Autonomia e Educação no Ciberespaço
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Autonomia e Educação no Ciberespaço - Wanderley da Silva
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Para Maria Júlia, minha filha querida;
sempre juntos nas veredas, ação, emoção e pensamento.
Apresentação
A construção de um processo de educação formal é uma tarefa social, que vai muito além das escolas, de qualquer nível de formação. A afirmação anterior fica bem mais evidente com a instituição das novas tecnologias da informação e da comunicação, pois os meios e vias de aquisição do conhecimento foram fortemente impactados pelas tecnologias digitais. Estudar, pesquisar e buscar conhecimentos ficou mais acessível com a internet e o mundo virtual. Todavia como estabelecer a educação formal nesse novo cenário? Como reinventar a escola na era digital?
As inquietações acima, derivadas da minha prática docente em ambientes virtuais e presenciais de educação, incentivaram pesquisas bibliográficas, assim como práticas didático-pedagógicas, que alimentam as reflexões contidas neste livro. Sobretudo, as perspectivas filosóficas de Pierre-Levy, sobre um inovador arranjo cognitivo, amparado pelas novas tecnologias digitais presentes na sociedade, sugerem uma peculiar inteligência, uma inteligência coletiva
, distribuída na interface humano/digital, real/virtual. Surgiria um novo humano a partir desse arranjo, com novas demandas, possibilidades criativas e produtivas? Esses questionamentos começaram a fazer sentido com a disseminação da internet no mundo, associada a uma crescente utilização dos softwares e, sobretudo, da convergência de mídias e tecnologias nos smartphones, que favorecem possibilidades nos mais diversos campos da atividade humana. Independentemente de projeções mais otimistas sobre a tecnologia e seu poder criador, interessou-me investigar como a formação humana é impactada nesse cenário.
Investigando a EaD on-line, foi possível inquerir até que ponto as novas tecnologias da informação e comunicação podem ser usadas para emancipação ou reprodução de modelos vigentes. Ainda mais, busquei aqui investigar se o ambiente virtual de alguns modelos de cursos à distância seria capaz de apresentar uma proposta criativa e de autonomia do sujeito, ou, ao contrário, reproduzir os padrões já estabelecidos e criticados como estáticos e pouco criativos. Para esse fim, as reflexões sobre a imaginação radical
e ambiente suficientemente bom
, de Cornélius Castoriadis e Donald Winnicott, respectivamente, foram fundamentais.
Em uma sociedade global cada vez mais tecnológica e, ao mesmo tempo, com tantos problemas relacionados à instituição de políticas que favoreçam um espaço democrático e menos desigual, com garantias aos direitos humanos, à reflexão sobre a educação, formação humana e autonomia parecem indispensáveis. Foi pensando em contribuir para elucidação desses temas que apresento esta obra, com a intenção de que sirva para alimentar reflexões sobre os atuais meios e vias da educação no ciberespaço e seus possíveis desdobramentos na vida cotidiana.
Sumário
INTRODUÇÃO 11
1
AUTONOMIA E EDUCAÇÃO 15
1.1 Autonomia, educação e a crise de autorrepresentação da sociedade 16
1.1.1 Conceito de significações imaginárias da sociedade: o imaginário radical 17
1.1.2 A crise de autorrepresentação da sociedade e o problema da formação comum 23
1.2 A crise da educação: autoridade, tradição e autonomia 29
1.3 A singularidade no pensamento de Winnicott 37
2
AUTONOMIA NO CIBERESPAÇO 43
2.1 A inteligência coletiva e a construção da autonomia na EaD on-line 45
2.2 O corpo pós-humano e a autonomia das identidades múltiplas no ciberespaço 59
2.3 A hipermídia como instrumento da autonomia 71
2.3.1 A flexibilidade democrática
da hipermídia 72
2.3.2 Monolinguismo
e participação na Internet 74
2.3.3 A hierarquização das informações na Internet 80
2.3.4 O leitor imersivo
ou cyborg 83
2.3.5 Possíveis limites da educação, autonomia e democracia no ciberespaço 85
3
O PROFESSOR E O ALUNO NA EAD ON-LINE 95
3.1 A EaD on-line no Brasil 96
3.2 Orientações pedagógicas da EaD on-line no Brasil 106
3.2.1 EML – a defesa de um metamodelo
para EaD on-line 107
3.2.2 Os jogos eletrônicos e a aprendizagem pela simulação 110
3.2.3 EaD on-line: uma modalidade de educação para adultos 116
