Tornar-se cristão nas esferas existenciais do cristianismo
De Juliano
()
Sobre este e-book
Relacionado a Tornar-se cristão nas esferas existenciais do cristianismo
Ebooks relacionados
Cristianismo Antigo para Tempos Novos: Amor à Bíblia, vida intelectual e fé pública Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO caminho rumo à existência autêntica na filosofia de Soren Kierkegaard Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCristianismo e Filosofia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFrancis Schaeffer e a vida cristã Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPluralismo e libertação Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPatrística - A criação do homem | A alma e a ressurreição | A grande catequese - Vol. 29 Nota: 5 de 5 estrelas5/5Outra espiritualidade: Fé, graça e resistência Nota: 4 de 5 estrelas4/5Todo Filósofo É Ateu? Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNeocalvinismo: Tradição e fundamentos Nota: 4 de 5 estrelas4/5A teologia das religiões em foco: Um guia para visionários Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO caminho espiritual de Dom Helder Camara Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFilosofia: Medieval E Moderna Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPatrística - Contra Celso - Vol. 20 Nota: 5 de 5 estrelas5/5A vida do lado de fora Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPatrística - A Trindade | Escritos éticos | Cartas - Vol. 37 Nota: 5 de 5 estrelas5/5Expandindo a vida cristã Nota: 5 de 5 estrelas5/5"Temor e Tremor": a religião além dos limites da mera razão Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCosmovisão cristã: como pensar as principais questões da vida à luz das Escrituras Nota: 5 de 5 estrelas5/5Espiritualidade Cristã Na Era Pós-moderna Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSanta Teresa de Jesus: Mística e humanização Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPatrística - Solilóquios e a vida feliz - Vol. 11 Nota: 5 de 5 estrelas5/5A alma do mundo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasVerdade Ou Mito Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFé Cristã e Ação Política: A relevância pública da espiritualidade cristã Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPilares Da Fé Cristã Nota: 0 de 5 estrelas0 notasIndivíduos sem-religião: Desencantamento metafísico do mundo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEspectro do ateísmo: Construções de uma alteridade antagônica na história do Brasil Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPatrística - Retratações - Vol.43 Nota: 5 de 5 estrelas5/5Patrística - Examerão - Vol. 26: Os seis dias da criação Nota: 4 de 5 estrelas4/5
Cristianismo para você
As cinco linguagens do amor - 3ª edição: Como expressar um compromisso de amor a seu cônjuge Nota: 5 de 5 estrelas5/5Bíblia sagrada King James atualizada: KJA 400 anos Nota: 4 de 5 estrelas4/5Ego transformado Nota: 5 de 5 estrelas5/5A cultura do jejum: Encontre um nível mais profundo de intimidade com Deus Nota: 5 de 5 estrelas5/5Maturidade: O Acesso à herança plena Nota: 5 de 5 estrelas5/5O Deus que destrói sonhos Nota: 5 de 5 estrelas5/5Graça Transformadora Nota: 5 de 5 estrelas5/5Gênesis - Comentários Expositivos Hagnos: O livro das origens Nota: 5 de 5 estrelas5/54 Temperamentos e a Espiritualidade Nota: 5 de 5 estrelas5/5Tudo que Quiser é Seu Nota: 4 de 5 estrelas4/5História dos Hebreus Nota: 4 de 5 estrelas4/512 dias para atualizar sua vida: Como ser relevante em um mundo de constantes mudanças Nota: 5 de 5 estrelas5/5Provérbios: Manual de sabedoria para a vida Nota: 5 de 5 estrelas5/5Comunicação & intimidade: O segredo para fortalecer seu casamento Nota: 5 de 5 estrelas5/5Heróis da fé Nota: 5 de 5 estrelas5/5As 5 linguagens do amor para homens: Como expressar um compromisso de amor a sua esposa Nota: 4 de 5 estrelas4/5As 5 linguagens do perdão Nota: 5 de 5 estrelas5/5A mulher sábia edifica o lar: Guia prático para ter uma casa sempre feliz Nota: 4 de 5 estrelas4/5Café com Deus 2: Café e leitura para um ótimo dia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO significado do casamento Nota: 4 de 5 estrelas4/5Comentário Bíblico - Salmos: Adorando a Deus com os Filhos de Israel Nota: 5 de 5 estrelas5/5Devocional para casais: Você é casado, as coisas estão bem... ou, nem tanto. Nota: 5 de 5 estrelas5/5A Bíblia do Pregador - Almeida Revista e Atualizada: Com esboços para sermões e estudos bíblicos Nota: 4 de 5 estrelas4/5João: As glórias do Filho de Deus Nota: 5 de 5 estrelas5/5O Poder do Espírito Santo Nota: 5 de 5 estrelas5/5Mateus: Jesus, o Rei dos reis Nota: 5 de 5 estrelas5/5
Avaliações de Tornar-se cristão nas esferas existenciais do cristianismo
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
Tornar-se cristão nas esferas existenciais do cristianismo - Juliano
CAPÍTULO 1 TORNAR-SE CRISTÃO NA ESFERA RELIGIOSA
O religioso² aparece para Kierkegaard como a expressão máxima que uma existência humana pode vir a apresentar, uma via difícil, mas transitável, concedida àqueles dispostos a arriscarem. Do ponto de vista do cristianismo³, a religiosidade se manifesta mediante um árduo e absoluto processo interior de renúncia e abnegação. Mas antes do ingresso do cristianismo na história, esse modelo de religiosidade já imperava na cultura hebraica, basta observarmos atentamente o Antigo Testamento. Pelo salto de fé, o Homem⁴ se torna reconhecido por sua fraqueza e impotência perante Deus. Contrastando com tamanha debilidade, a partir de uma relação autêntica com o Criador, tudo se lhe tornaria possível e concebível, abrindo ao ser humano uma fonte inesgotável de possibilidades. Em outras palavras, este superior é o religioso no qual termina a reflexão do entendimento e, tal como a Deus nada é impossível, também assim para o indivíduo religioso nada é impossível
(KIERKEGAARD, 2017c, p. 47).
