O sabor da harmonia: Receitas Ayurvédicas para o bem-estar
De Laura Pires
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Sobre este e-book
O diagnóstico de uma síndrome autoimune e seus efeitos devastadores a levaram para um mundo onde a cura parte dos alimentos e de tudo o que entra em contato com o corpo e com os sentidos. Foi preciso desintoxicar-se para então começar uma nova rotina e uma nova dieta.
Neste período de transformação, Laura aprendeu os princípios e ensinamentos da Ayurveda, entendeu os limites de seu corpo, adotou novos hábitos e viu desaparecerem os sintomas que quase a paralisaram.
De sua cozinha hoje saem cheiros, sabores e cores preparados com ingredientes naturais e frescos. Além de práticas, as receitas reunidas neste livro são a chave para o equilíbrio e uma vida plena.
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O sabor da harmonia - Laura Pires
O sabor
da harmonia
Receitas Ayurvédicas para o bem-estar
Laura Pires
A Marcus Fahr Pessoa, que me guiou e inspirou neste caminho de sabedoria e vida. Por sua valiosa e essencial colaboração, tornou possível a realização deste livro. Minha profunda admiração e gratidão.
"Inspire, e Deus se aproxima de você.
Segure a inspiração, e Deus permanece com você.
Expire, e você se aproxima de Deus.
Segure a expiração, e entregue-se a Deus."
Krishnamacharya
"O que for a profundeza do teu ser, assim será teu desejo.
O que for o teu desejo, assim será tua vontade.
O que for tua vontade, assim serão teus atos.
O que forem teus atos, assim será teu destino."
Brihadaranyaka Upanishad
Sumário
Introdução
Parte I
Medicina Ayurvédica
O que são os doshas?
A boa digestão
Os alimentos incompatíveis
Alimentação saudável
Ayurveda e o vegetarianismo
Estimulantes
Alimentos que não existem
A quantidade nas refeições
Rotina diária – Dinacharya
Rasa, Virya e Vipak
Estações do ano
Especiarias
Óleos
Parte II
Entendendo as receitas
Tabelas de alimentos
Cardápios
Receitas
Índice de Receitas
Créditos
A Autora
Introdução
O lado de dentro do casulo
Eram os anos mais saudáveis e de mais vitalidade da minha vida, ou, pelo menos, era isso que eu achava. Tinha 23 anos e começava a interagir com o mundo. Trabalhava com arquitetura e decoração e gostava do que fazia, mas confesso que não tinha paixão, entusiasmo ou dom, e ainda assim era algo que me seduzia, me alegrava.
Em casa, outros desafios. Vivia uma crise conjugal e temia uma possível separação. O medo de encarar meus sentimentos me travava, mantendo-me no mesmo lugar. Sair da zona de conforto não era meu forte, nem meu objetivo. Aliás, esse, talvez, fosse meu maior pavor.
Como muitas pessoas, preferia suportar as situações penosas e desagradáveis do dia a dia, conviver com elas, a mudar e partir para algo desconhecido. Controlar meus impulsos, meus sentimentos, controlar o movimento dos outros e do mundo ao meu redor: talvez este fosse o meu maior desejo.
Essa tentativa de controle tão intensa, feroz e inconsciente acabou por se transformar, materializando-se de maneira muito forte. Eu, que queria controlar a vida, começava a ter sinais de que meu próprio corpo não podia ser domado.
Era o ano de 2006. Um dia, ao acordar, notei algo estranho. A visão periférica do meu olho esquerdo estava completamente borrada. Foi o primeiro sinal, e sem que eu sequer imaginasse, uma dolorosa saga teve início. Oftalmologistas, neurologistas, clínicos, exames, ressonâncias, tomografias... Em três meses minha vida transformou-se em visitas a laboratórios e consultórios médicos. E minha saúde só piorava.
O que começou como um desconforto no olho esquerdo logo ampliou-se para a perda de visão periférica dos dois olhos. Os sintomas se sucediam: sentia cãibras que podiam durar de duas a três horas seguidas, dormências pelo corpo, sensações de choque, ardência e tremor interno, rigidez dos membros, às vezes falta de reflexos, falta de coordenação motora e confusão mental.
Se em alguns dias o quadro era assustador, em outros, simplesmente não sentia nada. Vivia no descompasso da surpresa: um novo sintoma aparecia enquanto outro estranhamente desaparecia. Buscava médicos ansiando por uma resposta, mas ninguém dizia nada. Restringiam-se a prescrever doses cavalares de corticoides, porém nada explicavam. Após muita investigação, dores, desconfortos, finalmente uma médica apontou indícios de uma doença desmielinizante do sistema nervoso: esclerose múltipla.
