Direito civil brasileiro: parte geral
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Direito civil brasileiro - Rogério Andrade Cavalcanti Araujo
Capítulo 1
CONCEITO E FONTES DO DIREITO
Aspectos introdutórios
O ser humano, desde a sua concepção, ostenta uma série de necessidades que devem ser satisfeitas para garantir a sua sobrevivência. Ideal seria se os bens da vida, ao suprirem tais demandas, fossem ilimitados. Desafortunadamente, não o são. Exsurge, de tão simples apontamento, a gênese da tormentosa questão que desafia a atenção de estudiosos das mais diversas áreas há séculos: como disciplinar a distribuição dos escassos bens da vida?
Sabe-se, por outro lado, ser o homem um ser gregário, verdade resumida na feliz expressão "unus homo nullus homo". Assim, na infindável rede de relações travadas no seio dos agrupamentos humanos, distintas podem ser as soluções encontradas para a distribuição dos bens existentes.
Nesse sentido, Aurelio Candian¹ adverte que a necessidade por um bem da vida pode ser satisfeita abusando-se do uso da força, ou pelo acerto das vontades, a exemplo do que ocorre na permuta de um objeto por outro. Prossegue ao nos lembrar que, na primeira hipótese, em regra, a reação ao uso da força se faz também com violência, desencadeando a esterilidade prática de todas as atividades individuais e coletivas, com a consagração da lei do mais forte.
A conservação dos grupos humanos, portanto, exige a disciplina da atuação de seus respectivos atores por meio de regras de conduta. Como adverte Demolombe², a religião, a moral, a filosofia e o direito têm como proposta o estabelecimento de regras de ação e conduta para os homens. Não raro, a última das ciências citadas se vale daquelas outras para disciplinar a conduta intersubjetiva. Todavia, a coincidência não é perfeita, o que tem levado os estudiosos a tentarem divisar a regra jurídica especialmente das regras morais.
Direito e moral
Especial relevo, nessa esteira, adquire a diferenciação entre direito e moral. Conforme asseverado, muitos são os pontos de contato entre os dois, não obstante a existência de vozes que dispensem a justificação do primeiro pela última³.
Contudo, nossas atenções devem volver-se à invocada distinção, sintetizada, com rara precisão, pelos irmãos Mazeud⁴:
"A regra de moral é uma regra de conduta individual que se dirige à consciência do homem e, ao largo de toda coação, propõe, ao seu turno, um ideal de justiça e de caridade.
A regra de direito é uma regra de conduta social que, sancionada pela coação, deve ter por fim fazer que reine a ordem ao procurar a segurança dentro da justiça".
Esquematicamente, portanto, algumas principais diferenças devem ser lembradas entre moral e direito: a) o âmbito da moral se volta ao campo da consciência individual (sendo, pois, unilateral), enquanto o direito deve voltar-se a viabilizar a vida em sociedade (é, portanto, bilateral), impondo limitações, ao mesmo tempo em que confere a exigibilidade de determinados procedimentos⁵; b) as regras morais são observadas voluntariamente; logo, as sanções por elas impostas são de índole interna, ao passo que as regras jurídicas são de observância obrigatória e a sua violação, ordinariamente, sancionada pela coação estatal⁶; c) a moral tem como intento maior a prática do bem, enquanto o direito tende a evitar que se prejudique outrem⁷; d) a moral diz respeito à paz interior, ao contrário do direito, que visa à paz exterior⁸; e) o campo da moral é mais amplo, sendo suas normas mais difusas, enquanto o direito é mais restrito e suas normas são mais definidas⁹.
Apreciadas as questões suscitadas, resta, ainda, uma a ser dirimida. Qual seria, enfim, o conceito de direito?
O conceito de direito
A perplexidade acerca do conceito de direito revela-se com clareza nas plásticas palavras de Alberto Trabucchi. Segundo ele, existem "volumes e volumes de leis, bibliotecas de obras sobre direito, palácios para a administração da justiça, organizações escolásticas e universitárias para os estudos jurídicos; mas ainda hoje permanece difícil responder a essa simples pergunta: ‘o que é o direito?’"¹⁰.
Em parte, a dificuldade para o tratamento exato do tema decorre da polissemia do vocábulo direito, que ora significa o conjunto de regras de conduta de determinado povo (Direito do Brasil, da Argentina, da Alemanha, entre outros), ora indica determinadas prerrogativas, asseguradas aos indivíduos, pelo ordenamento jurídico, em face dos demais (reclamar o pagamento da dívida é direito do credor), sem que se olvide de igualmente nobre significado – a ciência jurídica¹¹.
Tomando o Direito como um conjunto de regras de conduta, acepção que mais nos interessa, é que se colhe a memorável definição de Vicente Ráo: é o direito um sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhes atribui, regula condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em consequência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público
¹².
Retomam-se aqui as reflexões introdutórias. O Direito não importa ao eremita. Indica, em realidade, os recíprocos limites a serem observados pelos homens no convívio social.
Não se imagine, porém, que as regras jurídicas somente sirvam para exortar os atores sociais a se respeitarem. Não – muito além disso –, aquelas a eles se impõem, permitindo, assim, que a paz e a segurança sociais tomem lugar, como lastro mínimo para o bem-estar dos homens.
Assim colocada a questão, vejamos algumas acepções da expressão direito.
Direito Objetivo e Direito Subjetivo
Corriqueiramente se emprega a expressão direito para a designação do conjunto de normas de condutas, editadas pelo Estado, sendo voltadas ao regramento da vida em sociedade, tratando-se, nessa acepção, de direito objetivo.
Não raro, o jurista vale-se da expressão direito para se referir a faculdades asseguradas a determinado sujeito, passando, portanto, a ser designada, em tal hipótese, de direito subjetivo. Nesse caso, às mencionadas faculdades, podem-se contrapor a existência de deveres, oriundos das normas jurídicas, ou de obrigações advindas, por exemplo, de contratos.
Algumas são as correntes que buscam explicar a essência dos direitos subjetivos. A primeira delas aponta o instituto como o poder da vontade¹³. Seus próceres são Savigny e Windscheid, sofrendo severas críticas, em especial pela alegada inexistência de vontade juridicamente relevante que justifique a existência de direitos para os portadores de deficiências mentais ou para os infantes.
A crítica à teoria do poder da vontade engendrou o surgimento de outra, a do interesse jurídico, por meio da qual dois princípios existiriam a presidir o direito subjetivo: o fim prático do direito (o interesse do titular que o caracteriza) e a sua necessária proteção, desprezando-se o papel da vontade para a caracterização do instituto. O seu maior expoente foi o alemão Ihering¹⁴.
Duas tendências surgiram a partir das mencionadas escolas. Havia aqueles que refutavam as explicações das duas, bem como existiam os que vislumbravam o direito subjetivo como o somatório dos elementos invocados pelos adeptos da teoria da vontade e da teoria do interesse.
Recasens Siches¹⁵ está entre aqueles que repudiam as conclusões das escolas de Savigny e de Ihering. Pondera o jusfilósofo que o direito subjetivo não é um fenômeno da vontade, pois é atribuído a pessoas despidas juridicamente dela. Por outro lado, entende que defini-lo como um interesse juridicamente protegido é equivocado, pois sua essência não recai na existência de um interesse, que nem sequer seria algo distinto da vontade (pois o agente só pode querer aquilo que é objeto de seus interesses), mas na proteção jurídica especial que demanda a mencionada categoria. Assinala, pois, que as críticas mencionadas não se apagam quando os requisitos das duas escolas são combinados; antes, são potencializadas.
