Pessoa, lugar e esperança: teologia e literatura em Vidas secas
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Pessoa, lugar e esperança - Joanicio Fernando Bauwelz
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UM DIÁLOGO ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA[ 1 ]
Esta pesquisa tem por finalidade fazer uma análise teológico-antropológica de um romance brasileiro muito sentido no panorama literário brasileiro, a obra de GR: Vidas Secas. Para isto, neste primeiro capítulo faz-se necessário uma tomada de conhecimento do panorama atual do diálogo teologia e literatura. Conhecer as possibilidades e as vias de diálogo, bem como as fontes e métodos mais bem firmados no contexto geral. Apontar suas características positivas e limites. Tornar conhecido o cerne teórico deste diálogo para possibilitar uma posterior compreensão ampla do tema.
Tendo claro este primeiro percurso, surge um novo imperativo: estabelecer um percurso metodológico valido para uma análise teológica de uma obra de caráter literário romântico.
A motivação inicial e que orienta esta pesquisa é encontrar a expressão mais profunda do humano e o caráter transcendente desta expressão. Para isso é preciso que a teologia encontre algo que expressa bem esta realidade humana para poder estabelecer um diálogo. As ciências têm a potência de explicar, por seu método próprio, as realidades que circundam a humanidade e até mesmo explicar muitas realidades internas ao humano. Contudo, é a arte que traduz as expressões mais autênticas que nascem no íntimo do ser humano.
1.1 Literatura: profunda expressão humana
A arte é uma forma de o ser humano se expressar e comunicar algo por meio das formas, da beleza, do equilíbrio; enfim, a arte tem ligação com as características estéticas e com o seu oposto. Se a arte é expressão, na literatura a expressão é de caráter linguístico.
A literatura está presente na vida das sociedades de todo o mundo. Ela narra, conta, descreve em suas páginas muitas histórias, e assim, dá origem a muitas vidas e muitos mundos. Histórias repletas de elementos que nascem da fantasia do autor ou que são reflexo das histórias vividas na realidade, mas que no fundo contam todas uma única história, a história da humanidade. Ela é a arte que exprime por palavras a humanidade sob a ótica do autor.
E se são muitos romances, muitos dramas, universos paralelos, personagens inimagináveis fora das páginas do livro, risos e choros, medos e espantos, descobertas e suspenses, paisagens e construções, mesmo assim, recolhem sempre uma mesma narração: o humano. Sendo assim, a literatura de ficção revela uma forma de compreensão do humano, uma antropologia
[ 2 ].
Sendo considerada a arte das palavras, a literatura tem um poder criador: aquele de fazer das muitas histórias que conta uma poíesis (criação), uma construção poética. E se é possível pensar a literatura como uma arte que cria, a teoria da literatura parte da clássica definição de que a arte literária é mimese (imitação) e a partir disto divide a literatura em três partes: mítica, lírica e dramática. Assim, a literatura é a arte que imita pela palavra, e o autor é por consequência um artista. Esta é uma definição formulada por Platão e constantemente utilizada por Aristóteles na Poética.
Lima[ 3 ] afirma que criar, em literatura, "é dar vida às imagens e às ideias. É passar do domínio da meditação e da observação ao da ação, por meio da intuição criadora. É usar a liberdade e a inteligência para animar novos seres que imitem a vida, expressiva tanto da vida interior como da vida exterior".
A arte literária está ligada à língua e à linguagem. Até o século XVIII, a palavra ‘literatura’ era usada com o sentido de gramática; a partir do século XVIII, a literatura passou a ser considerada arte
[ 4 ]. Mas é preciso fazer uma distinção clara sobre a literatura, pois, na verdade se fala de literaturas, no plural e não no singular. As muitas literaturas se distinguem bem uma da outra.
1.1.2 Comunicar o mundo da vida de forma simbólica
O diálogo que este trabalho busca é com uma literatura de ficção, que pode se expressar de muitas formas: romance, poesia, sátiras. Estes textos de ficção, não deixam de ser informativos, mas abrem espaço para uma linguagem subjetiva; estes textos provocam na mente do leitor mais de um significado, então, se pode dizer que são textos conotativos. Se distinguem dos textos denotativos, que são informativos, são objetivos, normalmente trazem uma linguagem mais impessoal e técnica.
Estas duas formas de literatura se diferenciam por seu conteúdo e sua forma. Dentro deste aprofundamento sobre a literatura é importante o fato de que ela tem uma mensagem a ser comunicada. A literatura, por ser arte, se faz a metáfora da vida que o autor quer comunicar. Conforme afirma Manzatto[ 5 ] é, evidentemente, uma forma de comunicação, portanto ela possui uma mensagem. Uma das diferenças da arte com relação à ciência é que ela exprime sua mensagem não através de conceitos, mas por símbolos, por imagens
.