3.3 Representações do aluno na EaD on-line 125
3.4 Representações do professor na EaD on-line 138
4
EDUCAÇÃO NO CIBERSPAÇO: AUTONOMIA OU AUTONOMIZAÇÃO NA EAD ON-LINE? 151
4.1 Tipos antropológicos e projetos político-educativos de sociedade 153
4.1.1 Do isolamento à imersão: surge um o novo tipo antropológico no ciberespaço? 157
4.1.2 Da democracia liberal ao liberalismo generalizado
? 164
4.2 Interrogações sobre os limites e possibilidades da EaD on-line 170
4.2.1 O ciberespaço: uma nova arquitetura para o conhecimento? 171
4.2.2 Educação nos AVA: interatividade ou envolvimento? 179
5
CONCLUSÃO 189
Referências 195
Índice remissivo 209
INTRODUÇÃO
Os argumentos contidos neste livro interrogam a EaD on-line e seu potencial inovador, principalmente no que diz respeito ao possível fortalecimento de uma educação democrática e do favorecimento da construção da autonomia do aluno auxiliada pelas novas tecnologias. O foco de minhas pesquisas e análises foi a EaD on-line, porém a minha intenção é refletir sobre o processo de formação humana de maneira mais ampla e, por esse motivo, julguei importante fazer uma pequena retrospectiva do itinerário que percorri até chegar à concretização do presente material escrito.
O problema da formação democrática é uma preocupação recorrente de minha prática profissional como professor, e move meu interesse pela formação humana como um processo essencialmente político. Refiro-me ao termo político
em sua acepção mais originária: atividade deliberada e deliberante que cria o campo público. Porém, os instrumentais teóricos que possuía não eram suficientes para elucidar as questões com que me defrontava; além disso, pretendendo fornecer explicações
acabadas para mostrar que os fenômenos que examinavam esses instrumentos não eram suficientes nem mesmo para a problematização do instituído: apenas reduziam a complexidade da questão ao modelo do esclarecimento. Daí a opção pelas pesquisas e produção desta obra.
Para buscar elucidar o tema, busquei uma relação entre autonomia, ciberespaço e educação. A seleção dos textos utilizados obedeceu, assim, a dois critérios: a) da proximidade com o tema da autonomia; b) sua influência sobre as reflexões na área, evidenciadas pela recorrência de citações em numerosos textos recentemente produzidos. O caso mais patente foi do autor Pierre Lévy, amplamente citado pelos trabalhos sobre o tema e que, por isso, mereceu uma atenção especial em meu exame das teorias sobre o ciberespaço e a cibercultura.
No capítulo I, estão expostas as bases teóricas que sustentam minhas análises. No início do capítulo, apresento o conceito de significações imaginárias da sociedade, e a noção de crise de autorrepresentação da sociedade, de Cornelius Castoriadis, que fundamentam a minha argumentação sobre a importância da imaginação para construção da autonomia e os prejuízos causados pelo seu encobrimento. Em seguida, introduzo a formulação de Hannah Arendt sobre a crise da educação e de sua dimensão fundamentalmente política. Por fim, utilizo as reflexões de Woods Donald Winnicott sobre a construção da singularidade, concentrando minha exposição no conceito de verdadeiro self e ambiente suficientemente bom, com o objetivo de reafirmar a educação como criação humana, necessariamente, dependente da relação com o outro.
A questão da autonomia do sujeito no ciberespaço é apresentada no segundo capítulo deste livro: partindo das postulações de Pierre Lévy, analisei a noção de inteligência coletiva. As postulações de uma antropologia do ciberespaço, defendidas pelo autor francês, que são examinadas no decorrer do capítulo, servem de base teórica para grande parte da literatura especializada sobre a EaD on-line no Brasil.
Esse alinhamento, visto em parte considerável da literatura especializada, à qual passei a me referir como defensores da cultura da simulação
, pode ser observado nas otimistas projeções desses autores em relação a um suposto processo evolutivo do humano, que criaria, em um futuro muito próximo, o leitor imersivo ou cyborg. No final do capítulo II, apresento a posição de autores que revelam uma postura mais crítica e interrogativa sobre os limites e as possibilidades oferecidas pelo ciberespaço para o processo de autonomia individual e coletiva.