Convencido, portanto, do equívoco nas definições de direito subjetivo então existentes, propõe a sua própria, assim delineada: Resulta, portanto, que direito subjetivo – em sua mais geral e ampla acepção – é a qualidade que a norma atribui a certas situações de algumas pessoas, consistente na possibilidade de determinar juridicamente (por imposição inexorável) o dever de uma especial conduta em outra ou outras pessoas
¹⁶. O direito seria, pois, uma projeção, no mundo real, dos preceitos normativos. Três situações seriam, então, identificáveis como tal: a) o direito subjetivo como mero reverso material de um dever jurídico de terceiros, imposto pela norma independentemente da vontade de seu titular (como seriam os direitos de personalidade); b) o direito subjetivo como pretensão (possível nas hipóteses em que o titular do direito tivesse, à sua disposição, o aparato coercitivo do direito para exigir de terceiros o cumprimento de suas obrigações); e c) o direito subjetivo como poder de formação jurídica (consistente na faculdade que a norma atribui a uma pessoa de determinar o nascimento, a modificação ou extinção de relações jurídicas, na hipótese de contratos de alienações de bens, de cessão de crédito, entre outros).
Enveredando por trilha absolutamente diversa, Arthur Kaufmann¹⁷, jusfilósofo alemão, combinando elementos das teorias de Savigny e Ihering, de forma muito apropriada, definiu o direito subjetivo como o poder da vontade concedido pelo direito objetivo para a realização autônoma dum interesse juridicamente protegido (bem jurídico)
.
O sucesso da teoria mencionada decorre, em parte, do êxito em afastar as críticas feitas ao papel da vontade na formação do direito subjetivo. Assim, como esclarece Von Thur¹⁸, a relevância da vontade na fixação do conceito de direito subjetivo não pode ser negada ao se invocar a existência de direitos subjetivos para crianças e enfermos mentais, pelo fato de não possuírem o discernimento necessário para o seu exercício. Afirma o renomado jurista que (...) o senhorio da vontade existe também nas pessoas incapazes, ainda quando o sujeito não possa exercê-lo. Trata-se de circunstâncias que, ou são passageiras (infância), ou se concebem como tais (enfermidade mental)
. Sobreleva, então, a figura do representante, substituindo-se, por sua vontade, a que falta ao representado ou que se lhe mostra incompleta.
Refutada, pois, a crítica ao império da vontade, cabe destacar um fundamental aspecto lembrado por Ihering no seu conceito de direito subjetivo: a proteção deferida ao instituto pelo ordenamento jurídico. Não haveria, contudo, perfeita identidade entre os direitos subjetivos e todos os interesses protegidos por lei.
A comparação torna-se facilitada por uma descrição mais plástica do fenômeno. Acaso se pudesse imaginar a maneira como os interesses (juridicamente protegidos) se colocam ao redor de um indivíduo, imaginando-se diversas esferas concêntricas, apenas quanto à mais estreita delas é que se poderiam apontar direitos subjetivos, e tal esfera indicaria justamente aquela que engloba as situações em que se determina, por força da vontade, uma conduta a terceiros.
Dessa forma, consoante as lições de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello¹⁹, conferem interesse legítimo aos administrados as normas de direito objetivo que regem a realização de interesse coletivo, mas, reflexamente, ao mesmo tempo, satisfazem os interesses de determinados indivíduos. Assim, tais particulares, a que as regras concretamente atingem, têm interesse especial na sua observância
. Tomemos como exemplo uma invasão de área particular de proteção ambiental por madeireiros. Nós, mesmo não sendo donos da área, temos interesse legítimo em provocar o Ministério Público para que, em atenção às normas ambientais, promova o fim das derrubadas de árvores no terreno. Apenas o proprietário, porém, terá direito subjetivo para, em nome próprio, mover ação para que o invasor deixe de derrubar as árvores de seu terreno e saia do local.
Direito Público e DIREITO Privado
O Direito tem por objeto assuntos que vão desde a regulação da vida privada até a mais relevante matéria atinente a assuntos de Estado. Alguns temas, portanto, são inseridos no que se convencionou chamar Direito Privado e tantos outros no Direito Público.
Gustav Radbruch²⁰ expõe a importância dos conceitos ora tratados, ressaltando que não são ideias que podem ou não deixar de ser utilizadas por qualquer ordem jurídica. Afirma, acertadamente, que antecedem, por força de inegável necessidade lógica, toda experiência das coisas do direito, condicionando-as, e sendo, portanto, conceitos jurídicos apriorísticos.
Há vozes que se negam a admitir a persistência da dicotomia ora estudada. Miguel Reale²¹, todavia, não apenas engrossa o coro dos que entendem pertinente a divisão entabulada, como traça critérios sólidos para tal distinção. O primeiro deles diz respeito ao conteúdo da relação jurídica. Assim, quando se almeja imediata e prevalecentemente o interesse geral, o Direito é público. Será privado, todavia, se o interesse particular for o objetivo mais importante. O segundo critério aponta para a forma da relação.
Nesse caso, se a relação jurídica for de coordenação, trata-se, em geral, de Direito Privado. Sendo, por outro lado, de subordinação, o Direito é Público.
Os critérios examinados, por óbvio, não são estanques. Admitem concessões recíprocas. Dessa forma, o Direito Privado vem dedicando maior espaço, principalmente após a edição do Código Civil de 2002, para ideias outrora quiméricas nessas sendas, como, por exemplo, a função social dos direitos, a eticidade e a solidariedade entre os atores jurídicos. Por outro lado, mesmo no Direito Público, em determinadas hipóteses, o império estatal é refreado, e a lógica da coordenação pode servir como regra a presidir as relações entre o Estado e os particulares (basta pensar no caso de um ente estatal locar bens, portando-se, em muitos aspectos, como um particular na gestão de bens dominiais).
O Direito Civil, cujo estudo ora encetamos, apresenta-se como ramo do Direito Privado. A crescente produção de normas de interesse público e os numerosos estudos sobre a sua constitucionalização, que oportunamente serão apreciados, não têm o condão de infirmar essa realidade.
Estabelecer a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado não conduz o intérprete do Direito a equívocos, desde que este tenha em mente que a mencionada classificação se opera por uma necessidade didática, de estabelecimento de postulados específicos para cada uma dessas áreas. Não se deve entender, portanto, que os dois ramos sejam estanques e que seus princípios não possam ser intercambiados, como será oportunamente explanado ao se tratar da festejada constitucionalização do Direito Privado.
Apreciados, pois, alguns aspectos básicos acerca da compreensão do significado do vocábulo direito, passemos ao estudo das fontes do direito, vale dizer, da origem das normas jurídicas.
Fontes do Direito – aspectos introdutórios
Fonte significa origem, ponto de onde brota um veio d’água. A aparente simplicidade do alcance do termo contrasta com os complexos problemas que enseja para o operador do Direito.
Sensível às dificuldades que o estudo oferece, Luis Legaz y Lacambra²² adverte que, para a ciência jurídica, o termo fonte assume múltiplos significados, entre os quais se pode arrolar: a) fonte do conhecimento do que historicamente é ou tem sido o Direito (antigos documentos, coleções legislativas etc.); b) força criadora do Direito como fato da vida social (a natureza humana, o sentimento jurídico, a economia etc.); c) autoridade criadora do Direito histórica ou atualmente vigente (Estado, povo); d) ato concreto criador do Direito (legislação, costume, decisão judicial etc.); e) fundamento de validez de uma norma concreta de Direito; f) forma de manifestar-se da norma jurídica (lei, decreto, regulamento, costume); g) fundamento de um direito subjetivo
.
