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O Limiar: Eles não querem que você saiba a verdade
O Limiar: Eles não querem que você saiba a verdade
O Limiar: Eles não querem que você saiba a verdade
E-book534 páginas7 horas

O Limiar: Eles não querem que você saiba a verdade

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Sobre este e-book

Vega Jane nunca saiu do vilarejo de Artemísia. Nem ela e nem ninguém. Isso jamais aconteceu porque ir além dos limites daquele lugar não é algo permitido. Até que um dia Quentin Herms, seu mestre e amigo, ultrapassa o limiar da cidade e desaparece rumo ao desconhecido e escuro Pântano, onde, segundo dizem, só há perigos, abismos e criaturas assustadoras com sede de sangue.

A fuga não é simples. Ele é violentamente caçado, mas deixa para trás uma trilha de pistas para a jovem: um mapa e um anel, que podem levá-la a descobrir o que há além do limiar de Artemísia, mas que ela deverá ocultar, sob pena de ser acusada de cumplicidade. Cada passo seu torna-se arriscado, e aos poucos ela percebe que aquele lugar e a vida que ela conheceu até então foram construídos sobre mentiras, capazes de fazer poderosos matarem para manter seus segredos. Mas Vega Jane se vê disposta a lutar pela liberdade, mesmo que a descoberta da verdade custe sua própria vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de fev. de 2015
ISBN9788582352359
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    Pré-visualização do livro

    O Limiar - David Baldacci

    Para Rachel Griffiths,

    obrigado por apostar em um escritor

    chamado Janus Pope.

    Só se pode chegar ao dia através das sombras.

    — J. R. R. Tolkien

    "Algumas vezes chego a acreditar em seis

    coisas impossíveis antes do café da manhã."

    — Lewis Carroll

    "As pessoas interessadas em buscar

    erudição nestas páginas serão processadas;

    as motivadas a encontrar um sentido serão exiladas;

    as que esperam desvendar uma alegoria

    serão tomadas por uma inspiração imediata."

    — O autor

    GLOSSÁRIO

    O mundo de Artemísia, os wugmorts e além

    A Lesma Faminta

    Estabelecimento na Rua Principal que serve refeições para os clientes.

    Adar

    Animal de Artemísia geralmente usado como mensageiro e treinado para realizar tarefas aéreas. Embora pereça desengonçado no chão, os adares são criaturas graciosas e belas no céu, principalmente por causa de sua extraordinária altura e envergadura de asas. O mais notável é que os adares entendem os wugmorts e conseguem aprender a falar.

    Amarok

    Animal feroz e horripilante que vive no Pântano, conhecido pela capacidade de matar de diversas maneiras. Os amaroks têm presas superiores compridas como braços de um wug e supostamente esguicham veneno pelos olhos. Quando capturados, sua pele é usada para confecção de roupas e botas em Artemísia.

    Átimo

    Pequena unidade ou intervalo de tempo.

    Bar Feitiço dos Pombos

    O único bar em Artemísia.

    Campanário

    Lugar onde a maioria dos wugmorts vai a cada sete dias para ouvir um sermão.

    Carabineiro

    Membro da Polícia de Artemísia. Sua principal função é proteger os wugmorts da ameaça dos forasteiros que vivem no Pântano.

    Centro de Cuidados

    Lugar para onde vão os wugs adoentados e pelos quais os medicadores não podem fazer mais nada nos hospitais.

    Chacal

    Feroz cão de caça de Artemísia.

    Chaminés

    Construção ampla de tijolos em Artemísia onde se fabricam produtos para troca e consumo.

    Ciclo

    Unidade de tempo equivalente a 365 dias.

    Cobol

    Criatura tenebrosa do Pântano, formada por três corpos ligados pelos ombros e feitos do que parece ser pedra. O cobol tem três cabeças, três pares de miniasas nas costas musculosas e seis braços para atacar suas vítimas.

    Colossais

    Antiga raça de guerreiros formidáveis, cuja origem é amplamente desconhecida pelos wugmorts comuns. Os colossais têm mais de vinte metros de altura e pesam cerca de três toneladas.

    Conselho

    Corpo governante de Artemísia. O Conselho aprova leis, regras e decretos aos quais todos os wugmorts devem obedecer.

    Creta

    Criatura de proporções excepcionais usada em Artemísia para puxar o arado dos lavradores e transportar sacos de farinha no Moinho. Os cretas pesam quase quinhentos quilos, possuem chifres que se cruzam na frente do rosto, e patas do tamanho de um prato.

    Dáctilo

    Trabalhador das Chaminés cuja função é forjar metais com marretas e pinças.

    Duelo

    Competição que ocorre fora do centro de Artemísia, duas vezes a cada ciclo. Consiste na luta entre dois wugs do sexo masculino com idade entre 15 e 24 ciclos. Vistos por muitos wugs como um rito de passagem, os Duelos muitas vezes podem ser brutais.

    Empório Noc

    Loja na Rua Principal que vende objetos relacionados à observação da Noc e a previsões do futuro.

