Relações de Poder na Literatura da Amazônia Legal
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Sobre este e-book
O livro analisa, a partir da teoria de Absurdo, de Camus, as relações de Poder na literatura produzida na Amazônia legal, área geopolítica que abrange a Amazônia brasileira. São analisados textos dos seguintes autores: Ricardo Guilherme Dicke, Tereza Albués, Dom Pedro Casaldáliga, José Vilela e Márcio Sousa.
Hilda Magalhães
Hilda Magalhães é uma pesquisadora brasileira.Doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ, com pós-doutoramento na Université de Paris III e na EHESS(França), é autora de dezenas de obras na área de Literatura.
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Relações de Poder na Literatura da Amazônia Legal - Hilda Magalhães
3.3- O fim do terceiro mundo, ressentimento e identidade nacional
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
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APRESENTAÇÃO
Asas notas de rodapé ainda não foram incorporadas a esta versão. Aguarde, por favor. Em breve estarão incorporadas).A Amazônia Legal compreende os Estados do Acre, Rondônia, Amazonas, Pará, Roraima, Amapá, Mato Grosso, Tocantins e o oeste do Maranhão, totalizando 4.990.520 km ², o que representa 58% da superfície brasileira. Definida pelo Governo Vargas em 1953, essa delimitação teve como objetivo circunscrever as áreas de execução de projetos econômicos no Norte do País, implantando o Capital numa região onde a economia achava-se restrita às necessidades familiares.
Cultural e economicamente, essa região foi mantida por muito tempo isolada do resto do país, devido à localização geográfica e à carência de meios de transporte e de comunicações. No início do Século XX, para se deslocar, por exemplo, de Cuiabá à cidade do Rio de Janeiro, era necessário atravessar três países (Argentina, Paraguai e Uruguai), de modo que a região se manteve, de uma certa maneira, segregada, desenvolvendo uma cultura fundamentada nas relações com a natureza e os mitos e uma economia de subsistência.
A partir da implantação dos programas de integração nacional do Governo Vargas (1930), verifica-se uma sensível melhora nos meios de comunicação e transporte, a qual se faz acompanhar também pelo aumento do fluxo migratório de habitantes do Nordeste e do Sudeste para os estados amazônicos. Tais ações, se conseguiram realmente integrar a distante Amazônia às regiões mais desenvolvidas do País, acarretaram, entretanto, sérios problemas sociais na região.
No que diz respeito à literatura produzida nesses estados, podemos afirmar que ela busca sua identidade a partir do compromisso com a realidade regional, sem perder, todavia, sua representatividade no cenário literário brasileiro. Com efeito, a Amazônia Legal contribui para o enriquecimento da literatura nacional com nomes importantes, como, por exemplo, Cavalcante Proença, Wlademir Dias Pino e Manoel Barros.
O compromisso com o regional, que, na literatura da primeira metade do século passado, se caracterizava sobretudo pela idealização de uma natureza-mãe e pelo registro do cotidiano das cidades provincianas, revela-se, após os anos sessenta, secundário. Interessa agora à literatura colocar em debate as novas relações de Poder, testemunhando o choque cultural e a deterioração das condições de vida na região.
A natureza-mãe e a imagem da terra sem limites dão lugar à terra aprisionada, à finitude da terra, proibida aos seus habitantes naturais. As delimitações jurídicas impõem um novo conceito de propriedade e de produção agropecuária, o mito da terra prometida é quebrado, a solidão, a paz e os personagens mitológicos são agora espantados pelas rodovias e pelo ronco do trator ou do avião.
Tais modificações são traumáticas para os antigos moradores que, de um dia para o outro, veem tudo se transformar ao seu redor. Como nos explica Hidelberto Ribeiro (2000), o processo de modernização da Amazônia se concretizou em menos de 20 anos e, tanto pela rapidez quanto pela violência, causou um verdadeiro desastre sociocultural na região.
Como sabemos que uma das formas de expressão da consciência coletiva é o imaginário, analisando as obras mais representativas da Amazônia encontraremos a dramatização de importantes aspectos dos distúrbios socioeconômico culturais vividos pelos habitantes dessa região na segunda metade do Século XX e que, de certo modo, continuam a fazer parte da realidade de nosso País.
Considerando que a delimitação da Amazônia Legal se acha vinculada à entrada do Capital no Norte do Brasil, movimento que ocorreu a partir da década de 1960, é nas obras surgidas a partir dessa época que encontraremos o registro literário das novas relações de Poder surgidas a partir de então. Dentre esses textos, destacam-se os romances Caieira (1977) e Madona dos páramos (1981), de Ricardo Guilherme Dicke; O berro do cordeiro em Nova York (1995), de Tereza Albues; O fim do terceiro mundo (1990), de Márcio Sousa; Xununu Tamu (1998), de José Vilela e os poemas de A cuia de Gedeão (1982), Cantigas menores (1979), Águas do tempo (1989) e Creio na justiça e na esperança (1988), de Dom Pedro Casaldáliga, que analisaremos neste volume.