Arremata o jusfilósofo que os diversos significados conduzem a uma sistematização tripartite das fontes do direito, pois, de um lado, haveria a sua identificação como fundamento do direito (Deus, razão, vontade, natureza, entre outros); de outro, os grupos sociais dos quais nasceriam as normas jurídicas (Estado, Igreja, comunidade, apenas para que se lembre de alguns); e, por fim, a alusão à origem da norma numa autoridade ou força social reconhecida pelo Direito Positivo que, em razão de determinado procedimento, confere à mencionada norma força concreta, a saber, a forma de lei, costume, entre outros.
Inúmeras, portanto, são as possibilidades de classificação das fontes jurídicas. A doutrina, com alguma frequência, subdivide as fontes do direito em fontes formais e materiais²³. Estas seriam os elementos que concorreriam para a determinação do conteúdo das normas jurídicas, ou seja, os fatos e problemas que emergem da sociedade, revestidos por componentes materiais, históricos, racionais e ideais²⁴, enquanto aquelas seriam os meios pelos quais se manifestam as normas jurídicas, independentemente de seus respectivos conteúdos²⁵, sendo comumente arrolados entre elas a lei, os costumes e, eventualmente, a jurisprudência, a doutrina, bem como os princípios gerais do direito²⁶.
Outra usual classificação divide as fontes do direito em fontes diretas ou imediatas e indiretas ou mediatas. Parte considerável da doutrina, entre os quais se pode citar Paulo Nader²⁷, Pascual Marín Pérez²⁸, bem como Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona²⁹, identifica as fontes diretas como formais, na medida em que criam, por si, normas jurídicas, ao contrário das indiretas, que, em realidade, fornecem subsídios para a correta aplicação do direito.
Mais razoável parece-nos o entendimento de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello³⁰, ao apontar as fontes diretas, as indiretas e as complementares como espécies de fontes formais. As primeiras seriam aquelas que primeiro revelam o direito positivo, ou seja, a lei. Ocorre, todavia, que essa não esgota o direito em sua integralidade, fazendo com que surjam as chamadas fontes subsidiárias ou indiretas, entre as quais englobamos os costumes e o regulamento.
Por fim, tanto as fontes imediatas quanto as subsidiárias, acima tratadas, têm seus respectivos significados fixados de forma correta pelas fontes complementares, sendo seu maior exemplo os princípios gerais do direito.
Buscar, todavia, uniformidade quanto às incontáveis maneiras de se classificar as fontes do direito é tarefa que escapa aos estreitos propósitos da presente obra, sendo mais profícuo o estudo de cada uma das suas respectivas espécies, o que, doravante, será levado a cabo.
As fontes em espécie – a lei
Giorgio del Vecchio³¹ define lei como o pensamento jurídico deliberado e consciente, expressado por órgãos adequados que representam a vontade preponderante de um grupo associado
. Não obstante a autoridade do conceito, não se lhe pode consagrar como a única, pois também a expressão lei é dotada de inúmeros significados. Anote-se, em primeiro lugar, sua acepção amplíssima, quando utilizada como sinônimo de qualquer norma jurídica coercitiva, escrita ou não; lata, qual seja, a de norma jurídica escrita, emanada de fonte estatal e outra estrita, aplicável tão somente às normas escritas, gerais e abstratas, provenientes dos órgãos com competência legiferante³². Ocupemo-nos da última delas, que define com precisão nosso objeto de estudo.
Qual seria, portanto, a pedra de toque para o correto dimensionamento da lei como fonte do direito? Duas são as principais teorias que buscam encontrar o eixo em torno do qual gravita o conceito de lei – a teoria da generalidade e a teoria da novidade³³.
A primeira das teorias, ou seja, a da generalidade, aponta como traço característico da lei o fato de ser uma regra coercitiva, impessoal, de observância geral. Vale dizer, como consectário lógico, que pouco importaria a roupagem da norma escrita – fosse ela destinada a um grupo indeterminado de pessoas, forçosamente estaríamos diante de uma lei. Ocorre, todavia, que atos normativos existem e que, embora genéricos, não poderiam ser equiparados à lei, como sói acontecer com os regulamentos.
A segunda teoria – da novidade – aponta como característica preponderante da lei o fato de que, seja para uma multidão, seja para uma única pessoa, ela deve criar novo direito. A grande crítica a essa teoria, por outro lado, reside no fato de ser de difícil justificativa constitucional a edição de leis voltadas para pequenos e específicos grupos (leis casuísticas), que se revelariam inconstitucionais por violarem o princípio da isonomia.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello³⁴ entende possível a conciliação das duas teorias. Necessário observar que, ontologicamente, a lei pressupõe generalidade, pois, do contrário, casuística, acabaria por ferir o princípio da isonomia. Mas não basta: deve a lei inovar no mundo jurídico de forma primária, porquanto há outros atos que, embora inovadores, só o fazem de forma derivada, para fiel aplicação da norma que pretendem regulamentar.
Em síntese: Como regra coercitiva, tem a lei força estável e predominante, e comando superior. Como regra geral, aplica-se a todos que estão nas condições previstas pelo texto escrito. Como regra abstrata, é suscetível de aplicação a todos os casos iguais, que poderão apresentar-se no futuro. Como regra impessoal, tem concernência indistinta, indeterminada, sem prévia individualização em dada hipótese. Como regra originária inovadora, superpõe-se a todas as regras jurídicas anteriores, dentro do âmbito de sua força jurídica, respeitados os textos constitucionais
³⁵. Nesse sentido, o conceito de lei reveste-se de adornos muito mais materiais do que formais, não se compatibilizando sua classificação de fonte imediata do direito com a ideia de que seja um simples ato normativo editado pelo Poder Legislativo, qualquer que seja o seu conteúdo.
A lei, como exposto alhures, é a principal fonte formal do direito em nosso ordenamento. Convém, portanto, que seja analisada a importância do princípio da legalidade em nosso panorama jurídico.
O Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade tem sede constitucional, sendo objeto de menção pela Carta de 1988 em trechos distintos. No inciso II do artigo 5º, consagra-se a regra de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei
. No artigo 37, por outro lado, ressalta-se que a Administração Pública é regida pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Seria, portanto, a expressão legalidade, nos mencionados comandos constitucionais, empregada com o mesmo sentido?
A resposta evidente é não! Em realidade, abraça o texto constitucional o emprego da legalidade em duas acepções: a preeminência da lei e o princípio da reserva de lei³⁶. Quanto à primeira delas, também conhecida como legalidade em sentido amplo, sabe-se representar uma fórmula negativa, dirigida especialmente a todas as pessoas naturais ou coletivas sob o manto de nosso ordenamento. Cinge-se a uma regra de conformidade por meio da qual tudo que não for vedado por lei é válido, ou, em outras palavras, nossos atos concretos só estariam maculados por eventuais vícios na medida em que contrariassem uma lei determinada.
Esse emprego do princípio da legalidade, todavia, difere da segunda acepção, ou seja, da reserva legal, sendo ela caracterizada como regra de compatibilidade, fórmula positiva por meio da qual cada ato positivo de determinados entes dependeria sempre de autorização específica. Enquanto a primeira utilização do princípio pode ser resumida pela fórmula de que todo ato que não for contrário à lei pode ser praticado
, a segunda restringe-se ao entendimento de que só se pode praticar o ato que for determinado por lei
. A última acepção circunscreve-se à Administração Pública, encontrando sede material no artigo 37 da Constituição, ao passo que a primeira é de ampla aplicação, voltada a todas as pessoas naturais e coletivas, e insere-se no Capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais de nossa Constituição.