    Estrada Baixa

    Estrada antiga e deteriorada em Artemísia, com poucas lojas e menos frequentada que a Rua Principal.

    Evento

    Acontecimento misterioso em Artemísia, sem testemunhas. O corpo e a roupa de wugmorts que supostamente sofrem um Evento desaparecem totalmente do vilarejo.

    Finalizador

    Trabalhador cuja função é finalizar todos os objetos fabricados nas Chaminés. Os finalizadores precisam demonstrar habilidades criativas no Preparatório, pois os requisitos para o trabalho variam de pintar a queimar nos fornos objetos que serão usados pelos wugs mais ricos de Artemísia.

    Forasteiros

    Criatura bípede ameaçadora que vive no Pântano e pode se passar por wug. Acredita-se que os forasteiros controlam a mente dos wugs, fazendo-os obedecer a seus comandos.

    Frek

    Animal enorme e feroz do Pântano, caracterizado por um focinho comprido e presas maiores que o dedo de um wug. Sabe-se que a mordida de um frek enlouquece a vítima.

    Garme

    Animal enorme do Pântano, com quatro metros de comprimento e quase quinhentos quilos. O garme é uma criatura horrenda: seu peito sangra o tempo todo, seu cheiro é detestável, e sua barriga tem uma chama capaz de queimar as vítimas a metros de distância. De acordo com a sabedoria popular de Artemísia, o garme caça a alma dos mortos ou guarda os portões do Inferno.

    Jábite

    Serpente gigantesca com duzentas e cinquenta cabeças ao longo de todo o corpo. Embora as jábites raramente saiam do Pântano, poucos são capazes de interromper seu ataque depois que elas sentem cheiro de sangue. As jábites podem capturar wugs com muita facilidade, e o veneno contido em cada cabeça é suficiente para derrubar um creta.

    Lavrador

    Trabalhador responsável por cultivar as terras e plantações de Artemísia.

    Loons

    Hospedaria na Rua Principal.

    Maniak

    Espírito maligno capaz de encarnar no corpo e na mente de um wug, levando-o a uma loucura irreversível e provocando um medo jamais sentido.

    Medicadores

    Médicos que compõem a equipe do hospital.

    Misturador

    Trabalhador das Chaminés encarregado de combinar ingredientes que serão usados em outros produtos criados ali.

    Moinho

    Local de trabalho em Artemísia onde se refina farinha e outros grãos.

    Mortiço

    Arma de cano longo ou curto que dispara projéteis de metal.

    Nanos

    Raça rara de wugmorts conhecida por sua estrutura baixa e compacta e força imensa.

    Noc

    Objeto redondo, grande e leitoso que brilha no céu durante a noite.

    Pântano

    Floresta que circula Artemísia, lar de todos os tipos de criaturas ferozes e de forasteiros. Os wugmorts acreditam que não existe nada além do Pântano.

    Peças Raras

    Loja de roupas femininas na Rua Principal.

    Preceptor

    Wugmort responsável pelo ensino dos jovens no Preparatório.

    Preparatório

    Instituição frequentada pelos jovens até completarem 12 ciclos. É no Preparatório que os jovens adquirem as habilidades necessárias para trabalhar em Artemísia.

    Quadrângulo de Peckwater

    Arena na fronteira do território de Artemísia onde acontecem os Duelos.

    Rua Principal

    Rua de pedras em Artemísia cheia de lojas que vendem produtos básicos para os wugmorts, como alimentos, roupas e ervas medicinais.

    Serrador

    Trabalhador das Chaminés cuja tarefa é serrar madeira e outros materiais.

    Slep

    Criatura magnífica de Artemísia caracterizada por sua cabeça imponente, cauda longa, seis pernas e bela pelagem. Acreditava-se que antigamente os sleps podiam voar e que os pequenos sulcos visíveis no dorso marcavam o lugar onde antes havia asas.

    Solo Sagrado

    Lugar em Artemísia onde os falecidos wugmorts repousam.

    Uíste

    Cão de caça grande e domesticado em Artemísia, conhecido por ser muito veloz.

    Valhala

    Prisão de Artemísia. Ela é aberta para a visão do público e fica bem no centro do vilarejo.

    Wugmort ou wug

    Cidadão de Artemísia.

    ESTAVA COCHILANDO QUANDO escutei o grito. Atravessou meus ouvidos como uma rajada de tiros, deixando minha cabeça terrivelmente tonta. Um som tão alto e pavoroso que parecia estar acontecendo ali mesmo, naquele exato minuto.

    Depois do som, veio a imagem da cor azul. Era uma névoa, como uma nuvem perto do chão, que envolveu minha mente, afastando todos os pensamentos e memórias. Quando finalmente desapareceu, minha tontura também sumiu. Até hoje acho que uma coisa muito importante aconteceu, mas simplesmente não consigo me lembrar.

