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A literatura e o mal
A literatura e o mal
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E-book278 páginas6 horas

A literatura e o mal

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Sobre este e-book

Ainda que a literatura, como questão e prática, atravesse toda sua obra, é em A literatura e o mal que Georges Bataille se empenha de maneira mais explícita na busca de seu sentido – ou de seu não-sentido –, afirmando desde o princípio que ela "é o essencial ou não é nada". E se essa essencialidade se acha vinculada ao mal é porque, sem atormentar o bem e a virtude (como acontece em Sade), ou santificar o mal por desejá-lo como bem (como se dá em Genet), a literatura se torna insípida, destituída de interesse. Para Bataille isso já está dado na infância, quando as disposições do indivíduo se mostram soberanas, na recusa de tudo aquilo que, por meio do cálculo e da razão normativa, pretende regular o desejo e o dispêndio. Assim, a literatura deve confessar sua culpa, já que é "a infância reencontrada". Há dois fins primordiais que a humanidade persegue, a rigor inconciliáveis: o primeiro, ligado à ideia do bem e da moral, é a conservação da vida a todo custo; o segundo, que Bataille associa ao mal e a uma hipermoral, é o aumento de sua intensidade: "a aprovação da vida até na morte". Perseverando em favor do segundo, a literatura se realiza como atividade inoperante no extremo do possível e do perigo, levando, não raras vezes, personagens e escritores à ruína. Neste livro magistral, Bataille analisa, ou, antes, potencializa as obras de oito autores que de um modo ou de outro são atravessadas pelo mal, para dar a ver em cores vivas a radicalidade de seu próprio pensamento.

Contador Borges
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de mai. de 2017
ISBN9788582177945
A literatura e o mal

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    A literatura e o mal - Georges Bataille

    Outros livros da filo

    Copyright © Éditions Gallimard, 1957

    Copyright © 2015 Autêntica Editora

    Título original: La littérature et le mal

    Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

    coordenador da coleção filô

    Gilson Iannini

    conselho editorial

    Gilson Iannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Carla Rodrigues (UFRJ); Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-Rio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique David-Ménard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Žižek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP)

    editora responsável

    Rejane Dias

    editora assistente

    Cecília Martins

    projeto gráfico

    Diogo Droschi

    revisão

    Aline Sobreira, Lívia Martins

    diagramação

    Christiane Morais de Oliveira

    capa

    Alberto Bittencourt

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Bataille, Georges, 1897-1962.

    A literatura e o mal / Georges Bataille ; tradução Fernando Scheibe. 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015.

    Título original: La littérature et le mal.

    ISBN 978-85-8217-794-5

    1. Literatura moderna - História e crítica 2. Mal na literatura I. Título.

    15-09262 CDD-809

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Literatura moderna : História e crítica 809

    Belo Horizonte

    Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG

    Tel.: (55 31) 3465-4500

    Televendas: 0800 283 13 22

    www.grupoautentica.com.br

    Rio de Janeiro

    Rua Debret, 23, sala 401

    Centro . 20030-080

    Rio de Janeiro . RJ Tel.: (55 21) 3179 1975

    São Paulo

    Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2301 . Cerqueira César . 01311-940 São Paulo . SP

    Tel.: (55 11) 3034 4468

    Nota do tradutor

    Os textos que compõem A literatura e o mal foram escritos por Bataille ao longo de uma década: de 1946, ano de fundação da revista Critique, a 1957, ano de publicação do livro. À exceção do ensaio sobre Michelet, prefácio a uma reedição de La Sorcière (A bruxa), de 1946, todos tiveram uma primeira versão publicada na revista.

