Direito das famílias: por juristas brasileiras
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Sobre este e-book
Embora existam construções jurídicas que remontam à formação do direito romano-germânico, mantendo a mesma sintaxe até hoje, como a pessoa, a família, a propriedade e os contratos, no aspecto semântico sofreram alterações importantes ao longo de toda a História.4 O que se compreende por família nos dias atuais é bem diferente do que se compreendia no apogeu de Roma, no período do Brasil-Colônia e na época de publicação do nosso primeiro Código Civil, por exemplo.
Isso demanda uma releitura crítica das categorias fundamentais ao Direito Civil, com a finalidade de promover sua requalificação em harmonia com o Direito Constitucional, a História, a Sociologia e a Antropologia, permitindo-lhes ainda a necessária correspondência com a realidade social vigente.5 O significado de família, por exemplo, sofreu transformação expressiva, inclusive, no plano jurídico.
Mais recentemente, o Direito das Famílias tem se modificado com invulgar velocidade. Foram mudanças no âmbito do casamento e da união estável, nas relações de filiação, com a incorporação do critério da socioafetividade e a emergência da multiparentalidade. Sem mencionar a guinada no âmbito do direito protetivo que inaugura o sistema de apoio, introduzido pela Lei Brasileira de Inclusão e pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Dispõem preponderantemente sobre situações subjetivas existenciais, a despeito das questões subjetivas patrimoniais que lhes são acessórias, a exemplo, do regime de bens, do bem de família, da administração e do usufruto dos bens dos filhos incapazes.
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Direito das famílias - Amanda Florêncio Melo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
D598
Direito das famílias [recurso eletrônico] : por juristas brasileiras / Amanda Florêncio Melo ... [et al.] ; coor
736 p. : ePUB.
Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-5515-557-0 (Ebook)
1. Direito. 2. Direito de família. I. Melo, Amanda Florêncio. II. Pimentel, Ana Beatriz Lima. III. Matos, Ana Carla Harmatiuk. IV. Teixeira, Ana Carolina Brochado. V. Nevares, Ana Luiza Maia. VI. Lins, Ana Paola de Castro e. VII. Costa, Ana Paula Correia de Albuquerque da. VIII. Farias, Andressa de Figueiredo. IX. Santos, Andressa Regina Bissolotti dos. X. Pomjé, Caroline. XI. Oliveira, Catarina. XII. Vieira, Cláudia Stein. XIII. Mucilo, Daniela. XIV. Teixeira, Daniele Chaves. XV. Brandão, Débora. XVI. Cruz, Elisa. XVII. Lobo, Fabíola Albuquerque. XVIII. Tartuce, Fernanda. XIX. Piovesan, Flávia. XX. Lima, Francielle Elisabet Nogueira. XXI. Hironaka, Giselda Maria Fernandes Novaes. XXII. Menezes, Herika Janaynna Bezerra de. XXIII. Castro, Isabella Silveira de. XXIV. Pereira, Jacqueline Lopes. XXV. Menezes, Joyceane Bezerra de. XXVI. Oliveira, Lígia Ziggiotti de. XXVII. Brasileiro, Luciana. XXVIII. Chagas, Márcia Correia. XXIX. Dias, Maria Berenice. XXX. Moraes, Maria Celina Bodin de. XXXI. Sá, Maria de Fátima Freire de. XXXII. Holanda, Maria Rita de. XXXIII. Xavier, Marília Pedroso. XXXIV. Ferst, Marklea da Cunha. XXXV. Oppermann, Marta Cauduro. XXXVI. Fachin, Melina Girardi. XXXVII. Rocha, Patrícia Ferreira. XXXVIII. Ciríaco, Patrícia K. de Deus. XXXIX. Rodrigues, Renata de Lima. XL. Multedo, Renata Vilela. XLI. Maia, Roberta Mauro Medina. XLII. Meireles, Rose Melo Vencelau. XLIII. Marzagão, Silvia Felipe. XLIV. Fleischmann, Simone Tassinari Cardoso. XLV. Lima, Taisa Maria Macena de. XLVI. Título.
2022-1791
CDD 342.16
CDU 347.61
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índices para Catálogo Sistemático:
1. Direito de família 342.16
2. Direito de família 347.61
Direito das famílias - por juristas brasileiras . Editora Foco.2022 © Editora Foco
Coordenadores:Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carla Harmatiuk Matos
Autores: Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carla Harmatiuk Matos Autoras: Amanda Florêncio Melo, Ana Beatriz Lima Pimentel, Ana Carla Harmatiuk Matos, Ana Carolina Brochado Teixeira, Ana Luiza Maia Nevares, Ana Paola de Castro e Lins, Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa, Andressa de Figueiredo Farias, Andressa Regina Bissolotti dos Santos, Caroline Pomjé, Catarina Oliveira, Cláudia Stein Vieira, Daniela Mucilo, Daniele Chaves Teixeira, Débora Brandão, Elisa Cruz, Fabíola Albuquerque Lobo, Fernanda Tartuce, Flávia Piovesan, Francielle Elisabet Nogueira Lima, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Herika Janaynna Bezerra de Menezes, Isabella Silveira de Castro, Jacqueline Lopes Pereira, Joyceane Bezerra de Menezes, Lígia Ziggiotti de Oliveira, Luciana Brasileiro, Márcia Correia Chagas, Maria Berenice Dias, Maria Celina Bodin de Moraes, Maria de Fátima Freire de Sá, Maria Rita de Holanda, Marília Pedroso Xavier, Marklea da Cunha Ferst, Marta Cauduro Oppermann, Melina Girardi Fachin, Patrícia Ferreira Rocha, Patrícia K. de Deus Ciríaco, Renata de Lima Rodrigues, Renata Vilela Multedo, Roberta Mauro Medina Maia, Rose Melo Vencelau Meireles, Silvia Felipe Marzagão, Simone Tassinari Cardoso Fleischmann e Taisa Maria Macena de Lima
Diretor Acadêmico: Leonardo Pereira
Editor: Roberta Densa
Assistente Editorial: Paula Morishita
Revisora Sênior: Georgia Renata Dias
Revisora: Simone Dias
Capa Criação: Leonardo Hermano
Diagramação: Ladislau Lima e Aparecida Lima
Produção ePub: Booknando
DIREITOS AUTORAIS: É proibida a reprodução parcial ou total desta publicação, por qualquer forma ou meio, sem a prévia autorização da Editora FOCO, com exceção do teor das questões de concursos públicos que, por serem atos oficiais, não são protegidas como Direitos Autorais, na forma do Artigo 8º, IV, da Lei 9.610/1998. Referida vedação se estende às características gráficas da obra e sua editoração. A punição para a violação dos Direitos Autorais é crime previsto no Artigo 184 do Código Penal e as sanções civis às violações dos Direitos Autorais estão previstas nos Artigos 101 a 110 da Lei 9.610/1998. Os comentários das questões são de responsabilidade dos autores.
NOTAS DA EDITORA:
Atualizações e erratas: A presente obra é vendida como está, atualizada até a data do seu fechamento, informação que consta na página II do livro. Havendo a publicação de legislação de suma relevância, a editora, de forma discricionária, se empenhará em disponibilizar atualização futura.
Erratas: A Editora se compromete a disponibilizar no site www.editorafoco.com.br, na seção Atualizações, eventuais erratas por razões de erros técnicos ou de conteúdo. Solicitamos, outrossim, que o leitor faça a gentileza de colaborar com a perfeição da obra, comunicando eventual erro encontrado por meio de mensagem para [email protected]. O acesso será disponibilizado durante a vigência da edição da obra.
Data de Fechamento (04.2022)
2022
Todos os direitos reservados à
Editora Foco Jurídico Ltda.