Christelige, o crístico, pode ser interpretado em Kierkegaard como a efetiva experiência cristã⁵. Essa é aprofundada em Exercício no Cristianismo de 1850⁶, a partir da ideia da imitação a Cristo, implicando na reprodução dos aspectos vitais da existência de Cristo, a partir da vivência do martírio, angústia e tribulação, mas também através do exercício da fé e do amor. Tal conceito engloba e é totalidade mesma da essência do ser cristão, sendo por isso, o decisivamente cristão
, também designado como crístico, o qual não diferiria rigorosa e essencialmente do sentido usual de cristianismo, ao menos no sentido como Kierkegaard o concebe na maior parte de sua obra. Enquanto crístico é um adjetivo substantivado, uma marca distintiva que atesta a qualidade de algo, cristianismo é substantivo e também a fonte inesgotável que imprime a marca. Esse último pode se referir à complexa doutrina objetiva e dogmática que o compõe e o primeiro remete diretamente ao caráter eminentemente existencial e prático da vivência ético-religiosa.
Esse primeiro capítulo tenciona expor as fundamentações do crístico enquanto uma experiência de vida efetiva. Via de regra, cristianismo e crístico são expressões distintas de uma mesma e única causa, também podendo ser compreendidas como duas camadas de um mesmo fenômeno, caso consideremos que o fenômeno cristão possui uma faceta objetiva-moralizante e outra subjetiva-existencial. Em suma, o crístico equivaleria ao mais elevado grau existencial do cristianismo, compreendendo a esfera estritamente religiosa. Embora não haja um consenso definitivo acerca de uma eventual hierarquia ontológico-existencial entre os estádios kierkegaardianos, há passagens pontuais nas obras pseudônimas e autorais que sugerem uma primazia ética do religioso frente ao estético e ao meramente ético. Gostaríamos de evidenciar essa ideia mediante uma passagem de Temor e Tremor, localizada no Elogio de Abraão, e que embora extensa, merece ser transcrita na íntegra:
Ninguém que no mundo haja sido grande será esquecido; mas cada um foi grande à sua maneira e cada um na razão dessa grandeza, que ele amou. Pois aquele que se amou a si próprio tornou-se grande pelos seus próprios meios, e aquele que amou outros homens tornou-se grande pela sua dedicação, mas aquele que amou a Deus tornou-se maior do que todos. Todos serão lembrados, mas todos se tornaram grandes na razão de suas expectativas. Houve um que se tornou grande por esperar o possível; outro por esperar o eterno; mas quem esperou o impossível tornou-se maior do que todos. Todos serão lembrados, mas todos se tornaram grandes na razão da grandeza contra a qual combateram. Pois aquele que combateu o mundo tornou-se grande por ter dominado o mundo, e aquele que combateu consigo próprio tornou-se maior por se dominar a si próprio; mas aquele que combateu Deus tornou-se maior do que todos. (KIERKEGAARD, 2009e, p. 66).
Embora Kierkegaard / De Silentio não explique o que ele compreende por esse maior do que todos
, é plausível afirmar no mínimo, que esse maior é uma determinação valorativa e eticamente positiva, pois é produto de ações do campo ético: amar, esperar e combater. Em cada uma dessas três ações, há variações que poderíamos associar aos estádios kierkegaardianos. O sugestivo nessa analogia é que todas essas variações terminam por enaltecer a esfera religiosa frente às demais. Teríamos assim um modo próprio de categorizar as ações e de introduzi-las em arquétipos ideais. No amor, teríamos as seguintes gradações: o amor a si, típico do estádio estético, o amor ao outro como o arquétipo do ético e o amor a Deus, pertencente à existência religiosa. A esperança possui como objetos: o possível (os prazeres, o gozo imediato, o estético), o eterno (o casamento, a procriação, o trabalho, o ético) e o impossível (a fé, o religioso). A ação do combate, por seu turno, também comporta três variáveis éticas: combater ao mundo como uma determinação do estético, combater a si próprio como um empreendimento do dever-ser ético e o combater a Deus como um conflito essencialmente religioso.
