda tem um aprendizado da governança no sentido da ordenação da formação, cabendo estabelecer fóruns de negociação regulados e estáveis, onde os partícipes estabeleçam pactos que gerem benefícios coletivos. Destacamos o caso da Espanha, investigado anteriormente, em que a Ley de Ordenación de las Profesiones Sanitarias regula minuciosamente várias decisões sobre residência, a começar pelos mecanismos de pactuação anual do número de vagas oferecidas e recursos (envolvendo os níveis decisórios diversos); detalhamento das funções e atribuições dos gestores e preceptores, entre outros (España, 2003). A ausência de uma legislação específica no Brasil dá margem a lacunas regulatórias com consequências deletérias (Aguiar; Bursón, 2017).

    Por outro lado, foi uma conquista (ainda que tardia) que em 2005 a Lei 11.129, de 30 de junho, regulamentou a Residência em Área Profissional da Saúde e instituiu a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (Brasil, 2005a). A lei estabelece as modalidades de oferta de residências uniprofissionais outras que não a residência médica, e de programas de residência multiprofissional. As profissões abarcadas na potencial oferta de residências incluem Biomedicina, Ciências Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional, Física Médica e Saúde Coletiva (Brasil, 2009b).

    Além do reconhecimento crescente da importância do trabalho multiprofissional, o contexto atual da oferta de programas de residência insere-se no âmbito das Redes de Atenção à Saúde, definidas na Portaria 4.279, de dezembro de 2010, como mecanismos de construção da integralidade do cuidado, mediante integração sistêmica [...] de ações e serviços de saúde com atenção contínua, integral, de qualidade (Brasil, 2010).

    Além desse contexto político-institucional delineado, nossa análise adota conceitos que serão aprofundados na apresentação das ênfases temáticas adotadas para sistematizar o escopo das publicações sobre residências em saúde no Brasil. O Mapa Conceitual (Figura 1.2) sumariza algumas balizas conceituais, evidenciando a complexidade da trama de elementos implicados no estudo das PUBLICAÇÕES SOBRE RESIDÊNCIAS NO BRASIL (centro do mapa). A premissa é de que o escopo analisado no presente livro retrata a produção de pessoas e grupos que exercem algum grau de liderança intelectual e capacidade reflexiva sobre essa modalidade formativa. O fato de estes lograrem publicar seu material em revista indexada determina como esse conhecimento/evidências se presta a ser acessado por interessados.

    O quadrante inferior esquerdo do mapa (Ciência e Tecnologia) aponta para o mundo da pesquisa e publicação científica e da literatura indexada, com seus periódicos especializados e respectivas políticas editoriais, estabelecendo crivos que influenciarão o interesse de autores por determinados tipos de objetos, desenhos de pesquisa e métodos.

    Figura 1.2 – Principais elementos do contexto conceitual (Mapa Conceitual)

    Fonte: autora (2022)

    No sentido horário, o quadrante superior esquerdo enfoca o âmbito da Educação Superior, com suas regulações e instituições, o que inclui o estabelecimento de parâmetros e os trâmites que permitem a certificação de especialistas na saúde. As residências muitas vezes são oferecidas por instituições de ensino superior, sendo típica a oferta de programas em hospitais universitários, o que supostamente geraria uma aproximação entre os protagonistas da gestão acadêmica e docência universitária com o ensino oferecido nos serviços próprios, mas em pesquisa anterior (Aguiar, 2017b) os depoimentos de partícipes da residência apontam outra direção. Tradicionalmente, docentes e pesquisadores ainda não demonstram grande inclinação à pesquisa que perpasse elementos da prática assistencial.

    Cabe mencionar a trajetória de reflexão iniciada com as iniciativas da chamada Integração Docente-Assistencial (Marsiglia, 1995), que teve desdobramentos para avançar na noção de parceria ensino-serviços (Kisil; Chaves, 1994) e acabou por influenciar os textos das Diretrizes Curriculares Nacionais e subsequentes programas de indução de mudanças na graduação, como o Promed e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Brasil, 2005b, 2007b, 2007c, 2007d). Muito mais poderia ser citado sobre o modus operandi da educação superior brasileira e suas instâncias regulatórias, mas com nosso foco nas residências em saúde nos contentaremos, por ora, em mencionar que estão situadas no Ministério da Educação as duas principais instâncias de regulação, monitoramento e avaliação das residências, a Comissão Nacional de Residência Médica e a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional.

