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Velhice: Uma estética da existência
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Velhice: Uma estética da existência
E-book264 páginas2 horas

Velhice: Uma estética da existência

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Sobre este e-book

Trata-se de uma obra muito interessante, que de maneira original e instigante oferece elementos importantes para uma gerontologia crítica. São poucos os livros que, no Brasil, abordam o tema da velhice, e Velhice: uma estética da existência, com muita sensibilidade e combinando filosofia e poesia, propõe uma reflexão densa e acurada de modo a rever a banalização com que a velhice tem sido tratada.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jan. de 2022
ISBN9788528305593
Velhice: Uma estética da existência

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    Pré-visualização do livro

    Velhice - Silvana Tótora

    Capa do livro

    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    Reitora: Anna Maria Marques Cintra

    EDITORA DA PUC-SP

    Direção: Miguel Wady Chaia

    Conselho Editorial

    Anna Maria Marques Cintra (Presidente)

    José Rodolpho Perazzolo

    Ladislau Dowbor

    Karen Ambra

    Lucia Maria Machado Bógus

    Mary Jane Paris Spink

    Matthias Grenzer

    Miguel Wady Chaia

    Norval Baitello Junior

    Oswaldo Henrique Duek Marques

    SILVANA TÓTORA

    Velhice

    uma estética da existência

          

    São Paulo

    © Silvana Tótora. Foi feito o depósito legal.

    Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

    Tótora, Silvana

       Velhice : [recurso eletrônico] uma estética da existência / Silvana Tótora. - São Paulo : EDUC : FAPESP, 2016.

        1. Recurso on-line: ePub

        Bibliografia.

    Disponível no formato impresso: Tótora, Silvana.  Velhice : uma estética da existência. São Paulo : EDUC : FAPESP, 2015. ISBN 978-85-283-0514-2

    Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.

    Acesso restrito: http://pucsp.br/educ

        ISBN 978-85-283-0559-3

       1. Envelhecimento - Aspectos sociais. 2. Velhice - Aspectos sociais. 3. Escrita. 4. Estética. I. Título.

    CDD 305.26

    362.6

    EDUC – Editora da PUC-SP

    Direção

    Miguel Wady Chaia

    Produção Editorial

    Sonia Montone

    Revisão

    Siméia Mello

    Revisão

    Eveline Bouteiller

    Editoração Eletrônica

    Gabriel Moraes

    Waldir Alves

    Capa

    Gabriel Moraes

    Administração e Vendas

    Ronaldo Decicino

    Produção do ebook

    Waldir Alves

    Rua Monte Alegre, 984 – sala S16

    CEP 05014-901 – São Paulo – SP

    Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558

    E-mail: [email protected] – Site: www.pucsp.br/educ

    Professora Suzana Medeiros, por me introduzir no experimento da velhice.

    Joaquim, pela presença, companheirismo

    e amizade no percurso de uma estética da existência.

    PREFÁCIO

    Este livro contraria a conhecida suposição de que envelhecer é principalmente perder: perda progressiva dos entes queridos e amigos, perda de saúde, disposição física, capacidades mentais, utilidade social e importância afetiva. Mas ele também se opõe a duas ambições comuns: a primeira, milenar, é aquela de parar o tempo, com o intuito de eliminar a velhice e a morte do seu curso. A segunda é a vontade de ser um velho completamente novo. Contradição nos termos? A publicidade de medicamentos e as técnicas rejuvenescedoras da atualidade não cessam de mostrar que nada é mais natural do que uma velhice jovem. Ora, nos dois casos, o curso da vida adquire a forma de uma montanha, como se somente lá de cima, no auge da juventude, fosse possível ver todo o resto.

    Silvana Tótora não parte desse lugar bem alto para ver a vida envelhecer. Mesmo porque esse envelhecimento é um processo constante, uma condição vital. E ela sabe disso. A imagem da vida exposta ao longo do livro não tem como referência uma idade áurea da saúde e da juventude, na qual a própria existência parece totalmente assegurada. A autora escolhe como ponto de partida e de chegada as experiências nas quais a vida é colocada em xeque, posta em risco. Assim, se o livro não pretende alienar a velhice num asilo, menos ainda ele compactua com uma anestesia de suas mazelas.

    Silvana escreve sobre a necessidade de uma ética e de uma estética correspondentes ao universo dos velhos, mas que não se limitam à linguagem das perdas, à economia dos déficits, à fatalidade dos prejuízos. A autora evoca a necessidade de um cuidado de si sempre aberto às questões: o que pode a velhice? O que ela nos dá, e não apenas o que ela nos tira?