    Nem por isso o livro deixa de ter sua arquitetura. É interessante notar, por exemplo, a relação simetricamente inversa entre a figura de Emily Brontë, a mocinha vitoriana que nunca saiu da redoma de um presbitério, mas que soube, como ninguém, comunicar o mal (figura que abre o livro), e a de Jean Genet, que o fecha, escritor que, segundo Bataille, por mais que tenha se entregado de corpo e alma ao mal, jamais foi capaz de comunicá-lo. Tampouco parece fruto do acaso a posição central que ocupam no livro William Blake e Sade – e, com eles, a Revolução Francesa.

    A edição francesa¹ utilizada como base para esta tradução traz uma grande quantidade de notas de fim de livro que apontam as pequenas e grandes variações existentes entre as versões publicadas em Critique ou presentes nos manuscritos de Bataille e as versões finais de cada texto. No intuito de valorizar esse material, editei, por assim dizer, essas notas, ora incorporando-as como notas de rodapé (as mais curtas), ora transformando-as (as mais longas) em apêndices aos capítulos a que se referem.

    1 BATAILLE, Georges. La Littérature et le mal. Paris: Gallimard, 2010. Edição que reproduz as notas estabelecidas por Denis Hollier e Dominique Lemann na edição das Œuvres complètes de Georges Bataille, tomo IX.

    Preâmbulo

    A geração a que pertenço é tumultuosa.

    Ela nasceu para a vida literária nos tumultos do surrealismo. Houve, nos anos que se seguiram à primeira guerra, um sentimento que transbordava. A literatura sufocava em seus limites. Parecia carregar em si uma revolução.

    Estes estudos, cuja coerência se impõe a mim, foi um homem de idade madura que os compôs.

    Mas seu sentido profundo está relacionado ao tumulto de sua juventude, de que são o eco abafado.

    É significativo, a meus olhos, que tenham (ao menos suas primeiras versões) sido em parte publicados na revista Critique, revista cuja fortuna se deve a seu caráter sério.

    Devo apontar, no entanto, que, se, às vezes, tive de reescrevê-los, foi porque, nos tumultos persistentes de meu espírito, não pude dar inicialmente a minhas ideias mais que uma expressão obscura. O tumulto é fundamental, é o sentido deste livro. Mas é tempo de chegar à clareza da consciência.

    É tempo... Às vezes parece mesmo que o tempo falta. Ao menos o tempo urge.

    Estes estudos correspondem a meu esforço para desentranhar o sentido da literatura... A literatura é o essencial, ou não é nada. O Mal – uma forma aguda do Mal – de que ela é a expressão tem para nós, acredito, o valor soberano. Mas essa concepção não prescreve a ausência de moral, ela exige uma hipermoral.

    A literatura é comunicação. A comunicação requer a lealdade: a moral rigorosa é dada nessa perspectiva a partir de cumplicidades no conhecimento do Mal, que fundam a comunicação intensa.

    A literatura não é inocente e, culpada, devia, no fim, confessar-se tal. Só a ação tem direitos. A literatura, eu o quis, lentamente, demonstrar, é a infância enfim reencontrada. Mas a infância que governasse teria uma verdade? Diante da necessidade da ação, impõe-se a honestidade de Kafka, que não se atribuía nenhum direito. Seja qual for o ensinamento que se depreende dos livros de Genet, a defesa que Sartre faz dele não é aceitável. No fim, a literatura tinha de se declarar culpada.¹

    1 Falta a esse conjunto um estudo sobre Os cantos de Maldoror. Mas ele era tão óbvio que, a rigor, seria supérfluo. Talvez seja útil, mesmo assim, dizer das Poesias que elas correspondem à minha posição. As Poesias de Lautréamont não são justamente a literatura se declarando culpada? Elas surpreendem, mas, se são inteligíveis, não seria do meu ponto de vista? [No manuscrito do livro há mais uma frase no preâmbulo: "Uma convicção nascerá, espero, de estudos sobre os quais direi pessoalmente que me deixam no cúmulo do despertar, e esta nota: Em dois destes estudos – sobre Baudelaire e sobre Genet – parti de livros de Sartre, de cujo pensamento tive de tomar o contrapé. Aquilo que vi foi o que Sartre não quis ver, em seu afastamento da poesia e de uma verdade fundamental dada na comunicação dos espíritos". (N.E.)]