    Dito isso, comentamos o terceiro quadrante no sentido horário, aquele que se atém aos assuntos mais diretamente afeitos à Saúde (quadrante superior direito). Como mencionado, a Constituição federal (1988), em seu Art. 200, inciso III, estabelece que o Sistema Único de Saúde deve ordenar a formação profissional em saúde (demandando interlocução permanente com o aparato certificativo da Educação). Nesse quadrante, situa-se o aporte teórico-conceitual que perpassa os princípios do SUS, a começar pela noção ampliada de saúde e os direitos da cidadania, os modelos tecnoassistenciais e a polissêmica noção de integralidade (Mattos, 2001), apontando para a interdependência dos elementos do ciclo promoção-prevenção-assistência-reabilitação, e para o trabalho interprofissional e intersetorial, em rede. Há de se considerar a transição epidemiológica, com forte presença de doenças crônico-degenerativas (e, no caso brasileiro, agravos decorrentes de acidentes e violências), que, associados ao envelhecimento populacional (transição demográfica), impõem consequências para o cuidado, com destaque para a longitudinalidade da atenção. A cronicidade suscita a necessidade de negociar condutas e sentidos com os usuários (que precisam de acompanhamento de médio e longo prazo), estabelecendo relações de cooperação e competência comunicacional, com consequências para o provimento de especialistas. Além da complexidade inerente à gestão das residências, o atendimento às necessidades de saúde implica que as instituições formadoras participem, em distintos graus e âmbitos, de fóruns de governança, como será aprofundado na sequência.

    Dito isso, nosso olhar para o contexto conceitual da análise da formação de residentes volta-se ao quadrante inferior direito do mapa. Do ponto de vista teórico, aliás, analisar a residência demanda incorporar elementos da análise do Trabalho em saúde: condições de trabalho, organização do processo de trabalho, disponibilidade e gestão de trabalhadores estão associados aos temas típicos dos estudos da força de trabalho em saúde, cuja literatura especializada vem se expandindo e sofisticando, com destaque para as dinâmicas do emprego (Dal Poz, 2013). Em estudo anterior verificamos, entre outros, os transtornos causados pela precarização na oferta de programas de residência (Aguiar, 2017d).

    1.1 Ênfases do estudo

    Nosso projeto priorizou seis grupos temáticos (ênfases) nas triagens e análises, de modo a mapear conteúdos estratégicos da literatura indexada sobre residências em saúde no Brasil. Oriundas do conhecimento prévio sobre o assunto, as seis ênfases foram:

    Ênfase 1: Currículo e abordagem por competências na formação especializada no modelo residência;

    Ênfase 2: Avaliação do desempenho dos residentes;

    Ênfase 3: Ensino-aprendizagem de habilidades/técnicas inerentes às especialidades;

    Ênfase 4: Estratégias educacionais mediadas por tecnologias;

    Ênfase 5: Perspectivas de residentes, ex-residentes, preceptores e gestores sobre a oferta de programas de residência;

    Ênfase 6: Instâncias e mecanismos de gestão e governança da residência.

    Na sequência explicitamos algumas premissas para a escolha das seis ênfases:

    1.1.1 Ênfase 1: Currículo e abordagem por competências na formação especializada no modelo residência

    Nas últimas décadas o conceito de competência informa o debate sobre políticas educacionais, abarcando concepções diferentes (e com consequências socioinstitucionais distintas) (Aguiar; Ribeiro, 2010; Ramos, 2002). Esse conceito polifônico, bastante questionado por estudiosos críticos do currículo, teve uma apropriação potencialmente positiva na área de saúde, ao resgatar a importância da integração teoria-prática: já não é suficiente uma adequada seleção curricular de conteúdos teóricos, a formação em saúde é composta de conhecimentos, habilidades e atitudes, cuja adequada orquestração pelo especialista daria ensejo às boas práticas (Aguiar et al., 2017a). Assim, o desenvolvimento de currículos para residências experimenta dilemas: em um tempo restrito, é necessário desenvolver técnicas e incorporar o uso de tecnologias, mediante aquisição de conhecimentos e aprimoramento de atitudes, sem minimizar as capacidades para identificar e atender a necessidades de saúde da população.

    Na presente pesquisa, buscamos narrativas sobre currículo e sobre competência no ensino e nas práticas profissionais, com particular interesse na integração entre teoria-prática e na interface entre formação e trabalho. Apesar de informar o debate da formação em saúde em nível nacional e internacional, o conceito de competência tem sido simplificado como conjunto de atributos individuais. Cabe destacar, no entanto, o caráter sócio-histórico da competência (Aguiar; Ribeiro, 2010), distinta da mera habilidade (ser competente não se limita a utilizar bem as técnicas).

    Adotamos, portanto, a noção de competência como a capacidade (abstrata) de fazer sentido de elementos dos contextos de prática associando-os com elementos da técnica e respectivos conhecimentos e atitudes. Se as habilidades são observáveis, a competência é apenas inferível. Mais recentemente a oferta de oportunidades de trabalho para residentes em contextos diversos fomenta o desenvolvimento de competência de forma adequada às necessidades do processo de trabalho em vários cenários (atenção primária, ambiente comunitário, ambulatórios e enfermarias etc.), o que favorece a capacidade de levar em conta elementos de contexto nas decisões de conduta.

    1.1.2 Ênfase 2: Avaliação do desempenho dos residentes

    A avaliação educacional está implicada em diferentes âmbitos dos processos institucionais e pedagógicos, podendo incluir a avaliação de cursos e programas, da atuação docente, além do desempenho do estudante (Puccini; Sampaio; Batista, 2008). Nos últimos anos, no Brasil, ampliou-se a compreensão sobre a importância da avaliação da aprendizagem no contexto das inovações na formação profissional em saúde, especialmente nos cursos de graduação (Belém et al., 2018).