    Ao longo dos capítulos, a velhice é vista como um acontecimento, um destino, mas, também, um experimento. Para isso, vários autores foram convocados, tais como filósofos herdeiros da tradição nietzschiana, mas também poetas, escritores e cineastas. Conclui-se que a velhice não é percebida de modo uniforme, nem como se fosse uma condenação.

    A autora constrói uma narrativa da velhice na qual a soma dos anos e dos desgastes físicos são menos relevantes do que a intensidade de cada momento vivido. Ela transporta-se do trágico na filosofia à possibilidade de viver tragicamente em todos os mares. O que implica uma disponibilidade quase pueril para defender a velhice, mais como aventura do que como desventura.

    Silvana também não recai na necessidade, hoje tão explorada pela mídia, de elogiar os velhos produtivos. Seu livro é um convite a não resignação diante da busca de caminhos para celebrar o fato de estar vivo, incluindo suas penas e alegrias.

    Ora, em plena era de um aumento inusitado da expectativa de vida e de uma ampliação nunca antes vista do mercado da saúde e da juventude, torna-se urgente refletir sobre o que é ficar velho, viver como velho, pensar e desejar em plena velhice. Ao mesmo tempo, com um número cada vez maior de velhos e com um aumento crescente de recursos médicos e terapêuticos para se viver bem, nada mais relevante do que retornar a uma das mais antigas questões da filosofia: afinal, o que é uma vida boa?

    Silvana mostra que essa questão pode ser feita pelos velhos, o que significa que eles também podem fornecer respostas, inventar uma estética e uma ética.

    Denise Bernuzzi de Sant’Anna

    Professora Livre-docente do Departamento de História da PUC-SP

    Doutora em História pela Universidade de Paris VII

    Pesquisadora da História do corpo

    Sumário

    PREFÁCIO

    INTRODUÇÃO

    PARTE I

    VELHICE E A ÉTICA DO CUIDADO DE SI

    ÉTICA DA VIDA E VELHICE

    ÉTICA DA VELHICE E CUIDADO DE SI

    A VIDA NAS DOBRAS... AS DOBRAS DA VELHICE

    GENEALOGIA DA VELHICE

    PARTE II

    POLÍTICA, CORPO E VELHICE

    A VELHICE COMO OBRA DE ARTE: A GRANDE POLÍTICA DO CORPO

    Um viés nietzschiano

    PARTE III

    HABITAR POETICAMENTE O MUNDO

    UMA EXISTÊNCIA ATRAVESSADA PELA VIDA

    INVENÇÕES DA VELHICE

    VELHICE E OLHAR: O CORPO CONCENTRADO NOS OLHOS

    HILDA HILST: DESENCARCERAR A VIDA

    MANOEL DE BARROS: O DEVIR CRIANÇA DA VELHICE

    VELHICE E AMOR FATI: UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    INTRODUÇÃO

    Há quase uma década, venho escrevendo sobre a velhice e o envelhecimento. A escrita acompanhou as transformações do meu corpo e disparou um pensamento inconformado com o tratamento dado, na atualidade, à velhice e ao envelhecimento. Nesse percurso, foram vários e diferentes os encontros experimentados. Todos eles, na sua singularidade, comprometidos com o presente na sua vulnerabilidade e transformação possíveis. Ressaltar as fissuras desse tempo e aprofundá-las, como também construir uma velhice como estética da existência, configuraram-se no percurso seguido nos textos reunidos neste livro.

    Escrever é um modo de pensar, contrariar o pensado e lançar--se a um porvir. Um ainda não vivido que, no entanto, pode ser experimentado. Não se escreve para se revelar; por uma questão de saúde e de amor, deve-se poupar a si e aos demais de nossas neuroses. A escrita, como a vida, é pura invenção de outros possíveis. Escrevemos por um afeto forte demais que nos arrasta para fora do que já é sabido e vivido. É preciso tratar a vida com delicadeza e leveza, por isso não acumulamos saberes e vivências, mas lançamo-nos aos experimentos.