    Na mesma hora eu me sentei sobre o assoalho no topo da árvore. A imagem e o sono sumiram completamente. Quando nascia o sol, eu quase sempre estava no topo da minha árvore – um álamo maravilhoso, que apontava diretamente para o céu, com uma copa muito, muito alta. Para subir, eu usava vinte pequenas ripas de madeira presas ao tronco. Oito tábuas largas e lascadas serviam de chão quando eu chegava lá em cima. E o telhado era um pedaço de tecido à prova d’água que eu mesma havia impermeabilizado, esticado e amarrado bem firme com uma corda que peguei no lixo. Mas eu não estava pensando nisso. Nos meus ouvidos ecoava um grito que não era da névoa azul, pois aparentemente ela só existia na minha cabeça. Dessa vez, o grito vinha lá de baixo.

    Andei ruidosamente até a beirada do assoalho e olhei para o chão, de onde escutei o grito mais uma vez. Agora eu também ouvia o latido dos caninos. Os ruídos perturbavam o que tinha sido um alvorecer tranquilo.

    Os wugmorts não costumavam gritar quando amanhecia, nem em outra hora do dia ou da noite. Desci apressada da árvore. Bati com as botas no chão e olhei para a direita, depois para a esquerda. Era difícil saber de onde vinham os gritos e os latidos. A confusão dos sons misturados ecoava entre as árvores.

    Quando vi o que se aproximava de mim, virei-me e comecei a correr o mais depressa que podia. Um canino havia se atirado de um arvoredo, estava com as presas para fora e o traseiro coberto de suor, prova do esforço que fazia.

    Meus pés eram ligeiros se comparados aos de outras wugs, mas não havia wug nenhum, fosse homem ou mulher, que conseguisse fugir de um canino de ataque. Enquanto corria, eu me preparava para o impacto de suas presas na minha pele e nos meus ossos. Mas ele passou por mim como um raio e dobrou a velocidade, logo sumindo de vista. A caça daquele dia não era eu.

    Olhei para a esquerda e vi, entre duas árvores, o vulto escuro de uma túnica preta.

    Era alguém do Conselho. Ele deveria ter soltado os caninos.

    Mas por qual motivo? O Conselho, com uma única exceção, era formado por homens mais velhos, wugs discretos que só conversavam entre si. Eles cuidavam das leis, das regras e de outros decretos que todos os wugs deviam obedecer; e, apesar da obediência, nós vivíamos livres e em paz, e até tínhamos certo luxo.

    Agora o Conselho usava os caninos para procurar algo ou alguém na floresta. Será que alguém havia fugido de Valhala, nossa prisão? Mas nunca nenhum wug tinha fugido de lá. E mesmo se tivesse, duvido que os membros do Conselho estivessem por aí, tentando capturá-lo. Eles usavam outros meios para recolher os malvados.

    Continuei correndo, seguindo os latidos e os passos acelerados, e logo percebi que o perigoso caminho me conduzia para perto demais do Pântano. O Pântano era uma barreira impenetrável que circundava Artemísia como uma armadilha. Nada mais existia além disso: Artemísia e o Pântano. Ninguém jamais havia atravessado o Pântano porque os monstros bestiais que o habitavam matariam qualquer wug num átimo. E como não havia nada além do Pântano, Artemísia nunca tinha recebido visitas.

    Cheguei perto do limiar desse lugar terrível, que os wugs aprenderam a evitar desde os tempos mais remotos. Diminuí o passo e parei poucos metros antes do início do Pântano. Meu coração batia forte e meus pulmões queimavam, não só por causa da corrida, mas por estar tão perto de um lugar que tinha a morte reservada para qualquer wug estúpido que ousasse vagar por ali.

    Os latidos pararam, bem como o som das pegadas. Olhei para a esquerda e vi alguns caninos e membros do Conselho entrando nas profundezas do Pântano. Não consegui ver o rosto deles, mas imaginei que estivessem tão apavorados quanto eu. Até os caninos evitavam entrar no Pântano.

    Soltei o ar de mais uma inspiração profunda quando ouvi um barulho à minha direita. Virei a cabeça e percebi, ainda atordoada, um wug passar entre as vinhas e as árvores tortuosas que se erguiam como uma barricada no perímetro do Pântano. E aquele wug eu conhecia muito bem.

    Olhei para a esquerda, para ver se algum membro do Conselho ou os caninos tinham visto o que eu vi, mas parecia que não. Virei de novo a cabeça, mas o vulto havia desaparecido. Será que eu estava imaginando coisas? Nenhum wug se aventuraria a entrar voluntariamente naquele lugar medonho.

    Quando alguma coisa me tocou no braço, quase dei um berro. Antes que eu desmaiasse, senti uma mão me segurando e me mantendo em pé.

    Vega Jane? É você, não é?

    Levantei a cabeça e olhei diretamente para as feições duras do rosto de Jurik Krone. Ele era alto, forte, deveria ter uns 45 ciclos de idade e era um membro em ascensão do Conselho.

    Sim, sou eu, consegui dizer.

    O que você está fazendo aqui?, perguntou. Seu tom de voz era grave e questionador, e ele tinha uma hostilidade reprimida no olhar.

    Eu estava na minha árvore antes de ir para as Chaminés. Ouvi um grito e vi um canino. Depois, alguns wugs de túnica preta passaram correndo... e eu corri também.