A medicina sabe pouco sobre esta doença. Não há qualquer certeza quanto às causas, manifestações, muito menos quanto a tratamentos adequados. Terapias experimentais são realizadas há anos no mundo inteiro, sendo meras tentativas de controlar os sintomas, sem que se chegue à cura. Logo que comecei a pesquisar sobre o assunto e ouvir as explicações dos médicos, me dei conta de sua complexidade. Os próprios médicos divergiam em seus discursos. Um dos maiores estudiosos da doença no Brasil definiu-a como inflamatória crônica, provavelmente autoimune. Por motivos genéticos ou externos, na esclerose múltipla, o sistema imunológico começa a agredir a bainha de mielina (capa que envolve todos os axônios) que recobre os neurônios, o que compromete a função do sistema nervoso.
Descobri algumas certezas, nada animadoras. A característica mais notável da esclerose múltipla é a imprevisibilidade dos surtos. De causas desconhecidas, em geral acomete jovens, entre 20 e 30 anos, atingindo mais mulheres e indivíduos de pele branca que vivem em zonas temperadas. Os sintomas e os chamados surtos variam, sendo comuns: perda ou excesso de sensibilidade, alterações na visão, problemas motores, fraqueza, dormência ou formigamento nas pernas ou de um lado do corpo, desequilíbrio, tremores, dificuldade de fala, respiração e controle dos esfíncteres. O diagnóstico é basicamente clínico, complementado por exames de imagem.
Diante dessa dura realidade, me desesperei. Era como uma sentença: chorei muito, mas não me entreguei. Sabia que não podia enfrentar tudo isso sozinha. Em plena crise conjugal, ajoelhei-me diante do meu marido e pedi que me ajudasse, que naquele momento não fosse embora, não me abandonasse. Num gesto de grande nobreza, Marcus colocou seus sonhos, desejos e crenças de lado e aceitou ficar comigo. Mais do que isso, tomou as rédeas da situação e começou a pesquisar, pela internet, pessoas e alternativas que pudessem me salvar.
Como os médicos não chegavam a um diagnóstico preciso, e percebendo que os tratamentos prescritos eram meros paliativos, e não ofereciam a possibilidade de cura, Marcus começou uma busca incessante de tratamentos mais eficazes e com chances reais de melhora. Entrou em contato com profissionais no mundo inteiro, e foi da Índia que tivemos a resposta mais alentadora: havia, sim, possibilidade de reverter meu quadro, mas a decisão deveria ser tomada logo. Conhecia a Índia, entendia um pouco daquela cultura, era um país que me fascinava. Mas nas condições físicas e emocionais em que me encontrava, a perspectiva de uma viagem tão longa rumo ao desconhecido me aterrorizava. No entanto, aquela informação ficou bem guardada dentro de mim.
Continuei minha peregrinação em busca de resultados. Fui a igrejas e centros espíritas. Consultei médicos e terapeutas das mais diversas linhas. Os meses iam passando e eu só piorava. Uma fadiga tomava conta de mim e em muitos dias eu mal tinha forças para andar. Às vezes passava tardes deitada, levantando só para ir ao banheiro ou à cozinha. Cãibras noturnas me arrancavam do sono, me fazendo trincar os dentes de tanto desespero. Era uma sensação terrível, como se os músculos das pernas e dos braços estivessem se rasgando. As juntas estalavam, truncavam, por vezes me paralisando. Mas dentre todos os sintomas, o mais assustador era a perda da visão, que ameaçava a cada dia. O tempo não era meu aliado, e um dia uma médica, especializada em esclerose múltipla, foi incisiva: Laura, não tem mais como adiar. Vamos para o hospital providenciar sua internação para dar início à pulsoterapia.
Eu sabia o que estava por trás dessa palavra. Pulsoterapia é a administração de altas doses de medicamentos num curto espaço de tempo. Na esclerose múltipla, ela se faz com corticoides. Esta possibilidade me alarmou. Temia os efeitos colaterais da medicação e temia mais ainda que, ao final, não houvesse nenhum resultado positivo. Ao medo profundo veio somar-se um desejo igualmente forte de cuidar de mim, de me curar.
Fechei a porta do consultório, olhei para o Marcus e disse: Vamos para a Índia.
Fomos imediatamente para a agência de viagem, compramos a passagem e, em menos de 24 horas, embarcamos rumo ao país.
E foi aí que a minha vida começou a se transformar. O encontro com meu verdadeiro ser estava prestes a acontecer. Naquele momento eu era como uma verdadeira lagarta, em sua fase mais difícil, apertada, desesperadora, arrastando-me por caminhos tortuosos, limitada, achando que o mundo era apenas aquilo. Achava que passava por meus últimos momentos de vida, de sobrevivência, mas era apenas um intervalo forte e intenso que me transformaria.
Logo a lagarta aprenderia a voar como uma borboleta, passando a ver o mundo sob uma nova perspectiva, enxergando de cima o chão por onde antes rastejava. Foi preciso sentir as dores do corpo e da alma, passar por um recolhimento, cuidar da minha mente, do meu espírito, para ver outras possibilidades e oportunidades, vislumbrar uma nova realidade. Nem melhor nem pior, apenas diferente, mais consciente do meu ser, da minha existência, da vida em si.