    Emily Brontë

    ¹

    1 A primeira versão deste texto foi publicada na revista Critique (n. 117, fev. 1957) sob o título Emily Brontë et le mal [Emily Brontë e o mal], como resenha do livro de Jacques Blondel, Emily Brontë: expérience spirituelle et création poétique [Emily Brontë: experiência espiritual e criação poética]. Paris: P.U.F., 1955. (N.E.)

    Entre todas as mulheres, Emily Brontë parece ter sido objeto de uma maldição privilegiada. Sua curta vida só foi infeliz moderadamente. Mas, mesmo com sua pureza moral intacta, ela teve do abismo do Mal uma experiência profunda. Ainda que poucos seres tenham sido mais rigorosos, mais corajosos, mais corretos, ela foi até o fundo do conhecimento do Mal.

    Foi a tarefa da literatura, da imaginação, do sonho. Sua vida, terminada aos 30 anos, manteve-a afastada de todo o possível. Ela nasceu em 1818 e quase não saiu do presbitério de Yorkshire, no campo, em meio às charnecas, onde a rudeza da paisagem combinava com a do pastor irlandês que não soube lhe dar mais que uma educação austera, a que faltava a doçura materna. Sua mãe morreu muito cedo, e suas duas irmãs também eram rigorosas. Só um irmão extraviado mergulhou no romantismo do infortúnio. Sabe-se que as três irmãs Brontë viveram, ao mesmo tempo, na austeridade de um presbitério e no tumulto fervente da criação literária. Uma intimidade cotidiana as unia, sem, contudo, que Emily deixasse de preservar a solidão moral em que se desenvolviam os fantasmas de sua imaginação. Fechada, ela parece ter sido por fora a doçura em pessoa, boa, ativa, devotada. Viveu numa espécie de silêncio que só a literatura, exteriormente, rompeu. Na manhã de sua morte, em seguimento a uma breve doença pulmonar, levantou-se como de costume, desceu para o meio dos seus familiares, nada disse e, sem ter voltado para a cama, soltou seu último suspiro antes do meio-dia. Durante a doença, não quis ver nenhum médico.

    Deixava um pequeno número de poemas e um dos mais belos livros da literatura de todos os tempos, Wuthering Heights.²

    Talvez a mais bela, a mais profundamente violenta das histórias de amor...

    Pois o destino, que, ao que tudo indica, quis que Emily Brontë, embora fosse bela, ignorasse o amor absolutamente, quis também que ela tivesse da paixão um conhecimento angustiado: esse conhecimento que não liga o amor apenas à clareza, mas à violência e à morte – porque a morte é aparentemente a verdade do amor. Assim como o amor é a verdade da morte.

    O erotismo é a aprovação da vida até na morte

    Devo, ao falar de Emily Brontë, ir até o fundo de uma afirmação primordial.

    O erotismo é, acredito, a aprovação da vida até na morte. A sexualidade implica a morte, não apenas no sentido de que os recém-nascidos prolongam e sucedem aos mortos, mas também porque coloca em jogo a vida do ser que se reproduz. Reproduzir-se é desaparecer, e os seres assexuados mais simples se sutilizam ao se reproduzirem. Eles não morrem, se por morte entende-se a passagem da vida à decomposição, mas aquele que era, ao se reproduzir, deixa de ser aquele que ele era (já que se torna duplo). A morte individual não é mais que um aspecto do excesso proliferador do ser. A própria reprodução sexuada é apenas um aspecto, o mais complicado, da imortalidade da vida garantida na reprodução assexuada. Da imortalidade, mas ao mesmo tempo da morte individual. Nenhum animal pode atingir a reprodução sexuada sem se abandonar ao movimento cuja forma consumada é a morte. De todo modo, o fundamento da efusão sexual é a negação do isolamento do eu, que só chega ao desfalecimento ao se exceder, ao se ultrapassar no enlace em que a solidão do ser se perde. Quer se trate de erotismo puro (de amor-paixão), quer de sensualidade dos corpos, a intensidade é maior na medida em que a destruição, a morte do ser transparecem. Aquilo a que chamam vício decorre dessa profunda implicação da morte. E o tormento do amor desencarnado é tanto mais simbólico da verdade última do amor já que é a morte daqueles que ele une que os aproxima e atinge.