    Jurik assentiu.

    Você viu mais alguma coisa?, perguntou. Alguma coisa além de túnicas pretas e caninos?

    Olhei de soslaio para o lugar onde o wug tinha entrado no Pântano.

    Eu vi o Pântano.

    Senti os dedos dele apertando meu ombro com mais força.

    Foi só isso mesmo? Nada mais?

    Tentei manter a calma. O rosto daquele wug entrando no Pântano penetrava minha cabeça como uma espada reluzente.

    Foi só isso.

    Ele soltou meu braço e deu um passo para trás. Olhei para ele de cima a baixo. A túnica preta lhe caía bem sobre os ombros largos e os braços fortes.

    O que vocês estão procurando?

    Isso é assunto do Conselho, Vega, respondeu, ríspido. Por favor, vá embora. Não é seguro ficar tão perto assim do Pântano. Volte para Artemísia agora. Para seu próprio bem.

    Ele se virou e partiu, deixando-me sem fôlego e tremendo. Dei mais uma olhada para o Pântano e voltei correndo para a árvore.

    Escalei as tábuas e me sentei de novo sobre o assoalho, ofegante e com o pensamento cheio de ideias pavorosas.

    E-E-E AÍ, VE-VE-VEGA JANE?

    A voz vinda lá de baixo era do meu amigo. Seu nome era Daniel Delphia, mas para mim era apenas Delph. Ele sempre me chamava de Vega Jane, meu nome completo de nascimento. Os outros me chamavam de Vega, quando se davam ao trabalho de dizer meu nome.

    Delph?, disse eu. Pode subir.

    Escutei-o escalando as ripas estreitas. Eu estava a uns dezoito metros de altura. Também estava cada vez mais velha, tinha 14 ciclos de idade.

    Ser uma garota e ter 14 ciclos não era algo muito bem visto em Artemísia, o vilarejo onde morávamos. Nunca entendi por que, mas eu gostava de ser jovem. E gostava de ser garota.

    Aparentemente, eu fazia parte de uma minoria.

    Artemísia era um vilarejo habitado por wugmorts – ou wugs, para abreviar. A palavra vilarejo sugeria um espírito de comunidade que não existia ali. Eu tentava colaborar com os outros de vez em quando, mas escolhia as ocasiões com cuidado. Alguns wugs não eram dignos de confiança, nem de compaixão. Muitas vezes, era difícil evitá-los, pois costumavam ser mais do que irritantes.

    A cabeça de Delph apareceu na beirada do assoalho. Ele era muito mais alto que eu, e eu já era alta, se comparada às outras garotas: tinha um metro e setenta e cinco. Eu ficava cada vez mais alta, pois todos os wugs da família Jane cresciam até a idade adulta. Diziam que meu avô Virgílio cresceu mais dez centímetros depois dos 20 ciclos. E quarenta ciclos depois, aconteceu o Evento, e sua altura se tornou insignificante, pois não restou nada dele.

    Delph tinha um e noventa e oito e seus ombros eram largos como a copa do álamo. Tinha 16 ciclos de idade e uma longa cabeleira preta que parecia amarelada por causa do pó que ele nunca limpava. Trabalhava no Moinho carregando sacos enormes de farinha, o que só colaborava para o acúmulo de mais pó. Tinha a fronte larga e lisa, lábios grossos e olhos tão escuros quanto os cabelos quando limpos. Pareciam dois buracos iguais no meio do rosto. Seria fascinante ver o que se passava na mente de Delph. E reconheço que seus olhos eram lindos. Às vezes eu, ficava toda acanhada quando ele me olhava.

    Delph não tinha os requisitos básicos para trabalhar nas Chaminés, onde era preciso criatividade. Nunca o vi criando nada além de confusão. Sua mente sofria de lampejos que iam e vinham, como rajadas de chuva, desde os 6 ciclos de idade. Ninguém sabia o que tinha acontecido com ele, ou, se sabia, nunca me dizia. Acho que Delph se lembrava, e o que aconteceu causou alguma coisa na mente dele. Claro que não foi um Evento, pois, quando Eventos aconteciam não sobrava nada de quem o sofria. Mas foi algo bem parecido. Por causa das coisas que Delph me dizia, às vezes eu achava que sua mente era muito mais confusa do que suspeitava a maioria dos wugs.

    Se, por dentro, a mente de Delph tinha algum desajuste, não havia nada de errado do lado de fora. Ele era bonito, na verdade. Já vi muitas moças dando-lhe uma olhada enquanto ele passava, mas ele mesmo não parecia notar. É claro que elas queriam ficar com ele. Mas Delph nunca dava bola. Os ombros largos e os braços e pernas musculosos davam-lhe uma força que praticamente nenhum outro wug tinha.

    Delph se sentou ao meu lado, cruzou as pernas na altura dos tornozelos salientes e começou a balançá-las na beirada das tábuas lascadas. Quase não havia espaço para nós dois. Mas Delph gostava de subir na minha árvore. Ele não tinha tantos lugares assim para ir.

