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Fundamentos da Linguagem na Educação
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E-book681 páginas23 horas

Fundamentos da Linguagem na Educação

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Sobre este e-book

O livro apresenta as bases da linguística aplicada ao letramento e à alfabetização destinadas à formação de professores ou outros profissionais e pesquisadores da educação básica. Partindo de uma concepção de ensino de língua materna e de alfabetização no campo da linguística, seus 19 capítulos aprofundam-se na caracterização dos três grandes componentes curriculares da área: o desenvolvimento do uso das línguas oral e escrita; os princípios e processos de construção da escrita; e os fundamentos gerais da produção de textos na sociedade contemporânea, permeada pela multiplicidade de mídias e gêneros discursivos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de set. de 2020
ISBN9786558202394
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    Fundamentos da Linguagem na Educação - Luiz Antonio Gomes Senna

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA

    Aos que perseveram na esperança

    e aos que agem para a Educação do outro.

    PREFÁCIO

    Linguagem: sentidos, conceitos e vidas em

    movimento – um prefácio

    Gente

    Carne, osso, alma e sentimento, tudo isso ao mesmo tempo.

    (Adriana Falcão)

    Uma obra sobre linguagem pode ter diferentes formatos e funções. Pode, por exemplo, apresentar-se como uma reunião de preceitos e descrições acerca de algo que se usa desde sempre, mas que insistem em dizer que não se conhece. Pode também se apresentar como um conjunto de teorias motivadoras para práticas mecanicistas destinadas ao ensino, que condicionam comportamentos de falantes, ouvintes, leitores e escritores, que reproduzem textos de quem é autorizado a produzi-los. Pode, ainda, ser concebida para descrever comportamentos intelectuais ditos universais e explicados com base em teorias desenvolvimentistas ou conceptualistas, que elegem padrões idealizados e os tomam como formas vinculadas à natureza biológica de diferentes códigos linguísticos.

    Uma obra sobre linguagem produzida em contexto de resistência teórica, política e social com fins de educação para todos, entretanto, explica-se sobre outras bases. Bases teóricas inspiradas em meninas, meninos, mulheres e homens reais que superam estatísticas e preconceitos todos os dias, na contramão do senso comum, afirmando direitos e conquistando espaços onde podem ser quem são. Bases políticas que sonham e trabalham por igualdade de direitos e pela liberdade como sua consequência mais essencial. Bases sociais que legitimam a diversidade de mais de sete bilhões de ecossistemas incomparáveis e únicos em história, cultura e modos exclusivos de ser e estar no mundo.

    Uma obra sobre linguagem na educação, nesse contexto, se quer pontes e se quer portas, sempre no plural. Refere-se a uma necessidade urgente de consolidação de valores ontológicos a partir dos quais são feitas tantas escolhas no trabalho cotidiano com o ensino de língua materna.

    Em educação nada se explica isoladamente, mas contextualmente, a partir da relação estreita entre movimentos sociais, políticos, pedagógicos e acadêmicos. Assim, uma simples escolha didático-metodológica, com fins meramente pedagógicos, explica-se muito antes da nomeação do método, do procedimento ou da adoção de determinado material didático. Como a liberdade, as escolhas didático-metodológicas também são consequências de determinadas leituras de mundo e, portanto, apenas se explicam se atreladas ao conjunto de pressupostos que as motivam.

    Não há escolha pedagógica sem que antes eu tenha construído noções de sujeito, de aprendizagem, de linguagem, de interação humana e de escola. Não há escolha de material didático sem que antes eu possa vislumbrar o sujeito leitor e escritor que desejo formar. Não há escolha metodológica sem que antes eu possa traçar um perfil ideológico de mundo e as formas de participação social por meio das quais é possível ser voz, ser cor, ser mais. São escolhas em primeira pessoa, individuais e, por serem escolhas, sempre subjetivas.

    Como pontes, esta obra debruça-se sobre a consolidação de conceitos essenciais aos estudos em linguística aplicada, a partir de princípios (não prescritivos) discutidos com maturidade e competência científica e, especialmente, apresentando como diferencial o convite a olhar para o outro a todo instante. Esse convite é exatamente o que relaciona os estudos da linguagem aos da educação, pois representa o movimento desafiador de construir conceitos a partir de modos de pensamento que não necessariamente são os meus, modelados pela cultura acadêmico-científica. A imprevisibilidade decorrente de um olhar despretensioso de julgamento é a mesma que questiona os planejamentos e objetivos de ensino engessados em versões idealizadas e que motiva práticas pedagógicas inovadoras, autorais e totalmente contextuais. As pontes revelam, portanto, um espaço sempre novo de construções, de aprendizagens e de conceitos que desenham a professora que me formo todos os dias, porque me convidam a intervir nesse espaço e a olhar mais para o caminho do que para o destino.

    Designar o fazer pedagógico sobre os estudos da língua como ensino de língua materna representa situar-se em um caminho sempre novo, que se explica pelo aspecto particular e de intimidade inerente à nomenclatura. As pontes que se revelam aqui nesta obra são sempre permeadas por paisagens diversas, que definem a linguagem a partir de processos de interação humana e, portanto, sempre sujeita às influências sociais e culturais.

    Como materialidade e expressão do pensamento, ou mesmo como instrumento de comunicação e transmissão de ideias, as concepções mais diversas de linguagem coexistem tanto nos ambientes acadêmicos quanto nas instituições educacionais, demarcando as escolhas ideológicas mencionadas no início deste prefácio. Ocorre, entretanto, que as concepções de mundo contemporâneas demandam da formação de professoras e professores o reconhecimento dos mais diversos tipos de vínculos entre as pessoas, intermediados por modos os mais diferentes de interação com a linguagem, cuja natureza não poderia ser compreendida em sua diversidade mediante as concepções tradicionais ou estruturalistas¹ que regem as principais perspectivas teóricas dos estudos linguísticos.

    O aprofundamento dos princípios linguísticos, conforme tratado neste livro, revela toda uma construção formativa que se explica também pela história do autor na coordenação do Grupo de Pesquisa Linguagem, Cognição Humana e Processos Educacionais. Tratando da Linguística Aplicada como campo interdisciplinar aos estudos da alfabetização e da formação de leitores e escritores, Luiz Antônio Gomes Senna desenvolve marcos teórico-conceituais sempre em diálogo com as salas de aula brasileiras.