Avenida Itororó, 348 – Sala 05 – Cidade Nova
CEP 13334-050 – Indaiatuba – SP
E-mail: [email protected]
www.editorafoco.com.br
Sumário
CAPA
FICHA CATALOGRÁFICA
FOLHA DE ROSTO
CRÉDITOS
APRESENTAÇÃO
Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carla Harmatiuk Matos
PARTE I
A FAMÍLIA NA ORDEM CIVIL-CONSTITUCIONAL
A INCESSANTE TRAVESSIA DOS TEMPOS E A RENOVAÇÃO DOS PARADIGMAS: A FAMÍLIA, SEU STATUS E SEU ENQUADRAMENTO NA PÓS-MODERNIDADE
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO MODULADORES DAS NOVAS FAMÍLIAS
Ana Beatriz Lima Pimentel, Patrícia K. de Deus Ciríaco e Andressa de Figueiredo Farias
A FAMÍLIA E O DIREITO DE PERSONALIDADE: A CLÁUSULA GERAL DE TUTELA NA PROMOÇÃO DA AUTONOMIA E DA VIDA PRIVADA
Joyceane Bezerra de Meneze
POSSÍVEIS APORTES CRÍTICOS DE GÊNERO EM DIREITO DAS FAMÍLIAS
Lígia Ziggiotti de Oliveira
A JUDICIALIZAÇÃO DA FAMÍLIA E A (DES)PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS
Renata Vilela Multedo
PARTE II
MODELOS DE CONJUGALIDADE E CONVIVENCIALIDADE
CASAMENTO VÁLIDO
Marília Pedroso Xavier
CONJUGALIDADE INFANTO-JUVENIL
Elisa Cruz
INVALIDADE DO CASAMENTO
Débora Brandão e Daniela Mucilo
A SEPARAÇÃO E O DIVÓRCIO APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010
Cláudia Stein Vieira
UNIÃO ESTÁVEL
Joyceane Bezerra de Menezes
UNIÕES SIMULTÂNEAS
Luciana Brasileiro e Maria Rita de Holanda
FAMÍLIAS LGBTI+
Andressa Regina Bissolotti dos Santos e Francielle Elisabet Nogueira Lima
A FAMÍLIA RECOMPOSTA: EM BUSCA DE SEU PLENO RECONHECIMENTO JURÍDICO
Ana Carla Harmatiuk Matos
PARTE III
SITUAÇÕES SUBJETIVAS PATRIMONIAIS
REGIMES DE BENS
Ana Luiza Maia Nevares
BEM DE FAMÍLIA
Herika Janaynna Bezerra de Menezes e Ana Paola de Castro e Lins
USUFRUTO E ADMINISTRAÇÃO DE BENS DE FILHOS MENORES
Marklea da Cunha Ferst
USUCAPIÃO FAMILIAR, COMPOSSE E CONDOMÍNIO
Roberta Mauro Medina Maia
PARTE IV
RELAÇÕES DE PARENTESCO
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS ÀS RELAÇÕES DE PARENTESCO
Fabíola Albuquerque Lobo
FILIAÇÃO BIOLÓGICA, SOCIOAFETIVA E REGISTRAL
Rose Melo Vencelau Meireles
MULTIPARENTALIDADE
Catarina Oliveira e Patrícia Ferreira Rocha
EFEITOS DA MULTIPARENTALIDADE NA FILIAÇÃO
Fabíola Albuquerque Lobo
AUTORIDADE PARENTAL E O ASPECTO FINALÍSTICO DE PROMOVER O DESENVOLVIMENTO E BEM-ESTAR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Ana Carolina Brochado Teixeira
RELAÇÕES DE COPARENTALIDADE: AUTONOMIA E RESPONSABILIDADE EM FAMÍLIA
Simone Tassinari Cardoso Fleischmann
ADOÇÃO: O PRIORITÁRIO DIREITO A UM LAR
Maria Berenice Dias e Marta Cauduro Oppermann
DIREITOS REPRODUTIVOS E PLANEJAMENTO FAMILIAR: REFLEXÕES SOBRE O RECURSO À REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa
OS DIREITOS E DEVERES DOS AVÓS
Daniele Chaves Teixeira e Caroline Pomjé
PARTE V
ALIMENTOS
ALIMENTOS
Joyceane Bezerra de Menezes, Márcia Correia Chagas e Amanda Florêncio Melo
EXECUÇÃO DE ALIMENTOS: REFLEXÕES SOB A PERSPECTIVA DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR
Fernanda Tartuce
PARTE VI
PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS
VULNERABILIDADES NAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA: O PROBLEMA DA DESIGUALDADE DE GÊNERO
Maria Celina Bodin de Moraes
A PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS: PERFIL CONTEMPORÂNEO DA TUTELA, DA CURATELA E DA TOMADA DE DECISÃO APOIADA
Renata de Lima Rodrigues
CURATELA E TOMADA DE DECISÃO APOIADA
Jacqueline Lopes Pereira
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES, FAMÍLIA E VIOLÊNCIA: REFLEXÕES À LUZ DA LEI 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA)
Flávia Piovesan e Melina Girardi Fachin
A FAMÍLIA NO AMPARO À PESSOA IDOSA
Taisa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá
ALIENAÇÃO PARENTAL: CONCEITO, EFEITOS E PARTICULARIDADES
Silvia Felipe Marzagão
ABANDONO AFETIVO: REFLEXÕES CRÍTICAS A PARTIR DOS POSICIONAMENTOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Isabella Silveira de Castro
Pontos de referência
Sumário
Capa
APRESENTAÇÃO
Silenciosas, as mulheres? – Mas são elas as únicas que escutamos, dirão alguns de nossos contemporâneos, que, com certa angústia, têm a impressão de sua irresistível ascensão e de sua fala invasora. ‘Elas, elas, elas, elas, sempre elas, vorazes, tagarelas... ’, mas não somente nos salões de chá, transbordando agora do privado para o público, do ensino para o pretório, dos conventos para a mídia e até mesmo ó Cícero, Saint-Just e Jaurès, para o Parlamento. (PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSP, 2005, p. 09).
A história das mulheres é muito recente: remonta às décadas de sessenta e setenta do Século XX, quando despertou o interesse das ciências humanas. A ausência de fontes confiáveis foi a principal dificuldade enfrentada pelos historiadores que se envolveram com a análise do papel histórico das mulheres nas sociedades. Até mesmo as frias e objetivas amostras estatísticas omitiam a figura feminina, enquanto a documentação pública era lacônica, e os escritos particulares quase sempre eram destruídos para preservar a imagem e a intimidade da família.¹ Nem mesmo os estudos sobre a família traziam informações significativas sobre o comportamento das mulheres. Sobravam discursos e representações masculinas sobre elas, mas faltavam autorregistros sobre como pensavam, sentiam ou enxergavam o mundo e a si mesmas. Do silêncio, escapavam apenas as místicas e as literatas, as santas e as loucas, que se faziam ouvir por meio de suas orações e poesias. E ainda assim, liam-se apenas os escritos femininos sobre moda e assuntos domésticos que despontavam a partir do século XVIII.²
Após as duas Grandes Guerras do Século XX, as mulheres romperam a barreira do silêncio. A partir de então, houve um paulatino ingresso no meio universitário, que se seguiu de uma maior participação delas nos quadros docentes e nas diversas carreiras profissionais. Atualmente, estão presentes em todas as atividades, inclusive na política, como líderes de destaque mundial, mas a sua participação nos espaços de poder ainda está aquém.
Uma análise específica sobre os currículos do curso de Direito mostra a preponderância da bibliografia masculina, e foram os homens que, nos últimos anos, explicaram a estrutura e a função dos diversos institutos, notadamente, do Direito Civil. A despeito da sua competência técnica, nem sempre se mostraram sensíveis ou atentos aos impactos decorrentes da discriminação de gênero e/ou das vulnerabilidades.