O maior de todos
é identificado claramente com aquele que alcança as determinações do agir religioso e por isso acreditamos que a supremacia da esfera religiosa em Kierkegaard é de domínio ético. É claro que esse argumento não pretende esgotar a discussão acerca da hierarquização dos estádios, mas defender uma primazia religiosa que não implica de forma alguma no menosprezo ou na supressão das esferas estética e ética do cristianismo. Tal primazia também pode ser justificada quando pensamos que o tornar-se cristão (at blive Christen) na acepção kierkegaardiana, equivaleria a tornar-se um si mesmo, tornar-se um eu, ideia que defenderemos no último capítulo.
Para esse capítulo, exporemos as bases ontológico-conceituais da esfera religiosa do cristianismo, da qual partiremos da fundamentação do modelo de verdade que lhe é atribuída, modelo apresentado nas Migalhas Filosóficas como uma verdade que faz frente e até supera o entendimento socrático-platônico. Uma vez identificadas suas categorias, avançaremos para a exposição do pathos religioso e absoluto do cristianismo, o qual se encontra em íntima sintonia com aquilo que os cristãos denominam como o sumo bem. Adentraremos nas determinações do christelige através não apenas das Migalhas e do Pós-escrito, como também dos Discursos Edificantes em Diversos Espíritos, de onde analisaremos algumas determinações essenciais para a existência religiosa cristã, assim como o papel central da tribulação e do sofrimento. Intercalando esses dois pontos, não poderíamos contemplar com exatidão as determinações crísticas sem percorrermos os conceitos de pecado e de culpa como elementos fundamentais da cristologia kierkegaardiana. Tornar-se cristão é uma questão que pertence essencialmente à esfera religiosa do cristianismo. Essa esfera traduz todo o entendimento da religiosidade crística que Kierkegaard traz consigo e é depositado em suas obras. Esse primeiro capítulo investiga algumas categorias decisivas da religiosidade crística e cruciais para o entendimento do devir cristão. Assim como nos demais capítulos desse livro, desenvolvemos as seções em dualidades cujos polos dialogam intimamente entre si, seja mediante uma dialética harmônica ou apresentando alguma tensão entre si.
1.1 VERDADE E INSTANTE
Uma das obras de vanguarda de Kierkegaard, Migalhas Filosóficas, foi lançada em 1844 sob o pseudônimo Johannes Climacus. Propositalmente provocativo, o opúsculo apresentava uma perspectiva teórica que desafiava as estruturas do pensamento filosófico tradicional e ao mesmo tempo não causava nenhum fervor excepcional entre os seus contemporâneos⁷. No campo da filosofia, o pensador lança mão do socratismo para contrapor e estabelecer o campo de seu experimento teórico que versa sobre o cristianismo e algumas de suas categorias mais fundamentais, como verdade e redenção. Essa reflexão traz à luz não apenas conceitos cristãos, mas também questões clássicas da história da filosofia, tais como as que envolvem as tensões entre liberdade / não liberdade, Ser / não Ser, verdade / não verdade, todas redimensionadas à compreensão de cristianismo do pseudônimo Climacus, o qual reorganiza as concepções de verdade, eternidade e história.
O contraponto socrático e o seu paradigma da reminiscência estão fundamentados nos diálogos Mênon e Teeteto. A questão de fundo: em que medida pode ser aprendida a verdade
é tratada no socratismo como um problema de conhecimento. Depois de superada a aporia, a saber, a impossibilidade de encontrar uma verdade conhecida ou desconhecida fora daquele que conhece, Sócrates conclui que as ideias já estariam gravadas na alma do ser humano muito antes de seu nascimento físico, sugerindo que todo conhecer se reduz em um reconhecer, toda aprendizagem, uma relembrança. Para Kierkegaard, era revolucionária a concepção socrática de que o ser humano não deveria procurar pela verdade fora de si, mas unicamente em seu próprio interior. O pensador danês também era um admirador do modo negativo de fazer filosofia atribuído a Sócrates. No entanto, não satisfeito inteiramente com o socratismo, ele foi além.
Kierkegaard também se interessa pela questão de como o ser humano pode vir a possuir a verdade, mas traz consigo um diferencial: um novo olhar sobre o conceito de instante. Esse precisa ser o decisivo na apreensão da verdade pensada por Kierkegaard, mas especificamente da verdade cristã. O instante atrela a consciência eterna ao indivíduo na sua condição de sujeito histórico. Enquanto o socrático concebia o instante como ocasião, o fortuito e o indiferente, o cristianismo coloca toda a ênfase em um momento decisivo que não apenas altera o tempo, mas também vislumbra a eternidade. Agora, para que o instante possa porventura ter uma significação decisiva, a verdade não pode mais estar alojada no interior do ser humano, mas deve ser independente dele, pois se trata de uma verdade transcendente. Na ausência dessa verdade, o discípulo está na não verdade, sim, está aí por sua própria culpa
(KIERKEGAARD, 2011b, p. 49).