    Como condição, caminho e objetivo de produção de cada um desses marcos, a elaboração de práticas autorais no ensino de língua materna se desdobra em portas possíveis que se abrem no movimento recorrente de produção de sentidos em leituras de mundo e de textos. Logo, em atitude inversa ao conservadorismo conteudista que se pode identificar em matrizes curriculares como as das Bases Nacionais Comuns Curriculares (BRASIL, 2017), por exemplo, este livro investe em um projeto de formação dedicado a um professor que detém autoria sobre suas práticas e concebe o ensino desde um ponto de vista eminentemente interdisciplinar.

    Configurando-se como portas, uma obra sobre linguagem sonha com a complexidade inerente às produções contextuais do professorado e de suas demandas. Isto porque se faz no infinito de possibilidades que o trabalho contextualizado, não apenas permite, mas requer. Reconhecer e legitimar a diversidade é postura que vai para além de configurações de gênero, cor ou classe social, pois abrange todo tipo de diferença e é exatamente o que configura a ecologia humana. Assim, a legitimidade da diversidade é consequência de verdades assumidas também sobre os modos de aprender – estes sempre explicados culturalmente – e, logo, sobre os modos de ensinar.

    O perfil acadêmico desta obra representa, pois, o compromisso de fortalecer práticas inclusivas para o ensino de língua materna e parte de alguns pressupostos fundamentais: a) professorar-se é atitude de todos os dias, é fazer escolhas, é assumir concepções teóricas, é estar disposto ao imprevisível e às múltiplas identidades e verdades, como marcas da profissão; b) o estudo da língua se faz em consonância com os estudos da sociedade e de seus sujeitos, da história e sua cultura, da memória social e suas decorrentes projeções para o futuro; c) o ensino da língua materna adere a um projeto de sociedade que só se faz para todos se ancorado em bases cuidadosamente pensadas para o coletivo e para a diversidade.

    Como norte que orienta os demais domínios curriculares, o ensino de língua materna prevê caminhos de formação integral, para além da escolaridade, posto que se insere na complexa relação entre o mundo e a escola. Assim, a produção de leitura, escrita e oralidade (de mundo e de textos), entre tantos outros, são do+mínios curriculares para o desenvolvimento do pensamento interdisciplinar, o que pressupõe processos de letramento na vida imbricados aos processos escolares.

    Esta inter-relação é ponto comum entre as produções desse Grupo de Pesquisa, que há mais de 20 anos em contexto acadêmico-universitário desenvolve projetos interdisciplinares e formadores voltados para a elaboração de conceitos e práticas em letramento, da educação infantil ao ensino superior. O que se discute neste livro, portanto, se constrói há muitos anos, com o zelo de quem respeita os muitos modos de ensinar, de aprender e de produzir conceitos e sentidos. A finalidade é sempre a mesma: a de que a escola acolha todas as pessoas, de todas as idades, profissões e trajetórias de vida, cada família, cada professor e cada professora que encontram nela o seu espaço de pertencimento e de fazer história no mundo.

    A perspectiva de letramento como área de pesquisa, como produção de conhecimento e como intervenção no mundo responde à demanda contemporânea por posturas científicas contextuais, interculturais e intersubjetivas, o que requer estudos que perpassam, desde os processos escolares de elaboração inicial do sistema de escrita alfabética, aos sistemas modais de representação das realidades e dos conhecimentos. Suas referências teóricas acompanham, portanto, essa dinâmica que circula entre aspectos gerais da epistemologia do conhecimento, da psicologia social e da antropologia humana, e aspectos específicos, por meio da linguística aplicada, da fonologia, da psicologia da aprendizagem e dos estudos da variação linguística. As análises e publicações acadêmicas decorrentes desses estudos revelam nesta obra, assim como nas demais produções do autor, central preocupação com os contextos e as relações de ensino, bem como com as condições de vida, da escola, e as vivências pessoais de seus sujeitos – algo que só produz sentido se em coerência com as realidades das escolas públicas brasileiras e com as diferentes formas de constituição da cultura e da produção de sentidos em leituras e escritas.

    Os fundamentos dos processos de alfabetização requerem destaque nesta obra, por serem apresentados também a partir de princípios não doutrinários, mas sim, inspiradores, a partir de um rol de domínios teóricos e didáticos que fundamentam práticas autorais, significativas e críticas. A história da alfabetização costuma estar enraizada na discussão entre métodos e materiais didáticos. Nesta obra, porém, o debate está nos princípios educativos que se elegem para construir práticas autorais, assumindo cada escolha, com a responsabilidade de quem se pergunta diariamente para onde cada percurso didático-metodológico leva as alunas e alunos.

    O mundo das leituras e da produção de textos é o mesmo mundo da vida, ora mais cotidiano e espontâneo, ora mais estruturado e sistematizado. Vale assinalar o fato de se revelarem nesta obra os processos discursivos possíveis para além dos fins pedagógicos. Destaca-se, portanto, a validade dos contextos reais, para os quais são acionados afetos, histórias, culturas, desejos, necessidades, entre outros aspectos que são colocados em jogo todas as vezes que temos sentidos a construir. E, dessa forma, entende-se que a escola só cumpre o seu papel de formar leitores e escritores que respondam ao mundo contemporâneo se representar interações possíveis entre mundos culturais diversos, promovendo, assim, processos variados de letramentos.

    A evolução dos estudos que se consolidam nesta obra começa em 1988 por meio de investigações científicas que buscaram descrever a linguística epistemologicamente, debruçando-se sobre a natureza das bases do pensamento linguístico. Identificando a perspectiva multidisciplinar dos fenômenos de representação da gramática e da produção de texto, Senna compreende que o conceito central da educação não está na lista de conteúdos programáticos que os alunos precisam aprender, mas nas relações pessoais e interculturais que os desenvolvem como pessoas, para a criação e a produção do conhecimento. Esta compreensão se consolida pelo ciclo de pesquisas denominado Linguagem e Experiência Curricular, exatamente por identificar que alunas e alunos constroem sua história escolar a partir das experiências sociais e culturais que devem impregnar o currículo escolar. Quanto mais articulado em conjuntos de domínios conceituais (e não meramente programáticos), mais imersos alunos e alunas estarão em posição de produzirem leituras de mundo que se explicam contextualmente. E não seria esse o sonho de formação de leitores e escritores alimentado nas últimas décadas?