    A adequada aferição da aprendizagem é um tema que avançou bastante na literatura educacional, com acúmulo de evidências psicométricas e reflexões sobre a validade e confiabilidade de métodos e instrumentos. Os limites de um único método para avaliar adequadamente as capacidades do educando na prática também vêm sendo documentados.

    Além do conhecimento teórico, as residências têm a incumbência de preparar os futuros especialistas no desempenho de inúmeras técnicas, associado à adoção de uma atitude profissional compatível com as boas práticas. Cabe avançar na problematização envolvendo os diversos interessados, das estratégias e regras de avaliação que abranjam conhecimentos, habilidades e atitudes, idealmente de forma contextualizada. Para tal, é necessário considerar a realidade dos cenários de prática, e os limites e possibilidades das avaliações formativas (estruturadas e planejadas) e somativas (certificativas) e do feedback no cotidiano do trabalho.

    1.1.3 Ênfase 3: Ensino-aprendizagem de habilidades/técnicas inerentes às especialidades

    As residências em saúde são processos educativos incumbidos de oferecer treinamentos, sob supervisão, de habilidades que sejam técnica e socialmente essenciais para a prática do especialista. Com o contínuo desenvolvimento das técnicas, novas habilidades passam a compor o cardápio da especialidade. Ocorre que os serviços em que as residências são oferecidas não necessariamente disporão de condições para treinamento de todas as habilidades desejáveis, em quantidade e qualidade. Elementos intrínsecos à boa prática e ao desempenho da especialidade podem gerar alguma controvérsia, além do que as habilidades implicam um grau expressivo de incorporação de conhecimento teórico.

    A integração teoria-prática, no bojo dos processos de trabalho em que a formação ocorre, pode gerar tensões na relação entre residentes (tipicamente recém-saídos da graduação) e preceptores. É necessário planejar o que cada residente treinará, quantas vezes o fará, com que graus de autonomia ao longo do percurso formativo, garantindo adequação e segurança do treinamento (até mesmo para o paciente) e a conexão da aprendizagem técnica com a teoria subjacente). A variedade de habilidades e técnicas é imensa, nas residências médicas e em área profissional em saúde. As diferentes carreiras utilizam tecnologias diagnósticas e terapêuticas inerentes à sua cultura tecnoprofissional, cabendo aos processos formativos captarem e oferecerem conteúdos característicos dos campos e dos núcleos de saberes, avançando na construção da chamada equipe integração (Peduzzi, 2001).

    É esperado que as decisões pedagógicas sejam revistas periodicamente, na medida em que mudam os padrões de boas práticas e entram em cena novas tecnologias assistenciais e avaliativas. Tudo isso impõe aos responsáveis pela oferta dos programas muitos desafios, como a inserção dos treinamentos no contexto de processos de trabalho frequentemente onerados pela pressão de demanda (o que ocasiona dificuldades de alocação de tempo, espaço e supervisão dos treinamentos).

    A capacidade de bom desempenho de habilidades inerentes às especialidades é atributo esperado para os egressos das residências, e, pelo volume de investimento dos serviços/programas, cabe ser investigado na nossa análise da literatura especializada.

    1.1.4 Ênfase 4: Estratégias educacionais mediadas por tecnologias

    A residência é uma modalidade formativa com forte componente presencial e prático. Com o desenvolvimento técnico das especialidades, muitas tecnologias de diagnóstico e terapêutica são regularmente incorporadas às boas práticas. Nas últimas duas décadas, no entanto, observa-se a presença constante das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) nas práticas em saúde e na supervisão de residentes.

    Inovações incluem a incorporação de TICs como apoio ao ensino-aprendizagem, por exemplo, por meio da utilização de bases de dados bibliográficos informatizadas. As TICs também podem ser de grande valia na gestão dos programas (Ênfase 6) e na logística e avaliação dos residentes (Ênfase 2), por exemplo, em função da diversificação de cenários de prática. A incorporação de estratégias, métodos e técnicas de ensino mediadas por tecnologias demanda expertise, o que inclui capacitação e estímulo ao desenvolvimento pedagógico de preceptores. Em outros países, como a Espanha (Aguiar et al., 2017c), plataformas eletrônicas foram desenvolvidas para esse fim.

    Quando se trata de modalidades de ensino, presencial e a distância, cabe analisar técnicas e ferramentas de informática, até mesmo para treinamentos simulados, que aportem elementos de inovação. Buscamos identificar na literatura possibilidades da aprendizagem mediadas por tecnologias e novas modalidades de avaliação (como o portfólio eletrônico). O desenvolvimento de Ambientes Virtuais de Aprendizagem já ocorre em algumas residências brasileiras, podendo ser difundido e aperfeiçoado. Com a pandemia de SARS-CoV-2, a partir de 2020, o ensino em saúde precisou adaptar-se. Nossa expectativa é que, nos anos subsequentes à declaração da pandemia, a educação superior, incluindo as residências em saúde, avance no desenvolvimento de estratégias formativas mediadas por tecnologias.

    1.1.5 Ênfase 5: Perspectivas de residentes, ex-residentes, preceptores e gestores sobre

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