    A escrita é um caso de amor à vida. Uma tentativa de furar os bloqueios, romper modelos para fazer fluir as forças e os afetos potentes. Uma política de resistência percorre esses escritos, daí a escolha dos filósofos Nietzsche, Foucault e Deleuze e dos poetas Manoel de Barros e Hilda Hilst. Todos eles criaram um pensamento avesso ao conformismo, seja o da linguagem, seja o dos valores vigentes. Na companhia desses autores em leituras frequentes, na escrita e nos cursos ministrados, pude lutar para vencer o niilismo, sem resignar-me aos tempos presentes, e intensificar a afirmação da vida na sua tragicidade.

    Escolher uma boa companhia não é nada fácil! Estamos sujeitos a muitos maus encontros que nos produzem tristezas e diminuem nossa força de agir ou de existência. A leitura e a escrita permitem o agenciamento de amigos que aliviam o peso de uma relação de si consigo. Escrever e ler são, portanto, uma solidão povoada de muitos. Há um sentimento de prazer nesse tipo de solidão.

    Feita a escolha dos companheiros de percurso, municiamo-nos de ferramentas poderosas para o enfretamento da velhice como um problema do presente. A urgência desses escritos veio de uma insatisfação com o estado das coisas diante das potências da vida. Os discursos sobre a velhice que povoam os meios de comunicação são intoleráveis. Nestes circulam uma profusão de pesquisas científicas das mais diferentes áreas que avalizam os modelos vigentes de envelhecer. A senha para um discurso ser aceito é a defesa do envelhecimento com qualidade de vida para uma velhice ativa.

    Os discursos se norteiam pela lógica da prevenção e do consumo produtivo das ofertas do mercado da saúde. Os especialistas compreen-dem por qualidade de vida e velhice ativa uma forma de gozar a vida. Esse gozo subtende uma saúde normalizada por padrões estatísticos e monitorada individualmente por agentes de saúde do Estado e pelas empresas de seguro privadas. Todos imbuídos na difusão dos valores de uma sociedade de consumo de bem-estar e estilos de vida ditos saudáveis.

    A lógica desse modo de pensar – se é que podemos denominar de pensar a simples reatividade reprodutiva – apoia-se em estatísticas sobre o aumento da longevidade e do número de velhos na sociedade atual. Se o envelhecimento da população é um fato e se iremos envelhecer, então é preciso a prevenção contra os males que acometem o corpo, reduzido aos aspectos biológicos, para uma velhice ativa.

    Temos, portanto, um circuito que gira em torno do mesmo, qual seja, de um senso comum que afirma o envelhecimento inevitável, do qual se deduz um bom senso de prevenir os acasos de um envelhecimento aleatório, fora de controle. Seremos todos velhos, dizem os especialistas. E disso derivam seu poder sobre o corpo da população, seja em que idade for, pois prevenir é antecipar os males e combatê-los. Somos, então, alvos do controle ou monitoramento.

    Em seus estudos das relações de poder, Foucault construiu o conceito de biopolítica¹ para especificar, na atualidade, a gestão da vida biológica da população por dispositivos de poder que visam reduzir as taxas de mortalidade, aumentar a expectativa de vida, etc. A implicação da biopolítica ou biopoder é um assujeitamento da subjetividade ao modelo de produção de uma vida saudável e longeva. O aumento da população de velhos configurou-se, na atualidade, num problema político.

    Não sabemos de antemão que encontros ou amores desencadeiam a formulação de um problema para o pensamento. Entendemos que a possibilidade de uma vida em sua extensão no tempo nos desafia a pensarmos o porquê se deseja viver tanto. Não estamos preocupados, como a maioria, com o que iremos fazer com esse aumento do tempo de vida. Pode-se viver simplesmente. Viver para experimentar algo forte demais no encontro com as potências do corpo que é vida. Seria a velhice um momento privilegiado para simplesmente ser, como afirmou Deleuze, livre das imposições de um cotidiano de obrigações?

    Mas afinal, como conceituar a velhice? Deleuze e Guattari disparam uma ideia que nos ajuda a pensar a velhice independentemente do marco cronológico. Ouçamos os autores: ora envelhecemos segundo a história e com ela, ora nos tornamos velhos num acontecimento muito discreto (Deleuze e Guattari, 1993, p. 143). Trata-se de pensar a velhice como acontecimento.

    Deleuze e Guattari chamam de o acontecimento a parte do que escapa à sua própria atualização em tudo o que acontece (...). É o que escapa ao estado das coisas, ao vivido, ao corpo (...), o que não para de subtrair-lhe ou de acrescentar à sua atualização (ibid., pp. 201-212).