    O pensamento interdisciplinar acaba por motivar a adoção de terminologias que melhor representem a complexidade das relações pedagógicas em Linguagem e a produção de conhecimentos. Assim, o desenvolvimento do conceito de letramento é incorporado na centralidade de um ciclo de pesquisas que perdura de 1999 até 2002. A principal demanda de Senna neste período concentra-se na necessidade de repensar os processos educacionais à luz de princípios de educação inclusiva, a partir da consideração das heterogeneidades, até mesmo em documentos oficiais, como por exemplo os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998).

    Em seu ciclo de pesquisas subsequente, que se desdobra por cinco anos (2003 a 2008), volta-se aos aspectos específicos da aprendizagem humana, a partir de referências histórico-culturais, que creditam às experiências culturais o desenvolvimento de modos únicos de representação do conhecimento. Neste ciclo, intitulado Metáfora e Educação Inclusiva, Senna desenvolve o conceito de sistemas metafóricos, a partir das teorias da gramática, do letramento e da aprendizagem. Trata-se de um conceito ousado, que garante a cada sujeito uma explicação teórico-descritiva legítima para suas formas únicas de interação com a linguagem ao longo do processo de alfabetização. Atrelada ao conceito de sistemas metafóricos, está também a noção de aprendizagem como elaboração de conceitos. Considerando as questões didático-metodológicas do ensino de língua materna, é possível afirmar que estes conceitos oferecem considerável impacto às práticas pedagógicas na medida em que: a) Legitimam como mundos possíveis (BRUNER, 1997) as representações mentais individuais, imprimindo em cada sujeito modos incomparáveis de interação com os objetos e com os conhecimentos; b) Desafiam professores e professoras no planejamento de práticas contextuais e diversificadas que busquem atender aos modelos, ritmos e formas diferenciados de aprendizagem de cada um de seus alunos e alunas; c) Motivam revisões curriculares, reorganização da rotina e do espaço escolar e, principalmente, repensam as práticas avaliativas, considerando as subjetividades e a diversidade dos modos de aprender e de expressar o conhecimento; d) Desconstroem noções rígidas de escola, currículo, aprendizagem, objeto e verdade.

    Neste percurso, o conceito de sistemas metafóricos é a base para explicações teórico-descritivas que se aproximam das estratégias individuais de produção de leituras, escritas e oralidade. Assim, a especificidade dos processos de alfabetização é considerada no quarto ciclo de pesquisas coordenado por Senna, nomeado Representação gramatical e sistemas metafóricos (2009-2012). Neste ciclo, são identificadas as propriedades gramaticais dos textos orais e escritos de sujeitos em processos iniciais de alfabetização, sejam crianças, jovens ou adultos. Tais processos são relativos à construção de noções elementares do sistema de escrita alfabética e consideram propriedades diferenciadas entre os sistemas gramaticais da fala e da escrita, assumindo a perspectiva de interação entre os eles.

    De 2013 a 2017, a produção de pesquisas de Senna é sistematizada em ações formativas para professores e professoras em graduação. Neste ciclo chamado de Cultura e currículo de formação de professores para o letramento e a alfabetização, são retomados os sentidos historicamente produzidos para o modelo tradicional e disciplinar de escola e de currículo, que ao longo de vários séculos sustentam o imaginário de inúmeras sociedades grafocêntricas, como a garantia do direito de algum tipo de existência social, para além das relações de trabalho e mão de obra. Senna explica que "a instituição escolar representa, na realidade, um conjunto infinito de sentidos de escolas, subjacentes às pessoas e suas crenças quanto ao futuro" (2017: 12). Desta forma, a cultura escolar é legitimada socialmente, sempre sujeita às circunstâncias temporais e culturais e a escola de hoje responde aos sentidos contemporâneos produzidos socialmente. Convivem, assim, as perspectivas saudosas de um tradicionalismo exagerado que se quer presente em espaços sociais diversos, inclusive os escolares, comprometendo a liberdade e refreando iniciativas sociais pró-diversidade, e as perspectivas contemporâneas que se desenham conforme o mosaico de realidades com as quais convivemos.

    Decorre de toda esta consolidação teórica, cuidadosamente estruturada e ancorada em princípios democráticos, a publicação deste marco conceitual nos estudos da linguagem. Trata-se de uma resposta às iniciativas políticas e, em especial, àquelas voltadas às escolas públicas, que insistem em retroceder às práticas excludentes e preconceituosas que por décadas segregaram grupos sociais por sua cor, suas condições socioeconômicas e por tudo aquilo que representavam. O contexto desta obra é, pois, um novo ciclo de pesquisas que se inicia em 2018, denominado Culturas em contato no processo de letramento e alfabetização. Neste ciclo, investe-se no reconhecimento dos aspectos culturais da Idade Moderna como representação de um perfil clássico de escola, de sujeito da aprendizagem e de professorado para, a partir daí, construir representações teórico-conceituais que estruturem a escola contemporânea que resiste em ser laica, democrática, gratuita e sonha com acolhimento de todas as culturas.

    Sempre como pontes que se integram, todos os ciclos de pesquisa estão aqui representados e apresentam um leque ampliado de publicações de base científica, com impacto direto na formação inicial e continuada de professores e professoras. Sempre como portas sujeitas à multiplicidade de sentidos, todos os ciclos de pesquisa aqui sumarizados inspiram práticas diversificadas e calcadas na premissa de que fazer-se professor ou professora é assumir a complexidade de sistemas, relações, representações e vidas que se juntam para com-partilhar, para e-laborar, para com-viver.

    As densas produções teórico-conceituais de Senna sempre apostam alto no potencial criador, político e reflexivo de professoras e professores e, desta forma, um caráter doutrinário ou meramente prescritivo não combinaria com uma obra contemporânea sobre a linguagem que, apesar das contramarés, resiste em se fazer pontes e portas, em abrir mundos possíveis e em acreditar que a educação se faz em diálogos e compartilhamentos de práticas, de vidas e de sonhos. O poeta Manoel de Barros nos lembra da riqueza da incompletude humana e, por isso, pede: "Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas". Construindo pontes e portas, somos Outros. Sigo com Senna neste projeto formativo que é para TODAS e TODOS e é por isso que vou.