A leitura dessas obras nos evidenciará não apenas a natureza das relações de Poder emergentes na Amazônia a partir da década de 60, mas também os mecanismos de dominação e o nível de consciência dos habitantes a respeito dos problemas vividos, propiciando-nos identificar não apenas os agentes de Poder, como também a visão de mundo dos dominados e suas reações diante das transformações socioculturais de seu ambiente.
Entretanto, para compreender essas obras, necessário se faz verificar a natureza e as formas de afirmação do Poder no mundo capitalista. Para tanto, recorreremos a José Fernandes que, a partir das definições de coisificação
, de Lucaks, e de Absurdo, de Camus, define a situação absurda como a perda progressiva e irreversível da identidade e da capacidade de ação do sujeito, que acaba reduzido à morte ou à loucura, como veremos a seguir.
I – AMAZÔNIA LEGAL, O DESAFIO
1.1- O conceito de absurdo
De acordo com Camus, um mundo que a gente pode explicar, mesmo que mal, é um mundo familiar. Mas, ao contrário, num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, o homem de sente estrangeiro (CAMUS, 1942, p.20). A consciência dessa estrangeiridade coloca em evidência o divórcio entre o homem e a vida, constituindo o que ele denomina sentimento do Absurdo (CAMUS, 1942, p. 36).
A impossibilidade de preencher a distância entre o mundo e o ser funda a absurdidade da vida. Assim, o sentimento de Absurdo se caracteriza pelo confronto o irracional e pelo desejo perdido de claridade, apelo que ressoa no mais íntimo do homem (CAMUS, 1942). Esse confronto do irracional é, no seu limite, o confronto da morte. Nesse sentido, o Absurdo é ao mesmo tempo o registro da morte como sacrifício e da impossibilidade de justificar esse sacrifício (BESSIÈRE, 1986, p.4).
O homem, mergulhado na existência, experimenta de tempos em tempos uma aguda consciência da precariedade de sua condição no mundo. Nesses momentos, retornando a Camus, o aspecto mecânico de seus gestos, sua pantomina privada, torna estúpido tudo que rodeia (CAMUS, 1942, p. 31). O cotidiano, que é familiar, passa a ser, da noite para o dia, estrangeiro, e o mundo, que lhe parecia coerente, torna-se repentinamente absurdo. Essa consciência é efêmera, pois, embora a absurdez exista sempre, tal experiência é interditada ao homem de modo permanente (DAUMAL, 1972, p.54). Entretanto é suficiente um único olhar que reconheça a ausência de coerência entre o homem e a vida para que o indivíduo possa provar esse mal-estar, essa incalculável queda diante da imagem do que somos.
No limite do caos, o personagem absurdo não pode se desenvolver nem individual nem socialmente. Num mundo que lhe parece estranho, num mundo em que as noções de tempo e de espaço parecem escapar à sua compreensão, a personagem vivencia o que Lévi-Valensi et al. chamam experiência de usure
e dissolution
, caracterizada pelo enfraquecimento dos conceitos (que se revelam no seu contrário), pelo aniquilamento das certezas, pelo apagamento das lembranças, pela fusão dos rostos (LÉVI-VALENSI e VALLETE-FONDO, 1986, p. 86).
O sentimento do Absurdo, de Camus, corresponde então à náusea de Sartre, isto é, à aguda consciência a da falta de sentido da vida. O exílio, que é o fundamento do Absurdo, exprime-se no personagem absurdo enquanto estranhamento, revolta e desesperança. É quando a vida não tem mais nenhum sentido, e o homem se encontra privado das lembranças de uma pátria perdida da esperança de uma terra prometida (LÉVI-VALENSI e VALLETE-FONDO, 1986, p. 36). Ser humano significa, portanto, pertencer ao Absurdo, ser o testemunho da dilaceração do ser, perdido entre a divindade e o Nada, como exprime o filósofo: Entre a certeza de que tenho de minha existência e o conteúdo que tento dar a esta certeza, o fosso jamais será preenchido. Para sempre, serei estranho a mim mesmo
(LÉVI-VALENSI e VALLETE-FONDO, 1986, p. 36).
Numa perspectiva histórica, essa consciência, como caracteriza Camus, só existirá a partir do Século XX, já que, no curso da história ocidental, a existência de um mundo superior, fundado na imagem divina, sempre conferiu sentido não somente à vida, mas também à morte. Entretanto, embora peculiar ao Século XX, já na filosofia de Schopenhauer o sentimento do Absurdo se anuncia, dissimulado no pessimismo.