Após uma breve apresentação histórica sobre a implantação da EaD on-line no Brasil, que abre o capítulo III, passo a examinar as principais orientações pedagógicas presentes na literatura sobre o tema. Na sequência do exame, as representações sobre o professor e o aluno na nova modalidade ocupam um espaço central. O principal objetivo desse capítulo foi realizar um levantamento de como os especialistas da nova modalidade concebem a educação democrática e projetam os papéis de professores e de alunos no espaço virtual.
O último capítulo deste livro foi produzido sob forma de uma grande interrogação sobre a questão da autonomia do aluno na EaD on-line. Interrogo até que medida as atuais propostas de superação da tradição pedagógica moderna, apresentada pela EaD on-line, rompem ou prolongam as propostas de autonomia que fizeram da pedagogia moderna um grande projeto de emancipação do humano. Minhas interrogações giram em torno de dois grandes mitos da modernidade e de sua possível permanência, que pode estar sutilmente encoberta pela sedução das novas tecnologias nas propostas da EaD on-line: os mitos da razão controladora e da educação como panaceia.
Fundamento do processo de produção do conhecimento e da educação, a imaginação é reafirmada na parte conclusiva do livro. Convocando, novamente, os referenciais teóricos que sustentaram as minhas análises, finalizo o trabalho com a convicção de que as novas tecnologias podem desempenhar um papel importante na atividade educativa, principalmente se a ideia de distância não for tomada apenas em sua acepção física, de contiguidade, mas na sua dimensão humanizada, de espaço de criação entre eu e o outro.
A intenção aqui perseguida foi a de, tanto quanto possível, contribuir para a construção de bases reflexivas para uma educação democrática e autônoma, para a qual as novas tecnologias têm, inegavelmente, muito a oferecer, desde que submetidas a um exame lúcido e comprometido sobre as condições e vias de realização de suas potencialidades, tanto quanto sobre seus limites e sobre as implicações de sua implantação na sociedade.
1
AUTONOMIA E EDUCAÇÃO
Um sujeito autônomo é aquele que sabe ter boas razões para concluir: isso é bem verdadeiro, e: isso é bem meu desejo.
Cornelius Castoriadis.
Tratarei, neste capítulo, das referências teóricas que serão usadas para a análise do tema proposto. Tenho como objetivo central defender a ideia de que existe uma forte ligação entre a democracia e a educação para a instituição de uma sociedade autônoma. Portanto, a autonomia, individual e social, será entendida, aqui, como um processo político-educativo. A intenção é reafirmar que a autonomia e a educação são criações que dependem de instituições democráticas tanto quanto da instituição do tipo antropológico do democrata, processo que só é possível em um mundo que permita a participação, no qual o sujeito, sem abrir mão dos seus desejos, possa ser responsável pela sua ação.
Inicialmente, partirei das postulações de Cornelius Castoriadis sobre o conceito de autonomia; em seguida, introduzirei o sentido da crise da educação elaborado por Hannah Arendt e, finalmente, apresentarei a reflexão de D. W. Winnicott sobre o processo de construção da singularidade do sujeito. Defendo que as contribuições dos três autores citados ajudem a aprofundar as interrogações necessárias para uma melhor elucidação do sentido de autonomia em uma sociedade democrática.
1.1 Autonomia, educação e a crise de autorrepresentação da sociedade
No pensamento de Castoriadis, a autonomia é entendida como criação e caracterizada como um movimento de interrogação individual e coletiva sobre o instituído, permitindo que o sujeito tenha o poder de deliberação sobre sua própria vida, com liberdade e responsabilidade ao mesmo tempo. A autonomia é um tipo de criação particular, inseparável da democracia e da filosofia; o que nos permite afirmar que os três conceitos são complementares, ou, nas palavras do autor, eles cossignificam
o sentido de criação nas sociedades autônomas¹. A filosofia e a democracia são práticas de interrogação e deliberação que constituem o que o filósofo grego põe no cerne do conceito de autonomia, isto é, a autocriação do sujeito e a autoinstituição da sociedade como um movimento político educativo².
A autonomia exige a educação, pois ela não é uma construção natural de um sujeito isolado em sua introspecção, mas, como autocriação, sua finalidade, é o próprio exercício da lucidez e da deliberação. Na educação, portanto, o fim corresponde à própria atividade que o produz: a auto-criação
³. Em uma sociedade autônoma, a educação é um permanente trabalho de questionamento, de reflexão aberta⁴, de autocriação humana; em uma sociedade heterônoma, porém, a educação está presa à aplicação de teorias e reduzida a procedimentos e técnicas, cujo objetivo é ocultar o poder criador inerente ao humano.