    Paula Cid Lopes

    Doutora em Educação

    Professora adjunta do Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino (Faculdade de Educação, UERJ)

    Bolsista de Produtividade Acadêmica do CEDERJ

    REFERÊNCIAS

    BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental (1998). Parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF.

    BRASIL (2017). Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica.

    BRUNER, J. (1997). Realidade mental, mundos possíveis. Tradução portuguesa: Porto Alegre: Artes Médicas.

    SENNA, L. A. G. (2017). Prefácio. In: SENNA, L. A. LOPES, P. C. L.; MACHADO, M. L. C. Os sentidos da escola e a cultura do professor. Rio de Janeiro: Editora CRV.

    APRESENTAÇÃO

    Fazia tempo pediam-me que reunisse em um livro o corpo teórico fundamental das disciplinas da área de linguagem vinculadas à formação do professor do ensino fundamental, no curso de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E fazia tempo, eu resistia a fazê-lo, pois julgava inoportuna a delimitação de um viés doutrinário que pudesse cercear a autonomia e a liberdade de escolhas acadêmicas por parte de meus demais colegas, professores da área na Faculdade de Educação. Ocorreu, entretanto, que, não propriamente de súbito, ao longo da década de 2010, a educação brasileira – e seus educadores – deu sinais de franco retrocesso ideológico, teórico e metodológico, pondo em risco todo o esforço acadêmico e político por escolas inclusivas, verdadeiramente laicas e, sobretudo, tolerantes com as diferenças individuais. Entre idas e vindas, a escola brasileira mostrava, novamente, tender mais às vindas, como em um eterno retorno à sociedade colonial, voltada para o estrangeiro, para um aluno europeu que se impõe ao povo. Vi naquele momento tornar-se necessário resgatar o fluxo de investimentos teóricos que se desenvolveram ao longo de quatro décadas de pesquisas e projetos curriculares, a fim de que, reunidos em uma só fonte, nos fosse possível demonstrar o porquê das escolhas inclusivas na educação. Não se deseja traçar marcos regulatórios com este livro, tampouco defender doutrinas acadêmicas que devam prevalecer na formação dos professores. Seu objetivo é instruir, apresentar teses e argumentos que bem fundamentem as suas escolhas.

    Tomei o cuidado de não me estender mais em certos aspectos do que em outros, tampouco eleger alguma corrente doutrinária em detrimento de outras, a fim de contemplar a diversidade de vozes e interpretações teóricas que constituem a área da linguística aplicada ao letramento e à alfabetização. Entretanto, cuidei, isto sim, de zelar para que se pudesse encontrar referências desde os aspectos mais teóricos – filiados aos princípios linguísticos – ao mais aplicados, nos campos curriculares específicos da área, a saber: a alfabetização em si – ou, o processo de construção da escrita alfabética – a formação do leitor e o desenvolvimento da produção textual. Não se desejou em momento algum tratar destes domínios curriculares como disciplinas ou áreas isoladas umas das outras, mas como campos curriculares que se interpenetram, porém, sem que se confundam. Cuidei, também, de definir e caracterizar o ensino de língua materna na educação básica, especialmente nos capítulos 3, 4 e 12, tratando-o como objeto dos princípios gerais da linguística com os quais se define a concepção de uma linguística aplicada ao ensino de língua materna. Optou-se por tratar do ensino de língua materna em separado das demais seções do livro – que tratam de questões específicas do ensino –, por compreender que esta definição é um norte que orienta todos os demais domínios curriculares, na medida em que assinala o papel autoral do professor em face do objetivo de levar o aluno a atuar como protagonista em sua própria formação. Tanto o letramento quanto a alfabetização dependem de um conceito, anterior, que lhes situem no âmbito da formação do sujeito escolar. Este conceito é trazido nos estudos teóricos apresentados na primeira parte do livro.

    Uma questão paralela que sustenta as contribuições deste livro é a concepção curricular em que se idealiza sua aplicabilidade. Nada neste livro se sustenta fora de uma perspectiva de formação integral, na qual o desenvolvimento do letramento e da alfabetização é tratado como parte do desenvolvimento global do sujeito, desde os pontos de vista intelectual, socioafetivo e psicomotor. Por este motivo, em qualquer domínio curricular, por mais específico que sugira ser, sempre há de prevalecer uma abordagem interdisciplinar. Neste sentido, a língua e os demais sistemas de expressão, seus usuários e todos os meios de comunicação são concebidos como fenômenos históricos, situados no meio e em suas culturas, dinâmicos e suscetíveis às circunstâncias das interações sociais. Fosse diferente, não poderia haver diálogo com escolas possíveis, com professores possíveis, em Brasis possíveis. É esta abordagem que torna este livro afiliado à área da Educação.

    O fazer deste livro tem, em si próprio, um exercício de construção investigativa dedicado à formação docente, partindo de aspectos os mais teóricos e sempre os confrontando com demandas, igualmente teóricas, de um professorado que busca compreender, tanto os sentidos quanto os fazeres pedagógicos em seus projetos de letramento e alfabetização escolar. Projetos, antes de tudo, de inclusão social, abertos a todo tipo de pessoas cujo direito de se tornarem verdadeiros alunos e alunas há de prevalecer sobre quaisquer modelos sociais ou intelectuais pré-concebidos. Este percurso entre o teórico e os espaços reais de ensino-aprendizagem escolar não se faz por meio da delimitação de discursos específicos para um caso e outro. Na realidade, a diferença de abordagem se dá na ênfase de cada um em dado momento do discurso acadêmico. Todos os capítulos deste livro dialogam com o teórico e com a sala de aula, porém, do primeiro ao último, vão se alargando as esferas de complexidade, de modo que, ora se discute o teórico com vistas a uma escola, ora uma escola ou seu alunado com vistas a um campo teórico. Este ir e vir do e para o teórico e o aplicado é o exercício que se propõe, aqui, à formação docente. Para melhor esclarecer o contexto curricular a que esta proposta de formação se orienta, acrescentou-se o final, em anexo, um conjunto de planilhas que apresentam os diversos domínios curriculares que se integram – necessariamente se integram – nos processos formativos a serem desenvolvidos a partir da educação básica, notadamente nos anos iniciais do ensino fundamental.