O mencionado princípio dirige a incidência das normas escritas em nosso ordenamento, que podem ser classificadas segundo os aspectos que doravante trataremos.
A classificação das leis
Diversos são os meios de classificar as leis. O primeiro deles diz respeito às leis constitucionais e infraconstitucionais. As primeiras, em seu sentido formal, integram o texto de nossa Carta Fundamental. Materialmente, nas Constituições, costumam constar as regras atinentes a organização do poder, distribuição de competências, exercício da autoridade pública, forma de governo, direitos da pessoa humana, sejam individuais ou sociais, enfim, tudo que trate da composição e operação da ordem política³⁷. Todas as demais são normas infraconstitucionais, cuja existência, validade e eficácia pressupõem sua conformidade lógica com as primeiras. Essa classificação será objeto de maiores reflexões em capítulo específico da presente obra, que abordará a interface entre as normas constitucionais e infraconstitucionais no âmbito do Direito Privado.
Outra importante classificação das leis também decorre da análise da Constituição Federal, que traçou regras de competência identificadoras das normas, quanto à sua origem, em: nacionais (de observância obrigatória por todos os entes da Federação); federais (voltadas à União, como a Lei 8.112/90, que dispõe sobre o estatuto do servidor público federal); estaduais e municipais. Na hipótese de conflitos entre elas, ao contrário do que se imagina, não existe propriamente uma questão de hierarquia para definir a proeminência de umas sobre as outras, mas de competência, vale dizer, a União, por exemplo, não pode se imiscuir em assuntos de competência exclusiva dos municípios, sob pena de ser declarada a inconstitucionalidade da norma federal que tente fazê-lo.
Classificam-se as leis ainda em substantivas e adjetivas³⁸. As primeiras referem-se ao chamado direito material, são o fundo, enquanto as últimas ditam a forma, a maneira pela qual se devem deduzir aquelas em juízo.
Quanto à sua imperatividade ou sua relação com a vontade dos particulares³⁹, as normas são impositivas ou cogentes e dispositivas. As primeiras são aquelas de observância obrigatória, inafastável pela vontade dos interessados, ao passo que as últimas são aquelas que podem ser rechaçadas ou mitigadas por escolha das partes. Assim, são nulas as cláusulas contratuais que, em contratos de consumo, permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral (artigo 51, X, do Código de Defesa do Consumidor). O mencionado dispositivo consumerista não pode, ao alvedrio das partes, ser afastado, representando, portanto, norma cogente. Este não é o caso, todavia, do fiador, que livremente pode renunciar ao benefício de, uma vez demandado pelo pagamento da dívida, exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor (artigo 827 do Código Civil). Estamos, assim, diante de uma norma dispositiva.
As leis, sob o ponto de vista das sanções que delas decorrem, podem ser dispostas como perfeitas, mais do que perfeitas, menos do que perfeitas e imperfeitas⁴⁰. Assim, são perfeitas as leis que tão somente impõem a sanção invalidade para os atos que as vulneram. A venda, por exemplo, realizada por ascendente a descendente sem anuência dos outros descendentes e do seu cônjuge (salvo se o regime matrimonial for o da separação obrigatória) é anulável por força do artigo 496 do Código Civil, que representa, pois, um exemplo de norma perfeita.
As normas mais do que perfeitas são aquelas que não apenas invalidam os atos que as infringem, mas impõem outras sanções por força do seu descumprimento. Exemplo adequado seria o artigo 12 do Código Civil. Este determina que cessem todos os efeitos lesivos a direitos de personalidade, sem prejuízo de sanção pecuniária imposta ao infrator. Assim, um contrato que vulnere indevidamente um direito de personalidade não apenas será reconhecidamente nulo, como poderá ensejar sanção pecuniária.
São menos do que perfeitas as normas que não impõem invalidade por sua infração, embora determinem algum outro tipo de sanção. A transferência de veículos, em território nacional, impõe a comunicação da alienação ao órgão de trânsito local. A infração a esse dispositivo não determina a invalidade da transferência, embora acarrete multa ao adquirente e mantenha o alienante solidariamente responsável por multas e encargos tributários sobre o veículo até que se perfaça a necessária comunicação.
As normas, por derradeiro, cuja inobservância não impõe qualquer sanção são as leis imperfeitas. Exemplo delas é o artigo 1º da Lei Uniforme de Genebra para a emissão de letras de câmbio e notas promissórias. Esse dispositivo indica que uma letra de câmbio deve conter a época do seu pagamento. O artigo 2º da mesma norma ressalva, todavia, que a ausência da indicação do tempo de vencimento faz com que o título se considere vencido à vista. Não há, portanto, qualquer sanção pela ausência de indicação do tempo de vencimento da letra de câmbio, sendo essa norma, assim, uma lei imperfeita.
As leis também são classificadas de acordo com sua duração. Quanto a esse critério dividem-se em leis permanentes e leis temporárias. As primeiras são aquelas de vigência indefinida, que perdurarão até que sejam expressa ou tacitamente revogadas por outra lei, como sói acontecer com a maioria das leis nacionais. Leis temporárias são aquelas com vigência previamente definida, sendo relativamente comuns em direito tributário, em especial para concessão de benefícios esporádicos para contribuintes inadimplentes (como parcelamentos de débitos para os contribuintes que quitarem suas dívidas até determinada data, seguidos de redução de sanções).
Segue-se, por fim, a classificação das leis segundo o seu alcance⁴¹. Podem, consoante o derradeiro critério, ser gerais, especiais, excepcionais ou singulares. As primeiras estabelecem regras universais, aplicáveis, em princípio, a todos os casos, como ocorre com o Código Civil. Situações peculiares, todavia, ensejam a edição de normas que, não obstante a existência, ao seu lado, de preceitos genéricos, demandam regramento próprio: são as chamadas leis especiais. Assim, o Código Civil seria uma norma que, entre diversos outros temas, versaria sobre a generalidade dos contratos firmados na esfera privada, ao passo que o Código de Defesa do Consumidor seria uma norma especial, a tratar apenas de contratos oriundos de relações jurídicas de consumo.
Importa frisar que normas especiais prevalecem sobre as gerais sem revogá-las. Assim, no aparente conflito entre ambas não há que se entender que as últimas perdem a vigência em razão da edição das primeiras. Voltando ao nosso exemplo, na eventual contradição entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, se estivermos diante de uma relação de consumo, prevalecerão as regras do último, sem que se possa reconhecer a ocorrência do fenômeno da revogação.
Existem ainda as leis de exceção, que são as presentes em momentos de anormalidade do sistema, a ensejar a contrariedade às linhas mestras deste. Os atos institucionais editados durante o regime militar são um bom exemplo de tais normas. Restam, por fim, as leis singulares, que contemplam pessoas específicas, previamente apontadas no seu texto. São leis apenas no sentido formal, uma vez que as normas escritas primam por sua abrangência geral. Bom exemplo ocorreu no Distrito Federal. Certa feita, empregados de determinada empresa pública local, em greve, foram reprimidos violentamente durante uma manifestação. Alguns ficaram inválidos e outros morreram em razão da atuação repressiva do Estado. Não tardou edição de lei singular (Lei Distrital 2.502/99) que garantiu aos grevistas que ficaram inválidos e aos dependentes dos falecidos, nominalmente apontados, direito à reparação civil.