O presente livro, em sua segunda edição, inclui algumas das mulheres que têm escrito, nas suas áreas de atuação, uma nova
história que denuncia e reivindica por igualdade de gênero, atenção às vulnerabilidades e um olhar diferenciado sobre o cuidado, na tentativa de alinhar o Direito Civil aos direitos humanos e fundamentais. São elas, juristas brasileiras comprometidas com a tarefa de analisar criticamente o Direito, em especial, o Direito das Famílias. Tornaram-se audíveis nas Universidades, por meio de suas atividades de ensino e pesquisa, no Ministério Público, no Judiciário, na advocacia pública e privada. Seu desempenho tem deixado marcas indeléveis, tanto pela seriedade com a qual desempenham sua profissão, quanto por acreditarem em um Direito das Famílias democrático, atento às demandas sociais, aos direitos fundamentais e à autodeterminação da pessoa. Compartilham o entendimento de que é na família que melhor se experimentam o vínculo de solidariedade e os laços de afeto, sem a ingenuidade de imaginar o ambiente familiar como um locus imune ao conflito e à violência.
Na análise dos institutos do Direito das Famílias, as autoras adotam como pressuposto a percepção do Direito como um fenômeno social que transcende às categorias ortodoxas das codificações oitocentistas. Um Direito cuja matéria-prima são os fatos sociais, razão pela qual as soluções jurídicas são sempre contingenciais e adequadas aos contextos sociais específicos.³ Afinal, para fundamentar a sua obrigatoriedade, o Direito necessita de uma teoria do consenso social.
Embora existam construções jurídicas que remontam à formação do direito romano-germânico, mantendo a mesma sintaxe até hoje, como a pessoa, a família, a propriedade e os contratos, no aspecto semântico sofreram alterações importantes ao longo de toda a História.⁴ O que se compreende por família nos dias atuais é bem diferente do que se compreendia no apogeu de Roma, no período do Brasil-Colônia e na época de publicação do nosso primeiro Código Civil, por exemplo.
Isso demanda uma releitura crítica das categorias fundamentais ao Direito Civil, com a finalidade de promover sua requalificação em harmonia com o Direito Constitucional, a História, a Sociologia e a Antropologia, permitindo-lhes ainda a necessária correspondência com a realidade social vigente.⁵ O significado de família, por exemplo, sofreu transformação expressiva, inclusive, no plano jurídico.
Mais recentemente, o Direito das Famílias tem se modificado com invulgar velocidade. Foram mudanças no âmbito do casamento e da união estável, nas relações de filiação, com a incorporação do critério da socioafetividade e a emergência da multiparentalidade. Sem mencionar a guinada no âmbito do direito protetivo que inaugura o sistema de apoio, introduzido pela Lei Brasileira de Inclusão e pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Dispõem preponderantemente sobre situações subjetivas existenciais, a despeito das questões subjetivas patrimoniais que lhes são acessórias, a exemplo, do regime de bens, do bem de família, da administração e do usufruto dos bens dos filhos incapazes.
À medida que a rotina relacional da pessoa humana se expande, se modifica ou se inova, as normas sociais dispersas também vão, pouco a pouco, sendo alteradas para consolidar uma espécie de direito do quotidiano
, que finda por se converter em direito oficial.⁶ Foi assim com a juridicização da união de fato entre homem e mulher, estendida às convivências entre parceiros do mesmo sexo que também podem se casar; com a ascensão do vínculo socioafetivo no reconhecimento das relações de parentesco; com a multiparentalidade; com a ampliação das presunções de filiação no casamento; com o fim das cláusulas de dureza cerceadoras do divórcio; e com a possibilidade do dano moral nas relações familiares etc.
Toda abordagem jurídica sobre a família enfoca a pessoa como membro do grupo primordial e o seu bem-estar. Enquanto comunidade intermediária entre os Estados e os indivíduos, a função da família é a de possibilitar a realização das potencialidades existenciais, por meio da promoção do desenvolvimento da pessoa.⁷ Não se admite mais que o desenvolvimento da pessoa seja cerceado em nome de interesses supraindividuais da família. Isso não implica a supremacia absoluta dos direitos individuais, mas o reconhecimento da dimensão relacional da unidade familiar firmada na liberdade, na alteridade e na solidariedade. Com esteio no Direito Civil-Constitucional, o Direito das Famílias também busca compatibilizar os interesses relativos à liberdade e à solidariedade.
Nesse processo, a coerência do ordenamento jurídico, a supremacia das normas constitucionais e o conteúdo dos direitos fundamentais relativizam as fronteiras entre o direito público e o direito privado e limitam a extensão da autonomia privada. Dessa forma, os valores constitucionais influenciam as relações interprivadas, sejam como normas hermenêuticas ou como regras de comportamento, aptas a incidirem sobre as relações privadas, funcionando-as conforme os padrões axiológicos constitucionais.⁸ Assim, parece incompleta, senão equivocada, qualquer análise do Direito que dispense a fundamentação constitucional.
A motivação desse livro é a de trazer ao público as reflexões de juristas brasileiras sobre várias implicações das importantes transformações havidas no Direito das Famílias, sob fundamentação do Direito Civil-Constitucional.
Além do rigor científico que norteou a elaboração de cada capítulo, é possível identificar o genuíno compromisso que essas mulheres nutrem em relação ao tema central: são elas filhas, esposas, companheiras, irmãs ou mães/madrastas participativas. Durante o processo de construção do livro, foram muitas as conversas sobre as alegrias e as angústias experimentadas no processo de educar os filhos, na solução de conflitos familiares, no relacionamento com os maridos ou companheiros, no cuidado com os pais e com os irmãos, na administração da casa (com ou sem a participação dos companheiros). Nesse ínterim, algumas enfrentaram graves problemas de saúde consigo ou com seus familiares; alegraram-se pela cura ou sofreram perdas irreparáveis. Algumas tiveram filhos, outras se casaram. Os últimos dois anos, marcados pela pandemia da COVID-19, ressaltaram o seu papel nas atividades de cuidado, sobrecarregando-as desmesuradamente.
Em comum, todas revelaram um elã inspirador, fosse no trato com a família, ou na execução dos seus trabalhos: um enorme desejo de avançar, contribuindo ora para fortalecer os laços de afeto com os seus queridos familiares, ora para revigorar as bases teóricas da família democrática, espaço do diálogo e do desenvolvimento. Compartilhamos dúvidas, experiências profissionais e executamos projetos comuns, a exemplo deste livro que entregamos à comunidade jurídica.
Alegria é a emoção que sentimos ao vermos o livro concluído pela segunda vez. Cultivamos a esperança de que o Direito das Famílias escrito por essas mulheres juristas brasileiras, nem santas nem loucas (ou santas e loucas), seja de grande valia para a formação dos nossos graduandos e a prática dos aplicadores do Direito.⁹
Joyceane Bezerra de Menezes
Ana Carla Harmatiuk Matos
1. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSP, 2005, p. 16-20.↩
2. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Trad. Angela, M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2008, p. 25.↩
3. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Princípio do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. V.↩
4. HESPANHA, António Manuel. Cultura juridical européia. Síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 23.↩
5. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 24.↩
6. HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia. Síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 23.↩
7. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 244.↩
8. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana. Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p .28-29.↩
9. Nosso agradecimento às docentes/alunas integrantes do Grupo de Pesquisa Direito Civil na Legalidade Constitucional, Ana Beatriz Lima Pimentel, Ana Paola de Castro e Lins, Andressa Farias e Patrícia K. de Deus Ciríaco, que nos auxiliaram na compilação e na formatação dos textos.↩
Parte I
A FAMÍLIA NA ORDEM
CIVIL-CONSTITUCIONAL
A INCESSANTE TRAVESSIA DOS TEMPOS
E A RENOVAÇÃO DOS PARADIGMAS:
A FAMÍLIA, SEU STATUS E SEU
ENQUADRAMENTO NA PÓS-MODERNIDADE
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro Fundador e Diretora Nacional para a Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Ex-Procuradora Federal. Advogada, consultora e parecerista.