    Vários dos capítulos aqui presentes foram publicados em momentos anteriores e passaram por adaptações, algumas leves, outras bem profundas, porém não constituem uma coletânea de trabalhos independentes entre si. Todos os capítulos, antigos e novos, são articulados e formam uma sequência com coesão dentro de um programa de formação de agentes de letramento e alfabetização. Isto pode ser facilmente identificado pela sua distribuição entre as quatro partes do livro, que se inicia com conceitos fundamentais do campo, na área da linguística, aprofunda, em seguida, a caracterização do campo da linguística aplicada ao letramento e à alfabetização, e, finalmente, abre-se para os campos específicos da alfabetização e dos princípios e processos de letramento e formação de leitores.

    Este é um livro destinado a professores agentes de letramento e alfabetizadores. Com ele, desejo contribuir para que a escola e seus atores possam sempre defender sua autonomia e sua autoria na educação das pessoas, não importa quais, pessoas acima de tudo.

    Agradeço o apoio das diferentes fontes de financiamentos e auxílios que subsidiaram a elaboração desta obra, em sua execução e em sua publicação. À Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), por meio do Programa Cientistas do Nosso Estado. À Fundação Centro de Ciências do Estado do Rio de Janeiro (CECIERJ), por meio de bolsa de produtividade. À Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pelo Programa Prociencia. E agradeço, ainda, e particularmente, a todos os meus alunos e alunas, mestrandos e doutorandos, além dos milhares de colegas leitores, todos coautores de minha vida acadêmica.

    Rio de Janeiro. Verão de 2019

    Professor Luiz Antonio Gomes Senna

    Sumário

    I

    Princípios linguísticos

    1

    Gramática: um conceito precedente

    2

    Uma gramática para a escola

    2.1 – Gramática e gramáticas

    2.1.1 – As gramáticas antigas

    2.2 – A gramática normativa

    2.3 – As gramáticas do século XX

    2.3.1 – As doutrinas formalistas

    2.3.1.1 – A gramática estruturalista

    2.3.1.2 – A gramática gerativa

    2.3.2 – As gramáticas textuais e discursivas

    2.4 – Gramáticas e metodologia de ensino

    3

    LÍNGUA MATERNA, ESCRITA E BILINGUISMO

    3.1 – Bilinguismo

    3.2 – Língua oral e língua escrita

    3.3 – Interferências de Lo sobre Le

    3.3.1 – Marcação do sujeito

    3.3.2 – Modalização gramatical

    3.3.3 – Concordância

    3.3.4 – Emprego do /-r/ em fronteira de palavra

    3.3.5 – Análise dos casos apresentados

    3.4 – Língua oral, língua escrita e aprendizagem

    3.5 – Sumarizando

    4

    A GRAMÁTICA NATURAL DO EMPREGO DO TEMPO

    4.1 – Linguística aplicada ao ensino

    4.2 – Gramática e textualidade

    4.3 – Tempo e intuição na gramática

    4.4 – Um experimento sobre o conhecimento intuitivo do tempo

    4.5 – Tempo como categoria textual

    4.6 – Conclusão

    5

    COORDENAÇÃO E SUBORDINAÇÃO: DA SINTAXE À TEXTUALIDADE

    5.1 – Processos sintáticos específicos: coordenação e subordinação

    5.2 – Subordinação semântica

    5.3 – A função adverbial

    5.4 – Orações subordinadas substantivas

    5.4.1 – A oração subjetiva

    5.4.2 – A oração completiva nominal

    5.4.3 – Orações subordinadas apositivas

    5.5 – Orações subordinadas adjetivas

    5.6 – Orações coordenadas e subordinadas adverbiais

    5.6.1 – Orações tipicamente coordenadas

    5.6.2 – Orações tipicamente subordinadas adverbiais

    5.6.3 – Orações híbridas

    5.6.3.1 – Causalidade pressuposta

    5.6.3.2 – Causalidade expressa ou condicionada

    5.6.3.3 – Orações negativas

    5.6.3.4 – Quadro geral das coordenadas e subordinadas adverbiais

    5.7 – Estratégias discursivas

    5.8 – Em resumo

    6

    MODELOS MENTAIS NA LINGUÍSTICA PRÉ-CHOMSKYANA

    6.1 – Ciência e pensamento contemporâneo

    6.2 – Discurso e resultados: a ciência, a palavra e a renovação

    6.3 – Saussure e bergson: estruturalismo e espiritualismo

    6.4 – Bloomfield e o positivismo

    6.5 – Modelos linguísticos e epistemologia

    II

    Princípios de linguística aplicada

    7

    CONHECIMENTO DOCENTE, INCLUSÃO SOCIAL E TECNOLOGIAS DE ESCRITA

    7.1 – A escrita como a tecnologia primária do homem moderno

    7.1.1 – A escrita como um conjunto de traços cognitivos

    7.1.2 – Estratégias de inclusão e procedimentos de escrita

    7.2 – Tecnologias pós-escrita e modernidade contemporânea

    7.2.1 – Diversidade cultural sem fronteiras – cidadãos do século XXI

    7.2.2 – Culturas orais no paraíso

    7.3 – Por uma educação orientada à inclusão social

    7.3.1 – Professores e a epistemologia das ciências

    8

    O CAMPO ACADÊMICO DO LETRAMENTO E DA ALFABETIZAÇÃO

    8.1 – O problema: ver alunos e não enxergar pessoas

    8.2 – Paradigmas e alunos ideais

    8.3 – A pesquisa em linguística aplicada

    8.4 – O surgimento do campo acadêmico

    8.5 – A comunicação transparadigmática

    8.6 – Perspectivas do letramento e da alfabetização

    9

    LETRAMENTO E DESENVOLVIMENTO NA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

