Uma releitura de "Os Maias"
Na sequência da leitura do recente post do MCB a propósito da “Geração de 70”, post esse que subscrevo na íntegra, ocorreram-me algumas ideias que gostaria de partilhar com os meus parcos e estimados leitores. Não há dúvida de que, como muito bem referiu o MCB, toda a nossa visão do final do sec. XIX e princípios do XX continua, ainda hoje, e em grande medida, a ser marcada por este grupo. Bastaria apenas consultar alguns dos manuais escolares que abordam este período, para o confirmar. A noção de decadência, de atraso, de um país tacanho, beato e retrógrado e, o mais grave de tudo, de que tudo isto era algo de inevitável, isto é, uma fatalidade contra a qual nada podia ser feito, é aquilo que resumidamente a caracteriza. A título de exemplo recordemo-nos do tema da intervenção de Oliveira Martins nas célebres Conferências do Casino (proibidas pelo Marechal Saldanha): “Causas da decadência dos povos peninsulares” e nas quais ele incluía a influência do Concílio de Trento. Mas antes de tentar ir mais longe na compreensão do porquê desta visão tão negra da realidade portuguesa de então, convém, desde já, não esquecer que esta mesma visão era aquela que a maioria dos políticos do liberalismo (na sua maioria “aventaleiros”) tinham do seu próprio país, como no-lo relembrou Rui Ramos na sua conferência na Universidade Católica. A meu ver dois factores interligados concorrem para explicar esta atitude destes “intelectuais”. Por um lado, o facto de muitos destes senhores “consumirem” Hegel, por entre outros autores e cuja chegada a Portugal foi facilitada pela inauguração da linha de caminho de ferro Paris Lisboa. Sabendo que Hegel foi o grande mentor de Marx, podemos, pois, dizer que a influência fortemente deletéria deste filósofo se começava a fazer sentir nos neurónios destes senhores. No fundo eram uma espécie de “marxistas avant la lettre”, que sofriam de ideologia o que, tal como em tempos já aqui escrevi, os levava a chamar “preto ao branco e branco ao preto”, e a ver atraso onde, apesar de tudo, nem tudo era tão negro. Como bons “esquerdistas” eram um grupo de inimigos da liberdade (sobretudo da responsabilidade que lhe está indissociavelmente ligada) travestidos de defensores da liberdade. Por outro a crescente democratização do país, com a sua concomitante atomização igualitária, criou progressivamente um estado social propício a uma tal visão. Lembremo-nos aquilo que Tocqueville escreveu no seu capítulo XX do livro II “De la démocratie en Amérique”, intitulado precisamente “De quelques tendances particulières aux historiens dans les siècles démocratiques”:
“Lorsque la trace de l’action des individus sur les nations se perd, il arrive souvent qu’on voit le monde se remuer sans que le moteur se découvre. Comme il devient très difficile d’apercevoir et d’analyser les raisons qui, agissant séparément sur la volonté de chaque citoyen, finissent par produire le mouvement du peuple, on est tenté de croire que ce mouvement n’est pas volontaire et que les sociétés obéissent sans le savoir à une force supérieure qui les domine.
Alors même que l’on doit découvrir sur la terre le fait général qui dirige la volonté particulière de tous les individus, cela ne sauve point la liberté humaine. Une cause assez vaste pour s’appliquer à la fois à des millions d’hommes, et assez forte pour les incliner tous ensemble du même côté, semble aisément irrésistible ; après avoir vu qu’on y cédait, on est bien près de croire qu’on ne pouvait y résister.
Les historiens qui vivent dans les temps démocratiques ne refusent donc pas seulement à quelques citoyens la puissance d’agir sur la destiné du peuple, ils ôtent encore aux peuples eux-mêmes la faculté de modifier leur propre sort, et ils les soumettent soit à une providence inflexible, soit à une sorte de fatalité aveugle. (...)
Il ne leur suffit pas de montrer comment les faits sont arrivés ; ils se plaisent encore à faire voir qu’ils ne pouvaient arriver autrement. (…) Cela est plus aisé que d’enseigner comment elle aurait pu faire pour faire une meilleure route.»