Kierkegaard / Climacus agora questiona: como poderá o discípulo convergir do estado de não verdade para o de verdade, ou dito de outra forma, do não Ser ao Ser, do aprisionamento à liberdade, esferas qualitativa e infinitamente opostas? É preciso romper com a imanência da reminiscência socrática, o ápice da sabedoria grega. Não se trata mais aqui de uma mudança epistemológica, de uma passagem da ignorância ao conhecer. Ao introduzir a noção de espirito, o cristianismo fornece um novo parâmetro para a existência humana⁸. Nas Migalhas somos apresentados a uma nova dinâmica entre mestre e discípulo. O primeiro vem em auxílio do último, mas não para revelar-lhe que esse está na verdade, mas que se encontra na não verdade. Tal tomada de consciência é condicionada pela presença do mestre, o qual fornece mais do que uma ocasião para a tomada insólita de consciência. Longe de ser um mero benfeitor, o mestre é absoluto e imprescindível para a mudança do discípulo: "vamos chamá-lo um salvador, pois ele salva o aprendiz da não liberdade, salva-o de si mesmo; um libertador, pois liberta aquele que se tinha aprisionado a si mesmo". (KIERKEGAARD, 2011b, p. 36). Em suma, a transição cristã da não verdade para a verdade em Kierkegaard não possui natureza epistemológica, mas ontológica-existencial e se relaciona com a dialética do amor divino que se aniquila a si mesmo para salvar o ser humano da sua condição de nada, de sua autoimposta vacuidade espiritual. Reflete o filósofo no Conceito de Ironia: se bem é certo que não somos nada, Deus se entregou ao nada para que pudéssemos deixar de ser nada
(KIERKEGAARD, 2000, p. 332).
Então, se agora, o aprendiz deve adquirir a verdade, então o mestre tem de trazê-la a ele, e não só isto, mas é preciso que lhe dê juntamente a condição para compreendê-la
(KIERKEGAARD, 2011b, p. 33). O mestre possui a incumbência de trazer ele próprio a verdade ao discípulo, mas esse não poderia se apropriar dela se àquele também não lhe fornecesse a condição para assimilar a verdade. Se a condição já estivesse de antemão de posse do discípulo, então mestre e instante voltariam a ter uma importância secundária, ou seja, recairíamos no socrático. A condição é uma mediação ofertada sem a qual, o sair do estado de não verdade tornar-se-ia uma impossibilidade ontológica e existencial. A responsabilidade pela condição de não verdade não é de outro que não seja o próprio indivíduo que se encontra nesse estado e na medida em que se encontra fora da verdade, ele polemiza fervorosamente contra ela, afastando-a mais e mais de si em um estado de ânimo consciente ou involuntário, o que também se exprime dizendo-se que o próprio aprendiz pôs fora e põe fora a condição
. (KIERKEGAARD, 2011b, p. 34). O mestre não é outro senão o próprio Deus que se esforça para lembrar que o ser humano se encontra por sua inteira responsabilidade no domínio da não verdade, naquilo que o cristianismo concebe como pecado⁹.
O mestre é então o próprio deus que, atuando como ocasião, leva o aprendiz a lembrar-se de que é a não verdade e que o é por sua própria culpa. Mas a este estado (o de ser a não verdade e de sê-lo por própria culpa), que nome lhe podemos dar? Chamemo-lo de pecado. (KIERKEGAARD, 2011b, p. 34).
Poderia parecer que estando na condição de pecador ou de não verdade o homem estaria livre, uma vez que estaria em tal estado por um livre ato de sua vontade, e, no entanto, ocorre o inverso: ele se encontraria em aprisionamento voluntário e muitas vezes inconsciente, no estado de não liberdade, excluído da verdade por suas próprias forças, as quais utiliza para afundar-se mais e mais na não liberdade, intensificando cada vez mais o seu aprisionamento e dificultando a possibilidade de libertar-se. Uma vez que o deus-mestre, o qual não seria outro senão o próprio Cristo, entre em cena, ele não poderá ser olvidado pelo discípulo sem que esse recaia novamente no estado de aprisionamento que até então pertencia. O deus-mestre recria inteiramente o discípulo, passando esse por um renascimento. Isso significa que Deus é, em sentido decisivo, a verdade mesma. Não seria, portanto, de estranhar que ele assumisse como sua a figura de um juiz, aquele que poderia julgar com precisão se o discípulo fez uso da condição que o tornaria genuinamente livre. Para a correta compreensão da passagem da não verdade para verdade, a qual implica na ideia de renascimento, faz-se mister aprofundar o significado de instante.