    9.1 – Os modos do pensamento

    9.2 – O conceito de letramento e o desenvolvimento humano

    9.3 – Letramento e culturas orais

    9.4 – O letramento no Brasil: entre o desejo e a revolta

    10

    CATEGORIAS, SISTEMAS METAFÓRICOS E ETNOGRAFIA

    10.1 – O paradoxo da observação etnográfica

    10.2 – Sistema arquetípico e produção de conhecimento

    10.3 – Vozes interpostas: o registro etnográfico

    10.4 – Sistemas metafóricos, finalmente

    11

    O CONCEITO DE LETRAMENTO E A TEORIA DA GRAMÁTICA

    11.1 – Teorias, modelos mentais e o estudo dos sistemas falados

    11.2 – Modos do pensamento e processo de letramento

    11.3 – Intencionalidade, modos do pensamento e a teoria da gramática

    11.4 – Sistemas metafóricos e o conceito de letramento

    12

    ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E O DEBATE SOBRE O LETRAMENTO NO ENSINO MÉDIO

    12.1 – Campo curricular e objetivos do ensino de língua materna

    12.1.1 – Dos sentidos da descrição gramatical

    12.1.2 – O sentido discursivo

    12.1.3 – Cultura e justaposição de sentidos

    12.2 – Estruturas passivas e objetivos de ensino

    12.2.1 – Da origem dos estudos sobre as vozes do verbo

    12.2.2 – Passivas pronominais e sujeitos indeterminados

    12.2.3 – Passivas e transitividade verbal

    12.2.4 – Repercussões sobre o campo curricular

    12.3 – Conclusão

    III

    Fundamentos da alfabetização

    13

    A ORIGEM E A CONSTITUIÇÃO DO PORTUGUÊS ESCRITO

    13.1 – A gramatização das escritas modernas e a normatização ortográfico-lexical

    13.2 – Gramatização, diglossia e sujeitos sociais na EJA

    13.3 – Escritas medievais do português

    13.4 – Os brasileiros da EJA

    14

    PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA, UNIVERSAIS LINGUÍSTICOS E TEORIAS DE ALFABETIZAÇÃO

    14.1 – Teorias de alfabetização

    14.2 – Uma definição da prática alfabetizadora

    14.3 – A natureza dos universais linguísticos e das hipóteses de trabalho em Chomsky (1965)

    14.4 – Consequências da pressuposição do lad na alfabetização semioticista

    14.5 – A natureza das hipóteses no discurso de Ferreiro & Teberosky (1974) 

    15

    PROCESSAMENTO DA FALA, MENTE HUMANA E LETRAMENTO

    15.1 – Demandas globais para o acesso ao letramento

    15.1.1 – Jogos como estratégia na alfabetização

    15.1.2 – Processamento da fala e jogos para o letramento

    15.2 – Representação fonêmica e as fundações da ciência

    15.2.1 – Mente e diversidade cultural

    15.2.2 – Fonemas e diversidade mental

    15.3 – Processamento automático da fala

    15.3.1 – Jogos e alfabetização: conclusões e recomendações

    IV

    Fundamentos da leitura e produção de textos

    16

    MÍDIAS E LETRAMENTO

    17

    ASPECTOS COGNITIVOS E CULTURAIS DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE LEITORES

    17.1 – Leitura, linguagem e cognição

    17.2 – Sistemas interculturais bilingues ou não e ensino

    17.3 – Leitura e escrita: anterioridade de uma sobre a outra

    17.4 – Leiturização em contextos interculturais

    17.5 – Conclusão

    18

    O LEITOR CONTEMPORÂNEO NA ESCOLA: OS MODOS DO PENSAMENTO

    19

    GÊNEROS DISCURSIVOS, PRODUÇÃO TEXTUAL E REPRESENTAÇÃO DO PENSAMENTO

    19.1 – O contexto e nossa justificativa

    19.2 – Leitura e texto interior

    19.3 – Leitura, textos e diversidade

    19.4 – Escrita e gêneros discursivos

    19.5 – Aspectos derivados para a prática docente

    19.6 – Conclusão

    REFERÊNCIAS

    Apêndice

    COMPONENTES CURRICULARES DO ENSINO FUNDAMENTAL

    I

    Princípios linguísticos

    1

    Gramática: um conceito precedente

    Existem alguns termos na língua portuguesa que se usam correntemente sem qualquer dificuldade de identificar a que significado se relacionam. Considere, por exemplo, palavras como refrigerante, macarronada, lâmpada, carro, sapato. Não há custo para determinar o que significam estas palavras, ou a que o falante se refere ao empregá-las. Há outras palavras, porém, que são tão intensamente empregadas como as demais, mas cujo significado nem sempre é igualmente transparente e comum a todos os falantes. É o caso, por exemplo, da palavra gramática. Reunindo-se um grupo de estudantes, professores de língua portuguesa e pesquisadores de linguística e, em seguida, perguntando-lhes o que cada um entende por gramática, observar-se-ão tantas e tão diferentes respostas, que se concluirá tratar-se de alguma coisa próxima do indefinível. Mais do que isso, poder-se-ia perguntar como é que as pessoas conseguem se entender quando falam de gramática, já que cada uma a considera um objeto tão diferente.

    Nem sempre a ambiguidade do termo gramática é evitável e, por esta razão, achei conveniente abrir este livro com a apresentação dos objetos que são representáveis por meio da mesma palavra. Esta é uma questão que afeta muito significativamente as práticas de letramento e de alfabetização, na medida em que existe algum tipo de conceito de gramática, explícito ou implícito, subjacente a cada uma. O modo como se compreende o que vem a ser a gramática induz o tipo de abordagem que o professor adota em sua prática de ensino, assim como o tipo de abordagem que figura nos materiais didáticos, especialmente os livros didáticos. Por isso, este livro, que tem por objeto o campo do letramento e da alfabetização na educação básica, abre-se com a definição de gramática que será adotada nos demais capítulos.

    São basicamente em número de cinco, as possibilidades de emprego deste termo. Vou apresentá-las comentando algumas das definições mais comuns entre diferentes autores, que representam, respectivamente, diferentes linhas de abordagem da questão gramatical.

    A primeira e mais concreta das definições de gramática é a que a toma como o "livro onde se expõem as regras da linguagem (FERREIRA, 1986: 862). Todos nós temos esta interpretação de gramática internalizada no léxico e a manifestamos a partir de sentenças como Comprei uma gramática nova. ou Preciso encapar esta gramática, porque ela está toda despencada. Nem todo livro que trata de fatos da língua ou de sua descrição é chamado de gramática. Este livro, por exemplo, dificilmente seria considerado uma gramática, porque não apresenta certas características específicas. É muito vaga a consciência que temos acerca destas características. Talvez, o próprio Aurélio Buarque de Holanda Ferreira nos esclareça estas características em uma segunda definição, que diz: estudo ou tratado dos fatos da linguagem falada e escrita, e das leis naturais que a regulam" (FERREIRA, Id. Ibd.). Esta definição já introduz um argumento novo à gramática: a noção de que se refere a um tipo de estudo ou ciência.