Quando o autor se dispõe a dar vida aos seus personagens ele deseja comunicar os sentimentos que dentro dele o movem a escrever. São normalmente mensagens que refletem a forma de viver de uma determinada sociedade, provavelmente aquela em que o próprio autor vive ou viveu. São imagem das experiências pessoais do próprio autor ou daquilo que seus olhos testemunharam, de aspirações e sonhos, de ideais ou de manifestações de protesto. Enfim, sendo reflexo de uma sociedade ou de uma experiência pessoal, o autor deseja dar uma mensagem para aquele leitor que um dia vai sentar-se e entrar no mundo que ele está criando.
A literatura revela uma mensagem, e revela também a personalidade de seu autor, na sociedade. A literatura revela mais que sua mensagem declarada, como fazem todas as artes
[ 6 ]. Se o autor tem uma mensagem para o leitor, o leitor fica livre para perceber a mensagem do autor ou para deduzir sua própria mensagem, sua própria interpretação, sua própria leitura do texto.
A arte literária transmite sua mensagem por meio de uma simbólica, que faz alusão ao real, mas ela não fala do real, ao menos não em um censo primeiro e evidente: ela faz apelo à significação. Ela alude à realidade, evoca a realidade, representa o real e, assim, interpreta, compreende e conhece a vida, o homem, o mundo
[ 7 ].
A literatura além de seu caráter semelhante ao das demais artes, de usar a linguagem dos símbolos, tem ainda mais a oferecer, porque tem a seu favor a força das letras. De fato, as palavras estão para a literatura como o barro para o oleiro; elas são a matéria prima de toda a mimese do autor. Manzatto[ 8 ] afirma que:
A arte é a figura do real, ela não é o real. Mas também é verdade que a literatura não é apenas puramente simbólica como as outras belas artes, pois ela exprime-se por palavras, servindo-se da linguagem e utilizando uma estrutura verbal. Mas essa estrutura verbal não é uma asserção da mesma natureza das asserções científicas, mas sim a afirmação de uma possibilidade. [...] dito de outra forma, uma suposição e não uma asserção.
Vale retornar sobre a afirmação feita acima de que a literatura é antropocêntrica. Isto porque, o vínculo importante do qual a teologia serve-se como ponte para estabelecer um diálogo com a literatura é essencialmente este, de se ocupar do humano.
1.1.3 A literatura é antropocêntrica
Este antropocentrismo da literatura é o que garante aos autores lidar com a esperança e o desespero, com o tema do amor e do seu inverso, etc. Ao olhar para as inúmeras dimensões da humanidade é que surge a inspiração para as palavras que são eternizadas em uma página de boa literatura. Isto fica claro quando se faz, mesmo que brevemente, um olhar histórico da literatura. Conforme afirma Manzatto[ 9 ], a literatura exprime uma cosmovisão:
Ela é um olhar sobre a realidade, as coisas, os homens, os sonhos humanos; ela é também um julgamento de valor, ainda que não formalmente, e revela valores vividos pelos homens; ela mostra uma compreensão do homem, ela fala sempre do homem, apresenta-o, critica-o, mostra o homem vivendo. Sua ocupação é sempre o homem, o homem concreto, situado. Nesse sentido, ela é antropocêntrica.
Desde as primeiras obras de que se têm informação, Ilíada e Odisseia de Homero, situadas por volta do século VIII a.C., se tem relatos de homens que se destacam em suas sociedades por possuírem determinadas virtudes desde então louvadas. É assim, também, nas fábulas de Esopo e nas histórias da Grécia contadas por Heródoto. Seguidas pela literatura romana de Horácio e Ovídio no século I a. C. que trazem ricas poesias líricas e outras tantas poesias épicas. É deste ambiente que remontam as sátiras ou as palavras de Virgílio no clássico Eneida.
É possível compreender este mesmo caráter nas páginas da literatura de outros centros também. É o caso dos textos veterotestamentários que narram a história de Israel e da aliança com Javé. Nos primeiros séculos depois de Cristo os textos neotestamentários e a vasta literatura patrística, toda ela, descrevem a história de Deus que vem morar com os homens. No catolicismo é que a maior parte da literatura até o século X será produzida.
Passando pelo trovadorismo, pelas Canções de Gesta e pelos outros gêneros literários, será no Humanismo do século XVI que de fato a humanidade deixa de ser o objeto e o fim da literatura e passa a ser o centro. O Renascimento vai manter certa característica religiosa, contudo vai buscar fazer a retomada das ideias da cultura greco-romana.
Mesmo que esta pesquisa se dedique a traçar as características de cada escola literária, uma por uma, a pergunta de referência que se pode utilizar é sempre a mesma: que homem, que pessoa, aquela literatura narra? E é por esse antropocentrismo radical da arte literária que ela pode interessar à teologia. Para esta pesquisa, trata-se de buscar ver onde e como esse antropocentrismo radical da literatura pode se ligar a uma antropologia teológica
[ 10 ].