    Tirei os longos cabelos bagunçados e escuros do rosto e fixei o olhar numa manchinha de poeira em meu braço magro. Não a limpei porque havia várias manchas iguais, e assim como a poeira do Moinho, onde Delph trabalhava, não tinha propósito limpá-las. Minha vida era cheia de poeira.

    Delph, você ouviu esse barulho todo?

    Ele olhou para mim.

    Que-que-que ba-barulho?

    Os caninos e os gritos.

    Ele olhou para mim como se eu fosse maluca.

    Vo-você está be-bem, Vega Jane?

    Tentei de novo:

    O Conselho saiu com os caninos, estavam perseguindo alguma coisa. Eu queria dizer alguém, mas preferi ficar calada. Eles estavam lá embaixo, perto do Pântano.

    Ele arrepiou-se ao ouvir a palavra, como imaginei que aconteceria.

    P-P-P... Deu de ombros, respirando fundo, e completou: Ruim.

    Resolvi mudar de assunto.

    Você já comeu?, perguntei. A fome era como uma ferida aberta e dolorida. Quando ela vinha, não se conseguia pensar em mais nada.

    Delph negou com a cabeça.

    Abri uma latinha que equivalia a uma despensa portátil que eu sempre carregava comigo. Dentro, havia uma fatia de queijo de cabra, dois ovos cozidos, um pedaço de bolinho frito e um pouco de sal e pimenta que eu guardava em um dedal de estanho que eu mesma tinha feito. Usávamos muita pimenta em Artemísia, principalmente nas sopas. A pimenta curava vários males, como o gosto de carne estragada e de legumes velhos. Havia também picles, que eu já havia comido.

    Entreguei a lata para ele. Estava guardando para minha primeira refeição, mas eu não era tão grande quanto Delph. Ele precisava de muito mais combustível para queimar, como se dizia por aqui. Eu podia comer depois, pois era boa em guardar energia. Delph não guardava nada. Para mim, essa era uma de suas qualidades mais encantadoras.

    Ele jogou sal e pimenta nos ovos, no queijo e no bolinho e devorou tudo numa única e longa abocanhada. Escutei seu estômago roncar enquanto a comida ia descendo para o que antes era uma caverna vazia.

    Melhor?, perguntei.

    M-melhor, murmurou, satisfeito. O-o-brig-gado, Ve-Vega Jane.

    Esfreguei os olhos para espantar o sono. Diziam que meus olhos eram da cor do céu. Mas quando o céu estava coberto de nuvens, eles ficavam acinzentados, como se absorvessem as cores lá de cima. Era a única mudança que provavelmente me acontecia.

    Vai vi-visitar seus pais a-a-ainda hoje?, perguntou Delph.

    Olhei diretamente para ele.

    Sim.

    P-p-posso ir c-com vo-você?

    É claro, Delph. Podemos nos encontrar quando eu sair das Chaminés.

    Ele assentiu, murmurou a palavra moinho, levantou-se e desceu pelas tábuas estreitas até o chão.

    Desci logo atrás dele e segui para as Chaminés, onde eu trabalhava fazendo várias coisas. Em Artemísia, era bom não ficar parada.

    E eu não ficava.

    Mas naquele dia foi diferente. Não consegui tirar da cabeça a imagem de alguém entrando no Pântano, o que era impossível, por ser sinônimo de morte. Até que me convenci de que não vi o que pensei ter visto.

    Contudo, demorou poucos átimos para eu perceber que minha visão tinha sido perfeita. E minha vida em Artemísia, até onde eu poderia dizer que tinha uma, jamais seria a mesma.

    A FLORESTA AGORA estava mais tranquila. Enquanto caminhava, coisas que me disseram havia muito tempo, passaram pela minha cabeça. Não sabia exatamente por quê; o padrão de tempo era um pouco estranho, mas percebia que esse tipo de pensamento surgia na minha mente nos átimos mais bizarros.

    O primeiro era, para mim, o mais inabalável.

    O lugar mais horrível de todos é aquele que os wugmorts nem sequer sabem ser tão errado quanto o mais errado pode ser.

    Meu avô me disse isso antes de sofrer o Evento e desaparecer para sempre. Acho que disse só para mim, e eu jamais mencionei a frase a ninguém.

    Eu não era, por natureza, uma wugmort muito confiante. Aqui não podíamos confiar demais em nada.

    Eu era muito jovem quando meu avô me disse aquilo, e pouco tempo depois ele sofreu o Evento. Tive de admitir que não entendia muito bem do que ele estava falando, e até hoje não tenho tanta certeza. Eu concordava que um lugar podia ser terrivelmente impressionante, mas que lugar seria tão errado quanto o mais errado pode ser? Nunca consegui decifrar esse enigma, por mais que tenha tentado.

    Meu avô também me falou sobre estrelas cadentes.

    Sempre que você vislumbrar a centelha de uma estrela cadente atravessando a esmo o céu, ocorrerá uma mudança com algum wugmort.

    Uma ideia interessante para um lugar que não mudava nunca: como Artemísia.