    A gramática enquanto ciência tem duas leituras possíveis, que não devem se confundir. A primeira delas foi predominante durante séculos e, ainda hoje, pode ser encontrada na fala de muitos professores. Enéas de Barros assim a resume; "considerados os seus étimos, gramática é a ciência da escrita que abrange, com suas regras, todos os que usam as letras para ler e escrever" (BARROS, 1985: 24). Esta definição coloca em evidência o caráter prescritivo, dominante nas gramáticas destinadas ao ensino, do qual trataremos mais amiúde no próximo capítulo.

    Outra concepção da gramática enquanto ciência deriva de Saussure, já no início do século passado. Para Saussure, a gramática tinha uma abrangência muito maior do que a que seus seguidores lhe concederam a partir de então. A definição apresentada por ele é muito simples: "estudo de uma língua examinada como ‘sistema de expressão’ (SAUSSURE, 1916: 156). A esta definição, que já não mais trata de língua escrita e regras normativas, seguiram-se muitas outras. A maioria delas, porém, deixa de enfatizar a relação entre o estudo realizado e a análise da língua como sistema de expressão". Vejamos algumas:

    i - Estudo de uma língua, em particular das estruturas morfológicas e sintáticas (DUBOIS, 1980: 581).

    ii - […] é o estudo dos morfemas, ou morfologia, e dos processos de estruturação do sintagma (CÂMARA Jr., 1977: 130).

    iii - Gramática é o estudo sistemático das estruturas linguísticas em plano sincrônico (AZEVEDO Filho, 1975: p: 16).

    Nestas três definições a gramática assume que seu objeto são os fatos gramaticais da língua (morfológicos e sintáticos), distanciando-se assim da amplitude designada por Saussure quando fala de sistema de expressão. Verifica-se em (iii) uma proposição derivada de Saussure, acerca da impossibilidade conceitual de existirem gramáticas históricas ipso facto. Estudos diacrônicos são leituras de diversos estágios sincrônicos de uma mesma língua. Portanto, estas gramáticas são, na realidade, compostas por comparações de diversas gramáticas da língua, cada qual relacionada a um determinado estágio de seu desenvolvimento.

    Seguem-se a estas definições que apresentam a gramática como um tipo de estudo, outras definições que a tomam como um objeto em si mesmo. Nestas concepções a gramática ganha vida própria e autônoma do linguista que a analisa, constituindo, assim, um objeto de investigação e não o produto dela. Um exemplo disto é a definição de Francisco Borba: "em sentido amplo, sistema finito de regras que determina uma língua, isto é, conjunto de princípios responsáveis pela sua organização" (BORBA, 1976: 56).

    Proponho, então, que um quarto tipo de definição de gramática seja aquele em que se admitam duas das definições mais comuns e sujeitas a ambiguidade. É o que se vê em "Usamos o termo gramática com uma ambiguidade sistemática. De um lado, o termo se refere à teoria explícita construída pelo linguista e proposta como uma descrição da competência do falante. Do outro lado, usamos o termo para referir à própria competência" (CHOMSKY et HALLE, 1968: 3). Esta é a exata posição que assumirei daqui por diante neste livro.

    Contudo, é necessário apresentar, ainda, um quinto e último tipo de definição de gramática que difere, significativamente das definições anteriores, à exceção da proposta por Saussure. Tal gramática segue à linha da definição proposta por Chomsky et Halle no parágrafo anterior, mas lhe acrescenta um fator. É o que nos ensina Othon Moacir Garcia:

    Dentro da liberdade de combinações que é própria da fala ou discurso – liberdade que permite a cada qual expressar seu pensamento de maneira pessoal, sem ter de repetir sempre, servilmente, frases já feitas, já estereotipadas – há certos limites impostos pela gramática, limites que impedem a invenção de uma nova língua cada vez que se fala. Nossa liberdade de construir frases está assim condicionada a um mínimo de gramaticalidade – que não significa apenas nem necessariamente correção (há frases que apesar de, até certo ponto, incorretas, são plenamente intelegíveis) […] Mas a simples gramaticalidade, o simples fato de algumas palavras se entrosarem segundo a sintaxe de uma língua para tentar comunicação não é suficiente para lhes garantir inteligibilidade (GARCIA, 1967: 7-8).

    Garcia acrescenta à definição de gramática a noção de que esta não está exclusivamente relacionada a aspectos da língua (morfologia ou sintaxe, como diz Matoso Câmara Jr., citado neste capítulo), mas depende de fatores outros, igualmente responsáveis pela eficiência comunicativa do enunciado. No trecho que transcrevi, Garcia (1967) indica, também, que a gramática impõe certos limites, mas essencialmente atende ao falante na expressão de enunciados criativos, não condicionados a valores ou regras socialmente predeterminadas. Este, aliás, é um princípio básico de toda a linguística moderna, já sugerido em CHOMSKY (1957), em que se colocam as bases iniciais da Teoria Gerativa.

    Em síntese, a definição que adotarei aqui sobre gramática é o conjunto do que é proposto em Chomsky et Halle (1968) e Garcia (1967): gramática é um conjunto de regras ou princípios, linguísticos e não linguísticos, que permite ao falante da língua criar e compreender sentenças ou textos verbais, previamente conhecidos ou não; gramática é, também, o termo que designa o produto dos estudos descritivos relativos a este conjunto de regras.

    A definição adotada permite-nos tratar da questão do letramento como algo que se desenvolve a partir de certo conhecimento linguístico de que o aluno já dispõe em sua mente por ser um falante nativo e competente de sua língua. Gramática, portanto, não é matéria de ensino e sim, de desenvolvimento, de alargamento de possibilidades de uso comunicativo, com base no emprego de diferentes tipos de registros, dos mais formais aos mais informais.

    2

    Uma gramática para a escola

    O final do século XX trouxe inúmeras transformações no sentido geral do ensino de língua portuguesa na educação básica, fruto da introdução gradual de estudos no campo do discurso e da comunicação. Já havia cerca de 20 anos desde a reforma nacional do ensino ocorrida em 1972 e a comunidade escolar – professores e seus alunos – vinham questionando o interesse e utilidade daquela gramática que a escola trabalhava recorrentemente desde a antiguidade clássica e que, em última instância, costumava simbolizar o próprio ensino de língua portuguesa. Fora isto uma verdadeira crise de valor no âmbito da cultura da Letras, já que, anteriormente, a eficiência ou ineficiência de tanta gramática na escola jamais fora questionada.