    Por sua vez, o conceito, com base nos referidos autores, não é uma representação que designe um sujeito e um objeto, mas sim o impensável no pensamento. Ou seja, aquilo que não foi pensado e, contudo, só pode ser pensado. Assim posto, o conceito provoca os fluxos ordinários do senso comum e das opiniões, liberando as singularidades.

    É possível ligar o conceito ao acontecimento. Isso porque um conceito, assim como o acontecimento, não se confunde com os estados vividos, mas se erige em sobrevoo com eles. E mais, cada conceito talha um acontecimento, destacando-o do estado das coisas. O conceito, em sua construção, traça um acontecimento por vir (ibid., p. 46).

    O tempo do acontecimento não é uma sucessão ao que acontece, mas sim um entretempo, o que passa entre os instantes vividos; ainda por vir e já chegado (ibid., p. 204). Nessa perspectiva, o tempo se desvincula da medida do movimento. Nada se passa, mas tudo se torna, de tal maneira que o acontecimento tem o privilégio de recomeçar quando o tempo passou. Nada se passa, e todavia tudo muda... (ibid.). No atual, como atualização de um acontecimento, nós deixamos de ser o que somos para ser o que estamos nos tornando. Ou seja, tornamo-nos diferentes de nós mesmos. Assim, o instante atual afirma o futuro. Lançar-se ao acontecimento é fazer retornar o instante sempre diferente.

    Pélbart ressalta no pensamento de Deleuze o privilégio do futuro. Entretanto, quando o futuro é pensado à luz da virtualidade pura [como acontecimento], ele deixa de ser um segmento do tempo, reabsorvendo--se como dimensão da potência (Pélbart, 1998, p. 182). O futuro concebido como acontecimento virtual coloca o tempo na dimensão da vida. A conexão entre os termos conceituais vida e tempo compõem o conceito de velhice como acontecimento. Concebe-se o tempo como exterioridade pura; e o tempo como essa exterioridade ou o fora, sob a condição da dobra, é um tempo saído dos gonzos que dobra e desdobra em acontecimentos novos e subjetividades por vir. Com essas coordenadas, com base em Deleuze, podemos formular um conceito: uma velhice... existência como dobra do tempo do acontecimento, atualizando, a cada momento vivido (kairós), a vida como [d]obra de arte.

    Envelhecemos, sim, em nosso corpo biológico, mas a vida como acontecimento renova nossas existências. O tempo passa com as idades, mas nada passa e tudo muda com o tempo da velhice como acontecimento.

    Mas porque a escolha de poetas e filósofos que, aliás, pouco ou quase nada escreveram acerca da velhice? E quando o fizeram foi num sentido depreciativo, à exceção de raras inferências feitas por Deleuze? Ora, porque com eles pudemos construir um conceito de velhice como dimensão da vida como acontecimento, invenção e resistência.

    O termo velhice, para esses filósofos e poetas, relacionava-se à impossibilidade de criar, um esgotamento do pensamento. Não seria, então, esse esgotamento o efeito de uma vida intensa? Esgotar a vida é o que aprendemos com esses artistas. Eles foram pródigos e intensos naquilo que fizeram. Não pouparam a si mesmos e por isso foram doadores de vida. De seus escritos não emanam nenhum modelo ou fórmulas para serem consumidas por aqueles ávidos do receituário de autoajuda. Esses artistas conclamam os amigos que não querem se preservar.

    Assim, podemos situá-los como contemporâneos. Agamben, em O que é o contemporâneo (2010), aproxima a ideia de contemporâneo do conceito de acontecimento de Deleuze. Ser contemporâneo envolve dois conceitos. O primeiro situa o contemporâneo como aquele que está simultaneamente, em relação ao tempo presente, numa desconexão ou dissociação. Portanto, ele é um inatual, de acordo com Foucault (2000a), ou intempestivo, segundo Nietzsche (2003b). E é em razão desse deslocamento que, segundo Agamben, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (2010, p. 59).

    O tempo, tanto individual como histórico coletivo, porta uma fratura e, segundo Agamben, O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra (ibid., p. 61). O poeta, em sua singularidade, não adere aos valores de seu tempo, mas se distancia, não para permanecer no conforto da imaginação e no devaneio, mas para afrontá-lo.

    Ser contemporâneo, para Agamben, portanto – como já enunciado por Nietzsche sob a denominação de intempestivo –, é estar no tempo, contra o tempo, por um tempo vindouro. Enunciado esse insistentemente repetido por Deleuze em quase toda a sua obra.