Um tal instante tem uma natureza própria. Sem dúvida é breve e temporal como o é todo instante, passando, como todos os outros, ao instante seguinte, e no entanto é o decisivo, pleno de eternidade. Um tal instante deve com efeito ter um nome especial; vamos chamá-lo: plenitude dos tempos¹⁰. (KIERKEGARD, 2011b, p. 37).
Tal instante é paradoxal: uma partícula temporal prenhe do eterno, uma substância que sintetiza tempo e eternidade e que não pode ser reduzida a um e nem a outro. A melhor exemplificação desse intrigante conceito é fornecida em uma nota das Migalhas Filosóficas¹¹: nela é relatado que um homem que precisava tomar parte em um dos lados da guerra fora convidado a tomar parte por ambos os lados; por infelicidade, o lado que ele escolheu foi derrotado e em consequência, o desafortunado foi feito de prisioneiro pelo lado vencedor. Tendo sido levado a este, aquele lhe oferece seus préstimos como se não o houvesse rejeitado anteriormente. A resposta do vencedor é evidente: agora já não posso aceitar seus serviços, é bem verdade, que antes você poderia ter escolhido diferente pelo mesmo preço, mas agora tudo está mudado
. Essa parábola kierkegaardiana ilustra com precisão o caráter decisivo e absoluto do instante. Em paralelo, todo ser humano precisa em algum instante escolher entre liberdade e não liberdade e caso decida por essa última, de pouco valerá o seu arrependimento perante a divindade. O instante ainda traz consigo um ato de liberdade dotado de significados que apenas parecem ser corretamente compreendidos à luz do que Kierkegaard entende como o eterno.
Nessa perspectiva, qual mudança decisiva o instante deverá deixar no ser humano? Em Efésios 4: 24, o apóstolo Paulo menciona um Homem Novo, indicando uma mudança qualitativa absoluta do ser humano que acolhe a verdade trazida por Cristo. Kierkegaard / Climacus (2011b, p. 37) acredita em uma inflexão radical, pois ao receber, no instante, a condição, seu caminho tomou a direção oposta ou se inverteu
. Um ponto que deve ser enfatizado nesse redirecionamento existencial é a tomada de consciência necessária a todo o percurso de libertação. O homem deve perceber com clareza o seu estado atual e essa percepção não é alheia à consciência do pecado. Com o instante o discípulo está na não verdade; (...) e recebe, em vez do conhecimento de si, a consciência do pecado, e assim por diante, pois tão logo pomos o instante, tudo segue-se daí
(KIERKEGAARD, 2011b, p. 74).
Com a consciência do pecado inaugurada, o arrependimento pode emergir com toda sua potência, como a tristeza da alma marcada pela despedida do estado anterior, embora note-se: aqui esta tristeza é por ter ficado tanto tempo no estado anterior... outra coisa não é o arrependimento, que olha decerto para trás, porém de tal maneira que exatamente por isso acelera a caminhada para a frente
(KIERKEGAARD, 2011b, p. 38). O arrependimento deverá impulsionar a fé, a qual não atua apenas como a condição dada livremente pelo mestre divino, mas como a expressão de uma tarefa. Ao comentar sobre o conceito de renascimento, Bellaiche se refere a um esforço contínuo para se desprender da imanência: o indivíduo deve então se despir de qualquer parcela de imanência, para romper ‘toda continuidade consigo mesmo’ e ‘tornar-se uma nova criatura’ no dom da condição
(BELLAlCHE-ZACHARIE, 2008, p. 76). Não compreender a dialética do renascimento equivale a colocar em risco a possibilidade efetiva de tornar-se cristão. Zacharie sintetiza bem essa dinâmica da conversão proporcionada pelo aspecto laboral que a fé exige:
A fé é simultaneamente consciência da perfeição do sujeito e de seu renascimento, que ele expressa pela erradicação de qualquer parte da inverdade que está nele mesmo: o sujeito não pode afirmar que não é nada diante de Deus sem se dedicar a aniquilação de seu ego. A conversão, a passagem do não ser ao ser, é eficaz apenas quando o ser é concedido ao indivíduo por seu novo nascimento e este último erradica qualquer resto de não ser que poderia subsistir nele, para que a fé seja a realização da fé. A mudança do homem é possível pela mudança trazida por Deus: o indivíduo então se volta para Deus, não por meio da aceitação de um presente que teria recebido, o da condição, mas para ser transformado por ele: ele reafirma assim o único elo que o une a Deus, de dependência e subordinação. Deste modo, a mudança progressiva do homem - que Climacus chama de tornar-se cristão - acarreta a mudança instantânea (conversão): dá substância ao renascimento, feito possível pelo dom da condição (BELLAlCHE-ZACHARIE, 2008, p. 76).