Sumário: 1. Um primeiro olhar por sobre o assunto – 2. Um breve traçado acerca do espírito e da configuração da pós-modernidade – 3. O direito de família, o direito das famílias, os direitos familiais: os membros da família contemporânea posam para outra foto sobre a lareira; 3.1 Sobre a lareira, a foto pós-moderna da conjugalidade; 3.2 Sobre a lareira, a foto pós-moderna da parentalidade – 4. Os marcos deixados em prol da reflexão – 5. Referências.
1. UM PRIMEIRO OLHAR POR SOBRE O ASSUNTO
Desde o final do século anterior e durante, principalmente, estes anos que marcam o início do novo século, muito se falou em pós-modernidade e muito se discutiu acerca do retrato e perfil da família, enquanto instituição perenemente inserida no contexto – histórico, político, econômico, social – da civilização humana.
A produção que tem derivado dessa formidável vertente de consagração do ancestral fenômeno de ajuntamento de pessoas à volta de um núcleo internalizado pelo matiz familiar é inegavelmente próspera, rica, intrigante e instigante. As formulações reflexivas, possíveis de serem desenvolvidas e realizadas, são inúmeras e extremamente coerentes com tudo aquilo que se vê hoje, como a estampa do núcleo que a família contemporânea transmite.
Esta família atual não é melhor e nem é pior que a família do passado, mas, certamente, muito diferente dos modelos familiais antecedentes, das estruturas de poder e de afeto que habitaram, construíram e modelaram os arquétipos anteriores a este que hoje conhecemos.
E é natural que assim seja, pois como num rio, onde as pedras que se esparramam pelo seu leito são distintas, se comparadas às mais próximas de sua origem ou nascente com aquelas que já estão mais próximas de sua vertente para o mar, de seu lugar de desaguar, enfim. As primeiras, mais cheias de arestas e mais rústicas, são distintas destas últimas, mais roliças e menos agressivas que aquelas. Ambas são extraordinariamente belas, com valor próprio, com finalidade e papéis muito claros e com distinção intrínseca, pois a água do rio, de tanto passar, modifica a forma e modela-lhes o perfil.
Modelos de família, ancestrais, feudais, modernas e pós-modernas – para deixar reduzido, em poucas variações, o percurso intenso – se sucederam, e a foto sobre a lareira foi se alterando com a mudança dos costumes, com a conversão ou inversão dos valores, com a introdução de novos comportamentos e de novos princípios, com o abandono de matrizes em desuso, e assim por diante.
Por meio dessa simbologia (da qual também me utilizo, agora) de mostrar a família por meio das fotos de um velho álbum, é de curiosa e real beleza a descrição que faz Luiz Edson Fachin.¹ O símbolo
adotado mostra as mudanças e as nuanças da família de antes e da família de agora, quer pela postura escolhida para sair
na foto, quer pela indumentária utilizada pelas pessoas, quer pelo jogo cênico preparado para o registro eterno. Mudam e colorem-se as fotos; muda e revigora-se a família.
A independência econômica da mulher a faz erguer-se, na foto, sair de trás do patriarca, levantar os olhos confiantes de quem, ao lado de seu parceiro de vida, organiza e administra a estrutura familiar. Quanto aos filhos, seu papel também deixa de ser secundário e eles assumem boa elevação econômica na ordem familiar, assim como se destacam pelas suas qualidades próprias, seu preparo intelectual e sua crescente capacidade de decisão. O divórcio, o controle da natalidade, a concepção assistida, bem como a reciprocidade alimentar, são valores novos que passam a permear o tecido familiar, para torná-lo mais arejado, mais receptivo, mais maleável, mais adaptável às concepções atuais da humanidade e da vida dos humanos. A fidelidade, como valor que não se desprendia da virtude e da abnegação no anterior tempo, hoje se descortina como a aspiração individualista do amor autêntico, não eivado de mentira ou de mediocridade, como descreve Gilles Lipovetsky em A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos tempos democráticos,² mas, acima de tudo, espalhado pela ideia de afetividade, como o grande parâmetro modificador das relações familiais, estando a querer demonstrar que o verdadeiro elo entre as pessoas envolvidas nessas relações, nesse núcleo, nesse tecido, consubstancia-se no afeto.
Não houve momento como esse, antes, seguramente. Não houve momento de reformulação das estruturas da família, através dos tempos, que tivesse dado o salto qualitativo em direção às emoções (performance maximamente otimizada do ser humano), sem ter que passar – obrigatória ou exclusivamente – pelas veredas de antes, quais sejam, o prumo político, a revisão social e/ou o planejamento econômico. Dito de outra forma: nem só de arquétipos da modernidade vive a instituição da família, nos dias atuais; outras causas concorrem, ao lado daqueles, para apresentar a contextualidade que se impregna de mudanças e rupturas e que se tem considerado ser a pós-modernidade.
O historiador, o filósofo e, com eles, o jurista passam a ter a visão cada vez mais aclarada do novo cenário, dos novos personagens, do novo script, sob o sugestivo título família na pós-modernidade
. Do que se trata, enfim? Como se processa esse fenômeno, essa mudança, essa ruptura? Há mudanças sem ruptura? A reconfiguração das instituições se dá de modo abrupto? Quando é que passamos a compreender o momento novo, a conclamada pós-modernidade
? Em que medida o tempo novo recepciona ou afasta o viés positivista de análise das relações familiais? Essas são as perguntas que pairam e solicitam respostas, ou esclarecimentos, ao menos.
Neste estudo, não se pretende oferecer as respostas (isso seria impossível, por certo), mas se deseja, ao menos, descortinar alguns esclarecimentos, ou melhor que isso, chamar à reflexão alguns pontos, algumas conjugações, certos conflitos e outras interações. Reflexões assim têm sido cada vez mais reclamadas exatamente por conta dos desafios da vivência contemporânea do direito, dos quais resulta sempre esta certeza de que a dimensão das relações humanas e jurídicas, hoje, bem difere e se contrasta com a dimensão dos mesmos planos, em tempo imediatamente anterior. Não se trata, advirta-se desde logo, de apenas uma nova moda por meio da qual se inventa como se lançar o olhar por sobre os mesmos fenômenos, ou instituições, ou situações de antes. Mas trata-se, diferentemente, de atender à urgência – que resulta da prática da vida dos homens modificada pelos novos ares – de se construir um perfil distinto de análise e apreciação das consequências que o estar-no-mundo faz acontecer.
Mudam os homens. Mudam seus agrupamentos sociais. Mudam as instituições. Mudam os institutos jurídicos. Muda a família. Mudam as relações familiais, não para serem outras, mas para desempenharem novos e distintos papéis. Constrói-se uma família eudemonista, na qual se acentuam as relações de sentimentos entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra as pressões econômicas e sociais. É o fenômeno social da família conjugal, ou nuclear ou de procriação, onde o que mais conta, portanto, é a intensidade das relações pessoais de seus membros, como já o dizem Oliveira e Muniz³ desde o início da década de 1990, entre nós.
O desapego às formulações do passado não quer significar que está melhor ou que está pior, este modelo familiar de agora – embora provavelmente esteja melhor, uma vez que a tendência de alteração procura levar, no mais das vezes, a um reconstituído – quer significar, certamente, que é preciso prestar grande atenção no que se apresenta de distinto, para que não se dê tratamento anacrônico a nenhuma das experiências vivenciadas pelos membros da família contemporânea, ou a nenhuma das relações humano-jurídicas entre eles desenvolvidas.
Essas mudanças são importantes e devem ser obrigatoriamente observadas e analisadas, uma vez que não vêm do nada, pois decorrem do fenômeno maior de reconstrução do pensar humano, seja pela erosão de valores, pela alteração de parâmetros de comportamento, pela decrepitude e pela inadequação das instituições aos desafios presentes, pelas mudanças socioeconômicas, pelas crises simultâneas que afetam diversos aspectos da vida organizada em sociedade, pela explosão de complexidade provocada pela emergência de novos conflitos socioinstitucionais, pela requalificação dinâmica dos modos de produção, pelas alterações profundas nos modos tradicionais de se conceber o ferramental jurídico para a construção de regras sociais...⁴ Seja como for, a mudança que se propala não se revelou de lugar nenhum. Ela se deu de modo contínuo; por isso faz sentido, e muito.