A teologia é uma ciência e como tal tem suas fontes e seus princípios. Manzatto[ 11 ] recorda que ao comunicar-se com outras ciências, ela faz isso com os instrumentos que possui e se abre para a racionalidade da outra ciência em questão. Contudo, quando a tentativa de diálogo da teologia é com a literatura, que é uma arte e não uma ciência, é preciso estabelecer um elemento ou alguns elementos sobre o qual a teologia possa estabelecer uma reflexão consistente com sua base principal, a saber, a Revelação:
A revelação como relação de Deus com seu povo crente, uma relação que é atual e, portanto, existencial; essa relação atualiza o dado revelado, mas o faz com características existenciais, envolvendo as mais diversas experiências de vida do crente. Por outro lado, nunca é demais lembrar a importância que a antropologia tem para a elaboração teológica mesmo porque é através dela que se lerão os acontecimentos ou experiências compreendidos como revelação de Deus[ 12 ].
Dentre estes elementos, os que mais são colocados em evidencia são: a palavra e o homem. A partir do homem - e claro, da mulher - nascem os outros inúmeros vínculos sobre os quais se pode trabalhar, por exemplo: a pessoa, o lugar e a esperança. Neste momento se pode fazer uma pergunta: o que a literatura tem a ver com a teologia? Existe uma teologia da ou na literatura?
1.2 Exórdio da relação entre teologia e literatura
A literatura acolhe dentro de si a faculdade de traduzir nas palavras a necessidade da pessoa de criar novos mundos, dar vida a seres inexistentes, colocar nos lábios de personagens, que representam muito da humanidade concreta, manifestações do sentir do autor e faz do leitor um lóculo da fecundação destas expressões que, sob vestes fabulosas, reclamam o direito de dizer suas ideias. Literaturas escrevem ciências, literaturas escrevem crenças, literaturas escrevem sonhos de crianças, enfim, a literatura é o lugar da palavra que ganha vida.
Manzatto[ 13 ] afirma que o que precisa estar claro é que a literatura não precisa nem deve, jamais, modificar seu modo de ser ou seu jeito de proceder. É em sendo literatura que ela interessa à reflexão teológica e também ao trabalho do cientista da religião
. E continua chamando a atenção para o fato de que instrumentalizada para tornar-se mero meio de divulgação de ideias, ideologias ou teorias, a literatura perde sua especificidade porque se modificaria para ser, simplesmente, forma de um conteúdo outro e previamente estabelecido
.
Mas, nas páginas dos romances, das fábulas e das odisseias, como também na poesia e no lírico é possível pensar Deus? É possível ler a pessoa que fala de Deus em textos que não se ocupam objetivamente em falar do divino? Como fazer a relação entre teologia e literatura?
A proximidade da literatura, seja por suas formas como por seu conteúdo, sempre foi percebida na origem da Igreja no discurso sobre Deus, seja positiva ou negativamente. E a relação estabelecida com ela variou muito ao longo dos séculos. É importante uma observação histórica a este respeito para uma justa contextualização daquilo que se propõe nesta pesquisa.
Uma notação histórica, ainda que simples e sintética, cria uma abertura de compreensão para a pesquisa e ainda mais relevante é a tomada de conhecimento do discurso contemporâneo sobre a relação entre e teologia e a literatura. Assim, a proposta aqui é estabelecer uma linha temporal com os autores que se interessaram em produzir uma teologia literária ou uma relação de diálogo com ela. Autores que deixaram uma vasta bibliografia acerca do tema e que produziram instrumentos metodológicos válidos para a justa relação entre as duas grandes áreas em questão.
1.2.1 Patrística
A teologia dos Padres da Igreja teve origem fundamentalmente sobre comentários bíblicos, principalmente com a figura das alegorias. Ao menos antes de 450 a Sagrada Escritura é considerada suficiente para todo aprofundamento da fé
[ 14 ]. Eles apresentavam a literatura dita pagã ou mundana como não apropriada para o cristão, por ter caráter vulgar e fazer mal para a alma. Mas como se pode constatar na prática, em muitos textos patrísticos estão presentes passagens e citações de clássicos gregos ou latinos. Os conceitos úteis vindos desta literatura eram frequentemente incorporados aos textos cristãos.
Os apologistas são os principais personagens a debater a questão da literatura clássica. Taciano se ri da retórica grega que serve somente para caluniar e prevaricar nos tribunais, e da poesia que corrompe os ânimos com os seus contos de contendas e amores entre as divindades; a filosofia é fonte de toda possível heresia
[ 15 ].
Será decididamente Orígenes aquele que começa a apresentar fatos novos, conforme afirma Ballarini[ 16 ], ao fazer o aprofundamento teológico vem acompanhado o empenho filosófico, com recurso a outras traduções gregas além daquela dos LXX
. Fato é que grande parte da literatura exegética, como também daquela catequética e parenética derivava das homilias que transmitiam a toda a comunidade os conteúdos mais dificilmente acessíveis nas obras escritas, conferindo à nova cultura um caráter ‘popular’: populares eram composições destinadas ao uso litúrgico
[ 17 ].
Tertuliano condena a filosofia dialética e a retórica. Teófilo também condena as contradições dos poetas pagãos, contudo faz referências a eles para sustentar as palavras dos profetas. "O Pseudo-Justino apresenta Homero como divulgador de genealogias divinas, mas depois o cita como quem adere ao monoteísmo; Irineu, além de