    A crise de valor no ensino de língua portuguesa não chegou a ser superada até os dias em que se publica esta obra. Àquela época, a dita crise fora consequência direta do alargamento dos sujeitos sociais que obtiveram garantida de acesso à escola por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional promulgada em 1972, a qual extinguira a noção de jubilamento por insuficiência ou reprovações nos sistemas públicos de ensino. A partir daquele momento histórico, uma escola que sempre havia sido organizada para atender aos interesses de uma camada burguesa da sociedade, culturalmente dominante e majoritária, passou a conviver com um sujeito social que dos valores burgueses só conhecia a pompa e a ilustre erudição. A escola foi, então, até complacente com os não burgueses: pensava que seria possível transformá-los em novos burgueses, com plenos direitos à ascensão social. Falhou, entretanto, porque se esqueceu de perguntar aos novos alunos se havia interesse em se transformarem em novos burgueses. Não havia. Aquele novo cliente – que persiste na mesma condição até os dias atuais, mais como cliente do que como verdadeiro aluno – é prático e consciente de seus verdadeiros interesses. Tanta erudição, tanta decoreba, tanto silêncio, tanto romantismo, definitivamente não interessam a quem tem uma cultura predominantemente oral, dinâmica, retratada em ritos alegres, coloridos, cheios de movimento e ação física. Apesar de tudo, entretanto, aqueles alunos e seus professores, deram início à verdadeira revolução do ensino: de dentro de sala de aula para os estatutos teóricos.

    Este novo cliente despertou a escola aos poucos, recusando-se a aprender aquilo que não lhe serviria para nada. Assim, a escola foi mudando: o que antes era verdade absoluta, passou a ser paulatinamente questionado; o que antes era sinônimo de desorganização ou irreverência, passou a ser considerado um modo de vida. A escola se acostumou com uma nova burguesia, irreverente, desconfiada e muito, muito, exigente. Hoje não há mais novos clientes e velhos clientes. Há apenas um tipo de aluno que absorveu as características daquele que teve ingresso à escola nos anos setenta. Um cliente maduro, que exige do professor muito mais do que um profundo conhecimento teórico. Exige conhecimento e técnica de ensino. Uma técnica apropriada a cada aluno, a cada conteúdo. Aquele professor orador e austero é uma figura falecida nos idos do magistério.

    O professor evoluiu, mas a crise permanece. Por quê? A mudança nos hábitos profissionais do professor resulta do contato direto com o aluno e da necessidade imediata de atendê-lo. Os institutos formais da escola, contudo, ainda permanecem os mesmos, porque dependem de normatização legal, assim como de legitimação social e acadêmica. A normatização do ensino é feita fora da escola, muitas vezes por pessoas que desconhecem todo e qualquer tipo de necessidade daquela comunidade que convive diariamente em situações de ensino. Como a norma escolar é arcaizante, ela própria acaba caindo na crise de valores e cada professor busca solucionar o problema de acesso ao aluno da maneira que lhe parece mais adequada. Surge, então, um problema grave.

    No caso da língua portuguesa, existem diferentes doutrinas teóricas, que descrevem o objeto língua sob os mais variados pontos de vista. Se cada professor seguir uma doutrina diferente e uma metodologia diferente, o aluno tende a aprender não mais do que um mosaico de fatos gramaticais ao longo de sua escolaridade. Por outro lado, caso se adote exclusivamente a tradição gramatical como doutrina teórica, torna-se praticamente impossível atender aos interesses dos alunos, uma vez que esta doutrina limita em muito as possibilidades de práticas de ensino e formação.

    Algo similar ocorreu no ensino de língua portuguesa entre as décadas de mil novecentos e quarenta e cinquenta, mais ou menos. Neste período, chegavam ao Brasil os primeiros vestígios da linguística europeia e norte-americana e, por influência deles, os gramáticos começaram a diversificar a nomenclatura utilizada no ensino escolar de gramática. Em pouco tempo, havia uma verdadeira torre de Babel: cada gramática utilizava o seu próprio jargão e cobrava do aluno seu pleno conhecimento. Naquela época, a falta de unidade era um problema de segurança nacional, considerando-se que a escola era o único instrumento capaz de preservar a memória e a identidade nacionais que, em um país de dimensões continentais, historicamente colonizado, poderiam ser facilmente fragilizáveis. A falta de unidade trazia, ainda, problemas de ordem imediata: cada aluno aprendia o português do "professor fulano que lecionava na escola x". Se este aluno trocasse de escola, mudasse de cidade ou estado, deveria começar tudo de novo. Foi em decorrência disto tudo que, no final da década de cinquenta, o governo federal encomendou a um grupo de gramáticos a tarefa de compilar um conjunto de termos técnicos que fosse empregado por todas as escolas no ensino de gramática. Este glossário foi publicado em forma de portaria, com o título de Nomenclatura Gramatical Brasileira. A N.G.B. está em vigor até os dias atuais regendo tanto o ensino programático de língua portuguesa, quanto os programas de concursos públicos.

    O problema da falta de unidade nos dias atuais não se restringe à nomenclatura empregada pelos professores. Aliás, este é um problema de menor importância, já que os termos não interferem em nada no tipo de trabalho que se faz com o aluno em sala. A N.G.B. prescreve apenas um conjunto de rótulos. É a doutrina gramatical contida nos compêndios tradicionais que prescreve as qualidades funcionais de cada rótulo. É a gramática, e não a N.G.B., que estabelece que o advérbio não pode ser complemento do verbo, ou que o verbo de ligação passa a intransitivo quando acompanhado de um advérbio, ainda que este nitidamente funcione como complemento, ou, ainda, que o particípio é um verbo quando está acompanhado de algum complemento, mas é um adjetivo quando está sozinho etc. A N.G.B. não é um impedimento apropriado para que se utilizem novas doutrinas teóricas. O problema é: que doutrina teórica é mais adequada para o ensino escolar de língua portuguesa?

    A primeira alternativa em que se costuma pensar para solucionar essa questão é o estabelecimento de uma doutrina teórica única, normalmente prescrita em algum tipo de lei federal. Esta, porém, não parece ser a melhor solução. Por um lado, cada professor tem o direito ético de privilegiar uma entre as várias doutrinas teóricas e, por conseguinte, a prescrição de uma

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