Especificamente no ambiente familiar, como é que tudo isso se espelha e reflete? O que a pós-modernidade promoveu de rupturas, mudanças e avanços, relativamente, ao tempo anterior? O que é exatamente esta etapa da vida da civilização humana que se tem denominado pós-modernidade? Como se apresenta a instituição da família, nesse novo tempo? Quais os papéis que desempenham contemporaneamente os seus membros? Do que é que se trata, afinal?
2. UM BREVE TRAÇADO ACERCA DO ESPÍRITO E DA CONFIGURAÇÃO DA PÓS-MODERNIDADE
⁵
Em Pós-modernismo, razão e religião, Ernest André Gellner, falecido em 1995, se referiu ao pós-modernismo de maneira nada receptiva, marcada pela sua indisposição à face do significado dessa concepção de dificílimo alcance. Disse ele que o pós-modernismo é um movimento contemporâneo, que é forte e está na moda. Mas afirmou que, sobretudo, não é completamente claro o que diabo ele é. Sem se dar por satisfeito acerca de sua dura crítica e ferrenha desconfiança, Gellner⁶ alfinetou que, na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos, concluindo que o pós-modernismo não apenas falha em praticar a claridade mas em ocasiões até a repudia abertamente...
Compreensível que assim tenha sido a visão do autor acerca do termo, tendo em vista sua preferência pelo positivismo e pela segurança que é conferida pelos fatos testáveis, conforme se pode verificar em suas palavras próprias, na mesma importante obra referida, quando diz que positivismo é a crença na existência e disponibilidade de factos objectivos, e, sobretudo, na possibilidade de explicar os ditos factos por meio de uma teoria objectiva e testável, ela própria não essencialmente ligada a nenhuma cultura particular, observador ou estado de espírito.⁷
Pelo viés oposto, o filósofo francês Jean-François Lyotard,⁸ falecido em 1998, foi um dos mais importantes pensadores na discussão da vivência de uma pós-modernidade, prestigiando-a – principalmente em sua obra denominada A condição pós-moderna – como verdadeiro rompimento com as antigas verdades absolutas, como marxismo e liberalismo, todas elas legítimas representantes da anterior era, à qual se convencionou denominar modernidade.
Como um e outro dos pensadores mencionados, as visões antagônicas se multiplicaram (e se multiplicam) por todos os lados, refletindo, aliás, aquilo que poderia ser considerado como a essência ou o espírito da modernidade, vale dizer, a preferência pelos pilares inamovíveis das certezas e das verdades, a maior parte delas tanto seguras quanto constrangedoras, segundo a minha visão pessoal.
Não seria razoável, nem justo, nem mesmo consentâneo com os meus aceites e com as minhas visões, se eu não abrisse espaço para registrar que nem tudo, na nova conformação pós-moderna, encontra-se adequadamente resolvido ou encaixado – e nem mesmo poderia estar, pois, para estar, esta tarefa teria que ser algo como que divina, ao menos... – o que reflete apenas a conclusão de que o confronto entre os paradigmas da modernidade e os da pós-modernidade são ambíguos às vezes, ou são superpostos outras vezes, ou são simplesmente conflitantes, ou sem registro de pertencerem à mesma classe evolutiva. A pessoa humana de hoje é o indivíduo de antes, sob o ponto de vista do invólucro, mas seu espaço, sua cena, seu papel, sua significância certamente são muito distintos, entre um e outro modo de se mirar o ser humano propriamente dito. Uma consequência curiosa disso – que pode ser uma visão boa ou não – é o fato de que o homem de hoje parece ter se interiorizado em suas projeções sociais, quer dizer, de um ou de outro modo, a preocupação com a subjetividade faz com que o esquadro da intersubjetividade seja mais apertado que antes.
Como já se deixou assente, antes: isso é bom, ou não? Significa progresso, avanço e construção sempre, ou não? Só o tempo verdadeiramente dirá, é claro. Ainda assim, prefiro testar. Incomoda-me muito a descoragem e a mesmice das coisas e das atitudes. Além disso, a desconstrução paradigmática em prol da pós-modernidade sempre me sugere o pensamento de oxigenar ranços ancestrais, e a ideia me agrada muito, mesmo que possa, eventualmente, deixar a descoberto a ansiada segurança que a era anterior tanto procurou conceber e estruturar. Ainda assim, prefiro testar.
Dessa forma, e na esfera de minha singular preferência científica e axiológica – direito e justiça – renovo a afirmação de que prefiro o justo ao seguro. Bem por isso, posso dizer que prefiro esta era que desponta, a pós-modernidade – que curiosamente já desponta batizada, ainda que não se saiba exatamente qual é o marco cronológico deste seu despontar –, pelo seu traço mais consentâneo com a contemporaneidade que permite a cada um de nós a chance de descobrir outra maneira de ver o mundo, e de se ver no mundo.
Um fenômeno assim não acontece de repente, num abrir e fechar de olhos – durmo moderno e acordo pós-moderno! –, mas é fruto de um razoavelmente lento evoluir de ideias, de concepções, de maneiras de se encarar e interpretar os fatos da vida e das relações humanas. Outro modo de visualizar, absorver e compreender o mundo e suas tramas todas, as que já eram tramas desde ontem, as que se descortinam agora e as que estão na iminência de se darem por conhecer. Não um modo ideológico, ou político, ou antropológico, apenas. Mas amplo e entrelaçado, com diversos vieses e muitas arestas; sempre um modo distinto do que se teve até então. Por isso, ao mesmo tempo que significa evolução, significa igualmente ruptura, pois a singela transformação não teria dado conta de uma (re)evolução assim, não fossem as indispensáveis quebras de grilhões – rupturas paradigmáticas, como se costuma dizer –, que tendessem a deixar permanecer engessado e endurecido o anterior modo de se entender os homens, seus múltiplos aspectos, suas inter-relações, a sua sociedade, as suas instituições.
Para o direito, e conforme entendo, uma ruptura, associada a um evoluir assim, produziu uma extraordinária maneira de se enxergar, tratar, estruturar, modelar e maximizar o fenômeno jurídico. A aplicação do direito não é mais apenas um ato de conhecimento, conforme expressa Luís Roberto Barroso,⁹ no sentido da revelação de uma norma preexistente, mas também um ato de vontade, no sentido da escolha de uma possibilidade dentre as diversas que se apresentam. E o que permite que isso aconteça, sem comprometimento desastroso do resultado – em perverso e prejudicial enfoque de justiça aleatoriamente desenhada, evocada e distribuída, como acontece com certas vertentes menos confiáveis do chamado direito alternativo –, reside no viés constitucionalizado que se transporta hoje para as lindes das relações privadas e do próprio Direito Civil, organizando o que se tem anunciado como Direito Civil constitucional. O mesmo autor citado escreve que o Direito Constitucional define a moldura dentro da qual o intérprete exercerá sua criatividade e seu senso de justiça, sem lhe conceder, contudo, um mandato para voluntarismos de matizes variados.¹⁰
Assim é.
E assim é porque o salto qualitativo que a pós-modernidade impôs ao direito, mormente ao Direito Civil, correu no sentido da sua releitura, do seu reposicionamento espacial e temporal, estruturando-se com isso uma dimensão nova que reaproxima direito e ética. Esse salto qualitativo demonstra-se, com relevante importância, no resgate ou revisão de princípios constitucionais que passam a ocupar papel de destaque na seara hermenêutica da aplicação do direito ao caso concreto. Os princípios passam a conviver com as regras jurídicas, não para abatê-las ou minimizá-las, mas para produzir, em razão do convívio, uma mais significativa aplicação do direito em prol da justiça, pelo fato da unidade que essa conjugação oferece ao sistema, pelo fato da síntese axiológica que os princípios abrigam, bem como pelo fato de que eles efetivamente passam a condicionar a atividade do intérprete na sua busca da formulação da regra genérica que vai reger a espécie, in casu.