    De nenhum amor entre seres mortais isso pode ser dito mais apropriadamente do que da união dos heróis de Wuthering Heights, Catherine Earnshaw e Heathcliff. Ninguém expôs essa verdade com mais força que Emily Brontë. Não que ela a tenha pensado sob a forma explícita que, do meu jeito pesadão, lhe atribuo. Mas porque ela sentiu e exprimiu isso mortalmente, de certa forma divinamente.

    A infância, a razão e o Mal

    O arrebatamento mortal de Wuthering Heights é tão forte que seria vão, a meu ver, falar dele sem esgotar, se for possível, a questão que esse livro colocou.

    Aproximei o vício (que foi – que inclusive permanece –, numa maneira de ver difundida, a forma significativa do Mal) dos tormentos do amor mais puro.

    Essa aproximação paradoxal dá ensejo a lamentáveis confusões; vou me esforçar para justificá-la.

    De fato, Wuthering Heights, embora os amores de Catherine e Heathcliff deixem a sensualidade em suspenso, coloca, a respeito da paixão, a questão do Mal. Como se o Mal fosse o meio mais forte de expor a paixão.

    Se excetuamos as formas sádicas do vício, o Mal, encarnado no livro de Emily Brontë, aparece talvez sob sua forma mais perfeita.

    Não podemos tomar por expressivas do Mal aquelas ações cujo fim é um benefício, uma vantagem material. Esse benefício, decerto, é egoísta, mas isso importa pouco se esperamos dele outra coisa que não o próprio Mal: uma vantagem. Ao passo que, no sadismo, trata-se de gozar com a destruição contemplada, a destruição mais amarga sendo a morte do ser humano. É o sadismo que é o Mal: se matamos por uma vantagem material, não é o verdadeiro Mal, o mal puro, a menos que o assassino, para além da vantagem com que conta, goze simplesmente por golpear.

    Para melhor representar o quadro do Bem e do Mal, remontarei à situação fundamental de Wuthering Heights, à infância, de que data, em sua integridade, o amor de Catherine e Heathcliff. É a vida passada em corridas selvagens pela charneca, no abandono das duas crianças, que então não era refreado por nenhuma restrição, nenhuma convenção (senão aquela que se opõe aos jogos da sensualidade; mas, em sua inocência, o amor indestrutível das duas crianças se situava num outro plano). Talvez mesmo, esse amor seja redutível à recusa de renunciar à liberdade de uma infância selvagem, que as leis da sociabilidade e da polidez convencional não tinham corrigido. As condições dessa vida selvagem (exterior ao mundo) são elementares. Emily Brontë as torna sensíveis – são as próprias condições da poesia, de uma poesia sem premeditação, a que ambas as crianças se recusaram a se fechar. Aquilo que a sociedade opõe ao livre jogo da ingenuidade é a razão fundada no cálculo do interesse. A sociedade se organiza de maneira a tornar possível sua própria duração. A sociedade não poderia viver caso se impusesse a ela a soberania desses movimentos impulsivos da infância, que tinham unido as crianças num sentimento de cumplicidade. A coação social teria exigido dos jovens selvagens que abandonassem sua soberania ingênua, que se dobrassem às razoáveis convenções dos adultos: razoáveis, calculadas de tal maneira que a vantagem da coletividade resulte delas.