O discípulo já existe, e, todavia, nasce uma segunda vez. Enquanto pelo nascimento natural o ser humano se encontra em débito para com os seus progenitores, no renascer, o homem deve absolutamente tudo a Deus, que lhe deu tanto a verdade como a condição. Nesse renascimento o mesmo agora tem que esquecer de si mesmo ao pensar nesse mestre
. (KIERKEGAARD, 2011b, p. 38). Caso o ser humano esqueça-se de Deus que é a verdade, ele retrocede ao seu estado anterior, o de não verdade. Em síntese, enquanto o socrático concentrava todo o seu pathos na força da recordação, o cristianismo estabelece a ênfase no poder incógnito desse instante eterno-temporal, imprescindível para o tornar-se cristão: a salvífica passagem do não ser ao ser, do nada à existência.
No instante o homem torna-se consciente de que nasceu, pois seu estado precedente, ao qual nada deve reportar-se, era o de não ser. No instante ele se torna consciente de seu renascimento, pois seu estado precedente era o de não ser. Se seu estado precedente tivesse sido o de ser, em nenhum dos casos o instante teria tido para ele uma significação decisiva. Enquanto, pois, todo o pathos grego se concentra sobre a recordação, o pathos de nosso projeto concentra-se sobre o instante, e que maravilha! Ou não é uma coisa altamente patética passar do não ser à existência? (KIERKEGAARD, 2011b, p. 39).
A diferença substancial entre o discípulo e Deus pode ser explicada pela presença do pecado no homem e de ser essa uma condição exclusiva da natureza humana. Além disso, a consciência do pecado é condição essencial para o acesso ao cristianismo: A única porta de acesso ao cristianismo é a consciência do pecado; e todo outro caminho para querer introduzir-se nele é pecado de lesa majestade contra o cristianismo
(KIERKEGAARD, 2009b, p. 88). Nos seus Diários o autor acrescenta que: A consciência do pecado é e seguirá sendo a condição imprescindível de todo o cristianismo e se alguém fosse eximido dela, tampouco seria cristão
(KIERKEGAARD, 2020, p. 5). Viver sob as rédeas do pecado implicaria no triunfo da não verdade. A presença do pecado é crucial para a compreensão da antropologia kierkegaardiana, assim como um elemento primordial em sua cristologia. Kierkegaard (2020, p. 7) atesta em um de seus Diários: o cristianismo é a religião absoluta, porque tem entendido ao homem como pecador, já que nenhuma outra diferença pode reconhecer o homem desse modo em sua diferença com Deus
. Finalmente, aquela condição vital e indispensável dada pelo mestre, o Homem-Deus¹², não seria outra senão a própria fé, a paixão suprema da subjetividade, como nos lembra Roos:
O tornar-se cristão em Kierkegaard é uma relação paradoxal que se repete no encontro do mestre com o indivíduo sob juízo e graça. Encontro que não acontece sem angústia, tribulação, paradoxo. Essa relação é visível apenas para o olho da fé, é dependente de uma atitude subjetiva específica (ROOS, 2019, p. 122).
Retomemos ao instante. Esse é breve e temporal como o é todo instante, passando como todos os outros ao instante seguinte, e, no entanto é o decisivo, pleno de eternidade
(KIERKEGAARD, 2011b, p. 37). Assim, o instante é o eterno inserido no tempo, ocorre quando o eterno corta o tempo e penetra neste. "O instante é aquela ambiguidade em que o tempo e a eternidade se tocam mutuamente, e com isso está posto o conceito de temporalidade, em que o tempo incessantemente corta a eternidade e a eternidade constantemente impregna o tempo". (KIERKEGARD, 2013c, p. 94). Esse momento é pleno porque nesse instante deve ocorrer uma decisão absoluta, a que diz respeito à tomada de sua consciência eterna, uma decisão na qual os objetos de escolha são Deus e o mundo. O instante reflete a passagem do não ser para o ser. Como Roos argumenta: o instante é o lugar, por assim dizer, da mudança qualitativa no individuo. Estas noções, instante e mudança qualitativa, são fundamentais para que Kierkegaard desenvolva a ideia do tornar-se cristão ou tornar-se si-mesmo
(ROOS, 2019, p. 84). Traduzido em linguagem religiosa cristã, o instante denota nada menos do que a conversão máxima do homem, quando este, após ter se apropriado da consciência do pecado e de sua consciência eterna em todas as suas consequências, ingressa e toma parte na verdade, mediante um salto qualitativo.
Um renascimento religioso apenas poderia transcorrer no decurso da história, portanto, no interior da temporalidade, uma vez que implica mudança, movimento, recriação. Essa é a dimensão essencialmente histórica do cristianismo e do tornar-se cristão, pois não há redenção para os indivíduos exilados da história, se é que houve algum, Adão que o diga¹³. A conversão cristã ocorre, pois, nesse instante qualitativamente superior e distinto dos demais, o átomo de eternidade (KIERKEGAARD, 2013c, p. 94). A passagem para a verdade comporta um outro paradoxo, a saber, a da possibilidade de se tomar no tempo uma decisão que afetaria a eternidade, uma decisão temporal que diz respeito ao seu ser eterno, um paradoxo capaz de inaugurar uma consciência eterna a partir de um ponto de partida histórico. As bases da antropologia kierkegaardiana podem ser encontradas em obras como: Conceito de Angústia, Doença para a Morte e Pós-escrito às Migalhas Filosóficas; todas elas concebem a existência humana como o produto de uma síntese. No Pós-escrito lê-se: A existência é composta de infinitude e de finitude; o existente é infinito e finito
(KIERKEGAARD, 2016, p. 108). No Conceito de Angústia, o ser humano é definido como: uma síntese de alma e corpo, mas também é uma síntese do temporal e o eterno
(KIERKEGAARD, 2013c, p. 92).