A analogia
Machado Neto⁴², com a precisão que lhe é peculiar, afirma que, do ponto de vista lógico, não há que se conceber a existência de lacunas no ordenamento jurídico. Com efeito – como disposto alhures –, o princípio da preeminência da lei aponta que tudo o que não está proibido, está permitido
; logo, não haveria nenhuma forma de relacionamento humano que não estivesse juridicamente regulada. É possível, todavia, que o dito regramento da conduta humana não se encontre imediatamente na lei. Nesse contexto, surgiria uma lacuna da lei (e não do ordenamento jurídico), que deveria ser colmatada por um dos métodos de integração preconizados na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a saber: a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
O primeiro mecanismo de integração, também classificado como fonte do direito, é a analogia. Tem lugar quando, diante de um vazio da lei, aplica-se hipótese prevista em lei semelhante. Washington de Barros Monteiro⁴³ sistematiza os três requisitos de sua incidência: a) o caso analisado não pode haver sido objeto de previsão legal específica; b) a existência de norma que discipline hipótese que guarde pontos de contato com a situação lacunosa; e, c) por fim, impõe-se que o ponto comum entre as hipóteses previstas e não previstas tenha sido o elemento determinante na implantação da regra concernente à questão apreciada pelo julgador.
Duas são as principais espécies de analogia: legis e iuris. A primeira decorreria de um preceito legal específico, a reger hipótese semelhante à lacunosa. A última, por outro lado, extrai-se dos princípios orientadores do ordenamento jurídico como um todo, a fim de se colmatar lacuna de questão sem nenhum ponto de contato com qualquer norma especificamente vigente.
Apreciadas tais questões, importa abordar tema espinhoso, porém sem o necessário estudo pelos civilistas pátrios: quais os limites, na atuação do magistrado, ao invocar a analogia em seus julgamentos? Qualquer ausência de regramento legal ensejaria a indiscriminada aplicação de analogia ou existem parâmetros para que ela seja invocada? E o juiz, quando se deparar com a ausência de lei a reger lide que se lhe é posta à apreciação, equipara-se ao legislador positivo ou a analogia não tem tamanha extensão?
Questões práticas borbulham em nossos tribunais todos os dias, e a necessidade social de apresentação de respostas para as lides dificulta uma reflexão menos açodada sobre o tema. Vejamos: seria, a título de exemplo, possível o recurso à analogia para estender aos companheiros todos os regramentos do ordenamento pátrio relativos aos cônjuges? Seria, por outro lado, legítimo o recurso à analogia, a fim de se estender às uniões homoafetivas todas as benesses que o legislador garantiu aos casais heterossexuais? Enfrentemos o tema, mas, antes, forçoso se faz recordar alguns aspectos básicos da Teoria Geral do Estado.
A Separação de Poderes e a atuação criativa do magistrado
Na Constituição do Brasil, tal qual na alemã, o princípio democrático seria diretivo na ordem do processo político. Essa é a inarredável conclusão a que podemos chegar ao cotejar o parágrafo único do artigo 1º de nossa Carta com o artigo 20, alínea 2, frase 1, de sua similar germânica.
Adverte, contudo, o professor Konrad Hesse⁴⁴ não haver pretendido o texto alemão fixar um governo de identidade. Afirma ele:
A compreensão da democracia como autogoverno do povo corresponde, sem dúvida, a uma determinação, difundida no continente europeu durante muito tempo, de sua natureza. Mas a tentativa de transformar em realidade identidade de governantes com governados sem mediação não pode dar certo; ela leva em si o perigo de converter-se em domínio total. Também a democracia direta, que mais se aproxima do autogoverno do povo, é domínio de homens sobre outros homens, e precisamente, da maioria sobre a minoria; mesmo no caso de unanimidade, ela ainda é domínio daqueles que participaram da votação, sobre os não votantes, e a afirmação de identidade de governantes com governados é nada mais que uma identificação entre domínio da maioria e domínio do povo. Ainda menos corresponde a aceitação de uma tal identidade às verdadeiras relações de domínio da democracia indireta, predominantemente sob as condições da estatalidade moderna
.
Arremata, adiante, o constitucionalista:
A Lei fundamental não normatiza, com a decisão pela democracia, uma doutrina abstrata, desatada da sociedade real e momentânea indiferente de qual proveniência, senão de uma ordem concreta da realidade histórica. Esta não pode partir de uma vontade uniforme, como pressuposto de um autogoverno do povo, senão somente de seu pressuposto fundamental real: da diferença e divergência de opiniões, interesses, direções de vontade, aspirações e, com isso, da existência de conflitos dentro do povo. Daqui a norma, que todo poder estatal emana do povo, não simula uma unidade de vontade do povo, senão ela pressupõe aquela multiplicidade e divergência, que torna necessária sempre de novo a produção da unidade política como condição do nascimento e da atividade do poder estatal
.
Em outras palavras, o governo de identidade, de estrutura monolítica, mesmo travestido da forma democrática, não é amparado pelo ordenamento jurídico de nações como o Brasil ou a Alemanha.
O constitucionalismo brasileiro não privilegia a vontade das maiorias em detrimento das minorias. Afasta-se, portanto, do modelo jacobino, em que o Poder Legislativo é o intérprete maior da vontade geral.
Os sistemas de inspiração americana, por outro lado, não concebem apenas o Poder Legislativo como o representante da soberania popular. Os demais (Executivo e Judiciário) são também palcos para os conflitos, ordenados pelo devido processo legal, para que não se reduza ao caos ou à imposição da vontade dos grupos mais poderosos o diálogo do político.
O Poder Legislativo, entretanto, seria a arena mais apropriada para os embates pluralísticos. Nele, percebe-se, não raro, um reflexo dos jogos de poder no substrato social do País. O pluripartidarismo exerce destacado papel na democracia, uma vez que confere opções distintas aos grupos sociais para a escolha de seus mandatários.
Concebe-se aí o primeiro espaço de livre atuação do povo na fixação de políticas públicas. Escolhendo seus representantes, presumidamente por conhecer-lhes as diretrizes de atuação política, optam por determinadas ideologias em detrimento de outras. Os representantes eleitos refletem, em princípio, a magnitude da participação de cada grupo dentro do universo populacional.
A atuação desses representantes institucionalizará o debate, evitando o enfrentamento direto de facções com pensamentos e interesses divergentes. Mas não só a isso se resume a participação dos grupos sociais no governo da nação. Assumem destacado papel na formação preliminar da vontade política
, que ocorre, segundo Hesse⁴⁵,
(...) em um âmbito, no qual as decisões ainda não são pronunciadas, no qual elas, porém, são preparadas e por uma discussão pública das diferentes correntes, possibilitadas. Esse âmbito é o campo das ‘forças intermediárias’, dos interesses dos grupos organizados. Nele, estabelecimentos de objetivos são produzidos, formulados e, por colaboração organizada, defendidos
.
Tal atuação dos diversos grupos estaria muito ligada ao processo legislativo, envolvendo também o Poder Executivo quando este participasse da elaboração das normas. Esse Poder, oportuno lembrar, também estaria sujeito ao jogo de forças dos diversos grupos nas disputas eleitorais. Clássico exemplo são as formações de coalizões, nas quais se partilha a formação do primeiro escalão do governo, consoante a contribuição de cada facção para a vitória política da chapa. Privilegia-se aqui, como na hipótese do Poder Legislativo, a vontade das maiorias.
E como as minorias seriam protegidas? Percebeu-se, desde Madison, o risco de subjugação de toda a sociedade por uma ou algumas facções. Trataram as Constituições de disciplinar as regras dos embates políticos para impedir o esfacelamento do sistema democrático, porquanto, governo de identidade, mesmo que fundado na maioria, é governo de dominação, não se coadunando com o espírito libertário que encerra a moderna concepção de democracia.