    Bem, de posse do conceito de velhice articulado ao de acontecimento e contemporaneidade, podemos retomar o problema que orientou esses escritos, a saber, o da potência da velhice. Diferentemente de uma conduta preventiva da vida com vistas à velhice com qualidade de vida, afirmamos a liberação da velhice para o acontecimento da vida. Deixar fluir a vida para a invenção de modos singulares de existência. Posto dessa forma o problema, selecionamos os encontros com artistas que na sua velhice continuaram envolvidos com a sua arte – cujo produto envolve também a sua própria existência. Assim, a arte configurou-se em um modo singular de subjetividade, não sujeitada ou resistente.

    Consideramos dispensável o relato biográfico por entender que a escrita e vida não se diferenciam. A escrita é um experimento das relações de forças e afetos que atravessam o corpo.

    Esperamos que esses escritos possam afetar as áreas de saberes consolidados, no campo das ciências sociais e, particularmente, da gerontologia, ao provocar o estremecimento de suas fronteiras disciplinares. Particularmente em relação à ciência política, desejamos que a abertura dos limites fronteiriços à filosofia e à arte venha interceptar qualquer pretensão a propor políticas de intervenção e gestão da vida dos velhos individualmente ou como população. Tampouco se deixa seduzir por propostas de uma nova sociedade que alija os protagonistas dos processos de produção de seus próprios percursos singulares, e mais, recusa-se a falar por, mas põe-se ao lado daqueles que se sentem incomodados, ou melhor, que resistem ao tempo presente.

    Os textos que se seguem podem ser lidos de modo aleatório porque não foram produzidos em sequência. Todos eles, contudo, possuem o mesmo eixo condutor: resistir aos discursos produzidos na atualidade sobre velhice e envelhecimento e se nortear pelo problema da potência da velhice como obra de arte.

    Optamos por manter cada texto em sua autonomia, mesmo com o risco de uma repetição de argumento. Entendemos que essa repetição se tornou essencial para a atualização do problema em foco e dar a ele novas dimensões; e quiçá, podermos experimentar a arte das nuances impulsionada pela tonalidade dos afetos.

    A escolha dos aliados se deu motivada pela potência dos encontros, persistindo na afirmação das linhas da diferença e, assim, reeditarmos da filosofia de Deleuze que as diferenças se compõem para a invenção de novos devires. A apreensão da linguagem semiológica dos afetos, o esforço para interpretá-los e tornar explícito o impulso que o dirige orientaram a escolha dos aliados: ora escritos poéticos ou imagéticos, ora pensamentos de filósofos e, em menor proporção, uma bibliografia especializada no tema.

    Entendemos que uma linguagem mais próxima dos afetos e de um pathos estava mais apta à expressão de um pensamento experimental e de resistência. Vencemos nossas limitações numa aliança com poetas e filósofos escolhidos após criteriosa seleção. Se sozinhos não alçamos uma originalidade, juntos esperamos ter produzido um pensamento inédito em relação à velhice. É uma arte traçar uma política de produção de bons encontros! Foi lenta e demorada as escolha que fizemos: repetindo o já dito, os filósofos – Nietzsche, Deleuze, Guattari e Foucault – e os poetas – Hilda Hilst e Manoel de Barros.

    Esse pensamento que reputamos singular nutriu-se das provocações disparadas pelo cotidiano midiático alardeando um receituário para o envelhecimento e a velhice; este, quase sempre, avalizado por especialistas e apoiado em pesquisas científicas publicadas em revistas qualificadas. Ora, de que valem experiências e pensamentos se eles servem como caução à sociedade e à cultura? A seleção dos encontros foi impulsionada pelo grau de comprometimento com a invenção de uma vida expressa em seus escritos e experimentos inassimilável à sociedade e à cultura vigente.

    A divisão em três partes obedeceu, em alguma medida, aos experimentalismos em graus variados e aos encontros privilegiados. Assim, a Parte I se beneficia largamente da genealogia de Foucault sobre os dispositivos de poder e a governamentalidade nas sociedades atuais. Empregamos as referências analíticas desse autor para a explicitação do funcionamento dos dispositivos e tecnologias de governo dos indivíduos e da população de velhos na atualidade. Servimo-nos também desse filósofo dos estudos da Antiguidade greco-romana para uma genea­logia do sujeito ético. Destes últimos trabalhos extraímos os conceitos de cuidado de si e de estética da existência para pensarmos a

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