O instante fornece a ocasião no tempo para uma decisão que diz respeito à eternidade do indivíduo, ao seu ser eterno. Souza (2014, p. 68) também identifica a experiência religiosa da conversão ao fenômeno do instante: Aquilo que parece ser o que Kierkegaard considera a experiência religiosa fundamental está presente em sua obra, mas de forma cifrada, encriptada, e tal experiência é o Instante, o momento em que o sujeito se apropria da Verdade
. A dialética do instante é, pois, de suma importância para a compreensão do paradoxo cristão que envolve a tomada de uma decisão absoluta. Por um ato de graça, o mestre que convida com humildade: vinde a mim
, oferta a fé no instante e nesse o homem atua, existe, conhece a verdade e se liberta, afinal, verdade e inverdade também podem ser relacionadas no contexto cristão com liberdade e não liberdade. A decisão absoluta é perpassada pelo ato de fé. Paula (2009, p. 46), realça o valor qualitativo da decisão efetuada no instante no interior do paradoxo cristão.
O paradoxo do cristianismo é que, para aquele que crê, vale mais um dia do que um século. Vale o momento da decisão do individuo, ou seja, o instante em que ele em contato com a verdade, que não é mera ocasião - como ocorreria no ensinamento socrático, mas algo que ocorre dentro do tempo e é trazido pelo mestre que possui em si a verdade e a condição para que o discípulo possa compreendê-la.
Cristo é o Deus paradoxal, não apenas por se tratar do Deus eterno que adentra na história, mas também por se apresentar sob a forma menos provável para um deus: a de um servo humilde. Ele é o paradoxo absoluto, mas o paradoxo apenas se relaciona com a razão, ele é a fonte daquele desejo de querer descobrir algo que ele próprio não é capaz de pensar
(KIERKEGAARD, 2012b, p. 84). Mas qual razão teria Deus para se revestir de uma forma tão paradoxal? Segundo Kiekegaard / Climacus: se o deus não viesse ele mesmo, tudo permaneceria em termos socráticos, não teríamos o instante e passar-se-ia ao lado do paradoxo. Entretanto, a figura de servo do deus não é nada de postiço, antes é real
(KIERKEGAARD, 2012b, p. 109). A resposta ao paradoxo deve ser carregada pela fé, sem ela o ser humano estaria em uma verdadeira encruzilhada, pois teria que lutar e se debater cegamente, diante e contra o paradoxo. Como expõe Souza:
Esta paixão e fascínio diante do paradoxo ou do numinoso, porém, não é ainda o instante em que o sujeito recebe a verdade do mestre/deus, e isto parece ficar claro pela exposição de Climacus. O sujeito se vê, sim, diante do paradoxo, percebe-o como tal, mas pode escolher entre crer ou escandalizar-se. Se assim não fosse, não haveria uma possibilidade de escolha por parte do sujeito, e ele não seria livre. (SOUZA, 2014, p. 101).
Cristo se apresenta como a própria verdade e, assim, é também um salvador, libertador e reconciliador, pois emanciparia o discípulo do estado de inverdade, o salvaria de si mesmo. A paixão da fé vai de encontro a esse benfeitor divino ao responder com um sim
ao convite de Deus, a se comprometer e desejar uma felicidade eterna. Essa paixão, como conceitua Stewart (2010, p. 101): é o resultado natural de uma ocupação com a questão do infinito interesse pessoal
. É dada ao homem a possibilidade deste reconhecer o seu verdadeiro lugar na existência e de lhe conferir um propósito maior e mais elevado, através do assumir como sua a responsabilidade de buscar a sua própria salvação pessoal. Todo o problema das Migalhas e, consequentemente, do Pós-escrito, dialoga com a possibilidade do tornar-se cristão. Para que essa conversão se concretize, é completamente secundária a realidade extrínseca e histórica do cristianismo¹⁴.
Verdade e instante são conceitos cruciais para o pensamento religioso de Kierkegaard. Apresentados por Climacus em Migalhas Filosóficas, eles possuem uma determinação uníssona. O conceito de verdade que o autor contrapõe ao modelo socrático não deixa de ser a progressão de um modelo de subjetividade já intuído pelo próprio Sócrates. Trata-se de uma verdade radicada na subjetividade e no devir próprio do existir, ou seja, incomensurável a qualquer forma de mediação e de exatidão. Essa verdade é trazida pelo deus paradoxal, Cristo, a partir do encontro entre eternidade e temporalidade, que o autor designa por instante. Esse instante pleno, em contraste com o súbito platônico, culmina na própria noção religiosa de conversão e essa nada mais é do que a concretização da possibilidade do tornar-se cristão.