    Quando me concentrei de novo no que me esperava adiante – mais um dia de muito trabalho –, aqueles dois pensamentos desapareceram como filetes de fumaça se desfazendo no ar.

    Ao chegar mais perto de meu destino, respirei fundo, e o cheiro me deixou atônita. Aquele odor já estava entranhado em meus poros e não sairia nunca, por mais que eu ficasse debaixo da chuva ou da água das torneiras. Dobrei a curva do caminho e avistei: lá estavam as Chaminés. Era preciso muitas delas para levar embora toda a sujeira e fuligem que passava por tijolo sobre tijolo sobre tijolo até chegar bem alto no céu. Eu não sabia qual havia sido o uso original daquele lugar, ou se já havia servido para outro fim além de fabricar coisas bonitas. Era imensamente vasto e extremamente feio, o que fazia de seu propósito atual algo bem irônico.

    Sempre ficava um wug encarquilhado diante das portas imensas, com um carimbo na mão. O nome dele era Dis Fidus. Eu não sabia sua idade, mas desconfiava que tivesse uns 100 ciclos.

    Aproximei-me dele e estiquei a mão. O dorso estava manchado por causa da tinta acumulada de dois ciclos trabalhando ali. Imaginei como seria dali a dez ou vinte ciclos. Minha pele seria permanentemente azul.

    Fidus segurou minha mão entre os dedos esqueléticos e carimbou a pele. Eu não sabia para que servia aquele carimbo. Não fazia o menor sentido, e coisas que não faziam sentido me deixavam infinitamente intrigada. Minha suspeita mais forte, porém, era que devia fazer sentido para alguém.

    Olhei para Dis Fidus, tentando encontrar em suas feições algum sinal de que ele tinha ouvido a perseguição. Mas sua aparência de nervosismo era tão natural que seria impossível perceber. Entrei nas Chaminés.

    Gosto que minhas encarregadas cheguem mais de três átimos adiantadas, Vega, disse uma voz.

    Julius Domitar era grande e gordo como um sapo rechonchudo. Sua pele também tinha um curioso tom esverdeado. Ele era o wug mais prepotente que eu conhecia em Artemísia, e a disputa pelo cargo que ocupava era acirrada. Quando dizia que suas encarregadas deveriam chegar mais de três átimos adiantadas, ele se referia a mim. Eu era a única moça das Chaminés.

    Virei-me na direção dele e olhei para dentro do escritório. Estava sentado atrás da mesa de tampo reclinável, sobre a qual havia vidros de tinta da Quick & Stevenson, a única fornecedora de tintas de Artemísia. Segurava uma longa caneta, e sobre a mesa havia diversos pergaminhos. Ele adorava pergaminhos. Na verdade, adorava o que havia nos pergaminhos: registros. Pequenas anotações do nosso trabalho diário.

    Três átimos adiantada ainda é adiantada, disse eu, e continuei andando.

    Há muitos cuja sorte é pior do que a sua, Vega. Jamais se esqueça disso. Você está indo bem, mas isso pode mudar. Ah, se pode!

    Corri para o piso principal das Chaminés. As estufas já estavam acesas havia bastante tempo. As fornalhas gigantescas que ficavam em um dos cantos jamais eram desligadas. Elas mantinham o ambiente aquecido e úmido mesmo nos dias mais frios. Os dáctilos musculosos esmurravam o metal com marretas e pinças, provocando um ruído igual ao dos sinos do Campanário. O suor gotejava de suas testas e costas esculpidas, respingando no chão junto a seus pés. Eles nunca desviavam o olhar do trabalho. Os serradores cortavam madeira e metais maleáveis. Os misturadores cuidavam de tinas enormes e mexiam dentro delas vários ingredientes.

    Os wugs eram como eu, comuns em todos os aspectos, e trabalhadores esforçados, que faziam o suficiente para sobreviver. E faríamos esse mesmo trabalho pelo resto de nossos ciclos.

    Fui até meu escaninho de madeira, que ficava numa sala no piso principal. Vesti calças compridas, um avental pesado de couro, luvas e óculos de proteção. Depois, segui até minha mesa de trabalho, que ficava perto dos fundos daquele mesmo piso. Era uma mesa enorme de madeira, cheia de manchas. Junto dela havia um carrinho todo elaborado, com rodas de metal, um conjunto de ferramentas grandes e pequenas que cabiam direitinho nas mãos, alguns instrumentos de teste para controle de qualidade e garrafas de tinta, corante, ácidos e outros materiais que eu usava de vez em quando.

    Meu trabalho às vezes era perigoso, por isso eu usava o máximo de proteção possível. Muitos que trabalhavam ali, faziam o mesmo com dedos, olhos, dentes e até braços ou pernas faltantes. Melhor não me juntar ao grupo por perder alguma parte. Eu gostava do meu corpo do jeito que era: completo e adequado para a maioria das funções.

    Passei pela escadaria larga de pedra, com balaústres de mármore, que levava ao piso superior das Chaminés. Era uma escada elegante demais para um lugar como aquele, o que me fazia pensar, não pela primeira vez, que ali nem sempre tinha sido uma fábrica. Sorri para o guarda parado junto ao primeiro degrau.