A autonomia não é a liberdade cartesiana, menos ainda a sartriana, a fulguração sem engajamento. A autonomia no plano individual significa o estabelecimento de uma nova relação entre o eu e seu inconsciente, não para eliminar este último, mas para conseguir filtrar a parte dos desejos que passa nos atos e palavras. Esta autonomia individual tem pesadas condições instituídas. Precisamos, pois, de instituições da autonomia, de instituições que dêem a cada um uma autonomia efetiva enquanto membro da coletividade, e que lhe permita desenvolver sua autonomia individual. Isto só é possível pela instauração de um regime verdadeiramente – e não apenas em palavras – democrático.⁵
O problema da autonomia em sociedades heterônomas como a nossa é, pois, um problema político educativo que envolve, de um lado, a redução das origens das instituições imaginárias da sociedade às leis suprassociais e, de outro, a perda de sentido na formação comum. Esse fenômeno caracteriza, segundo Castoriadis, a crise de autorrepresentação da sociedade.
1.1.1 Conceito de significações imaginárias da sociedade: o imaginário radical
O conceito de imaginário radical, de Cornelius Castoriadis, é central para o entendimento do caráter arbitrário e artificial da construção das necessidades sociais e para a caracterização do sujeito humano e sua imaginação.
Repetindo a tempo e a contratempo que [...] não podemos compreender as instituições e menos ainda o conjunto da vida social como simplesmente funcionais
⁶, o filósofo grego pretendia afirmar o poder instituinte humano, em uma profunda crítica à redução empreendida pela modernidade do conceito de instituição social. Essa redução apresenta várias implicações, entre elas, a explicação do campo social-histórico a partir de leis suprassociais, encobrindo a criação em favor do que Castoriadis denominou a hipercategoria da determinidade⁷.
Ao contrário do que defende a tradição do pensamento herdado, o campo social-histórico não é construído por determinações naturais e históricas, longe disso, é o campo da indeterminação (apeíron), "pela sua privação de determinidade – peras para os gregos, Bestimmtheit em Hegel [...]"⁸; ou seja, Castoriadis enfatizava o fato de que a sociedade é um espaço aberto para a criação de novas determinações, para os artificialismos característicos da criação humana. O espaço social-histórico suporta, portanto, a criação efetiva, possibilitando as instituições e os simbolismos de cada cultura, e não o contrário. Ele não é inteiramente redutível à lógica conjuntista-identitária, ao domínio da determinação; longe disso, a supremacia de que exigências da lógica gozaram na história das teorias sobre o humano e a sociedade são produtos desse poder de criação, ou parte do que Castoriadis chamou de imaginário efetivo.
Uma das principais críticas de Castoriadis à tradição filosófica é, pois, a da redução da sociedade e do indivíduo a um conjunto inteira e previamente definido de determinações, o que implica o encobrimento da criação humana e na designação de um papel marginal para a invenção – para o imaginário social, no que tange à instituição das sociedades e para a imaginação individual, no que respeita à constituição das subjetividades. O autor da Instituição imaginária da sociedade argumenta que as respostas tradicionais à questão da identidade e unidade do sujeito e da sociedade ajudaram no encobrimento da criação, pelas elaborações fisicalistas e logicistas⁹.
Tendo no funcionalismo o representante mais característico desse tipo de resposta, o fisicalismo – do grego phýsis, natureza – sustenta que a sociedade é inteiramente determinada pelas leis naturais, o que implica avaliar que a organização social e os valores, comportamentos, hábitos e crenças que a compõem podem ser inteiramente explicados, se consideradas as funções que desempenham para a conservação e a reprodução da sociedade. Limitando a criação às necessidades (biológicas) e ao seu suprimento, as respostas do fisicalismo implicariam, no campo da constituição subjetiva, na integral assimilação das ações humanas às pulsões e da singularidade às condutas autocentradas, como se a dimensão individual fosse a única constante válida para o comportamento dos indivíduos.
Ao contrário do que defende o fisicalismo, as necessidades inerentes ao humano são instituídas em cada cultura e variam segundo o modo de ser das sociedades. Embora, a necessidade de nutrição não seja opcional, o apetite, o prazer do paladar, a escolha, a quantidade, a variedade e a rejeição dos alimentos dependem da cultura instituída. O que cria os diferentes significados para a nutrição? Apenas a justificativa funcional de comer esse