Dito por outro modo, os princípios alcançam outra esfera valorativa no contexto hermenêutico, pois eles ganham foros de norma jurídica. Não no sentido da regra positiva, simplesmente, mas no sentido do arcabouço maior que ofertam, como mandamentos de otimização que são, na linguagem de Robert Alexy.¹¹ Diferentemente das regras – o autor expõe –, os princípios não têm a estreiteza biunívoca de comprometimento com o substrato fático típico, como o têm aquelas, que ou aceitam a subsunção dele ao seu tecido legislado, ou não o aceitam. Os princípios, como se pode distinguir, abrem os seus horizontes porque pretendem ser realizados amplamente, embora dentro dos naturais limites da possibilidade jurídica existente no caso concreto.
Os princípios são, enfim, a mais alta expressão da normatividade, porque a norma jurídica, como gênero, compreende os princípios e também as regras. As regras vigem, e os princípios valem, como tão rica e sinteticamente descreve Paulo Bonavides.¹² E por assim ser e por assim valer, os princípios redimensionados pela visão da pós-modernidade alimentam todo o sistema, não apenas a Constituição propriamente dita, não apenas a lei, mas o direito em toda a sua extensão, substancialidade, plenitude e abrangência.¹³
Certamente neste espaço se incluem o Direito Civil da contemporaneidade, o Direito de Família da pós-modernidade e os códigos que os regulamentam, que devem, por isso mesmo, ser compreendidos e aplicados conforme tal visão, sob pena de tornarem-se, em tempo brevíssimo, senão uma inútil montanha de papéis, recheada de inúteis regras.
3. O DIREITO DE FAMÍLIA, O DIREITO DAS FAMÍLIAS, OS DIREITOS FAMILIAIS: OS MEMBROS DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA POSAM PARA OUTRA FOTO SOBRE A LAREIRA
3.1 Sobre a lareira, a foto pós-moderna da conjugalidade
A pós-modernidade traz a novidade da valorização do prazer e o desassocia da noção de dever, fragilizando a fortaleza moralizadora dos séculos precedentes (pelo tanto que mais nos interessa, os séculos XIX e XX). As posturas ilegítimas que foram condenadas pelo moralismo sexual do anterior século, por exemplo, o excesso de relações e passatempos amorosos, a prática sexual depois dos cinquenta ou sessenta anos, a felação, a masturbação (mormente a recíproca), o direito ao orgasmo, a opção pelo amor livre e a prática homossexual (entre outras formas de afetividade), foram paulatinamente perdendo o grande peso pecaminoso e imoral, libertando as pessoas, não para o acesso livre e indiscriminado do prazer, mas para escolherem suas preferências e procurarem, sem essas amarras externas (e cruéis no mais das vezes), realizar os seus projetos pessoais de felicidade.
Não apenas isso, mas a condição matrimonializada foi sempre eternizada, com chance zero de desorganização ou desfazimento, especialmente se em favor da libertação da mulher, uma vez que sua projeção e atuação no meio familiar estavam muito mais voltadas à concepção, geração e criação de filhos do que propriamente ao prazer que lhe pudesse ser proporcionado pela relação sexual e afetiva com o seu partícipe de jornadas. A proclamação da pureza das mulheres, a condenação pelo adultério, a proibição do aborto e a recriminação às práticas contraceptivas concorreram no sentido de a elas não ser permitido o que aos homens era, ainda que sob os pudores silenciosos da falsa moral novecentista, por exemplo, o desfrute de prazeres efêmeros. A visibilidade do adultério masculino contava, por isso mesmo, com a complacência social e até mesmo religiosa em certos casos, minimizando, em favor dos homens, uma severidade e uma rigidez que sempre estiveram presentes na trajetória de condutas femininas.
Sem lar, não há família; sem família, não há moral; e, sem moral, não há sociedade nem pátria!, proclamou Jules Simon, político e pensador falecido em 1896, e que também foi primeiro-ministro da França entre os anos de 1876 e 1877. Compreensível que o dissesse, ao seu tempo. Incompreensível que, em tempos globalizados e redefinidos, ainda se afirme categoricamente, hoje, essa sofismática e excludente conclusão. Não perdeu a família, seu carisma, seu papel de refúgio e fortaleza para os anseios primeiros de cada um de seus membros. Não. A família ainda é, e sempre será, este locus privilegiado. Mas o que já parece não mais persistir é, provavelmente, essa sua tônica de indissolubilidade de vínculos, de obrigatoriedade de realização contínua, a qualquer preço ou custo, de amarras de não libertação.
Novos hábitos, novas aspirações, novos valores, novos costumes e novas permissões passaram assim a florescer, pela emergência da necessidade de novos e respiráveis ares, uma exigência do tempo proclamado como pós-moderno, enfim. E assim se deu, por exemplo, com a liberdade de expressão e a revalorização do sentimento, produzindo, entre outras coisas, o deslocamento do foco do interesse familiar para a criança (e não para a instituição propriamente dita), bem como a autorização para cada membro buscar a sua própria felicidade e bem-estar, valorizando mais a pessoa – cada pessoa – que o grupo constituído sob os ares da indestrutividade. Essa inversão paradigmática andou no sentido de deitar por terra as proclamações terríveis de outrora, por exemplo, a de que a unidade social é a família, e não o indivíduo.¹⁴
Ainda assim, não foi exatamente de um dia para o outro que o divórcio, como percurso para o reencontro de destinos mais promissores, instalou-se no mundo contemporâneo. As pressões de toda a sorte, morais, religiosas, éticas e culturais, empataram durante grande número de décadas, e até hoje, a aceitação plena do rompimento da matrimonialização das relações conjugais. Às mulheres divorciadas se imputou o status da indignidade; e aos seus filhos, a pecha de filhos sem pai. Idas e vindas de aceitação e de rejeição ao novo modus de desfazimento da sociedade conjugal foram amplamente sentidas e registradas ao longo da modernidade, como que em dança de caranguejos, com passos à frente e com passos atrás. Aliás, até os dias de hoje, em certas antigas e importantes culturas, ainda é assim (quando não se proíbe terminantemente a ideia de desfazimento do laço matrimonial). Paira uma ideia, em certos pensamentos e culturas, de que o rompimento dos laços de conjugalidade corresponderia a uma efetiva perda, e essa sensação é insuportável pelos que se alistam nas colunas dos eternos vencedores. Esse dado, de caráter e fundamento psicológico particularizado, não é tão estranho quanto possa parecer à primeira vista, nem é tão raro de ocorrer, como se possa pensar, em tempos de inauguração de um milênio novo e de um novo tempo de registros históricos da trajetória humana. Está próximo de nós, ainda que nos dias da pós-modernidade, inacreditavelmente.¹⁵
Embora isso, no entanto, tudo indica que caminhamos – a passos largos até – para uma revisão de concepção e de estrutura, acerca da família e do casamento, muito significativa. Marcos Colares, em feliz observação e síntese, escreveu que deve haver algo de novo no Direito de Família: a vontade de vencer os limites ridículos da acomodação intelectual. Porém, tudo será em vão sem a assunção pela sociedade de uma postura responsável em relação à família, transformando o texto da Constituição Federal em letra viva.¹⁶ Ele tem razão: a família de hoje tende a ser mais sincera, digamos assim, no sentido de que as hipocrisias e as simulações de antes já não encontram mais lugar em cena, estando esse espaço muito mais disponibilizado para os tratos francos e as rupturas consentidas e bem analisadas.