    Seu nome era Ladon-Tosh, e nunca o ouvi dizer nada. Carregava sobre o ombro uma arma de cano longo chamada mortiço. Também tinha uma espada na bainha e uma faca dentro de um estojo menor de couro, preso num largo cinto preto. Sua única tarefa era impedir que qualquer um de nós subisse ao segundo andar das Chaminés. Com cabelos longos cor de carvão, rosto marcado de cicatrizes, nariz adunco que aparentemente havia sido quebrado diversas vezes e olhos que pareciam mortos, Ladon-Tosh já era assustador mesmo sem todas aquelas armas. Com elas, era aterrorizante em todos os aspectos.

    Ouvi dizer que, um dia, bem antes de eu começar a trabalhar nas Chaminés, um mané qualquer tentou passar por Ladon-Tosh e subir as escadas. Dizem que o guarda o apunhalou com a faca, deu-lhe um tiro com o mortiço, cortou-lhe a cabeça com a espada e jogou os restos mortais numa das fornalhas que nunca se apagavam nas Chaminés. Não sei se acredito nisso, não tenho tanta certeza assim.

    Por esse motivo, eu era sempre infalivelmente educada com Ladon-Tosh. Não me interessava se ele nunca olhava para mim, nem falava comigo. Só queria que ele soubesse que eu era uma amiga.

    Quando comecei a trabalhar ali, havia um wugmort chamado Quentin Herms que me ajudava a dar acabamento nas peças. É o que fazia, eu era finalizadora. Quando pisei ali pela primeira vez, Julius simplesmente gritou: Você está dois átimos atrasada. Que isso nunca mais se repita.

    Naquele primeiro dia, olhei para minha mão carimbada e me perguntei o que estava fazendo lá. Só consegui encontrar minha mesa de trabalho porque havia meu nome escrito nela: um retângulo de metal escurecido, parafusado na madeira, escrito Vega Jane com letras prateadas. Não era uma placa bonita.

    O tempo todo eu pensava: Não é só meu nome que está parafusado nesse lugar. Eu também estou.

    Naquele mesmo dia, Quentin veio correndo me cumprimentar na minha mesa de trabalho. Ele era amigo da família e sempre havia sido muito gentil comigo.

    Achei que você começaria amanhã, Vega, disse. Se soubesse que seria hoje, eu teria me preparado para recebê-la.

    Não sei o que fazer, disse eu, em tom de desespero.

    Ele foi até sua mesa e voltou com uma estatueta de metal: um rapaz que acariciava um canino.

    É nisso que você vai dar acabamento, ou em coisas parecidas, disse ele. Isto é metal. Você também vai dar acabamento em coisas de madeira, cerâmica, argila e outros materiais. Vou pintar o wug e o canino com cores alegres.

    Como você sabe que cores usar?, perguntei.

    Há instruções para cada item na sua mesa, mas você tem certa liberdade para usar a criatividade. Você vai pintar, entalhar, moldar e também desgastar objetos para que pareçam mais velhos.

    Mas ninguém me ensinou a fazer isso.

    Sei que você demonstrou habilidades artísticas no Preparatório, disse ele. Do contrário, eles não te mandariam para cá como finalizadora.

    Olhei para Quentin.

    Achei que teria algum treinamento.

    Mas terá. Eu vou treinar você.

    Fale mais do seu trabalho, pedi, olhando para os objetos inacabados sobre a mesa dele.

    Isto faz parte do seu treinamento: me ajudar a finalizá-los. Esperei muito por esse dia, Vega. Eu sempre soube que você viria trabalhar nas Chaminés.

    E ele me ensinou. Dia após dia, eu chegava com um sorriso no rosto, mas só porque Quentin estava lá. Aprendi rápido, até que minhas habilidades se equipararam às dele.

    Recordo-me disso agora não por nostalgia, mas por uma razão bem diferente.

    Quentin Herms foi o wug que vi entrar correndo no Pântano, perseguido pelos caninos e pelo Conselho. Eu sabia que hoje ele não estaria nas Chaminés. Será que os outros demorariam para perceber sua ausência?

    Minha cabeça estava mais apavorada do que confusa, então preferi me concentrar naquilo que eu sabia fazer: dar acabamento em coisas bonitas que seriam compradas por wugs que pudessem pagar por elas. E eu não era um deles.

    Olhei minha primeira tarefa do dia: uma pequena tigela inacabada de porcelana que precisava ser pintada e depois queimada no forno. Enquanto erguia a tigela, a tampa escorregou e quase caiu no chão. Coloquei a tampa sobre a mesa e segurei a tigela com mais força.

    Foi então que vi um pequeno pedaço de pergaminho lá dentro. Olhei em volta para garantir que ninguém me observava e, com cuidado, enfiei a mão na tigela e o puxei, escondendo-o dentro de um uniforme. Abri a peça de roupa sobre a mesa, esticando junto o pergaminho. A caligrafia era pequena e precisa, com palavras legíveis.