As minorias contribuem de forma inquestionável para o aprimoramento das estruturas sociais, constituindo-se em alternativa de poder, caso os grupos majoritários fracassem ao tentar guiar os destinos da Nação. Os grupos minoritários devem ser preservados, portanto, por se apresentarem como maiorias potenciais
, e as maiorias devem sempre buscar o melhor para toda a sociedade, devido ao seu caráter de minorias em potencial
, como muito bem explana Hesse⁴⁶.
A Carta Maior prima, portanto, por defender os grupos minoritários, assegurando a liberdade de associação e a igualdade de condições para a disputa pelo poder político. A garantia às minorias não se esgota nos órgãos fortemente sujeitos aos influxos dos grupos dominantes, ou, em outras palavras, aos Poderes Legislativo e Executivo. O Poder Judiciário assume papel de relevo na preservação dos grupos alijados da participação na maioria política.
Nessa trilha, o destacado papel dos juízes na democracia foi muito bem colocado por Carlos S. Nino⁴⁷:
A faculdade dos juízes de revisar a constitucionalidade das normas jurídicas – leis, decretos etc. – ditadas pelos órgãos políticos, é uma das características centrais das democracias constitucionais ou liberais. Ela é o principal mecanismo de proteção dos direitos individuais frente às decisões dos poderes públicos que podem afetá-los, ainda quando essas decisões respondam direta ou indiretamente à vontade popular. O controle judicial de constitucionalidade materializa, assim, o equilíbrio entre a vontade e o interesse coletivo do povo e as decisões e interesses básicos de um indivíduo que se encontram albergados por um direito fundamental
.
Assim sendo, conclui-se que se deve garantir institucionalmente aos diversos grupos, ainda que minoritários, a possibilidade de participação ativa no processo de interpretação constitucional, principalmente nos órgãos públicos (e especialmente nas Cortes Constitucionais), porquanto não basta apenas, de maneira gélida e abstrata, assegurar a proteção aos direitos individuais ou de minorias; é necessário, em realidade, que se dê voz aos diversos grupos, não só no processo de elaboração das leis, mas também para que se valham do Judiciário como arena propícia à efetivação de suas aspirações.
Assentada, pois, a ideia de que o Judiciário também é um campo que acata a participação das minorias no jogo democrático, remanesce a pergunta: como deverá atuar o magistrado – como um mero legislador negativo? Haveria, em outras palavras, algum modelo decisório no qual o julgador poderia atuar positivamente? Qual seria ele?
Encetemos o debate tratando de tema de grande interesse para os constitucionalistas. Houve épocas em que o controle de constitucionalidade implicava o inarredável dogma de que o magistrado seria uma espécie de legislador negativo, apenas corrigindo, pela aplicação da sanção de nulidade, os desatinos praticados pelo Parlamento. No entanto, especialmente em solo europeu, rompeu-se esse paradigma, pois, com o advento das chamadas sentenças atípicas, as decisões judiciais deixaram de se limitar a declarar a validade ou nulidade da lei impugnada, introduzindo, assim, novas normas no ordenamento.
Nestor Pedro Sagüés⁴⁸ relaciona cinco modalidades de sentenças atípicas: a) sentenças manipulativas admissórias, que condenam a determinada interpretação da lei sob exame, em conformidade com a Constituição; b) sentenças manipulativas desestimatórias, que reputam constitucional determinada interpretação do texto legal, abrindo-se a possibilidade de se entender inconstitucional outra exegese; c) sentenças manipulativas aditivas, que aditam algo ao texto legal, para torná-lo compatível com a Constituição; d) sentenças manipulativas substitutivas, que substituem determinado texto legal, tido por inconstitucional, por outra norma, porém em conformidade com a Carta Maior, sendo elaborada pela própria Corte; e, por fim, e) as sentenças exortativas, que, diante de uma inconstitucionalidade, clamam ao Poder Legislativo a elaboração de norma que a elimine.
As mencionadas modalidades de decisões judiciais, prolatadas em controle de constitucionalidade, não eram frequentes até a década de quarenta. O pós-guerra, entretanto, trouxe consigo o tempo de novas Cartas, ricas em aspectos programáticos e valorativos, a demandar atuação mais intensa dos tribunais constitucionais. Surgiram, assim, as sentenças atípicas, que, longe de vulnerarem o equilíbrio entre os Poderes, dotam de mais instrumentos de atuação as Cortes responsáveis pelo controle de constitucionalidade, podendo estas, assim, proteger eficientemente as minorias.
É fato que a discussão acima entabulada enaltece o papel das Cortes constitucionais, mas não permite que se olvide a sua aplicabilidade até mesmo nos modelos difusos ou mistos de controle de constitucionalidade. O magistrado monocrático, portanto, deve estar atento ao vislumbrar um vazio legal. Necessário que reflita: o vazio detectado é uma omissão inconstitucional do legislador? Seria, por outro lado, uma simples lacuna da lei, sem que tal omissão representasse uma inconstitucionalidade? Como faria, pois, para identificar uma hipótese ou a outra?
Juliano Taveira Bernardes⁴⁹ leciona que as verdadeiras omissões constitucionais derivam da inobservância de preceitos que impõem concretamente, a certos órgãos, o dever de legiferar. Omissões abstratas, pois, não refletem qualquer inconstitucionalidade. Adverte, ainda, que não se mostra uma inconstitucional omissão aquilo que pode ser colmatado pelos tradicionais métodos de integração do ordenamento, como a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, desde que, é claro, a superação do vazio não demande a necessária intermediação de autoridade judiciária ou administrativa.
Pois bem – é justamente nesse ponto que reside o problema. A constatação de omissão inconstitucional a respaldar a utilização de sentenças atípicas é passo que se segue ao esgotamento dos tradicionais métodos de colmatação de lacunas, entre os quais a analogia.
Assim, nos dizeres de Jan Schapp⁵⁰, a utilização da analogia ocorre em duas etapas: a) a análise que indique representar a lacuna uma deficiência sem intenção da lei; e b) a semelhança de suportes fáticos entre a hipótese regulada e a lacunosa, ou, como afirma Washington de Barros Monteiro⁵¹, o ponto comum entre as hipóteses previstas e não previstas deve ser o elemento determinante na implantação da regra concernente à questão apreciada pelo julgador.
Analisemos, portanto, as duas etapas expostas. Em primeiro lugar, a lacuna representa uma deficiência sem intenção da lei. O que se busca aqui é demonstrar que a interpretação sistemática do ordenamento pode indicar que o vazio acerca de determinado tema indica uma deliberada intenção da lei em conferir proteção jurídica a determinada situação e não a outras.
É a hipótese dos artigos 1.514, 1.565 e 1.723 do Código Civil, que determinam:
"Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.
(...)
Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
(...)
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
Ora, em nenhum dos três artigos se trata da possibilidade de que dois homens ou duas mulheres se casem, reputem-se casados ou constituam uniões estáveis. Seria isso, dessarte, um caso de lacuna da lei a ser colmatado por analogia? A resposta só pode ser uma: essa não é uma lacuna não intencional da lei! O eloquente silêncio do texto legal quanto aos casais homoafetivos e a insistente menção a homem e mulher
pelos artigos que tratam de matrimônio indicam, por uma sistemática interpretação, a impossibilidade de que duas pessoas do mesmo sexo se casem. Logo, nesse ponto, o silêncio intencional da lei não implica uma lacuna passível de preenchimento por método analógico. Na verdade, a omissão do texto quanto aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo indica uma deliberada intenção do legislador de negar essa possibilidade de constituição de entidade familiar. Resta analisar, como fez a Suprema Corte do Brasil, o que ocorre adiante, se essa deliberada intenção é ou não constitucional.