1.2 INTERIORIDADE E EXTERIORIDADE
Em uma das seções do Pós-escrito conclusivo não científico às Migalhas Filosóficas, Kierkegaard / Climacus ilustra o seu entendimento acerca do significado do ser cristão mediante uma crítica ao monasticismo medieval. Embora esse movimento seja associado ao medievo, o intuito do autor é consolidar a crítica à cristandade de seu próprio tempo ao identificar equívocos estruturais desse última. Veremos que, embora imperfeita, a prática monasterial contribui de modo fundamental para a compreensão da correta assimilação do cristianismo e de seu telos absoluto. Para compreendermos a teleologia cristã é preciso distinguir exterioridade de interioridade. Tal distinção é fundamental para compreendermos o cristianismo em sua esfera religiosa. Embora o monasticismo cristão disponha do grau de paixão necessária para a definição da esfera religiosa, haveria alguns aspectos problemáticos na sua execução que colocariam em xeque aquilo que parece ser um dos propósitos centrais do autor, o entendimento da verdadeira essência do cristianismo. A crítica ao movimento monástico nos auxilia no entendimento do correto balanço entre interioridade e exterioridade no pensamento religioso desenvolvido por Kierkegaard.
É inegável a influência do monasticismo para a criação de importantes conceitos kierkegaardianos, tais como resignação infinita e autoabnegação. O cristão pode ser edificado pelo exemplo da prática monástica e de sua preconização à renúncia aos bens mundanos e temporais. Um de seus adeptos mais rigorosos, João Climaco (525 – 606), exerceu grande influência no autor nórdico e teria inspirado diretamente na criação do pseudônimo de Migalhas Filosóficas e do Pós-escrito conclusivo não científico às Migalhas Filosóficas. Tal qual o icônico asceta, Kierkegaard também defendera um cristianismo justificado pelo sacrifício, martírio e renúncia aos bens mundanos. A obra máxima do monge, a Escada do Céu, foi decisivamente influente na disseminação dos ideais ascéticos no interior das comunidades cristãs. Climaco, em Escada do Céu, escreve:
Ninguém entra no tálamo celestial para receber a coroa dos grandes santos se não tiver cumprido a primeira, a segunda, e a terceira maneira de renúncia, convém saber: primeiramente, há de renunciar o que estiver fora de si, como os pais, parentes, amigos e tudo o mais; em segundo lugar, há de renunciar a sua própria vontade; em terceiro lugar, há de acautelar-se contra a vanglória (CLIMACO, 1902, p. 15).
Evidentemente, bem antes de Climaco, muitos textos do próprio Novo Testamento (Mt 19, 12; Lc 2, 37; I Cor 7, 7), serviram de influência para o movimento monástico desenvolvido na cristandade medieval. As exortações bíblicas geralmente destacam a profunda diferença entre os bens mundanos e os bens celestes, a exemplo desse fragmento da primeira epístola de João (I João 2, 15): "Não amem o mundo, nem as coisas que há nele. Se vocês amam o mundo, não amam a Deus, o Pai. Nada que é deste mundo vem do Pai"; e da profunda assertiva de Paulo (Rm 14, 23): "O que não se baseia na fé é pecado". O monasticismo cristão se difere dos demais modelos por seu imperativo que prescreve a imitação aos sofrimentos de Cristo, em condições rigorosamente austeras, a partir de uma rígida disciplina social, física e espiritual, oriunda de uma completa resignação que almejaria a comunhão espiritual com Deus. Para uma compreensão satisfatória do movimento monástico faz-se necessário se apropriar do significado do pathos nele implicado, o qual será decisivo para a formulação da cristologia kierkegaardiana.
Kierkegaard / Climacus faz uma importante distinção entre pathos estético e pathos existencial. O pathos estético se encontra no ideal, onde o indivíduo está apaixonado pela ideia e se permite perder a si mesmo nela. Aqui o domínio objetivo possui a primazia sobre o sujeito. No pathos existencial o indivíduo também se encontra apaixonado pela ideia, mas não se reduz a isso, pois vai além e permite ser condicionado existencialmente por ela. Em outras palavras, a ideia é apropriada e consumida para o fortalecimento da existência subjetiva, havendo, portanto, a primazia do sujeito sobre o domínio objetivo. Ao cristão interessa cultivar e desenvolver o pathos existencial que deverá, em nome do bem absoluto, impregnar cada aspecto e a totalidade de seu existir. O pathos correspondente e adequado a uma felicidade eterna é a transformação por meio da qual o existente, ao existir, modifica tudo em sua existência conformando tudo com aquele bem supremo
(KIERKEGAARD, 2016, p. 106).
O bem absoluto oferecido pelo cristianismo é