    Não voltarei às Chaminés, Vega. Vá para sua árvore à noite. O que você encontrará lá talvez a liberte de Artemísia, se for este seu desejo. QH.

    Amassei o pergaminho e o engoli. Enquanto sentia-o descer pela garganta, levantei os olhos e vi quatro homens entrando no escritório de Julius. Pelas túnicas pretas, via-se que eram membros do Conselho. Jurik Krone estava entre eles, o que não era nada bom. Ele tinha me visto perto do Pântano mais cedo. Além disso, o fato de eu trabalhar perto de Quentin não era para mim um bom agouro.

    Passaram-se trinta átimos e levantei de novo o olhar, quando ouvi a porta de Julius se abrir. Todos os túnicas pretas olhavam para mim, nem um wug a mais, nem um a menos. Senti o corpo enrijecer como se tivesse encostado em um dos ferros quentes trabalhados pelos dáctilos.

    Jurik Krone se aproximou e, atrás dele, vieram os outros membros. Ele ergueu um objeto. Senti um nó na garganta quando o vi, pois reconheci imediatamente, mesmo que não o visse havia muitos ciclos. Como será que ele estava agora nas mãos de Jurik?

    E nos encontramos de novo, Vega, disse, enquanto ele e seu bando circundavam minha mesa.

    Sim, é verdade, respondi, tentando em vão manter a voz estável, pois ela estava tão trêmula quanto as pernas de uma criança que dava os primeiros passos.

    Ele ergueu o objeto no ar. Era um anel.

    Reconhece isto?

    Era do meu avô, disse, assentindo.

    O anel tinha um desenho inconfundível gravado na parte de cima, idêntico a uma marca que meu avô tinha no dorso da mão. Três ganchos ligados como se fossem um só. Nunca soube seu significado, e meu avô nunca falou sobre o assunto, pelo menos comigo, mas eu era muito nova quando ele sofreu o Evento.

    Você pode explicar como o anel de Virgílio Alfadir Jane foi parar na cabana de Quentin Herms?, perguntou Jurik Krone pacientemente, mas de forma incisiva.

    Balancei a cabeça, senti pequenas reviravoltas no estômago e os pulmões se dilatarem mais rápido do que eu gostaria.

    Pensei que havia desaparecido junto com meu avô quando ele teve o Evento. Você sabe que não sobra nada dos wugs depois de um Evento.

    Jurik jogou o anel em cima de minha mesa. Quando estiquei a mão para pegá-lo, ele cravou a ponta da faca no centro do anel e a fincou na madeira. Puxei a mão abruptamente e olhei para ele, com medo.

    Ele soltou lentamente a lâmina da faca e pegou de volta o anel.

    Você conhece Herms?, perguntou, calmamente. Ele é seu amigo, não é?

    É amigo da família. O único finalizador, além de mim.

    Por que não veio trabalhar hoje?

    Não sei, respondi, dizendo a verdade. No entanto, senti um alívio arrebatador por ter engolido o bilhete de Quentin. Talvez tenha se machucado ou esteja doente.

    Nenhuma das duas coisas, disse ele, chegando mais perto de mim. Sejamos francos. Você estava perto do Pântano ao nascer do sol. Você viu que estávamos atrás dele.

    Eu lhe disse, não vi nada. E você não me falou quem estava procurando. Olhei bem nos olhos de Jurik. Mas por que vocês estavam atrás de Quentin?

    Existem leis, Vega, leis que Quentin Herms transgrediu. E por isso ele será punido. Jurik me deu uma olhada tão penetrante que senti todos os poros da pele sendo tocados. Se ele entrar em contato com você, informe imediatamente ao Conselho. As consequências por manter silêncio serão desagradáveis. Essa questão é séria, Vega. Muito séria, na verdade. Ele fez uma pausa. Estou falando de Valhala para quem desobedecer.

    Todos os wugs presentes, inclusive eu mesma, deram um suspiro profundo. Ninguém queria ficar preso naquela cadeia exposta e vigiado por Nida, aquele bestial, junto com o selvagem chacal negro.

    Ele pôs a mão no meu ombro e apertou levemente.

    Conto com sua ajuda, Vega. Artemísia inteira precisa se unir para resolver esse assunto.

    Então ele deslizou a mão até meu rosto, puxou alguma coisa e a suspendeu no ar. Um pedaço do pergaminho de Quentin havia ficado preso na minha pele. Tomada pelo horror, vi que havia uma manchinha de tinta.

    Vestígio do seu trabalho, talvez?, disse. Fui atravessada mais uma vez pelos olhos de Jurik. Ele então girou o corpo sobre o pé direito e saiu pisando forte com a bota no chão. Seus colegas o seguiram.

    Olhei para Julius. Nunca vi seu rosto com um aspecto tão pálido e frio.

    "Você vai colaborar ou vai para Valhala", disse ele, e quase caiu ao virar as costas para mim. Depois desapareceu, ao entrar no escritório.

    Voltei a trabalhar e esperei a noite cair.

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