Hipótese diferente, ou seja, em que a aplicação da analogia se mostra possível, ocorre com o artigo 7º do Código Civil. Este dispõe:
"Art. 7º Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:
I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;
II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra.
Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento".
Interessante questão se desenha na hipótese. E se a declaração de morte presumida de determinado sujeito decorrer de um equívoco e aquele que se pensava falecido retornar? O que fazer com os seus bens? Seria essa uma lacuna não intencional da lei ou um silêncio eloquente da norma a indicar eventual impossibilidade de o sujeito outrora declarado morto retomar os seus bens? Apenas a interpretação sistemática do Código poderá fornecer uma resposta adequada, como ocorreu no caso da discussão sobre a possibilidade de casamentos homoafetivos – façamo-la, portanto!
A interpretação sistemática da lei nos remeteria a uma série de reflexões, a fim de se encontrar o seu real significado. Assim, há que se analisar: o Código Civil admite o enriquecimento sem causa? A resposta óbvia é NÃO, como se pode depreender da leitura de seu artigo 884. Pois bem – se o silêncio da lei quanto ao caso daquele que equivocadamente se presumia morto admitisse a perda de seus bens para os herdeiros, tão somente porque a lei não indica o mecanismo da sua retomada por aquele que retornou, haveria uma contradição interna no Código: por um lado, ele não admite o enriquecimento sem causa, como demonstra o artigo 884; por outro, ao não disciplinar a retomada do bem pelo que se considerou falecido, mas voltou, a norma civil poderia estar consagrando um injustificado decréscimo patrimonial para o último e um inexplicável aumento para seus herdeiros. A que conclusão essa contradição nos remete? A uma só: o silêncio na hipótese não fora deliberado, mas acidental, criando uma lacuna a ser colmatada pelos mecanismos de integração.
Essa é a atividade mental que o intérprete deve fazer para encontrar uma verdadeira lacuna e não um deliberado silêncio, que pela interpretação sistemática implica uma negação de direitos.
Bem, prossigamos, pois, com a análise das duas etapas de incidência da analogia. A primeira (tentativa de identificar se o silêncio da lei fora deliberado ou não intencional) já foi esgotada. A segunda diz respeito à semelhança de suportes fáticos entre a hipótese regulada e a lacunosa. Volvamos novamente o nosso olhar para o artigo 7º, que trata do reconhecimento de morte presumida sem decretação de ausência. Semelhante a essa norma, existe o artigo 37 do Código Civil, que trata da hipótese de morte presumida com decretação de ausência. A semelhança entre os dois casos é enorme: são as duas consagradas possibilidades de admissão da morte presumida pela lei nacional.
Vejamos que, na morte presumida sem decretação de ausência (artigo 7º), não foi regulada a hipótese de retorno do que se reputara morto. Na morte presumida com decretação de ausência, porém, o artigo 39 assim disciplina:
"Art. 39. Regressando o ausente nos dez anos seguintes à abertura da sucessão definitiva, ou algum de seus descendentes ou ascendentes, aquele ou estes haverão só os bens existentes no estado em que se acharem, os sub-rogados em seu lugar, ou o preço que os herdeiros e demais interessados houverem recebido pelos bens alienados depois daquele tempo.
Parágrafo único. Se, nos dez anos a que se refere este artigo, o ausente não regressar, e nenhum interessado promover a sucessão definitiva, os bens arrecadados passarão ao domínio do Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União, quando situados em território federal".
Ora, diante da lacuna não intencional do artigo 7º, é possível que analogicamente se lhe apliquem os mandamentos do artigo 39 caso aquele que se reputou morto retorne, devendo-se observar se ele voltou antes ou depois de completar um decênio da abertura da sucessão em razão do presumido óbito. Caso tenha retornado antes, receberá os bens no estado em que se encontrarem, os sub-rogados em seu lugar ou o preço que os herdeiros e demais interessados houverem recebido pelos bens alienados depois daquele tempo, tudo por aplicação analógica do artigo 39. O seu retorno ocorrendo, porém, após o decênio tratado, ele nada receberá, em contemplação ao princípio da segurança jurídica.
Avaliada, assim, foi a hipótese de identificação de lacuna colmatável por analogia. Mas e se não for esse o caso? Então, como visto, o silêncio eloquente poderá implicar uma negação aos direitos de determinadas pessoas ou grupos (como se deu no exemplo do casamento homoafetivo). Essa negação, ao seu turno, poderá ou não representar uma omissão inconstitucional. Analisemos emblemático caso posto à apreciação do Supremo Tribunal Federal e que implicou a adição de direitos à minoria outrora privada de tais prerrogativas.
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
Importante questão que se colocou à apreciação do Supremo Tribunal Federal foi sobre a possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. O texto legal, como já exposto, é por demais restritivo. Vejamos:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família
.
Ora, uma intervenção judicial a autorizar tal união certamente implicaria uma postura de legislador positivo da Corte Constitucional do Brasil. O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, não se furtou ao enfrentamento da questão⁵²:
"Portanto, é certo que o Supremo Tribunal Federal já está se livrando do vetusto dogma do legislador negativo, aliando-se, assim, à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas, com eficácia aditiva, já adotada pelas principais Cortes Constitucionais do mundo. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal pode ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional.
(...)
Assim, se é certo que, por um lado, a possibilidade da interpretação conforme que se convola numa verdadeira decisão manipulativa de efeitos aditivos, não mais constitui um fator de constrangimento ou de estímulo ao self restraint; por parte do Supremo Tribunal Federal, por, outro lado, a interpretação conforme, nos moldes em que requerida pela Procuradoria-Geral da República, pode ter amplíssimas consequências em diversos sistemas normativos do ordenamento jurídico brasileiro, as quais devem ser minuciosamente consideradas pelo Tribunal.
Desde o começo deste julgamento, eu fiquei preocupado com essa questão e cheguei até a comentar com o Ministro Relator Ayres Britto, tendo em vista, como amplamente confirmado, que o texto do Código Civil reproduz, em linhas, básicas, aquilo que consta, do texto constitucional. E de alguma forma; a meu ver, eu cheguei a pensar que isso era um tipo de construto meramente intelectual-processual, que levava os autores a propor a ação, uma vez que o texto, em princípio, reproduzindo a Constituição, não comportaria esse modelo de interpretação conforme. Ele não se destinava a disciplinar outra instituição que não fosse a união estável entre homem e mulher, na linha do que estava no texto constitucional. Daí não ter polissemia, daí não ter outro entendimento que não aquele constante do texto constitucional.
Talvez o único argumento que pudesse justificar a tese da aplicação ao caso da técnica de interpretação conforme à Constituição seria a invocação daquela previsão normativa de união estável entre homem e mulher como óbice ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, como uma proibição decorrente daquele dispositivo.
E, de fato, é com base nesse argumento que entendo pertinente o pleito trazido nas ações diretas de inconstitucionalidade.
É preciso, portanto, que nós deixemos essa questão muito clara, porque ela terá implicações neste e em outros casos quanto à utilização e, eventualmente, à manipulação da interpretação conforme com muita peculiaridade, porque o texto é quase um decalque da norma constitucional e, portanto, não há nenhuma dúvida quanto àquilo que o legislador quis dizer, na linha daquilo que tinha positivado o constituinte.