Criando asas
Foram mais de 30 horas de viagem até chegar à pequena clínica ayurvédica, no interior do estado do Kerala, sul da Índia, onde uma equipe médica amorosa e sorridente estava a nossa espera. Lembro-me de cada detalhe: os olhares, os cheiros, cada passo vacilante.
O local não tinha muita estrutura, se comparado aos padrões ocidentais. Era uma pequena casa, com talvez três quartos para os pacientes e um banheiro coletivo. Não havia nem mesmo chuveiro, e tomávamos banho de caneca, usando a água morna que saía de uma torneira que ficava ao lado do vaso sanitário.
As salas de tratamento eram bem simples. O cheiro forte de óleos medicados estava entranhado nas paredes, macas e móveis. Havia manchas dos tais óleos por toda parte, já que a maioria dos procedimentos dependia basicamente desta poderosa ferramenta de cura.
Depois de nos acomodarem, tive a primeira consulta. O médico ouviu meu relato, me examinou. Enquanto conversava com suas assistentes sobre meu caso, não me contive:
— Então, doutor, quando começarei meu tratamento?
Ele, com muita calma, respondeu:
— Quando começará? Já começou! No momento em que você decidiu deixar sua casa e vir para cá, você deu início ao seu tratamento. Logo mais começaremos os procedimentos clínicos, remédios e terapias. Porém, mais importante que tudo isso é rezar. Há um altar na recepção. Vá lá, faça suas orações, e começaremos. Reze todos os dias, será muito importante para você.
Eu nunca tinha feito uma prece, mas segui sua orientação. Passei a orar para os médicos, pedindo proteção, clareza e saúde.
O tratamento foi muito difícil, mas me entreguei de corpo e alma. Por mais que tudo aquilo fosse diferente da minha realidade, seguia todas as recomendações, e no fundo sabia que aquele processo era para sempre, que eu nunca mais seria a mesma pessoa.
Massagens com óleos medicinais, limpezas intestinais intensas e diárias, com óleos ou chás de ervas, se sucediam. A cada nova purgação sentia que, quanto mais meu corpo estava sendo limpo, mais minha alma ia se abrindo, se transformando.
Chorava horas e horas após as limpezas. Sentia emoções e sensações inimagináveis. Deparei-me com mágoas, rancores, dúvidas, alegrias, emoções havia muito escondidas, guardadas no meu ser. Pouco a pouco percebia o quão doente minha alma estava. Não era só o corpo físico, mas a mente e o espírito também precisavam daquela atenção e cuidado. A partir de certo momento, já nem me dava conta das condições precárias do local. O poder transformador da Ayurveda tomava conta do meu ser.
Foram 21 dias de internação. Recuperei completamente a visão, mas só passei a andar normalmente, com firmeza, depois de cerca de um ano e meio.
Ao voltar para casa, adotei novos hábitos e uma nova rotina. Devagarzinho a Ayurveda foi assumindo o controle da minha vida, da minha existência. Uma nova realidade delineava-se para mim.
Levantando voo
No retorno para casa, além da Ayurveda, a yoga e a terapia com hipnose entraram na minha rotina de maneira profunda e intensa. A primeira serviu para ajudar a acalmar meu corpo, recuperar os movimentos, a coordenação; a segunda, para criar novos padrões, perceber e entender emoções, sentimentos, apegos. Foram quase três anos dentro de um casulo, na minha casa, cuidando de mim, estudando e conhecendo a Ayurveda, vivenciando cada detalhe desta sabedoria milenar.
Ao longo deste processo, tornei-me extremamente vigilante e rigorosa em relação às minhas atitudes e ao meu comportamento, prestando atenção à respiração, aos exercícios e à dieta. Eu, que antes não me interessava muito pela cozinha, acabei me apaixonando pelo ato de cozinhar. No início, passava praticamente o dia todo preparando minha comida, me organizando e me entendendo com os utensílios. Passei a entender que aquilo que comemos e também o modo como preparamos e ingerimos nossos alimentos afetam de maneira profunda a natureza das células, o funcionamento dos órgãos, assim como nosso estado mental, nosso comportamento e nossas reações à vida e aos acontecimentos.
Mais importante do que aprender as teorias ayurvédicas descritas nos livros e ouvidas nas aulas é vivenciá-las, e à medida que ia me aprofundando nos estudos, percebia que já tinha experimentado muitas das explicações. Fui aprendendo a Ayurveda na pele, na alma, no espírito. Hoje sinto correr pelas minhas veias toda uma teoria milenar, sinto que transpiro, transbordo pelos poros, pelos pensamentos e pela vida a Ayurveda.
Nos últimos anos, a Ayurveda tornou-se mais difundida no Ocidente. Muitos livros foram escritos sobre as teorias ayurvédicas, por grandes mestres como a dra. Sunanda Ranade, o dr. Subhash Ranade, o dr. Vasant Lad, David Frawley, Robert Svoboda, Deepak Chopra, e hoje estão ao nosso alcance, embora a maioria em língua inglesa. No entanto, poucos livros foram escritos até hoje sobre nutrição e culinária ayurvédicas. Este foi