    A oposição é fortemente marcada no livro de Emily Brontë. Como diz Jacques Blondel,³ devemos notar que, na narrativa, os sentimentos se fixam durante a infância na vida de Catherine e Heathcliff. Mas se, por sorte, as crianças têm o poder de esquecer por um tempo o mundo dos adultos, a esse mundo, entretanto, estão prometidas. A catástrofe sobrevém. Heathcliff, o menino encontrado, é forçado a fugir do reino maravilhoso das corridas com Catherine na charneca. E apesar de sua duradoura rudeza, esta renega a selvageria de sua infância: deixa-se atrair por uma vida abastada, a cuja sedução cede, na pessoa de um jovem, rico e sensível cavalheiro. Para dizer a verdade, o casamento de Catherine com Edgar Linton tem um valor ambíguo. Não é uma autêntica degradação. O mundo de Thrushcross Grange, onde, perto de Wuthering Heights, vivem Linton e Catherine, não é no espírito de Emily Brontë um mundo solidificado. Linton é generoso, não renunciou à altivez natural da infância, mas faz concessões. Sua soberania se eleva acima das condições materiais de que dispõe, mas se não fosse seu acordo profundo com o mundo solidificado da razão, não poderia dispor delas. Heathcliff tem, portanto, razões, ao voltar rico de uma longa viagem, para pensar que Catherine traiu o reino absolutamente soberano da infância, ao qual, de corpo e alma, ela pertencia com ele.

    Acompanhei, desajeitadamente, um relato em que a violência desenfreada de Heathcliff se exprime na calma e na simplicidade da narradora...

    O tema do livro é a revolta do maldito expulso de seu reino pelo destino e que nada refreia em seu desejo ardente de reencontrar o reino perdido.

    Não darei em detalhe uma sequência de episódios, cuja intensidade fascina. Limito-me a recordar que não há lei nem força, convenção nem piedade que detenha por um instante o furor de Heathcliff: nem a própria morte, já que ele é, sem remorsos e apaixonadamente, a causa da doença e da morte de Catherine, que, no entanto, considera sua.

    Vou me deter no sentido moral da revolta nascida da imaginação e do sonho de Emily Brontë.

    Essa revolta é a revolta do Mal contra o Bem.

    Ela é terminantemente insensata.

    O que quer dizer esse reino da infância a que a vontade demoníaca de Heathcliff se recusa a renunciar senão o impossível e a morte? Contra esse mundo real, que a razão domina, que a vontade de subsistir funda, há duas possibilidades de revolta. A mais comum, a atual, traduz-se na contestação de seu caráter racional. É fácil ver que o princípio desse mundo real não é verdadeiramente a razão, mas a razão aliada ao arbitrário, resultante das violências ou dos movimentos pueris do passado. Semelhante revolta expõe a luta do Bem contra o Mal, representado por essas violências ou esses movimentos vãos. Heathcliff julga o mundo a que se opõe: por certo, não pode identificá-lo ao Bem, já que o combate. Mas se o combate com raiva, é, ainda assim, lucidamente: sabe que esse mundo representa o Bem e a razão. Odeia a humanidade e a bondade, que provocam sarcasmos nele. Considerado fora da narrativa – e do encanto da narrativa –, seu caráter parece até artificial, fabricado. Mas ele procede do sonho, não da lógica do autor. Não há na literatura romanesca personagem que se imponha mais realmente, e mais simplesmente, que Heathcliff; embora encarne uma verdade primordial, a verdade da criança revoltada contra o mundo do Bem, contra o mundo dos adultos, e, através de sua revolta irrestrita, votada ao partido do Mal.

    Não há, nessa revolta, lei que Heathcliff não se compraza em transgredir. Quando percebe que a cunhada de Catherine está apaixonada por ele, imediatamente esposa-a, a fim de fazer ao marido de Catherine o máximo de mal possível. Rapta-a e, assim que se casa com ela, ultraja-a; então,

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