E o texto, em si mesmo, nessa linha; não é excludente – pelo menos essa foi a minha primeira pré-compreensão – da possibilidade de se reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, não com base no texto legal (art. 1.723 do Código Civil), nem na norma constitucional (art. 226, § 3º), mas com suporte em outros princípios constitucionais.
(...)
Não há dúvida de que aqui o Tribunal está assumindo um papel ativo, ainda que provisoriamente, pois se espera que o legislador autêntico venha a atuar. Mas é inequívoco que o Tribunal está dando uma resposta de caráter positivo.
Na verdade, essa afirmação – eu já tive oportunidade de destacar – tem de ser realmente relativizada diante de pretensões que envolvem a produção de norma ou a produção de um mecanismo de proteção. Deve haver aí uma resposta de caráter positivo. E se o sistema jurídico, de alguma forma, falha na composição desta resposta aos cidadãos, e se o Poder Judiciário é chamado, de alguma forma, a substituir o próprio sistema político nessa inação, óbvio que a resposta só poderá ser de caráter positivo.
É certo que essa própria afirmação já envolve certo engodo metodológico. Eu diria que até a fórmula puramente anulatória, quando se cassa uma norma por afirmá-la inconstitucional – na linha tradicional de Kelsen – já envolve também uma legislação positiva no sentido de se manter um status quo, um modelo jurídico contrário à posição que estava anteriormente em vigor.
Explicitada, portanto, a fundamentação sobre os limites e a possibilidade de interpretação conforme à Constituição no presente caso, passo a esclarecer os fundamentos que permitem concluir no sentido da legitimidade constitucional de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo".
Na mesma esteira, Inocêncio Mártires Coelho⁵³, ao tratar do chamado ativismo judicial, faz a seguinte ponderação:
"Para não se chegar a tanto e, dessa forma, a pretexto de realizar a justiça em sentido material, acabar permitindo que o juiz invada o espaço nomogenético que o constituinte reservou ao legislador – o que caracterizaria o ativismo judicial como conduta constitucionalmente indevida –, bastaria dizermos que na criação do direito, tarefa que lhes é comum, legisladores e juízes atuam em dois tempos e a quatro mãos, no âmbito de um acordo tácito – alguns chegam a falar em cumplicidade –, por força de cujas cláusulas, em obediência à natureza das coisas e ao princípio da separação dos poderes, o Parlamento continua com o monopólio da redação das leis, mas o Judiciário fica liberado para interpretá-las criativamente, de preferência se o fizer dizendo que as suas leituras não ultrapassam o sentido literal possível desses enunciados normativos.
É assim que se ‘comportam’ lei e função judicial na criação do direito, porque não é somente a lei, mas também a função judicial, que, juntas, proporcionam ao povo o seu direito".
Acreditamos, assim, que a palavra de ordem para a atuação inovadora do Poder Judiciário deva ser prudência
. Não nos posicionamos contrariamente ao fato de que, em hipóteses extremas, haja uma emblemática intervenção judicial como ocorreu no caso das uniões homoafetivas. Preocupante, porém, a postura demissionária do Poder Legislativo nacional, que se tem apequenado justamente no enfrentamento das discussões mais espinhosas. Talvez o faça por comodismo, afinal, quando um tema sensível é abstratamente regulado por magistrados vitalícios e que não se devem sujeitar, de tempos em tempos, ao crivo do sufrágio popular, o parlamentar não terá que prestar contas à sua base eleitoral pela adoção de posições necessárias, mas impopulares.
Poder-se-ia, contudo, obtemperar que a omissão é também uma postura muito reprovável e perceptível aos olhos do eleitor mais atento. Ocorre, porém, que a inação sempre é diluída entre todos os parlamentares, ao passo que a adoção de uma posição sobre um tema vincula diretamente o legislador às suas escolhas. Logo, o parlamentar mais astucioso e, consequentemente, menos preocupado com o bom desempenho de seus misteres públicos preferirá dividir a responsabilidade de sua omissão com todos os demais parlamentares a enfrentar as consequências políticas da adoção de posições menos populares. Nesse aspecto, o ativismo judicial cai como uma luva para os seus intentos.
Outro perigo que vivenciamos com uma postura desmesuradamente criativa do magistrado para o Direito Civil brasileiro é que, à guisa de se operacionalizarem preceitos constitucionais demasiadamente genéricos, exortem-se os magistrados a editarem sentenças aditivas e substitutivas em hipóteses em que não haveria uma verdadeira omissão. Será que as genéricas violações à Carta, por ausência de lei, ou por preceitos incompletos, que vulnerem, para alguns intérpretes, comandos genéricos como a dignidade da pessoa humana, o princípio da isonomia, a necessidade de proteção familiar pelo Estado, entre outros, seriam suficientes para sempre demandarem uma atuação positiva do magistrado? Entendemos que não – e este é o equilíbrio que o magistrado será obrigado a perseguir: jamais deixar em desamparo o jurisdicionado que clama por sua intervenção, mas não se assoberbar a ponto de rasgar o Código Civil, sob a escusa de estar dando azo à incidência de princípios genéricos que, para ele, devem ser aplicados de uma forma que nem sempre será mais prudente do que a preconizada pela Lei Civil.
Não nos furtando a apresentar um caminho a ser trilhado, entendemos que o papel primordial do Poder Judiciário, no atual cenário democrático, é a preservação das minorias, mormente nas hipóteses em que estivessem a ser sufocadas pelas instituições controladas preponderantemente por grupos majoritários (Legislativo e, em menor medida, Executivo). Assim, em respeito ao princípio democrático, quando minorias estiverem a ser esmagadas em seus direitos fundamentais (como ocorreu na hipótese das uniões homoafetivas), a atuação positiva do magistrado não apenas será bem-vinda, como haverá de ser impositiva. Fora de tal permissivo, não cremos ser prudente, como já manifestado, o acréscimo de normas abstratas pelo juiz, lastreado tão somente em genéricas omissões legislativas, tidas por inconstitucionais (como sói acontecer quando se alega necessário o acréscimo, pelo julgador, de determinada norma, sob pena de restar aviltado o princípio da isonomia).
O costume
Giorgio del Vecchio⁵⁴ aponta os costumes como o modo originário de manifestação da vontade social, consubstanciado em regras não expressamente impostas, mas observadas quase instintivamente por todos os componentes de um dado grupo. Os costumes, de fato, são a fonte do direito decorrente de práticas reiteradas no seio social a assumirem ares de obrigatoriedade. Qual seria, pois, sua importância quando confrontados com a lei?
Essa interessante indagação não escapou às investigações do jusfilósofo da Universidade de Roma⁵⁵. Em arguto raciocínio, pondera que a lei e os costumes possuem, em princípio, a mesma autoridade, já que os dois expressam a vontade social e a consciência jurídica predominante. A lei, com efeito, não seria fruto de um arbítrio individual, mas se assentaria no necessário convencimento do povo ao qual se refere. Assim, não se vislumbram diferenças substanciais entre essas duas fontes do direito, porquanto teriam um mesmo significado e uma mesma base real. É, todavia, possível que, diante da evolução histórica de determinado grupo, possa o costume ou a lei prevalecerem um sobre o outro.
Assim, em épocas primitivas, o Direito era basicamente consuetudinário. Progressivamente, passou a se destacar, no seio social, um grupo que chamaria para si o mister de abstrair certas regras dos usos, dirimindo conflitos entre as pessoas. Sucessivamente iriam se formando os órgãos legislativos capazes de captar os costumes sociais e de criar normas próprias e autônomas para regular a vida social. Assim colocada a questão, cabe indagar – no