No enquadramento da família atual, uma gama maior de modelos se apresenta, assumindo ela um desenho plural, aberto, multifacetário e globalizado, servindo como lócus privilegiado para o desenvolvimento da personalidade humana, no dizer de Cristiano Chaves de Farias. Ele encaminha suas conclusões para dizer que o atual ambiente da pós-modernidade é o ambiente ideal para a realização espiritual e física do ser humano, ou seja, somente se justifica a proteção da família para que se efetive a tutela da própria pessoa humana. É, por conseguinte, a família servindo como instrumento para a realização plena da pessoa humana e não mais vislumbrada como simples instituição jurídica e social, voltada para fins patrimoniais e reprodutivos.¹⁷
3.2 Sobre a lareira, a foto pós-moderna da parentalidade
Na ambiência da parentalidade, o novo desenho das relações e das inter-relações igualmente se mostra modificado, registrando-se alterações que parecem indicar que ocorreram perdas
significativas para os membros da família, na tradição, nas normas e nos valores sociais, se o patamar de observação for o do clássico clã familiar. Assim, por exemplo, bem se sabe que, na sociedade brasileira colonial, era ao chefe da família que restava incumbido o poder de decidir o grau de instrução, ou a profissão, bem como as escolhas sexuais e afetivas de todos aqueles que a ele se encontravam relacionados, sob dependência familiar.¹⁸
Nesse antigo modelo de família, o lar se compunha de um grande número de pessoas, considerando-se a prole numerosa, os agregados, os aparentados de toda a sorte e os serviçais, todos se misturando pelo espaço amplo durante todo o tempo, o que impedia a consolidação de maior intimidade ou amizade entre os membros, tornando os relacionamentos muito sérios, rigorosos, rígidos e severos, sem grande manifestação de afetividade ou de cumplicidade. Porém, espaço esse que se tornava pequeno para as discussões e exposição de pontos de vista, as regras seculares se mantinham com eficiência, e a transmissão dos valores, como tradição e obediência, se processava sem tumultos, de uma geração para outra, de cima para baixo.
O século XIX, contudo, especialmente na segunda metade, testemunhou uma significativa mudança no perfil da família brasileira que, graças a uma série de fatores importantes, como a urbanização das cidades, a chegada da luz elétrica, a introdução de modos e costumes europeus trazidos pela corte portuguesa, a mesclagem de culturas por força do aumento do ciclo imigratório, adquiriu um retrato mais afetivo, diga-se assim, mais voltado à formação de família a partir da própria e pessoal escolha do par conjugal, o que refletiu na reformulação de papéis do homem e da mulher no cenário doméstico, bem como no mercado de trabalho. Outra passou a ser a dinâmica familiar, ainda que – é necessário que se registre – o jugo da mulher ao homem ainda permanecesse, de certa forma, dentro do lar, mesmo que ela já houvesse conquistado o direito ao trabalho, especialmente as mulheres da classe média, chamada burguesia.
Mas os ares da modernidade já se encontravam em circulação e, após os anos 1950 do anterior século, implantou e firmou-se mais e mais o perfil libertário que admitia mais e maiores escolhas dos indivíduos, inclusive dentro de seu ambiente familiar. Nas relações entre pais e filhos, o traço autoritário começa a ceder espaço para as decisões conjuntas e para o trato igualitário.¹⁹ De lá até este tempo, muita mudança ainda houve, mudança agora mais perceptível aos participantes da cena familiar porque acontece de maneira cada vez mais veloz, mais célere.
Há, na pós-modernidade, outro modo de estabelecimento das relações parentais, mormente entre pais e filhos, diferente do modelo anterior, certamente. Os modelos fixos do passado desconstroem-se, admitindo uma reorganização cênica no habitat familiar, no qual vivem os pais, os filhos, os avós, num interessante e diferenciado encontro geracional que, por tudo, é diferente das convivências de gerações de outrora.
Giddens, citado no excelente estudo de Maria Lúcia Rocha-Coutinho,²⁰ afirma com precisão que, nas sociedades anteriores, a tradição é o meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados em práticas sociais recorrentes, enquanto, nas sociedades modernas, as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, construtivamente, seu caráter.
Um fenômeno interessante de ser anotado é aquele que mostra que os filhos já não saem de seus lares originais tão logo deixem a adolescência, como foi comum no modelo de família imediatamente anterior a esse. Aquela expectativa que corria alegremente, há bem poucas décadas, a favor do momento de se alcançar a maioridade, já não se repete hoje, e os filhos se tornam adultos sem passar para a idade adulta, como é o interessante dizer de Elza Ramos,²¹ prolongando a coabitação entre gerações por razões que não foram consideradas ou vivenciadas nas sociedades anteriores a esta, por exemplo, o prolongamento dos estudos, as dificuldades econômicas, o mercado de trabalho mais fechado.
Embora conviventes, os estudos mostram²² que, na maioria dos casos, pais e filhos convivem bem e que os pais reconhecem o direito dos filhos a uma vida pessoal (e mesmo sexual), ainda que em situação de coabitação familiar, circunstância esta que nunca foi admitida no seio familiar há bem poucos anos antes. Esse lado positivo de permanência por mais tempo em casa apurou um convívio intergeracional diferenciado, pois as gerações (avós, pais e filhos) passaram a ter a oportunidade distinta de conviver, estando os mais jovens com a definição de suas faixas etárias para além da infância e da adolescência, o que pode tornar o diálogo bastante mais facilitado, ao menos na maioria dos casos.
Assim, e porque as relações interparentais têm sido moldadas muito mais sobre um patamar igualitário do que sob uma torre de poder, exclusivamente, convivem mais produtivamente os mais velhos com os mais jovens, cada um deles tendo muito o que ensinar ao outro reciprocamente, fazendo com que as relações hierárquicas, antes baseadas na obediência cega aos modelos de repetição tradicional, cedam espaço para os novos paradigmas norteadores das relações parentais no seio da família contemporânea, como o afeto, o amor, a cooperação, a mútua proteção e a sadia cumplicidade entre seus membros. E não se trata, por certo, de apenas mais um simples discurso de revisão sociológica, antropológica ou psicológica o que se registra aqui, mas, sim, de um convite à reflexão, no sentido de se perceber, com clareza, que os modelos legislados de uma sociedade em mutação devem estar atentos para a necessidade de acompanharem essas mudanças, sob pena de se tornarem anacrônicos e inúteis. Os códigos da contemporaneidade devem ser tais, portanto, que sejam não apenas abertos e permeáveis às novas visões, mas que também sejam despojados de preconceitos e de ranços próprios do passado, para que contenham regras e normas de efetiva eficácia e ajuste com o reclamo social atual.
4. OS MARCOS DEIXADOS EM PROL DA REFLEXÃO
Maria Lúcia Rocha-Coutinho diz que a família deve ser entendida em sua complexidade e discrepância de interesses, necessidades e sentimentos.²³ Com isso, a psicóloga quer mostrar que a família se movimenta com o movimento dos tempos, que se altera com a alteração dos costumes, que se modifica com a modificação das pessoas que a constituem, em suas relações interpessoais.
A foto da família da pós-modernidade retrata muito além de suas funções simplesmente sociais, econômicas, ideológicas, reprodutivas, religiosas, morais, para retratar também os projetos pessoais de cada um de seus membros, na busca pela sua realização e felicidade, sem perder de vista, contudo, a mesma projeção para o todo familiar. Isso porque a sociedade de hoje é assim. Os homens de hoje estão assim. A vida é esta, e as condutas humanas assim são realizadas. E, uma vez que a família está inserida em uma sociedade, ela não pode ficar à parte das alterações sociais, assim como, por outro ângulo, a sociedade não pode ficar alheia às mudanças no meio familiar.²⁴
Na visão de Giddens,²⁵ os relacionamentos familiares contemporâneos – quer no nível da conjugalidade, quer no nível da parentalidade – se baseiam na primazia do amor, e suas características principais poderiam ser assim enumeradas: a) são relações que se valorizam por si mesmas, e não por condições exteriores da vida social e econômica; b) são relações que primam pelo que podem trazer de bom para cada um dos membros do núcleo familiar envolvidos; c) organizam-se pelo viés reflexivo, no qual a comunicação é aberta e tem base contínua; d) são relações que tendem a se ver mais focadas na intimidade, na cumplicidade e na confiança mútua; e) são relações que transformam a obrigação do contato constante em compromisso ético entre os seus partícipes.