Existe, segundo Schopenhauer, uma decalagem entre o mundo o desejo. A vida é marcada pelas dores que o Querer acarreta ao homem, sempre mais numerosas do que o prazer. Ora, a contabilidade é clara: se a coluna penas
é maior do que a coluna alegria
, a vida não vale a pena ser vivida (ROSSET, 1967, p. 70). Na busca do bem-estar e da felicidade, vaidade e decepção se opõem, aprisionando o homem em cadeias inexistentes, submetendo-o a objetivos que não se sustentam.
A ausência de finalidade do desejo é contraditória em relação à vida, em relação ao mundo, em que tudo se comporta como se tivesse uma finalidade. Citando Clement Rosset, o absurdo do querer consiste no contraste entre a perfeição da organização dos fins e a ausência de toda finalidade (ROSSET, 1967, p. 70). Todos os fenômenos demonstram ter uma organização complexa e precisa, entretanto são todos vazios, do mesmo modo que as satisfações se revelam ilusórias.
A ausência de finalidades transforma o homem num escravo sem mestre, obedecendo a fins inexistentes. O homem, diz Schopenhauer (citado por ROSSET, 1967, p. 84), nada mais faz do que perseguir uma quimera que faísca diante de seus olhos, destinada a desaparecer depois e que se disfarça de motivo real. É justamente isso que cauda a inquietude, a insaciabilidade e a confusão na consciência. O homem se confronta continuamente com a privação, sendo a dor e a infelicidade, em derradeira instância, a única realidade possível.
No Século XX, a experiência da morte de deus e o reinado da vontade solapam todos os fundamentos mais que sustentavam a sociedade tradicional. A ausência de Deus coloca em relevo a impossibilidade da explicação da morte e, em consequência, da vida. Camus, analisando a obra de Dostóievski, afirma que Tornar-se Deus é somente ser livre nesta terra, não mais servir a um ser imortal (CAMUS, 1942, p. 146). Entretanto essa liberdade se revela no homem como fonte de permanente angústia, porque inclui o confronto dos limites da condição humana, colocando em evidência a absurdez da vida.
Sísifo, ícone do Absurdo, é um humano, que ao fugir do Inferno, afronta os deuses, igualando-se dessa forma a eles e escapando, mesmo que provisoriamente, de sua condição de humano. Os deuses, como castigo, obrigam-no a retornar ao Inferno, onde deve completar sua pena: rolar uma pedra até o cume de um monte, de onde ela resvalará novamente, exigindo ao herói a repetição, ao infinito, da tarefa.
Citando Camus, Sísifo, o proletário dos deuses, é o herói absurdo, seja pelas suas paixões, seja pelo seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio pela morte e sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que todo o seu ser emprega a nada concluir
(CAMUS, 1942, p. 164). Entretanto, não é a subida ou a descida da pedra que interessam a Camus, nem mesmo o esforço do herói na sua atividade sem fim. O que lhe interessa é o momento da descida do herói, breve pausa em que se dá conta da inutilidade de seus esforços: Eu vejo este homem descendo novamente com um passo pesado mas igual para o tormento do qual ele não conhecerá fim. Esta hora, que é como uma respiração e que repetirá tão seguramente como a sua infelicidade, esta hora é a da consciência
(CAMUS, 1942, p. 165).
José Fernandes define, a partir de Camus, o Absurdo como uma situação de extrema violência em que os homens, sedentos de dinheiro e de Poder, exploram até a reificação seus semelhantes (FERNANDES, 1992, p. 256-319). Assim, na literatura do Absurdo, o ser é inserido numa situação que lhe é radicalmente estranha e hostil, retirando progressivamente do indivíduo todos os seus pontos de referência, tornando-lhe a vida impossível.
Na narrativa do absurdo, o Poder, explica-nos José Fernandes, caracteriza-se por um alto grau repressivo, condenando o indivíduo à reificação, caracterizada pelo enfraquecimento progressivo da subjetividade e pela ausência de consciência da condição precária em que vive.
Para ilustrar suas observações, José Fernandes emprega, além dos textos de Kafka, o romance Sombras de reis barbudos, de José J. Veiga, que nos conta a estória da chegada de uma indústria a uma pequena vila, transformando em pesadelo o cotidiano dos habitantes da pacata cidade. Pouco a pouco, as interdições se tornam cada vez mais numerosas e irracionais, enfraquecendo as relações entre os indivíduos, semeando a desconfiança entre eles e reduzindo-os à condição de coisa.
Como observa José Fernandes, em Sombras de reis barbudos mesmo a visão do céu é interdita aos personagens, o