Com base nestas palavras de Tocqueville vejamos então alguns aspectos de “Os Maias”. Se analisarmos toda a estrutura narrativa vemos que todas aquelas personagens estão submetidas a “une force supérieure qui les domine” não tendo qualquer possibilidade de inverter o destino traçado e que, como sabemos será trágico, sobretudo para a personagem principal, Carlos da Maia, bem como para o seu avô, Afonso da Maia. Li em tempos um livro de que muito gostei chamado “The lost literature of socialism”, no qual o autor, George Watson, um professor de literatura em Cambridge especializado na época vitoriana nos dá, num capitulo intitulado precisamente “Tocqueville’s burden of liberty”, exemplos deste medo da liberdade, (este “fardo” como ele lhe chama), que pode levar igualmente ao ódio à verdade (numa das obras que ele cita, uma das peças de teatro de Ibsen, “As três irmãs”, por exemplo, há, se não me engano, uma personagem que morre por ficar a conhecer a verdade sobre algo ou alguém). Isto levou-me a pensar num acontecimento no final de “Os Maias” no qual este ódio à liberdade, ou à responsabilidade, está bem patente. Recordemos então o momento no qual Eça nos faz surgir um tio vindo de Paris, cujo nome não me recordo e que serve apenas para revelar que Maria Eduarda é irmã de Carlos da Maia. Primeira consequência dessa “maldita” verdade: o avô morre. Segunda Carlos da Maia, ao recusar submeter-se à verdade persiste em manter uma relação pecaminosa/incestuosa, que no fundo sabe que está condenada. A reacção que Eça nos quer suscitar a todos com esta passagem é precisamente o ódio à verdade. Quantos de nós quando a lemos não dizemos a nós próprios: “que bom seria se o tio não tivesse vindo de Paris, visto que se assim fosse eles teriam podido continuar o seu “idílio”. Com base nisto uma pergunta se impõe: o que é “tramou” o Carlos da Maia? A resposta é óbvia: a liberdade. Ele escolheu livremente aquela que pensava ser a mulher da sua vida e “tramou-se”, logo, podemos dizer “maldita liberdade”. Para terminar este post, que já está demasiado longo, deixo no ar uma última pergunta: quando é que nas nossas escolas será dada aos alunos esta interpretação deste romance?
“Lorsque la trace de l’action des individus sur les nations se perd, il arrive souvent qu’on voit le monde se remuer sans que le moteur se découvre. Comme il devient très difficile d’apercevoir et d’analyser les raisons qui, agissant séparément sur la volonté de chaque citoyen, finissent par produire le mouvement du peuple, on est tenté de croire que ce mouvement n’est pas volontaire et que les sociétés obéissent sans le savoir à une force supérieure qui les domine.
Alors même que l’on doit découvrir sur la terre le fait général qui dirige la volonté particulière de tous les individus, cela ne sauve point la liberté humaine. Une cause assez vaste pour s’appliquer à la fois à des millions d’hommes, et assez forte pour les incliner tous ensemble du même côté, semble aisément irrésistible ; après avoir vu qu’on y cédait, on est bien près de croire qu’on ne pouvait y résister.
Les historiens qui vivent dans les temps démocratiques ne refusent donc pas seulement à quelques citoyens la puissance d’agir sur la destiné du peuple, ils ôtent encore aux peuples eux-mêmes la faculté de modifier leur propre sort, et ils les soumettent soit à une providence inflexible, soit à une sorte de fatalité aveugle. (...)
Il ne leur suffit pas de montrer comment les faits sont arrivés ; ils se plaisent encore à faire voir qu’ils ne pouvaient arriver autrement. (…) Cela est plus aisé que d’enseigner comment elle aurait pu faire pour faire une meilleure route.»
Com base nestas palavras de Tocqueville vejamos então alguns aspectos de “Os Maias”. Se analisarmos toda a estrutura narrativa vemos que todas aquelas personagens estão submetidas a “une force supérieure qui les domine” não tendo qualquer possibilidade de inverter o destino traçado e que, como sabemos será trágico, sobretudo para a personagem principal, Carlos da Maia, bem como para o seu avô, Afonso da Maia. Li em tempos um livro de que muito gostei chamado “The lost literature of socialism”, no qual o autor, George Watson, um professor de literatura em Cambridge especializado na época vitoriana nos dá, num capitulo intitulado precisamente “Tocqueville’s burden of liberty”, exemplos deste medo da liberdade, (este “fardo” como ele lhe chama), que pode levar igualmente ao ódio à verdade (numa das obras que ele cita, uma das peças de teatro de Ibsen, “As três irmãs”, por exemplo, há, se não me engano, uma personagem que morre por ficar a conhecer a verdade sobre algo ou alguém). Isto levou-me a pensar num acontecimento no final de “Os Maias” no qual este ódio à liberdade, ou à responsabilidade, está bem patente. Recordemos então o momento no qual Eça nos faz surgir um tio vindo de Paris, cujo nome não me recordo e que serve apenas para revelar que Maria Eduarda é irmã de Carlos da Maia. Primeira consequência dessa “maldita” verdade: o avô morre. Segunda Carlos da Maia, ao recusar submeter-se à verdade persiste em manter uma relação pecaminosa/incestuosa, que no fundo sabe que está condenada. A reacção que Eça nos quer suscitar a todos com esta passagem é precisamente o ódio à verdade. Quantos de nós quando a lemos não dizemos a nós próprios: “que bom seria se o tio não tivesse vindo de Paris, visto que se assim fosse eles teriam podido continuar o seu “idílio”. Com base nisto uma pergunta se impõe: o que é “tramou” o Carlos da Maia? A resposta é óbvia: a liberdade. Ele escolheu livremente aquela que pensava ser a mulher da sua vida e “tramou-se”, logo, podemos dizer “maldita liberdade”. Para terminar este post, que já está demasiado longo, deixo no ar uma última pergunta: quando é que nas nossas escolas será dada aos alunos esta interpretação deste romance?