Enfim, a nova família da contemporaneidade não é melhor nem pior do que os modelos familiares que a antecederam, mas é diferente deles, como se disse inicialmente. Nessa família, os aspectos de positividade são bem-vindos e são capazes, quiçá, de deixar sem ênfase os aspectos que assim não sejam, porque aqueles são aspectos que dizem completo respeito às trocas, às verdades, à cooperação, à complexidade e, principalmente, ao afeto entre seus membros.
Para essa nova família, para essa nova foto sobre a lareira, o pensador do direito, o legislador e o aplicador das leis, todos devem estar muito atentos à nova e urgente maneira de se produzir a sua moldura jurídica, para fazê-lo de modo amalgamado ao modo ético de ser e de estar-no-mundo, nesta era de agora.
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ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Transmissão geracional e família na contemporaneidade. In: BARROS, Myriam Lins de (Org.). Família e gerações. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
1. FACHIN, Luiz Edson. Sobre os desafios e perspectivas da família, seus projetos e seus direitos, no repensar do Direito Civil. Arte Jurídica – Biblioteca Científica de Direito Civil e Processual Civil. Curitiba: Juruá, v. 3, n. 1, 2006.↩
2. LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos tempos democráticos. Tradução de Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005.↩
3. OLIVEIRA, J. L. C.; MUNIZ, F. J. F. Direito de família. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1990.↩
4. BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.↩
5. O texto utilizado na composição deste item do presente estudo foi escrito por esta autora para abrir, como prefácio, a obra coletiva organizada por Lucas Abreu Barroso (2006).↩
6. GELLNER, Ernest André. Pós-modernismo, razão e religião. Lisboa: Editora Instituto Piaget, 1994.↩
7. Idem, ibidem.↩
8. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.↩
9. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Coord.). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003.↩
10. Idem, ibidem, p. 29-30.↩
11. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Derechos Constitucionales, 1993.↩
12. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.↩
13. Idem, ibidem.↩
14. Conforme Paul Bourget, no prefácio de sua obra Un divorce, citado por Gilles Lipovetsky (2005, p. 19).↩
15. Assim como não está distante do nosso cotidiano, ainda hoje, aquela situação de pasmo total e concreto de alguém a respeito da dissolução do vínculo matrimonial de outrem, pelo divórcio. É comum se ouvir dizer, sob as luzes do espanto: Quem diria! Pareciam nascidos um para o outro! Coisas de ontem, ainda enterradas nos tempos de hoje...↩
16. COLARES, Marcos. O que há de novo em Direito de Família? In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: SÍNTESE, n. 4, p. 42-60, jan.-fev.-mar. 2000.↩
17. FARIAS, Cristiano Chaves de. A família da pós-modernidade: mais que fotografia, possibilidade de convivência. 2005. Disponível em: http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/civil_familia/artfamilia4.pdf. Acesso em: 25 mar. 2007.↩
18. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.↩
19. A própria autora deste estudo, nascida em 1950, conheceu esse desprendimento da autoridade paterna quando decidiu, aos 17 anos, na pequena e interiorana cidade paulista de São Carlos, deixar o lar para cursar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), na capital, com o intuito de seguir profissão que, aos olhos de seu pai, nascido nos primeiros anos do século XX, era profissão exclusiva para homens
.↩
20. ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Transmissão geracional e família na contemporaneidade. In: BARROS, Myriam Lins de (Org.). Família e gerações. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.↩
21. RAMOS, Elza. As negociações no espaço doméstico: construir a boa distância
entre pais e jovens adultos coabitantes
. In: BARROS, Myriam Lins de (Org.). Família e gerações. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.↩
22. Idem, p. 42-43.↩
23. ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Transmissão geracional e família na contemporaneidade. In: BARROS, Myriam Lins de (Org.). Família e gerações. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 97.↩
24. Idem, ibidem.↩
25. GIDDENS, A. The consequences of modernity. Cambridge: Polity Press, 1990, passim.↩
A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO MODULADORES
DAS NOVAS FAMÍLIAS
Ana Beatriz Lima Pimentel
Doutora em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Direito Público – Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Direito Privado pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR); Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professora de Direito Civil do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e do Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS). Membro do Grupo de pesquisa Direito Civil na Legalidade Constitucional do PPGD/UNIFOR. Advogada.
E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2752-5419.
Patrícia K. de Deus Ciríaco
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza (Conceito CAPES 6) e bolsista pelo Programa de Excelência Acadêmica - PROEX/CAPES. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas (Menção em Direito Constitucional) pela Universidade de Coimbra, PT. Professora, Pesquisadora e Advogada.
E-mail: [email protected]; https://orcid.org/0000-0002-2739-9213.
Andressa de Figueiredo Farias
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza (Conceito CAPES 6) e bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada.
E-mail: [email protected]; https://orcid.org/0000-0002-5027-1584.
Sumário: 1. Introdução – 2. A norma jurídica principiológica e seu impacto no direito de família – 3. Dos princípios constitucionais gerais aplicáveis ao direito das famílias; 3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana e as relações familiares; 3.2 Princípio da igualdade e a democratização da família; 3.3 Princípio da liberdade e da pluralidade das entidades familiares – 4. Princípios constitucionais específicos aplicáveis ao direito das famílias; 4.1 Princípio da afetividade como elemento modulador das relações na família; 4.2 Princípio da solidariedade familiar na construção coletiva da família; 4.3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; 4.4 Princípio da convivência familiar e o dever de cuidado – 5. Considerações finais – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Os ordenamentos jurídicos modernos refletem a insuficiência da abordagem positivista pautada na visão formal-dogmática do direito, cuja estrutura relegava ao indivíduo um papel abstrato, objetificando-o diante da mera aplicação silogística da norma.
Nesse sentido, os sucessivos eventos históricos que marcaram mudanças socioeconômicas ao redor do mundo – desde a ruptura do Estado Liberal até as experiências totalitárias vivenciadas no séc. XX – impuseram alterações no modo de interpretar e aplicar o Direito a partir das críticas às Constituições liberais, restritas a um programa político, como ao Direito Civil codificado, dotado de prescrições fechadas com a direção quase que ilimitada da autonomia privada e da liberdade contratual.
Essa nova perspectiva interpretativa da norma, em detrimento da influência da teoria pura do direito de Kelsen, ensejaram as constituições pós-liberais emergidas sobretudo após o marco da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, com ênfase para o princípio da dignidade da pessoa humana, na busca de uma sociedade livre, justa e solidária. Inaugurou-se o tempo de consagração da pessoa humana em si considerada, na medida de sua dignidade.
Atenta às mudanças de cada época, segmentos da sociedade brasileira apresentava a sua divergência à estrutura rígida imposta às famílias, contribuindo para o advento de leis como o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962), a que introduz o Divórcio (Lei 6.515/1977) e os dispositivos que anunciavam a igualdade entre os filhos. Contudo, foi apenas com a Constituição da República, de 05 de outubro de 1988, que se consagrou um novo feixe de valores jurídicos enunciativos desse novo modelo de família, caracterizada pelo perfil funcional instrumental e promocional do desenvolvimento da personalidade de seus membros.
Em atenção à força dos princípios constitucionais e a sua importância na modelagem e conformação da família, constrói-se o presente capítulo, cujo texto se divide em três seções: a primeira parte, analisa a Constituição de 1988, a partir da doutrina dworkiana sobre regras e princípios que ressalta a força normativa destes últimos e o seu caráter unificador do sistema jurídico; a segunda, aponta a premissa basilar de que os institutos do direito privado também estão vinculados a integridade das normas constitucionais. Para tanto, aponta-se a metodologia do Direito Civil Constitucional como